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Tel. 217 626 000
ISBN: 978-972-25-4098-8
SAPATOS
A guerra ainda não tinha chegado até nós. Vivíamos no temor e
na esperança e tentávamos não atrair a ira de Deus para a nossa
cidade rodeada de sólidas muralhas, com as suas cento e cinco
casas, a igreja e o cemitério onde os nossos antepassados
aguardavam o Dia da Ressurreição.
Rezávamos muito para manter a guerra longe. Rezávamos ao
Todo-Poderoso e à bondosa Virgem, rezávamos à Senhora das
Florestas e aos pequenos seres da meia-noite, a São Gervino, a
São Pedro, a João Evangelista e, à cautela, rezávamos também à
Velha Mela que, nas noites de tempestade, quando os demónios
têm autorização para vaguear em liberdade, percorre os céus
seguida pelo seu séquito. Rezávamos ao chifrudo de outros tempos
e ao bispo São Martinho, que partilhou a sua capa com o mendigo
que morria de frio, de modo que acabaram por morrer de frio os
dois, caindo ambos nas graças de Deus, pois para que serve meia
capa no inverno? E, como é natural, rezávamos a São Maurício, que
preferiu morrer com toda uma legião a trair a sua fé num Deus único
e justo.
Duas vezes por ano, aparecia o cobrador de impostos e
mostrava-se sempre surpreendido por ainda estarmos ali. De
quando em quando, apareciam vendedores ambulantes, mas, como
não comprávamos grande coisa, depressa seguiam caminho, o que
para nós não era um problema. Não precisávamos de nada do vasto
mundo e não pensávamos nele, até que, certa manhã, apareceu na
nossa rua principal uma carroça coberta puxada por um burro. Era
um sábado e a primavera chegara havia pouco; o caudal do ribeiro
engrossava com a água do degelo, e já tínhamos dado início à
sementeira nos campos que não estavam em pousio.
Sobre a carroça estava montada uma tenda de lona vermelha. À
frente, ia uma mulher idosa agachada. O seu corpo parecia uma
saca, tinha um rosto curtido e uns olhos que faziam lembrar
minúsculos botões negros. Atrás, seguia uma mulher mais nova,
sardenta e de cabelo escuro. Mas na boleia ia sentado um homem,
que reconhecemos, embora nunca tivesse estado aqui, e quando os
primeiros se recordaram de quem era e o chamaram, os outros
também se lembraram, e em breve eram várias as vozes que se
ouviam, vindas de todos os lados: «O Tyll está aqui!», «O Tyll
chegou!», «Olhem, está ali o Tyll!» Só podia ser ele.
Até folhetos chegavam até nós. Atravessavam a floresta,
soprados pelo vento, vendedores ambulantes traziam-nos, pois no
mundo exterior imprimiam-se mais do que alguém seria capaz de
contar. Falavam da nave dos loucos, da profunda tolice dos padres,
do pérfido Papa de Roma, do diabólico Martinho Lutero de
Wittenberg, do feiticeiro Horridus, do Doutor Fausto, do heroico Sir
Gawain da Távola Redonda e até dele, Tyll Ulenspiegel, que agora
acabara de chegar. Conhecíamos o seu gibão sarapintado,
conhecíamos o capuz amassado e a capa de pele de vitelo,
conhecíamos o seu rosto macilento, os olhos pequenos, as faces
encovadas e os dentes de lebre. As suas calças eram de bom
tecido, os sapatos de couro fino, mas tinha mãos de ladrão ou de
escrevedor, de quem nunca havia trabalhado; a direita segurava as
rédeas, a esquerda, o chicote. Os seus olhos coruscavam, enquanto
saudava para a esquerda e para a direita.
— E tu, como te chamas? — perguntou a uma menina.
A garota permaneceu em silêncio, pois não percebia como era
possível alguém tão célebre dirigir-lhe a palavra.
— Ora diz lá!
Quando ela balbuciou que se chamava Martha, ele limitou-se a
sorrir, como se o soubesse desde sempre. Em seguida, perguntou
com atenção, como se para ele fosse importante:
— E que idade tens?
Ela tossicou e respondeu-lhe. Nos seus doze anos de vida,
nunca vira uns olhos como os de Tyll. Olhos como aqueles devia
haver nas cidades livres do império e nas cortes dos nobres, mas
nunca nos visitara ninguém com olhos semelhantes. Martha não
sabia que o rosto de uma pessoa podia refletir uma tal força e uma
tal agilidade espiritual. Posteriormente, viria a contar ao marido e,
ainda mais tarde, aos seus netos incrédulos, para os quais
Ulenspiegel seria apenas uma personagem das antigas lendas, que
o vira com os seus próprios olhos.
A carroça já tinha passado, o olhar de Tyll já se tinha desviado
para outro sítio, para outras pessoas à beira do caminho. «O Tyll
chegou!», voltou a ouvir-se na rua: «O Tyll está aqui!», gritavam das
janelas, e: «Está ali o Tyll!», ressoava no adro da igreja, para onde
se dirigia agora a carroça.
Ele fez estalar o chicote e pôs-se de pé. Rápido como um
relâmpago, o carro transformou-se num palco. As duas mulheres
dobraram a lona, a jovem prendeu o cabelo num rolo, colocou uma
pequena coroa e pôs pelos ombros um pano púrpura; a velha
colocou-se à frente da carroça, ergueu a voz e deu início a uma
cantilena. Exprimia-se num dialeto que parecia do Sul, das grandes
cidades da Baviera, e que não era fácil de entender, embora
percebêssemos que tinha que ver com uma mulher e um homem
que se amavam, mas não conseguiam chegar junto um do outro por
as águas os separarem. Tyll Ulenspiegel pegou num pano azul,
ajoelhou-se e, segurando-o de um lado, sacudiu-o para longe de si,
de modo que se desenrolou a crepitar; puxou-o e voltou a lançá-lo,
puxou-o para trás, sacudiu-o de novo, e como ele estava ajoelhado
de um lado e a mulher do outro e o azul ondulava entre eles, parecia
tratar-se de facto de água e de ondas alterosas a elevar-se e a
descer, como se nenhum barco pudesse sulcá-las.
Quando a mulher se ergueu e contemplou as ondas com um
rosto apavorado, de súbito apercebemo-nos de como era bela. Ali
de pé, com os braços estendidos para o céu, repentinamente já não
pertencia a este mundo, e nenhum de nós conseguia afastar o olhar
dela. Pelo canto do olho, víamos o seu amado saltar, dançar,
afadigar-se e brandir a espada a lutar com dragões, inimigos, bruxas
e reis malvados, no árduo caminho até ela.
A peça prolongou-se até à tarde. E, embora sabendo que as
tetas das vacas lhes doíam, nenhum de nós deu mostras de
impaciência. A velha continuou hora após hora. Parecia impossível
alguém recordar-se de tantos versos, e alguns de nós
suspeitávamos que os inventava à medida que ia cantando.
Entretanto, o corpo de Tyll Ulenspiegel não descansava, e as
plantas dos seus pés pareciam mal tocar no solo; sempre que o
nosso olhar se fixava nele, já se encontrava noutro ponto do
pequeno palco. No final da história surgiu um mal-entendido: a
formosa mulher arranjara um veneno para fingir de morta e não ter
de casar com o tutor perverso, mas a mensagem a esclarecer tudo
com o seu amado perdera-se pelo caminho, e quando ele, o
verdadeiro noivo, o amigo da sua alma, por fim chegara junto do
corpo inerte, o pavor fulminara-o como um raio. Durante muito
tempo quedou-se como que paralisado. A velha calou-se. Ouvíamos
o vento e os mugidos das vacas. Ninguém respirava. Finalmente,
sacou de uma faca e enterrou-a no peito. Foi assombroso, a lâmina
desapareceu na carne, um pano vermelho saiu-lhe da gola como um
jorro de sangue e, por entre gemidos, ele sucumbiu junto da sua
amada, sacudido por mais alguns espasmos até ficar imóvel. Estava
morto. Agitou-se mais uma vez, endireitou-se, e voltou a cair,
imóvel, agora para sempre. Ficámos à espera. Era um facto. Era
para sempre.
Decorridos segundos, a mulher acordou e avistou o cadáver ao
seu lado. A princípio ficou desorientada, sacudiu-o, depois
compreendeu o sucedido e ficou de novo desorientada, e finalmente
desatou num pranto, como se o mundo não tivesse remédio. Em
seguida, pegou na faca do amado e matou-se de igual modo,
ficando nós de novo maravilhados com o truque hábil e com a
profundidade a que a lâmina penetrou no peito. Então só restou a
velha, que recitou mais alguns versos no dialeto que mal
entendíamos. Nessa altura, a peça chegou ao fim e, já há muito que
os mortos se tinham levantado e faziam vénias, e muitos de nós
ainda chorávamos.
Mas isso não foi tudo. As vacas ainda teriam de esperar, pois à
tragédia suceder-se-ia a comédia. A velha tocava um tambor e Tyll
Ulenspiegel tocava uma flauta e dançava com a mulher, que agora
já não parecia particularmente bela, com passos para a direita e
para a esquerda, para trás e para a frente. Tinham ambos os braços
erguidos e os seus movimentos estavam de tal modo sincronizados
que não pareciam duas pessoas, mas uma imagem num espelho.
Nós dançávamos razoavelmente, era frequente termos festas, mas
não havia quem soubesse dançar como eles; ao contemplá-los, era
como se um corpo humano fosse imponderável e a vida não fosse
triste e dura. Assim, os nossos pés não resistiram, e começámos a
balançar, a saltar, a pular e a rodopiar.
Então, de súbito, a dança acabou. Ofegantes, olhámos para a
carroça, sobre a qual Tyll Ulenspiegel se encontrava agora sozinho,
sem que se avistassem as duas mulheres. Interpretava uma cantiga
de escárnio e maldizer sobre o pobre e tonto Rei do Inverno, o
príncipe eleitor do Palatinado, que pensara ser capaz de derrotar o
imperador e de tomar a coroa de Praga aos protestantes, embora o
seu reinado se tivesse dissolvido ainda antes da neve. A canção
também referia o imperador, que tinha sempre frio de tanto rezar,
esse homenzinho que tremia perante os suecos na corte de Viena, e
também falava do rei da Suécia, o Leão da Meia-Noite, forte como
um urso, o que, de resto, pouco lhe tinha servido em Lützen, contra
a bala que lhe tirara a vida como a um soldado raso, e aí a tua luz
apagou-se, e adeus alminha real, adeus leão! Tyll Ulenspiegel ria, e
nós ríamos com ele, pois era impossível resistir-lhe e porque fazia
bem pensar que os grandes morriam e nós ainda estávamos vivos;
e a seguir cantou sobre o rei de Espanha com o lábio inferior
protuberante, que se julgava senhor do mundo, embora estivesse
depenado como uma galinha.
De tanto rir, só daí a algum tempo nos apercebemos de que a
música tinha mudado e que, de repente, já não tinha graça. Agora
Tyll cantava uma balada de guerra, sobre cavalgadas em grupo,
tilintar de armas e amizade entre homens, como estes se punham à
prova no perigo, e sobre o júbilo das balas a zunir. Cantava sobre a
vida dos soldados e a beleza da morte, sobre a alegria exultante
daquele que cavalga ao encontro do inimigo, e todos sentíamos o
coração bater mais depressa. Os homens entre nós sorriam, as
mulheres abanavam a cabeça, os pais punham os filhos pequenos
às cavalitas e as mães olhavam os filhos varões com orgulho.
Só a velha Luise bufava, abanava a cabeça e resmungava tão
alto que quem estava perto dela lhe dizia que devia voltar para casa,
após o que ela vociferou ainda mais alto e perguntou se ninguém
percebia o que Tyll tinha ido fazer ali. Que estava a invocá-la, que
estava a chamá-la para ali!
Mas quando, com vozes sibilantes, a mandámos calar e a
ameaçámos, e ela, graças a Deus, se foi embora, já Tyll recomeçara
a tocar a flauta; a mulher, de pé junto dele, tinha uma aparência
majestosa como uma pessoa de categoria. Com uma voz límpida,
cantava sobre o amor, que era mais forte do que a morte. Cantava
sobre o amor dos pais, sobre o amor de Deus e sobre o amor entre
homem e mulher; e aí qualquer coisa tornou a mudar, o ritmo
tornou-se mais rápido, o som mais agudo e penetrante e,
inesperadamente, a canção falava do amor carnal, dos corpos
quentes a rolar na erva, do perfume da tua nudez e do teu grande
traseiro. Os homens entre nós riam, o riso das mulheres foi juntar-se
ao deles, e as crianças eram as que riam mais alto. A pequena
Martha também ria. Tinha aberto caminho até à frente e
compreendia muito bem a canção, pois ouvira com frequência a
mãe e o pai na cama, os criados na palha e a irmã com o filho do
carpinteiro no ano anterior — à noite tinham-se escapulido, mas
Martha seguira-os e vira tudo.
No rosto do célebre Tyll desenhava-se um sorriso rasgado e
lascivo. Entre ele e a mulher surgira uma tensão tremenda, uma
força que os arrastava um para o outro, que atraía os seus corpos
com tal intensidade, que era quase insuportável não se agarrarem.
Porém, a música que ele tocava parecia impedir que tal
acontecesse, pois, como por acaso, modificara-se, o momento
passara e o novo som já não o permitia. Era o Agnus Dei. A mulher
juntou as mãos, qui tollis peccata mundi, ele recuou, e ambos
pareceram assustados com o delírio que quase se havia apoderado
deles, tal como nós também nos assustámos e nos benzemos, pois
nos recordámos que Deus via tudo e pouco aprovava. Caíram os
dois de joelhos e nós imitámo-los. Tyll pousou a flauta, pôs-se de
pé, abriu os braços e pediu dinheiro e comida, pois agora ia haver
um intervalo. E se lhe pagassem bem, o melhor estava ainda para
vir.
Atarantados, pegámos nas bolsas. As duas mulheres passaram
à volta com umas canecas. Demos tanto, que as moedas tilintavam
e saltavam. Todos demos: Karl Schönknecht deu, Malte Schopf deu,
a sua irmã ceceosa deu, e a família do moleiro, que era tão
avarenta, deu-lhes de igual modo, e o desdentado Heinrich Matter e
Matthias Wohlsegen, apesar de serem artesãos e de se
considerarem superiores, deram uma quantia particularmente
avultada.
Lentamente, Martha deu a volta à carroça coberta.
Ali estava Tyll Ulenspiegel, sentado, com as costas apoiadas à
roda, a beber de uma grande caneca. Junto dele estava o burro.
— Vem cá — disse-lhe.
Com o coração aos saltos, Martha aproximou-se.
Tyll estendeu-lhe a caneca.
— Bebe.
Ela pegou na caneca. A cerveja era amarga e pesada.
— As pessoas daqui são boa gente?
Ela fez um aceno afirmativo.
— Pessoas pacíficas, que se entreajudam, que se compreendem
e gostam uns dos outros. São gente assim?
Martha bebeu mais um gole.
— São.
— Muito bem — disse Tyll.
— Veremos — disse o burro.
Com o susto, Martha deixou cair a caneca.
— Essa bela cerveja — disse o burro. — Que miúda tonta.
— A isto chama-se falar com a barriga — disse Tyll Ulenspiegel.
— Se quiseres, também podes aprender.
— Também podes aprender — repetiu o burro.
Martha apanhou a caneca e recuou um passo. A poça de cerveja
tornou-se maior e depois diminuiu, pois o solo seco absorveu a
humidade.
— A sério — disse Tyll. — Vem connosco. A mim já me
conheces. Sou o Tyll. A minha irmã, que está ali, é a Nele. Não é
minha irmã. A velha, não sei como se chama. O burro é o burro.
Martha olhava-o fixamente.
— Ensinamos-te tudo — disse o burro. — Eu, a Nele, a velha e o
Tyll. E tu sais daqui. O mundo é grande. Poderás vê-lo. Não sou
apenas burro, tenho um nome, chamo-me Orígenes.
— Porque me convidam a mim?
— Porque não és como eles — respondeu Tyll Ulenspiegel. —
Tu és como nós.
Martha estendeu-lhe a caneca, mas como ele não lhe pegou,
pousou-a no chão. Tinha o coração a bater. Pensou nos pais, na
irmã, na casa onde vivia, na colina atrás da floresta e no ruído do
vento nas árvores, que não conseguia imaginar que pudesse ter o
mesmo som em nenhuma outra parte. E pensou no guisado que a
mãe cozinhava.
Os olhos do célebre Tyll brilhavam quando lhe disse a sorrir:
— Pensa no velho ditado: «Em todos os sítios podes encontrar
coisas melhores do que a morte.»
Martha abanou a cabeça.
— Então está bem — disse ele.
Ela ficou à espera, mas Tyll não disse mais nada, e ela demorou
um momento a perceber que o interesse que ele tinha por ela já se
havia desvanecido.
Assim, tornou a dar a volta à carroça e regressou para junto das
pessoas que conhecia, para junto de nós. Naquele momento,
éramos a sua vida, e não havia outra. Sentou-se no chão. Sentia-se
vazia. Mas quando erguemos os olhos, ela também o fez, pois todos
ao mesmo tempo apercebemo-nos que havia algo a pairar no céu.
Uma linha negra cortava o azul. Piscámos os olhos. Era uma
corda. De um lado, estava atada à cruz da janela do campanário, e
do outro ao pau da bandeira que se erguia do muro junto da janela
do edifício onde trabalhava o governador da cidade, o que não era
frequente, pois este era preguiçoso. À janela estava a jovem do
carro, que devia ter acabado de atar a corda; mas como a tinha
esticado?, perguntávamo-nos nós. Uma pessoa podia estar aqui e
ali, nesta janela ou na outra, era fácil atar uma corda e deixá-la cair,
mas como fazê-la subir até à outra janela, para atar a outra ponta?
Ficámos de boca aberta. Durante algum tempo, pareceu-nos que
a própria corda era o truque do espetáculo e que não era necessário
mais nada. Um pardal pousou sobre ela, deu um saltinho, abriu as
asas, mudou de ideias e permaneceu ali pousado.
Foi então que Tyll Ulenspiegel apareceu à janela do campanário.
Fez um aceno, saltou para o parapeito e, avançou pela corda, como
se fosse a coisa mais fácil deste mundo. Como se cada passo na
corda fosse como outro passo qualquer. Nenhum de nós falava, não
se ouvia uma exclamação, ninguém se movia, estávamos de
respiração suspensa.
Sem vacilar nem procurar equilibrar-se, Tyll limitava-se a
avançar. Os seus braços oscilavam, e ele seguia como quem
caminha sobre o solo, só que a sua maneira de andar parecia um
pouco afetada, pois colocava sempre um pé à frente do outro. Era
preciso dar muita atenção aos pequenos movimentos das ancas,
que amorteciam a oscilação da corda. De um salto, ajoelhou-se uns
momentos, antes de voltar a pôr-se de pé. Depois seguiu até ao
meio da corda, com as mãos cruzadas nas costas. O pardal
levantou voo, mas só bateu as asas por instantes até pousar e virar
a cabeça; o silêncio era tal que o ouvíamos piar. E, como é natural,
ouvíamos as nossas vacas.
Por cima de nós, Tyll Ulenspiegel girou, devagar e
descuidadamente — não como quem se encontra em perigo, mas
como alguém que olha à sua volta com curiosidade. Manteve o pé
direito sobre a corda durante muito tempo, o esquerdo em sentido
contrário, os joelhos um pouco fletidos e os punhos fechados nas
ancas. E no mesmo instante, todos nós, a olhar para cima,
compreendemos o que era a ligeireza. Compreendemos como pode
ser a vida para quem realmente faz o que quer, sem acreditar em
nada nem dar ouvidos a nada; compreendemos como era ser uma
pessoa assim e compreendemos que nunca o seríamos.
— Descalcem os sapatos!
Ficámos sem saber se tínhamos percebido bem.
— Descalcem-nos — exclamou ele. — Todos, o direito. Deixem-
se de perguntas, façam o que eu digo, que vai ser divertido.
Confiem em mim, descalcem-nos. Velhos e novos, mulheres e
homens! Todos. O sapato direito.
Todos os olhares se fixaram nele.
— Não foi divertido até agora? Não querem mais? Vou mostrar-
vos mais, descalcem todos o pé direito. Vá lá!
Demorámos um bocado a pormo-nos em movimento. É sempre
assim connosco, somos gente circunspecta. O primeiro a obedecer
foi o padeiro, e seguiram-se de imediato Malte Schopf, Karl Lamm e
a mulher, e depois obedeceram os artesãos, que se consideravam
sempre os melhores, e em seguida cada um de nós fez o mesmo, à
exceção de Martha. Tine Krugmann, ao lado dela, deu-lhe uma
cotovelada e apontou para o pé direito, mas Martha abanou a
cabeça, e Tyll Ulenspiegel deu outro salto em cima da corda,
batendo os pés no ar. Saltou tão alto que, ao descer, teve de abrir
os braços para se equilibrar — apenas por breves instantes, mas os
suficientes para nos recordar que ele também tinha peso e não
voava.
— E agora atirem-nos — disse ele, numa voz mais alta e mais
nítida. — Não pensem, não perguntem, não hesitem, isto vai ser
muito divertido. Façam o que eu digo. Atirem os sapatos!
Tine Krugmann foi a primeira. O seu sapato voou bem alto e
desapareceu no meio da multidão. Depois voou o sapato seguinte, o
de Susanne Schopf, depois o seguinte, e a seguir voaram dezenas
de sapatos, aos quais se seguiram mais e mais. Todos ríamos,
gritávamos e soltávamos exclamações: «Cuidado!», «Agacha-te!» e
«Lá vai um!». Era uma paródia, e não tinha importância que alguns
sapatos acertassem em cabeças. Ouviram-se imprecações, uma ou
outra mulher proferiu insultos, uma ou outra criança chorou, mas
nada de grave, e até Martha se fartou de rir quando uma pesada
bota de couro por pouco não a atingiu, ao mesmo tempo que uma
pantufa de tecido voava até cair aos seus pés. Tyll tivera razão, e
alguns acharam aquilo tão divertido que atiraram também o sapato
esquerdo. E houve ainda quem atirasse chapéus, colheres e
cântaros, que ficaram feitos em cacos, e, como é natural, um ou
outro também atirou pedras. Mas quando se ouviu a voz de Tyll, o
barulho cessou, e prestámos atenção.
— Grandes parvos.
Piscámos os olhos, pois o Sol já ia baixo. Os que se
encontravam na parte posterior da praça viam-no com nitidez, mas
para os outros não passava de uma silhueta.
— Grandes idiotas. Cabeças ocas. Imbecis. Seus inúteis, suas
toupeiras, malditas ratazanas. Agora vão buscá-los.
Ficámos com os olhos cravados nele.
— Ou são demasiado estúpidos? Agora já não podem ir buscá-
los, não conseguem, são demasiado obtusos?
Soltou uma gargalhada que mais parecia um balido. O pardal
levantou voo, elevou-se acima dos telhados e desapareceu.
Entreolhámo-nos. O que ele nos dissera era infame, mas não ao
ponto de não poder ser mais uma brincadeira ou uma dessas graças
de mau gosto características de Tyll. Podia permitir-se dizê-las e era
famoso por isso.
— Então? Já não precisam deles? — perguntou. — Já não os
querem? Já não vos agradam? Vão buscar os vossos sapatos,
parvalhões!
Malte Schopf foi a primeira. Durante todo o tempo não se sentira
bem, por isso desatou a correr para o sítio para onde pensava ter
voado a sua bota. Afastou pessoas para o lado, empurrou, deu
encontrões, agachou-se e remexeu entre as pernas. Do outro lado
da praça, Karl Schönknecht fazia o mesmo, e a este seguiu-se
Elsbeth, a viúva do ferreiro; mas o velho Lembke intrometeu-se e
gritou que o melhor era afastar-se, pois aquele era o sapato da sua
filha. Elsbeth, a quem ainda doía a testa, por ter apanhado com uma
bota, gritou-lhe por sua vez que ele é que devia afastar-se, pois ela
ainda conhecia muito bem os seus sapatos e que a filha de Lembke
de certeza não tinha sapatos bordados assim tão bonitos, ao que o
velho Lembke gritou que lhe saísse do caminho e não insultasse a
sua filha, ao que por seu turno ela berrou que ele era um ladrão de
sapatos malcheiroso. Foi então que o filho de Lembke interveio: «Só
estou a avisar-te!»; ao mesmo tempo, Lise Schoch e a moleira
começaram a discutir, dado os sapatos de ambas serem iguais e os
seus pés do mesmo tamanho, e também começou a haver uma
troca de palavras azeda entre Karl Lamm e o cunhado; e, de
repente, Martha, ao perceber o que se passava, acocorou-se e
escapuliu-se dali.
Por cima dela já havia encontrões, insultos e empurrões. Uns
poucos, que não haviam tardado a encontrar os sapatos, davam à
sola, mas entre os demais irrompeu uma ira tão violenta que parecia
há muito tempo contida. O carpinteiro Moritz Blatt e o ferreiro Simon
Kern davam murros um ao outro, de tal modo que quem tivesse
pensado que aquilo tinha apenas que ver com sapatos não teria
compreendido, pois para isso seria necessário saber que a mulher
de Moritz, em criança, tinha sido prometida de Simon. Ambos
sangravam do nariz e da boca, ambos resfolegavam como cavalos,
e ninguém se atrevia a intervir; também Lore Pilz e Elsa Kohlschmitt
estavam horrivelmente engalfinhadas, mas odiavam-se há tanto
tempo que já nem sabiam por que motivo. O que todos sabiam
muito bem era porque tinham chegado a vias de facto a família
Semmler e a gente da casa Grünanger: isso devia-se a um litígio de
terras e a uma antiga questão de heranças, que remontava aos
tempos do regedor Peter, e também ao facto de o filho da filha de
Semmler não ser do marido, mas de Karl Schönknecht. A cólera
alastrava como uma febre e, para onde quer que se olhasse, havia
gritos, pancadaria e corpos a contorcerem-se.
Martha virou a cabeça para cima. Lá estava Tyll a rir, com o
corpo curvado para trás, a boca muito aberta e os ombros a tremer.
Só os seus pés estavam em repouso, e as suas ancas moviam-se a
acompanhar a oscilação da corda. Martha pensou que tinha de olhar
melhor para perceber qual o motivo daquele regozijo. Mas nesse
momento um homem chocou com ela e, sem a ver, deu-lhe com a
bota no peito, o que a fez bater com a cabeça no chão, de tal modo
que, quando respirava, era como se agulhas a espetassem. Rolou
até ficar de costas. A corda e o céu estavam vazios. E Tyll
Ulenspiegel desaparecera.
Levantou-se. A mancar, passou por todos aqueles corpos
engalfinhados, que se revolviam, se mordiam, se batiam e
choravam, e reconheceu, aqui e ali, um rosto conhecido; coxeou rua
fora, encolhida e com a cabeça baixa, mas, no momento em que
chegava à porta de casa, ouviu atrás de si o matraquear da carroça
coberta. Voltou-se. À boleia ia a mulher jovem, a quem Tyll chamara
Nele, e ao lado, feita num novelo e imóvel, a velha. Como é que
ninguém os fazia parar, porque não havia quem os seguisse? O
carro passou por Martha e esta seguiu-o com a vista. Em breve
chegaria ao ulmeiro, depois às portas da cidade, para em seguida
desaparecer.
E então, quando o carro já quase tinha atingido as últimas casas,
um homem correu atrás dele, com grandes passadas que não
pareciam exigir-lhe esforço. A pele de vaca da capa que o cobria
eriçava-se-lhe no pescoço como qualquer coisa viva.
— Ter-te-ia levado comigo! — gritou, quando passou a correr por
Martha.
Um pouco antes da curva da estrada, alcançou o carro e saltou-
lhe para cima. O guarda das portas estava connosco na praça, e
ninguém os reteve.
Lentamente, Martha entrou em casa, fechou a porta e correu o
ferrolho. A cabra, deitada junto do fogão, olhou-a com uma
expressão interrogativa. Ouviu as vacas mugirem e os nossos gritos
vindos da praça.
Mas, finalmente, fomo-nos acalmando. Antes de anoitecer,
ordenhámos as vacas. A mãe de Martha voltou a casa e, à exceção
de um ou dois arranhões, praticamente nada lhe havia acontecido; o
pai perdera um dente e tinha uma orelha rasgada, a irmã havia
apanhado uma pisadela tão violenta, que passou algumas semanas
a coxear. Porém, chegou a manhã seguinte e a noite seguinte, e a
vida prosseguiu. Em todas as casas havia galos, cortes, arranhões,
braços deslocados e dentes partidos, mas no dia seguinte a praça já
estava de novo limpa e todos andavam calçados.
Nunca falámos do sucedido. E também não falámos de
Ulenspiegel. Sem que o tivéssemos combinado, mantivemos
silêncio; até Hans Semmler, que havia sido tão terrivelmente
agredido que a partir daí teve de ficar de cama sem conseguir
comer nada a não ser sopa, fazia como se nada se tivesse passado.
E também a viúva de Karl Schönknecht, o qual enterrámos no dia
seguinte no cemitério, se comportou como se fosse um golpe do
destino e como se não soubesse perfeitamente a quem pertencia a
faca que lhe enterraram nas costas. Só a corda ainda permaneceu
dias suspensa sobre a praça, agitada pelo vento e a servir de
poleiro a pardais e andorinhas, até o padre, que havia sido
particularmente maltratado durante a refrega, dado a sua arrogância
e a sua soberba não serem do nosso agrado, ficar de novo em
condições de subir ao campanário para a cortar.
Mas também não esquecemos. O que se passara permaneceu
entre nós. Estava lá, quando nos ocupávamos da colheita, estava lá
quando, em conjunto, fazíamos a sementeira, ou quando, ao
domingo, nos reuníamos na missa, onde o padre tinha agora uma
expressão diferente, meio de assombro, meio de temor. E,
sobretudo, estava lá quando tínhamos festas na praça e, a dançar,
olhávamos para a cara uns dos outros. Então parecia-nos que o ar
era mais pesado, que a água tinha um odor diferente e que o céu
não era o mesmo desde que a corda nele estivera suspensa.
E, um belo dia, um ano mais tarde, a guerra chegou mesmo até
nós. Uma noite ouvimos relinchos de cavalos, depois gargalhadas
de muitas vozes diferentes, em seguida o estrépito de muitas portas
a serem arrombadas e, antes que pudéssemos chegar à rua,
armados com forquilhas ou facas inúteis, já as chamas devoravam
tudo.
Os mercenários tinham mais fome, e também estavam mais
embriagados do que era habitual. Há muito que não entravam numa
cidade que lhes oferecesse tanto. A velha Luise, que dormia
profundamente e, desta vez, não tivera nenhum pressentimento,
morreu na cama. O padre morreu, diante do portal da igreja para a
proteger. Lise Schoch morreu quando tentava esconder moedas de
ouro, o padeiro, o ferreiro, o velho Lembke, Moritz Blatt e a maioria
dos outros homens morreram, quando tentavam proteger as
esposas, e as mulheres morreram, como morrem as mulheres na
guerra.
Martha também morreu. Ainda viu como o teto do quarto se
convertia num braseiro vermelho, sentiu o cheiro do fumo antes de
este a atingir com tal intensidade que deixou de ver fosse o que
fosse; ouviu a irmã gritar por socorro enquanto o futuro, que
instantes antes ainda existia, se desvanecia em nada: o marido que
nunca teria, os filhos que não iria criar, os netos, aos quais, numa
manhã de primavera, nunca iria falar de um famoso bufão, e os
filhos desses netos e toda a gente que nunca viria a existir. Que
depressa que isto vai, pensou, como se tivesse descoberto um
grande segredo. E quando ouviu as vigas do teto quebrarem-se,
ainda lhe ocorreu que Tyll Ulenspiegel talvez fosse o único a
recordar os nossos rostos e a saber que tínhamos existido.
Com efeito, só sobreviveram Hans Semmler, o coxo, cuja casa
não se incendiara e que, como não se podia mexer, passara
despercebido, e também Elsa Ziegler e Paul Grünanger, que em
segredo tinham ido juntos para a floresta. Quando regressaram, ao
romper do dia, com a roupa amarrotada e o cabelo desgrenhado, só
encontraram escombros sob novelos de fumo e, por instantes,
pensaram que Deus Nosso Senhor os castigara pelo seu pecado,
provocando-lhes alucinações. Partiram juntos para oeste e, durante
um breve tempo, foram felizes.
Aos restantes de nós, ouvem-nos no lugar onde vivíamos, por
vezes nas árvores. Ouvem-nos na erva e no trilar dos grilos, ouve-
nos quem encosta a cabeça ao buraco do velho ulmeiro e, de
quando em quando, aparecem crianças que afirmam ver os nossos
rostos na água do ribeiro. A nossa igreja já não está de pé, mas as
pedras que a água alisou e branqueou ainda são as mesmas, e
também as árvores são as mesmas. Recordamo-nos, ainda que
ninguém no-lo recorde, pois ainda não nos habituámos à ideia de
não ser. A morte é sempre nova para nós, e as coisas dos vivos não
nos são indiferentes. Porque ainda não passou muito tempo.
O SENHOR DO AR
I
SALOM
AREPO
LEMEL
OPERA
MOLAS
MILON
IRAGO
LAMAL
OGARI
NOLIM
Não sabia que havia uma comida tão boa. Em toda a sua vida,
nunca provara nada assim: a abrir, uma canja substancial, com pão
de trigo acabado de fazer, depois uma perna de carneiro, temperada
com sal e até pimenta, em seguida um lombo de um porco gordo,
com molho, e finalmente um bolo de cerejas doce, ainda quente do
forno, tudo isto acompanhado por um vinho tinto que sobe à cabeça
como uma névoa. Devem ter trazido um cozinheiro de qualquer
lado. Enquanto Claus come, sentado à sua mesinha do estábulo, e
sente o estômago encher-se de coisas boas e quentes, pensa que,
no fundo, uma comida assim merece que se morra por ela.
Pensava que a última refeição de um condenado era apenas
uma frase feita, sem suspeitar que, efetivamente, tinham chamado
um cozinheiro que preparara uma refeição tão boa como nunca
comera na vida. Com as correntes nos braços, é difícil segurar na
carne, o ferro faz-lhe escoriações e tem os pulsos em carne viva,
mas de momento nada disso importa, tão bem lhe sabe a comida. E,
de resto, as mãos já não lhe doem tanto como na semana anterior.
O mestre Tilman também é mestre nas curas e Claus teve de
reconhecer sem inveja que o carrasco conhece ervas de que ele
nunca ouvira falar. Contudo, não recuperou a sensibilidade dos
dedos esmagados e, por isso, a carne cai várias vezes ao chão.
Fecha os olhos. Ouve as galinhas esgaravatar no estábulo contíguo,
ouve os roncos do homem com o vestuário caro, que quisera ser
seu intercessor e que agora está acorrentado e deitado na palha.
Enquanto mastiga a deliciosa carne de porco, tenta convencer-se de
que nunca virá a saber o desfecho do processo contra esse homem.
Nessa altura estará morto. Também nunca virá a saber como
estará o tempo no dia seguinte. Nessa altura estará morto. Ou se na
noite seguinte irá chover. Mas nada disso importa, a quem interessa
a chuva?
No entanto, é curioso: ainda estás aí sentado e podes debitar
todos os números entre um e mil, mas depois de amanhã serás um
ser do ar ou uma alma que regressa ao mundo sob uma forma
humana ou animal, mal se recordando do moleiro que ainda és —
mas se és uma doninha, uma galinha ou um pardal pousado num
ramo, sem saber que outrora eras um moleiro que se interessava
pela trajetória da Lua, se saltas de ramo em ramo e pensas apenas
em grãos de cereal e, como é natural, nos busardos, dos quais tens
de fugir, que importância tem que em tempos tenhas sido um
moleiro do qual já ninguém se recorda?
Ocorre-lhe que o mestre Tilman lhe dissera que podia sempre
repetir. Basta chamares-me e dizeres que queres mais, podes
comer o que quiseres, porque depois acabou-se.
De modo que Claus experimenta. Chama. Ainda a mastigar,
chama, pois ainda tem carne no prato e também ainda há bolo, mas
quando se pode comer mais, porque esperar até tudo acabar e as
pessoas lá fora possivelmente estarem a pensar noutra coisa?
Chama de novo e, efetivamente, a porta abre-se.
— Posso comer mais?
— De tudo?
— Sim, de tudo, por favor.
O mestre Tilman sai sem dizer palavra, e Claus começa a comer
o bolo. E, enquanto mastiga a massa quente, macia e doce, de
súbito apercebe-se de que sempre passou fome: dia e noite, do
nascer do sol ao anoitecer. Só que não sabia que aquilo era fome —
aquela sensação de insuficiência, aquele vazio em tudo, aquela
debilidade do corpo que deixa os joelhos e as mãos sem energia e
põe a cabeça à roda. Aquilo não era necessário, não devia ter sido
assim, mas era simplesmente fome!
A porta range ao abrir-se e o mestre Tilman chega com uma
bandeja com várias canecas. Claus solta um suspiro de alegria. O
mestre Tilman, interpretando mal o suspiro, pousa o tabuleiro,
coloca-lhe uma mão no ombro e diz:
— Vai correr tudo bem.
— Eu sei — responde Claus.
— É muito rápido. Sei o que faço. Prometo-te.
— Obrigado — agradece Claus.
— Às vezes, os condenados irritam-me. E então não é tão
depressa, podes crer. Mas tu não me irritaste.
Agradecido, Claus faz um aceno de cabeça.
— Agora as coisas correm melhor. Antigamente, punham-vos a
todos na fogueira. Isso demora muito tempo e não é bonito de se
ver. Mas a forca não é nada. É muito rápido. Sobes para o patíbulo
e antes que te dês conta já estás na presença do Criador. Também
te queimam, mas só depois, quando já estás morto, e vais ver que
isso não te incomoda nada.
— Ótimo — diz Claus.
Entreolham-se. O mestre Tilman não parece com vontade de
sair. Dir-se-ia que gosta de estar no estábulo.
— Não és mau sujeito — diz o mestre Tilman.
— Obrigado.
— Para um aliado do demónio.
Claus encolhe os ombros.
O mestre Tilman sai e fecha a porta com todo o cuidado.
Claus continua a comer. Tenta imaginar de novo as casas lá fora,
as aves no céu, as nuvens, o solo verde-acastanhado com a erva,
campos de cultivo e todos os montículos de toupeiras que aparecem
na primavera, não consegues livrar-te delas, nem com ervas nem
com sortilégios, e a chuva, como é natural — tudo isso irá continuar,
mas ele não.
Isso não consegue imaginar.
Cada vez que tenta conceber um mundo sem Claus Ulenspiegel,
a sua imaginação introduz de novo aquele mesmo Claus
Ulenspiegel que devia eliminar — como um ser invisível, como olhos
sem corpo, como um fantasma. Mas quando consegue ignorar a sua
existência por completo, então o mundo, que tenta imaginar sem
Claus Ulenspiegel também desaparece com ele. Por muitas vezes
que tente, é sempre o mesmo. A partir daí, poderia concluir que está
em segurança? Que não pode desaparecer completamente porque
finalmente o mundo não pode desaparecer ou teria de desaparecer
sem ele?
A carne de porco continua a saber-lhe maravilhosamente, mas
quanto ao bolo, recorda-se agora que o mestre Tilman não lhe levou
mais; e, como era o melhor de tudo, experimenta chamá-lo outra
vez.
O verdugo entra.
— Posso comer mais bolo?
O mestre Tilman sai sem responder. Claus mastiga a carne de
porco. Agora, que acalmou a fome, é que se dá conta do sabor
intenso e requintado da comida, de como é quente, salgada e um
pouco doce. Contempla a parede do estábulo. Se, pouco antes da
meia-noite desenharmos um quadrado e, a seguir, com um pouco
de sangue, dois círculos duplos no chão e se pronunciarmos três
vezes o terceiro dos nomes secretos do Todo-Poderoso, surge uma
porta pela qual podemos escapar. O único problema eram as
correntes, pois para as tirar seria necessária uma decocção de
cavalinha; teria de fugir com ela e, pelo caminho, encontrar
cavalinha, mas Claus está cansado, dói-lhe o corpo e, naquela
época do ano, não há cavalinha.
E seria difícil recomeçar a partir do zero noutro lugar. Antes era
fácil, mas agora está velho e não tem forças para retomar uma vida
errante e sem honra, para se tornar um jornaleiro desprezível na
orla de qualquer aldeia, um desses desconhecidos que toda a gente
evita. Nem sequer poderia trabalhar como curandeiro, pois isso iria
chamar a atenção.
Não, é mais fácil morrer enforcado. E se, depois de morto, se
recordar de quem era antes, isso faria avançar mais o conhecimento
do mundo do que dez anos de busca e investigação. Talvez então
compreendesse o problema da trajetória da Lua, talvez entendesse
também com que grão de cereal o monte deixa de ser um monte, e
é possível que visse o que distingue as duas folhas, entre as quais
não há nenhuma diferença além do facto de serem duas e não uma.
Talvez seja por causa do vinho ou da agradável saciedade que
experimenta pela primeira vez na vida, mas o facto é que não lhe
apetece sair dali. Que a parede fique onde está.
O ferrolho abre-se e o mestre Tilman entra com o bolo.
— Agora já chega, não volto cá.
Dá umas palmadinhas no ombro de Claus, e fá-lo de boa
vontade, talvez por não poder tocar nas pessoas no exterior. Depois
boceja, sai e fecha a porta com tanta força que acorda o homem
adormecido.
Este levanta-se, espreguiça-se e olha em redor.
— Onde está a velha?
— Noutro estábulo — responde Claus. — É uma sorte. Passa o
tempo a lamentar-se, não se aguenta.
— Dá-me vinho!
Claus olha-o surpreendido. Quer responder que o seu vinho é
seu e de mais ninguém, que bem o merece, pois vai morrer daqui a
pouco. Mas sente pena do homem, para quem as coisas, afinal,
também não são fáceis, e estende-lhe o jarro. O outro pega-lhe e
bebe com grandes goladas. Para, sente Claus vontade de lhe gritar,
não vai sobrar nada para mim! Porém, não consegue, pois trata-se
de alguém de categoria e não se dão ordens a uma pessoa assim.
O vinho corre-lhe pelo queixo, deixando-lhe nódoas na gola de
veludo, mas tem tanta sede que isso parece não o preocupar.
Por fim, pousa o jarro e exclama:
— Meu Deus, que vinho tão bom!
— Pois é — concorda Claus —, é muito bom.
Tem a esperança ardente de que o homem não queira também o
bolo.
— Aqui para nós que ninguém nos ouve, diz-me a verdade. Tens
um pacto com o demónio?
— Não sei, respeitável senhor.
— Como é possível não saberes uma coisa dessas?
Claus reflete. É evidente que, na sua cabeça oca, fez qualquer
coisa, pois de outro modo não estaria ali. Porém, não sabe ao certo
o quê. Interrogaram-no durante tanto tempo, incessantemente,
submetendo-o a tanto sofrimento, teve de contar a sua história
tantas vezes, e faltava sempre qualquer coisa, tinha sempre de
acrescentar algo, de descrever mais um demónio, mais um
esconjuro, mais algum livro obscuro, mais um sabat, para que o
mestre Tilman o deixasse em paz, e logo de seguida era obrigado a
repetir todos esses pormenores, vezes sem conta, de modo que já
não sabe bem o que teve de inventar e o que na realidade se
passou na sua curta vida, durante a qual, de qualquer modo, não
havia muita ordem: umas vezes aqui, outras vezes ali, depois noutro
sítio, e então de repente, ficava coberto de pó de farinha, com a
mulher descontente, os moços de moleiro que não lhe tinham
respeito, e agora acorrentado, e isto fora tudo. Tal como o bolo que
estava quase acabado, mais três ou quatro dentadas, talvez cinco,
se comesse pouquinho de cada vez.
— Não sei — repete.
— Sorte maldita! — exclama o homem, olhando para o bolo.
Assustado, Claus mete na boca tudo o que resta e come, sem
mastigar. O bolo enche-lhe a garganta, e engole-o tão depressa
quanto pode; acabou-se. E acabou-se o comer. Para sempre.
— Respeitável senhor — diz Claus, para mostrar que é educado.
— O que se vai passar convosco?
— É difícil dizer de antemão. Quando uma pessoa está presa,
não é fácil sair. Vão levar-me para a cidade e interrogar-me lá. Terei
de confessar qualquer coisa.
Com um suspiro, contempla as mãos. É evidente que está a
pensar no carrasco; toda a gente sabe que ele começa sempre
pelos dedos.
— Respeitável senhor — repete Claus. — Suponhamos que
tendes um monte de trigo.
— O quê?
— Tira-se um grão e põe-se de lado.
— O quê?
— Só um de cada vez. Quando deixa de haver monte?
— Depois de tirarmos doze mil grãos de trigo.
Claus coça a testa. As correntes tilintam. Sente a marca da
correia. Foi uma dor diabólica, ainda se recorda de cada segundo
que passou a gritar e a suplicar, mas o mestre Tilman só a tirou
depois de ele inventar e descrever um novo sabat.
— Exatamente doze mil?
— Claro que sim — responde o homem. — Achas que também
me vão servir uma refeição assim? Ainda deve restar qualquer
coisa. Tudo isto é uma grande injustiça, eu não devia estar aqui, só
te queria defender para escrever o meu livro sobre o assunto. Dei
por encerrada a cristalografia e agora queria passar para o direito.
Mas a minha situação não tem nada que ver contigo. Sei que talvez
tenhas um pacto com o diabo, e quem sabe se não serás mesmo o
diabo? Ou talvez não.
Permanece uns instantes em silêncio e, em seguida, com voz
autoritária, chama o mestre Tilman.
Isto não está a correr bem, pensa Claus, que agora já conhece
mais ou menos o carrasco. Suspira. Apetecia-lhe um pouco mais de
vinho para não ser de novo dominado pela tristeza, mas disseram-
lhe que não havia mais.
Abrem de novo o ferrolho e o mestre Tilman olha para dentro do
estábulo.
— Traz-me dessa carne — diz o homem, sem o olhar. — E
vinho. O jarro está vazio.
— Também vais estar morto amanhã? — pergunta o mestre
Tilman.
— Houve um mal-entendido — responde o homem numa voz
rouca, como se estivesse a dirigir-se a Claus, pois é preferível falar
com um bruxo condenado do que com um algoz. — E uma vil
infâmia, pela qual alguns ainda hão de pagar.
— Quem ainda estiver vivo amanhã não tem direito à última
refeição do condenado — declara o mestre Tilman. — Pousa uma
mão no ombro de Claus. — Ouve lá — diz em voz baixa —, quando
amanhã estiveres por baixo da forca, não te esqueças que tens de
perdoar a todos.
Claus faz um aceno de assentimento.
— Aos juízes — diz o mestre Tilman. — E a mim também.
Claus fecha os olhos. Ainda sente o efeito do vinho: uma
agradável e suave sensação de vertigem.
— Alto e bom som — diz o mestre Tilman.
Claus suspira.
— É isso que é costume fazer — acrescenta o mestre Tilman. —
O condenado perdoa ao seu verdugo alto e bom som, de modo que
todos possam ouvir. Sabes isso?
Claus não pode deixar de pensar na mulher. Há algum tempo,
Agneta tinha ido vê-lo e falara com ele através das frestas das ripas
de madeira da parede. Murmurara que lamentava, que não tivera
alternativa senão dizer o que haviam exigido que dissesse, e pedira-
lhe que a perdoasse.
Claro que perdoava tudo, respondera ele. O que não lhe dissera
era que não percebia muito bem do que ela estava a falar. Não há
nada a fazer, desde os interrogatórios que o seu entendimento não
é de fiar como antes.
Então, a mulher recomeçara a chorar, a falar da sua vida difícil e
também do filho, que a preocupava muito, e a dizer que não sabia o
que fazer com ele.
Claus ficara contente por ter notícias do rapaz, pois há muito que
não pensava nele, embora, no fundo, gostasse muito dele. Mas
havia qualquer coisa estranha com o filho, era difícil de explicar, mas
ele não parecia feito da mesma massa que as outras pessoas.
— Para ti é fácil — dissera ela. — Já não vais ter de quebrar a
cabeça com coisa nenhuma. Mas eu não posso ficar aqui na aldeia.
Não me deixam. E o que hei de fazer? Nunca estive em nenhum
outro sítio.
— Sim, claro — respondera ele, ainda a pensar no rapaz. — Lá
isso é verdade.
— Talvez possa ir para casa da minha cunhada, em Pfünz. O
meu tio, antes de morrer, disse que tinha ouvido que ela agora vive
em Pfünz. Talvez seja verdade.
— Tens uma cunhada?
— É a mulher do sobrinho do meu tio. A prima de Franz Melker.
Não conheceste o meu tio, ele morreu quando eu era miúda. Se não
for isso, que mais posso fazer?
— Não sei.
— Mas, e o rapaz? Talvez ela me ajude, se se recordar de mim,
quem sabe? Se ainda estiver viva. Mas, de repente, mais duas
bocas para alimentar? É de mais.
— Sim, é de mais.
— Talvez eu possa pôr o rapaz a trabalhar como jornaleiro, ele é
pequeno e não trabalha bem, mas pode vir a modificar-se. Se não
for isso, que mais hei de fazer? Não posso ficar aqui.
— Pois não, não podes.
— Meu grande imbecil, para ti é fácil. Mas diz-me lá, devo ir
procurar a minha cunhada? Talvez não fosse em Pfünz. Tu que
sabes sempre tudo, diz-me lá o que hei de fazer.
Nesse momento, por sorte, chegou a hora da última refeição do
condenado, e Agneta fora-se embora, para o carrasco não a ver,
pois ninguém está autorizado a falar com um condenado. E o vinho
e a comida eram tão apetitosos que ele se esquecera por completo
dos soluços da mulher.
— Moleiro! — chama o mestre Tilman. — Estás a ouvir-me?
— Sim, estou.
A mão do carrasco pesa-lhe no ombro.
— Amanhã tens de falar em voz alta! De dizer que me perdoas!
Estás a ouvir? Diante de toda a gente, ouviste? Tem de ser assim!
Claus quer responder, mas a sua cabeça não consegue fixar-se
numa coisa, tanto mais que agora está de novo a pensar no rapaz.
Há pouco tempo, vira-o fazer malabarismo. Fora entre dois
interrogatórios, no tempo vazio em que no mundo só existiam dores
lancinantes — olhou através das frestas e viu o filho passar, a fazer
girar três pedras acima da cabeça, como se elas não tivessem peso
e tudo acontecesse sem a sua intervenção. Claus chamara-o para o
avisar. Quem fazia aquilo, tinha de ter cuidado, pois também por
uma coisa dessas o podiam acusar de bruxaria, mas o rapaz não o
ouvira, talvez por a voz do pai ser demasiado débil. Desde os
interrogatórios que é sempre assim, já não há remédio.
— Ouve lá — diz o mestre Tilman. Não me vais mandar para o
vale de Josafat!
— Não há maldição mais poderosa do que a de um moribundo
— diz o homem deitado na palha. — Fica colada à alma e nunca
mais consegues livrar-te dela.
— Não vais fazer isso, moleiro, não vais amaldiçoar o carrasco.
Não me vais fazer isso, pois não?
— Não — promete Claus. — Não vou fazer isso.
— Talvez aches que não tem importância. Pensas que, de
qualquer modo, vais ser enforcado, mas sou eu que vou estar no
patíbulo, sou eu que vou dar o nó e que tenho de te puxar as pernas
para te partir o pescoço, senão demora!
— Tens razão — diz o homem deitado na palha.
— Não me vais mandar para o vale de Josafat? Não me vais
amaldiçoar, vais perdoar ao carrasco, como é costume fazer?
— Sim, vou fazer isso — promete Claus.
O mestre Tilman tira-lhe a mão do ombro e dá-lhe uma palmada
amistosa.
— Que perdoes ou não aos juízes, tanto se me dá. Não é um
problema meu. A esse respeito, podes fazer o que te der na gana.
De repente, Claus não pode deixar de sorrir. De certeza que é
por causa do vinho, mas também porque acabou de perceber que,
por fim, pode experimentar a grande chave de Salomão. Nunca teve
oportunidade de o fazer, aprendeu as diversas frases longas com o
velho Hüttner, em tempos foi fácil, provavelmente ainda as guarda
na memória. Com que cara ficariam todos se, no dia seguinte,
subisse ao cadafalso e, de repente, as correntes se quebrassem,
como se fossem de papel. Ficariam de olhos arregalados se abrisse
os braços e se elevasse no ar, acima das suas caras apalermadas
— acima do idiota do Peter Steger e da mulher, ainda mais idiota do
que ele, dos seus parentes, dos filhos e avós, uns mais parvos do
que os outros, acima dos Melker, dos Homrich, dos Holtz, dos Tamm
e de todos os demais. Como ficariam de olhos esbugalhados se ele
não caísse, mas subisse cada vez mais, como ficariam
boquiabertos. Durante uns momentos, Claus ainda os vê ficarem
cada vez mais pequenos, depois tornarem-se pontinhos, e a própria
aldeia transformar-se numa mancha no meio da floresta verde-
escura; e, quando erguesse a cabeça, veria o veludo branco das
nuvens, e os habitantes, alguns deles com asas, outros, de fogo
branco, outros ainda com duas ou três cabeças, e ali estaria ele, o
príncipe do ar, o rei dos espíritos e das chamas. Tem piedade, meu
grande demónio, leva-me para o teu reino, liberta-me, e Claus já
ouve a resposta: vê os meus domínios. Vê como são vastos, e vê
como estão lá tão abaixo, voa comigo.
Claus ri. Por instantes, vê uma quantidade de ratos a correr à
volta dos seus pés, alguns com caudas de serpentes, outros com
antenas de lagartas, tem a impressão de sentir as suas dentadas,
mas a dor faz-lhe cócegas e é quase agradável; e, em seguida, vê-
se de novo a voar, como fico leve, se o meu senhor me permite
voar. Basta recordares-te das palavras, não te podes enganar, não
pode faltar nenhuma, senão a Chave de Salomão não abre, e tudo
foi em vão. Mas se te lembrares das palavras, libertar-te-ás de tudo,
das pesadas correntes, da miséria, do frio e da fome da vida de
moleiro.
— É por causa do vinho — diz o mestre Tilman.
— Estou preso há pouco tempo — diz o homem, sem olhar para
ele. — Mas o Tesimond ainda lamenta.
— Ele prometeu perdoar-me — diz o mestre Tilman. — Prometeu
que não me amaldiçoava.
— Não fales comigo!
— Diz-me que também ouviste — pede o mestre Tilman. —
Senão faço-te mal. Ele prometeu ou não prometeu?
Olham ambos para o moleiro, que está de olhos fechados, com a
cabeça apoiada à parede e sem parar de rir baixinho.
— Sim — diz o homem. — Ele prometeu.
IV
SATOR
AREPO
TENET
OPERA
ROTAS