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Daniel Kehlmann nasceu em Munique em 1975.

Aos seis anos, mudou-se com a família


para Viena, onde estudou Filosofia e Estudos Alemães, e hoje vive em Nova Iorque, Berlim
e Viena. É autor de um dos maiores sucessos literários em língua alemã de sempre, A
Medida do Mundo, um bestseller internacional traduzido para mais de quarenta línguas e
que foi também adaptado ao cinema. Os seus livros conquistaram diversos prémios
literários, entre os quais, o prémio Thomas Mann, o Die Welt, o Candide, o Kleist e o
Doderer.
Título: Tyll — O Rei, o Cozinheiro e o Bobo
Título original: Tyll
1.ª edição em papel: setembro de 2020
Autor: Daniel Kehlmann
Tradução: Ana Falcão Bastos
Revisão: Susana Andrade
Design da capa: Ana Monteiro

Copyright © 2017 by Rowohlt Verlag GmbH, Reinbek bei Hamburg, Germany


[Todos os direitos para a publicação desta obra em língua portuguesa, exceto Brasil,
reservados por Bertrand Editora, Lda.]

A tradução deste livro foi financiada pelo Goethe-Institut.

Bertrand Editora
Rua Prof. Jorge da Silva Horta, n.° 1
1500-499 Lisboa
www.bertrandeditora.pt
editora@bertrand.pt
Tel. 217 626 000

ISBN: 978-972-25-4098-8
SAPATOS
A guerra ainda não tinha chegado até nós. Vivíamos no temor e
na esperança e tentávamos não atrair a ira de Deus para a nossa
cidade rodeada de sólidas muralhas, com as suas cento e cinco
casas, a igreja e o cemitério onde os nossos antepassados
aguardavam o Dia da Ressurreição.
Rezávamos muito para manter a guerra longe. Rezávamos ao
Todo-Poderoso e à bondosa Virgem, rezávamos à Senhora das
Florestas e aos pequenos seres da meia-noite, a São Gervino, a
São Pedro, a João Evangelista e, à cautela, rezávamos também à
Velha Mela que, nas noites de tempestade, quando os demónios
têm autorização para vaguear em liberdade, percorre os céus
seguida pelo seu séquito. Rezávamos ao chifrudo de outros tempos
e ao bispo São Martinho, que partilhou a sua capa com o mendigo
que morria de frio, de modo que acabaram por morrer de frio os
dois, caindo ambos nas graças de Deus, pois para que serve meia
capa no inverno? E, como é natural, rezávamos a São Maurício, que
preferiu morrer com toda uma legião a trair a sua fé num Deus único
e justo.
Duas vezes por ano, aparecia o cobrador de impostos e
mostrava-se sempre surpreendido por ainda estarmos ali. De
quando em quando, apareciam vendedores ambulantes, mas, como
não comprávamos grande coisa, depressa seguiam caminho, o que
para nós não era um problema. Não precisávamos de nada do vasto
mundo e não pensávamos nele, até que, certa manhã, apareceu na
nossa rua principal uma carroça coberta puxada por um burro. Era
um sábado e a primavera chegara havia pouco; o caudal do ribeiro
engrossava com a água do degelo, e já tínhamos dado início à
sementeira nos campos que não estavam em pousio.
Sobre a carroça estava montada uma tenda de lona vermelha. À
frente, ia uma mulher idosa agachada. O seu corpo parecia uma
saca, tinha um rosto curtido e uns olhos que faziam lembrar
minúsculos botões negros. Atrás, seguia uma mulher mais nova,
sardenta e de cabelo escuro. Mas na boleia ia sentado um homem,
que reconhecemos, embora nunca tivesse estado aqui, e quando os
primeiros se recordaram de quem era e o chamaram, os outros
também se lembraram, e em breve eram várias as vozes que se
ouviam, vindas de todos os lados: «O Tyll está aqui!», «O Tyll
chegou!», «Olhem, está ali o Tyll!» Só podia ser ele.
Até folhetos chegavam até nós. Atravessavam a floresta,
soprados pelo vento, vendedores ambulantes traziam-nos, pois no
mundo exterior imprimiam-se mais do que alguém seria capaz de
contar. Falavam da nave dos loucos, da profunda tolice dos padres,
do pérfido Papa de Roma, do diabólico Martinho Lutero de
Wittenberg, do feiticeiro Horridus, do Doutor Fausto, do heroico Sir
Gawain da Távola Redonda e até dele, Tyll Ulenspiegel, que agora
acabara de chegar. Conhecíamos o seu gibão sarapintado,
conhecíamos o capuz amassado e a capa de pele de vitelo,
conhecíamos o seu rosto macilento, os olhos pequenos, as faces
encovadas e os dentes de lebre. As suas calças eram de bom
tecido, os sapatos de couro fino, mas tinha mãos de ladrão ou de
escrevedor, de quem nunca havia trabalhado; a direita segurava as
rédeas, a esquerda, o chicote. Os seus olhos coruscavam, enquanto
saudava para a esquerda e para a direita.
— E tu, como te chamas? — perguntou a uma menina.
A garota permaneceu em silêncio, pois não percebia como era
possível alguém tão célebre dirigir-lhe a palavra.
— Ora diz lá!
Quando ela balbuciou que se chamava Martha, ele limitou-se a
sorrir, como se o soubesse desde sempre. Em seguida, perguntou
com atenção, como se para ele fosse importante:
— E que idade tens?
Ela tossicou e respondeu-lhe. Nos seus doze anos de vida,
nunca vira uns olhos como os de Tyll. Olhos como aqueles devia
haver nas cidades livres do império e nas cortes dos nobres, mas
nunca nos visitara ninguém com olhos semelhantes. Martha não
sabia que o rosto de uma pessoa podia refletir uma tal força e uma
tal agilidade espiritual. Posteriormente, viria a contar ao marido e,
ainda mais tarde, aos seus netos incrédulos, para os quais
Ulenspiegel seria apenas uma personagem das antigas lendas, que
o vira com os seus próprios olhos.
A carroça já tinha passado, o olhar de Tyll já se tinha desviado
para outro sítio, para outras pessoas à beira do caminho. «O Tyll
chegou!», voltou a ouvir-se na rua: «O Tyll está aqui!», gritavam das
janelas, e: «Está ali o Tyll!», ressoava no adro da igreja, para onde
se dirigia agora a carroça.
Ele fez estalar o chicote e pôs-se de pé. Rápido como um
relâmpago, o carro transformou-se num palco. As duas mulheres
dobraram a lona, a jovem prendeu o cabelo num rolo, colocou uma
pequena coroa e pôs pelos ombros um pano púrpura; a velha
colocou-se à frente da carroça, ergueu a voz e deu início a uma
cantilena. Exprimia-se num dialeto que parecia do Sul, das grandes
cidades da Baviera, e que não era fácil de entender, embora
percebêssemos que tinha que ver com uma mulher e um homem
que se amavam, mas não conseguiam chegar junto um do outro por
as águas os separarem. Tyll Ulenspiegel pegou num pano azul,
ajoelhou-se e, segurando-o de um lado, sacudiu-o para longe de si,
de modo que se desenrolou a crepitar; puxou-o e voltou a lançá-lo,
puxou-o para trás, sacudiu-o de novo, e como ele estava ajoelhado
de um lado e a mulher do outro e o azul ondulava entre eles, parecia
tratar-se de facto de água e de ondas alterosas a elevar-se e a
descer, como se nenhum barco pudesse sulcá-las.
Quando a mulher se ergueu e contemplou as ondas com um
rosto apavorado, de súbito apercebemo-nos de como era bela. Ali
de pé, com os braços estendidos para o céu, repentinamente já não
pertencia a este mundo, e nenhum de nós conseguia afastar o olhar
dela. Pelo canto do olho, víamos o seu amado saltar, dançar,
afadigar-se e brandir a espada a lutar com dragões, inimigos, bruxas
e reis malvados, no árduo caminho até ela.
A peça prolongou-se até à tarde. E, embora sabendo que as
tetas das vacas lhes doíam, nenhum de nós deu mostras de
impaciência. A velha continuou hora após hora. Parecia impossível
alguém recordar-se de tantos versos, e alguns de nós
suspeitávamos que os inventava à medida que ia cantando.
Entretanto, o corpo de Tyll Ulenspiegel não descansava, e as
plantas dos seus pés pareciam mal tocar no solo; sempre que o
nosso olhar se fixava nele, já se encontrava noutro ponto do
pequeno palco. No final da história surgiu um mal-entendido: a
formosa mulher arranjara um veneno para fingir de morta e não ter
de casar com o tutor perverso, mas a mensagem a esclarecer tudo
com o seu amado perdera-se pelo caminho, e quando ele, o
verdadeiro noivo, o amigo da sua alma, por fim chegara junto do
corpo inerte, o pavor fulminara-o como um raio. Durante muito
tempo quedou-se como que paralisado. A velha calou-se. Ouvíamos
o vento e os mugidos das vacas. Ninguém respirava. Finalmente,
sacou de uma faca e enterrou-a no peito. Foi assombroso, a lâmina
desapareceu na carne, um pano vermelho saiu-lhe da gola como um
jorro de sangue e, por entre gemidos, ele sucumbiu junto da sua
amada, sacudido por mais alguns espasmos até ficar imóvel. Estava
morto. Agitou-se mais uma vez, endireitou-se, e voltou a cair,
imóvel, agora para sempre. Ficámos à espera. Era um facto. Era
para sempre.
Decorridos segundos, a mulher acordou e avistou o cadáver ao
seu lado. A princípio ficou desorientada, sacudiu-o, depois
compreendeu o sucedido e ficou de novo desorientada, e finalmente
desatou num pranto, como se o mundo não tivesse remédio. Em
seguida, pegou na faca do amado e matou-se de igual modo,
ficando nós de novo maravilhados com o truque hábil e com a
profundidade a que a lâmina penetrou no peito. Então só restou a
velha, que recitou mais alguns versos no dialeto que mal
entendíamos. Nessa altura, a peça chegou ao fim e, já há muito que
os mortos se tinham levantado e faziam vénias, e muitos de nós
ainda chorávamos.
Mas isso não foi tudo. As vacas ainda teriam de esperar, pois à
tragédia suceder-se-ia a comédia. A velha tocava um tambor e Tyll
Ulenspiegel tocava uma flauta e dançava com a mulher, que agora
já não parecia particularmente bela, com passos para a direita e
para a esquerda, para trás e para a frente. Tinham ambos os braços
erguidos e os seus movimentos estavam de tal modo sincronizados
que não pareciam duas pessoas, mas uma imagem num espelho.
Nós dançávamos razoavelmente, era frequente termos festas, mas
não havia quem soubesse dançar como eles; ao contemplá-los, era
como se um corpo humano fosse imponderável e a vida não fosse
triste e dura. Assim, os nossos pés não resistiram, e começámos a
balançar, a saltar, a pular e a rodopiar.
Então, de súbito, a dança acabou. Ofegantes, olhámos para a
carroça, sobre a qual Tyll Ulenspiegel se encontrava agora sozinho,
sem que se avistassem as duas mulheres. Interpretava uma cantiga
de escárnio e maldizer sobre o pobre e tonto Rei do Inverno, o
príncipe eleitor do Palatinado, que pensara ser capaz de derrotar o
imperador e de tomar a coroa de Praga aos protestantes, embora o
seu reinado se tivesse dissolvido ainda antes da neve. A canção
também referia o imperador, que tinha sempre frio de tanto rezar,
esse homenzinho que tremia perante os suecos na corte de Viena, e
também falava do rei da Suécia, o Leão da Meia-Noite, forte como
um urso, o que, de resto, pouco lhe tinha servido em Lützen, contra
a bala que lhe tirara a vida como a um soldado raso, e aí a tua luz
apagou-se, e adeus alminha real, adeus leão! Tyll Ulenspiegel ria, e
nós ríamos com ele, pois era impossível resistir-lhe e porque fazia
bem pensar que os grandes morriam e nós ainda estávamos vivos;
e a seguir cantou sobre o rei de Espanha com o lábio inferior
protuberante, que se julgava senhor do mundo, embora estivesse
depenado como uma galinha.
De tanto rir, só daí a algum tempo nos apercebemos de que a
música tinha mudado e que, de repente, já não tinha graça. Agora
Tyll cantava uma balada de guerra, sobre cavalgadas em grupo,
tilintar de armas e amizade entre homens, como estes se punham à
prova no perigo, e sobre o júbilo das balas a zunir. Cantava sobre a
vida dos soldados e a beleza da morte, sobre a alegria exultante
daquele que cavalga ao encontro do inimigo, e todos sentíamos o
coração bater mais depressa. Os homens entre nós sorriam, as
mulheres abanavam a cabeça, os pais punham os filhos pequenos
às cavalitas e as mães olhavam os filhos varões com orgulho.
Só a velha Luise bufava, abanava a cabeça e resmungava tão
alto que quem estava perto dela lhe dizia que devia voltar para casa,
após o que ela vociferou ainda mais alto e perguntou se ninguém
percebia o que Tyll tinha ido fazer ali. Que estava a invocá-la, que
estava a chamá-la para ali!
Mas quando, com vozes sibilantes, a mandámos calar e a
ameaçámos, e ela, graças a Deus, se foi embora, já Tyll recomeçara
a tocar a flauta; a mulher, de pé junto dele, tinha uma aparência
majestosa como uma pessoa de categoria. Com uma voz límpida,
cantava sobre o amor, que era mais forte do que a morte. Cantava
sobre o amor dos pais, sobre o amor de Deus e sobre o amor entre
homem e mulher; e aí qualquer coisa tornou a mudar, o ritmo
tornou-se mais rápido, o som mais agudo e penetrante e,
inesperadamente, a canção falava do amor carnal, dos corpos
quentes a rolar na erva, do perfume da tua nudez e do teu grande
traseiro. Os homens entre nós riam, o riso das mulheres foi juntar-se
ao deles, e as crianças eram as que riam mais alto. A pequena
Martha também ria. Tinha aberto caminho até à frente e
compreendia muito bem a canção, pois ouvira com frequência a
mãe e o pai na cama, os criados na palha e a irmã com o filho do
carpinteiro no ano anterior — à noite tinham-se escapulido, mas
Martha seguira-os e vira tudo.
No rosto do célebre Tyll desenhava-se um sorriso rasgado e
lascivo. Entre ele e a mulher surgira uma tensão tremenda, uma
força que os arrastava um para o outro, que atraía os seus corpos
com tal intensidade, que era quase insuportável não se agarrarem.
Porém, a música que ele tocava parecia impedir que tal
acontecesse, pois, como por acaso, modificara-se, o momento
passara e o novo som já não o permitia. Era o Agnus Dei. A mulher
juntou as mãos, qui tollis peccata mundi, ele recuou, e ambos
pareceram assustados com o delírio que quase se havia apoderado
deles, tal como nós também nos assustámos e nos benzemos, pois
nos recordámos que Deus via tudo e pouco aprovava. Caíram os
dois de joelhos e nós imitámo-los. Tyll pousou a flauta, pôs-se de
pé, abriu os braços e pediu dinheiro e comida, pois agora ia haver
um intervalo. E se lhe pagassem bem, o melhor estava ainda para
vir.
Atarantados, pegámos nas bolsas. As duas mulheres passaram
à volta com umas canecas. Demos tanto, que as moedas tilintavam
e saltavam. Todos demos: Karl Schönknecht deu, Malte Schopf deu,
a sua irmã ceceosa deu, e a família do moleiro, que era tão
avarenta, deu-lhes de igual modo, e o desdentado Heinrich Matter e
Matthias Wohlsegen, apesar de serem artesãos e de se
considerarem superiores, deram uma quantia particularmente
avultada.
Lentamente, Martha deu a volta à carroça coberta.
Ali estava Tyll Ulenspiegel, sentado, com as costas apoiadas à
roda, a beber de uma grande caneca. Junto dele estava o burro.
— Vem cá — disse-lhe.
Com o coração aos saltos, Martha aproximou-se.
Tyll estendeu-lhe a caneca.
— Bebe.
Ela pegou na caneca. A cerveja era amarga e pesada.
— As pessoas daqui são boa gente?
Ela fez um aceno afirmativo.
— Pessoas pacíficas, que se entreajudam, que se compreendem
e gostam uns dos outros. São gente assim?
Martha bebeu mais um gole.
— São.
— Muito bem — disse Tyll.
— Veremos — disse o burro.
Com o susto, Martha deixou cair a caneca.
— Essa bela cerveja — disse o burro. — Que miúda tonta.
— A isto chama-se falar com a barriga — disse Tyll Ulenspiegel.
— Se quiseres, também podes aprender.
— Também podes aprender — repetiu o burro.
Martha apanhou a caneca e recuou um passo. A poça de cerveja
tornou-se maior e depois diminuiu, pois o solo seco absorveu a
humidade.
— A sério — disse Tyll. — Vem connosco. A mim já me
conheces. Sou o Tyll. A minha irmã, que está ali, é a Nele. Não é
minha irmã. A velha, não sei como se chama. O burro é o burro.
Martha olhava-o fixamente.
— Ensinamos-te tudo — disse o burro. — Eu, a Nele, a velha e o
Tyll. E tu sais daqui. O mundo é grande. Poderás vê-lo. Não sou
apenas burro, tenho um nome, chamo-me Orígenes.
— Porque me convidam a mim?
— Porque não és como eles — respondeu Tyll Ulenspiegel. —
Tu és como nós.
Martha estendeu-lhe a caneca, mas como ele não lhe pegou,
pousou-a no chão. Tinha o coração a bater. Pensou nos pais, na
irmã, na casa onde vivia, na colina atrás da floresta e no ruído do
vento nas árvores, que não conseguia imaginar que pudesse ter o
mesmo som em nenhuma outra parte. E pensou no guisado que a
mãe cozinhava.
Os olhos do célebre Tyll brilhavam quando lhe disse a sorrir:
— Pensa no velho ditado: «Em todos os sítios podes encontrar
coisas melhores do que a morte.»
Martha abanou a cabeça.
— Então está bem — disse ele.
Ela ficou à espera, mas Tyll não disse mais nada, e ela demorou
um momento a perceber que o interesse que ele tinha por ela já se
havia desvanecido.
Assim, tornou a dar a volta à carroça e regressou para junto das
pessoas que conhecia, para junto de nós. Naquele momento,
éramos a sua vida, e não havia outra. Sentou-se no chão. Sentia-se
vazia. Mas quando erguemos os olhos, ela também o fez, pois todos
ao mesmo tempo apercebemo-nos que havia algo a pairar no céu.
Uma linha negra cortava o azul. Piscámos os olhos. Era uma
corda. De um lado, estava atada à cruz da janela do campanário, e
do outro ao pau da bandeira que se erguia do muro junto da janela
do edifício onde trabalhava o governador da cidade, o que não era
frequente, pois este era preguiçoso. À janela estava a jovem do
carro, que devia ter acabado de atar a corda; mas como a tinha
esticado?, perguntávamo-nos nós. Uma pessoa podia estar aqui e
ali, nesta janela ou na outra, era fácil atar uma corda e deixá-la cair,
mas como fazê-la subir até à outra janela, para atar a outra ponta?
Ficámos de boca aberta. Durante algum tempo, pareceu-nos que
a própria corda era o truque do espetáculo e que não era necessário
mais nada. Um pardal pousou sobre ela, deu um saltinho, abriu as
asas, mudou de ideias e permaneceu ali pousado.
Foi então que Tyll Ulenspiegel apareceu à janela do campanário.
Fez um aceno, saltou para o parapeito e, avançou pela corda, como
se fosse a coisa mais fácil deste mundo. Como se cada passo na
corda fosse como outro passo qualquer. Nenhum de nós falava, não
se ouvia uma exclamação, ninguém se movia, estávamos de
respiração suspensa.
Sem vacilar nem procurar equilibrar-se, Tyll limitava-se a
avançar. Os seus braços oscilavam, e ele seguia como quem
caminha sobre o solo, só que a sua maneira de andar parecia um
pouco afetada, pois colocava sempre um pé à frente do outro. Era
preciso dar muita atenção aos pequenos movimentos das ancas,
que amorteciam a oscilação da corda. De um salto, ajoelhou-se uns
momentos, antes de voltar a pôr-se de pé. Depois seguiu até ao
meio da corda, com as mãos cruzadas nas costas. O pardal
levantou voo, mas só bateu as asas por instantes até pousar e virar
a cabeça; o silêncio era tal que o ouvíamos piar. E, como é natural,
ouvíamos as nossas vacas.
Por cima de nós, Tyll Ulenspiegel girou, devagar e
descuidadamente — não como quem se encontra em perigo, mas
como alguém que olha à sua volta com curiosidade. Manteve o pé
direito sobre a corda durante muito tempo, o esquerdo em sentido
contrário, os joelhos um pouco fletidos e os punhos fechados nas
ancas. E no mesmo instante, todos nós, a olhar para cima,
compreendemos o que era a ligeireza. Compreendemos como pode
ser a vida para quem realmente faz o que quer, sem acreditar em
nada nem dar ouvidos a nada; compreendemos como era ser uma
pessoa assim e compreendemos que nunca o seríamos.
— Descalcem os sapatos!
Ficámos sem saber se tínhamos percebido bem.
— Descalcem-nos — exclamou ele. — Todos, o direito. Deixem-
se de perguntas, façam o que eu digo, que vai ser divertido.
Confiem em mim, descalcem-nos. Velhos e novos, mulheres e
homens! Todos. O sapato direito.
Todos os olhares se fixaram nele.
— Não foi divertido até agora? Não querem mais? Vou mostrar-
vos mais, descalcem todos o pé direito. Vá lá!
Demorámos um bocado a pormo-nos em movimento. É sempre
assim connosco, somos gente circunspecta. O primeiro a obedecer
foi o padeiro, e seguiram-se de imediato Malte Schopf, Karl Lamm e
a mulher, e depois obedeceram os artesãos, que se consideravam
sempre os melhores, e em seguida cada um de nós fez o mesmo, à
exceção de Martha. Tine Krugmann, ao lado dela, deu-lhe uma
cotovelada e apontou para o pé direito, mas Martha abanou a
cabeça, e Tyll Ulenspiegel deu outro salto em cima da corda,
batendo os pés no ar. Saltou tão alto que, ao descer, teve de abrir
os braços para se equilibrar — apenas por breves instantes, mas os
suficientes para nos recordar que ele também tinha peso e não
voava.
— E agora atirem-nos — disse ele, numa voz mais alta e mais
nítida. — Não pensem, não perguntem, não hesitem, isto vai ser
muito divertido. Façam o que eu digo. Atirem os sapatos!
Tine Krugmann foi a primeira. O seu sapato voou bem alto e
desapareceu no meio da multidão. Depois voou o sapato seguinte, o
de Susanne Schopf, depois o seguinte, e a seguir voaram dezenas
de sapatos, aos quais se seguiram mais e mais. Todos ríamos,
gritávamos e soltávamos exclamações: «Cuidado!», «Agacha-te!» e
«Lá vai um!». Era uma paródia, e não tinha importância que alguns
sapatos acertassem em cabeças. Ouviram-se imprecações, uma ou
outra mulher proferiu insultos, uma ou outra criança chorou, mas
nada de grave, e até Martha se fartou de rir quando uma pesada
bota de couro por pouco não a atingiu, ao mesmo tempo que uma
pantufa de tecido voava até cair aos seus pés. Tyll tivera razão, e
alguns acharam aquilo tão divertido que atiraram também o sapato
esquerdo. E houve ainda quem atirasse chapéus, colheres e
cântaros, que ficaram feitos em cacos, e, como é natural, um ou
outro também atirou pedras. Mas quando se ouviu a voz de Tyll, o
barulho cessou, e prestámos atenção.
— Grandes parvos.
Piscámos os olhos, pois o Sol já ia baixo. Os que se
encontravam na parte posterior da praça viam-no com nitidez, mas
para os outros não passava de uma silhueta.
— Grandes idiotas. Cabeças ocas. Imbecis. Seus inúteis, suas
toupeiras, malditas ratazanas. Agora vão buscá-los.
Ficámos com os olhos cravados nele.
— Ou são demasiado estúpidos? Agora já não podem ir buscá-
los, não conseguem, são demasiado obtusos?
Soltou uma gargalhada que mais parecia um balido. O pardal
levantou voo, elevou-se acima dos telhados e desapareceu.
Entreolhámo-nos. O que ele nos dissera era infame, mas não ao
ponto de não poder ser mais uma brincadeira ou uma dessas graças
de mau gosto características de Tyll. Podia permitir-se dizê-las e era
famoso por isso.
— Então? Já não precisam deles? — perguntou. — Já não os
querem? Já não vos agradam? Vão buscar os vossos sapatos,
parvalhões!
Malte Schopf foi a primeira. Durante todo o tempo não se sentira
bem, por isso desatou a correr para o sítio para onde pensava ter
voado a sua bota. Afastou pessoas para o lado, empurrou, deu
encontrões, agachou-se e remexeu entre as pernas. Do outro lado
da praça, Karl Schönknecht fazia o mesmo, e a este seguiu-se
Elsbeth, a viúva do ferreiro; mas o velho Lembke intrometeu-se e
gritou que o melhor era afastar-se, pois aquele era o sapato da sua
filha. Elsbeth, a quem ainda doía a testa, por ter apanhado com uma
bota, gritou-lhe por sua vez que ele é que devia afastar-se, pois ela
ainda conhecia muito bem os seus sapatos e que a filha de Lembke
de certeza não tinha sapatos bordados assim tão bonitos, ao que o
velho Lembke gritou que lhe saísse do caminho e não insultasse a
sua filha, ao que por seu turno ela berrou que ele era um ladrão de
sapatos malcheiroso. Foi então que o filho de Lembke interveio: «Só
estou a avisar-te!»; ao mesmo tempo, Lise Schoch e a moleira
começaram a discutir, dado os sapatos de ambas serem iguais e os
seus pés do mesmo tamanho, e também começou a haver uma
troca de palavras azeda entre Karl Lamm e o cunhado; e, de
repente, Martha, ao perceber o que se passava, acocorou-se e
escapuliu-se dali.
Por cima dela já havia encontrões, insultos e empurrões. Uns
poucos, que não haviam tardado a encontrar os sapatos, davam à
sola, mas entre os demais irrompeu uma ira tão violenta que parecia
há muito tempo contida. O carpinteiro Moritz Blatt e o ferreiro Simon
Kern davam murros um ao outro, de tal modo que quem tivesse
pensado que aquilo tinha apenas que ver com sapatos não teria
compreendido, pois para isso seria necessário saber que a mulher
de Moritz, em criança, tinha sido prometida de Simon. Ambos
sangravam do nariz e da boca, ambos resfolegavam como cavalos,
e ninguém se atrevia a intervir; também Lore Pilz e Elsa Kohlschmitt
estavam horrivelmente engalfinhadas, mas odiavam-se há tanto
tempo que já nem sabiam por que motivo. O que todos sabiam
muito bem era porque tinham chegado a vias de facto a família
Semmler e a gente da casa Grünanger: isso devia-se a um litígio de
terras e a uma antiga questão de heranças, que remontava aos
tempos do regedor Peter, e também ao facto de o filho da filha de
Semmler não ser do marido, mas de Karl Schönknecht. A cólera
alastrava como uma febre e, para onde quer que se olhasse, havia
gritos, pancadaria e corpos a contorcerem-se.
Martha virou a cabeça para cima. Lá estava Tyll a rir, com o
corpo curvado para trás, a boca muito aberta e os ombros a tremer.
Só os seus pés estavam em repouso, e as suas ancas moviam-se a
acompanhar a oscilação da corda. Martha pensou que tinha de olhar
melhor para perceber qual o motivo daquele regozijo. Mas nesse
momento um homem chocou com ela e, sem a ver, deu-lhe com a
bota no peito, o que a fez bater com a cabeça no chão, de tal modo
que, quando respirava, era como se agulhas a espetassem. Rolou
até ficar de costas. A corda e o céu estavam vazios. E Tyll
Ulenspiegel desaparecera.
Levantou-se. A mancar, passou por todos aqueles corpos
engalfinhados, que se revolviam, se mordiam, se batiam e
choravam, e reconheceu, aqui e ali, um rosto conhecido; coxeou rua
fora, encolhida e com a cabeça baixa, mas, no momento em que
chegava à porta de casa, ouviu atrás de si o matraquear da carroça
coberta. Voltou-se. À boleia ia a mulher jovem, a quem Tyll chamara
Nele, e ao lado, feita num novelo e imóvel, a velha. Como é que
ninguém os fazia parar, porque não havia quem os seguisse? O
carro passou por Martha e esta seguiu-o com a vista. Em breve
chegaria ao ulmeiro, depois às portas da cidade, para em seguida
desaparecer.
E então, quando o carro já quase tinha atingido as últimas casas,
um homem correu atrás dele, com grandes passadas que não
pareciam exigir-lhe esforço. A pele de vaca da capa que o cobria
eriçava-se-lhe no pescoço como qualquer coisa viva.
— Ter-te-ia levado comigo! — gritou, quando passou a correr por
Martha.
Um pouco antes da curva da estrada, alcançou o carro e saltou-
lhe para cima. O guarda das portas estava connosco na praça, e
ninguém os reteve.
Lentamente, Martha entrou em casa, fechou a porta e correu o
ferrolho. A cabra, deitada junto do fogão, olhou-a com uma
expressão interrogativa. Ouviu as vacas mugirem e os nossos gritos
vindos da praça.
Mas, finalmente, fomo-nos acalmando. Antes de anoitecer,
ordenhámos as vacas. A mãe de Martha voltou a casa e, à exceção
de um ou dois arranhões, praticamente nada lhe havia acontecido; o
pai perdera um dente e tinha uma orelha rasgada, a irmã havia
apanhado uma pisadela tão violenta, que passou algumas semanas
a coxear. Porém, chegou a manhã seguinte e a noite seguinte, e a
vida prosseguiu. Em todas as casas havia galos, cortes, arranhões,
braços deslocados e dentes partidos, mas no dia seguinte a praça já
estava de novo limpa e todos andavam calçados.
Nunca falámos do sucedido. E também não falámos de
Ulenspiegel. Sem que o tivéssemos combinado, mantivemos
silêncio; até Hans Semmler, que havia sido tão terrivelmente
agredido que a partir daí teve de ficar de cama sem conseguir
comer nada a não ser sopa, fazia como se nada se tivesse passado.
E também a viúva de Karl Schönknecht, o qual enterrámos no dia
seguinte no cemitério, se comportou como se fosse um golpe do
destino e como se não soubesse perfeitamente a quem pertencia a
faca que lhe enterraram nas costas. Só a corda ainda permaneceu
dias suspensa sobre a praça, agitada pelo vento e a servir de
poleiro a pardais e andorinhas, até o padre, que havia sido
particularmente maltratado durante a refrega, dado a sua arrogância
e a sua soberba não serem do nosso agrado, ficar de novo em
condições de subir ao campanário para a cortar.
Mas também não esquecemos. O que se passara permaneceu
entre nós. Estava lá, quando nos ocupávamos da colheita, estava lá
quando, em conjunto, fazíamos a sementeira, ou quando, ao
domingo, nos reuníamos na missa, onde o padre tinha agora uma
expressão diferente, meio de assombro, meio de temor. E,
sobretudo, estava lá quando tínhamos festas na praça e, a dançar,
olhávamos para a cara uns dos outros. Então parecia-nos que o ar
era mais pesado, que a água tinha um odor diferente e que o céu
não era o mesmo desde que a corda nele estivera suspensa.
E, um belo dia, um ano mais tarde, a guerra chegou mesmo até
nós. Uma noite ouvimos relinchos de cavalos, depois gargalhadas
de muitas vozes diferentes, em seguida o estrépito de muitas portas
a serem arrombadas e, antes que pudéssemos chegar à rua,
armados com forquilhas ou facas inúteis, já as chamas devoravam
tudo.
Os mercenários tinham mais fome, e também estavam mais
embriagados do que era habitual. Há muito que não entravam numa
cidade que lhes oferecesse tanto. A velha Luise, que dormia
profundamente e, desta vez, não tivera nenhum pressentimento,
morreu na cama. O padre morreu, diante do portal da igreja para a
proteger. Lise Schoch morreu quando tentava esconder moedas de
ouro, o padeiro, o ferreiro, o velho Lembke, Moritz Blatt e a maioria
dos outros homens morreram, quando tentavam proteger as
esposas, e as mulheres morreram, como morrem as mulheres na
guerra.
Martha também morreu. Ainda viu como o teto do quarto se
convertia num braseiro vermelho, sentiu o cheiro do fumo antes de
este a atingir com tal intensidade que deixou de ver fosse o que
fosse; ouviu a irmã gritar por socorro enquanto o futuro, que
instantes antes ainda existia, se desvanecia em nada: o marido que
nunca teria, os filhos que não iria criar, os netos, aos quais, numa
manhã de primavera, nunca iria falar de um famoso bufão, e os
filhos desses netos e toda a gente que nunca viria a existir. Que
depressa que isto vai, pensou, como se tivesse descoberto um
grande segredo. E quando ouviu as vigas do teto quebrarem-se,
ainda lhe ocorreu que Tyll Ulenspiegel talvez fosse o único a
recordar os nossos rostos e a saber que tínhamos existido.
Com efeito, só sobreviveram Hans Semmler, o coxo, cuja casa
não se incendiara e que, como não se podia mexer, passara
despercebido, e também Elsa Ziegler e Paul Grünanger, que em
segredo tinham ido juntos para a floresta. Quando regressaram, ao
romper do dia, com a roupa amarrotada e o cabelo desgrenhado, só
encontraram escombros sob novelos de fumo e, por instantes,
pensaram que Deus Nosso Senhor os castigara pelo seu pecado,
provocando-lhes alucinações. Partiram juntos para oeste e, durante
um breve tempo, foram felizes.
Aos restantes de nós, ouvem-nos no lugar onde vivíamos, por
vezes nas árvores. Ouvem-nos na erva e no trilar dos grilos, ouve-
nos quem encosta a cabeça ao buraco do velho ulmeiro e, de
quando em quando, aparecem crianças que afirmam ver os nossos
rostos na água do ribeiro. A nossa igreja já não está de pé, mas as
pedras que a água alisou e branqueou ainda são as mesmas, e
também as árvores são as mesmas. Recordamo-nos, ainda que
ninguém no-lo recorde, pois ainda não nos habituámos à ideia de
não ser. A morte é sempre nova para nós, e as coisas dos vivos não
nos são indiferentes. Porque ainda não passou muito tempo.
O SENHOR DO AR
I

Esticou a corda à altura dos joelhos, da tília ao velho abeto. Teve


de fazer incisões nos troncos; no abeto foi fácil, mas na tília a faca
estava sempre a escorregar até que, finalmente, conseguiu.
Experimenta os nós, descalça lentamente os socos, sobe para a
corda e cai.
Agora volta a subir, abre os braços e dá um passo. Abre os
braços, mas não consegue manter o equilíbrio e cai. Sobe de novo,
tenta mais uma vez e volta a cair.
Tenta uma vez mais e torna a cair.
É evidente que não se pode andar numa corda. Os pés humanos
não são feitos para isso. Porquê sequer experimentar?
Mas continua a tentar. Começa sempre junto da tília e, a cada
vez, cai imediatamente. As horas passam. À tarde consegue dar um
passo, um único, e até escurecer não consegue dar um segundo.
Contudo, durante um instante, a corda susteve-o, e ele manteve-se
de pé sobre ela como em terra firme.
No dia seguinte, chove a cântaros. Fica em casa, a ajudar a
mãe. «Mantém o pano esticado, para de sonhar, por amor de
Deus!» A chuva tamborila no telhado como centenas de pequenos
dedos.
No dia seguinte, continua a chover. Está um frio de rachar, e a
corda está húmida, não é possível dar um passo.
No dia seguinte, mais chuva. Sobe para a corda, cai, sobe de
novo e cai, é assim a cada vez. Durante algum tempo, fica deitado
no solo, com os braços abertos e o cabelo transformado numa
mancha escura e molhada.
No dia seguinte, é domingo, por isso só à tarde pode subir para a
corda, pois o serviço religioso dura toda a manhã. Ao entardecer,
consegue dar três passos, que poderiam ter sido quatro se a corda
não estivesse molhada.
Pouco a pouco, compreende como se faz. Os seus joelhos
percebem, os ombros assumem outra postura. É preciso ceder à
oscilação, descontrair os joelhos e as ancas, dar um passo antes de
cair. Quando a gravidade se faz sentir, já se está mais adiante. O
funambulismo consiste em fugir da queda.
O dia seguinte é mais quente. Gralhas crocitam, escaravelhos e
abelhas zumbem e o sol dissipa as nuvens. A respiração dele
ascende em pequenas nuvens. A claridade matinal transporta as
vozes, ouve o pai em casa a gritar com um moço de lavoura. Canta
para consigo a canção da ceifeira que se chama morte e que tem
poder sobre Deus; é uma melodia ao som da qual ele avança bem
sobre a corda, mas pelos vistos cantou-a demasiado alto, pois de
repente Agneta, a mãe, aparece ao seu lado, a perguntar-lhe porque
não está a trabalhar.
— Já vou.
— Tens de ir buscar água — diz ela — e limpar o fogão.
Ele abre os braços, sobe para a corda e procura não reparar na
barriga volumosa da mãe. Será verdade que tem dentro uma
criança, que esperneia, se agita e os escuta? Essa ideia perturba-o.
Se Deus quer criar uma pessoa, porque o faz dentro de outra
pessoa? Há qualquer coisa de monstruoso no facto de todos os
seres terem origem no oculto: as larvas na massa do pão, as
moscas nos excrementos, as minhocas na terra castanha. O pai
explicou-lhe que só raras vezes as crianças saem das raízes de
mandrágora, e que é ainda mais raro os bebés saírem de ovos
podres.
— Queres que vá chamar o Sepp? — pergunta Agneta. —
Queres que o vá buscar?
O rapaz cai da corda, fecha os olhos, abre os braços, sobe de
novo. Quando torna a olhar, a mãe já se foi.
Espera que a ameaça não se concretize, mas, daí a um bocado,
Sepp aparece de facto. Olha-o durante uns instantes, antes de se
aproximar da corda e de o derrubar: não é um pequeno empurrão,
mas um encontrão tão forte que o deixa estendido ao comprido.
Furioso, chama a Sepp um cu de boi nojento que dorme com a
própria irmã.
Isso não foi inteligente, pois, em primeiro lugar, não sabe se
Sepp, que, como todos os moços de lavoura, veio de algures e irá
para algures, tem de facto uma irmã, e, em segundo lugar, era disso
que o outro estava à espera. Antes que consiga levantar-se, já Sepp
está sentado em cima da sua nuca.
Não consegue respirar. Pedras cortam-lhe a cara. Contorce-se,
mas de nada serve, pois o outro tem o dobro da sua idade, é três
vezes mais pesado e cinco vezes mais forte. Controla-se, a fim de
não consumir demasiado ar. A língua sabe-lhe a sangue. Respira
imundícies, engasga-se, cospe. Sente zumbidos e apitos nos
ouvidos e o seu corpo parece pairar, afundar-se e pairar de novo.
De repente, o peso desaparece. Sepp fá-lo rolar até ficar de
costas, com terra na boca, os olhos colados e uma dor penetrante
na cabeça. O moço arrasta-o para o moinho: sobre terra e gravilha,
pela erva, sobre mais terra e pequenas pedras aguçadas, passando
diante das árvores, da rapariga que ri, do palheiro, do curral das
cabras. Depois levanta-o, abre a porta e empurra-o lá para dentro.
— Já não é sem tempo — diz Agneta. — O fogão não se limpa
sozinho.

Para ir do moinho até à aldeia, temos de atravessar uma parte


da floresta. Aí, onde o arvoredo é menos denso e se passa por
prados, pastagens e campos de cultivo, um terço dos quais em
pousio e dois terços lavrados e protegidos por cercas, avistamos a
torre do campanário. Alguém está sempre ali no meio do esterco a
construir as vedações, que se estragam constantemente, mas que é
preciso manter firmes, pois de outro modo o gado ou os animais da
floresta destroem a sementeira. A maior parte das terras pertence a
Peter Steger. A maior parte dos animais também, como é fácil ver,
pois têm o seu ferrete no pescoço.
A primeira casa por que passamos é a de Hanna Krell. Esta está
sentada à soleira — que outra coisa poderia fazer? —, a passajar
roupa, pois esse é o seu ganha-pão. A seguir passamos pela
estreita abertura entre a quinta de Steger e a forja de Ludwig
Stelling, subimos pelo passadiço de madeira que impede que nos
afundemos no esterco mole, deixamos para trás o estábulo de
Jakob Kröhn, à direita, e chegamos à rua principal, que é também a
única: aqui vive, com a mulher e os filhos, Anselm Melker, vizinho do
seu cunhado Ludwig Koller e, ao lado deste, Maria Loserin, que
perdeu o marido no ano anterior, vítima de uma maldição; a filha tem
dezassete anos, é muito bonita e vai casar com o filho mais velho de
Peter Steger. Do outro lado da rua mora Martin Holtz, o padeiro,
com a mulher e as filhas, e ao lado ficam as casas mais pequenas
dos Tamm, dos Henrich e da família Heinerling, de cujas janelas se
ouvem sempre discussões; os Heinerling não são boa gente e não
têm herdeiros. À exceção do ferreiro e do padeiro, todos têm uma
parcela de terra e uma ou duas cabras, mas só Peter Steger, que é
rico, tem vacas.
Depois chegamos à praça onde se situa a igreja, com a velha
tília e a fonte. Junto da igreja fica a casa paroquial, ao lado desta a
casa onde vive Paul Steger, o magistrado, primo de Peter Steger,
que duas vezes por ano percorre os campos e todos os três meses
leva ao suserano os impostos que recolhe.
Na parte de trás da praça fica um cercado. Abrimos o portão,
atravessamos um grande campo que também pertence a Steger, e
estamos de novo na floresta; e, se não tivermos demasiado medo
da Fria e seguirmos caminho, sem nos perdermos na vegetação
rasteira, daí a seis horas chegamos à quinta de Martin Reutter. E se
o cão não nos morder e continuarmos a andar, ao fim de três horas
estamos na aldeia seguinte, que não é muito maior.
Mas aí o rapaz nunca esteve. Nunca esteve em parte nenhuma.
E, embora várias pessoas que já estiveram noutros sítios lhe
tivessem dito que tudo é igual à aldeia, ele não pode deixar de
perguntar a si mesmo aonde se chega se se continuar a andar, não
apenas até à aldeia seguinte, mas mais e mais além.
Sentado à cabeceira da mesa, o moleiro falava sobre estrelas. A
mulher, o filho, os moços de lavoura e a criada fingem que estão a
ouvir. Há papas de cereais. Na véspera também houve papas, e
papas haverá outra vez no dia seguinte, cozinhadas umas vezes
com mais, outras vezes com menos água; todos os dias há papas,
só nos dias piores é que, em vez de papas, não há nada. Na janela,
uma vidraça grossa sustém o vento, por baixo do fogão, que pouco
calor irradia, brigam dois gatos, e ao canto está uma cabra, que, na
realidade, devia estar no curral, mas a quem ninguém tem vontade
de afastar, porque todos estão cansados e o animal tem os cornos
afiados. Junto da porta e à volta da janela estão gravados
pentagramas, contra os maus espíritos. O moleiro descreve como,
há exatamente dez mil setecentos e três anos, cinco meses e nove
dias, o Maelström, o grande turbilhão de água, teve início no fogo do
centro da Terra. E, desde então, essa coisa que é o mundo não para
de girar como um fuso e dele nascem estrelas por toda a
eternidade, pois aí o tempo não tem início e também não tem fim.
— Não tem fim — repete, e interrompe-se. Reparou que disse
algo pouco claro. — Não tem fim — repete baixinho —, não tem fim.
Claus Ulenspiegel é de Mölln, no norte luterano. Já não é jovem.
Chegou à região uma década atrás, e, como não era dali, só pôde
trabalhar como moço de moleiro. A condição de moleiro não é tão
desonrosa como a de esfolador, que tira a pele de animais em
putrefação, ou de guarda-noturno ou até de carrasco, mas também
não é melhor do que a de jornaleiro e é muito pior do que a dos
artesãos nas suas corporações ou a dos camponeses, que nem se
dignariam a estender a mão a uma pessoa como ele. Mas casou
com a filha do moleiro, e pouco depois este morreu, e agora é ele
próprio moleiro. Além disso, trata dos camponeses, que nem
sempre lhe estendem a mão, pois não há nada a fazer com quem
não tem boas maneiras; contudo, quando têm dores, vão procurá-lo.
Não tem fim. Claus não consegue continuar a falar, a questão
preocupa-o demasiado. Como é possível o tempo não ter fim! Por
outro lado… Coça a cabeça. Por certo que também teve um
começo. Pois, se assim não fosse, como se teria chegado ao
momento presente? Olha em redor. Não é possível ter passado uma
eternidade. E por certo que também teve um começo. Mas antes?
Um antes do tempo? Até dá vertigens. Como nas montanhas,
quando se olha para uma ravina.
Uma vez, conta ele agora, vi uma assim, na Suíça, um vaqueiro
tinha-o levado lá por altura da transumância. As vacas tinham
grandes chocalhos e o vaqueiro chamava-se Ruedi. Claus faz uma
pausa e depois recorda-se do que de facto queria dizer. Ali, tinha
também olhado para uma ravina, que era tão profunda que não se
lhe via o fundo. Perguntara ao vaqueiro, que se chamava Ruedi —
um nome invulgar —, perguntara pois a Ruedi:
— Qual é a profundidade?
E Ruedi, a arrastar as palavras como se estivesse exausto,
respondera-lhe:
— Não tem fundo!
Claus suspira. As colheres raspam no silêncio. A princípio
pensara, continua ele a contar, que isso não era possível e que o
vaqueiro era um mentiroso. Depois perguntara-se se aquela ravina
não seria a entrada do Inferno. Mas de súbito percebera que isso
não era importante: mesmo que a ravina tivesse fundo, bastava
olhar para o alto para ver um precipício sem fundo. Com a mão
pesada, coça a cabeça. Um desfiladeiro, murmurou, que continua
sempre, mais e mais, até cada vez mais longe, e no qual cabem
todas as coisas do mundo, sem mesmo assim encher a mais ínfima
parte da sua profundidade, uma profundidade perante a qual tudo é
anulado… Come uma colherada de papas. Sentimo-nos muito mal
aí, e também exaustos, mal compreendemos que os números nunca
acabam! Que a cada número ainda podemos somar outro, como se
Deus não existisse, para pôr termo a uma tal situação. Sempre mais
um! Números infinitos, profundidade sem fundo, tempo antes do
tempo. Claus abana a cabeça. E se…
Nessa altura, Sepp solta um grito. Tapa a boca com as mãos.
Todos o olham, perplexos, mas acima de tudo felizes com a
interrupção.
Sepp cospe umas pedrinhas castanhas, que parecem
exatamente grumos das papas. Não fora fácil metê-las
disfarçadamente na taça. Para uma coisa dessas, é preciso esperar
o momento certo e, caso seja necessário, ser o próprio a criar a
distração. Por esse motivo, algum tempo antes o rapaz tinha dado
uma canelada a Rosa, a criada, e quando ela soltou um grito e lhe
disse que ele era uma ratazana nojenta, e ele lhe respondeu que ela
era uma vaca asquerosa, e ela lhe disse de novo que ele era mais
merdoso do que a merda, e quando a mãe dele dissera a ambos
que, em nome de Deus, ou se calavam ou naquele dia não comiam,
no momento exato em que todos os olhares estavam fixos em
Agneta, ele curvara-se rapidamente e deixara cair as pedras nas
papas de Sepp. Podemos deixar escapar o momento certo, mas, se
estivermos atentos, é possível encontrá-lo. Nessa altura, um
unicórnio podia passar pelo quarto sem que os outros dessem
contra.
Sepp examina a boca com os dedos, cospe um dente em cima
da mesa, levanta a cabeça e olha para o rapaz.
Isso não é bom. O rapaz estava certo de que Sepp não somaria
dois e dois, mas parece que ele não é assim tão estúpido.
O rapaz levanta-se de um salto e corre para a porta.
Infelizmente, Sepp não só é alto, mas também rápido, e consegue
apanhá-lo. O rapaz quer libertar-se, mas não consegue, Sepp toma
balanço e dá-lhe um murro na cara. A pancada abafa todos os
outros ruídos.
O rapaz pisca os olhos. Agneta pôs-se de pé de um salto, a
criada ri, pois gosta de brigas. Claus permanece sentado, de cenho
franzido, absorto nos seus pensamentos. Os outros dois moços
arregalam os olhos com curiosidade. O rapaz não ouve nada, o
quarto anda à roda, o telhado está por baixo dele, Sepp pô-lo ao
ombro como uma saca de farinha. Assim o leva para fora de casa, e
o rapaz vê erva por cima de si, enquanto por baixo vê a abóbada
celeste, atravessada pelos fios de nuvens do entardecer. Agora
volta a ouvir qualquer coisa: um som mais agudo vibra no ar.
Sepp prende-o com o braço e olha-o fixamente com o rosto
encostado ao seu. O rapaz vê-lhe a raiz da barba. O sítio onde lhe
caiu o dente está a sangrar. Podia dar-lhe um murro na cara com
toda a força. Sepp deixá-lo-ia cair e, quando ele se pusesse de pé
rapidamente, podia ganhar vantagem e alcançar a floresta.
Mas para quê? Vivem no mesmo moinho. Se Sepp não o
apanhasse nesse dia, apanhá-lo-ia no seguinte, e se não fosse no
seguinte, seria no outro. Melhor seria esquecer o assunto agora que
estão todos a ver. Diante dos olhos dos outros provavelmente Sepp
não irá matá-lo.
Saíram todos de casa: Rosa, ainda a rir, está em bicos de pés
para ver melhor, e os dois moços junto dela também riem. Agneta
grita qualquer coisa; o rapaz vê-a abrir a boca e agitar as mãos, mas
não a ouve. Junto dela, Claus continua com ar de quem pensa
noutra coisa qualquer.
Sepp segura-o bem acima da cabeça. O rapaz protege a testa
com as mãos, pois receia que o outro o vá arremessar contra o solo
duro. Mas Sepp avança um passo, depois outro e depois ainda um
terceiro, e de repente o coração do rapaz fica em alvoroço. Sente o
sangue a latejar nos ouvidos e começa a gritar. Não ouve a sua
própria voz, grita mais alto e continua a não ouvir nada. Deu-se
conta do que Sepp tenciona fazer. Os outros também se terão
apercebido? Ainda podiam intervir, mas… agora já é tarde de mais.
Sepp já o fez. O rapaz cai.
E continua a cair. O tempo parece ter-se tornado mais lento, ele
ainda consegue olhar à sua volta, sente a queda, o deslizar pelo ar,
e ainda consegue pensar que está a acontecer precisamente aquilo
contra o que o puseram de sobreaviso toda a vida: nunca entres no
ribeiro diante da roda do moinho, nunca te metas à frente dela, não
passes diante da roda do moinho, não faças isso sob nenhum
pretexto, nunca entres no ribeiro diante da roda do moinho! E agora,
depois de pensar nisso tudo, a queda prossegue, e ele continua a
cair, a cair, sempre a cair; mas no preciso momento em que um
novo pensamento o assalta — concretamente, que talvez não se vá
passar nada e que a queda não vá durar para sempre — embate na
superfície e afunda-se, e de novo decorrem instantes antes de sentir
a mordedura da água gelada. Forma-se-lhe um nó no peito e diante
dos seus olhos fica tudo negro.
Sente um peixe roçar-lhe a face. Sente o caudal violento da
água, que corre cada vez mais depressa, sente a força da corrente
entre os dedos. Sabe que tem de se agarrar a qualquer coisa, mas a
quê, se tudo está em movimento, se não há nada firme em sítio
nenhum? É então que deteta um movimento por cima de si, e não
pode deixar de pensar no que toda a vida imaginou, com horror e
curiosidade: o que iria fazer se alguma vez de facto caísse ao ribeiro
diante da roda do moinho. Agora é tudo diferente, não pode fazer
nada, e sabe que em breve estará morto, esmagado, prensado,
moído, mas lembra-se de que não deve ir à superfície, que aí não
há maneira de escapar, que aí está a roda. Tem de ficar submerso.
Mas submerso onde?
Com toda a força dá braçadas para nadar. Compreende que
morrer não é nada. Tudo se passa tão depressa que não é nada de
difícil, um passo em falso, um salto, um movimento, e deixas de
pertencer ao mundo dos vivos. Um talo de erva que se corta, um
escaravelho que se pisa, uma chama que se apaga, um homem que
morre, isso não é nada! As suas mãos agarram lodo, chegou ao
fundo.
E então, subitamente, sabe que não irá morrer naquele dia.
Longas hastes de erva acariciam-no, entra-lhe lodo no nariz, sente
uma garra fria no pescoço, ouve um rangido, apercebe-se de
qualquer coisa nas costas e a seguir nos calcanhares; passou por
baixo da roda.
Dá impulso no fundo para voltar à superfície. Enquanto sobe,
tem um vislumbre de um rosto pálido, com grandes olhos vazios e a
boca aberta, a brilhar debilmente na escuridão da água,
provavelmente o espírito de uma criança, que em qualquer altura
teve menos sorte do que ele. Dá umas braçadas. Agora há ar.
Inspira, cospe lama, tosse, agarra-se à erva e, ofegante, trepa para
a margem.
Diante do seu olho direito move-se uma mancha apoiada em
perninhas finas. Pestaneja. A mancha aproxima-se. Sente cócegas
na sobrancelha, pressiona o rosto com a mão e a mancha
desaparece. Lá no alto, paira uma nuvem redonda e cintilante.
Alguém se curva sobre ele. É Claus. O pai ajoelha-se, estende a
mão e toca-lhe no peito, murmura qualquer coisa que ele não
percebe, porque o som agudo continua suspenso no ar,
sobrepondo-se a tudo; porém, enquanto o pai fala, o som vai
diminuindo de intensidade. Claus põe-se de pé, e faz-se silêncio.
Agora Agneta também está ali. E ao lado dela encontra-se Rosa.
Cada vez que aparece alguém, o rapaz leva uns instantes a
reconhecer-lhe o rosto, algo no seu cérebro se tornou lento e não
quer voltar a funcionar. O pai faz movimentos circulares com as
mãos. Ele sente a força voltar. Quer falar, mas da garganta só lhe
saem grasnidos.
Agneta acaricia-lhe a face.
— Duas vezes — diz ela. — Foste duas vezes batizado.
Ele não percebe o que aquilo quer dizer. Talvez seja por causa
da dor de cabeça, uma dor tão intensa, que não só o domina a ele,
mas ao próprio mundo — a todas as coisas visíveis, à Terra, às
pessoas que o rodeiam, e também à nuvem lá no alto, que continua
branca como neve acabada de cair.
— Anda para casa — diz Claus.
A sua voz parece repreendê-lo, como se o tivesse apanhado a
fazer qualquer coisa proibida.
O rapaz endireita-se, inclina-se para a frente e vomita. Agneta
ajoelha-se junto dele e segura-lhe a cabeça.
Então ele vê como o pai levanta a mão e dá uma bofetada a
Sepp, que quase o faz perder o equilíbrio. O moço leva a mão à
face e endireita-se, quando o atinge uma nova bofetada. A esta
segue-se uma terceira, de novo com tanta força, que quase o faz
cair ao chão. Claus esfrega as mãos doridas e Sepp afasta-se aos
ziguezagues. O rapaz percebe que ele só está a representar: não
lhe doeu muito, pois o moço é muito mais forte do que o moleiro.
Mas também sabe que, quem quase matou o filho de quem lhe dá o
pão para a boca, tem de ser castigado, tal como por seu lado o
moleiro e todos os outros sabem que não o pode pôr a andar, pois
Claus precisa de três moços, menos não são suficientes, e, se falta
um, pode demorar semanas até aparecer um novo moço de moleiro
à procura de trabalho, e os moços de lavoura não querem trabalhar
no moinho por este ficar demasiado longe da aldeia e a profissão
ser tão pouco considerada que só os desesperados estão dispostos
a aceitá-la.
— Anda para casa — diz também Agneta.
É quase noite. Estão todos com pressa, pois ninguém quer ficar
fora de casa. Todos sabem o que se passa à noite na floresta.
— Duas vezes batizado — repete Agneta.
Quando lhe vai perguntar o que quer dizer, o rapaz repara que
ela já não está ali. Atrás dele, murmura o ribeiro, e a espessa cortina
da janela do moinho filtra um pouco de luz para o exterior. Claus já
deve ter acendido a vela de sebo. Como é óbvio, ninguém se vai dar
ao trabalho de o levar para casa.
A tremer de frio, põe-se de pé. Sobreviveu à roda do moinho. A
roda do moinho. Sobreviveu-lhe. Sente-se indizivelmente leve. Dá
um salto, mas quando desce de novo, as pernas cedem e cai sobre
os joelhos, cheio de dores.
Ouve-se um murmúrio vindo da floresta. Sustém a respiração e
põe-se de ouvido alerta: ora é um grunhido, ora um sibilar, cessa
durante um momento, e logo recomeça. Sente que lhe bastaria
escutar com mais atenção para distinguir palavras. Mas não quer
fazê-lo de modo nenhum. A coxear, corre para o moinho.

Passam semanas, até a perna lhe permitir subir de novo para a


corda. Logo no primeiro dia aparece uma das filhas do padeiro e
senta-se na erva. Ele conhece-a de vista, é frequente o pai dela ir
ao moinho, pois desde que Hanna Krell lhe rogou uma praga depois
de uma discussão, sofre de reumatismo. Com as dores não
consegue dormir e, por esse motivo, precisa de se proteger com a
magia de Claus.
O rapaz pergunta-se se deverá ir-se embora dali. Mas, em
primeiro lugar, seria indelicado e, em segundo lugar, não se
esqueceu de que, na última festa da aldeia, foi ela a ganhar o
concurso de lançamento de pedras. Deve ser muito forte, e ele
ainda tem o corpo todo dorido. Por isso, suporta a sua presença.
Embora só a veja pelo canto do olho, repara que tem os braços e a
cara cobertos de sardas e que, ao sol, os seus olhos são azuis
como água.
— O teu pai disse ao meu que o Inferno não existe — diz ela.
— Não disse nada.
Consegue dar quatro passos antes de cair.
— Disse, pois.
— Nunca disse tal coisa — afirma ele com determinação. —
Juro.
Está seguro de que ela tem razão. Mas o pai também podia ter
dito o contrário: já estamos no Inferno, para todo o sempre, e nunca
sairemos dele. Ou podia ter dito que estamos no Céu. Já ouviu o pai
dizer tudo o que se pode dizer.
— Sabes? — prossegue ela. — O Peter Steger matou um vitelo
junto da velha árvore. Foi o ferreiro que contou. Estavam lá os três.
O Peter Steger, o ferreiro e o velho Heinerling. À noite foram ao
prado e deixaram lá o vitelo para a Fria.
— Também já lá fui uma vez — afirma ele.
Ela ri. Como é natural, não acredita nele, e com razão, porque
ele nunca lá esteve; ninguém vai ao prado sem que isso seja
necessário.
— Juro! — insiste ele. — Acredita em mim, Nele.
Volta a subir para a corda, e aí fica, sem se agarrar. Agora já
consegue fazer isso. Para dar força ao juramento, coloca dois dedos
da mão direita sobre o coração. Mas depois, apressa-se a retirar a
mão, porque se recorda de que a pequena Käthe Loser no ano
anterior fez um juramento falso aos pais e duas noites depois
morreu. Para sair daquela situação embaraçosa, finge perder o
equilíbrio e deixa-se cair estendido na erva.
— Continua — diz ela imperturbável.
— Continuo o quê? — pergunta, com o rosto contorcido de dor.
— Com a corda. É bom saber fazer uma coisa que mais ninguém
sabe.
Ele encolhe os ombros. Não consegue perceber se Nele está a
troçar dele.
— Tenho de ir andando — diz ela, pondo-se de pé de um salto e
desatando a correr.
Enquanto a segue com os olhos, esfrega o ombro dorido. Em
seguida, volta a subir para a corda.
Na semana que se segue, têm de levar um carro de farinha à
quinta de Reutter. Martin Reutter levou-lhes o trigo três dias antes,
mas não pode ir buscar a farinha, porque se lhe partiu o timão. O
seu moço Heiner passou por lá na véspera para os informar.
A situação é complicada. Não é possível enviar o rapaz com a
farinha, pois ele podia fugir com tudo para não mais voltar, e um
moço de lavoura nunca é de fiar. Mas Claus não pode deixar o
moinho, porque há demasiado trabalho, tem de ser Agneta a
acompanhá-lo, mas como não pode atravessar a floresta sozinha
com Heiner, e toda a gente sabe do que os moços são capazes, o
rapaz vai com eles.
Partem antes do romper do dia. À noite choveu muito. Há neblina
a pairar entre os troncos das árvores, as copas parecem
desaparecer no céu ainda escuro e os prados estão saturados de
humidade. O burro vai avançando num passo arrastado, para ele
tanto faz. O rapaz conhece-o desde que se lembra. Passou muitas
horas acocorado ao seu lado no estábulo, a ouvi-lo resfolegar
baixinho, acariciou-o e sente-se feliz com a forma como o animal lhe
encosta à face o focinho sempre húmido. É Agneta que vai a pegar
nas rédeas, o rapaz vai sentado ao seu lado na boleia, com os olhos
semicerrados, aconchegado a ela. Atrás, em cima das sacas de
farinha, vai Heiner; às vezes solta uns grunhidos, outras ri para
consigo, sem que se saiba se vai a dormir ou acordado.
Se tivessem ido pelo caminho largo, podiam ter chegado ao seu
destino nessa mesma tarde, mas esse caminho passa demasiado
perto da clareira da floresta onde está o velho salgueiro. E quem
ainda não nasceu não deve passar nas proximidades da Fria. Por
isso, têm de fazer um desvio pela estreita vereda coberta de erva,
que penetra mais na floresta, passando pelo Monte dos Áceres e
pelo grande Lago dos Ratos.
Agneta fala do tempo em que ainda não era mulher de
Ulenspiegel. Um dos filhos do padeiro Holtz queria casar com ela.
Ameaçara alistar-se como mercenário se ela recusasse. Tinha
querido marchar para leste, para as planícies da Hungria, a fim de
lutar contra os turcos. E ela quase o tinha aceitado — porque não?,
pensara, se afinal são todos iguais. Mas nessa altura Claus chegara
à aldeia, um católico do Norte, o que já de si era invulgar, e quando
Agneta, incapaz de lhe resistir, casou com ele, o jovem Holtz não
marchou para leste. Tinha ficado a fazer pão e, quando, dois anos
mais tarde, a peste chegou à aldeia, foi o primeiro a morrer; e
quando o seu pai também morreu, fora o irmão a encarregar-se da
padaria.
Agneta suspirou e acariciou a cabeça do rapaz.
— Tu não sabes como ele era. Jovem, esbelto e muito diferente
dos outros.
O rapaz levou um momento até perceber de quem estava ela a
falar.
— Ele sabia tudo. Sabia ler. E, além do mais, era bonito. Era
forte, tinha olhos claros, e cantava e dançava melhor do que todos
os outros. — Refletiu durante algum tempo, antes de declarar — E
era… vivo!
O rapaz vai a cabecear. Preferia ouvir uma história.
— Ele é boa pessoa — diz Agneta. — Nunca te esqueças disto.
O rapaz não consegue impedir um bocejo.
— O que acontece é que tem sempre a cabeça noutro sítio.
Dantes eu não percebia isso. Não sabia que há pessoas assim.
Como podia saber? Nunca saí desta aldeia. E também não sabia
que alguém como ele nunca se poderia sentir bem aqui. A princípio,
só estava com a cabeça noutro sítio de vez em quando, mas a
maior parte do tempo estava comigo, pegava-me ao colo e ríamos,
e ele tinha uns olhos tão claros! Só às vezes estava enfiado nos
livros ou nas suas experiências, a deitar fogo a qualquer coisa ou a
misturar pós. Depois, muitas vezes passava mais tempo com os
livros e menos comigo, e depois ainda menos, e agora? Tu vês. No
mês passado, quando a roda do moinho parou, demorou três dias a
consertá-la, pois antes tinha querido fazer qualquer experiência no
prado. O senhor moleiro não tinha tempo para o seu moinho. E
ainda por cima consertou-a mal, o eixo ficou perro, e tivemos de ir
pedir ajuda a Anselm Melker. Mas para ele tanto faz!
— Contas-me uma história?
Agneta diz que sim com a cabeça.
— Em tempos que já lá vão — começa ela a contar —, quando
as pedras ainda eram jovens e não havia duques nem era preciso
pagar dízimas, durante um longo período, quando mesmo no
inverno não nevava…
Hesita, leva a mão à barriga e encurta as rédeas. Agora o
caminho é estreito e passam por cima de grandes raízes. Se o burro
desse um passo em falso, o carro poderia virar-se.
— Em tempos que já lá vão — recomeça Agneta —, uma
rapariga encontrou uma maçã de ouro. Quis partilhá-la com a mãe,
mas cortou-se num dedo e das gotas de sangue cresceu uma
árvore que deu muitas maçãs, embora não de ouro, mas
encarquilhadas e repugnantes; e quem as comia, morria de uma
morte pavorosa. Isso porque a mãe dela era uma bruxa que protegia
as maçãs de ouro como a menina dos seus olhos. A cada cavaleiro
que passava por ali e pedia a mão da filha, ela fazia-o em pedaços e
devorava-o, ao mesmo tempo que perguntava a rir: «Então entre
vós não há nenhum herói?» Quando por fim chegou o inverno e
tudo ficou coberto de neve fria, a pobre filha tinha de limpar a casa e
de cozinhar para a mãe, dia após dia, sem nunca acabar.
— Neve?
Agneta permaneceu em silêncio.
— Tu disseste que no inverno não havia neve.
Agneta continua calada.
— Desculpa — diz o rapaz.
— Então a pobre filha tinha de limpar a casa e de cozinhar para
a mãe, dia após dia, sem nunca acabar, embora fosse tão formosa
que nenhum homem podia olhar para ela sem se enamorar.
Agneta cala-se de novo, e depois geme baixinho.
— O que é?
— Aconteceu que a filha se pôs em fuga no pico do inverno, pois
ouvira dizer que muito, muito, muito longe, à beira de um grande
oceano, havia um jovem digno da maçã de ouro. Mas primeiro ela
tinha de fugir, o que era difícil, pois a mãe, a bruxa, estava sempre
vigilante.
Agneta ficou de novo em silêncio. Agora, a floresta é muito
cerrada, só lá muito no alto, entre as copas das árvores, brilha uma
nesga de céu azul. Agneta puxa as rédeas e o burro imobiliza-se.
Um esquilo salta para o caminho e fita-os com olhos frios; depois,
rápido como uma ilusão, desaparece. O moço atrás deles para de
ressonar e presta atenção.
— O que é? — repete o rapaz.
Agneta não responde. De repente, ficou branca como um
cadáver. E o rapaz vê que ela tem a saia toda coberta de sangue.
Por instantes, admira-se por até então não ter reparado numa
mancha tão grande e só depois percebe que até então não havia
sangue.
— Vem aí — diz Agneta. — Tenho de voltar para trás.
O rapaz olha-a fixamente.
— Água quente — diz ela numa voz trémula. — E o Claus.
Preciso de água quente e do Claus, com as suas fórmulas mágicas
e as suas ervas. E da parteira da aldeia, a Lise Köllerin.
O rapaz olha-a fixamente. Heiner olha-a fixamente. O burro olha
fixamente o que está à sua frente.
— Se não for assim, morro — diz ela. — Não pode deixar de ser.
Não se pode fazer nada. Aqui não posso virar o carro, apoio-me ao
Heiner, vamos a pé, e tu ficas aqui.
— Porque não continuamos de carro?
— Só à noite iríamos chegar à quinta do Reutter, é mais rápido
voltar ao moinho a pé. — Apeia-se a gemer. O rapaz quer segurar-
lhe no braço, mas ela afasta-o. — Percebeste?
— O quê?
Agneta respira com dificuldade.
— Tem de ficar alguém com a farinha. Vale tanto como meio
moinho.
— Sozinho na floresta?
Agneta geme.
Heiner, com um ar apático, olha de um para o outro.
— Para aqui estou eu com dois palermas. — Agneta coloca as
mãos sobre as faces do rapaz e olha-o nos olhos tão fixamente que
ele vê o seu reflexo. A respiração dela é entrecortada e sibilante. —
Estás a perceber? — pergunta baixinho. — Meu coração, meu
menino, estás a perceber? Ficas aqui à espera.
As palpitações no seu peito são tão fortes que pensa que a mãe
vai ouvir. Quer dizer-lhe que tomou uma má decisão, que a dor lhe
perturba a lucidez. Não conseguirá lá chegar a pé, levará horas, e
está a perder demasiado sangue. Mas tem a garganta tão seca que
as palavras não saem. Sem saber o que fazer, vê-a afastar-se,
apoiada a Heiner, a cambalear. Meio apoiada no moço, meio
arrastada, a cada passo Agneta solta um gemido. Durante pouco
tempo, o rapaz ainda a vê, até os gemidos se tornarem mais fracos
e ele ficar sozinho.
Distrai-se durante algum tempo a puxar as orelhas ao burro. A
direita, a esquerda, a direita, e, a cada vez, o animal produz um
ruído triste. Porque é tão paciente, porque é tão bom, porque não
morde? Fita-lhe o olho direito. Como uma bola de cristal, está no
seu orifício, escuro, aquoso e vazio. Não pestaneja, só estremece
um pouco quando lhe toca com o dedo. O rapaz pergunta-se qual a
sensação de ser um burro. Encerrado numa alma de burro, com
uma cabeça de burro em cima dos ombros, com pensamentos de
burro dentro dela, como se sentirá?
Sustém a respiração e põe-se à escuta. O vento: ruídos dentro
de ruídos, por trás de outros ruídos, zumbidos e murmúrios,
rangidos, gemidos e chiados. O sussurro das folhas sobreposto ao
sussurro das vozes; e tem de novo a impressão de que só precisaria
de escutar com atenção durante algum tempo para perceber o que
dizem. Começa a cantarolar para consigo, mas o som da sua voz
parece-lhe o de um desconhecido.
É então que se apercebe de que as sacas de farinha estão
atadas com uma corda; é uma corda comprida que vai de uma saca
à seguinte. Aliviado, pega na faca e começa a abrir entalhes nos
troncos.
Mal vê a corda esticada entre as árvores, à altura do peito,
sente-se melhor. Verifica a sua firmeza e depois descalça os
sapatos, sobe para ela e, com os braços abertos, vai até ao meio. Aí
fica, diante do carro e do burro, sobre o caminho enlameado. Perde
o equilíbrio, salta para o chão e depressa sobe de novo. Uma
abelha sai dos arbustos, desce outra vez e desaparece no verde.
Devagar, o rapaz põe-se em movimento. Quase a chegar ao outro
extremo, cai outra vez.
Durante algum tempo, fica deitado. Porquê levantar-se? Vira-se
até ficar de costas. É como se o tempo tivesse parado. Qualquer
coisa se modificou: o vento continua a soprar, as folhas continuam a
mover-se e as tripas produzem ruídos sonoros, mas nada disso tem
que ver com o tempo. Antes era agora, agora é agora, e no futuro,
quando tudo for diferente, quando houver outras pessoas e
ninguém, à exceção de Deus, se recordar dele, de Agneta, de Claus
e do moinho, continuará a ser agora.
A faixa de céu acima dele tornou-se azul-escura e agora cobre-
se de um cinzento aveludado. Sombras descem a rastejar pelos
troncos das árvores, e de repente é noite cá em baixo. A luz lá no
alto aglomera-se numa pequena centelha. E depois é noite.
Começa a chorar. Mas como não há ali ninguém que o possa
ajudar, e como só se pode chorar pouco tempo antes que se
esgotem as forças e as lágrimas, finalmente para.
Tem sede. Agneta e Heiner levaram o odre com a cerveja, Heiner
atou-o sem que ninguém se lembrasse de lhe deixar qualquer coisa
para beber. Tem a boca seca. Deve haver um ribeiro nas
imediações, mas como encontrá-lo?
Os ruídos são muito diferentes do que eram de dia: outros sons
de animais, outro vento, e os estalidos dos ramos também não são
os mesmos. Põe-se de ouvido à escuta. Lá em cima deve estar
mais seguro. Começa a subir a uma árvore. Mas é difícil quando
não se vê quase nada. Ramos finos partem-se e a casca rugosa
corta-lhe os dedos. Um sapato escorrega-lhe do pé; ouve-o bater
num ramo, depois noutro. Agarra-se ao tronco, dá impulso e
consegue subir um pouco. Depois não aguenta mais.
Fica ali durante algum tempo. Imaginara poder dormir num ramo
grosso, apoiado ao tronco, mas agora dá-se conta de que não é
possível. Não há nada fofo numa árvore e, para não cair, uma
pessoa tem de estar constantemente agarrada. Um ramo faz-lhe
pressão no joelho. A princípio pensa que poderá aguentar, mas
depressa se torna insuportável. O ramo sobre o qual está sentado
também o magoa. Não pode deixar de pensar no conto da bruxa
má, da filha formosa, do cavaleiro e da maçã de ouro: alguma vez
irá saber como termina?
Desce da árvore. No escuro é difícil, mas ele é hábil, não
escorrega e consegue chegar ao chão. Só não consegue encontrar
o sapato. Ainda bem que pelo menos o burro está ali. O rapaz
aninha-se contra o corpo suave do animal, ligeiramente
malcheiroso.
Ocorre-lhe que a mãe poderia regressar. Se morreu no caminho
para casa, podia surgir de repente. Podia passar junto dele,
murmurar qualquer coisa, mostrar-lhe o seu rosto modificado. Essa
ideia deixa-lhe o coração gelado. Será possível amar uma pessoa e,
no momento seguinte, morrer de susto se ela regressa? Recorda-se
de que, no ano anterior, a pequena Gritt andava a apanhar
cogumelos quando encontrou o seu pai que tinha morrido: não tinha
olhos e pairava um palmo acima do solo. E recorda-se também da
cabeça que a avó vira há muitos anos na pedra que marca os limites
na parte de trás da quinta de Steger, levanta a saia, rapariga, e não
é que alguém estivesse escondido atrás da pedra, mas era a pedra
que tinha olhos e lábios, levanta lá a saia e mostra o que tens por
baixo! A avó tinha-lhe contado isso quando era pequeno; agora já
morrera há muito tempo, o seu corpo há muito que se devia ter
decomposto, os seus olhos tinham-se transformado em pedras e o
seu cabelo em erva. Esforça-se por não pensar em coisas daquelas,
mas não consegue e, acima de tudo, não consegue tirar uma ideia
da cabeça: era preferível que Agneta estivesse morta, presa para
todo o sempre nas profundezas do Inferno, do que aparecer de
repente dos arbustos sob a forma de um espírito.
O burro faz um movimento brusco, ouve-se um estalido de
madeira perto, e ele sente qualquer coisa quente nas calças. Um
corpo possante passa e volta a afastar-se, e as calças dele ficam
frias e pesadas. O burro resfolega, também ele sentiu. O que era
aquilo? Agora há um fulgor esverdeado entre os ramos, maior do
que um pirilampo, embora menos brilhante, e o medo faz com que
ideias febris lhe encham a cabeça. Sente calor, e depois sente frio.
A seguir, de novo calor. Apesar de tudo pensa: Agneta, viva ou
morta, não deve saber que molhei as calças, pois de outro modo
dava-me umas palmadas. E quando a vê, a gemer deitada debaixo
de um arbusto, que, ao mesmo tempo, é a fita da qual a Terra está
suspensa da Lua, o pouco de juízo que lhe resta diz-lhe que
adormeceu profundamente, esgotado pelo medo e por todos
aqueles sobressaltos, misericordiosamente abandonado pelas suas
forças vacilantes, sobre o solo frio e por entre todos os ruídos
noturnos da floresta, junto do burro que ressona baixinho. E, assim,
não sabe que, não longe dali, a mãe está efetivamente a gemer e a
suspirar, deitada no solo, debaixo de um arbusto, não muito
diferente do que ele vira no sonho, um zimbro com bagas enormes.
Ali está ela deitada, na escuridão.
Agneta e o moço tinham tomado o caminho mais curto, pois ela
estava demasiado fraca para procurarem um atalho; e por isso
chegaram demasiado perto da clareira da Fria. Agora, Agneta está
deitada no chão sem forças e mal lhe resta voz para gritar; Heiner
está sentado junto dela, com o recém-nascido no colo.
O moço pensa em fugir a correr. O que o retém? Aquela mulher
vai morrer e, se ele estiver por perto, dirão que foi por sua culpa. É
sempre assim. Quando acontece alguma coisa e há um moço por
perto, é sempre ele o culpado.
Podia desaparecer sem deixar rasto, nada o prende à quinta de
Reutter, a comida não é abundante e o lavrador não o trata bem,
bate-lhe tanto como aos próprios filhos. Porque não deixar ali a mãe
e a criança? O mundo é grande, dizem os moços de lavoura, e é
fácil encontrar outros patrões, há muitas outras quintas e, em
qualquer lugar onde se procure, encontra-se sempre algo melhor do
que a morte.
Sabe que à noite não se deve andar na floresta, tem fome e
também uma sede atroz, porque algures pelo caminho perdeu o
odre de cerveja. Fecha os olhos e isso ajuda. Quando uma pessoa
fecha os olhos, fica consigo própria, não há mais ninguém que lhe
faça mal, fica encerrada em si, e só aí está sozinha. Recorda-se de
prados pelos quais correu em criança, recorda-se de pão acabado
de fazer, delicioso e que há muito tempo não lhe dão, e de um
homem que lhe bateu com um varapau, não sabe bem quem era,
talvez o pai. E fugiu do homem, até se encontrar noutro lugar, e
voltou a fugir daí. Fugir é uma coisa maravilhosa. Não há perigo do
qual não se possa escapar quando se tem pernas velozes.
Mas desta vez não corre. Segura a criança, e também segura a
cabeça de Agneta e, quando ela se quer pôr de pé, ampara-a e
ergue-a do chão.
Contudo, Agneta não se teria posto de pé se não se tivesse
recordado do mais poderoso de todos os quadrados mágicos. Fixa
bem isto, dissera Claus, e usa-o apenas em caso de necessidade.
Podes escrevê-lo, mas nunca deves pronunciá-lo. E assim utilizou o
último resquício de lucidez que lhe restava para escrever as sílabas
no solo. Começava com SALOM AREPO, mas não se lembrava do que
se seguia; escrever é três vezes mais difícil quando não se
aprendeu a fazê-lo, quando está escuro e quando se está a perder
sangue. Então, sem ter em conta as indicações de Claus, gritou
numa voz rouca: «Salom Arepo Salom Arepo!» No mesmo instante,
uma vez que simples fragmentos têm poder, recordou-se do resto.

SALOM
AREPO
LEMEL
OPERA
MOLAS

E bastou isso para sentir as forças maléficas recuarem, a


hemorragia abrandar e a criança deslizar-lhe para fora do corpo
entre dores como que provocadas por ferros em brasa.
De boa vontade ficaria ali deitada. Mas sabe que quem perdeu
muito sangue, se fica deitado, continua para sempre deitado.
— Dá-me o bebé.
O moço dá-lho.
A noite está tão escura que Agneta, como se fosse cega, não
consegue vê-lo, mas quando pega no pequeno ser apercebe-se de
que ainda está vivo.
Ninguém saberá de ti, pensa. Ninguém se irá recordar, apenas
eu, a tua mãe, e eu não me esqueço, porque não posso esquecer.
Pois todos os demais te esquecerão.
Foi o mesmo que disse aos outros três, que morreram à
nascença. E é um facto que ainda sabe tudo o que há a saber sobre
eles: o odor, o peso e a forma, a cada vez um pouco diferente nas
suas mãos. Nem sequer tiveram nomes.
Os joelhos fraquejam-lhe, mas Heiner apoia-a. Por instantes, é
forte a tentação de se deitar de novo. Mas perdeu demasiado
sangue, a Fria não está longe e os pequenos entes também
poderiam encontrá-la. Entrega a criança a Heiner e dispõe-se a
partir, mas cai imediatamente, ficando deitada sobre raízes e ramos
secos, e sente como a noite é imensa. Porquê resistir? Como seria
fácil. Deixar-se ir simplesmente. Que fácil seria.
Em vez disso, abre os olhos. Sente as raízes debaixo de si.
Treme de frio e compreende que ainda está viva.
Volta a levantar-se. Ao que parece, deixou de perder sangue.
Heiner estende-lhe a criança; ela pega-lhe, e repara imediatamente
que já não está viva, por isso devolve-lha, pois precisa das duas
mãos para se agarrar ao tronco de uma árvore. O moço pousa-a no
chão, mas Agneta diz-lhe qualquer coisa numa voz sibilante e ele
torna a pegar-lhe. Como é natural, não é possível deixá-la ali: ficaria
coberta de musgo, enovelada em plantas, os escaravelhos instalar-
se-iam nos seus membros e o seu espírito não teria repouso.
Nesse preciso momento, acontece que Claus, no sótão do
moinho, tem o pressentimento de que há qualquer problema.
Murmura rapidamente uma oração, deita uma pitada de pó de
mandrágora na chama da sua lamparina fumegante. O mau
presságio confirma-se: em vez de aumentar, a chama extingue-se
de imediato e o cheiro pestilento enche o sótão.
Às escuras, Claus escreve na parede um quadrado de força
intermédia:

MILON
IRAGO
LAMAL
OGARI
NOLIM

A seguir, pelo seguro, diz sete vezes em voz alta: Nipson


anomimata mi monan ospin. Sabe que é grego. Não sabe o que
significa, mas tanto se pode ler do princípio para o fim como do fim
para o princípio, e frases desse tipo têm um poder especial. Depois
torna a deitar-se no soalho de tábuas para continuar com o seu
trabalho.
Nos últimos tempos observa todas as noites o movimento da
Lua. Os seus progressos são tão lentos que o desesperam. A cada
vez, a Lua nasce num sítio diferente do da noite anterior e o seu
percurso nunca é igual. E como, ao que parece, ninguém sabe
explicar isto, Claus decidiu ser ele próprio a esclarecer o mistério.
— Quando há alguma coisa que ninguém sabe — disse-lhe uma
vez Wolf Hüttner —, temos de ser nós a descobrir.
Hüttner, que foi seu professor, é um quiromante e nigromante de
Constança, guarda-noturno de profissão. Claus Ulenspiegel esteve
ao seu serviço um inverno inteiro, e não passa um dia em que não
pense nele com gratidão. Hüttner ensinou-lhe os quadrados, as
fórmulas mágicas e o poder das ervas, e Claus não perdia uma
palavra quando ele lhe falava dos pequenos e dos grandes entes,
dos anciãos de outros tempos, do povo das profundezas da Terra e
dos espíritos do ar, e também quando ele lhe dizia que não se deve
confiar nos letrados, porque não sabem nada, embora não o
admitam para não caírem em desgraça junto dos seus príncipes; e
quando, depois do degelo, Claus se foi embora, levava no saco três
livros da coleção de Hüttner. Nessa altura, ainda não sabia ler, mas
isso ensinou-lhe um pastor de Augsburgo, a quem curou o
reumatismo, e, quando seguiu caminho, também levava três livros
da biblioteca do pastor. Os livros eram pesados, uma dúzia deles no
saco era como chumbo. Depressa compreendeu que, ou deixava os
livros, ou tinha de se fixar, de preferência num sítio recôndito,
afastado das vias principais, pois os livros são caros e nem todos os
possuidores se tinham separado deles voluntariamente; e, se
tivesse azar, o próprio Hüttner podia bater-lhe à porta, lançar-lhe
uma maldição e reclamar o que lhe pertencia.
Quando os livros foram demasiados para seguir viajem, foi o
destino a tomar em mãos a sua sorte. Interessou-se pela filha de um
moleiro, uma rapariga bem-parecida, alegre e que tinha força, e que
lhe agradava, até um cego o poderia ver. Não foi difícil conquistá-la,
era bom bailarino, conhecia as fórmulas mágicas e as ervas certas
para prender um coração, de um modo geral sabia mais do que
qualquer outro da aldeia, e ela apreciava tudo isso. De início o pai
dela teve dúvidas, mas nenhum dos outros moços de lavoura
parecia poder tomar em mãos o moinho, de modo que cedeu. E,
durante algum tempo, tudo correu bem.
A dada altura, Claus sentiu que ela estava dececionada, a
princípio só às vezes, depois com mais frequência. E a seguir,
constantemente. Os livros dele não lhe agradavam, não gostava que
ele tivesse de resolver os mistérios do mundo, o que, na verdade, é
uma tarefa de monta, que não deixa forças para mais nada, nem
sequer para a rotina diária do moinho. De súbito, também a Claus
tudo aquilo pareceu um erro: o que faço aqui, o que tenho que ver
com estas nuvens de farinha, com estes campónios idiotas, sempre
a quererem enganar-nos com os pagamentos, com os criados de
compreensão lenta que nunca fazem o que se lhes manda? Por
outro lado, como é frequente dizer para consigo, a vida conduz-nos
sempre para algum lado — e, se não estivesses aqui, estarias
noutro sítio qualquer, e tudo seria igualmente estranho. O que de
facto o preocupava era a questão de saber se iria para o Inferno por
ter roubado tantos livros.
Mas uma pessoa não está destinada a vegetar sem fazer ideia
de nada e tem de obter o saber onde o encontra. O que não é fácil,
quando não se tem ninguém com quem falar. Há tantas questões
que te ocupam, mas ninguém quer ouvi-las e saber as tuas ideias
sobre o que é o Céu, como surgem as pedras, como nascem as
moscas e toda a vida que pulula por toda a parte, em que língua
falam os anjos entre si e como Deus Nosso Senhor se criou a si
mesmo e se criará para todo o sempre, dia após dia, pois, se não o
fizesse, tudo acabaria de um momento para o outro — quem, se não
Deus, poderia impedir que o mundo deixasse de existir?
Para ler alguns livros precisou Claus de meses, para outros de
anos. A alguns conhece de cor, embora não os compreenda. E, pelo
menos uma vez por mês, regressa, confuso, ao mesmo volume
grosso, em latim, que roubou de uma casa paroquial de Tier, onde
lavrava um incêndio. Não foi ele a atear o fogo, mas estava nas
proximidades e, ao sentir o cheiro, aproveitou a oportunidade. Sem
ele, o livro teria ardido. Era seu por direito. Contudo, não conseguia
lê-lo.
Tem setecentas e sessenta e cinco páginas, impressas numa
letra condensada, algumas com imagens que parecem saídas de
pesadelos: homens com cabeças de pássaro, uma cidade com
pináculos e altas torres construída sobre uma nuvem, da qual cai
chuva em riscos finos, um cavalo com duas cabeças na clareira de
uma floresta, um inseto de asas compridas, uma tartaruga que trepa
para o céu sobre um raio de sol. Falta-lhe a primeira folha, na qual
devia estar o título; de igual modo, alguém devia ter arrancado a
folha com os números vinte e três e vinte e quatro, bem como outra,
com o quinhentos e dezanove e o quinhentos e vinte. Claus já foi
três vezes com o livro a casa do sacerdote para lhe pedir ajuda, mas
de cada vez este mandou-o embora com brusquidão, explicando
que só os homens cultos tinham competência para lidar com os
textos latinos. A princípio, ainda pensou lançar-lhe uma maldição
suave — reumatismo, uma praga de ratos na casa paroquial ou leite
estragado —, mas depois compreendeu que o pobre pároco de
aldeia, que bebe em demasia e se repete constantemente nos
sermões, na verdade pouco latim sabe. E assim, quase se resignou
com o facto de nunca poder vir a ler esse livro, que possivelmente
continha a chave de tudo. E quem podia iniciá-lo no latim, ali, num
moinho esquecido de Deus?
Apesar disso, nos últimos anos descobriu uma quantidade de
coisas. Essencialmente, veio entretanto a saber qual a origem das
coisas, como surgiu o mundo e porque é tudo como é: os espíritos,
a matéria, as almas, a madeira, a água, o céu, o couro, o trigo, os
grilos. Hüttner orgulhar-se-ia dele. Não lhe falta muito para
preencher as últimas lacunas. Então ele próprio há de escrever um
livro que conterá todas as respostas, e os letrados nas suas
universidades, envergonhados, irão maravilhar-se e arrepelar os
cabelos.
Mas não será fácil. Tem as mãos grandes e a pena delgada está
sempre a partir-se entre os seus dedos. Tem de praticar muito antes
de ser capaz de encher um livro inteiro com essas letras traçadas a
tinta, semelhantes a aranhiços. Mas terá de fazê-lo, pois não pode
guardar para sempre no pensamento tudo o que descobriu. É
demasiado, provoca-lhe dores de cabeça, e muitas vezes sente-se
tonto devido a todo o saber que o seu cérebro contém.
Talvez um dia possa ensinar qualquer coisa ao filho. Reparou
que às vezes, à hora das refeições, o rapaz o escuta com atenção,
quase contra vontade e esforçando-se por que ninguém repare. É
magro e demasiado fraco, mas parece esperto. Havia pouco, Claus
apanhara-o a fazer malabarismo com três pedras, com toda a
facilidade e sem esforço — um disparate, mas um sinal de que o
miúdo talvez não fosse tão bronco como os outros. Poucos dias
antes, perguntara-lhe quantas estrelas havia e, como não passara
muito tempo desde que Claus as contara, pudera responder-lhe não
sem orgulho. Tem esperança de que o filho que Agneta traz no
ventre seja outro rapaz; com um bocado de sorte, mais forte do que
aquele, de modo a poder ajudá-lo melhor no trabalho e a quem ele
possa ensinar algo.
O soalho de madeira é demasiado duro. Mas se fosse mais
mole, ele adormeceria e não poderia observar a Lua. Claus dera-se
ao trabalho de montar uma rede de fios finos na janela oblíqua do
sótão — os seus dedos são grossos e desajeitados, e a lã que
Agneta fia não lhe permite trabalhá-la com facilidade. Mas,
finalmente, conseguiu dividir a janela em pequenos quadrados
quase do mesmo tamanho.
Por isso está ali deitado, a olhar fixamente. O tempo passa.
Boceja. Tem os olhos lacrimejantes. Não podes adormecer, diz para
consigo, não podes adormecer nem por nada!
Finalmente, a Lua aparece, prateada e quase redonda com
manchas semelhantes a cobre sujo. Surgiu na fila inferior, embora
não no primeiro quadrado, como Claus estava à espera, mas sim no
segundo. Por que razão? Pestaneja. Doem-lhe os olhos. Luta contra
o sono, cabeceia, acorda de novo, volta a cabecear, mas agora está
acordado e de olhos piscos, e a Lua já não está na segunda, mas
na terceira fila a contar de baixo, e no segundo quadrado a partir da
esquerda. O que se passou? Infelizmente, os quadrados têm
tamanhos diferentes, porque a lã se desfia e os nós ficam
demasiado grossos — mas porque se comporta a Lua assim? É um
astro pérfido, traiçoeiro e manhoso; não é por acaso que, nas
cartas, a sua imagem simboliza a decadência e a traição. Para
registar onde está a Lua num dado momento, é preciso conhecer o
tempo, mas, com todos os diabos, como ler o tempo senão pela
posição da Lua? É de dar em doido! Para cúmulo, um dos fios
soltou-se; Claus endireita-se e, com os dedos inábeis, tenta atá-lo
de novo. E mal consegue fazê-lo, passa uma nuvem. O luar pálido
resplandece na sua orla, mas já não se vê o sítio exato onde a Lua
se encontra. Claus fecha os olhos doridos.
Quando, de manhã, acorda a tremer de frio, apercebe-se de que
sonhou com farinha. É inacreditável, mas isso está sempre a
acontecer. Antes tinha sonhos cheios de luz e de ruído, nos quais
havia música e às vezes espíritos que falavam com ele. Mas isso foi
há muito tempo. Agora sonha com farinha.
Enquanto se levanta de mau humor, apercebe-se de que não foi
o sonho com a farinha que o acordou, mas vozes vindas do exterior.
Àquela hora? Inquieto, recorda-se do pressentimento da véspera à
noite. Vai à janela e, nesse momento, a penumbra cinzenta da
floresta abre-se, e dela saem Agneta e Heiner a coxear.
Contra todas as expectativas, conseguiram. A princípio, o moço
carregou com ambos, a mulher viva e o filho morto; depois, quando
já não podia mais, Agneta seguiu pelo seu pé, apoiada nele; depois,
até a criança lhe pareceu demasiado pesada, e também demasiado
perigosa, pois quem morre sem batismo atrai os espíritos, tanto os
da superfície como os das profundezas, e foi a própria Agneta a
levá-la. E assim, às apalpadelas, tinham encontrado o caminho.
Claus desce a escada, tropeça nos moços que ainda roncam,
afasta para o lado uma cabra, abre a porta de rompante e corre para
o exterior, no preciso momento em que Agneta lhe desfalece nos
braços. Com todo o cuidado, deita-a e apalpa-lhe o rosto. Sente-lhe
a respiração. Desenha-lhe um pentagrama na testa, com a ponta
para cima, bem entendido, para que cure, e em seguida respira
fundo e diz, numa única expiração: Não deveis fazer isto, deveis
desfolhar todas as árvores, passar a vau todas as águas, subir
todas as montanhas e evitar todos os anjos do Senhor; e todos os
sinos a tocar, todas as missas a serem cantadas e todos os
Evangelhos lidos devolver-lhe-ão a saúde. Não sabe ao certo o que
significam as palavras, mas o encantamento é antiquíssimo, e ele
não conhece outro mais poderoso para afastar os espíritos da noite.
O mercúrio também seria bom, mas acabou-se, de maneira que
desenha o seu símbolo no ventre de Agneta — a cruz com o oito,
que simboliza Hermes, o grande Mercúrio; o símbolo não produz um
efeito tão bom como o verdadeiro mercúrio, mas é melhor do que
nada. Depois grita a Heiner:
— Depressa, vai buscar satirião ao sótão!
Heiner faz que sim com a cabeça, dirige-se ao moinho em passo
vacilante e sobe a escada a respirar penosamente. Só quando está
lá em cima, no compartimento que cheira a madeira e a papéis
velhos, e fita perplexo a janela com o reticulado de fios de lã, se dá
conta de que não faz ideia do que é satirião. E assim deita-se no
chão, apoia a cabeça na almofada cheia de palha, na qual o moleiro
deixou a marca da sua cabeça, e adormece.
O dia nasce. Depois de Claus ter levado a mulher para o moinho,
o orvalho desaparece no prado, o Sol eleva-se e a neblina matinal
dissipa-se com a luz do meio-dia. O Sol atinge o zénite e dá início à
sua trajetória descendente. Junto do moinho há agora um monte de
terra recém-cavada: é ali que jaz a criança sem nome, que não pôde
ser sepultada no cemitério porque não foi batizada.
E Agneta não morre, o que surpreende todos. Talvez isso se
deva à sua força, talvez aos encantamentos de Claus, talvez ao
satirião, embora este não seja muito poderoso, teria sido melhor
briónia ou acónito, mas, infelizmente, havia pouco. Claus dera as
últimas provisões a Maria Stelling, que tinha tido um filho nado-
morto; corriam rumores de que ela tinha ajudado, pois engravidara,
não do marido, mas de Anselm Melker, mas isso não interessava a
Claus. Também Agneta não morreu, e só quando se deita e,
esgotada, olha em redor, e depois chama baixinho, a seguir mais
alto e, finalmente, grita um nome, se torna claro que, com a
excitação, se tinham esquecido do rapaz e do carro com o burro. E
da preciosa farinha.
Mas o Sol já se está a pôr. É demasiado tarde para meterem
pernas ao caminho. E assim começa uma segunda noite.
De manhã cedo, Claus parte com Sepp e Heiner. Caminham em
silêncio. Claus vai mergulhado nos seus pensamentos, Heiner,
como de costume, pouco fala, e Sepp assobia baixinho, de si para
consigo. Como são homens, e três, não precisam de tomar por um
atalho, mas podem atravessar a clareira onde se encontra o velho
salgueiro. A árvore maléfica ergue-se negra e gigantesca, e os seus
ramos executam movimentos que os ramos nunca fazem. Os
homens esforçam-se por não olhar. Quando chegam de novo à
floresta, respiram de alívio.
Os pensamentos de Claus regressam constantemente à criança
morta. Embora fosse uma menina, a perda fá-lo sofrer. É uma boa
prática, diz para consigo, não amar os filhos demasiado cedo.
Agneta deu à luz tantas vezes, mas só um sobreviveu, e esse
também é enfezado e fracote, e não se sabe se aguentou duas
noites na floresta.
O amor aos filhos… o melhor é resistir-lhe. E também não
devemos afeiçoar-nos a um cão; mesmo quando parece meigo,
pode morder. Devemos sempre manter uma certa distância com os
filhos, pois eles morrem demasiado depressa. Mas, a cada ano que
passa, habituamo-nos mais àquele ser. Ganhamos confiança,
permitimo-nos gostar dele. E, de súbito, desaparece.
Pouco antes do meio-dia descobrem pegadas de um pequeno
ente. À cautela, detêm-se, mas, após um exame cuidadoso, Claus
constata que seguem para sul, para longe dali. Além disso, na
primavera os pequenos entes ainda não são muito perigosos, só no
outono se tornam inquietos e mesquinhos.
Já a tarde vai alta quando encontram o lugar. Por pouco passam
ao largo, porque se tinham desviado um pouco da vereda, a
vegetação rasteira é espessa, e mal se sabe para onde se vai.
Porém, nessa altura, Sepp apercebeu-se do cheiro adocicado e
penetrante. Afastam uns ramos, partem outros, com as mãos a
tapar o nariz. A cada passo, o cheiro torna-se mais intenso. E ali
está o carro, envolto numa nuvem de moscas. As sacas estão
rasgadas e o solo branco de farinha. Atrás do carro encontra-se
qualquer coisa. Parece um monte de peles velhas. Só ao fim de um
momento se apercebem de que são os restos do burro. Só lhe falta
a cabeça.
— Deve ter sido um lobo — diz Sepp a agitar os braços para
enxotar as moscas.
— Teria outro aspeto — diz Claus.
— Seria a Fria?
— Ela não se interessa por burros.
Claus acocora-se e apalpa o corpo do animal. Há um corte
preciso, sem sinal de mordeduras à vista. Sem dúvida que foi uma
faca.
Chamam o rapaz. De ouvido à escuta, chamam de novo. Sepp
olha para cima e emudece. Claus e Heiner continuam a chamar.
Sepp está como que petrificado.
Nesse momento, Claus também olha para cima. O horror
apodera-se dele, agarra-o e aperta-o cada vez mais, de modo que
ele pensa que vai sufocar. Qualquer coisa oscila por cima deles,
branca da cabeça aos pés, a fixá-los lá do alto; e, embora já esteja
escuro, veem-se-lhe os grandes olhos, os dentes arreganhados e o
rosto desfigurado. E agora, todos a olharem para cima, ouvem um
ruído intenso, que parece um soluço, sem o ser. Seja o que for que
se encontra por cima deles, está a rir.
— Desce — grita Claus.
O rapaz, pois na realidade é ele, continua a rir sem se mexer.
Está completamente nu, e todo branco. Deve ter rebolado na
farinha.
— Deus Nosso Senhor — exclama Sepp. — Nosso Senhor nos
valha!
E, enquanto olha para cima, Claus ainda descobre outra coisa,
tão singular que até aí não a havia visto. O que o rapaz tem posto
na cabeça, a rir e nu em cima de uma corda, sem cair, não é um
chapéu.
— Valha-nos a Virgem Santíssima! — exclama Sepp.
E Heiner também se benze.
Claus saca da faca e, com uma mão trémula, grava um
pentagrama num tronco: com a ponta para a direita e com o círculo
bem fechado. À direita, desenha um alfa, à esquerda um ómega, e
depois sustém a respiração, conta lentamente até sete e murmura
um esconjuro — espíritos do mundo da superfície, espíritos das
profundezas, todos os santos, doce Virgem Maria, não nos
abandoneis em nome da Santíssima Trindade.
— Vai buscá-lo e trá-lo para baixo — ordena a Sepp. Corta a
corda.
— Porquê eu?
— Porque te estou a mandar.
Sepp continua a olhar fixamente, sem se mover. Moscas
pousam-lhe no rosto, mas ele não as enxota.
— Então vai tu — diz Claus a Heiner.
Este abre e fecha a boca. Se não lhe fosse tão difícil falar, diria
que acabou de arrastar uma mulher pela floresta, salvando-lhe
assim a vida; que, sem a ajuda de ninguém, conseguiu encontrar o
caminho. Diria que tudo tem limites, inclusive a paciência do mais
dócil. Mas como falar não é o seu forte, cruza os braços e fixa o
olhar no solo.
— Então vai tu — diz Claus a Sepp. — Alguém tem de fazê-lo. E
eu sofro de reumatismo. Se não sobes à árvore, irás arrepender-te
até ao fim da vida.
Tenta recordar-se da fórmula mágica com a qual se obriga os
rebeldes a obedecerem, mas não se lembra das palavras.
Por entre imprecações atrozes, Sepp começa a trepar. Solta
gemidos, pois os ramos não oferecem um apoio firme, e tem de
fazer apelo a todas as suas forças a fim de não erguer a vista para a
figura branca.
— O que quer isto dizer? — grita Claus para o alto. — Que ideia
foi a tua?
— O grande, grande diabo — responde o rapaz alegremente.
Sepp volta a descer. Ao ouvir essa resposta, as forças
abandonam-no. Além disso, recorda-se de novo de que atirou o
rapaz ao ribeiro e, caso este ainda se lembre e continue furioso com
ele, agora não é o momento de o enfrentar. Chega ao solo e abana
a cabeça.
— Então vai tu! — diz Claus a Heiner.
Mas, sem uma palavra, o moço dá meia-volta, afasta-se e
desaparece por entre a vegetação cerrada. Ainda o ouvem durante
algum tempo. Depois, mais nada.
— Sobe outra vez — ordena Claus a Sepp.
— Não!
— Mutus dedit — murmura Claus, que acabou por se recordar
das palavras do esconjuro —, mutus dedit nomen…
— Não funciona — diz Sepp. — Não consigo.
Ouve-se madeira a estalar, ramos a partir-se, e Heiner está de
volta. Apercebeu-se de que a noite não tarda a cair. Não pode ficar
sozinho na escuridão da floresta, não suportaria isso uma segunda
vez. Furioso, enxota as moscas, apoia-se a um tronco e resmunga
de si para consigo.
Quando Claus e Sepp se voltam, reparam que o rapaz está junto
deles. Assustados, recuam de um salto. Como desceu tão
depressa? O rapaz tira o que tinha na cabeça: um pedaço de couro
cabeludo coberto de pelo e com grandes orelhas de burro. Tem uma
crosta de sangue no cabelo.
— Por amor de Deus! — exclama Claus. — Pela Virgem Maria,
por Deus e pelo Menino Jesus!
— Passou muito tempo — diz o rapaz. — Não apareceu
ninguém. Foi uma paródia. E as vozes! Uma grande paródia.
— Que vozes?
Claus olha em redor. Onde está o resto da cabeça de burro? Os
olhos, a queixada com os dentes, o crânio enorme, onde está tudo
isso?
O rapaz ajoelha-se lentamente. Depois, sem parar de rir, cai de
lado e fica imóvel.
Levantam-no, embrulham-no numa manta e fogem dali — para
longe do carro, da farinha, do sangue. Durante algum tempo,
avançam aos tropeções no escuro até se sentirem suficientemente
seguros para pousarem a criança no chão. Não acendem uma
fogueira e não falam uns com os outros para não atraírem
nenhumas atenções. A dormir, o rapaz solta risadinhas, tem a pele
muito quente. Ouvem-se ramos a estalar, o rumor do vento; com os
olhos fechados Claus murmura orações e conjuros, o que ajuda
alguma coisa, pois pouco a pouco sentem-se melhor. Enquanto
reza, tenta calcular o prejuízo: o carro está destruído, o burro morto
e, acima de tudo, a farinha tem de ser substituída. Onde irá arranjar
dinheiro para tudo isso?
Às primeiras horas da manhã, a febre do rapaz desce. Quando
acorda, pergunta, confuso, porque tem os cabelos tão colados e o
corpo branco. Mas encolhe os ombros, como se isso já não fosse
importante, e quando lhe dizem que Agneta está viva, alegra-se e ri.
Encontram um riacho, e ele lava-se; a água está tão fria que treme
da cabeça aos pés. Claus embrulha-o de novo na manta, e seguem
viagem. Pelo caminho, o rapaz conta a história que ouviu Agneta
contar, na qual aparecem uma bruxa, um cavaleiro e uma maçã de
ouro, e que acaba bem, a princesa casa com o herói, e a velha má
fica morta e bem morta.
Nessa noite, de regresso ao moinho, deitado no seu saco de
palha junto do fogão, o rapaz dorme tão profundamente como se
nada pudesse voltar a acordá-lo. É o único que consegue dormir,
pois a criança morta regressa: apenas uma luz trémula na
obscuridade, acompanhada por um leve gemido, mais uma ligeira
brisa do que uma voz. Durante algum tempo, permanece atrás, no
compartimento onde Claus e Agneta estão deitados, mas como não
pode chegar à cama dos pais, já que os pentagramas nas ombreiras
o impedem, passa para o quarto onde o rapaz e os moços de
lavoura estão deitados à volta do fogão quente. Como o pequeno
espírito é cego, surdo e não compreende nada, derruba a bilha do
leite, revolve os panos lavados da tábua da cozinha e enrola-se na
cortina da janela antes de desaparecer — rumo ao limbo, onde os
não batizados irão gelar durante dez vezes cem mil anos antes que
o Senhor lhes perdoe.

Uns dias mais tarde, Claus manda o rapaz à aldeia, a casa de


Ludwig Stelling, o ferreiro. Está a precisar de um martelo novo, mas
que não seja caro, pois desde que perdeu a carga de farinha, deve
muito dinheiro a Martin Reutter.
Pelo caminho, o rapaz apanha três pedras. Atira ao ar a primeira,
depois a segunda, depois apanha a primeira e lança-a ainda mais
alto, depois apanha a segunda e volta a atirá-la, depois apanha a
terceira e atira-a, depois de novo a primeira… até que ficam as três
no ar. As suas mãos descrevem movimentos circulares, e tudo se
passa como que por si só. O mais difícil é não pensar e não fixar a
vista em nenhuma das pedras. É preciso estar atento e, ao mesmo
tempo, fazer como se as pedras não existissem.
E a caminhar assim, rodeado pelas pedras, passa pela casa de
Hanna Krell e atravessa o campo de Steger. Diante da casa do
ferreiro, deixa cair as pedras na lama e entra.
Coloca duas moedas sobre a bigorna. Ainda lhe restam duas no
bolso, mas o ferreiro não precisa de saber isso.
— É muito pouco — diz Stelling.
O rapaz encolhe os ombros, apanha as duas moedas e volta-se
para a porta.
— Espera — diz o ferreiro.
O rapaz detém-se.
— Tens de pagar mais.
O rapaz abana a cabeça.
— Assim não dá — diz o ferreiro. — Se queres comprar qualquer
coisa, tens de negociar.
O rapaz dirige-se à porta.
— Espera!
O ferreiro é gigantesco, tem a barriga nua coberta de pelos, um
lenço atado na cabeça e um rosto vermelhusco cheio de poros.
Toda a aldeia sabe que, à noite, vai para uns arbustos com Ilse
Melkerin, só o marido de Ilse não sabe, ou talvez saiba mas finja
que não sabe, pois o que se pode fazer contra um ferreiro? Quando,
aos domingos, o padre faz o sermão sobre a imoralidade, olha
sempre para o ferreiro e às vezes também para Ilse. Mas isso não
os faz desistir.
— É muito pouco — repete o ferreiro.
Mas o rapaz sabe que saiu vencedor e enxuga a testa. A forja
emite uma luz e um calor intensos e sombras dançam na parede.
Com a mão no coração, jura:
— Foi tudo o que me deram, pela salvação da minha alma!
Com uma expressão furiosa, o ferreiro dá-lhe o martelo. O rapaz
agradece-lhe com gentileza e dirige-se lentamente à porta, de modo
a não fazer tilintar as moedas que tem no bolso.
Antes de chegar à praça da aldeia, passa diante do estábulo de
Jakob Brantner, pela casa dos Melker e pela dos Tamm. Nele estará
ali? Com efeito, ela está ali sentada, à chuva, no pequeno muro da
fonte.
— Cá estás tu outra vez — diz ele.
— Vai-te embora — é a resposta dela.
— Vai tu.
— Eu já cá estava.
O rapaz senta-se ao lado dela. Fazem ambos sorrisos
maliciosos.
— O vendedor ambulante passou por cá — diz ela. — Disse que
o imperador mandou decapitar todos os grandes senhores da
Boémia.
— O rei também?
— Sim, também. O Rei do Inverno. Chamam-lhe assim porque,
depois de os boémios o terem coroado, só foi rei durante um
inverno. Mas conseguiu fugir e há de regressar à cabeça de um
grande exército, porque o rei inglês é o pai da sua mulher. Há de
reconquistar Praga, depor o imperador e tornar-se ele próprio
imperador.
Hanna Krell chega com um balde e aproxima-se da beira da
fonte. A água está suja, não se pode beber, mas utilizam-na para
lavagens e para o gado. Quando eram pequenos, bebiam leite, mas
há um par de anos que têm idade suficiente para beber cerveja de
baixo teor alcoólico. Todos na aldeia comem papas e bebem essa
cerveja leve. Até os Steger, que são ricos. Os reis de um inverno e
os imperadores bebem água de rosas e vinho, as pessoas simples
bebem leite e cerveja leve, do primeiro ao último dia da sua vida.
— Praga — repete o rapaz.
— Sim — diz Nele.
— Praga!
Pensam ambos em Praga. Como não passa de uma palavra
sobre a qual nada sabem, parece-lhes tão promissora como se
tivesse saído de um conto.
— A que distância fica Praga? — pergunta o rapaz.
— Muito longe.
Ele faz um aceno de assentimento, como se tivesse obtido uma
resposta.
— E Inglaterra?
— Também fica muito longe.
— A viagem pode durar um ano.
— Mais tempo.
— Vamos lá?
Nele ri.
— Porque não? — pergunta ele.
Ela não responde, e ele percebe que agora tem de ter cuidado.
Uma palavra em falso pode ter sérias consequências. No ano
anterior, o filho mais novo de Peter Steger ofereceu a Else
Brantnerin um pífaro de madeira e, como ela o aceitou, agora estão
noivos, embora não gostem muito um do outro. O assunto chegou
aos ouvidos do corregedor da comarca que, por sua vez, o
comunicou ao vicariato judicial, onde foi decidido que não havia
nada a fazer: um presente é uma promessa, e uma promessa é
válida perante Deus. Convidar alguém para fazer uma viagem não é
um presente, mas é quase uma promessa. O rapaz sabe-o, e
também sabe que Nele o sabe, e ambos sabem que devem mudar
de tema.
— Como está o teu pai? — pergunta o rapaz. — Vai melhor do
reumatismo?
Ela faz um sinal afirmativo.
— Não sei o que fez o teu pai. Mas ajudou.
— Fórmulas mágicas e ervas.
— Vais também aprender isso? Também queres curar pessoas?
— Prefiro ir a Inglaterra.
Nele ri-se.
O rapaz levanta-se. Tem a vaga esperança de que ela o retenha,
mas a rapariga não se mexe.
— Na próxima festa do solstício de verão — diz ele —, saltarei a
fogueira como os outros.
— Eu também.
— Tu és rapariga!
— Sou rapariga, mas vou já dar-te uma tareia.
Ele afasta-se, sem se voltar. Sabe que isso é importante, se se
voltar ela será a vencedora.
O martelo é pesado. À frente da casa de Heinerling termina o
passadiço de madeira; o rapaz sai do caminho e põe-se a andar
pela erva alta. Isso não deixa de ser perigoso, por causa dos
pequenos seres. Pensa em Sepp. Desde a noite na floresta, o moço
de lavoura tem medo dele e mantém-se a uma distância segura, o
que é útil. Se ele soubesse o que se passou na floresta! O rapaz
está ciente de que não deve pensar nisso. A recordação é uma
coisa peculiar: não se limita a chegar e a partir, sem mais, mas é
possível acendê-la e voltar a apagá-la como a uma lasca de
madeira resinosa. Pensa na mãe, que teve de ficar de cama até há
pouco, e por instantes pensa também na bebé morta, a sua irmã,
cuja alma agora está no frio, porque não a batizaram.
Detém-se e olha para o alto. Devia esticar-se a corda sobre as
copas das árvores, de um campanário a outro, de uma aldeia a
outra. Abre os braços e imagina. Depois senta-se numa pedra a ver
como se dividem as nuvens. O tempo ficou quente, e o ar está
impregnado de humidade. A suar, coloca o martelo ao seu lado. De
súbito, sente sono e fome, mas ainda faltam muitas horas para as
papas. E se uma pessoa pudesse voar? Agitar os braços, sair da
corda e subir cada vez mais alto? Corta um talo de erva e mete-a
entre os lábios. Tem um sabor adocicado, húmido e um pouco
picante. Deita-se na erva e fecha os olhos, para a luz quente do Sol
lhe pousar nas pálpebras. A humidade da erva penetra-lhe na
roupa.
Uma sombra projeta-se sobre ele. O rapaz abre os olhos.
— Assustei-te?
O rapaz senta-se e abana a cabeça. Ali os desconhecidos são
raros. Às vezes aparece o bailio, vindo da capital do distrito, e, uma
vez por outra, chegam bufarinheiros. Mas a este não conhece. É
jovem, mal se pode dizer que seja um homem. Tem uma barbicha,
veste um gibão, uma camisa de bom tecido e botas altas. Tem um
olhar límpido e curioso.
— Estavas a imaginar como seria se fosses capaz de voar?
O rapaz fita o desconhecido.
— Não — prossegue o desconhecido —, não foi por artes
mágicas. Não é possível ler pensamentos. Ninguém é capaz de o
fazer. Mas quando um miúdo está de braços abertos, em bicos de
pés e a olhar para cima, é porque está a pensar em voar. E faz isso
porque ainda não se convenceu de que nunca voará. Que Deus não
nos permite voar. Aos pássaros sim, mas a nós não.
— Um dia poderemos todos voar — diz o rapaz. — Quando
estivermos mortos.
— Quando estamos mortos, estamos mortos. E ficamos na
sepultura até que o Senhor regresse para nos julgar.
— E quando regressa ele?
— O padre não te ensinou?
O rapaz encolhe os ombros. Claro que o padre falou de tudo isso
na igreja, da sepultura, do Juízo Final, dos mortos, mas tem uma
voz monótona e não é raro estar bêbedo.
— No final dos tempos — diz o desconhecido. — Só que os
mortos não se apercebem do tempo, porque estão mortos, de
maneira que também se poderia dizer: imediatamente. Mal morres,
chega o Dia do Juízo.
— Isso foi o que também disse o meu pai.
— O teu pai é um letrado?
— O meu pai é moleiro.
— E tem opiniões? Ele lê?
— Sabe muitas coisas — responde o rapaz. — Ajuda as
pessoas.
— Ajuda-as?
— Quando estão doentes.
— Então talvez me possa também ajudar.
— Estais doente?
O desconhecido senta-se no chão ao seu lado.
— O que te parece, vai continuar a fazer sol ou vai voltar a
chover?
— Como hei de saber isso?
— Mas tu és daqui!
— Vai voltar a chover — responde o rapaz, porque está quase
sempre a chover, quase sempre está mau tempo. Por isso as
colheitas são tão más, por isso não chegam cereais suficientes ao
moinho e por isso todos têm fome. Ao que parece, antigamente era
melhor. As pessoas de idade lembram-se de verões longos, mas
quem sabe?, talvez imaginem, são velhos. — O meu pai pensa que
os anjos andam montados nas nuvens de chuva e nos olham lá de
cima.
— As nuvens são feitas de água — diz o desconhecido. —
Ninguém as monta. Os anjos têm corpos de luz e não precisam de
transporte. E com os demónios é igual. São feitos de ar. É por isso
que se chama ao diabo o Senhor do Ar. — Calou-se, como se
quisesse escutar as suas próprias frases, e contemplou as pontas
dos dedos com uma expressão quase curiosa. — E contudo —
acrescenta — não são mais do que partículas da vontade de Deus.
— Os demónios também?
— Claro que sim.
— Os demónios são vontade de Deus?
— A vontade de Deus é maior do que tudo o que se possa
imaginar. É tão grande que consegue negar-se a si mesma. Há um
antigo enigma que diz: Deus poderá fazer uma pedra tão pesada
que ele próprio não seja capaz de a levantar? Parece um paradoxo.
Sabes o que é um paradoxo?
— Sei.
— A sério?
O rapaz faz um aceno afirmativo.
— Então o que é?
— Vós sois um paradoxo e o rufião e alcoviteiro do vosso pai é
outro.
O desconhecido guarda silêncio por alguns instantes e, em
seguida, as comissuras dos seus lábios erguem-se num sorriso.
— Na realidade, isso não é um paradoxo, pois a resposta certa
seria: claro que é capaz. Mas a seguir Deus é capaz de levantar
sem esforço a pedra que não conseguia levantar. Deus é tão
abrangente para ser uno consigo mesmo. Por isso existe o Senhor
do Ar e os seus consortes. Por isso existe tudo o que não é Deus.
Por isso existe o mundo.
O rapaz levanta uma mão e coloca-a diante do rosto. Agora não
há nuvens a tapar o sol, um melro passa a bater as asas. Sim
senhor, pensa ele, devíamos voar assim, seria muito melhor do que
caminhar sobre a corda. Mas se não podemos voar, o melhor a
fazer é mesmo caminhar sobre a corda.
— Gostava de conhecer o teu pai.
Com um ar indiferente, o rapaz diz que sim com a cabeça.
— É melhor despachares-te — diz o desconhecido. — Daqui a
uma hora vai estar a chover.
O rapaz aponta para o Sol num gesto interrogativo.
— Estás a ver as pequenas nuvens ali atrás? — pergunta o
desconhecido — E as grandes por cima de nós? As de trás estão a
aglomerar-se com o vento, que vem de leste e traz ar frio, e as que
estão por cima de nós vão apanhá-las, e então vai arrefecer tudo
ainda mais, a água vai tornar-se pesada e cair sobre a terra. Não há
anjos a cavalgar as nuvens, mas mesmo assim vale a pena
contemplá-las, pois trazem água e beleza. Como te chamas?
O rapaz diz-lhe.
— Não te esqueças do teu martelo, Tyll.
O desconhecido dá meia-volta e afasta-se.

Nessa noite, Claus está com uma disposição soturna. À mesa, o


facto de não conseguir resolver o problema do trigo pesa-lhe na
alma.
A situação é complicada. Se temos à nossa frente um monte de
trigo e tiramos um grão, continuamos com um monte à nossa frente.
Depois tiramos outro. Continua a haver um monte? Naturalmente
que sim. Então tiramos mais um. Ainda há um monte? Claro que
sim. Tiramos outros. Ainda há um monte? Claro. E assim
sucessivamente. É muito simples: um monte de trigo nunca deixará
de o ser simplesmente por lhe tirarmos um grão. E nunca algo que
não é um monte de trigo virá a sê-lo por lhe acrescentarmos um
grão.
Ora bem: se tirarmos grão após grão, a dado momento o monte
deixa de o ser. A dado momento, restam apenas uns grãozitos no
solo a que, mesmo com a melhor das boas vontades, não se pode
chamar um monte. E, se continuarmos a tirar, chega um momento
em que se tira o último, e nada mais resta no solo. Um grão de trigo
é um monte? Seguramente que não. E nada, é um monte? Não,
nada não é um monte. Nada é nada.
Então que grão é aquele que, por ser retirado, faz com que o
monte deixe de o ser? Em que momento acontece isso? Centenas
de vezes Claus representou a cena mentalmente, na sua fantasia
acumulou centenas de grãos de trigo, para depois, em pensamento,
ir tirando grão a grão. Mas não encontrou o momento decisivo.
Deixou mesmo de fixar a atenção na Lua e nem sequer pensou
tantas vezes na criança morta.
Nesse dia à tarde fez uma experiência com trigo real. O mais
difícil fora levar tanto trigo por moer para o sótão, sem perder nada,
pois daí a dois dias Peter Steger ia buscar a farinha: com gritos e
ameaças conseguiu que os moços tivessem cuidado, pois não pode
permitir-se contrair mais dívidas. Agneta chamou-lhe cabeça de boi
casmurro, ao que ele ripostou que ela não se devia meter em coisas
demasiado difíceis para mulheres, após o que ela se atirou a ele,
após o que ele lhe disse que tivesse cuidado, após o que ela lhe
deu uma tal bofetada que ele teve de ficar sentado durante um
bocado. É frequente pegarem-se assim. Às vezes, a princípio, ele
também batia em Agneta, mas, embora fosse mais forte, isso nunca
acabava bem para ele, pois ela ficava mais furiosa, e em todas as
desavenças o vencedor é o que está mais enfurecido. Por isso, há
muito que Claus perdera o hábito de lhe bater, pois tão depressa
quanto a cólera chega, por sorte, se vai.
Então começou a trabalhar no sótão. A princípio, com
circunspeção e rigor, examinando o monte a cada grão, mas cada
vez a suar mais e de pior humor; e, ao fim da tarde, já
completamente desesperado. A dada altura, ficou com um novo
monte do lado direito da divisão e, do lado esquerdo, com aquilo a
que talvez ainda se pudesse chamar um monte, ou talvez não. E
algum tempo depois, à esquerda havia apenas um punhado de
grãos.
E onde estava de facto a fronteira? Até dava vontade de chorar.
Come uma colherada de papas, suspira e escuta a chuva que cai.
As papas sabem mal como sempre, mas durante algum tempo o
som da chuva reconforta-o. Depois ocorre-lhe que com a chuva
acontece algo semelhante: quantas gotas a menos têm de cair para
que pare de chover? Solta um gemido. Às vezes parece-lhe que o
objetivo de Deus ao criar o mundo foi fazer um pobre moleiro perder
o juízo.
Agneta pousa-lhe a mão no braço e pergunta-lhe se quer mais
papas. Claus não quer mais, mas compreende que a mulher está
com pena dele e que aquilo é uma oferta de paz depois da bofetada.
— Sim — responde em voz baixa. — Obrigado.
Nessa altura, ouvem-se umas pancadinhas na porta. Claus cruza
os dedos para se proteger de algo de mau. Murmura um esconjuro,
traça sinais no ar, e só então pergunta:
— Quem é, em nome de Deus?
Todos sabem que nunca se deve mandar entrar ninguém antes
que quem está fora diga o nome. Os espíritos maléficos são
poderosos, mas a maioria só tem esse poder na soleira da porta
quando a convidam a entrar.
— Dois viajantes — responde uma voz. — Abre, em nome de
Cristo.
Claus levanta-se, vai à porta e abre o ferrolho.
Um homem entra. Já não é jovem, mas parece possante. Tem o
cabelo e a barba encharcados, e também caem gotas de chuva
sobre o linho cinzento e grosso da sua capa. Segue-o um segundo
homem, muito mais novo. Este olha em redor e, quando vê o rapaz,
um sorriso desenha-se-lhe no rosto. É o desconhecido dessa
manhã.
— Sou o doutor Oswald Tesimond, da Companhia de Jesus —
diz o mais velho. — Este é o doutor Kircher. Fomos convidados.
— Convidados? — repete Agneta.
— Da Companhia de Jesus? — pergunta Claus.
— Somos jesuítas.
— Jesuítas — repete Claus. — Jesuítas de verdade?
Agneta vai buscar dois tamboretes que coloca junto da mesa, e
os outros apertam-se para lhes dar espaço.
Claus faz uma vénia desajeitada. Diz que é Claus Ulenspiegel,
que aqueles são a sua mulher e o seu filho e os outros são criados.
Que não costumam ter visitas de pessoas ilustres. Que é uma
honra. Que não tem muito, mas o que tem, está à sua disposição.
Isto são papas, aquilo é cerveja leve e no jarro ainda há um pouco
de leite. Pigarreia.
— Permitis-me que vos pergunte se sois letrados?
— Creio que me é permitido dizer que sim — responde o doutor
Tesimond, pegando numa colher com os dedos afilados. — Sou
doutor em medicina e teologia, além de químico, com a
especialidade de dracontologia. O doutor Kircher dedica-se aos
símbolos ocultos, à cristalografia e à essência da música.
Come um pouco de papas, franze o rosto e põe a colher de lado.
Por instantes, reina o silêncio. Depois Claus inclina-se para a
frente e pergunta se lhe permitem que faça uma pergunta.
— Por certo que sim — responde o doutor Tesimond.
Quando fala, há qualquer coisa invulgar: muitas palavras nas
frases que profere não se encontram onde seria de esperar, e
também soam de uma maneira diferente, como se ele tivesse
pequenas pedras na boca.
— O que é dracontologia? — pergunta Claus.
Mesmo à luz ténue da vela de sebo, pode ver-se que ficou com
as faces coradas.
— É a ciência que se ocupa dos dragões.
Os moços levantam a cabeça. A rapariga fica com a boca aberta.
— Vistes alguns? — pergunta o rapaz entusiasmado.
O doutor Tesimond franze o cenho, como se um ruído
desagradável o tivesse perturbado.
O doutor Kircher olha para o rapaz e abana a cabeça.
Claus pede-lhe desculpa. Aquela é uma casa simples, o filho não
sabe comportar-se e às vezes esquece-se de que um miúdo tem de
estar calado quando os adultos falam. Mas ele também podia ter-
lhes perguntado se tinham visto alguns.
Não é a primeira vez que ouve aquela pergunta divertida, diz o
doutor Tesimond. Na realidade, todos os dracontólogos estavam
sempre a ouvi-la feita pelas pessoas simples.
— Mas os dragões são raros. São muito… Como se diz?
— Ariscos — diz o doutor Kircher.
O alemão não é a sua língua materna, explica o doutor
Tesimond, tem de pedir desculpa, pois às vezes regressa ao idioma
da sua amada pátria, que não voltará a ver na vida: a Inglaterra, a
ilha das maçãs e das brumas matinais. Sim, é verdade que os
dragões são incrivelmente ariscos e capazes das mais assombrosas
manobras de camuflagem. Uma pessoa podia passar cem anos à
procura sem nunca chegar perto de um dragão. De igual modo,
podia passar cem anos perto de um dragão sem reparar nele. Era
precisamente por isso que era necessária a dracontologia, pois a
ciência médica não podia prescindir dos poderes curativos do
sangue de dragão.
Claus esfrega a testa.
— E como conseguis o sangue?
— Não temos o sangue, como é óbvio. A medicina é a arte da…
Como se diz?
— Da substituição — completa o doutor Kircher.
Sim, o sangue de dragão é uma substância com um tal poder
que nem sequer é necessária a substância em si. Basta que ela
exista no mundo. Na sua amada pátria ainda existiam dois dragões,
embora há séculos que ninguém soubesse onde estavam.
— As minhocas e as larvas de escaravelho — diz o doutor
Kircher — assemelham-se aos dragões. Trituradas até se
transformarem em pó, os seus corpos têm propriedades
prodigiosas. O sangue de dragão consegue tornar as pessoas
invulneráveis, mas é possível substituí-lo por cinábrio moído que,
devido à sua semelhança, pode curar doenças de pele. O cinábrio
também é muito difícil de conseguir, embora, por sua vez, possa ser
substituído por todas as ervas que têm uma superfície escamosa
como a pele do dragão. A ciência da cura é a substituição, baseada
no princípio da semelhança. Por exemplo, o açafrão cura as
doenças dos olhos, porque se parece com um olho.
— Quanto melhor o dracontólogo conhece a sua profissão —
prossegue o doutor Tesimond —, melhor consegue compensar a
ausência de dragões através da substituição. Porém, a arte
suprema consiste em utilizar, não o corpo do dragão, mas o seu…
Qual é a palavra?
— Saber — auxilia-o o doutor Kircher.
— Utilizar o seu saber. Já Plínio refere que os dragões
conhecem uma erva com a qual conseguem ressuscitar os seus
congéneres que morreram. Encontrar essa erva seria o Santo Graal
da nossa ciência.
— Mas como se sabe que os dragões existem? — pergunta o
rapaz.
O doutor Tesimond franze o cenho. Claus inclina-se para a frente
e dá uma bofetada ao filho.
— Por causa da eficácia do substituto — responde o doutor
Kircher. — De outro modo, como poderia um animal minúsculo
como a larva do escaravelho ter propriedades curativas, se não
devido à sua semelhança com o dragão? Como pode o cinábrio
curar se não for por ser vermelho-escuro como o sangue de
dragão?
— Mais uma pergunta — diz Claus. — Quando falo com gente
erudita… Quando tenho essa possibilidade…
— Faz favor — diz o doutor Tesimond.
— Um monte de grãos de trigo. Se só se tira um. Estou a dar em
doido com isto.
Os moços riem.
— É um problema conhecido — diz o doutor Tesimond.
Faz um movimento na direção do doutor Kircher, a incitá-lo a
falar.
— Onde está uma coisa, não pode estar outra — diz o doutor
Kircher — embora duas palavras não se excluam mutuamente.
Entre uma coisa, que é um monte de trigo, e outra coisa, que não é
um monte de trigo, não há uma fronteira exata. A natureza do monte
torna-se indistinta, semelhante a uma nuvem que se dissipa.
— Sim — diz Claus, como que para consigo. — Sim. Não, não.
Porque… Não! De uma lasca de madeira não se pode fazer uma
mesa. Pelo menos uma que se possa utilizar. É demasiado
pequena. Não dá. E de duas lascas de madeira também não. Não
há madeira suficiente para fazer uma mesa e, mesmo
acrescentando um pedacinho minúsculo, nunca será suficiente.
Os convidados ficam em silêncio. Todos escutam a chuva, as
colheres a raspar e o vento que abana os postigos das janelas.
— É uma boa pergunta — diz o doutor Tesimond, olhando para o
doutor Kircher convidando-o a falar.
— As coisas são o que são — diz o doutor Kircher —, mas as
nossas ideias estão profundamente imbuídas de imprecisão. Nunca
é claro se uma coisa é ou não é uma montanha, se é ou não é uma
flor, se é ou não é um sapato, ou mesmo se é ou não é uma mesa.
É por isso que Deus, quando quer ser claro, fala em números.
— Não é vulgar um moleiro interessar-se por estas coisas — diz
o doutor Tesimond. — Ou por outras semelhantes.
Aponta para os pentagramas desenhados na ombreira da porta.
— Mantêm afastados os demónios — explica Claus.
— E gravam-se simplesmente na madeira? Isso basta?
— É preciso utilizar as palavras certas.
— Cala a boca — diz Agneta.
— Mas isso das palavras é difícil — diz o doutor Tesimond. —
Com as… — Lança um olhar interrogativo ao doutor Kircher.
— Fórmulas mágicas — completa o doutor Kircher.
— Exatamente — diz o doutor Tesimond. — Isso não é perigoso?
Dizem que as mesmas palavras que afastam os demónios, em
determinadas circunstâncias também os atraem.
— Isso são outras fórmulas mágicas. Também as conheço. Não
há motivo para preocupação. Sei distingui-las.
— Fica calado — diz Agneta.
— Então por que mais se interessa um moleiro? O que o ocupa,
o que quer ele saber? Em que mais é possível… ajudá-lo?
— Bem, com as folhas — responde Claus.
— Cala a boca! — diz Agneta.
— Há poucos meses, encontrei duas folhas junto de um velho
carvalho no campo de Jakob Brantner. Na realidade, o campo não é
de Brantner, sempre pertenceu aos Loser, mas quando houve o
litígio por causa da herança, o preboste decidiu que o campo era do
Brantner. Mas adiante, de qualquer modo, as folhas eram
exatamente iguais.
— Pois claro que o campo é do Brantner — diz Sepp, que
durante um ano foi moço de lavoura na quinta de Brantner. — Os
Loser, que o diabo os carregue, são uns mentirosos.
— Se há aqui algum mentiroso — diz a rapariga —, é o Jakob
Brantner. Basta ver como mira as mulheres na igreja.
— Mas o campo pertence-lhe — teima Sepp.
Claus dá um murro na mesa, e todos se calam.
— As folhas. Eram iguais, cada nervura, cada recorte. Sequei-as,
podeis vê-las. Quando o vendedor ambulante veio à aldeia,
comprei-lhe mesmo uma lupa para as examinar melhor. Ele chama-
se Hugo e não vem cá muitas vezes; só tem dois dedos na mão
esquerda e, quando lhe perguntam como perdeu os outros,
responde: «Senhor moleiro, são apenas dedos!» — Claus reflete
uns instantes, perplexo com o rumo que o fluxo do discurso o fez
tomar. — Assim, com as duas folhas à minha frente, perguntei-me
de imediato se isso não significaria que, na realidade, eram só uma.
Quando a diferença consiste apenas no facto de uma folha estar à
esquerda e a outra à direita, basta fazer um movimento com a mão.
— Faz um gesto tão desajeitado que uma colher após outra e uma
taça após outra voam para o outro lado — Imaginemos que alguém
afirma que as duas folhas são uma e a mesma. O que se deve
responder? Essa pessoa teria razão! — Claus tamborila na mesa,
mas, à exceção de Agneta, que o olha fixamente e com uma
expressão implorativa, todos seguem com os olhos uma taça que
ficou a rolar no chão e que descreve círculos sucessivos antes de
parar. — Então essas duas folhas — prossegue Claus, quebrando o
silêncio —, que apenas na aparência são duas e que na realidade
são apenas uma, isso não quererá dizer que… o aqui, o ali e o acolá
não passam de uma rede tecida por Deus para que não penetremos
os seus mistérios?
— Agora tens de ficar calado — diz Agneta.
— E já que falamos de mistérios — prossegue Claus —, tenho
um livro que não consigo ler.
— Não existem duas folhas iguais no universo — diz o doutor
Kircher. — Nem sequer há dois grãos de areia iguais. Não existem
duas coisas entre as quais Deus não veja uma diferença.
— Tenho as folhas lá em cima, posso mostrar-vo-las! E também
vos posso mostrar o livro! E isso com a larva do escaravelho não faz
sentido, caríssimo senhor, porque a larva de escaravelho moída não
cura, só provoca dores nas costas e rigidez nas articulações. —
Claus faz um sinal ao filho. — Vai buscar o livro grande, aquele sem
capa e que tem ilustrações.
O rapaz levanta-se e corre para a escada que conduz ao sótão.
Sobe rápido como um relâmpago e desaparece pelo alçapão.
— Tens um bom filho — diz o doutor Kircher.
Com um ar ausente, Claus faz um sinal de assentimento.
— Seja como for — diz o doutor Tesimond —, está a fazer-se
tarde e temos de estar na aldeia antes do cair da noite. Vens
connosco, moleiro?
Claus olha-os sem compreender. Os dois convidados põem-se
de pé.
— Grande palerma — diz Agneta.
— Aonde? — pergunta Claus. — Porquê?
— Não há motivo para preocupações — diz o doutor Tesimond.
— Só queremos falar, minuciosamente e em paz e sossego. E tu
querias o mesmo, moleiro. Em paz e sossego. Sobre tudo de que te
ocupas. Temos ar de ser más pessoas?
— Mas não posso — diz Claus. — Depois de amanhã vem o
Steger buscar a farinha. Tenho o trigo no sótão, ainda por moer, e o
tempo aperta.
— Tens aqui bons ajudantes — diz o doutor Tesimond. — Podes
confiar neles para fazer o trabalho.
— Quem recusa seguir os seus amigos — diz o doutor Kircher —
terá de se haver com gente que não é sua amiga. Partilhámos a
refeição, estivemos sentados juntos no moinho. Podemos confiar
uns nos outros.
— Quero ver esse livro em latim — diz o doutor Tesimond. — Se
tiveres perguntas, poderemos responder.
Estão todos à espera do rapaz, que procura às apalpadelas na
obscuridade do sótão. Demora um bocado até encontrar o livro certo
junto ao monte de trigo. Quando volta a descer, o pai e os
convidados já estão à porta.
Estende o livro a Claus, que lhe faz uma festa na cabeça e em
seguida se curva para lhe dar um beijo na testa. Com a última luz do
dia, o rapaz vê as pequenas rugas profundas que sulcam a cara do
pai. Vê o cintilar dos seus olhos inquietos, que só são capazes de se
fixar numa coisa por breves instantes. Vê-lhe os pelos brancos na
barba negra.
Claus está de olhos baixos para o filho e pergunta-se como
sobreviveu precisamente aquele, se tantos outros morreram à
nascença. Se se interessou pouco pelo rapaz foi apenas por estar
habituado a que todos os outros morressem depressa. Mas isso vai
mudar, pensa Claus, ensinar-lhe-ei o que sei, as fórmulas mágicas,
os quadrados, as ervas e a trajetória da Lua. Alegremente, pega no
livro e sai para o crepúsculo. A chuva parou.
Agneta retém-no com firmeza. Dão um abraço prolongado. Claus
quer soltar-se, mas Agneta continua a retê-lo. Os moços de lavoura
soltam risadinhas.
— Daqui a pouco regressas — diz o doutor Tesimond.
— Estás a ouvir? — diz Claus.
— Grande palerma — diz Agneta a chorar.
De súbito, tudo aquilo é penoso para Claus — o moinho, a
mulher que soluça, o filho magricela, toda a sua vida de pobreza.
Com determinação, afasta Agneta. Agrada-lhe ter a possibilidade de
tratar uma coisa comum com aqueles homens sábios, dos quais se
sente mais próximo do que daquela gente do moinho que não sabe
nada.
— Não há razão para terdes medo — diz ao doutor Tesimond. —
Conheço o caminho mesmo às escuras.
Claus põe-se em marcha com grandes passadas, seguido pelos
dois homens. Agneta segue-o com a vista até se perder na
penumbra.
— Entra — diz ela ao rapaz.
— Quando volta ele?
A mãe fecha a porta e corre o ferrolho.
II

O doutor Kircher abre os olhos. Está alguém no quarto. Põe-se


de ouvido à escuta. Não, ali não está ninguém que não seja o doutor
Tesimond, cujo ressonar lhe chega da outra cama. Afasta a manta,
benze-se e levanta-se. É chegado o momento. O dia do julgamento.
Ainda por cima, voltou a sonhar com símbolos egípcios. Um
muro cor de argila, com homenzinhos com cabeças de cão, leões
com asas, machados, espadas, lanças e linhas onduladas de todos
os tipos. Ninguém os entende, o que se conhecia sobre eles perdeu-
se até aparecer um espírito altamente dotado que volte a decifrá-los.
Seria ele. Um dia.
Doem-lhe as costas, como todas as manhãs. O saco de palha
sobre o qual tem de dormir é fino, e o chão está gelado. Só há uma
cama na casa paroquial e nela dorme o seu mentor, até o padre tem
de dormir no chão no quarto contíguo. Pelo menos, nessa noite o
seu mentor não acordou. Costuma gritar durante o sono e às vezes
saca da faca que mete debaixo da almofada, pois pensa que
alguém vai matá-lo. Quando isso acontece, é porque tornou a
sonhar com a grande conspiração que houve em tempos em
Inglaterra, quando ele e uns quantos companheiros corajosos quase
conseguiram fazer o rei ir pelos ares. A tentativa saiu gorada, mas
eles não desistiram: durante dias, procuraram a princesa Isabel,
para a raptarem e a obrigarem pela força a subir ao trono. Teriam
podido ser bem-sucedidos e, caso o tivessem sido, hoje a ilha
estaria de novo em poder da religião certa. Durante semanas, o
doutor Tesimond vivera na floresta, a alimentar-se de raízes e a
beber a água das nascentes, sendo o único a sobreviver e a
conseguir atravessar o oceano. Mais tarde virá a ser canonizado,
mas à noite mais valia não estar perto dele, pois tem sempre a faca
debaixo da almofada, e os seus sonhos são povoados por algozes
protestantes.
O doutor Kircher põe a capa e sai da casa paroquial. Atordoado,
contempla a luz pálida do alvorecer. À sua direita fica a igreja, em
frente, a praça principal com a fonte, a tília e a tribuna construída na
véspera e, ao lado, as casas dos Tamm, dos Henrich e dos
Heinerling. Agora já conhece todos os habitantes da aldeia, tem
boas relações com eles, sabe os seus segredos. Qualquer coisa
move-se sobre o telhado da casa dos Henrich, instintivamente dá
um passo à retaguarda, mas provavelmente é apenas um gato.
Murmura uma oração para se proteger do mal, faz três vezes o sinal
da cruz, vai-te embora, espírito maligno, afasta-te de mim, estou sob
a proteção do Senhor, da Virgem e de todos os Santos. Em seguida
senta-se, com as costas apoiadas à parede da casa paroquial e, a
bater os dentes, espera pelo Sol.
Repara que está alguém sentado ao seu lado. Deve ter-se
aproximado e sentado sem fazer ruído. É o mestre Tilman.
— Bom dia — murmura o doutor Kircher, sobressaltado.
Foi um erro, pois agora Tilman podia cumprimentá-lo.
Para seu horror, é isso que acontece.
— Bom dia!
O doutor Kircher olha para todos os lados. Por sorte, não está
ninguém à vista, a aldeia ainda dorme e ninguém os observa.
— Está muito frio — diz o mestre Tilman.
— Sim — responde o doutor Kircher, pois impõe-se responder
qualquer coisa. — Um frio tremendo.
— E cada ano vai ser pior — diz o mestre Tilman.
Ficam em silêncio.
O doutor Kircher sabe que o melhor seria não responder, mas
como o silêncio é pesado, pigarreia e diz:
— O mundo vai acabar.
O mestre Tilman cospe para o chão.
— E quanto tempo falta ainda?
— Uns cem anos — responde o doutor Kircher, tornando a olhar
em redor pouco à vontade. — Há quem pense que um pouco
menos, enquanto outros estão convencidos que vão ser uns cento e
vinte.
Emudece, a sentir uma grande bola na garganta. Isso acontece-
lhe sempre que fala do Apocalipse. Benze-se e o mestre Tilman
imita-o.
Pobre homem, pensa o doutor Kircher. Em boa verdade, nenhum
carrasco precisa de temer o fim dos tempos, dado os condenados
terem de perdoar aos seus verdugos antes de morrerem; mas, de
quando em quando, há impenitentes que se recusam a fazê-lo e por
vezes acontece mesmo que os seus executores são enviados para
o vale de Josafat. Toda a gente conhece esta maldição: envio-te
para o vale de Josafat. Quem diz isto ao carrasco, acusa-o de
assassinato e nega-lhe o perdão. Seria isso que se passou com o
mestre Tilman?
— Estais a perguntar-vos se tenho medo do julgamento.
— Não!
— Se alguém me enviou para o vale de Josafat.
— Não!
— Todos se perguntam isso. Sabeis?, não escolhi esta profissão.
Sou o que sou porque o meu pai era o que era. E isso por causa do
seu pai. E o meu filho terá de ser o que eu sou porque o filho de um
carrasco vem a ser carrasco. — O mestre Tilman volta a cuspir. — O
meu filho é um rapaz meigo. Olho para ele, só tem oito anos e é
muito carinhoso, não foi feito para matar. Mas não tem escolha. Eu
também não fui feito para isto. Aprendi, e não me saí nada mal.
O doutor Kircher começa a sentir-se seriamente preocupado.
Sob nenhum pretexto pode alguém vê-lo ali a falar amistosamente
com o carrasco.
No céu alastra uma claridade esbranquiçada, já se distinguem as
cores das paredes das casas. Também já se reconhece nitidamente
a tribuna, diante da tília. Por trás, apenas uma mancha pouco nítida
na luz da alvorada, encontra-se a carroça do menestrel, que chegou
há dois dias. É sempre assim: quando há alguma coisa para ver, a
gente itinerante reúne-se sempre ali.
— Graças a Deus que neste buraco não há taberna — diz o
mestre Tilman. — Pois quando a há, vou para lá ao fim do dia, mas
fico sentado sozinho, com todos a olharem-me de soslaio e a
cochichar. E, embora saiba de antemão que vai ser assim, vou na
mesma para a taberna, pois para onde havia de ir? Estou ansioso
por regressar a Eichstätt.
— Lá tratam-vos melhor?
— Não, mas é a minha terra. E tratarem-nos mal na nossa terra
é melhor do que tratarem-nos mal noutro sítio.
O mestre Tilman levanta os braços e espreguiça-se, bocejando.
O doutor Kircher dá um salto para o lado. A mão do carrasco
encontra-se a poucos centímetros do seu ombro e não lhe pode
tocar. Aquele a quem um carrasco toca, ainda que seja de raspão,
perde a sua honra. Mas, como é natural, também não pode suscitar
o seu descontentamento. Se o verdugo ficasse irritado, poderia
agarrá-lo propositadamente e tomar o castigo nas suas próprias
mãos. O doutor Kircher maldiz o seu bom coração. Nunca devia ter-
se envolvido naquela conversa.
Para seu alívio, nesse momento ouve a tosse seca do seu
mentor vinda do interior da casa. O doutor Tesimond acordou. Com
um gesto de desculpa, levanta-se.
O mestre Tilman esboça um sorriso de viés.
— Que Deus nos acompanhe neste grande dia — diz o doutor
Kircher.
Mas o mestre Tilman não responde. O doutor Kircher apressa-se
a entrar na casa paroquial, para ajudar o seu mentor a vestir-se.

Com passo digno e vestido com a toga vermelha dos juízes, o


doutor Tesimond dirige-se à tribuna. Em cima dela encontra-se uma
mesa com pilhas de papéis, seguras com seixos do ribeiro do
moinho para não voarem com o vento. O Sol aproxima-se do zénite.
A luz cintila através da copa das tílias. A aldeia inteira está presente:
à frente, todos os membros da família Steger, o ferreiro Stelling com
a mulher e o camponês Bauer com os seus, atrás o padeiro Holtz
com a mulher e as duas filhas, Anselm Melker com os filhos, a
mulher, a cunhada, a velha mãe, o velho sogro, a velha sogra e a tia
e, ao lado, Maria Loserin com a sua formosa filha; mais atrás ainda,
os Henrich e os Heinerling, com todos os seus moços de lavoura; e,
ao fundo de tudo, os Tamm, com os seus rostos redondos de
roedores. O mestre Tilman mantém-se à parte, apoiado ao tronco da
árvore. Veste uma túnica castanha e tem o rosto pálido e inchado.
Atrás, no seu carro, está o menestrel, a escrevinhar num livrinho.
O doutor Tesimond salta para a tribuna com ligeireza e coloca-se
atrás de uma cadeira. O doutor Kircher, embora jovem, não sobe
com a mesma facilidade, pois a tribuna é alta e a toga tolhe-lhe os
movimentos. Uma vez lá em cima, o doutor Tesimond lança-lhe um
olhar de incitamento, e o doutor Kircher percebe que agora tem de
elevar a voz; porém, ao olhar em redor, sente uma vertigem. A
sensação de irrealidade é tão intensa que tem de se agarrar ao
canto da mesa. Não é a primeira vez que isso lhe acontece e é uma
coisa que tem de manter em segredo a todo o custo. Acaba de
receber as ordens menores, ainda lhe falta muito para ser um
jesuíta de pleno direito, e só homens de perfeita saúde física e
mental podem tornar-se membros da Companhia de Jesus.
E, acima de tudo, ninguém pode saber como a sua perceção do
tempo se está constantemente a alterar. Por vezes, dá consigo num
lugar desconhecido, sem saber o que aconteceu entretanto. Há
pouco, durante uma hora, esqueceu-se de que era já adulto e
julgou-se uma criança a brincar na erva perto da casa dos pais,
como se os quinze anos decorridos desde então e o árduo curso
superior em Paderborn só existissem na fantasia de um jovem que
anseia por se tornar finalmente adulto. Como o mundo é frágil!
Quase todas as noites, vê símbolos egípcios, e a sua preocupação
de um dia não conseguir acordar de um sonho, de ficar para sempre
encerrado no inferno colorido de um reino de faraós pagãos, não
cessa de aumentar.
Apressa-se a esfregar os olhos. Peter Steger e Ludwig Stelling,
os juízes adjuntos, envergando togas negras, sobem para junto
dele, seguidos por Ludwig von Esch, o curador e presidente do
tribunal da comarca, que tem de proferir a sentença para que esta
seja válida. Pequenas manchas de luz dançam na erva e na fonte.
Apesar de estar sol, faz tanto frio que a respiração se converte em
pequenas nuvens de vapor. Coroa da tília, pensa o doutor Kircher.
Coroa da tília, estas palavras podem ficar presas a uma pessoa,
mas isso não pode acontecer naquele momento, não deve distrair-
se, tem de concentrar todas as suas forças na cerimónia. Rei da
tília, coroa da tília, coroa da tília. Não! Agora não, agora não se
pode distrair, estão todos à espera! Na sua qualidade de escrivão,
abre a audiência, mais ninguém poderia fazê-lo, é o seu trabalho,
tem de o cumprir. A fim de se acalmar, fixa os rostos dos
espectadores da frente e do meio, mas mal fica mais calmo, o seu
olhar cruza-se com o do filho do moleiro, que está lá atrás, junto da
mãe. Tem os olhos muito próximos, as faces cavadas e os lábios um
pouco franzidos, como se estivesse a assobiar para consigo.
Tenta apagá-lo da mente. Não foi em vão que participaste em
tantos exercícios espirituais. Com o cérebro passa-se o mesmo que
com os olhos: veem o que têm à frente, mas podes ser tu a
determinar no que se fixam. Pestaneja. Apenas uma mancha,
pensa, apenas cores, apenas um jogo de luz. Não vejo um rapaz,
vejo luz. Não vejo um rosto, vejo cores. Apenas cores, luz e
sombras.
E, efetivamente, o rapaz deixa de ter importância. Não pode
olhar para ele. Os seus olhares não se podem cruzar. Enquanto isso
não acontecer, não há problema.
— O juiz está presente? — pergunta com uma voz empastelada.
— O juiz está presente — responde o doutor Tesimond.
— O curador está presente?
— Estou presente — responde Ludwig von Esch, irritado.
Em circunstâncias normais seria ele a presidir ao julgamento,
mas ali as circunstâncias não são normais.
— O primeiro juiz adjunto está presente?
— Presente — responde Peter Steger.
— O segundo?
Silêncio. Peter Steger dá uma cotovelada a Ludwig Stelling, que
olha em redor surpreendido. Peter Steger dá-lhe um segundo
encontrão.
— Sim, está presente — responde Ludwig Stelling.
— O tribunal está reunido — diz o doutor Kircher.
Inadvertidamente, olha para o mestre Tilman. O carrasco está
apoiado ao tronco da tília, numa atitude quase indolente, a esfregar
a barba e a sorrir, mas de quê? Com o coração acelerado, olha para
outro sítio, pois de modo nenhum pode dar a impressão de que tem
um acordo com o verdugo. Por isso, olha para o menestrel. Dois
dias antes ouviu-o cantar. O alaúde estava desafinado, a rima era
fraca e os acontecimentos fabulosos sobre os quais cantava não
eram tão fabulosos quanto isso: o assassinato de uma criança
perpetrado por protestantes em Magdeburgo, uma deplorável
cantiga de escárnio e maldizer sobre o príncipe eleitor do
Palatinado, na qual pálida rimava com lágrima e porta com resposta.
Com inquietação, pensa que também ele vai aparecer nas baladas
que o menestrel irá cantar.
— O tribunal está reunido — ouve-se a si próprio dizer de novo.
— Foi constituído para fazer justiça perante a comunidade, que tem
de manter a paz e a tranquilidade do princípio até ao fim da sessão,
em nome de Deus. — Depois de aclarar a garganta, ordena em voz
alta: — Trazei os acusados!
Durante algum tempo, o silêncio é tal que se ouve o vento, as
abelhas, e todos os balidos, mugidos, grunhidos, latidos e roncos
dos animais. Então abre-se a porta do estábulo dos Brantner, que
range, pois há pouco a reforçaram com ferros. Também pregaram
tábuas nas portadas das janelas. As vacas, agora sem lugar ali,
foram levadas para o estábulo de Steger; por esse motivo houve
altercações, pois Peter Steger queria uma indemnização e Ludwig
Brantner dissera que nada podia fazer nesse sentido. Numa aldeia,
essas coisas nunca são fáceis.
Um soldado sai do estábulo a bocejar, seguido pelos dois
acusados, que piscam os olhos e por mais dois soldados atrás. São
lansquenetes idosos à beira de serem dispensados do serviço, um
que coxeia e o outro a quem falta a mão esquerda. Não lhe
enviaram ninguém melhor de Eichstätt.
E, quando se olha para os acusados, nem sequer parece que
precisem de estar tão guardados. Com as cabeças rapadas, sobre
as quais se veem protuberâncias e amolgadelas, como sempre
acontece quando se rapa o cabelo a alguém, parecem as pessoas
mais inofensivas e mais frágeis do mundo. Têm as mãos envolvidas
em ligaduras grossas, para que não se vejam os dedos cobertos de
contusões, e ainda se lhes veem nas testas marcas de sangue, no
sítio onde o mestre Tilman colocou a correia de couro. Como seria
fácil deixarmo-nos mover pela piedade, pensa o doutor Kircher, mas
não nos podemos permitir acreditar nas aparências, pois eles estão
ligados ao grande poder do mundo das profundezas e o seu senhor
acompanha-os a todo o momento. Daí isso ser tão perigoso: no dia
do julgamento, o diabo pode sempre intervir, a qualquer momento
pode dar mostras da sua força e libertá-los, e só a coragem e a
integridade do juiz podem impedi-lo. Quantas vezes os seus
superiores chamaram a atenção para esse facto no seminário: não
subestimeis os aliados do diabo! Nunca vos esqueçais de que a
compaixão é a sua arma e que têm meios à disposição de que o
vosso entendimento nem suspeita.
A assistência abre alas e forma-se uma passagem pela qual os
condenados são conduzidos à tribuna: à frente, vai a velha Hanna
Krell, atrás, o moleiro. Ambos seguem curvados, com ar ausente,
não sendo claro se sabem onde estão e o que se está a passar.
Não os subestimes, diz o doutor Kircher para consigo, é
importante não os subestimares.
Os membros do tribunal sentam-se: ao meio, o doutor Tesimond,
à sua direita, Peter Steger, à esquerda, Ludwig Stelling. E à
esquerda de Stelling, a pouca distância, pois o escrivão, embora
não faça parte do tribunal, é responsável por que a sessão decorra
sem atritos, encontra-se a cadeira que lhe é destinada.
— Hanna — diz o doutor Tesimond, erguendo uma folha de
papel. — Aqui está a tua confissão.
A mulher permanece em silêncio. Os seus lábios não se movem,
os seus olhos parecem ter perdido o brilho. Assemelha-se a um
invólucro vazio, o seu rosto é uma máscara que ninguém tem posta,
os seus braços pendem tortos das articulações. Mais vale não
pensar nisso, reflete o doutor Kircher, que, como é natural, nesse
momento não pode deixar de pensar no que o mestre Tilman teria
feito com aqueles braços para penderem assim. Mais vale não
imaginar. Esfrega os olhos e imagina.
— Se não falas — diz o doutor Tesimond — vamos ler o que
disseste no interrogatório. Está nesta folha. São as palavras que
proferiste, Hanna. Agora devem todos ouvi-las. Agora deve ser tudo
posto a claro.
As suas palavras parecem ressoar como se fossem proferidas
numa sala de pedra e não ao ar livre, debaixo da tília, cuja copa é
agitada por um vento ameno… Não! Não é a primeira vez que o
doutor Kircher pensa na sorte que teve e em como foi uma bênção
de Deus o doutor Tesimond tê-lo escolhido como seu fâmulo. Ele
próprio não fizera nada nesse sentido, não se oferecera para o
cargo nem fizera pressão para ser aceite, quando aquela
personagem lendária chegara de Paderborn vinda de Viena,
convidado pelas entidades superiores, um viajante admirado, uma
testemunha da verdadeira fé, que, de súbito, durante o exercício
religioso na igreja da ordem, se levantara e se dirigira a ele. Vou
fazer-te perguntas, meu rapaz, responde depressa. Não penses no
que eu quero ouvir, pois não o podes imaginar, diz apenas o que
está certo. A quem ama Deus mais — aos anjos, que não sabem o
que é o pecado, ou aos homens, que pecaram e se arrependem?
Responde mais depressa. Os anjos foram feitos da substância de
Deus, sendo por isso eternos, ou foram criados como nós? Ainda
mais depressa. O pecado é criação de Deus e, assim sendo, Ele
ama-o como a tudo o que criou? E, caso contrário, como é possível
o castigo do pecado ser eterno, como são eternos a sua dor e o seu
sofrimento no fogo? Fala depressa!
E assim decorreu uma hora. Kircher ouvia-se responder a
perguntas sempre novas e, quando não sabia a resposta, inventava
qualquer coisa e, às vezes, acrescentava citações e fontes, Tomás
de Aquino escreveu mais de cem volumes, ninguém os conhece
todos, e a sua capacidade inventiva era uma coisa em que sempre
tinha podido confiar. Por isso falou sem parar, como se fosse outro a
proferir as palavras pela sua boca, fazendo apelo a todas as suas
forças, sem permitir que a sua memória omitisse respostas, frases
ou nomes; e até os números soube somar, subtrair e dividir,
ignorando as palpitações do seu coração ou a cabeça à roda, todo o
tempo com o seu confrade a fitá-lo com uma tal intensidade que
ainda hoje por vezes tem a sensação de que aquele interrogatório
ainda prossegue e vai prosseguir por todo o sempre, como se tudo
desde então não passasse de um sonho. Finalmente, o doutor
Tesimond recuara um passo e, com os olhos fechados, dissera
como que para consigo:
— Preciso de ti. O meu alemão não é bom, tens de me ajudar.
Vou regressar a Viena, deveres sagrados chamam-me, e tu
acompanhas-me.
E assim, estão há um ano em viagem. O caminho até Viena é
longo quando durante o percurso se encontram tantas coisas
prementes; um homem como o doutor Tesimond não consegue
limitar-se a avançar quando se depara com maquinações. Em
Lippstadt tiveram de exorcizar um demónio, depois, em Passau
tiveram de expulsar um sacerdote esquecido da sua honra. Foi
necessário contornar Pilsen, pois aí os protestantes particularmente
enraivecidos teriam podido prender os viajantes jesuítas, e, devido a
esse desvio, tinham ido parar a uma aldeiazinha onde a detenção, a
tortura e o julgamento de uma bruxa maléfica os tinha feito atrasar
seis meses. Depois, foram informados de um colóquio sobre
dracontologia a realizar em Bayreuth. Como é natural, tiveram de
viajar até lá, a fim de impedir que Erhard von Felz, o grande rival do
doutor Tesimond, dissesse disparates sem ser contestado; o debate
entre ambos havia durado sete semanas, quatro dias e três horas.
Em seguida, Kircher acalentara a esperança de chegar finalmente à
cidade imperial, mas quando pernoitaram no Collegium
Willibaldinum em Eichstätt, o arcebispo do principado convidara-os
para uma audiência:
— A minha gente está adormecida, doutor Tesimond. Os
curadores não põem editais suficientes nas aldeias, as bruxas são
cada vez mais numerosas, ninguém faz nada, e mal consigo
financiar o meu próprio seminário de jesuítas, porque o cónego está
contra. Quereis ajudar-me? Caso estejais dispostos a ajudar-me,
nomeio-vos comissário antibruxaria ad hoc e concedo-vos a
permissão para executardes, no tempo e lugar imediatos, o suplício
capital dos maleficentes. Concedo-vos plenos poderes para tal.
Por esse motivo, o doutor Kircher passara uma tarde inteira
indeciso, quando uma conversa com um estranho jovem despertara
nele a suspeita de que o seu caminho se voltara a cruzar com o de
um bruxo. Não tenho de comunicar isto, pensara ele, posso ficar
calado, posso esquecer, não tive motivo para falar com o jovem, foi
um acaso. Mas ao mesmo tempo, a voz da consciência fizera-se
ouvir de novo: Fala com o teu mentor. Os acasos não existem,
existe apenas a vontade de Deus. E, como seria de esperar, nessa
mesma tarde, o doutor Tesimond decidira que tinha de visitar o
moleiro e, como seria de esperar, em seguida tudo seguira o curso
habitual. Agora encontram-se há semanas naquela aldeia esquecida
de Deus, e Viena está mais longe do que nunca.
Chama-lhe a atenção o facto de todos o fitarem e só os
acusados estarem de olhos no chão. Voltou a acontecer: está
alheado. Só espera que isso não tenha durado muito. Apressa-se a
olhar em redor e orienta-se: tem à sua frente a confissão de Hanna
Krell, conhece a caligrafia, é a sua, foi ele próprio que a escreveu, e
agora terá de a ler. Com dedos inseguros, pega na folha, mas, no
exato momento em que os seus dedos tocam no papel, sopra uma
rabanada de vento, o doutor Kircher fecha a mão, por sorte com a
rapidez suficiente para ficar com a folha bem presa. É melhor não
imaginar o que teria acontecido se tivesse voado: Satanás é
poderoso, o ar é o seu reino, só lhe faltava o julgamento tornar-se
uma farsa.
Enquanto lê a confissão de Hanna, nem sequer pensa de novo
no interrogatório. Na câmara escura ao fundo da casa paroquial,
outrora o quarto das vassouras e agora convertido em sala de
interrogatórios, onde o mestre Tilman e o doutor Tesimond
trabalharam dia após dia a fim de conseguirem arrancar a verdade à
velha. O doutor Tesimond é de temperamento cordial e teria
preferido não assistir ao severo interrogatório, mas a lei para
aplicação da pena capital do imperador Karl obriga um juiz a estar
presente a toda a tortura que ordene. E também exige uma
confissão. Nenhum processo pode dar-se por encerrado sem uma
confissão, nenhuma sentença pode ser pronunciada sem que os
acusados tenham confessado qualquer coisa. Na realidade, o
processo realiza-se à porta fechada, mas no dia do julgamento, em
que a confissão é confirmada em público e é lida a sentença, está
toda a gente presente.
Enquanto o doutor Kircher lê, ouvem-se exclamações de horror
vindas da multidão. Há pessoas de respiração suspensa, pessoas
que cochicham, pessoas que abanam a cabeça, pessoas que
arreganham os dentes de raiva e de nojo. A sua voz treme,
enquanto se ouve a falar de voos noturnos e de corpos despidos, de
viagens a cavalo no vento, de grandes sabats durante a noite, de
sangue em caldeirões e de corpos nus, vede como se revolvem, do
gigantesco bode que, com uma lascívia inesgotável, vos toma pela
frente e vos toma por trás ao som de cânticos entoados na língua
dos infernos. O doutor Kircher volta a folha e chega às maldições:
frio e granizo nos campos, para destruir a colheita dos piedosos,
fome para os tementes a Deus, morte e doença para os fracos e
pestilência para as crianças. Diversas vezes, vacila-lhe a voz, mas,
ao evocar a sua missão sagrada, chama-se à ordem, e, graças a
Deus, está preparado. Nada nesses horrores é novo para ele,
conhece cada palavra, pois não escreveu essas palavras uma vez,
mas repetidas vezes, fora da câmara, enquanto no interior decorria
um interrogatório e o mestre Tilman fazia vir à superfície tudo o que
devia ser confessado num processo de bruxaria: e tu não voaste
também, Hanna? Todas as bruxas voam, queres ser a única que
não voa, queres negar que o fizeste? E o sabat? Não beijaste
Satanás, Hanna? Se falares, serás perdoada, mas, se quiseres
calar-te, olha o que o mestre Tilman tem na mão e que vai utilizar.
— «Isso aconteceu» — lê o doutor Kircher nas últimas linhas. —
«Foi dessa maneira que eu, Hanna Krell, filha de Leopoldina e de
Franz Krell, rejeitei o Senhor, traí a comunidade cristã, prejudiquei
os meus concidadãos, a Santa Madre Igreja e as autoridades. É
com profunda vergonha que confesso e aceito o justo castigo, assim
Deus me ajude.»
O doutor Kircher fica em silêncio. Uma mosca passa a zumbir
pela sua orelha, descreve um arco, pousa-lhe na testa. Deve
enxotá-la ou fingir que não repara? O que convém mais à dignidade
de um tribunal, o que é menos ridículo? Olha de soslaio para o seu
mentor, mas este não lhe dá nenhuma indicação.
Em vez disso, o doutor Tesimond inclina-se para a frente, olha
para Hanna Krell e pergunta-lhe:
— Esta é a tua confissão?
Ela faz um aceno de cabeça afirmativo e as correntes que a
prendem tilintam.
— Tens de o dizer, Hanna.
— Esta é a minha confissão.
— Fizeste isto tudo?
— Fiz isto tudo.
— E quem te incitou a fazê-lo?
A velha fica em silêncio.
— Hanna! Quem te instigou? Com quem estiveste no sabat,
quem te ensinou a voar?
Ela continua calada.
— Hanna?
Ela ergue a mão e aponta para o moleiro.
— Tens de dizer, Hanna.
— Foi ele.
— Mais alto.
— Foi ele.
O doutor Tesimond faz um movimento com a mão, o guarda
empurra o moleiro para a frente. Agora tem início a parte principal
do processo. A velha Hanna foi apenas um pretexto, porque os
bruxos quase sempre têm seguidores; no entanto, demorou algum
tempo até a mulher de Ludwig Stelling ter confessado, sob a
ameaça de sanções, que o reumatismo só começara a atormentá-la
depois de ter discutido com Hanna Krell; e, de igual modo, só ao fim
de uma semana de interrogatório Magda Steger e Maria Loserin se
aperceberam de que havia sempre um violento temporal quando
Hanna afirmava estar demasiado doente para ir à missa. A própria
Hanna não mentiu durante muito tempo. Quando o mestre Tilman
lhe mostrou os instrumentos de tortura, começou a confessar os
seus crimes, e quando o carrasco começou a trabalhar a sério,
depressa revelou toda a dimensão do que havia feito.
— Claus Ulenspiegel! — O doutor Tesimond segura três folhas
de papel no ar. — A tua confissão!
Mal o doutor Kircher olha para as folhas na mão do seu mentor,
sente dores de cabeça. Sabe de cor cada frase, escreveu aquele
texto repetidas vezes diante da porta fechada na sala dos
interrogatórios, através da qual se ouve tudo.
— Posso dizer uma coisa? — pergunta o moleiro.
O doutor Tesimond lança-lhe um olhar reprovador.
— Por favor — diz o moleiro.
Esfrega a testa, onde a correia deixou uma marca vermelha. As
correntes tilintam.
— O que é? — pergunta o doutor Tesimond.
E foi todo o tempo assim. O doutor Tesimond não parava de
repetir que nunca se deparara com um caso tão difícil como o desse
moleiro. E, apesar de todos os esforços do mestre Tilman — apesar
de facas e agulhas, apesar de sal e fogo, apesar de vergastas de
couro, de sapatos molhados, de torniquetes para os polegares e da
dama de ferro —, tudo continua por esclarecer. Um verdugo sabe
como soltar as línguas, mas o que fazer com alguém que não para
de falar, mas que não se importa minimamente de se contradizer,
como se Aristóteles não tivesse escrito nada sobre lógica? A
princípio, o doutor Tesimond tomou essa atitude por uma artimanha
pérfida, mas depois apercebeu-se de que, no meio de todo o
discurso confuso do moleiro, encontrara sempre fragmentos de
verdade, e mesmo revelações assombrosas.
— Refleti no assunto — diz Claus. — Agora sei. Estou
consciente dos meus erros. Peço perdão. Peço clemência.
— Fizeste o que esta mulher disse? É verdade que conduziste
aquele sabat?
— Tomei-me por inteligente — responde o moleiro de olhos
postos no solo. — Sobrestimei-me. Matutei de mais, esforcei de
mais o maldito entendimento, lamento muito. Peço clemência.
— E a maldição que lançaste? Os campos destruídos? O frio, a
chuva, foste tu?
— Ajudei os enfermos à maneira antiga. Houve alguns a quem
não pude ajudar, os antigos métodos não são de confiança, sempre
dei o meu melhor, mas só me pagavam quando funcionava. Li o
futuro dos que o queriam saber na água e no voo das aves. Disse
ao primo do Peter Steger, não ao Paul Steger, mas ao outro, o Karl,
que não subisse à faia à procura de tesouros. Não faças isso, disse-
lhe eu, e o primo do Steger perguntou-me: há um tesouro na minha
faia? Eu respondi: não faças isso, Steger, e o Karl disse: se há lá um
tesouro, quero subir. E depois caiu e partiu a cabeça. E, por mais
que pense, não consigo decidir se uma predição que não se teria
cumprido se eu não a tivesse feito é de facto uma predição ou outra
coisa qualquer.
— Ouviste a confissão da bruxa? Ouviste-a dizer que foste tu
que organizaste o sabat?
— Se há um tesouro na copa da árvore, então continua lá.
— Ouviste a bruxa?
— E as duas folhas de bétula que encontrei.
— Lá estás tu outra vez com isso!
— Pareciam uma única folha.
— Não venhas outra vez com as folhas!
Claus está a suar, respira com dificuldade.
— Isso deixou-me completamente desorientado. — Detém-se a
pensar, abana a cabeça, coça o couro cabeludo rapado, de modo
que as correntes tilintam. — Posso mostrar as folhas? Ainda devem
estar no moinho, no sótão, onde me dedicava aos meus estudos
idiotas. — Vira-se e, fazendo tilintar as correntes do braço, aponta
por cima das cabeças dos espectadores. — O meu filho pode ir
buscá-las.
— No moinho já não há nada dessa traquitana de magia — diz o
doutor Tesimond. — Agora está lá outro moleiro e não deve ter
guardado toda essa tralha.
— E os livros? — pergunta Claus em voz baixa.
Inquieto, o doutor Kircher vê uma mosca pousar no papel que
tem nas mãos. As duas patinhas negras seguem o curso da escrita.
Será possível que queira dizer-lhe alguma coisa? Mas move-se tão
depressa, que não dá tempo para ler o que desenha, e agora ele
não pode permitir-se desviar de novo a atenção.
— Onde estão os meus livros? — pergunta Claus.
O doutor Tesimond faz um sinal ao seu secretário e o doutor
Kircher põe-se de pé para ler a confissão do moleiro.
Em pensamento está de novo nas investigações. O moço de
lavoura Sepp contara prontamente que era frequente encontrar o
moleiro mergulhado num sono profundo durante o dia. Sem alguém
a confirmar esses esvaecimentos, não se pode acusar ninguém de
bruxaria, há regras estritas a esse respeito. Os servos de Satanás
abandonam o corpo e voam em espírito para regiões distantes.
Segundo Sepp declarou e ficou registado, nem sacudidelas, gritos e
pontapés tinham ajudado a acordá-lo, e também o padre fez
acusações graves sobre o moleiro: amaldiçoo-te, gritava ele mal
alguém na aldeia o irritava, lanço-te ao fogo, faço-te sofrer dores
terríveis! Exigia obediência da aldeia inteira, todos temiam a sua ira.
E, certa vez, a mulher do padeiro viu os demónios, que ele, depois
de escurecer, havia conjurado para o campo de Steger: falou de
fauces, de dentes, de garras, de grandes pénis, de formas viscosas
da meia-noite, o doutor Kircher mal conseguiu registar aquilo por
escrito. E depois, quatro, cinco, seis aldeões, e em seguida mais
três e ainda dois, e cada vez mais, descreveram
pormenorizadamente quantas vezes o mau tempo se abatera sobre
os seus campos. A maldição ainda é mais importante do que os
esvaecimentos — sem depoimentos, só é possível julgar um
acusado por heresia, mas não por bruxaria. Para se certificar de que
não há nenhum erro, o doutor passou dias a explicar às
testemunhas que gestos e palavras lhes devem ter chamado a
atenção, as cabeças deles funcionam lentamente, é preciso repetir
tudo até se recordarem dos anátemas, das antigas fórmulas, das
invocações a Satanás. Com efeito, veio a descobrir-se
posteriormente que todos tinham ouvido as palavras certas e visto
os gestos de invocação exatos. Só o padeiro, que também foi
interrogado, de súbito deixou de estar seguro; mas, nessa altura, o
doutor Tesimond chamou-o à parte e perguntou-lhe se, na realidade,
queria proteger um bruxo e se a sua vida era tão pura que ele não
receasse ser também submetido a uma investigação minuciosa.
Nessa altura, o padeiro recordou-se de que vira tudo o que os
outros viram, não sendo então preciso mais nada para levar o
moleiro a fazer uma confissão num interrogatório cerrado.
— «Fiz cair granizo sobre os campos» — lê o doutor Kircher. —
«Desenhei os meus círculos na terra, invoquei as forças das alturas,
os demónios das profundezas e o Senhor do Ar, destruí os campos
cultivados, fiz cair o gelo sobre a terra, provoquei a morte das
sementeiras. Além disso, apoderei-me de um livro proibido, em
latim…»
Nesse momento, repara num desconhecido e cala-se. De onde
surgiu ele? O doutor Kircher não o vira aproximar-se, mas, se já se
encontrasse entre os espectadores anteriormente, com o seu
chapéu de abas largas, a gola de veludo e o bastão de prata, ter-
lhe-ia chamado a atenção. Porém, ali está ele, junto do carro do
menestrel. E se ninguém o visse a não ser ele? O seu coração
começa a bater descompassado. E se o homem fosse invisível para
os outros e só ele o visse?
Contudo, quando o homem avança em passos lentos, as
pessoas afastam-se para o deixar passar. O doutor Kircher solta um
suspiro de alívio. O homem tem uma barba curta, uma capa de
veludo e uma pena no chapéu de feltro. Com gestos solenes, tira o
chapéu e faz uma vénia.
— Permiti-me que vos saúde, sou Vaclav van Haag.
O doutor Tesimond põe-se de pé e faz igualmente uma vénia.
— É uma honra — responde. — Uma grande alegria!
Também o doutor Kircher se levanta, faz uma reverência e volta
a sentar-se. Afinal, não é o diabo, mas o autor de uma obra famosa
sobre a formação dos cristais em grutas de estalactites. O doutor
Kircher leu isso em qualquer sítio e pouco reteve na memória. Lança
um olhar interrogativo à tília: a luz tremula, como se tudo aquilo não
passasse de uma ilusão. O que está ali a fazer aquele especialista
em cristalografia?
— Estou a escrever um tratado sobre bruxaria — diz o doutor
Van Haag, endireitando-se. — Consta que estais a julgar um
feiticeiro nesta aldeia. Peço autorização para o defender.
Um murmúrio percorre a assistência. O doutor Tesimond hesita,
mas acaba por dizer:
— Estou certo de que um homem com a vossa erudição terá
coisas melhores a que dedicar o seu tempo.
— É possível que sim, mas, no entanto, encontro-me aqui a
pedir-vos este favor.
— A lei da pena capital não prevê que o acusado disponha de
uma defesa.
— Mas também não a proíbe. Senhor curador, se me permitis…
— Ide falar com o juiz, prezado colega, não com o curador. Será
ele a pronunciar a sentença, mas quem a dita sou eu.
O doutor Van Haag olha para o curador. Está branco de raiva,
mas é verdade, ele não tem qualquer poder de decisão ali. Van
Haag inclina ligeiramente a cabeça e dirige-se ao doutor Tesimond:
— Há inúmeros exemplos. Os processos com intercessor estão a
tornar-se cada vez mais frequentes. Alguns condenados à morte
não são capazes de se defender tão bem como por certo fariam se
soubessem falar como deve ser. Por exemplo, esse livro proibido
que foi mencionado. Não foi referido que tinha sido escrito em latim?
— É verdade.
— O moleiro leu-o?
— Como podia lê-lo, santo nome de Deus?
O doutor Van Haag sorri. Olha o doutor Tesimond, depois o
doutor Kircher, depois o moleiro e, depois ainda, de novo o doutor
Tesimond.
— E então? — pergunta o doutor Tesimond.
— Se o livro está escrito em latim…
— Sim?
— E se o moleiro não sabe latim…
— Sim?
O doutor Van Haag abre os braços e sorri de novo.
— Posso perguntar uma coisa? — intervém o moleiro.
— Um livro que é proibido possuir, prezado colega, é um livro
que não é permitido possuir, não um livro que não é permitido ler. É
deliberadamente que o Santo Ofício fala de possuir e não de
conhecer. Doutor Kircher?
O doutor Kircher engole em seco, pigarreia, pisca os olhos e diz:
— Um livro é uma possibilidade. Está sempre pronto a falar.
Mesmo uma pessoa que não compreenda a língua em que está
escrito pode entregá-lo a outros capazes de o ler, a fim de que a sua
ignomínia seja por eles executada. Ou poderia aprender a língua e,
se não houver ninguém que lha ensine, encontraria uma maneira de
aprendê-la por si mesmo. Já se viram coisas semelhantes. Uma vez
que o espírito humano é poderoso, é possível consegui-lo por meio
da simples contemplação das letras, contando a sua frequência,
observando os seus padrões. Foi desta maneira que Zagraphius
aprendeu hebreu no deserto, movido apenas pelo anseio de
conhecer a palavra de Deus na sua forma original. E sobre Taras de
Bizâncio, conta-se que compreendeu os hieróglifos egípcios apenas
através de anos de contemplação. Infelizmente não nos deixou uma
chave, pelo que temos de nos dedicar de novo a essa decifração,
mas, talvez muito em breve, essa tarefa seja realizada. E não
devemos esquecer que há sempre a possibilidade de Satanás, cujos
vassalos conhecem todas as línguas, de um dia para o outro confiar
a um dos seus servos a capacidade de ler o livro. Por todos estes
motivos, o parecer sobre a compreensão da obra compete a Deus, e
não aos seus servos. A esse Deus que, no Dia do Juízo avaliará as
almas. A tarefa dos juízes humanos é esclarecer as simples
circunstâncias. E a mais simples dentre elas é a seguinte: se um
livro é proibido, não é permitido possuí-lo.
— Além disso, é demasiado tarde para uma defesa —
acrescenta o doutor Tesimond. — O processo está encerrado. Só
falta a sentença. O acusado confessou.
— Mas, como é óbvio, submetido a tortura.
— Sim, naturalmente — exclama o doutor Tesimond. — Como
poderia ser de outro modo? Sem tortura, nunca ninguém
confessaria nada!
— Ao passo que, com tortura, todos confessam.
— Graças a Deus, sim.
— Até um inocente.
— Mas ele não é inocente. Temos os depoimentos dos outros.
Temos o livro!
— Os depoimentos dos outros, que também seriam submetidos
a tortura se não prestassem declarações?
O doutor Tesimond permanece uns instantes em silêncio.
— Prezado colega — diz em voz baixa —, como é natural,
alguém que recusa prestar declarações sobre um bruxo é submetido
a uma investigação e acusado. Se assim não fosse, aonde iríamos
parar?
— Bem, mais uma pergunta. E quanto aos esvaecimentos do
bruxo? Em tempos dizia-se que as pessoas que sofriam dessas
ausências em sonhos tinham um pacto com o diabo. Até o inquisidor
Institoris refere na sua obra que o demónio não tem qualquer poder
no mundo de Deus, pelo que tem de recorrer ao sono a fim de
infundir nos seus aliados a ilusão de que lhes oferece uma luxúria
desenfreada. Agora julgam-se os bruxos exatamente pelos mesmos
atos que antes se declarava serem alucinações provocadas pelo
demónio, sendo além disso acusados dos sonhos ilusórios. Então
esses atos maléficos são realidade ou fantasia? Não podem ser
ambas as coisas. Isso não faz sentido, prezado colega.
— Faz todo o sentido, prezado colega.
— Então explicai-mo.
— Prezado colega, não irei permitir que o julgamento que hoje
teve lugar seja desvalorizado por dúvidas e palavreado.
— Posso perguntar uma coisa? — repete o moleiro.
— E eu também — diz Peter Steger, alisando a toga. — Isto está
a durar muito tempo, não podíamos fazer uma pausa? As vacas têm
os úberes cheios, estou a ouvi-las.
— Prendam-no — diz o doutor Tesimond.
O doutor Van Haag recua um passo. Os guardas olham-no
fixamente.
— Levem-no e acorrentem-no — diz o doutor Tesimond. — É
certo que a lei da pena capital permite que o acusado tenha um
intercessor, mas em nenhuma parte é referido que seja aceitável
erguer-se em defesa de um servo de demónio e perturbar o
julgamento com questões absurdas. Com todo o respeito por um
ilustre colega, isso não posso tolerar e, com um interrogatório
rigoroso, iremos esclarecer o que leva um homem respeitável a
comportar-se de tal forma.
Ninguém esboça um movimento. O doutor Van Haag olha para
os guardas e estes olham para o doutor Tesimond.
— Talvez seja a sede da fama — aventa o doutor Tesimond. —
Ou talvez qualquer coisa pior. Veremos.
Ouvem-se gargalhadas na assistência. O doutor Van Haag dá
mais um passo à retaguarda e leva a mão aos copos da espada. Na
realidade, poderia ter conseguido escapar-se, pois os guardas não
são rápidos nem arrojados, mas o mestre Tilman já está ao seu lado
a abanar a cabeça.
Não é preciso mais nada. O mestre Tilman é muito alto e
corpulento, e o seu rosto tem uma expressão muito diferente da que
tinha havia pouco. O doutor Van Haag retira a mão da espada. Um
dos guardas agarra-o pelo pulso, tira-lhe a espada e condu-lo ao
estábulo com a porta reforçada com ferro.
— Protesto! — diz o doutor Van Haag, ao mesmo tempo que
acompanha o outro sem opor resistência. — Não se pode tratar
assim um homem da minha posição.
— Permiti-me, prezado colega, prometer-vos que a vossa
posição não será esquecida.
O doutor Van Haag volta-se mais uma vez. Abre a boca, mas, de
súbito, é como se as forças lhe faltassem, e ele parece
profundamente surpreendido. Já se abre a porta do estábulo a
ranger, e ele desaparece atrás dela com o guarda. Decorridos
instantes, o guarda volta a sair, fecha a porta e corre os dois
ferrolhos.
O coração do doutor Kircher bate descompassado. Está
atarantado de orgulho. Não é a primeira vez que vê alguém
subestimar a determinação do seu mentor. Não é por acaso que
uma pessoa é o único sobrevivente da Conspiração da Pólvora e
uma das mais célebres testemunhas da fé da Companhia de Jesus.
Há sempre quem não saiba com quem está a lidar. Porém,
infalivelmente, vem a descobrir.
— Este é o grande dia do julgamento — diz o doutor Tesimond a
Peter Steger. — Não é o momento de ordenhar as vacas. Se lhes
doem as tetas, é por vontade do Senhor.
— Estou a perceber — responde Peter Steger.
— A sério que percebes?
— A sério. Sim, sim, percebo.
— E tu, moleiro? Lemos a tua confissão, e agora queremos ouvir,
alto e bom som. É verdade que fizeste tudo isso? Estás
arrependido?
Segue-se um silêncio. Só se ouve o vento e o mugido das vacas.
Uma nuvem tapa o sol e, para alívio do doutor Kircher, os jogos de
luz na copa das árvores cessaram. Mas, em contrapartida, os ramos
estalam, murmuram e crepitam agitados pelo vento. O tempo
arrefeceu e é provável que dentro em pouco volte a chover. Mesmo
a execução desse bruxo de nada vai servir contra o mau tempo, há
demasiadas pessoas más que, todas juntas, são as culpadas do
frio, das más colheitas e da penúria, sobretudo nestes últimos anos
antes do fim do mundo. Porém, mesmo quando a batalha está
perdida, faz-se o que se pode. Aguenta-se, defende-se as posições
que restam e espera-se pelo dia em que Deus regresse em todo o
seu esplendor.
— Moleiro — repete o doutor Tesimond. — Tens de dizer perante
todos os presentes. É verdade que fizeste isso?
— Posso perguntar uma coisa?
— Não. Só podes responder. É verdade que fizeste isso?
O moleiro olha mais uma vez em redor, como alguém que não
sabe ao certo onde se encontra. Mas o doutor Kircher está ciente de
que também aquilo não passa de um estratagema, que não se deve
deixar enganar, pois, por trás dessas pessoas aparentemente
perdidas, esconde-se o velho adversário, pronto a semear a morte e
a destruição onde puder. Se ao menos os ramos das árvores
parassem com o seu murmúrio! Agora, o ruído do vento ainda é pior
do que a luz tremeluzente nas copas das árvores. E se ao menos as
vacas se calassem!
O mestre Tilman aproxima-se do moleiro e pousa-lhe a mão no
ombro como a um velho amigo. O moleiro, mais baixo do que o
carrasco, olha-o de baixo, como uma criança. O mestre Tilman
curva-se e diz-lhe qualquer coisa ao ouvido. O moleiro faz um aceno
de cabeça, dando a entender que percebeu. Entre ambos, reina
uma confiança que desorienta o doutor Kircher. Provavelmente,
deve-se ao facto de, por distração, ele ter olhado na direção errada,
precisamente para os olhos do rapaz.
Este subiu para o carro do menestrel. Ali está ele, num plano
superior a todos os outros, de pé na beira do carro, e é estranho não
cair. Como mantém o equilíbrio ali em cima? O doutor Kircher não
consegue evitar um sorriso crispado. O rapaz não lhe retribui o
sorriso. Involuntariamente, o doutor Kircher pergunta-se se o miúdo
não terá também sido tocado por Satanás, embora durante o
interrogatório não tivesse dado nenhuns sinais disso. A mulher
fartara-se de chorar, o rapaz estava absorto, mas ambos disseram
tudo o que era necessário. De repente, o doutor Kircher já não está
seguro. Teriam sido demasiado negligentes? São múltiplos os
estratagemas do Senhor do Ar. E se, afinal, o moleiro não fosse o
pior dos bruxos? O doutor Kircher sente uma suspeita germinar no
seu íntimo.
— Fizeste isso? — volta a perguntar o doutor Tesimond.
O carrasco recua. Todos arrebitam as orelhas, se põem em bicos
de pés, erguem as cabeças. Até o vento abranda por um momento,
quando Claus Ulenspiegel inspira, para finalmente responder.
III

Não sabia que havia uma comida tão boa. Em toda a sua vida,
nunca provara nada assim: a abrir, uma canja substancial, com pão
de trigo acabado de fazer, depois uma perna de carneiro, temperada
com sal e até pimenta, em seguida um lombo de um porco gordo,
com molho, e finalmente um bolo de cerejas doce, ainda quente do
forno, tudo isto acompanhado por um vinho tinto que sobe à cabeça
como uma névoa. Devem ter trazido um cozinheiro de qualquer
lado. Enquanto Claus come, sentado à sua mesinha do estábulo, e
sente o estômago encher-se de coisas boas e quentes, pensa que,
no fundo, uma comida assim merece que se morra por ela.
Pensava que a última refeição de um condenado era apenas
uma frase feita, sem suspeitar que, efetivamente, tinham chamado
um cozinheiro que preparara uma refeição tão boa como nunca
comera na vida. Com as correntes nos braços, é difícil segurar na
carne, o ferro faz-lhe escoriações e tem os pulsos em carne viva,
mas de momento nada disso importa, tão bem lhe sabe a comida. E,
de resto, as mãos já não lhe doem tanto como na semana anterior.
O mestre Tilman também é mestre nas curas e Claus teve de
reconhecer sem inveja que o carrasco conhece ervas de que ele
nunca ouvira falar. Contudo, não recuperou a sensibilidade dos
dedos esmagados e, por isso, a carne cai várias vezes ao chão.
Fecha os olhos. Ouve as galinhas esgaravatar no estábulo contíguo,
ouve os roncos do homem com o vestuário caro, que quisera ser
seu intercessor e que agora está acorrentado e deitado na palha.
Enquanto mastiga a deliciosa carne de porco, tenta convencer-se de
que nunca virá a saber o desfecho do processo contra esse homem.
Nessa altura estará morto. Também nunca virá a saber como
estará o tempo no dia seguinte. Nessa altura estará morto. Ou se na
noite seguinte irá chover. Mas nada disso importa, a quem interessa
a chuva?
No entanto, é curioso: ainda estás aí sentado e podes debitar
todos os números entre um e mil, mas depois de amanhã serás um
ser do ar ou uma alma que regressa ao mundo sob uma forma
humana ou animal, mal se recordando do moleiro que ainda és —
mas se és uma doninha, uma galinha ou um pardal pousado num
ramo, sem saber que outrora eras um moleiro que se interessava
pela trajetória da Lua, se saltas de ramo em ramo e pensas apenas
em grãos de cereal e, como é natural, nos busardos, dos quais tens
de fugir, que importância tem que em tempos tenhas sido um
moleiro do qual já ninguém se recorda?
Ocorre-lhe que o mestre Tilman lhe dissera que podia sempre
repetir. Basta chamares-me e dizeres que queres mais, podes
comer o que quiseres, porque depois acabou-se.
De modo que Claus experimenta. Chama. Ainda a mastigar,
chama, pois ainda tem carne no prato e também ainda há bolo, mas
quando se pode comer mais, porque esperar até tudo acabar e as
pessoas lá fora possivelmente estarem a pensar noutra coisa?
Chama de novo e, efetivamente, a porta abre-se.
— Posso comer mais?
— De tudo?
— Sim, de tudo, por favor.
O mestre Tilman sai sem dizer palavra, e Claus começa a comer
o bolo. E, enquanto mastiga a massa quente, macia e doce, de
súbito apercebe-se de que sempre passou fome: dia e noite, do
nascer do sol ao anoitecer. Só que não sabia que aquilo era fome —
aquela sensação de insuficiência, aquele vazio em tudo, aquela
debilidade do corpo que deixa os joelhos e as mãos sem energia e
põe a cabeça à roda. Aquilo não era necessário, não devia ter sido
assim, mas era simplesmente fome!
A porta range ao abrir-se e o mestre Tilman chega com uma
bandeja com várias canecas. Claus solta um suspiro de alegria. O
mestre Tilman, interpretando mal o suspiro, pousa o tabuleiro,
coloca-lhe uma mão no ombro e diz:
— Vai correr tudo bem.
— Eu sei — responde Claus.
— É muito rápido. Sei o que faço. Prometo-te.
— Obrigado — agradece Claus.
— Às vezes, os condenados irritam-me. E então não é tão
depressa, podes crer. Mas tu não me irritaste.
Agradecido, Claus faz um aceno de cabeça.
— Agora as coisas correm melhor. Antigamente, punham-vos a
todos na fogueira. Isso demora muito tempo e não é bonito de se
ver. Mas a forca não é nada. É muito rápido. Sobes para o patíbulo
e antes que te dês conta já estás na presença do Criador. Também
te queimam, mas só depois, quando já estás morto, e vais ver que
isso não te incomoda nada.
— Ótimo — diz Claus.
Entreolham-se. O mestre Tilman não parece com vontade de
sair. Dir-se-ia que gosta de estar no estábulo.
— Não és mau sujeito — diz o mestre Tilman.
— Obrigado.
— Para um aliado do demónio.
Claus encolhe os ombros.
O mestre Tilman sai e fecha a porta com todo o cuidado.
Claus continua a comer. Tenta imaginar de novo as casas lá fora,
as aves no céu, as nuvens, o solo verde-acastanhado com a erva,
campos de cultivo e todos os montículos de toupeiras que aparecem
na primavera, não consegues livrar-te delas, nem com ervas nem
com sortilégios, e a chuva, como é natural — tudo isso irá continuar,
mas ele não.
Isso não consegue imaginar.
Cada vez que tenta conceber um mundo sem Claus Ulenspiegel,
a sua imaginação introduz de novo aquele mesmo Claus
Ulenspiegel que devia eliminar — como um ser invisível, como olhos
sem corpo, como um fantasma. Mas quando consegue ignorar a sua
existência por completo, então o mundo, que tenta imaginar sem
Claus Ulenspiegel também desaparece com ele. Por muitas vezes
que tente, é sempre o mesmo. A partir daí, poderia concluir que está
em segurança? Que não pode desaparecer completamente porque
finalmente o mundo não pode desaparecer ou teria de desaparecer
sem ele?
A carne de porco continua a saber-lhe maravilhosamente, mas
quanto ao bolo, recorda-se agora que o mestre Tilman não lhe levou
mais; e, como era o melhor de tudo, experimenta chamá-lo outra
vez.
O verdugo entra.
— Posso comer mais bolo?
O mestre Tilman sai sem responder. Claus mastiga a carne de
porco. Agora, que acalmou a fome, é que se dá conta do sabor
intenso e requintado da comida, de como é quente, salgada e um
pouco doce. Contempla a parede do estábulo. Se, pouco antes da
meia-noite desenharmos um quadrado e, a seguir, com um pouco
de sangue, dois círculos duplos no chão e se pronunciarmos três
vezes o terceiro dos nomes secretos do Todo-Poderoso, surge uma
porta pela qual podemos escapar. O único problema eram as
correntes, pois para as tirar seria necessária uma decocção de
cavalinha; teria de fugir com ela e, pelo caminho, encontrar
cavalinha, mas Claus está cansado, dói-lhe o corpo e, naquela
época do ano, não há cavalinha.
E seria difícil recomeçar a partir do zero noutro lugar. Antes era
fácil, mas agora está velho e não tem forças para retomar uma vida
errante e sem honra, para se tornar um jornaleiro desprezível na
orla de qualquer aldeia, um desses desconhecidos que toda a gente
evita. Nem sequer poderia trabalhar como curandeiro, pois isso iria
chamar a atenção.
Não, é mais fácil morrer enforcado. E se, depois de morto, se
recordar de quem era antes, isso faria avançar mais o conhecimento
do mundo do que dez anos de busca e investigação. Talvez então
compreendesse o problema da trajetória da Lua, talvez entendesse
também com que grão de cereal o monte deixa de ser um monte, e
é possível que visse o que distingue as duas folhas, entre as quais
não há nenhuma diferença além do facto de serem duas e não uma.
Talvez seja por causa do vinho ou da agradável saciedade que
experimenta pela primeira vez na vida, mas o facto é que não lhe
apetece sair dali. Que a parede fique onde está.
O ferrolho abre-se e o mestre Tilman entra com o bolo.
— Agora já chega, não volto cá.
Dá umas palmadinhas no ombro de Claus, e fá-lo de boa
vontade, talvez por não poder tocar nas pessoas no exterior. Depois
boceja, sai e fecha a porta com tanta força que acorda o homem
adormecido.
Este levanta-se, espreguiça-se e olha em redor.
— Onde está a velha?
— Noutro estábulo — responde Claus. — É uma sorte. Passa o
tempo a lamentar-se, não se aguenta.
— Dá-me vinho!
Claus olha-o surpreendido. Quer responder que o seu vinho é
seu e de mais ninguém, que bem o merece, pois vai morrer daqui a
pouco. Mas sente pena do homem, para quem as coisas, afinal,
também não são fáceis, e estende-lhe o jarro. O outro pega-lhe e
bebe com grandes goladas. Para, sente Claus vontade de lhe gritar,
não vai sobrar nada para mim! Porém, não consegue, pois trata-se
de alguém de categoria e não se dão ordens a uma pessoa assim.
O vinho corre-lhe pelo queixo, deixando-lhe nódoas na gola de
veludo, mas tem tanta sede que isso parece não o preocupar.
Por fim, pousa o jarro e exclama:
— Meu Deus, que vinho tão bom!
— Pois é — concorda Claus —, é muito bom.
Tem a esperança ardente de que o homem não queira também o
bolo.
— Aqui para nós que ninguém nos ouve, diz-me a verdade. Tens
um pacto com o demónio?
— Não sei, respeitável senhor.
— Como é possível não saberes uma coisa dessas?
Claus reflete. É evidente que, na sua cabeça oca, fez qualquer
coisa, pois de outro modo não estaria ali. Porém, não sabe ao certo
o quê. Interrogaram-no durante tanto tempo, incessantemente,
submetendo-o a tanto sofrimento, teve de contar a sua história
tantas vezes, e faltava sempre qualquer coisa, tinha sempre de
acrescentar algo, de descrever mais um demónio, mais um
esconjuro, mais algum livro obscuro, mais um sabat, para que o
mestre Tilman o deixasse em paz, e logo de seguida era obrigado a
repetir todos esses pormenores, vezes sem conta, de modo que já
não sabe bem o que teve de inventar e o que na realidade se
passou na sua curta vida, durante a qual, de qualquer modo, não
havia muita ordem: umas vezes aqui, outras vezes ali, depois noutro
sítio, e então de repente, ficava coberto de pó de farinha, com a
mulher descontente, os moços de moleiro que não lhe tinham
respeito, e agora acorrentado, e isto fora tudo. Tal como o bolo que
estava quase acabado, mais três ou quatro dentadas, talvez cinco,
se comesse pouquinho de cada vez.
— Não sei — repete.
— Sorte maldita! — exclama o homem, olhando para o bolo.
Assustado, Claus mete na boca tudo o que resta e come, sem
mastigar. O bolo enche-lhe a garganta, e engole-o tão depressa
quanto pode; acabou-se. E acabou-se o comer. Para sempre.
— Respeitável senhor — diz Claus, para mostrar que é educado.
— O que se vai passar convosco?
— É difícil dizer de antemão. Quando uma pessoa está presa,
não é fácil sair. Vão levar-me para a cidade e interrogar-me lá. Terei
de confessar qualquer coisa.
Com um suspiro, contempla as mãos. É evidente que está a
pensar no carrasco; toda a gente sabe que ele começa sempre
pelos dedos.
— Respeitável senhor — repete Claus. — Suponhamos que
tendes um monte de trigo.
— O quê?
— Tira-se um grão e põe-se de lado.
— O quê?
— Só um de cada vez. Quando deixa de haver monte?
— Depois de tirarmos doze mil grãos de trigo.
Claus coça a testa. As correntes tilintam. Sente a marca da
correia. Foi uma dor diabólica, ainda se recorda de cada segundo
que passou a gritar e a suplicar, mas o mestre Tilman só a tirou
depois de ele inventar e descrever um novo sabat.
— Exatamente doze mil?
— Claro que sim — responde o homem. — Achas que também
me vão servir uma refeição assim? Ainda deve restar qualquer
coisa. Tudo isto é uma grande injustiça, eu não devia estar aqui, só
te queria defender para escrever o meu livro sobre o assunto. Dei
por encerrada a cristalografia e agora queria passar para o direito.
Mas a minha situação não tem nada que ver contigo. Sei que talvez
tenhas um pacto com o diabo, e quem sabe se não serás mesmo o
diabo? Ou talvez não.
Permanece uns instantes em silêncio e, em seguida, com voz
autoritária, chama o mestre Tilman.
Isto não está a correr bem, pensa Claus, que agora já conhece
mais ou menos o carrasco. Suspira. Apetecia-lhe um pouco mais de
vinho para não ser de novo dominado pela tristeza, mas disseram-
lhe que não havia mais.
Abrem de novo o ferrolho e o mestre Tilman olha para dentro do
estábulo.
— Traz-me dessa carne — diz o homem, sem o olhar. — E
vinho. O jarro está vazio.
— Também vais estar morto amanhã? — pergunta o mestre
Tilman.
— Houve um mal-entendido — responde o homem numa voz
rouca, como se estivesse a dirigir-se a Claus, pois é preferível falar
com um bruxo condenado do que com um algoz. — E uma vil
infâmia, pela qual alguns ainda hão de pagar.
— Quem ainda estiver vivo amanhã não tem direito à última
refeição do condenado — declara o mestre Tilman. — Pousa uma
mão no ombro de Claus. — Ouve lá — diz em voz baixa —, quando
amanhã estiveres por baixo da forca, não te esqueças que tens de
perdoar a todos.
Claus faz um aceno de assentimento.
— Aos juízes — diz o mestre Tilman. — E a mim também.
Claus fecha os olhos. Ainda sente o efeito do vinho: uma
agradável e suave sensação de vertigem.
— Alto e bom som — diz o mestre Tilman.
Claus suspira.
— É isso que é costume fazer — acrescenta o mestre Tilman. —
O condenado perdoa ao seu verdugo alto e bom som, de modo que
todos possam ouvir. Sabes isso?
Claus não pode deixar de pensar na mulher. Há algum tempo,
Agneta tinha ido vê-lo e falara com ele através das frestas das ripas
de madeira da parede. Murmurara que lamentava, que não tivera
alternativa senão dizer o que haviam exigido que dissesse, e pedira-
lhe que a perdoasse.
Claro que perdoava tudo, respondera ele. O que não lhe dissera
era que não percebia muito bem do que ela estava a falar. Não há
nada a fazer, desde os interrogatórios que o seu entendimento não
é de fiar como antes.
Então, a mulher recomeçara a chorar, a falar da sua vida difícil e
também do filho, que a preocupava muito, e a dizer que não sabia o
que fazer com ele.
Claus ficara contente por ter notícias do rapaz, pois há muito que
não pensava nele, embora, no fundo, gostasse muito dele. Mas
havia qualquer coisa estranha com o filho, era difícil de explicar, mas
ele não parecia feito da mesma massa que as outras pessoas.
— Para ti é fácil — dissera ela. — Já não vais ter de quebrar a
cabeça com coisa nenhuma. Mas eu não posso ficar aqui na aldeia.
Não me deixam. E o que hei de fazer? Nunca estive em nenhum
outro sítio.
— Sim, claro — respondera ele, ainda a pensar no rapaz. — Lá
isso é verdade.
— Talvez possa ir para casa da minha cunhada, em Pfünz. O
meu tio, antes de morrer, disse que tinha ouvido que ela agora vive
em Pfünz. Talvez seja verdade.
— Tens uma cunhada?
— É a mulher do sobrinho do meu tio. A prima de Franz Melker.
Não conheceste o meu tio, ele morreu quando eu era miúda. Se não
for isso, que mais posso fazer?
— Não sei.
— Mas, e o rapaz? Talvez ela me ajude, se se recordar de mim,
quem sabe? Se ainda estiver viva. Mas, de repente, mais duas
bocas para alimentar? É de mais.
— Sim, é de mais.
— Talvez eu possa pôr o rapaz a trabalhar como jornaleiro, ele é
pequeno e não trabalha bem, mas pode vir a modificar-se. Se não
for isso, que mais hei de fazer? Não posso ficar aqui.
— Pois não, não podes.
— Meu grande imbecil, para ti é fácil. Mas diz-me lá, devo ir
procurar a minha cunhada? Talvez não fosse em Pfünz. Tu que
sabes sempre tudo, diz-me lá o que hei de fazer.
Nesse momento, por sorte, chegou a hora da última refeição do
condenado, e Agneta fora-se embora, para o carrasco não a ver,
pois ninguém está autorizado a falar com um condenado. E o vinho
e a comida eram tão apetitosos que ele se esquecera por completo
dos soluços da mulher.
— Moleiro! — chama o mestre Tilman. — Estás a ouvir-me?
— Sim, estou.
A mão do carrasco pesa-lhe no ombro.
— Amanhã tens de falar em voz alta! De dizer que me perdoas!
Estás a ouvir? Diante de toda a gente, ouviste? Tem de ser assim!
Claus quer responder, mas a sua cabeça não consegue fixar-se
numa coisa, tanto mais que agora está de novo a pensar no rapaz.
Há pouco tempo, vira-o fazer malabarismo. Fora entre dois
interrogatórios, no tempo vazio em que no mundo só existiam dores
lancinantes — olhou através das frestas e viu o filho passar, a fazer
girar três pedras acima da cabeça, como se elas não tivessem peso
e tudo acontecesse sem a sua intervenção. Claus chamara-o para o
avisar. Quem fazia aquilo, tinha de ter cuidado, pois também por
uma coisa dessas o podiam acusar de bruxaria, mas o rapaz não o
ouvira, talvez por a voz do pai ser demasiado débil. Desde os
interrogatórios que é sempre assim, já não há remédio.
— Ouve lá — diz o mestre Tilman. Não me vais mandar para o
vale de Josafat!
— Não há maldição mais poderosa do que a de um moribundo
— diz o homem deitado na palha. — Fica colada à alma e nunca
mais consegues livrar-te dela.
— Não vais fazer isso, moleiro, não vais amaldiçoar o carrasco.
Não me vais fazer isso, pois não?
— Não — promete Claus. — Não vou fazer isso.
— Talvez aches que não tem importância. Pensas que, de
qualquer modo, vais ser enforcado, mas sou eu que vou estar no
patíbulo, sou eu que vou dar o nó e que tenho de te puxar as pernas
para te partir o pescoço, senão demora!
— Tens razão — diz o homem deitado na palha.
— Não me vais mandar para o vale de Josafat? Não me vais
amaldiçoar, vais perdoar ao carrasco, como é costume fazer?
— Sim, vou fazer isso — promete Claus.
O mestre Tilman tira-lhe a mão do ombro e dá-lhe uma palmada
amistosa.
— Que perdoes ou não aos juízes, tanto se me dá. Não é um
problema meu. A esse respeito, podes fazer o que te der na gana.
De repente, Claus não pode deixar de sorrir. De certeza que é
por causa do vinho, mas também porque acabou de perceber que,
por fim, pode experimentar a grande chave de Salomão. Nunca teve
oportunidade de o fazer, aprendeu as diversas frases longas com o
velho Hüttner, em tempos foi fácil, provavelmente ainda as guarda
na memória. Com que cara ficariam todos se, no dia seguinte,
subisse ao cadafalso e, de repente, as correntes se quebrassem,
como se fossem de papel. Ficariam de olhos arregalados se abrisse
os braços e se elevasse no ar, acima das suas caras apalermadas
— acima do idiota do Peter Steger e da mulher, ainda mais idiota do
que ele, dos seus parentes, dos filhos e avós, uns mais parvos do
que os outros, acima dos Melker, dos Homrich, dos Holtz, dos Tamm
e de todos os demais. Como ficariam de olhos esbugalhados se ele
não caísse, mas subisse cada vez mais, como ficariam
boquiabertos. Durante uns momentos, Claus ainda os vê ficarem
cada vez mais pequenos, depois tornarem-se pontinhos, e a própria
aldeia transformar-se numa mancha no meio da floresta verde-
escura; e, quando erguesse a cabeça, veria o veludo branco das
nuvens, e os habitantes, alguns deles com asas, outros, de fogo
branco, outros ainda com duas ou três cabeças, e ali estaria ele, o
príncipe do ar, o rei dos espíritos e das chamas. Tem piedade, meu
grande demónio, leva-me para o teu reino, liberta-me, e Claus já
ouve a resposta: vê os meus domínios. Vê como são vastos, e vê
como estão lá tão abaixo, voa comigo.
Claus ri. Por instantes, vê uma quantidade de ratos a correr à
volta dos seus pés, alguns com caudas de serpentes, outros com
antenas de lagartas, tem a impressão de sentir as suas dentadas,
mas a dor faz-lhe cócegas e é quase agradável; e, em seguida, vê-
se de novo a voar, como fico leve, se o meu senhor me permite
voar. Basta recordares-te das palavras, não te podes enganar, não
pode faltar nenhuma, senão a Chave de Salomão não abre, e tudo
foi em vão. Mas se te lembrares das palavras, libertar-te-ás de tudo,
das pesadas correntes, da miséria, do frio e da fome da vida de
moleiro.
— É por causa do vinho — diz o mestre Tilman.
— Estou preso há pouco tempo — diz o homem, sem olhar para
ele. — Mas o Tesimond ainda lamenta.
— Ele prometeu perdoar-me — diz o mestre Tilman. — Prometeu
que não me amaldiçoava.
— Não fales comigo!
— Diz-me que também ouviste — pede o mestre Tilman. —
Senão faço-te mal. Ele prometeu ou não prometeu?
Olham ambos para o moleiro, que está de olhos fechados, com a
cabeça apoiada à parede e sem parar de rir baixinho.
— Sim — diz o homem. — Ele prometeu.
IV

Nele apercebera-se imediatamente de que ele não era bom. Mas


só quando ouviu Gottfried cantar a canção do diabólico moleiro
diante da multidão, na praça do mercado, compreendeu que tinham
dado com o pior menestrel que existia.
A voz dele é demasiado aguda e por vezes fica com farfalheira a
meio de um verso. Quando fala, a sua voz é bastante boa, mas,
quando canta, torna-se aguda e de cana rachada. A voz em si não
seria má, se ele encontrasse o tom certo. E desafinar não seria tão
mau como isso se ao menos soubesse tocar alaúde. Gottfried está
sempre a enganar-se e às vezes esquece-se de como continua a
canção. Mas também isso não seria tão insuportável se os seus
versos fossem melhores. Eles falam do pérfido moleiro e da aldeia
que dominava, dos seus truques e bruxarias, e, embora as histórias
sejam tão ricas em pormenores macabros e sangrentos como as
pessoas esperam, são confusas e difíceis de perceber e as rimas
tão desastradas que até uma criança ficaria incomodada com elas.
Apesar de tudo, as pessoas escutam. Não é frequente passarem
por ali jograis, e gostam de ouvir menestréis a cantar sobre
processos por bruxaria mesmo quando as canções são deploráveis.
Mas, ao fim de quatro estrofes, Nele dá-se conta de que as
expressões se modificaram e, quando ele chega à décima segunda
e última, muitos já se foram embora. Agora precisa urgentemente de
qualquer coisa que tenha mais êxito. Felizmente que ele sabe isso,
pensa Nele, felizmente que suspeita!
Gottfried começa a canção do princípio.
Repara no desassossego nos rostos e, no seu desespero, canta
mais alto, o que torna a sua voz ainda mais aguda. Nele lança uma
olhadela a Tyll. Este revira os olhos e, em seguida, abre os braços
num gesto resignado. Com ligeireza, salta para junto do cantor e
começa a dançar em cima do carro.
No mesmo instante, tudo melhora. Gottfried canta tão mal como
antes, mas, de repente, isso deixa de ser importante. Tyll dança
como se tivesse aprendido, como se o seu corpo se tivesse tornado
imponderável e não houvesse nada que lhe desse maior prazer.
Salta, rodopia e volta a saltar, como se não tivesse acabado de
perder tudo, e isso é tão contagioso que alguns espectadores,
depois outros e depois ainda mais começam a dançar. Já voam
moedas, que Nele recolhe.
Também Gottfried percebe o que se passa e o alívio que sente
faz com que lhe seja mais fácil manter o ritmo; Tyll dança com tal
fervor e com uma determinação tão natural que, ao contemplá-lo,
Nele quase se esquece de que a canção é sobre o pai dele, moleiro
rima com outeiro, Satanás com tenaz, fogo com jogo e noite com
noite, pois esta palavra está sempre a aparecer: escura noite, negra
noite, bruxas da noite. A partir da quinta estrofe, o tema é o
processo judicial — os juízes severos e virtuosos, a misericórdia
divina, a punição que cada malfeitor acaba por receber, enquanto
Satanás solta uivos, até a sua carne se decompor, e a forma como o
maléfico moleiro vai exalar o último suspiro, enquanto o demónio
pragueja. Entretanto, Tyll não para de dançar, pois precisam das
moedas para comer.
A Nele, tudo aquilo parece um sonho: aquela aldeia não é uma
aldeia, ali vivem pessoas com rostos que ela não conhece e há
casas onde ela nunca esteve. Nunca ninguém predisse junto do seu
berço que um dia iria abandonar a sua casa, e espera em breve ir
despertar aí, junto do grande forno, do qual sai o vapor do pão
quente. As raparigas não vão viver para outros lugares. Ficam onde
nasceram, sempre foi assim: és pequena, ajudas em casa, quando
cresces, ajudas as criadas e, em adulta, se és bonita, casas com um
filho do Steger ou com um parente do ferreiro, ou, se as coisas
correm mal, com um Heinerling. Depois tens um filho, e outro filho, e
ainda outros, a maioria dos quais morre, e continuas a ajudar as
criadas, embora na igreja te sentes um pouco mais à frente, ao lado
do teu marido e atrás da tua sogra, e mais tarde, quando tens
quarenta anos, te doem os ossos e já perdeste os dentes, sentas-te
no lugar da tua sogra.
Como não queria nada disso, partiu com Tyll.
Há quanto tempo foi? Não sabe dizer, na floresta o tempo fica
desordenado. Mas recorda-se bem de como Tyll, na noite depois do
julgamento, magro e com o corpo um tanto torcido, apareceu à sua
frente, no milheiral ondulante de Steger.
— O que te aconteceu? — perguntou ela.
— A minha mãe diz que tenho de ir trabalhar como jornaleiro. Diz
que vai ser difícil trabalhar bem, porque sou pequeno e fraco.
— E vais fazer isso?
— Não, vou partir.
— Para onde?
— Para longe.
— Quando?
— Agora. Um dos jesuítas, o mais jovem, também me olhou
assim.
— Mas não podes partir sem mais nem menos!
— Posso, pois.
— E se te prendem? Estás sozinho e eles são muitos.
— Mas tenho dois pés, e um juiz de toga ou um guarda com
alabardas, também só têm dois. Todos têm tantos pés como eu.
Ninguém tem mais. Nem todos juntos conseguem correr mais
depressa do que nós.
Nessa altura, Nele sentiu uma súbita excitação maravilhosa, a
garganta apertou-se-lhe e o coração começou a palpitar.
— Porque dizes nós?
— Porque tu vens comigo.
— Contigo?
— Foi por isso que fiquei à tua espera.
Ela sabe que não deve pensar, pois, de outro modo, perde a
coragem e fica ali, como está previsto; mas o rapaz tem razão, de
facto é possível partir. Na verdade, nada a retém ali, onde todos
pensam que tem de ficar.
— Agora vai para casa — diz Tyll — e traz todo o pão que
puderes.
— Não!
— Não vens comigo?
— Sim, vou contigo, mas não volto a casa.
— Mas o pão!
— Se vir o meu pai, a minha mãe, o forno e a minha irmã, não
conseguirei ir e fico aqui.
— Precisamos de pão.
Nele abana a cabeça. Na realidade, pensa agora, enquanto
apanha as moedas na praça do mercado de uma aldeia
desconhecida — se tivesse voltado à padaria, teria ficado, e em
breve estaria casada com o filho de Steger, com o mais velho, a
quem faltam dois dentes da frente. Há poucos momentos na vida
em que duas coisas sejam possíveis, em que um caminho seja tão
bom como outro. Poucos momentos em que se possa decidir.
— Sem pão não podemos ir — diz Tyll. — De resto, temos de
esperar que seja manhã. Nem sabes como é a floresta à noite.
Nunca tiveste essa experiência.
— Tens medo da Fria?
E assim, ela fica a saber que saiu vencedora.
— Não tenho medo — riposta Tyll.
— Então vamos embora!
Durante toda a sua vida, Nele não esquecerá aquela noite, as
risadinhas dos fogos-fátuos, as vozes da escuridão, os ruídos dos
animais, nem o rosto fulgurante que, por um momento, surgiu à sua
frente, para voltar a desaparecer imediatamente, ainda antes de ela
ter a certeza de que o vira. Durante toda a sua vida pensará no
medo, no coração a palpitar-lhe no pescoço, no sangue a latejar-lhe
nos ouvidos e no murmúrio semelhante a um gemido do rapaz à sua
frente, a falar consigo mesmo ou com os seres da floresta. Ao
romper do dia, a tiritar de frio, encontram-se na orla de uma clareira
argilosa. O orvalho pinga das árvores e eles sentem fome.
— Devias ter ido buscar o pão.
— Estás a pedir que te dê um murro na cara.
Quando seguem caminho, no ar húmido da manhã, Tyll
choraminga, e também Nele sente vontade de soluçar. Sente as
pernas pesadas, a fome é quase insuportável, e Tyll tinha razão, ao
dizer que sem pão se acaba por morrer. É certo que há bagas e
raízes, e a erva também deve ser comestível, mas isso não chega
para uma pessoa ficar saciada. No verão talvez fosse suficiente,
mas não com aquele frio.
É então que ouvem atrás de si o matraquear e ranger de um
carro. Escondem-se nuns arbustos, até que veem que é o jogral. Tyll
salta para o meio do caminho.
— Ah — diz o cantor. — É o filho do moleiro!
— Levas-nos contigo?
— Porquê?
— Para começar, porque de outro modo morremos de fome. Mas
também porque te ajudamos. Não queres ter companhia?
— Provavelmente já andam à tua procura — responde o cantor.
— Mais uma razão. Ou, por acaso, queres que me apanhem?
— Subam.
Gottfried explica-lhes o mais importante: quem viaja com um
jogral, pertence à gente itinerante, à qual nenhuma guilda protege e
nenhuma autoridade defende. Se estiveres numa cidade e houver
um incêndio, tens de fugir, pois irão pensar que foste tu que ateaste
o fogo. Se estiveres numa aldeia e qualquer coisa for roubada, tens
de fazer o mesmo. Se fores atacado por salteadores, dá-lhes tudo.
Na maior parte dos casos, não levam nada, mas exigem uma
canção e, nesse caso, canta para eles o melhor que puderes, pois é
frequente os salteadores dançarem melhor do que os aldeãos que
têm pés de chumbo. Mantém-te sempre de ouvido alerta, para
saberes quando é dia de mercado, pois, nos outros dias, não te
deixam entrar nas aldeias. Quando há mercado, as pessoas
reúnem-se, querem dançar e ouvir canções, e são menos agarradas
ao dinheiro.
— O meu pai morreu?
— Sim, morreu.
— Tu viste?
— Claro que vi, foi por isso que lá fui. Primeiro, perdoou aos
juízes, como é costume fazer, depois ao carrasco, em seguida subiu
ao cadafalso e puseram-lhe a corda ao pescoço, e por fim começou
a murmurar, mas eu estava muito lá para trás e não percebi o que
dizia.
— E depois?
— Tudo se passou como é habitual.
— Então ele morreu?
— Rapaz, quando alguém está pendurado na forca, como podia
ser de outro modo? Claro que está morto! Como querias que
estivesse?
— E foi rápido?
Gottfried fica em silêncio durante algum tempo antes de
responder:
— Sim, muito rápido.
Durante algum tempo viajam sem falar. O arvoredo já não é tão
cerrado e os raios de sol penetram através da cobertura de folhas.
Da erva da clareira ergue-se uma neblina fina e o ar enche-se de
insetos e de aves.
— Como nos tornamos jograis? — pergunta Nele por fim.
— Aprende-se. Eu tive um mestre que me ensinou tudo. Já
ouviram falar dele, é Gerhard Vogtland.
— Não.
— É de Trier.
O rapaz encolhe os ombros.
— A grande litania sobre a campanha do duque Ernesto contra o
pérfido sultão da Turquia.
— O quê?
— Esta é a sua balada mais famosa. A grande litania sobre a
campanha do duque Ernesto contra o pérfido sultão da Turquia. Não
a conhecem? Querem que a cante?
Nele faz um aceno afirmativo e assim travam conhecimento com
o escasso talento de Gottfried. A grande litania sobre a campanha
do duque Ernesto contra o pérfido sultão da Turquia tem trinta e três
estrofes e, apesar dos reduzidos dotes de Gottfried, este tem uma
memória prodigiosa e recorda-se de todas.
E assim viajam durante muito tempo. O jogral canta, de tempos a
tempos o burro resfolega, e as rodas do carro matraqueiam e chiam,
como se conversassem uma com a outra. Pelo canto do olho, Nele
vê lágrimas a correrem pelo rosto do rapaz. Ele vai de cabeça
voltada, para que ninguém veja.
Quando Gottfried termina a canção, volta ao princípio. Depois
canta-lhes uma balada truculenta sobre o belo príncipe Frederico e
os nobres da Boémia, após o que canta sobre o maléfico dragão
Kufer e o cavaleiro Roberto, e ainda outra sobre o infame rei de
França e o grande rei de Espanha, seu inimigo. Em seguida, fala-
lhes da sua vida. O pai era carrasco e por isso ele também teria de
sê-lo. Mas fugira de casa.
— Foi como nós — diz Nele.
— São muitos mais que fazem isso do que pensam. Viver
segundo as regras implica ficar no sítio onde se nasceu, mas o
mundo está cheio de pessoas que recusaram fazê-lo. Não têm
proteção, mas são livres. Não têm de prender ninguém, nem de
executar ninguém.
— Não têm de casar com o filho do Steger — diz Nele.
— Nem de ser jornaleiros — acrescenta o rapaz.
Ficam a saber o que Gottfried passou com o seu mestre.
Vogtland batia-lhe muito, era frequente dar-lhe pontapés e uma vez
chegou ao ponto de o morder na orelha, porque ele tinha desafinado
e também porque, com os seus dedos grossos, tinha dificuldade em
tocar alaúde. Pobre imbecil, dizia-lhe Vogtland, não quiseste ser
verdugo e agora torturas dez vezes mais as pessoas com a tua
música! No entanto, Vogtland não o tinha deixado, e assim ele tinha
ido aprendendo cada vez mais, diz Gottfried orgulhoso, até
finalmente se ter tornado ele próprio um mestre. E descobrira que,
em todos os lugares e em todos os momentos, as pessoas gostam
de ouvir falar de execuções e que esse tema nunca deixa ninguém
indiferente.
— E de execuções sei eu. Como se pega na espada, como se dá
o nó na corda, como se empilha a lenha para a fogueira e onde se
devem aplicar as tenazes em brasa, sei isso tudo. Talvez outros
jograis tenham rimas mais perfeitas, mas eu sei ver quais os
verdugos que percebem e não percebem do seu ofício e as minhas
baladas são as mais rigorosas.
Quando anoitece, acendem uma fogueira. Gottfried partilha as
suas provisões com os companheiros: pão ázimo, que Nele vê
imediatamente ter sido feito pelo pai. Por instantes, também fica
com os olhos marejados de lágrimas, pois ao olhar para esse pão,
com uma cruz ao meio e margens a esboroar-se, percebe que está
na mesma situação que o rapaz. Ele nunca mais vai tornar a ver o
pai, porque ele morreu, mas ela também não, porque não pode
voltar atrás. Agora são ambos órfãos. Mas esse momento passa, ela
olha para o fogo e de súbito sente-se livre, como se pudesse voar.
A segunda noite na floresta não é tão má como a primeira. Agora
estão habituados aos ruídos, além de que as brasas emitem calor e
o jogral lhes deu uma manta grossa. Quase a adormecer, repara
que Tyll ao seu lado ainda está acordado. Está tão desperto, tão
alerta, tão absorto nos seus pensamentos, que ela se dá conta
disso. Não se atreve a virar a cabeça na sua direção.
— Alguém que leva o fogo — diz ele baixinho.
Nele não percebe se essas palavras lhe são dirigidas.
— Estás doente?
Tyll parece ter febre. Nele inclina-se para ele e apercebe-se de
que do seu corpo emanam ondas de calor, que isso é agradável,
pois assim ela não tem frio. E em breve adormece e sonha com um
campo de batalha, com milhares de pessoas a deslocarem-se por
uma paisagem montanhosa, e então começam a troar os canhões.
Acorda, é de manhã e está de novo a chover.
O jogral está sentado, encolhido, debaixo da sua manta, com um
caderninho numa mão e um lápis na outra. Escreve com carateres
minúsculos, quase ilegíveis, pois só tem aquele caderno para
escrever e o papel é caro.
— Os versos são o mais difícil — diz ele. — Sabem alguma
palavra que rime com infame?
Mas, finalmente, termina a canção do pérfido moleiro, e agora aí
estão na praça do mercado, Gottfried a cantar e Tyll a bailar, tão
leve e elegante que a própria Nele está surpreendida.
Encontram-se lá mais carros. No lado oposto da praça está o de
um vendedor de tecidos, junto a ele estão dois amoladores, ao lado
um fruteiro, um caldeireiro, outro amolador, um curandeiro que tem
teriaga, capaz de curar todas as maleitas, outro fruteiro, um
vendedor de especiarias, um segundo curandeiro, que, infelizmente,
não tem teriaga e que, por esse motivo, fica prejudicado, um quarto
amolador e um barbeiro. Todos eles são gente com ofícios
ambulantes. Quem os rouba ou assassina, não é perseguido. É
esse o preço da liberdade.
Na orla da praça há ainda algumas figuras duvidosas. São gente
desconsiderada, músicos com pífaros, gaitas de foles e rabecas.
Estão muito longe, mas Nele está convencida de que estão a olhar
com sorrisos escarninhos e a cochichar graçolas sobre Gottfried.
Junto deles, está sentado um contador de histórias. É possível
reconhecê-lo pelo chapéu amarelo, gibão azul e cartaz que tem
pendurado ao pescoço, no qual está escrito em grandes letras
qualquer coisa que deve ser Contador de Histórias, pois só estes
têm cartazes — o que é um disparate, pois o seu público compõe-se
de pessoas que não sabem ler. Os músicos reconhecem-se pelos
instrumentos e os vendedores pelos seus artigos, mas um contador
de histórias precisa de um cartaz. Também lá está um homem de
baixa estatura, com o traje inconfundível dos malabaristas: gibão
colorido, calças tufadas e gola de pele. Com um esboço de sorriso,
olha para eles, na sua expressão há algo pior do que escárnio, e
quando repara que Nele o fita, ergue uma sobrancelha, deita a
língua de fora ao canto da boca e pisca o olho.
Gottfried, que chegou pela segunda vez ao fim da décima
segunda estrofe e terminou pela segunda vez a balada, reflete um
momento e volta ao princípio. Tyll faz um sinal a Nele, que se
levanta. Como é natural, já dançou — em festas da aldeia, quando
chegavam músicos e os jovens saltavam a fogueira, e muitas vezes
dançava com as outras raparigas, sem música, nos intervalos do
trabalho. Mas nunca tinha dançado diante de espectadores.
Porém, enquanto rodopia, primeiro para um lado, depois para o
outro, chega à conclusão de que não faz diferença. Só tem de fazer
como Tyll. Cada vez que o rapaz bate palmas, ela imita-o, quando
ele levanta o pé direito, ela faz o mesmo, e depois o esquerdo,
quando ele o faz, a princípio com um ligeiro atraso, depois ao
mesmo tempo, como se soubesse de antemão o que ele vai fazer,
como se não fossem duas pessoas, mas a dançar se tivessem
tornado uma única. E agora Tyll faz o pino e dança apoiado nas
mãos, e ela gira à volta dele inúmeras vezes, sem parar, de modo
que a praça da aldeia se torna uma confusão de cores. Sente a
cabeça à roda, mas luta contra isso e fixa o olhar no vazio, sente-se
melhor e consegue manter o equilíbrio, sem vacilar, enquanto
continua às voltas.
Por instantes, fica confusa quando a música aumenta de
intensidade e se torna mais variada, mas depois percebe que os
músicos fizeram a sua entrada. Avançam, a tocar os seus
instrumentos, e Gottfried, que não consegue acompanhar o seu
ritmo, desorientado baixa o alaúde, de modo que por fim a música
fica afinada. O público aplaude, as moedas saltam por cima da
madeira do carro. Tyll põe-se de novo de pé, Nele deixa de girar,
domina a vertigem e vê como o rapaz atou uma corda ao carro —
onde a teria desencantado tão depressa? — e a lança de maneira
que ela se desenrola. Alguém a apanha, Nele não consegue ver
quem, pois ainda está tonta, alguém a atou, Tyll já está em cima da
corda, a saltar para a frente e para trás e a fazer vénias, mais
moedas voam, e são tantas que Gottfried mal consegue apanhá-las.
No final, o rapaz salta para o chão e segura na mão de Nele,
enquanto os músicos fazem soar uma fanfarra, fazem ambos uma
vénia, e o público bate palmas e grita, um fruteiro atira uma maçã,
Nele apanha-a e dá-lhe uma dentada, há séculos que não comia
uma maçã. Ao seu lado, Tyll apanha outra, e outra, e outra, e mais
outra e faz malabarismo com elas. A multidão fica de novo
rejubilante.
Ao cair da tarde, sentam-se no chão a ouvir o contador de
histórias. Este fala do pobre rei Frederico de Praga, cujo reinado só
durara um inverno, até o poderoso exército do imperador o depor, e
agora essa orgulhosa cidade está em decadência, e nunca mais se
irá recompor. Ele exprime-se em frases longas e com uma bela
melodia embaladora, sem mover as mãos; apenas com a voz,
consegue que ninguém desvie o olhar. Tudo isso é verdade, diz ele,
mesmo o que foi inventado é verdade. E Nele, embora não
compreenda o que aquilo quer dizer, aplaude.
Gottfried rabisca no seu caderninho. Num murmúrio, confessa
que não sabia que Frederico havia sido deposto mais uma vez, e
que agora tem de modificar a balada.
À direita de Nele, o rabequista afina o seu instrumento, com os
olhos fechados para melhor se concentrar. Agora pertencemos a
este mundo, pensa ela. Agora estamos com a gente itinerante.
Alguém lhe toca no ombro e Nele volta-se.
Atrás dela está acocorado o malabarista. Já não é novo e tem o
rosto muito corado. Pouco antes de morrer, Heinrich Tamm também
tinha um rosto assim vermelho. Até os olhos são raiados de
vermelho. Porém, também são penetrantes, alerta, inteligentes e
antipáticos.
— Vocês os dois — diz o homem em voz baixa.
Agora Tyll também se vira.
— Querem ir comigo?
— Queremos — responde o rapaz sem hesitar.
Nele fita-o, sem perceber. Então não vão com Gottfried, que é
tão bondoso para eles, que lhes dá comida e que os ajudou a sair
da floresta? Com Gottfried, a quem poderiam ajudar?
— Dois como vocês davam-me jeito — diz o malabarista. — E
alguém como eu poderia ser-vos útil. E ensino-vos tudo.
— Mas nós vamos com ele — diz Nele, apontando para
Gottfried, que move os lábios enquanto escreve no seu caderninho.
O lápis que tem na mão parte-se, ele pragueja baixinho e
continua a garatujar.
— Assim não vão longe — diz o prestidigitador.
— Não te conhecemos — diz Nele.
— Chamo-me Pirmin — apresenta-se o homem. — Agora já me
conhecem.
— Eu chamo-me Tyll. E esta é a Nele.
— É a última vez que vos pergunto. Se não têm a certeza, não
se fala mais nisso. Eu sigo caminho e vocês continuam com ele.
— Vamos contigo — diz o rapaz.
Pirmin estende a mão e Tyll segura-a. O malabarista solta uma
gargalhada baixa, os seus lábios franzem-se e, ao canto da boca,
vê-se de novo a sua língua grossa e húmida. Nele não tem vontade
de partir com ele.
Pirmin estende-lhe também a mão.
A jovem mantém-se imóvel. Atrás dela, o contador de histórias
continua a falar de como o Rei do Inverno fugiu da cidade em
chamas — agora é um fardo para os príncipes protestantes da
Europa, percorre o país com a sua corte ridícula, ainda traja de
púrpura, como se fosse um dos grandes deste mundo, mas as
crianças riem dele e os sábios vertem lágrimas, pois veem nele a
fragilidade de todos os poderosos.
Agora Gottfried também se apercebeu do que se passa. Com a
testa franzida, vê a mão estendida do bobo.
— Anda — diz o rapaz. — Decide-te.
Mas porque havia ela de fazer o que Tyll diz? Tinha partido para,
em vez de obedecer ao pai, obedecer a ele? Que lhe devia, para
andar ao seu mando?
— O que se passa? — pergunta Gottfried. — O que está a
acontecer, o que é isto?
A mão de Pirmin continua estendida. O seu sorriso também não
se altera, como se a hesitação de Nele nada significasse para ele,
como se há muito soubesse qual iria ser a sua decisão.
— Então, o que é isto? — repete Gottfried.
Nele não tem vontade de tocar naquela mão carnuda e mole. É
certo que Gottfried não é muito dotado. Mas foi bondoso para eles.
E ela não gosta daquele homem, há qualquer coisa nele que a deixa
desconfiada. Por outro lado, é certo que Gottfried não lhes poderá
ensinar nada.
Por um lado, por outro lado… Pirmin pisca o olho, como se lhe
tivesse lido o pensamento.
Impaciente, Tyll faz um movimento brusco com a cabeça.
— Anda, Nele!
Ela só teria de estender o braço.
ZUSMARSHAUSEN
Como havia ele de saber, escrevia o gordo conde na sua
biografia redigida nos primeiros anos do século XVIII, já muito idoso,
atormentado pela gota, pela sífilis e também pela intoxicação pelo
mercúrio, decorrente do tratamento da sífilis, como havia ele de
saber o que o esperava quando, no último ano da guerra, Sua
Majestade o enviara em busca do famoso bufão.
Nesse tempo, Martin von Wolkenstein ainda não tinha vinte e
cinco anos, embora já fosse corpulento. Descendente do trovador
Oswald, crescera na corte de Viena, o seu pai fora tesoureiro-mor
do imperador Matias, o seu avô, segundo guarda-chaves de
Rodolfo, que enlouquecera. Quem conhecia Martin von Wolkenstein,
gostava dele; tinha qualquer coisa de luminoso, uma confiança em
si e uma simpatia que nenhuma injustiça abalava. O próprio
imperador concedera-lhe diversas vezes o seu favor e foi como
prova desse mesmo favor que ele considerou o facto de o conde
Trauttmansdorff, presidente do Conselho Secreto, o ter convocado
para lhe comunicar que chegara aos ouvidos do imperador que o
mais famoso bobo do reino encontrara refúgio no semiarruinado
Mosteiro de Andechs. Havia-se assistido a tanta ruína, fora
necessário tolerar tanta devastação, tantas preciosidades tinham
desaparecido, que a ruína de Tyll Ulenspiegel — fosse ele
protestante ou católico, pois ninguém parecia saber o que era na
realidade —, não era posta em causa.
— As minhas felicitações, jovem — disse Trauttmansdorff. —
Aproveitai a ocasião, pois quem sabe o que dela resultará?
Em seguida, como o gordo conde descreveu decorridos mais de
cinquenta anos, estendera-lhe a mão enluvada para o beija-mão
que nesse tempo o protocolo da corte ainda prescrevia. As coisas
haviam-se passado assim, ele não inventara nada, embora gostasse
de o fazer quando havia lacunas nas suas recordações, e estas
eram numerosas, pois tudo aquilo que narrava se passara uma
geração atrás.
Logo no dia seguinte, partimos a cavalo, escreveu ele. Eu ia de
bom humor, cheio de esperança, embora dominado por uma certa
melancolia, pois, sem que eu soubesse dizer porquê, a viagem
parecia-me um encontro com o meu destino. E contudo, estava
cheio de curiosidade de ver finalmente ao natural o rosto vermelho
do deus Marte.
A referência à celeridade da partida não faz sentido, pois, na
verdade, decorreu mais de uma semana. O conde ainda teve de
escrever cartas, nas quais relatava os seus planos, teve de fazer
despedidas, de visitar os pais e de pedir a bênção ao bispo; ainda
teve de fazer um brinde com os amigos, de visitar mais uma vez a
graciosa Aglaia, a sua favorita entre as meretrizes da corte, a quem
décadas mais tarde ainda recordaria com arrependimento e cujo
fundo da alma não era visível para ele; e, evidentemente, teve de
escolher os acompanhantes. Decidiu-se por três homens do
Regimento de Dragões de Lobkowitz, que haviam dado provas no
campo de batalha, assim como por um secretário do Conselho
Áulico chamado Karl von Doder, que, vinte anos antes, vira o
famoso bufão num mercado de Neulengbach, onde este, como era
característico da sua arte, tratara muito mal uma mulher do público,
o que, em seguida, havia desencadeado uma terrível luta com
facas, como era costume acontecer, para gáudio dos que não
haviam sido atingidos: as coisas corriam mal a alguns, mas os que
saíam ilesos, divertiam-se à grande. A princípio, o secretário, que
não queria ir, argumentou, suplicou, implorou e invocou uma
aversão insuperável à violência e ao mau tempo, mas em vão, uma
ordem era uma ordem, e tinha de os acompanhar. Pouco mais de
uma semana depois de ter sido incumbido da missão, o gordo
conde, na companhia dos seus Dragões e também do secretário,
deixou para trás Viena, a capital e sede da corte imperial, e partiu
rumo a oeste.
Na sua biografia, cujo estilo ainda deixa transparecer o tom em
moda na sua juventude, ou seja, os arabescos eruditos e os
adornos floreados, o gordo conde descrevia, em frases que devido à
sua sinuosidade exemplar se encontravam presentes em alguns
manuais escolares, a tranquila viagem a cavalo através dos
bosques verdejantes de Viena: chegados a Melk, alcançámos o
vasto azul do Danúbio e pernoitámos num magnífico mosteiro, para
repousarmos as nossas cabeças fatigadas sobre as almofadas.
Mais uma vez isto não faz sentido, pois, na verdade,
permaneceram lá um mês. O tio do conde era o prior do mosteiro,
pelo que comeram do bom e do melhor e dormiram com todo o
conforto. Karl von Doder, que sempre se interessara por alquimia,
passou muitos dias na biblioteca, mergulhado na leitura de um livro
de Athanasius Kircher, um sábio de renome mundial; os Dragões
jogavam às cartas com os irmãos laicos e o gordo conde entregou-
se com o tio a algumas partidas de xadrez de uma perfeição tão
sublime que nunca mais na vida seria capaz de atingir; mais tarde,
quase lhe parecia terem sido os acontecimentos posteriores a fazer
desaparecer os seus dotes de xadrezista. Só na quarta semana da
estadia recebeu uma carta do conde Trauttmansdorff que,
imaginando que já haviam chegado ao destino, perguntava se
tinham encontrado Ulenspiegel em Andechs e quando contavam
regressar.
À despedida, o tio deu-lhe a bênção e o abade ofereceu-lhe um
frasquinho de santos óleos. Seguiram o curso do Danúbio até
Pöchlarn e, a partir daí, tomaram a direção de sudoeste.
No início da viagem, ainda se cruzavam com um fluxo constante
de bufarinheiros, goliardos, monges e viajantes de todos os tipos.
Mas agora o mundo parecia vazio. O tempo também já não estava
aprazível. Era cada vez mais frequente soprar um vento frio, as
árvores estendiam ramos nus e quase todos os campos estavam
em pousio. As poucas pessoas que viam eram velhas: mulheres
curvadas junto a uma fonte, anciãos esqueléticos acocorados à
porta de choupanas, rostos de faces cavadas à beira do caminho.
Nada permitia saber se essa gente estava ali a repousar ou se
aguardava o seu fim à beira da estrada.
Quando o gordo conde falou disto a Karl von Doder, queria
referir-se apenas ao livro que estudara na biblioteca do mosteiro,
Ars magna lucis et umbrae: uma pessoa até ficava com vertigens ao
contemplar um tal abismo de sabedoria. E não, ele também não
fazia ideia de onde estavam os jovens, mas, se lhe era permitido
avançar uma hipótese, todos aqueles que ainda conseguiam correr
tinham fugido a sete pés. Porém, naquele livro havia referências
constantes a lentes, que permitiam aumentar as coisas, e também
se falava de anjos, da sua forma, da sua cor, e de música, da
harmonia das esferas, e do Egito, e, por Deus, era uma obra
muitíssimo curiosa.
O gordo conde utiliza esta frase literalmente no seu relato. Mas
como já confundia as coisas, afirmava ter ele próprio lido a Ars
magna, e, mais precisamente, durante a viagem. E descreve como
levava a obra nos alforges, o que, de resto, como mais tarde os
autores de notas de rodapé assinalaram com uma objetividade
irónica, denuncia claramente que ele nunca tivera nas mãos o
gigantesco volume. Contudo, o gordo conde descreve com candura
como, em diversas noites, diante de débeis fogueiras, estudara as
memoráveis descrições que Kircher fez da luz, das lentes e dos
anjos, referindo como as subtis reflexões do grande sábio lhe
haviam parecido estabelecer o mais bizarro contraste com o seu
avanço por aquela região cada vez mais devastada.
Em Altheim o vento tornou-se tão desabrido que tiveram de vestir
as capas forradas de pele e de enterrar bem os capuzes na cabeça.
Em Ranshofen, o tempo desanuviou de novo. Numa casa de quinta
desabitada, contemplaram o pôr do sol. Não se via vivalma, apenas,
junto de uma fonte, um ganso meio depenado, que devia ter fugido
a alguém.
O gordo conde espreguiçou-se e bocejou. A região era
montanhosa, mas não se via uma única árvore, todas haviam sido
abatidas. Ouvia-se um ribombar distante.
— Santo Deus — exclamou o gordo conde —, só nos faltava
uma tempestade.
Os Dragões desataram a rir.
O gordo conde compreendeu. Ele sabia o que era, explicou
embaraçado, o que, como é natural, ainda tornou a situação mais
penosa. Fora apenas uma piada.
O ganso contemplava-os com olhos de ganso desprovidos de
entendimento. Abria e fechava o bico. O dragão Franz Kärrnbauer
apontou a carabina e disparou. E, embora o gordo conde em breve
fosse assistir a muito mais coisas, em toda a sua vida não iria
esquecer aquele horror que penetrou até ao mais fundo de si
quando a cabeça da ave rebentou. Qualquer coisa na cena era
quase inconcebível — a rapidez com que tudo se passou, a forma
como, de um momento para o outro, uma pequena cabeça sólida se
transformou num esguicho de sangue e depois em nada, e como o
animal ainda deu uns passos a bambolear-se, antes de se converter
numa forma branca, caída numa poça de sangue cada vez maior.
Enquanto esfregava os olhos e tentava respirar calmamente, a fim
de não perder os sentidos, decidiu que era indispensável esquecer.
Contudo, como é natural, não esqueceu, e quando, meio século
mais tarde, ao redigir a sua biografia recordou aquela viagem, a
imagem nítida da cabeça do ganso rebentada, sobrepõe-se a tudo o
mais. Num livro totalmente honesto teria de contar o que não
conseguiu contar e que levou consigo para o túmulo, e ninguém veio
a saber do nojo indizível com que presenciara a forma como os
Dragões prepararam a ave para a ceia: como a depenaram
alegremente, a cortaram e rasgaram, lhe tiraram as tripas e a
assaram na fogueira.
Nessa noite, o gordo conde dormiu mal. O vento uivava através
dos buracos das janelas. Tiritava de frio e Kärrnbauer ressonava
muito alto. Outro dragão, chamado Stefan Purner, ou talvez fosse
Konrad Purner — eram irmãos e era tão frequente o gordo conde
confundi-los que, mais tarde, no livro, se fundiram numa única
personagem —, deu-lhe um encontrão, embora ressonasse ainda
mais alto.
De manhã, seguiram viagem. A aldeia de Markl estava
completamente destruída: muros esburacados, vigas partidas,
escombros e pedras no caminho, junto da fonte suja alguns velhos a
mendigarem comida. O inimigo estivera ali e levara tudo, e o pouco
que tinham podido esconder haviam levado mais tarde os amigos,
ou seja, os soldados do príncipe; e mal estes tinham partido, o que
ainda tinham conseguido esconder deles fora de novo levado pelos
inimigos.
— Que inimigos? — perguntou o gordo conde preocupado. —
Suecos ou franceses?
Tanto fazia, disseram eles. Todos tinham fome.
O gordo conde hesitou por instantes, mas depois deu ordem
para prosseguirem.
Não lhes deixar nada havia sido uma boa decisão, disse Karl von
Doder. Não levavam provisões suficientes e tinham de cumprir uma
missão de suma importância, não era possível ajudarem toda a
gente, isso só cabia a Deus que, na sua infinita misericórdia, se
ocuparia daqueles pobres de Cristo.
Todos os campos estavam por cultivar, alguns cobertos de cinza
devido aos grandes incêndios. As colinas pareciam agachadas sob
um céu pesado como chumbo. Há distância, no horizonte, viam-se
colunas de fumo.
O melhor, disse Karl von Doder, era fazer um desvio para sul,
sem passar por Altötting, Polling e Tüssling, e seguir pelos campos,
longe da estrada principal. Quem ainda não tinha fugido das aldeias
devia estar armado e desconfiaria de quem quer que fosse. Um
grupo de cavaleiros que parasse numa localidade poderia ser
alvejado por alguém encoberto.
— Boa ideia — disse o gordo conde, sem compreender como um
secretário do Conselho Áulico podia dar mostras de tais
conhecimentos sobre o comportamento a ter em território de guerra.
— Estou de acordo!
— Se tivermos a sorte de não nos depararmos com soldados —
disse Karl von Doder —, em dois dias conseguimos chegar a
Andechs.
O gordo conde fez um aceno de assentimento e tentou imaginar
que, na verdade, podiam atingi-lo com um tiro certeiro. Alvejá-lo a
ele, Martin von Wolkenstein, que nunca fizera mal a ninguém, com
uma verdadeira bala de aço. Olhou-se de cima a baixo. Doíam-lhe
as costas, tinha o traseiro em chaga devido aos dias sentado na
sela. Acariciou a barriga e imaginou uma bala, recordou a cabeça do
ganso rebentada e pensou na magia do metal, que Athanasius
Kircher descrevera no seu livro sobre os ímanes: se metermos no
bolso um íman de grande potência, conseguimos desviar as balas e
tornarmo-nos invulneráveis. O lendário erudito fizera ele próprio
essa experiência. Infelizmente, ímanes desse género eram muito
raros e caros.
Quando, meio século mais tarde, tentou reconstruir essa viagem,
devido à idade que tinha confundiu a sucessão exata dos
acontecimentos. A fim de dissimular a sua insegurança, nessa
passagem da biografia encontra-se uma digressão floreada, que se
prolonga por dezassete páginas e meia, sobre a camaradagem dos
homens, que enfrentam o perigo com plena consciência de que
esse mesmo perigo irá matá-los ou uni-los numa amizade que
durará toda a vida. Essa passagem tornou-se célebre,
independentemente do facto de ser pura invenção, pois na verdade
nenhum dos homens se tornou seu amigo. Ao escrever, ainda
guardava na memória fragmentos de uma ou outra conversa com o
secretário do Conselho Áulico, mas no que dizia respeito aos
Dragões, mal se recordava dos seus nomes e absolutamente nada
das suas caras. Só se lembrava de que um deles tinha um chapéu
de abas largas, com uma pluma vermelha e cinzenta. Sobretudo
revia os caminhos enlameados e sentia, como se tivesse sido na
véspera, a chuva a tamborilar no capuz. A sua capa, encharcada,
pesava-lhe. Outrora, acreditara que nada pode estar tão molhado
que não possa ficar ainda mais molhado.
Algum tempo atrás, ainda havia ali bosques. Mas quando,
montado no cavalo, com as costas a doer e o traseiro em chaga,
pensava no assunto, apercebeu-se de que saber isso não
significava nada para ele. A guerra não lhe parecia obra dos
homens, mas algo semelhante ao vento e à chuva, ao mar, aos altos
penhascos da Sicília que vira em criança. Aquela guerra era mais
velha do que ele. Por vezes crescera, em outras ocasiões reduzira-
se, rastejara por aqui e por ali, devastara o Norte, dirigindo-se em
seguida para oeste, estendera um braço para leste e outro para sul,
depois desviara todo o seu peso para sul, só para se fixar de novo
durante algum tempo no Norte. Como é natural, o gordo conde
conhecia pessoas que ainda se lembravam do tempo anterior à
guerra, em primeiro lugar do seu pai que, na grande propriedade
familiar de Rodenegg, no Tirol, esperava a morte a tossir, mas de
bom humor, como o gordo conde a iria esperar quase sessenta anos
mais tarde, a tossir e a escrever, no mesmo lugar e sentado à
mesma mesa de pedra. Certa vez, o pai falara com Albrecht von
Wallenstein; esse homem, alto e taciturno, lamentara-se do tempo
húmido de Viena; o pai respondera que uma pessoa se habituava,
ao que Wallenstein ripostara que recusava vir a habituar-se àquele
tempo miserável; o pai quisera contestar aquela observação
particularmente acerba, mas Wallenstein já se afastara com
brusquidão. Não havia um mês em que o pai não encontrasse
ensejo para falar daquele episódio, tal como nunca se esquecia de
mencionar que, alguns anos antes, conhecera o infeliz príncipe
Frederico, que pouco tempo depois iria receber a coroa da Boémia,
desencadeando a grande guerra, apenas para, decorrido um único
inverno, sofrer o ultraje de se ver afastado do poder e, finalmente,
encontrar a morte à beira de qualquer caminho, sem sequer lhe
darem uma sepultura.
Naquela noite, não encontraram onde se albergar. Enrolaram-se
num campo, ao frio, embrulhados nas capas molhadas. A chuva era
demasiado intensa para fazerem fogo. O gordo conde nunca se
sentira tão desgraçado. A capa molhada, que cada vez ia ficando
mais encharcada, empapada em água de uma maneira indescritível,
e o barro mole, no qual o seu corpo se ia enterrando cada vez
mais… Poderia um lamaçal tragar uma pessoa? Tentou levantar-se,
mas não conseguiu, era como se o lodo o tivesse prendido.
A dada altura, parou de chover. Franz Kärrnbauer, sempre a
tossir, empilhou uns ramos e friccionou dois pedaços de sílex,
repetidas vezes, até que, por fim, voaram umas centelhas, após o
que passou uma eternidade a soprar a madeira e a murmurar
fórmulas mágicas, até pequenas chamas palpitarem na escuridão. A
tiritar, aproximaram as mãos do calor.
Os cavalos, inquietos, relinchavam. Um dos Dragões levantou-
se, o gordo conde não conseguiu reconhecer de quem se tratava,
mas viu que apontava a carabina. O fogo fazia dançar as sombras.
— Lobos — sussurrou Karl von Doder.
Fixaram os olhos na noite. De repente, o gordo conde foi
assaltado por uma sensação muito intensa de que tudo aquilo tinha
de ser um sonho, que iria reter na memória como se de facto disso
se tratasse e tivesse acordado imediatamente a seguir, já a manhã
ia alta, seco e bem dormido. As coisas não podiam ter-se passado
assim, mas em vez de se esforçar por recordar, inseriu doze
páginas de frases artisticamente elaboradas sobre a sua mãe. A
maior parte era invenção pura, pois ele funde a mãe, fria e distante,
com a figura da sua ama preferida, a pessoa que foi mais terna para
ele, talvez à exceção da formosa e esguia meretriz Aglaia. Quando,
após esta recordação longa e fictícia, o seu relato retoma a viagem,
já estavam a passar por Haar e Baierbronn e, atrás dele, os
Dragões conversavam sobre fórmulas mágicas que os protegiam de
balas perdidas.
— Contra uma disparada com boa pontaria, nada podes fazer —
disse Franz Kärrnbauer.
— A menos que tenhas um encantamento verdadeiramente
potente — disse Konrad Purner. — Um dos mais secretos. Esses
até contra as balas de canhão são eficazes, vi-o com os meus
próprios olhos em Augsburgo. Um companheiro que estava ao meu
lado e que me pareceu morto utilizou um e pôs-se de novo em pé,
como se nada se tivesse passado. Não cheguei a ouvir bem o
feitiço, o que é uma pena.
— Sim, com um feitiço desses, tudo corre bem — disse Franz
Kärrnbauer. — Um dos caros a valer. Mas os sortilégios simples,
que se compram no mercado, não servem para nada.
— Conheci um — disse Stefan Purner — que combateu pelos
suecos e que tinha um amuleto que lhe permitiu sobreviver primeiro
a Magdeburgo e a seguir a Lützen. Depois matou-se com a bebida.
— Mas quem arranjou o amuleto? — perguntou Franz
Kärrnbauer. — E onde foi ele parar?
— Isso gostava eu de saber — suspirou Stefan Purner. — Se o
tivéssemos, tudo seria diferente.
— Pois é — disse Franz Kärrnbauer pensativo. — Se o
tivéssemos!
Em Haar encontraram o primeiro morto. Devia estar ali há algum
tempo, pois tinha a roupa coberta por uma camada de terra e os
cabelos pareciam entrelaçados com talos de erva. Tinha o rosto
encostado ao solo, as pernas abertas e estava descalço.
— Isso é normal — declarou Konrad Purner. — Ninguém deixa
as botas a um cadáver. Se tivermos azar, até nos matam só por
causa do calçado.
O vento arrastava consigo pequenas gotas de chuva fria. À volta
deles, só se viam cepos de árvores, centenas deles, pois ali tinham
cortado um bosque inteiro. Atravessaram uma aldeia destruída pelo
fogo até aos alicerces e avistaram um monte de cadáveres. O gordo
conde desviou a vista, mas depois voltou a olhar. Viu rostos
enegrecidos, um tronco só com um braço, uma mão tão crispada
que se assemelhava a uma garra, duas órbitas vazias acima de uma
boca aberta e, mais além, algo que parecia um saco, mas que eram
os restos de um corpo. O ar estava impregnado de um odor
penetrante.
Ao fim da tarde chegaram a uma aldeia onde ainda havia gente.
Sim, o Ulenspiegel estava no mosteiro, disse uma velha, ainda
estava vivo. E quando, pouco antes do pôr do sol, encontraram um
homem de aspeto selvagem, acompanhado por um rapazito, os dois
a puxarem um carro, obtiveram a mesma informação. Ele estava no
mosteiro, disse o homem, sem tirar os olhos do cavalo do gordo
conde. Era seguir sempre para oeste, passando pelo lago, não
havia que enganar. Os cavalheiros não teriam qualquer coisinha
para ele e o filho comerem?
O gordo conde meteu a mão no alforge e deu-lhe uma salsicha.
Era a última, e ele sabia que era um erro, mas a criança metia-lhe
tanta pena que não pôde deixar de o fazer. Intrigado, perguntou
porque iam a puxar aquele carro.
— Ele é tudo o que temos — foi a resposta.
— Mas está vazio — retorquiu o gordo conde.
— Mas é tudo o que temos.
Dormiram de novo em pleno campo e, à cautela, não fizeram
uma fogueira. O gordo conde estava gelado, mas pelo menos não
chovia e o solo estava firme. Pouco passava da meia-noite, quando
ouviram dois tiros nas proximidades. Puseram-se à escuta. Com a
primeira luz do alvorecer, Karl von Doder jurou ter visto um lobo que
os observava a pouca distância. Apressadamente, montaram os
cavalos e seguiram caminho.
Encontraram uma mulher. Tinha o rosto tão enrugado e
caminhava tão curvada que era impossível saber se era velha ou se
a vida lhe pregara uma partida. Sim, no mosteiro, ele ainda lá
estava. Mal mencionou o nome do famoso bufão, a mulher não pôde
deixar de sorrir. Era sempre assim, escreveu o gordo conde
cinquenta anos mais tarde, todos pareciam ter informações; a quem
quer que mencionássemos o seu nome, indicavam a direção e o
caminho; naquela região despovoada, todos os que aí haviam
permanecido sabiam onde ele se albergava.
Por volta do meio-dia cruzaram-se com soldados. Primeiro, com
um grupo de alabardeiros: homens com aspeto selvagem e barbas
eriçadas. Alguns tinham feridas abertas, outros arrastavam sacas
cheias com o produto do saque. À sua volta pairava um odor a suor,
doença e sangue, e os seus pequenos olhos tinham uma expressão
hostil. Seguiam-nos carroças cobertas, com as suas mulheres e
filhos agachados. Algumas das mulheres agarravam bebés. Vimos
apenas a devastação dos corpos, escreveu o gordo conde mais
tarde, mas não chegámos a saber se eram amigos ou inimigos, pois
não levavam estandartes.
Depois dos alabardeiros, cruzámo-nos com uma boa dezena de
cavaleiros.
— É meu dever perguntar-vos para onde vos dirigis — disse um
deles, que parecia ser quem comandava.
— Para o mosteiro — respondeu o gordo conde.
— É daí que vimos. Não há lá nada para comer.
— Não é comida que queremos, procuramos Tyll Ulenspiegel.
— Sim, ele está lá. Vimo-lo, mas tivemos de bater em retirada
quando chegaram os soldados do imperador.
O gordo conde empalideceu.
— Nada temais, não vos faço mal. Sou Hans Kloppmess, de
Hamburgo. Dantes, também apoiava o imperador. E talvez volte a
fazê-lo, quem sabe? Ser mercenário é uma profissão, como a de
carpinteiro ou de padeiro. O exército é a minha guilda, ali no carro
levo mulher e filhos e tenho de os alimentar. Neste momento, os
franceses não pagam nada, mas se o fizessem, receberíamos mais
do que conseguimos ao serviço do imperador. Os grandes senhores
estão a negociar a paz na Vestefália. Quando a guerra acabar,
receberemos todos o soldo atrasado; podemos contar com ele, pois
de outro modo recusaremos voltar a casa, e os senhores têm medo
disso. Que belos cavalos tendes!
— Obrigado — agradeceu o gordo conde.
— Davam-me mesmo jeito — disse Hans Kloppmess.
Inquieto, o gordo conde virou-se para os seus Dragões.
— De onde vindes? — perguntou Hans Kloppmess.
— De Viena — respondeu o gordo conde com a voz embargada.
— Uma vez estive quase em Viena — disse o cavaleiro ao lado
de Hans Kloppmess.
— O quê, de verdade? — perguntou Hans Kloppmess. — Tu, em
Viena?
— Eu disse quase. Não cheguei lá.
— O que se passou?
— Não se passou nada, não cheguei a Viena.
— Não vos aproximeis de Starnberg — disse Hans Kloppmess.
— O melhor é fazerdes um desvio para sul, contornando Gauting, e
depois tomardes a direção de Herrsching, e daí seguir para o
mosteiro, pois o caminho ainda está livre para caminheiros. Mas
despachai-vos, Turenne e Wrangel já cruzaram o Danúbio. Em
breve as coisas vão aquecer.
— Não somos caminhantes — corrigiu Karl von Doder.
— Esperai para ver.
Não foi preciso nenhuma voz de comando nem nenhum acordo
para todos esporearem os cavalos. O gordo conde curvou-se sobre
o pescoço da montada e agarrou-se bem, meio às rédeas, meio às
crinas. Viu a terra saltar sob os cascos, ouviu gritos atrás de si,
ouviu um disparo e resistiu à tentação de se virar para ver.
Cavalgaram sem parar. As dores que sentia nas costas eram
insuportáveis, já não tinha força nas pernas e não se atrevia a virar
a cabeça. Ao seu lado seguia Franz Kärrnbauer, à sua frente,
Konrad Purner e Karl von Doder, e Stefan Purner ia à retaguarda.
Por fim, pararam. Os cavalos estavam encharcados de suor. O
gordo conde tinha a vista toldada, escorregava da sela, Franz
Kärrnbauer susteve-o e ajudou-o a desmontar. Os soldados não os
tinham perseguido. Tinha começado a nevar. Flocos de um cinzento
esbranquiçado pairavam no ar. Quando segurou um entre os dedos,
percebeu que eram cinzas.
Karl von Doder deu umas palmadinhas no pescoço do cavalo.
— Para sul, contornando Gauting — disse ele —, e depois na
direção de Herrsching. Os cavalos têm sede, precisam de água.
Montaram de novo. Sem dizer palavra, cavalgaram através das
cinzas que caíam. Não encontraram mais ninguém e, ao fim da
tarde, avistaram lá no alto a torre do mosteiro.
Neste ponto, a biografia de Martin von Wolkenstein dá um salto:
não dedica uma única palavra à subida escarpada por trás de
Herrsching, que não deve ter sido fácil para os cavalos, e também
não refere as dependências semiarruinadas do mosteiro, nem faz
nenhuma descrição dos monges. Por certo que isto se deve à sua
falta de memória, mas é ainda mais natural que seja de atribuir à
impaciência nervosa que o domina quando escreve. E, deste modo,
os leitores só voltam a encontrá-lo duas confusas linhas mais
adiante, à frente do abade, às primeiras horas da manhã seguinte.
Estão sentados em dois escabelos numa sala vazia. Os móveis
foram roubados, destruídos ou usados como lenha. Também havia
tapeçarias, disse o abade, candelabros de prata e uma grande cruz
de ouro sobre o arco daquela porta. Agora toda a luz provém de
uma única acha de pinheiro a arder. Embora o padre Friesenegger
falasse com concisão e objetividade, os olhos do gordo conde
fecharam-se em algumas ocasiões. Repetidas vezes acordou
sobressaltado, apenas para constatar que, entretanto, o homem
seco de carnes continuara a falar. De bom grado o gordo conde teria
repousado, mas o abade queria contar o que se passara nos últimos
anos, queria que o emissário do imperador soubesse exatamente
tudo por que aquele mosteiro passara. Quando, ao escrever a sua
biografia no tempo de Leopoldo I, o gordo conde misturava
constantemente coisas, pessoas e datas, recordar-se-ia com inveja
da memória infalível do padre Friesenegger.
O peso dos anos não causara qualquer dano no espírito do
abade, escreveu ele. Os seus olhos eram penetrantes e atentos, as
suas palavras bem escolhidas, as frases longas e bem construídas,
mas a veracidade não era tudo: a multiplicidade de acontecimentos
não assumira a forma de histórias, pelo que era difícil segui-lo.
Repetidas vezes ao longo dos anos, soldados haviam irrompido pelo
mosteiro: as tropas do imperador tinham levado tudo de que
precisavam, em seguida fora a vez das tropas protestantes, que
tinham levado tudo de que precisavam. Depois, os protestantes
tinham-se retirado e os homens do imperador haviam regressado e
levado tudo de que precisavam: animais, madeira e botas. Em
seguida, os homens do imperador tinham partido, mas deixando
uma guarda de proteção, e então chegaram soldados que não
pertenciam a nenhum exército, vindos para pilhar, e a guarda tinha-
os expulsado, ou eles tinham expulsado a guarda, uma coisa ou
outra, ou talvez uma primeiro e a outra mais tarde, o gordo conde
não sabia ao certo, e além disso tanto fazia, pois a guarda retirara-
se de novo e tinham chegado os homens do imperador, ou os
suecos, para levar tudo de que precisavam: animais, madeira, roupa
e, claro, principalmente botas, se é que ainda as havia, e também
ainda havia madeira. No inverno seguinte, os camponeses das
aldeias em redor tinham-se refugiado no mosteiro, havia gente
instalada em todas as salas, em todas as câmaras, no mais
pequeno corredor. A fome, os poços contaminados, o frio, os lobos!
— Lobos?
Irrompiam pelas casas, contou o abade, de início só à noite, mas
a breve trecho também durante o dia. As pessoas tinham fugido
para os bosques e aí haviam matado e comido pequenos animais e
tinham abatido as árvores para não morrerem de frio — e assim,
devido à fome, os lobos tinham perdido por completo o medo e a
vergonha. Quais pesadelos convertidos em realidade haviam
chegado às aldeias, como figuras assustadoras saídas de velhos
contos. Com olhos esfomeados, apareciam em quartos e estábulos,
sem o menor receio de facas ou forquilhas. Nos piores dias de
inverno, haviam mesmo encontrado o caminho para o mosteiro, e
um dos animais atacara uma mulher com um bebé, arrancando-lhe
a criança dos braços.
Não, as coisas não se tinham passado exatamente assim, o
abade só referira o medo que tinham por causa das crianças. Mas,
por qualquer motivo, a ideia de uma criança de peito poder ser
devorada por um lobo diante dos olhos da mãe fascinara de tal
modo o gordo conde, nessa altura já com cinco netos e três
bisnetos, que se convenceu de que o abade também havia contado
tudo isso, pelo que, entre pedidos de desculpa eloquentes, se
considerava no direito de não poupar o leitor a uma descrição
profundamente sinistra de gritos de dor, terror, rosnar de lobos,
dentes aguçados e sangue.
E assim, prosseguiu o abade com a sua voz serena, esta
situação tinha continuado, dia após dia, ano após ano. Muita fome.
Muita doença. A rotação de exércitos e de saqueadores. A região
despovoara-se. Os bosques tinham desaparecido, as aldeias tinham
sido destruídas por incêndios, as pessoas tinham fugido, sabe Deus
para onde. Nos últimos anos, até os lobos se tinham posto em fuga.
Inclinou-se para a frente, pousou uma mão no ombro do gordo
conde e perguntou-lhe se também seria capaz de recordar aquilo
tudo.
— Sim, tudo — respondeu o gordo conde.
Era importante que a corte viesse a saber tudo aquilo, disse o
abade. O príncipe da Baviera, enquanto representante supremo do
imperador, na sua sabedoria só se interessava pela grande imagem
de conjunto, não pelos pormenores. Tinham-lhe pedido ajuda muitas
vezes, mas a verdade era que as suas tropas haviam provocado
mais estragos do que os suecos. Era preciso recordar tudo isso para
todo o sofrimento adquirir algum sentido.
O gordo conde assentiu.
O abade olhou-lhe o rosto com atenção.
Autodomínio, disse ele, como se tivesse lido os pensamentos do
seu interlocutor. Disciplina e força de vontade. Era ele o responsável
pelo bem-estar do mosteiro e pela sobrevivência dos irmãos.
Benzeu-se e o gordo conde imitou-o.
Isto aqui ajuda muito. O abade agarrou a abertura do hábito e,
com um horror que só conhecia de fantasias febris, o gordo conde
viu uma corda de juta, com espinhos de metal e lascas de vidro,
manchada de sangue seco.
Uma pessoa habitua-se, disse o abade. Os primeiros anos
haviam sido os piores, às vezes despia o cilício para refrescar com
água o tronco que supurava. Mas depois envergonhara-se da sua
fraqueza e, pouco a pouco, Deus fora-lhe dando força, para voltar a
usá-lo. Em certos momentos, a dor era tão intensa, tão
diabolicamente cáustica e ardente, que ele havia pensado que ia
perder a razão. Mas as orações tinham ajudado. Fora-se
acostumando. E a sua pele tornara-se mais espessa. A partir do
quarto ano, o sofrimento incessante convertera-se num amigo.
Nesse momento, escreveu o gordo conde mais tarde, o sono
devia tê-lo vencido, pois quando bocejou, esfregou os olhos e
demorou alguns momentos a recordar-se de onde estava, era outra
pessoa que estava sentada à sua frente.
Tratava-se de um homem mais seco, com as faces cavadas e
uma cicatriz que corria desde o início dos cabelos até ao alto do
nariz. Envergava um hábito, mas via-se nitidamente — embora não
fosse fácil dizer porquê — que não era um monge. O gordo conde
nunca vira olhos semelhantes. Quando mais tarde descreveu aquela
conversa, já não sabia bem se de facto ela tivera lugar como a
relatava a amigos, conhecidos e desconhecidos. Mas decidiu
manter a versão que já demasiadas pessoas tinham ouvido para
que pudesse alterá-la.
— Finalmente chegaste — dissera o homem. — Há muito que te
espero.
— És o Tyll Ulenspiegel?
— Um de nós é ele. Vieste aqui buscar-me?
— Por ordem do imperador.
— De que imperador? Imperadores há muitos.
— Não há nada! De que te ris?
— Rio-me do imperador e rio-me de ti. Como consegues estar
tão gordo, se não há nada para comer?
— Cala a boca — disse o gordo conde, furioso por não lhe
ocorrer nada espirituoso.
E, embora durante toda a sua vida tentasse lembrar-se de uma
resposta melhor e tivesse encontrado uma série delas, em nenhum
dos seus relatos se desviou dessa frase deplorável, pois só ela
parecia sancionar a veracidade da sua recordação. Seria possível
inventar qualquer coisa que não fosse tão indecorosa?
— Se não me calar, bates-me? Não vais fazer tal coisa. És fraco.
Mole, fraco e amável. Não serves para nada aqui.
— Não sirvo para a guerra?
— Não, não serves.
— E tu, serves?
— Claro que sim.
— Acompanhas-nos de livre vontade ou temos de te obrigar?
— Claro que vos acompanho. Aqui já não há nada para comer,
está tudo a esboroar-se, o abade também já não vai aguentar muito,
e foi por isso que te mandei vir.
— Não me mandaste vir.
— Mandei-te vir, bola de sebo.
— Sua Majestade ouviu dizer…
— E como ouviu Sua Majestade dizer isso, pançudo? Sua
pequena majestade, sua estúpida majestade com a coroa de ouro,
sentada no trono de ouro, ouviu falar de mim porque te mandei
chamar. E não me batas, pois, permite-me que te diga, aos bufões é
permitida liberdade total. Se eu não chamar estúpida à majestade,
quem irá fazê-lo? Alguém terá de ser. E tu não podes.
Ulenspiegel fez um sorriso malévolo. Era um sorriso terrível,
perverso e sarcástico, e o gordo conde, sem saber como tinha
continuado a conversa, transformou-a em meia dúzia de frases para
descrever aquele sorriso, dedicando depois uma página inteira a
tecer fantasias sobre o sono profundo e revigorante que dormira no
chão de uma cela do mosteiro até ao meio-dia do dia seguinte:
Morfeu, o gentil deus do repouso, dador de paz, propiciador de
alegria, beatífico protetor do esquecimento noturno, naquela noite,
em que precisei de ti mais do que nunca, pude contar contigo até
acordar — rejuvenescido, feliz, quase bem-aventurado.
Esta última tirada reflete menos os sentimentos de um jovem do
que dúvidas de fé do velho, sobre as quais se alarga em palavras
entusiastas noutra passagem. Por outro lado, a vergonha levou-o a
omitir um pormenor que, mesmo à distância de cinquenta anos, o
fazia ruborizar. Quando, por volta do meio-dia, se reuniram no pátio,
para se despedirem do abade e de três monges macilentos, que
mais pareciam fantasmas do que seres humanos, constataram que
se tinham esquecido de levar um cavalo para Ulenspiegel.
Com efeito, nenhum deles pensara em como iria viajar o homem
que deviam levar para Viena. Como é natural, ali não havia nenhum
cavalo que pudessem comprar ou pedir emprestado, e nem sequer
havia um burro. Todos os animais tinham sido comidos ou haviam
fugido.
— Bem, ele vai montado atrás de mim — disse Franz
Kärrnbauer.
— Isso para mim não serve — ripostou Ulenspiegel.
À luz do dia, parecia ainda mais magro com o seu hábito de
monge. A sua postura era curvada, tinha as faces cavadas e os
olhos profundamente enterrados nas órbitas.
— O imperador é meu amigo. Quero um cavalo para mim.
— Dou-te um murro que te faz saltar os dentes — disse Franz
Kärrnbauer numa voz calma — e parto-te o nariz. É o que te faço.
Olha para mim. Sabes que o farei.
Depois de o olhar por um momento com uma expressão
pensativa, Ulenspiegel subiu para a sela atrás de Franz Kärrnbauer.
Karl von Doder pousou uma mão no ombro do gordo conde
murmurou:
— Não é ele.
— Como assim?
— Não é ele!
— Quem não é quem?
— Estou convencido que este homem não é o que eu vi.
— O quê?
— Em tempos, na feira. Tenho muita pena, mas creio que não é
ele.
O gordo conde fitou o secretário durante algum tempo.
— Estais seguro do que dizeis?
— Não totalmente. Foi há muitos anos e ele estava lá no alto a
caminhar sobre uma corda. Como é possível estar seguro?
— Não falemos mais disso — opinou o gordo conde.
Com mãos trémulas, o abade deu-lhes a bênção e aconselhou-
os a evitarem as cidades. Munique, a sede da corte, fechara as suas
portas devido à afluência de pessoas em busca de auxílio, ninguém
estava autorizado a entrar, as ruas transbordavam de gente
esfomeada e a água das fontes estava suja. Em Nuremberga, onde
os protestantes tinham acampamentos, a situação era semelhante.
Dizia-se que Wrangel e Turenne estavam a chegar com unidades do
Noroeste, de modo que o melhor era descrever uma curva para
nordeste mais adiante, passando entre Augsburgo e Ingolstadt. Em
Rottenburgo já se poderia seguir em linha reta para leste e, a partir
dali, o caminho até à Baixa Áustria estava livre. Em silêncio, o
abade coçava o peito — num gesto que lhe era habitual, mas que o
gordo conde, agora que sabia do cilício, mal conseguia suportar
olhar. Corriam rumores de que ambos os lados tencionavam
defrontar-se no campo de batalha antes de o armistício ser
proclamado na Vestefália. Cada uma das partes pretendia melhorar
a sua situação antes das tréguas.
— Muito obrigado — agradeceu o gordo conde, que
praticamente não captara nada.
A geografia não era o seu forte. Na biblioteca do pai havia
diversos volumes da Topographia Germaniae de Matthäus Merian, e
algumas vezes tinha-os folheado horripilado. Para quê memorizar
tudo isso? Para quê consultar todos esses lugares, quando se podia
ficar no centro do mundo, em Viena?
— Ide com Deus — disse o abade a Ulenspiegel.
— Que Deus vos acompanhe — respondeu o bobo de cima do
cavalo.
Rodeava com os braços Franz Kärrnbauer e parecia tão magro e
débil que era difícil imaginar como conseguia manter-se em cima do
cavalo.
— Um dia apareceste à nossa porta — disse o abade. —
Recebemos-te, sem te perguntar qual a tua confissão. Passaste
aqui mais de um ano e agora vais partir.
— Belo discurso — comentou Ulenspiegel.
O abade benzeu-se. O bobo quis imitá-lo, mas atrapalhou-se —
os seus braços ficaram presos, as mãos não fizeram o que deviam.
O abade deu meia-volta e o gordo conde teve de reprimir o riso.
Dois monges abriram o portão.
Não chegaram longe. Decorridas poucas horas rebentou uma
tempestade como o gordo conde nunca vira na vida. Apressaram-se
a desmontar e a sentarem-se debaixo dos cavalos. Uma chuva
torrencial caía com estrépito à volta deles, como se o céu fosse
desabar.
— E se não for o Ulenspiegel? — murmurou Karl von Doder.
Duas coisas que não se podem distinguir são a mesma coisa,
disse o gordo conde. Ou aquele homem era Ulenspiegel, que se
havia refugiado no Mosteiro de Andechs, ou tratava-se de outro
homem, que se havia refugiado no mosteiro e que dizia chamar-se
Ulenspiegel. Só Deus sabia, mas, enquanto Ele não interviesse, não
havia diferença.
Nessa altura ouviram disparos nas proximidades. Apressaram-se
a montar, esporearam os cavalos e galoparam pelos campos. A
respiração do gordo conde era sibilante e processava-se com
dificuldade, as costas doíam-lhe. Gotas de chuva fustigavam-lhe o
rosto. Pareceu-lhe uma eternidade até os Dragões porem os
cavalos à rédea curta.
Com pernas trémulas, desmontou e deu umas palmadinhas no
pescoço do cavalo. O animal franziu os lábios e resfolegou. À sua
esquerda, corria um ribeiro, do outro lado a vertente subia até um
pequeno arvoredo, como o gordo conde não via desde Melk.
— Deve ser o bosque de Streitheim — disse Karl von Doder.
— Então devemos estar demasiado a norte — disse Franz
Kärrnbauer.
— Nem pensar. Este não é o bosque de Streitheim — contrapôs
Stefan Purner.
— De certeza que é — insistiu Karl von Doder.
— Nem pensar — ripostou Stefan Purner.
Nesse momento, ouviram música. Sustiveram a respiração e
puseram-se à escuta: trombetas e tambores, uma alegre marcha
militar que se transmitia às pernas. O gordo conde reparou que os
seus ombros acompanhavam o ritmo.
— Vamos embora daqui — disse Konrad Purner.
— A cavalo, não — disse Karl von Doder em voz sibilante. —
Vamos para o bosque!
— Cuidado — disse o gordo conde, quanto mais não fosse para
mostrar que era ele que mandava ali. — É preciso proteger
Ulenspiegel.
— Pobres tolos! — exclamou o homem esquelético em voz
suave. — Grandes brutos. Sou eu que tenho de vos proteger.
As copas das árvores já se fechavam sobre eles. O gordo conde
apercebeu-se da resistência que o cavalo opunha, mas agarrou as
rédeas com firmeza e deu-lhe umas palmadinhas nas narinas
húmidas, e o animal obedeceu. Dentro em pouco, a vegetação
rasteira era tão cerrada que os Dragões tiveram de desembainhar
os sabres para abrirem caminho.
Puseram-se de novo à escuta. Ouviu-se um zumbido indistinto,
de onde vinha?, o que era? Pouco a pouco, o gordo conde percebeu
que se tratava de inúmeras vozes, uma confusão de cantos, gritos e
conversas, saídos de diversas gargantas. Sentindo o medo do
cavalo, acariciou-lhe a crina e o animal resfolegou.
Mais tarde, não sabia dizer quanto tempo tinham continuado a
andar assim, embora afirmasse que tinham sido duas horas. As
vozes atrás de nós esmoreceram, escreveu ele, o silêncio sonoro do
bosque envolveu-nos, ouviam-se gritos de aves, ramos a partir-se e
o vento enviava-nos murmúrios vindos da copa das árvores.
— Temos de ir para leste — disse Karl von Doder. — Para
Augsburgo.
— O abade disse que não deixam ninguém entrar na cidade —
recordou o gordo conde.
— Mas somos enviados do imperador — observou Karl von
Doder.
O gordo conde deu-se conta de que não levavam nenhum papel
que provasse que assim era; nenhuma prova, nenhum salvo-
conduto, nenhum tipo de certificado. Ele não os havia pedido e era
evidente que na administração do palácio imperial ninguém se
sentira responsável por emitir um documento semelhante.
— Para que lado é leste? — perguntou Franz Kärrnbauer.
Stefan Purner apontou para um lado qualquer.
— Para aí é sul — disse o irmão.
— Que grandes parvos — disse Ulenspiegel divertido. — Sois
uns anões de merda e não servis para nada! Oeste é onde nós
estamos, e leste é o resto.
Franz Kärrnbauer ergueu o braço, mas Ulenspiegel encolheu-se
com uma rapidez de que ninguém o teria julgado capaz, e saltou
para trás do tronco de uma árvore. O dragão foi atrás dele, mas
Ulenspiegel deslizou como uma sombra em redor do tronco,
desapareceu atrás de outra árvore e perderam-no de vista.
— Não me vais apanhar — ouviram-no dizer com uma risadinha.
— Conheço o bosque. Em criança, transformei-me num espírito do
bosque.
— Num espírito do bosque? — repetiu o gordo conde, inquieto.
— Um espírito branco. — A sorrir, Ulenspiegel saiu do arbusto.
— Para o grande demónio.
Fizeram uma paragem. As provisões estavam quase a chegar ao
fim. Os cavalos mordiscavam os troncos das árvores. Os cavaleiros
partilharam a garrafa com cerveja diluída e cada um bebeu um gole.
Quando chegou a vez do gordo conde, já não restava nada.
Fatigados, continuaram. O bosque era agora menos cerrado,
havia intervalos maiores entre as árvores, a vegetação rasteira já
não era espessa e os cavalos podiam seguir sem que fosse
necessário desbravar o caminho. O gordo conde reparou que já não
se ouviam os pássaros: nem pardais, nem melros, nem corvos.
Subiram para os cavalos e saíram do bosque.
— Meu Deus — disse Karl von Doder.
— Senhor misericordioso — disse Stefan Purner.
— Virgem santíssima — disse Franz Kärrnbauer.
Quando mais tarde tentou descrever o que tinham visto, o gordo
conde teve de reconhecer que não era capaz, pois aquilo
ultrapassava as suas capacidades como escritor. Além disso,
ultrapassava as suas capacidades como ser racional: nem sequer à
distância de meio século se sentiria em condições de o pôr em
frases que significassem qualquer coisa. Mesmo assim, descreveu a
cena. Foi um dos momentos mais importantes da sua vida, e a
circunstância de ter sido testemunha da última batalha da Guerra
dos Trinta Anos, determinou a partir daí quem era e o que as
pessoas pensavam dele — que o grão-mestre da corte presenciara
a batalha de Zusmarshausen, diziam a partir daí cada vez que o
apresentavam a alguém, ao que ele respondia com a modéstia do
costume: «Deixemos isso, não é possível contá-lo bem.»
O que parecia um lugar-comum, era a verdade. Não se podia
contar bem. De qualquer modo, ele não podia. Ao percorrer o
planalto depois de sair do bosque, avistou, do outro lado do rio que
corria no vale, o exército do imperador, que se estendia até ao
horizonte, com os seus canhões em posição, os mosqueteiros
entrincheirados e centenas de alabardeiros ordenados, cujas armas
lhe faziam lembrar um segundo bosque, e pareceu-lhe estar a viver
algo que não fazia parte da realidade. O facto de tantos homens
poderem estar reunidos e formados parecia tão difícil de conceber,
que era como se tudo estivesse desequilibrado. O gordo conde teve
de se agarrar à crina do cavalo para não cair.
Só então se tornou claro para ele que o que se encontrava à sua
frente não era apenas o exército do imperador. À sua direita o
declive descia a pique, lá em baixo via-se uma estrada larga, pela
qual avançava a cavalaria das coroas aliadas da França e da
Suécia, fila após fila, em silêncio e sem música, de forma que só se
ouviam os cascos sobre a pedra, em direção a uma pequena ponte.
E foi então que aconteceu: essa ponte, até então tão sólida e
firme, transformou-se em nuvenzinhas de poeira. O gordo conde
quase sorriu perante esse truque de magia. Uma coluna de fumo
claro ergueu-se e a ponte desapareceu; e só quando o fumo já era
arrastado pelo vento, ouviram a explosão. Que bonito, pensou o
gordo conde, envergonhando-se imediatamente, para logo a seguir
voltar a pensar, como que por espírito de contradição: sim, que
bonito que foi.
— Vamos embora daqui — gritou Karl von Doder.
Demasiado tarde. O tempo arrastou-os consigo como uma
cachoeira. Lá em cima, do outro lado do rio, subiam pequenas
nuvens de fumo, algumas dezenas, brancas e cintilantes. Os nossos
canhões, pensou o gordo conde, é ela, a artilharia do nosso
imperador; mas o seu pensamento ainda nem tinha terminado
quando, do local onde se encontravam os mosqueteiros, subiram
mais nuvens de fumo, minúsculas, mas incontáveis, durante uns
momentos ainda separadas umas das outras, mas depois já
misturadas numa única nuvem; nessa altura ouviu-se também o
ruído, e o gordo conde ouviu o crepitar dos disparos, cujo fumo
acabara de ver, e a seguir viu como a cavalaria do inimigo, que
continuava a avançar para o rio, executava a habilidade mais
extraordinária. Entre as fileiras de soldados abriram-se de súbito
passagens, uma aqui, outra semelhante ali, outra ainda a uma certa
distância. Enquanto os seus olhos ainda se esforçavam por
compreender o que viam, ouviu um ruído, como nunca ouvira na
vida, um grito vindo do ar. Franz Kärrnbauer saltou do cavalo, o
gordo conde, atónito, viu como ele rolava pela erva, e perguntou-se
se não deveria fazer o mesmo; mas o cavalo era alto e o solo estava
cheio de pedras duras. Nessa altura, Karl von Doder avançou para
ele. Porém não saltou numa direção, mas em duas, como se não
tivesse conseguido decidir-se, optando por ambas as possibilidades.
A princípio, o gordo conde pensou que devia estar a sonhar, mas
então viu que Karl von Doder se encontrava efetivamente em dois
sítios: uma parte à direita, a outra à esquerda do cavalo, e que a da
direita ainda se mexia. O gordo conde foi assaltado por uma
repugnância desmedida e, para cúmulo, recordou-se do ganso
contra o qual dias antes Franz Kärrnbauer havia disparado; pensou
como vira explodir a cabeça do animal e compreendeu que ficara
tão abalado porque aquele acontecimento anunciava o que acabava
de presenciar, contrariando o curso do tempo. Entretanto, a dúvida
sobre se devia ou não saltar do cavalo já se tornara supérflua; sem
mais nem menos, a sua montada estava estendida e, ao cair de
lado no chão, o gordo conde havia reparado que recomeçara a
chover, mas que não se tratava da chuva habitual, que não era água
que fazia ricochete na terra, mas malhos invisíveis que fustigavam o
solo. Viu Franz Kärrnbauer rastejar, viu um casco de cavalo na erva,
embora não ligado a nenhum cavalo, viu Konrad Purner a cavalgar
encosta abaixo, viu que agora o fumo envolvia também os soldados
do imperador do outro lado do rio, que ainda há pouco distinguia
com nitidez, mas que já tinham desaparecido, exceto num sítio onde
o vento rasgou a cortina de fumo, permitindo ver distintamente
homens agachados entre as suas alabardas, que nesse momento
se ergueram, todos ao mesmo tempo, e, com as armas em riste,
recuaram como um único homem. Como era possível os seus
movimentos serem de tal modo idênticos e simultâneos? Era
evidente que batiam em retirada perante a cavalaria que agora
atravessava o rio. A água parecia em ebulição, alguns cavalos
empinavam-se, havia cavaleiros que caíam, embora outros
alcançassem a margem, o rio estava tingido de vermelho, e os
alabardeiros que recuavam desapareciam no meio do fumo.
O gordo conde recompôs-se e olhou em redor. A erva não bulia.
As pernas obedeciam-lhe, só não sentia a mão direita. Ao pô-la
diante dos olhos viu que lhe faltava um dedo. Contou-os.
Efetivamente eram quatro, qualquer coisa não batia certo, faltava
um, deviam ser cinco e eram quatro. Cuspiu sangue para o chão.
Tinha que voltar para o bosque. Só no bosque estaria em
segurança, só no…
Vultos ganhavam forma, manchas coloridas surgiam e, enquanto
o gordo conde percebia que tinha perdido os sentidos e estava a
voltar a si, foi assaltado por uma recordação dolorosa, como que
saída do nada. Pensou numa rapariga que amara quando tinha
dezanove anos; na altura ela rira-se dele, mas ali estava ela de
novo, e a consciência de que nunca voltariam a encontrar-se
encheu de tristeza cada fibra do seu ser. Olhou para o céu lá no
alto, distante e cheio de nuvenzinhas esfiapadas. Um homem
inclinou-se para ele. Não o conhecia, mas conhecia-o, reconhecia-o
agora.
— Põe-te de pé!
O gordo conde pestanejou.
Ulenspiegel estendeu o braço e bateu-lhe na cara.
O gordo conde levantou-se. Doía-lhe a face. A mão doía-lhe
ainda mais. Mas, principalmente, doía-lhe o dedo que lhe faltava. Ali
perto, encontrava-se o que restava de Karl von Doder, junto a ele
viam-se dois cavalos e, mais além, o cadáver de Konrad Purner. Ao
longe, havia neblina, cortada por relâmpagos. Cada vez chegavam
mais cavaleiros a trote, abria-se uma passagem para logo se fechar
de novo, devia ser obra dos canhões de doze libras. O rio
enxameava de cavaleiros, que se impediam uns aos outros de
avançar, chicotes estalavam, havia cavalos a patinhar na água e
homens aos berros, mas o gordo conde só sabia isso porque as
suas bocas se moviam, pois não ouvia nada. O rio estava repleto de
cavalos e homens, mas a maioria chegava à margem e desaparecia
no meio do fumo.
Ulenspiegel pôs-se em movimento e o gordo conde seguiu-o. O
bosque ficava apenas a uns passos de distância. Ulenspiegel
começou a correr e o gordo conde seguiu-o também a correr.
Junto dele, a erva respingava. Ouviu de novo o grito que ouvira
há pouco, estridente e vindo do ar, a soar perto dele, seguiu-se um
impacto e qualquer coisa rolou aos gritos para o rio. Como é
possível viver, pensou, como se pode aguentar, quando o ar está
cheio de metal? Nesse momento, Ulenspiegel abriu os braços e foi
projetado pelos ares, caindo de bruços sobre a erva.
O gordo conde curvou-se para ele. Ulenspiegel estava imóvel.
Tinha o capuz rasgado nas costas e dessa abertura saía sangue,
que já formava uma poça. O gordo conde recuou, afastou-se a
correr, mas tropeçou e caiu. Levantou-se, continuou a correr,
alguém corria ao seu lado, a erva respingava de novo devido às
balas, porque disparavam para ali, porque não sobre o inimigo,
porquê de tão longe, e quem corria ao seu lado? O gordo conde
virou a cabeça: era Ulenspiegel.
— Não pares — ordenou este em voz sibilante.
Correram para o bosque, as árvores abafavam os estrondos. O
gordo conde queria parar, sentia pontadas no coração, mas
Ulenspiegel agarrou-o e puxou-o para onde o matagal era mais
cerrado. Acocoraram-se no meio da vegetação. Durante algum
tempo, escutaram os canhões. Com todo o cuidado, Ulenspiegel
tirou o capuz rasgado. O gordo conde olhou-lhe para as costas,
tinha a camisa manchada de sangue, mas não se via nenhuma
ferida.
— Não compreendo — disse o gordo conde.
— Tens de pôr uma ligadura na mão.
Ulenspiegel rasgou uma tira do capuz e enrolou-a à volta do
braço do gordo conde.
Já nessa altura ele suspeitava que um dia tudo aquilo teria de
ser contado de outra maneira no seu livro. Nenhuma descrição
sairia bem, pois tudo escaparia a qualquer relato e as frases que
conseguisse formar não corresponderiam às imagens que guardava
na memória.
E, na realidade, assim foi: o que se passou nem sequer lhe
apareceu em sonhos. Só às vezes reconhecia, em outros
acontecimentos completamente distintos, um eco distante daqueles
momentos na orla do bosque de Streitheim, nas proximidades de
Zusmarshausen, em que se vira no fogo da batalha.
Anos mais tarde, interrogou o infeliz conde Gronsfeld, a quem o
príncipe da Baviera mandou aprisionar imediatamente depois da
derrota. Desdentado, exausto e acometido por ataques de tosse,
aquele que anteriormente fora o comandante das tropas bávaras
referiu-lhe os nomes e lugares, descreveu as forças das diferentes
unidades e traçou os planos das operações, de modo que o gordo
conde conseguiu mais ou menos fazer um relato aproximado dos
sítios onde havia estado e o que se passara com ele e os
companheiros. No entanto, as frases não lhe obedeciam. E, por
esse motivo, foi roubá-las a outro sítio.
Num romance popular encontrou uma descrição que lhe agradou
e, quando o pressionaram para que descrevesse a última batalha da
grande guerra da Alemanha, contou o que lera no Simplicissimus de
Grimmelshausen. As coisas não coincidiam, porque esta obra
relatava a batalha de Wittstock, embora ninguém se incomodasse
com isso, nem fizesse perguntas. O que o gordo conde não podia
saber, era que Grimmelshausen tinha de facto vivido a batalha de
Wittstock, mas, de igual modo, não fora capaz de a descrever e, por
sua vez, roubara as frases de um romance inglês traduzido por
Martin Opitz, cujo autor nunca estivera numa batalha.
No seu livro, o gordo conde também conta sucintamente a noite
no bosque, durante a qual o bobo, que de súbito se tornara loquaz,
relatara o tempo que havia passado em Haia, na corte do Rei do
Inverno, e como, três anos antes, durante o cerco de Brünn, ficara
soterrado. Começara por brigar com o comandante da cidade, por
causa de uma observação sobre o seu rosto, de modo que este o
mandara para os sapadores; uma galeria desmoronara-se sobre a
sua unidade, e daí a cicatriz que tinha na testa. Tinham ficado
fechados lá no fundo, às escuras, sem uma saída, sem ar, mas logo
de seguida houvera um salvamento miraculoso. Tinha sido uma
história incrível, delirante, escreveu o gordo conde, e a circunstância
de ter modificado abruptamente o tema, sem apresentar
pormenores sobre o que de facto se havia passado no salvamento
miraculoso de Brünn, deveria mais tarde despertar a perplexidade e
a cólera de vários leitores.
De qualquer forma, Ulenspiegel era um bom contador de
histórias, melhor do que o abade e também melhor do que o gordo
conde, que, a ouvi-lo, se distraía das dores lancinantes na mão. Não
havia motivo para preocupações, disse o bobo, naquela noite os
lobos teriam comida com fartura.
Aos primeiros alvores da madrugada, partiram. Contornaram o
campo de batalha, de onde chegava até eles um cheiro que o gordo
conde nunca imaginara que existisse; em seguida, passaram por
Schlipsheim, Hainhofen e Ottmarshausen. Ulenspiegel, que
conhecia bem a região, mostrou-se calmo e circunspecto e não
voltou a insultar o gordo conde uma única vez.
A paisagem vazia enchera-se de gente. Camponeses
transportavam os seus haveres em carros, soldados dispersos
procuravam a sua unidade e a sua família, feridos acocorados à
beira da estrada, com ligaduras improvisadas, imóveis, olhavam em
frente com uma expressão vazia. Ambos deixaram Oberhausen, em
chamas, a oeste, e dirigiram-se a Augsburgo, onde se reunira o que
restava do exército do imperador. Depois da derrota, este já não era
numeroso.
O fedor no acampamento à entrada da cidade era ainda pior do
que no campo de batalha. Quais visões do Inferno, os cadáveres
deformados, os rostos purulentos, as feridas abertas e os montes de
excrementos ficaram gravados na memória do gordo conde. Nunca
mais voltarei a ser o mesmo, pensou ele, enquanto abriam caminho
até às portas da cidade, e: não passam de imagens, não me podem
fazer nada, não me podem agarrar, são apenas imagens. E
imaginou que era outro, que caminhava invisível ao lado deles, sem
ter de ver o que via.
À tarde, chegaram às portas da cidade. Preocupado, o gordo
conde identificou-se aos guardas, e ele próprio ficou surpreendido
quando estes acreditaram em tudo e o deixaram passar sem
qualquer hesitação.
REIS NO INVERNO
I

Era novembro. As reservas de vinho tinham chegado ao fim e,


como o poço do jardim estava imundo, só bebiam leite. Uma vez
que não conseguiam arranjar velas, a corte inteira ia dormir com o
sol. As coisas não corriam bem, mas continuava a haver príncipes
dispostos a morrer por Liz. Havia pouco, estivera um ali em Haia,
Christian von Braunschweig, que lhe prometera mandar bordar pour
Dieu et pour elle nos seus estandartes e a seguir jurara com fervor
que queria vencer ou morrer por ela. Era um herói exaltado, e a
emoção deixava-lhe os olhos marejados de lágrimas. Frederico
acalmara-o com umas palmadinhas no ombro, e ela oferecera-lhe o
seu lenço, mas isso voltara a fazê-lo chorar, comovido com a ideia
de possuir um lenço que lhe pertencera. Liz concedera-lhe a bênção
real e, muito perturbado, ele pusera-se de novo a caminho.
Como é natural, não levaria a cabo o seu intento, nem por Deus
nem por ela. Aquele príncipe tinha poucos soldados e nenhum
dinheiro, além de que não era particularmente inteligente. Eram
precisos homens de outro calibre para vencer Wallenstein, alguém
como o rei da Suécia, que havia pouco irrompera pelo reino como
um furacão, vencendo todas as batalhas. Liz devia ter casado com
ele, em conformidade com os planos do papá, mas ele não a
quisera.
Quase vinte anos haviam decorrido desde que Liz desposara
Frederico em vez do rei da Suécia. Vinte anos alemães, um
turbilhão de acontecimentos, de rostos, de ruídos, de mau tempo, de
comida ainda pior e de teatro péssimo.
O teatro era o que mais falta lhe fazia, desde o princípio, ainda
mais do que a comida saborosa. Em países germânicos não se
conhecia o teatro propriamente dito, tudo o que havia eram
comediantes deploráveis que se deslocavam à chuva, gritavam,
pulavam, se peidavam e batiam uns aos outros. É provável que isso
se devesse à língua rude, pouco apropriada para teatro, uma
misturada de sons aspirados e de grunhidos duros; era uma língua
que soava como se quem a falava estivesse engasgado, como se
lhe saísse cerveja pelo nariz, ou como se uma vaca estivesse com
um ataque de tosse. O que podia fazer um poeta com uma língua
assim? Liz tentara com a literatura alemã, uma vez com um tal
Opitz, depois com outro, cujo nome havia esquecido; não conseguia
fixar aquela gente, que se chamava sempre Krautbacher,
Engelkrämer ou Kargholzsteingrömpl, e uma pessoa que tinha
crescido com Chaucer e a quem John Donne dedicara alguns
versos — chamando-lhe «fair phoenix bride», e dizendo «and from
thine eye all lesser birds will take their jollity» — nem com toda a
delicadeza conseguia convencer-se de que aqueles mugidos
alemães valiam alguma coisa.
Era frequente recordar-se do teatro da corte em Whitehall.
Pensava nos gestos discretos dos atores, nas frases longas, com
um ritmo em constante mutação, semelhante a música, umas vezes
rápido e trepidante, outras vezes demorando muito a abrandar,
outras, num tom interrogativo, outras ainda, imperioso. Sempre que
regressava à corte para visitar os pais, tinham aí lugar
representações teatrais. Pessoas no palco fingiam, mas ela
compreendera imediatamente que aquilo também não era verdade e
que aquele fingimento não passava de uma máscara, pois o que era
falso não era o teatro, não, tudo o mais eram momices, disfarces e
futilidades, tudo o que não era teatro era falso. No palco, as pessoas
eram elas próprias, genuínas, inteiramente transparentes.
Na vida real, ninguém falava em monólogos. Cada um guardava
as suas ideias para si, não se podiam ler os rostos, cada um
carregava o peso morto dos seus segredos. Ninguém estava
sozinho no seu quarto a dizer em voz alta o que queria ou o que
receava, mas quando Burbage o fazia no palco, com a sua voz
cáustica e com os dedos finíssimos à altura dos olhos, parecia
antinatural todos ocultarem sempre o que se passava no seu íntimo.
E que palavras ele utilizava! Palavras poderosas, raras, que
cintilavam como tecidos preciosos — frases, tão perfeitamente
elaboradas, que ninguém seria capaz de as compor. Era assim que
devia ser, dizia-nos o teatro, era assim que devias falar, que te
devias comportar e sentir; e desse modo serias uma pessoa de
verdade.
Quando a representação chegava ao fim e os aplausos
cessavam, os atores regressavam à sua situação de miséria.
Durante as vénias, assemelhavam-se a velas apagadas. Em
seguida, Alleyn, Kemp e até o grande Burbage aproximavam-se,
com uma reverência pronunciada, para beijar a mão do papá e,
quando este lhes perguntava qualquer coisa, respondiam como
pessoas para as quais a linguagem é recalcitrante e a quem não
ocorre uma frase clara. O rosto de Burbage estava ceroso e
fatigado, e nas suas mãos, agora feias, já nada havia de especial.
Mal se podia acreditar como o espírito da ligeireza o havia
abandonado depressa.
Esse espírito aparecia numa das obras, que tinham representado
no dia de Todos os Santos. Tratava de um duque já idoso numa ilha
encantada, onde mantinha os seus inimigos prisioneiros, para
depois, de repente, lhes perdoar. Dantes ela não conseguia
compreender qual o motivo da sua clemência, e agora, quando
pensava nisso, continuava sem compreender. Se fosse ela que
tivesse Wallenstein ou o imperador em seu poder, não faria o
mesmo! No final da peça, o duque libertava o espírito que tivera ao
seu serviço, para lhe permitir regressar às nuvens, ao ar, à luz do
Sol e ao azul do mar, e ele ficava como um velho saco de farinha,
um ator encarquilhado a pedir desculpa por não ter mais texto. Em
tempos, o encenador dos King’s Men tinha ele próprio interpretado o
papel. Não era um dos grandes intérpretes, nem um Kemp nem,
muito menos, um Burbage, e via-se que não lhe era fácil decorar o
texto que ele mesmo escrevera. Depois do espetáculo, beijara-lhe a
mão com lábios ternos e, como lhe tinham ensinado que, em
momentos semelhantes, se deve sempre fazer uma pergunta, Liz
quisera saber se ele tinha filhos.
— Duas filhas. E um filho. Mas ele morreu.
Ela ficou à espera, pois agora cabia ao papá dizer qualquer
coisa. Mas o papá ficou calado. O encenador olhou-a, Liz olhou-o a
ele com o coração palpitante. Todas as pessoas presentes na sala
aguardavam, todos os cavalheiros com golas de seda e todas as
damas com diademas e leques olhavam para ele. E Liz
compreendeu que tinha de continuar a falar. O papá era assim.
Quando contávamos com ele, deixava-nos ficar mal. Pigarreou, para
ganhar tempo. Mas a pigarrear não se ganha muito tempo. Não vale
a pena pigarrear muito, de pouco serve.
Então Liz respondeu que lamentava muito saber que o filho dele
havia morrido. Deus tirava tão subitamente como dava, as
provações que nos dava eram insondáveis, embora sábias, pois se
as suportássemos com dignidade, tornavam-nos mais fortes.
Durante uma fração de segundo, sentiu-se orgulhosa de si. Para
dizer uma coisa assim diante da corte reunida, é preciso ter tido
uma boa educação e possuir agilidade mental.
O encenador sorrira e inclinara a cabeça e, de súbito, ela teve a
sensação de que caíra no ridículo de uma maneira difícil de
descrever. Suspeitou que estava corada e, como também se
envergonhava disso, ainda corou mais. Pigarreou de novo e
perguntou-lhe o nome do filho. Não que isso a interessasse, mas
não lhe ocorreu mais nada.
Ele respondeu em voz baixa.
— Verdade? — perguntou ela, surpreendida. — Hamlet?
— Hamnet.
O encenador inspirou e, em seguida, pensativo e como se
falasse para consigo, disse que não sabia se tinha suportado essa
provação enviada por Deus com tanta dignidade como a que ela lhe
atribuíra, mas que, num momento como aquele, se tinha a felicidade
de contemplar o futuro no semblante de uma donzela, estava seguro
de que, se a torrente da vida o tinha arrastado até ao estuário de um
tal mar, nada de muito mau podia ter acontecido, pelo que,
fortalecido por aquele momento de graça, estava disposto a aceitar
com gratidão todo o sofrimento e todas as dificuldades por que
tivesse passado e os que a vida ainda lhe reservasse.
Desta vez, foi a ela que nada ocorreu.
Ora muito bem, disse o papá por fim. Quanto ao futuro,
anunciam-se sombras. Havia mais bruxas do que nunca. Os
franceses eram traiçoeiros. A recente união da Inglaterra e da
Escócia ainda não fora posta à prova, o infortúnio espreitava por
toda a parte. Mas o pior eram as bruxas.
O infortúnio estava sempre à espreita, respondeu o encenador,
era sempre assim, embora a mão de um grande soberano pudesse
sustê-lo, como o ar sustém as nuvens antes de estas se
converterem em chuva suave.
Agora foi ao papá que nada ocorreu. Isso foi divertido, pois não
era frequente. O papá olhava para o encenador, todos olhavam para
o papá, ninguém dizia nada, e o silêncio prolongava-se demasiado.
Por fim, o papá deu meia-volta — assim, inesperadamente, sem
dizer palavra. Era frequente fazer isso, era um dos seus truques
para deixar as pessoas inseguras. A seguir, em geral passavam
uma semana a refletir no que tinham feito de errado e a perguntar-
se se teriam caído em desgraça. Mas o encenador pareceu
perceber o que se passava. Com um ligeiro sorriso, recuou,
inclinado para a frente.
— Estás convencida de que és melhor do que os outros, Liz? —
perguntara-lhe o bobo havia pouco tempo, quando ela lhe contara o
sucedido. — Viste mais, sabes mais, és de um país melhor que
nós?
— Sim — respondera ela. — Creio que sim.
— E estás convencida de que o teu pai te irá salvar? À cabeça
de um exército, pensas tu?
— Não, já não acredito nisso.
— Mas sim, continuas a pensar que um dia ele irá aparecer para
te fazer de novo rainha.
— Eu sou rainha.
O bobo soltara uma gargalhada sardónica, e Liz teve de engolir
em seco e de conter as lágrimas, recordando que a missão de um
bobo era precisamente essa: dizer o que mais ninguém se atrevia a
dizer. Era para isso que as pessoas tinham bobos, e mesmo que
quisessem prescindir dele, tinham de o deixar ficar, pois uma corte
sem bobo não era uma corte, e agora que ela e Frederico não
tinham país, pelo menos na corte tinha de estar tudo em ordem.
E aquele bobo estava rodeado de circunstâncias particulares. Liz
reparara nisso imediatamente, mal ele aparecera, no inverno
anterior, quando os dias estavam particularmente frios e a vida era
ainda mais miserável do que o habitual. Certo dia, tinham aparecido
os dois à porta, o jovem magro com o gibão colorido e a mulher alta.
Pareciam exaustos e maltratados, doentes devido à viagem e
aos perigos da vida em regiões inóspitas. Mas quando dançaram à
sua frente, tinha havido uma harmonia, uma consonância das vozes
e dos corpos como Liz não via desde que saíra de Inglaterra. Em
seguida, ele fizera malabarismo e a mulher pegara na flauta, e
ambos tinham executado uma peça sobre um tutor e a sua pupila.
Esta havia simulado estar morta e, ao encontrá-la sem dar acordo,
ele matara-se de desgosto, após o que ela tinha acordado e, com o
rosto desfigurado pelo horror, pegara na faca dele para se suicidar.
Liz conhecia a história, era uma peça que os King’s Men
costumavam representar. Abalada pela recordação de algo que
outrora fora muito importante na sua vida, perguntara a ambos se
queriam ficar.
— Ainda não temos um bobo na corte.
Para celebrar o início da sua atividade, ele oferecera-lhe um
quadro. Ou antes, não se tratava de um quadro, mas de uma tela
em branco, sem nada pintado.
— Manda-o emoldurar, pequena Liz, e pendura-o. Mostra-o aos
outros! — Nada lhe dava o direito de se lhe dirigir de tal forma, mas
pelo menos dizia bem o seu nome, com o Z inglês tão bem
pronunciado como se tivesse vivido em Inglaterra. — Mostra
também ao teu marido este lindo quadro, faz com que o pobre rei o
veja! E todos os demais!
E ela assim fizera. Mandou tirar da moldura um quadro com uma
paisagem verdejante, de que, de qualquer modo, não gostava, e
substituí-lo pela tela em branco, e depois o bobo mandou pendurar
o quadro num grande salão, a que ela e Frederico chamavam a sala
do trono.
— Este quadro é mágico, pequena Liz. Quem é bastardo, não o
vê. Quem é estúpido, não o vê. Quem roubou dinheiro, não o vê.
Quem trama alguma coisa maléfica, quem é uma pessoa em quem
não nos podemos fiar, quem é um patife, um ladrão de gado ou um
cara de cu, não o vê, para eles não há quadro!
E ela não pudera deixar de rir.
— Não, a sério, pequena Liz, diz isso às pessoas! Os bastardos,
os estúpidos, os ladrões e os estupores mal-intencionados não
verão nada, nem o céu azul, nem o castelo, nem a maravilhosa
mulher na varanda, com o cabelo dourado solto, nem o anjo atrás
dela. Diz-lhes isto e vê o que se passa!
O que se passou continuou a surpreendê-la, dia após dia, e
nunca deixaria de o fazer. Os visitantes ficavam atónitos diante do
quadro em branco, sem saber o que haviam de dizer, pois a
situação era complicada. Claro que percebiam que não havia nada
na tela, mas não estavam seguros se Liz também percebia, além de
que também se poderia pensar que se alguém que lhe dissesse que
na tela não havia nada, seria considerado bastardo, estúpido ou
ladrão. Ficavam todos tão confusos, que davam cabo da cabeça a
matutar. Estaria o quadro enfeitiçado, alguém teria intrujado Liz, ou
ela tomava-os a todos por tolos? A circunstância de quase todos os
que chegavam à corte do Rei do Inverno serem bastardos,
estúpidos, ladrões ou gente mal-intencionada não tornava as coisas
mais fáceis.
De qualquer modo, não recebiam muitas visitas. Dantes,
apareciam pessoas para verem Liz e Frederico com os seus
próprios olhos, e havia quem também lá fosse para fazer
promessas, pois, embora quase ninguém acreditasse que Frederico
voltaria a reinar na Boémia, tal não era completamente impossível.
Prometer qualquer coisa custava pouco; enquanto alguém estivesse
afastado do poder, não seria preciso cumprir o prometido, mas, se
subisse de novo ao trono, recordar-se-ia dos que o haviam apoiado
naqueles tempos sombrios. Mas promessas era tudo o que
recebiam, já ninguém lhes levava presentes suficientemente
valiosos para com eles fazerem dinheiro.
Com um rosto impassível, Liz também havia mostrado a tela em
branco a Christian von Braunschweig. Os estúpidos, os mal-
intencionados e os bastardos, explicara ela, não conseguiam ver a
pintura magnífica. E depois, com um prazer indescritível, tinha
ficado a observar como o seu admirador, lavado em lágrimas e
perplexo, olhava repetidas vezes para a parede, onde o quadro,
sarcástico e vazio, resistia àquela cena patética.
— É o melhor presente que já me ofereceram — disse Liz ao seu
bobo.
— Isso não significa muito, pequena Liz.
— John Donne ofereceu-me uma ode. Fair phoenix bride foi
como ele me…
— Pagaram-lhe por isso, pequena Liz, ele até te podia ter
chamado peixe fedorento se lhe tivessem dado dinheiro. Nem
imaginas como eu te chamaria se me pagasses melhor!
— E o imperador ofereceu-me um colar de rubis, e o rei de
França um diadema.
— Posso vê-los?
Ela permaneceu em silêncio.
— Tiveste de os vender?
Ela continuou em silêncio.
— E quem é esse Jon Don? Que género de pessoa é e o que é
uma vervénix?
Ela continuou calada.
— Tiveste de empenhar o teu diadema? E o colar do imperador,
pequena Liz, quem o usa agora?
O seu pobre rei também não ousara dizer nada sobre o quadro.
E quando ela, a rir, lhe explicara que tudo aquilo não passava de
uma brincadeira e que a tela não estava enfeitiçada, Frederico
apenas assentira com um movimento de cabeça e olhara-a,
inseguro.
Ela sempre soubera que o marido não primava pela inteligência.
Esse facto fora claro desde o início, mas para um homem da sua
categoria isso não era importante. Um príncipe não fazia nada e
seria quase escandaloso se tivesse uma inteligência excecional. Os
súbditos é que tinham de ser inteligentes. Ele era como era, e isso
bastava, não era preciso mais.
O mundo estava assim organizado. Havia umas quantas
pessoas a sério e havia as restantes: uma multidão de sombras, um
exército de vultos em segundo plano, um povo de formigas que
pululavam pela Terra e que tinham em comum o facto de terem falta
de qualquer coisa. Nasciam e morriam, eram como as manchas de
vida adejante de que se compõe um bando de pássaros, se um
desaparecia, mal se dava por isso. As pessoas que contavam eram
poucas.
Que o seu pobre Frederico não tinha uma inteligência excecional
e que, além do mais, era um pouco enfermiço, com tendência para
sofrer de dores de estômago e de ouvidos, já se fizera notar
quando, aos dezasseis anos, ele chegara a Londres, envolto em
arminho branco e com um séquito de quatrocentas pessoas. E tinha
chegado porque os outros pretendentes se tinham esgueirado ou,
no momento decisivo, não tinham avançado qualquer proposta; o
primeiro a recusar havia sido o jovem rei da Suécia, depois Maurício
de Orange e ainda Otto von Hessen. Em seguida, durante algum
tempo, houve o plano francamente temerário de a casar com o
príncipe do Piemonte, que não tinha dinheiro, mas que era sobrinho
do rei de Espanha. O velho sonho do papá era uma reconciliação
com a Espanha, mas os espanhóis tinham-se mantido céticos; e, de
súbito, só restava Frederico, o eleitor palatino alemão com um futuro
auspicioso. O chanceler do Palatinado passou meses em Londres a
negociar até chegarem a acordo: quarenta mil libras de dote do
papá para a Alemanha, em troca de dez mil libras anuais do
Palatinado para Londres.
Após a assinatura do acordo, foi a vez de o próprio Frederico
fazer a viagem, paralisado de insegurança. No seu discurso de
saudação atrapalhara-se imediatamente; todos notaram como o seu
francês era deplorável e, antes que a situação se tornasse ainda
mais penosa, o papá dirigira-se imediatamente a ele e abraçara-o.
Em seguida, com os lábios secos e franzidos, o pobre príncipe dera
o beijo de saudação estipulado pelo protocolo.
No dia seguinte tinham dado um passeio na maior barca da
corte, só a mamã não tinha querido ir por achar que um príncipe
eleitor do Palatinado não estava à altura. O chanceler do Palatinado
bem tinha afirmado, com a ajuda de pareceres ridículos dos juristas
da corte, que um príncipe eleitor estava ao nível de um rei, mas
todos sabiam que isso era um disparate. Só um rei era um rei.
Durante o passeio, Frederico apoiara-se à amurada, tentando
dissimular que estava enjoado. Tinha olhos infantis, mas havia-se
mantido tão ereto como só os melhores precetores da corte sabem
ensinar. Por certo que és um bom floretista, pensara Liz, e também:
não és nada feio. Não te preocupes, sentiu vontade de lhe segredar,
estou ao teu lado.
E agora, muitos anos mais tarde, continuava a ser capaz de
manter uma postura impecável. O que quer que se tivesse passado,
por muito que o tivessem humilhado e convertido no alvo de
escárnio da Europa, continuava a ser capaz de se manter muito
direito como outrora, com a cabeça ligeiramente assente na nuca, o
queixo bem erguido, os braços cruzados nas costas, e ainda tinha
os seus lindos olhos ternos.
Liz gostava muito do seu pobre rei. Não podia deixar de ser.
Passara todos esses anos com ele e dera-lhe tantos filhos que nem
os conseguia contar. Chamavam-lhe Rei do Inverno, a ela Rainha
do Inverno, e os destinos de ambos estavam indissoluvelmente
ligados. Em tempos, durante o passeio no Tamisa, ela nada
pressentira, apenas pensara que tinha de ensinar umas coisas
àquele pobre jovem, pois quando duas pessoas estão casadas, têm
de falar uma com a outra. E isso podia ser difícil com aquele
homem, que não fazia ideia de nada.
Devia ter sido uma tarefa avassaladora, tão longe do seu castelo
de Heidelberga, longe das vacas da sua pátria, das casas com
telhados em bico e da boa gente alemã, pela primeira vez numa
cidade. E ali estava ele, diante de todas aquelas damas e
cavalheiros astutos e assustadores e, para cúmulo, diante do papá,
que, por si só, metia medo a qualquer um.
Ao princípio da noite que se seguiu ao passeio, o papá e ela
tinham tido a mais longa conversa da sua vida. Liz conhecia mal o
pai. Não crescera junto dele, mas em casa de Lord Harington em
Coombe Abbey, pois as famílias de prestígio não criam os filhos elas
próprias. O pai fora uma sombra nos seus sonhos, uma personagem
de um quadro, uma figura saída de um conto de fadas — o
soberano de dois reinos, Inglaterra e Escócia, o perseguidor de
bruxas ímpias, o terror dos espanhóis, o filho protestante da rainha
católica executada. Quem o via ficava surpreendido por ter um nariz
tão grande e uns sacos lacrimais tão inchados. Era como se os seus
olhos estivessem sempre pensativos, fixados no interior, dando às
pessoas a sensação de terem dito qualquer coisa errada. Mas isso
era intencional, e ele habituara-se a fazê-lo.
Foi a primeira conversa a sério que tiveram. Como tens passado,
querida filha? Sempre fora assim, quando ela ia visitá-lo a Whitehall.
Obrigada, sinto-me maravilhosamente, estimado pai. A tua mãe e eu
alegramo-nos por te ver tão bem. É difícil sentirdes a alegria que eu
sinto por vos ver de boa saúde. Mentalmente chamava-lhe papá,
mas nunca ousaria dirigir-se-lhe de tal forma.
Nessa noite, encontraram-se a sós pela primeira vez. O papá
estava de pé, junto da janela, com os braços atrás das costas.
Durante muito tempo, não proferiu palavra. E como ela não sabia o
que havia de dizer, também guardou silêncio.
— Esse palerma tem um grande futuro — disse ele por fim.
Ficou de novo em silêncio. Tirou um objeto de mármore da
estante, contemplou-o e voltou a pô-lo no lugar.
— Há três príncipes protestantes — disse tão baixo que ela teve
de se inclinar para a frente a fim de ouvir —, e o do Palatinado, que
é o teu, é o de estatuto mais elevado, o chefe da União Protestante
do Império Alemão. O imperador está doente e em breve será eleito
um novo imperador em Frankfurt. Se até lá o nosso lado se tornar
mais forte…
Examinou a filha de cima a baixo, com os seus olhos tão
pequenos e tão enterrados nas órbitas que era como se não
estivesse a olhar.
— Um imperador calvinista? — perguntou Liz.
— Nunca. Isso é impensável. Mas um príncipe eleitor calvinista,
convertido à fé católica, como Henrique de França em tempos se
tornou católico, ou — com um gesto suave, deu umas pancadinhas
no peito — como nós nos tornámos protestantes. A influência da
casa de Habsburgo está a reduzir-se. A Espanha quase perdeu a
Holanda, a nobreza da Boémia pressionou o imperador para obter
tolerância religiosa. — Caiu de novo no silêncio, antes de perguntar:
— Então ele agrada-te?
A pergunta foi tão surpreendente que Liz ficou sem saber o que
devia responder. Com um ligeiro sorriso, inclinou a cabeça. Na
maior parte dos casos, esse gesto funcionava, e as pessoas ficavam
contentes, sem que fosse necessário comprometer-se. Mas com o
papá não resultava.
— É um risco — disse ele. — Tu não conheceste a minha tia,
aquele dragão a quem chamavam a Rainha Virgem. Quando eu era
jovem, ninguém imaginava que me tornaria seu sucessor. Mandou
decapitar a minha mãe e não gostava muito de mim. Pensavam que
também me mandaria matar, mas isso não aconteceu. Era tua
madrinha, tens o nome dela, mas não foi ao batizado para indicar a
aversão que tinha por nós. Apesar disso, eu estava a seguir a ela na
sucessão ao trono. Ninguém imaginava que deixaria um Stuart ser
rei. Nem eu pensava que fosse possível. O que pensava era que
estaria morto antes de o ano terminar, pensava isso ano após ano,
mas depois, no final de cada ano, continuava vivo. E aqui estou eu,
enquanto ela apodrece no túmulo. Por isso, não temas os riscos,
Liz. E nunca te esqueças de que esse pobre rapaz fará o que lhe
disseres. Ele não está à tua altura. — Refletiu durante algum tempo
e, em seguida, acrescentou, como se isso tivesse surgido do nada:
— A pólvora por baixo do parlamento, Liz. Podíamos estar todos
mortos. Mas ainda estamos aqui.
Esse foi o discurso mais longo que a filha o ouvira pronunciar.
Ficou à espera, mas, em vez de prosseguir, ele cruzou de novo as
mãos nas costas e saiu da sala sem dizer mais uma palavra.
Liz ficou de novo só. Olhou pela janela, pela qual o pai acabava
de olhar, como se dessa maneira pudesse compreendê-lo melhor, e
pensou na pólvora. Tinham passado apenas oito anos, desde que
os assassinos tinham tentado matar o papá e a mamã e tornar o
país de novo católico. Altas horas da noite, Lord Harington sacudira-
a para a acordar, gritando: «Eles vêm aí!»
A princípio, ela não sabia onde estava nem ao que ele se referia,
e quando a sua consciência se foi lentamente libertando das brumas
do sono, só lhe ocorreu como era indecoroso aquele homem adulto
estar no seu quarto. Nunca se passara nada de semelhante.
— Querem matar-me?
— Pior. Primeiro tendes de vos converter e em seguida far-vos-
ão subir ao trono.
Depois tinham viajado uma noite, um dia e mais uma noite. Liz ia
ao lado da sua aia, numa carruagem que sacolejava tanto que
diversas vezes teve de vomitar pela janela. Seguia-os meia dúzia de
homens armados, a cavalo, e Lord Harington, também a cavalo, ia à
frente. Quando pararam a descansar às primeiras horas da manhã,
ele explicou-lhe num murmúrio que ele próprio não sabia quase
nada. Que tinha chegado um mensageiro que contara que um
bando de assassinos, a mando de um jesuíta, andava à procura da
neta de Maria Stuart. Queriam sequestrá-la e torná-la rainha.
Provavelmente o seu pai estava morto, e a mãe também.
— Não há jesuítas em Inglaterra. A minha tia-avó expulsou-os a
todos!
— Ainda há alguns. Vivem escondidos. Um dos piores chama-se
Tesimond, há muito tempo que andamos à procura dele, mas
conseguiu sempre escapar, e agora anda à vossa procura. — Lord
Harington pôs-se de pé com um suspiro. Já não era um jovem e
custava-lhe cavalgar durante muitas horas. — Temos de continuar!
Depois esconderam-se numa casinha em Coventry, não
autorizando Liz a sair do quarto. Só tinha consigo uma boneca, mas
nenhuns livros, e a partir do segundo dia aborrecia-se de tal modo
que mesmo o jesuíta Tesimond lhe parecia preferível à monotonia
daquele quarto: sempre a mesma cómoda, os mesmos ladrilhos no
chão, que tantas vezes contara, o terceiro da segunda fila, a contar
da janela, tinha saltado, tal como o sétimo da sexta fila; e depois a
cama e o bacio, que um dos homens esvaziava duas vezes por dia,
e a vela, que não a deixavam acender, para que não se visse luz
pela janela, e, sentada numa cadeira junto da cama, a aia, que já
lhe contara três vezes a vida, na qual nada de interessante se
passara. O jesuíta não podia ser pior do que isso. Além de que não
lhe queria fazer mal, só queria torná-la rainha.
— Não estais a entender bem, Vossa Alteza — disse Harington.
— Não seríeis livre. Teríeis de fazer o que o Papa dissesse.
— E agora tenho de fazer o que vós dizeis.
— É verdade, e mais tarde ficar-me-eis grata.
Naquele momento, já não havia perigo. Mas nenhum deles sabia
isso. A pólvora debaixo do Parlamento fora encontrada antes de os
conspiradores a terem acendido, os pais dela tinham sobrevivido
ilesos, os católicos foram para a prisão e os infelizes
sequestradores, agora perseguidos, estavam escondidos nos
bosques. Mas como não o sabiam, Liz ainda permaneceu sete dias
intermináveis no quarto com os dois ladrilhos soltos, sete dias junto
da aia, que lhe contava a sua vida desinteressante, sete dias sem
livros, sete dias apenas com uma boneca, que ela no terceiro dia já
odiava mais do que teria odiado o jesuíta.
Também não estava a par de que o papá se encarregara dos
conspiradores. Não só mandou chamar os melhores torcionários
dos seus dois reinos, mas também três peritos em dor da Pérsia e o
mais experiente torturador do imperador da China. Mandou impor
aos prisioneiros toda a espécie de dores conhecidas que uma
pessoa pode infligir ao seu semelhante e, além disso, mandou
descobrir torturas que até então nem se suspeitava que existissem.
Exigiu que todos os especialistas inventassem torturas novas, mais
subtis e atrozes do que os grandes pintores do Inferno tinham
sonhado, sendo a única condição que a luz da alma do torturado
não se extinguisse por completo e que este não enlouquecesse:
finalmente, os culpados tinham de nomear os seus cúmplices e
deviam ter tempo para pedirem perdão a Deus e se arrependerem.
Por aqui se via que o papá era um bom cristão.
Entretanto a corte enviara uma centena de soldados para
proteger Liz. Porém, o seu esconderijo era tão bom que os soldados
não conseguiram encontrá-la, tal como os conspiradores também
não tinham conseguido. E assim passavam os dias. E ainda mais
dias passaram, e depois ainda mais, e, de súbito, o enfado tinha
diminuído e naquele quarto Liz teve a sensação de que agora
compreendia qualquer coisa sobre a essência do tempo que
anteriormente lhe escapava: não se passava nada. Tudo era. Tudo
permanecia. E mesmo quando as coisas se modificavam, isso
acontecia sempre naquele agora igual, que não mudava nunca.
Nas fugas posteriores, era frequente Liz pensar naquela
primeira. Depois da derrota na Montanha Branca, parecia-lhe estar
preparada de antemão e que a fuga era algo que há muito conhecia.
— Dobrai a seda — ordenava ela —, deixai ficar a loiça, levai
antes os linhos, que são mais valiosos durante a viagem. E, quanto
aos quadros, levai os espanhóis e deixai os boémios, pois os
espanhóis pintam melhor! — E ao seu pobre Frederico dizia: — Não
te preocupes. Uma pessoa vai-se embora a correr, passa algum
tempo escondida, e depois regressa.
Em tempos fora assim em Coventry. A dada altura, tinham
sabido que o perigo passara. E haviam regressado a Londres a
tempo da grande missa de ação de graças. As ruas entre
Westminster e Whitehall estavam cheias de pessoas rejubilantes.
Depois, os King’s Men representaram uma peça de teatro, que fora
o próprio encenador a escrever para a ocasião. Tratava de um rei
escocês que fora assassinado por um malvado, um homem com
uma alma negra, incitado por umas bruxas que mentem enquanto
dizem a verdade. Era uma peça sombria, repleta de fogo, de sangue
e de forças demoníacas e, quando terminou, Liz percebeu que
nunca mais queria voltar a vê-la, embora talvez tivesse sido a
melhor peça a que assistira na vida.
Mas o pobre tonto do seu marido não quis ouvi-la quando
fugiram de Praga. Estava demasiado horrorizado por ter perdido o
exército e o trono e não parava de murmurar que fora um erro
aceitar a coroa da Boémia. Todas as pessoas importantes lhe
tinham dito inúmeras vezes que era um erro mas, na sua patetice,
dera ouvidos às pessoas erradas.
Como é evidente, com isso referia-se a ela.
— Dei ouvidos às pessoas erradas! — repetia ele,
suficientemente alto para que ela pudesse ouvi-lo, enquanto a
carruagem, a menos vistosa que possuíam, saía da capital.
Nessa altura, Liz compreendeu que o marido nunca lhe perdoaria
aquilo. No entanto, ele continuaria a amá-la, como ela o amava a
ele. A essência do casamento não assentava apenas nos filhos,
mas também nas feridas que os membros do casal infligiam um ao
outro, em todos os erros que cometiam juntos, em todas as coisas
pelas quais se guardava ressentimento para sempre. Ele não
perdoaria a Liz que ela o tivesse levado a aceitar a coroa, tal como
ela não lhe perdoaria ter-se mostrado desde o primeiro dia
demasiado pateta. Tudo teria sido mais fácil se ele tivesse uma
mente mais ágil. A princípio, pensara que poderia mudá-lo, mas
depois reconhecera que nada havia a fazer. A dor que isso lhe
causara nunca iria desaparecer e sempre que ele entrava numa sala
com os passos firmes que tão bem aprendera, ou que ela
contemplava o seu belo rosto, o amor que sentia por ele era sempre
acompanhado por uma pequena punhalada.
Liz afastou a cortina e espreitou pela janela da carruagem.
Praga: a segunda capital do mundo, o centro do conhecimento, a
antiga sede de império, a Veneza de leste. Apesar da escuridão,
reconheciam-se os contornos do Hradschin, iluminado pelo brilho de
inúmeras línguas de fogo.
— Regressaremos — disse Liz, embora naquele momento já não
acreditasse nisso. Mas sabia que só suportamos uma fuga quando
nos agarramos a uma promessa. — És o rei da Boémia, como Deus
quer. Voltarás.
E, por muito terrível que aquele momento fosse, encerrava
também algo que lhe agradava. Fazia-lhe lembrar o teatro: ações de
Estado, uma coroa que mudava de cabeça, uma grande batalha
perdida. O que faltava era um monólogo.
E aí também Frederico fracassara. Quando se despedira
apressadamente dos membros da sua comitiva, pálidos de
preocupação, seria o momento indicado para um discurso e devia
ter subido para uma mesa e falado. Alguém teria reparado, escrito
sobre o assunto e contado o sucedido. Um grande discurso tê-lo-ia
tornado imortal. Mas, como é natural, sem que lhe ocorresse nada,
balbuciara qualquer coisa incompreensível, para logo a seguir
estarem ambos de saída, a caminho do exílio. E nenhum daqueles
senhores da Boémia, cujos nomes Liz nunca conseguira pronunciar,
todos os Wrschwitschky, Prtschkatrt e Tschrrkattrr, que o precetor da
corte responsável pela língua checa lhe segredava ao ouvido em
cada receção, sem que ela nunca conseguisse repeti-los, voltaria a
viver a chegada do Ano Novo. O imperador não tolerava graças.
— Está tudo bem — murmurava Liz na carruagem sem pensar,
pois não estava tudo bem. — Está tudo bem, está tudo bem, está
tudo bem!
— Não devia ter aceitado essa maldita coroa!
— Está tudo bem.
— Dei ouvidos às pessoas erradas.
— Está tudo bem!
— Não podemos voltar para trás? — murmurou ele. — E mudar
as coisas de alguma maneira? Consultar um astrólogo? Com a
ajuda das estrelas, tudo se resolveria. Que te parece?
— Sim, talvez — respondeu Liz, sem perceber o que o marido
queria dizer.
E quando lhe acariciou o rosto molhado de lágrimas,
estranhamente, recordou-se da sua noite de núpcias. Ela não fazia
ideia de nada, ninguém considerara necessário explicar coisas
dessas a uma princesa, enquanto era evidente que a ele alguém
dissera que era muito fácil, que bastava tomar a mulher, que ela a
princípio se mostraria tímida, mas que depois entenderia; com força
e determinação devia avançar para ela como para o inimigo na
batalha. De bom grado, Frederico dispôs-se a seguir este conselho.
Mas quando a agarrou de repente, Liz pensou que o marido
enlouquecera e, como era uma cabeça mais alta do que ele,
abanou-o e disse:
— Deixa-te de disparates!
Ele tentou de novo, mas ela deu-lhe um tal empurrão que o
atirou contra a cómoda. Um frasco partiu-se e, durante toda a vida,
Liz recordar-se-ia do charco na marchetaria de pedra, no qual
flutuavam três pétalas de rosa como barquinhos. Ainda se lembrava
perfeitamente de que eram três.
Ele endireitou-se e fez nova tentativa.
E como ela se apercebera de que era mais forte, não gritou por
socorro, limitando-se a agarrá-lo pelos pulsos com firmeza.
Frederico não conseguia libertar-se. Ofegante, ele puxava, ofegante,
ela agarrava-o, e fitavam-se com os olhos dilatados de susto.
— Para com isso — disse Liz.
Frederico começou a chorar.
E, tal como mais tarde, na carruagem, ela murmurou:
— Está tudo bem, está tudo bem!
E sentou-se na beira da cama a acariciar-lhe a cabeça.
O marido recompôs-se, tentou uma última vez e agarrou-lhe um
seio. Liz deu-lhe uma bofetada e, quase aliviado, ele desistiu. Ela
deu-lhe um beijo na face. Frederico suspirou. Depois, enrolado,
enfiou-se tão fundo debaixo das mantas que não se lhe via a cabeça
e adormeceu imediatamente.
Só umas semanas mais tarde conceberam o primeiro filho.
Era uma criança simpática, viva e como se irradiasse luz, com
olhos azuis-claros e uma voz límpida; era formoso como o pai e
inteligente como Liz, e esta recordava-se nitidamente do seu
cavalinho de baloiço, de um pequeno castelo que ele construíra com
blocos de madeira e de como, com uma voz aguda e firme, cantava
as canções inglesas que a mãe lhe ensinara. Aos quinze anos,
morreu afogado debaixo de um barco que se virou. Já lhe tinham
morrido filhos, mas nenhum tão tarde. Quando eram pequenos,
quase diariamente esperava-se que isso acontecesse, mas Liz
afeiçoara-se àquele durante quinze anos, vira-o crescer, e depois,
de súbito, o filho desaparecera. Não podia deixar de pensar nele
constantemente, nos momentos que estivera preso debaixo do
barco virado. E quando conseguia não pensar nesse filho durante
um breve espaço de tempo, sonhava com ele ainda com maior
nitidez.
Mas na sua noite de núpcias ainda não sabia nada disso, nem
tão-pouco o sabia mais tarde na carruagem, quando fugiram de
Praga; só agora o sabia, na casa junto de Haia, a que chamavam a
residência real, embora se tratasse apenas de uma vila com dois
pisos: em baixo, ficava a ala de estar, a que chamavam a sala de
receções e por vezes também a sala do trono, uma cozinha, a que
chamavam a ala da criadagem, um pequeno anexo, a que
chamavam os estábulos, e o seu quarto de dormir, no primeiro
andar, a que chamavam os seus aposentos. À frente havia um
jardim, a que chamavam parque, rodeado por uma sebe a precisar
de ser podada com mais frequência.
Liz nunca tinha uma ideia geral de quantas pessoas viviam na
sua casa. Havia aias, havia um cozinheiro, havia o conde Hudenitz
— um velho pateta, que fugira com eles de Praga e a quem
Frederico imediatamente nomeara chanceler —, havia um jardineiro,
que também era o responsável pelas cavalariças, o que não
significava grande coisa, pois praticamente não tinham lá animais, e
havia um lacaio, que anunciava os convidados com uma voz sonora
e a seguir servia a refeição. Um dia reparou que o lacaio e o
cozinheiro não eram muito parecidos um com o outro, como até
então pensara, mas que eram uma e a mesma pessoa. Como não
se apercebera disso? Os criados viviam na ala da criadagem,
exceto o cozinheiro, que dormia no vestíbulo, e o jardineiro, que
passava a noite com a mulher na sala do trono, se é que se tratava
da mulher, Liz não tinha a certeza, por ser indigno de uma rainha
ocupar-se desse género de coisas; mas a mulher, gorducha e
amável, era de confiança para guardar as crianças. Por seu lado,
Nele e o bobo dormiam no corredor, ou talvez nem sequer
dormissem, Liz nunca os vira dormir. Ser dona de casa não era o
seu forte e deixava isso a cargo do mordomo, que, de resto,
também cozinhava.
— Posso levar o bobo comigo a Mainz? — perguntou Frederico.
— Para que queres o bobo?
Ele tinha de entrar na cidade como um soberano, explicou o
marido da maneira embrulhada que lhe era habitual. E uma corte
tem de ter um bobo.
— Se achas que isso ajuda…
E assim partiram, o marido, o bobo, o conde Hudenitz e ainda,
para que o séquito não fosse demasiado reduzido, o cozinheiro. Liz
viu-os partir, recortados contra o céu cinzento de novembro. Ficou a
olhá-los da janela até os perder de vista. Passou algum tempo, as
árvores mal se moviam agitadas pelo vento e, à parte isso, nada
bulia.
Sentou-se no seu lugar favorito, na cadeira entre a janela e a
lareira, onde há muito não havia fogo. De bom grado teria pedido
mais uma manta à aia, mas, infelizmente, esta tinha-se ido embora
dois dias antes. Arranjariam outra. Havia sempre uns plebeus
desejosos de que a filha servisse uma rainha — mesmo quando se
tratava de uma rainha que era alvo de mofa e sobre a qual
circulavam imagens humorísticas. Nos países católicos dizia-se que
ela dormira com todos os nobres de Praga, isso sabia ela há muito e
contra isso nada podia fazer, além de se mostrar digna, amável e
majestosa. Ela e Frederico tinham sido alvo de proscrição imperial,
e quem quisesse matá-los podia fazê-lo, sem que um sacerdote lhe
negasse a bênção e a absolvição.
Começou a nevar. Liz fechou os olhos e pôs-se a assobiar
baixinho. As pessoas chamavam ao seu pobre Frederico o Rei do
Inverno, mas quando o tempo arrefecia, ele morria de frio. A neve
no jardim não tardaria a chegar à altura dos joelhos, e não haveria
ninguém para limpar o caminho, pois também o jardineiro se fora
embora. Escreveria a Christian von Braunschweig a pedir-lhe que,
pour Dieu et pour elle, enviasse alguns homens com pás para
retirarem a neve.
Recordou o dia em que tudo havia mudado. O dia em que tinha
chegado a carta e, com ela, o destino fatal. Com todas aquelas
assinaturas amplas e fluidas, com todos os nomes igualmente
impronunciáveis. Cavalheiros dos quais ela nunca ouvira falar
ofereciam a coroa da Boémia ao príncipe eleitor Frederico. Já não
queriam o antigo rei, que, por união pessoal, era também imperador,
e desejavam que o seu novo soberano fosse protestante. A fim de
selar a sua decisão, defenestraram os governadores imperiais,
lançando-os pela janela do castelo de Praga.
Só que estes tinham caído sobre um monte de excrementos e
sobrevivido. Debaixo das janelas do castelo havia sempre
excrementos, devido a todos os bacios que eram despejados
diariamente. O disparate foi, a seguir, os jesuítas pregarem por todo
o país que um anjo, depois de agarrar nos governadores, os
depositara suavemente no solo.
Mal a carta chegou, Frederico escreveu ao papá.
Meu estimado genro, respondeu o papá em carta enviada por
correio a cavalo, não aceites de maneira nenhuma.
Em seguida, Frederico consultara os príncipes da União
Protestante. Todos os dias chegavam emissários, homens ofegantes
em cavalos que emitiam vapor pelas narinas, e cada carta dizia o
mesmo: não cometais um disparate semelhante, sereníssimo
príncipe eleitor, não façais tal coisa.
Frederico interrogou todos a quem conseguiu contactar. Aquilo
tinha de ser muito bem pensado, era sempre o que lhe repetiam. A
Boémia não fazia parte do território do império e, na opinião dos
juristas mais importantes, aceitar a coroa não constituía uma
violação do juramento de vassalagem prestado a Sua Majestade, o
Imperador.
Não faças tal coisa, escreveu de novo o papá.
Só nessa altura consultou Liz. Ela já aguardava que o fizesse, já
estava preparada.
Era noite e estavam no quarto de dormir, rodeados de pequenas
chamas imóveis no ar — apenas as velas mais caras ardiam tão
paradas.
— Não sejas palerma — disse ela também. Depois, decorrido
algum tempo, acrescentou: — Quantas vezes nos oferecem uma
coroa?
Esse foi o momento em que a vida dela se modificou, o momento
que Frederico nunca lhe perdoou. Durante toda a vida iria recordar a
cena: a cama de dossel com as armas dos Wittelsbacher no
baldaquino, as chamas das velas refletidas no frasco da mesa de
cabeceira, o quadro enorme na parede com uma senhora e um
cãozinho. Mais tarde, já não se recordava de quem o tinha pintado,
mas não importava, não o haviam levado para Praga, tinha-se
perdido.
— Quantas vezes nos oferecem uma coroa? Quantas vezes
acontece que aceitá-la seja um ato que agrada ao Senhor? Aos
protestantes boémios concederam a carta de tolerância, mas logo
de seguida retiraram-na e estão a apertar a corda cada vez mais. Só
tu podes ajudá-los.
Subitamente, Liz teve a impressão de que aquele quarto de
dormir, com cama de dossel, quadros nas paredes e um frasco, era
um palco e ela se estava a dirigir a uma sala cheia de espectadores
silenciosos e fascinados. Recordou-se do encenador, do poder
mágico que pairava nas frases que proferia; era como se a
rodeassem as sombras de futuros historiadores, como se não fosse
ela que falava, mas a atriz que, mais tarde, iria aparecer numa peça
que retratava aquele momento, a representar o papel da princesa
Isabel Stuart. A peça tratava do futuro da cristandade, de um reino e
de um imperador. Se conseguisse convencer o marido, o curso do
mundo tomaria uma direção, mas, se não o convencesse, tomaria
outra.
Pôs-se de pé e, com passos comedidos, começou a andar de um
lado para o outro a debitar o seu monólogo.
Falou de Deus e de deveres. Falou da fé das pessoas simples e
da fé dos sábios. Falou de Calvino, que ensinara todas as pessoas
a não encararem a vida com ligeireza, mas sim como uma prova na
qual se podia fracassar todos os dias, e quem fracassava seria um
falhado na eternidade. Falou do orgulho e da coragem com que se
deviam enfrentar os riscos, falou de Júlio César, que com as
palavras «agora os dados estão lançados» atravessara o Rubicão.
— César?
— Deixa-me terminar!
— Mas não foi César, foi o seu inimigo. Na melhor das hipóteses,
seria Bruto. César é o imperador!
— Na minha comparação, César és tu.
— César é o imperador, Liz. César significa imperador! Quer
dizer o mesmo.
Talvez quisesse dizer o mesmo, gritou ela, mas isso não mudava
nada, naquela sua comparação César não era o imperador, mesmo
que César quisesse dizer imperador, mas era o homem que tinha
atravessado o Rubicão e que lançara os dados e, dessa perspetiva,
César era ele, Frederico, porque iria vencer os seus inimigos, e não
o imperador em Viena, por mais que este tivesse o título de César!
— Mas César não venceu os seus inimigos. Foram os seus
inimigos que o apunhalaram!
— Uma pessoa pode apunhalar outra, isso não quer dizer nada!
Mas eles foram esquecidos, só o nome de César continua a ser
recordado!
— É verdade, e sabes onde? Na palavra imperador!
— Se tu fores rei da Boémia e eu rainha, o papá enviar-nos-á
ajuda. E se a união dos príncipes protestantes vir que os ingleses
protegem Praga, unir-se-ão a nós. A coroa da Boémia é a gota que
faz o oceano…
— A taça! A gota que faz transbordar a taça. Uma gota no
oceano quer dizer uma coisa que se faz em vão. Queres dizer a
gota que faz transbordar a taça!
— Que língua esta, Deus Santíssimo!
— Isto não tem nada que ver com o alemão, isto é lógica.
Nessa altura, ela perdera a paciência e começara a gritar, a
dizer-lhe que se calasse e que a ouvisse, e ele murmurara uma
desculpa e ficara em silêncio. E ela repetira tudo: o Rubicão, os
dados, Deus que está connosco, e, cheia de orgulho, dera-se conta
de que, à terceira vez, aquilo soava melhor, agora tinha reunido as
frases certas.
— O teu pai vai enviar soldados?
Ela olhou-o nos olhos. Esse foi o momento, agora dependia tudo
dela: tudo o que iria acontecer a partir daí, todos os séculos
seguintes, todo o futuro incomensurável, tudo dependia da sua
resposta.
— Ele é meu pai, não me vai deixar ficar mal.
E, embora soubesse que iriam ter a mesma conversa no dia
seguinte e daí a dois dias, também sabia que a decisão estava
tomada, que seriam coroados na catedral de Praga e que ela teria
um teatro da corte com os melhores atores do mundo.
Suspirou. Infelizmente, nunca conseguiu levar a sua avante. Não
tivera tempo, pensou, entre a janela e a lareira fria, a ver os flocos
cair. Aquele inverno não fora suficiente. Construir um teatro da corte
demorava anos. De qualquer modo, a coroação de ambos tinha sido
tão solene como imaginara e, a seguir, fora retratada pelos melhores
pintores da Boémia, da Morávia e da Inglaterra, tinha comido em
pratos de ouro e desfilado em cortejos pela cidade com meninos
vestidos de querubins a segurarem-lhe a cauda.
Entretanto, Frederico enviara uma carta ao papá: o imperador
virá, querido pai, sem dúvida que virá, precisamos de proteção.
O papá respondera desejando-lhes força e firmeza; invocara a
bênção de Deus e dera-lhes conselhos sobre saúde, a decoração
da sala do trono e as regras para governar bem, afirmara o seu
amor eterno e prometera estar sempre ao seu lado.
Mas soldados, não tinha mandado.
E quando Frederico por fim lhe escrevera a implorar auxílio, em
nome de Deus e de Cristo, o papá respondera que nunca passaria
um segundo em que os seus amados filhos não fossem alvo de
todas as suas esperanças e temores.
Mas como ele não enviara soldados, também a União
Protestante não os havia enviado, restando apenas o exército da
Boémia, que se reunira às portas da cidade em toda a sua pompa e
esplendor.
Ela viu-o marchar do Hradschin e, gelada de susto,
compreendeu que as lanças, espadas e alabardas não eram apenas
objetos reluzentes, mas que também tinham lâminas. Eram facas,
afiadas com o único objetivo de cortar carne humana, de penetrar
pele humana e de estilhaçar ossos humanos. Aqueles soldados, que
lá em baixo desfilavam tão bem com o passo certo, enterrariam
essas longas facas no rosto de outros e receberiam eles próprios
facadas na barriga e no pescoço, e alguns deles seriam atingidos
por pedaços de aço fundido, a voar tão depressa que arrancavam
cabeças, despedaçavam membros e rebentavam ventres. E
centenas de litros do sangue que ainda circulava naqueles homens,
dentro em breve já não estaria dentro deles, mas jorraria, correria e,
finalmente, infiltrar-se-ia no solo. O que faria a terra com todo aquele
sangue, a chuva lavá-lo-ia ou seria um adubo que faria crescer
algum tipo especial de planta? Um médico dissera-lhe que o último
sémen dos moribundos geraria pequenas mandrágoras humanas,
seres trémulos feitos de raízes, que choravam como bebés quando
se arrancavam da terra.
E, de repente, percebeu que aquele exército iria ser vencido.
Soube-o com uma certeza que lhe provocou uma vertigem; nunca
previra o futuro e, mais tarde, nunca mais conseguiu fazê-lo, mas
naquele momento não se tratou de um pressentimento, mas da
certeza mais absoluta: quase todos aqueles homens iriam morrer, à
exceção dos que ficassem estropiados e dos que se pusessem em
debandada, e depois Frederico, ela e os filhos fugiriam para
ocidente, e teriam pela frente uma vida no exílio, pois não poderiam
regressar a Heidelberga, o imperador não iria permiti-lo.
E foi exatamente assim que as coisas aconteceram.
Foram passando de uma corte protestante para a seguinte, cada
vez com um séquito menor e com menos dinheiro, à sombra da
proscrição imperial e da privação da dignidade de príncipe eleitor,
pois quem ocupava agora o lugar na Baviera era o primo católico de
Frederico, por vontade do imperador. Segundo a Bula Dourada, o
imperador não podia ter tomado essa medida, mas quem podia
impedi-lo se os seus generais venciam todas as batalhas? O papá
bem poderia tê-los ajudado e, de facto, escrevia-lhes regularmente e
no mais belo estilo, a manifestar o seu afeto e preocupação. Mas
não mandava soldados. Também os aconselhava a não irem a
Inglaterra, pois a situação não era nada favorável devido às
negociações com a Espanha; agora havia tropas espanholas no
Palatinado, para daí prosseguirem a guerra contra a Holanda.
Esperai um pouco, meus filhos, Deus apoia os justos e a sorte está
do lado dos íntegros, não percais a coragem, não passa um dia em
que por vós não reze o vosso pai Jaime.
E o imperador ganhava batalha após batalha. Vencera a União
Protestante, vencera o rei da Dinamarca e, pela primeira vez,
parecia possível o protestantismo desaparecer de novo deste
mundo de Deus.
Foi então que chegou o sueco Gustavo Adolfo, que não quisera
casar com Liz, e saiu vitorioso. Depois de vencer todas as batalhas,
estava agora às portas de Mainz no seu acampamento de inverno;
depois de muitas hesitações, Frederico escrevera-lhe, numa
caligrafia enérgica e com selo real, e apenas dois meses mais tarde
chegou a Haia uma carta com um selo igualmente grande:
alegramo-nos por vos saber bem e aguardamos a vossa visita.
O momento não era o mais propício. Frederico estava
constipado, doíam-lhe as costas. Mas havia apenas um homem
capaz de conseguir que voltassem ao Palatinado, e quem sabe se a
Praga, e se ele os convidava, era necessário ir.
— Tem mesmo de ser?
— Sim, Fritz.
— Mas ele não me dá ordens.
— Claro que não.
— Sou rei como ele.
— Claro, Fritz.
— Mas tenho mesmo de ir?
— Sim, Fritz.
E, assim, o rei partira, com o bobo, o cozinheiro e Hudenitz. Era
mais que tempo de as coisas mudarem, dois dias antes tinham
comido papa ao meio-dia e pão à noite e, na véspera, pão ao meio-
dia e à noite nada. Os Estados Gerais holandeses estavam tão
fartos deles que mal lhes davam dinheiro suficiente para
sobreviverem.
Liz piscou os olhos contemplando a tempestade de neve. Agora
fazia muito frio. Para aqui estou eu sentada, pensou, rainha da
Boémia, princesa do Palatinado, filha do rei de Inglaterra, sobrinha
do rei da Dinamarca, sobrinha-neta de Isabel, a Rainha Virgem, neta
de Maria da Escócia, e não tenho meios de conseguir lenha para a
lareira.
Apercebeu-se de que Nele estava ao seu lado. Durante um
momento, ficou surpreendida. Então porque não tinha ido com o
marido, se é que ele era seu marido?
Nele fez uma mesura, colocou um pé apoiado na ponta à frente
do outro, abriu os braços e esticou os dedos.
— Hoje não há dança — disse Liz. — Hoje vamos conversar.
Nele assentiu com um aceno de cabeça.
— Vamos contar coisas. Eu a ti, tu a mim. O que queres saber?
— Senhora?
Nele tinha um aspeto um tanto desmazelado, uma figura tosca e
as feições grosseiras que revelavam o seu baixo estrato, mas
mesmo assim era bonita: olhos escuros e límpidos, cabelo sedoso,
ancas arredondadas. Só o queixo era demasiado largo, e os lábios
um pouco grossos em demasia.
— O que queres saber? — repetiu Liz. — Sentiu uma picada no
peito, meio de temor, meio de excitação. — Pergunta o que
quiseres.
— Não tenho esse direito, senhora.
— Quando te mando, tens esse direito
— Não me incomoda que toda a gente se ria de mim e do Tyll.
Essa é a nossa profissão.
— Isso não é uma pergunta.
— A pergunta é se isso faz sofrer Vossa Majestade.
Liz permaneceu em silêncio.
— Que todos riam, senhora. Isso faz-vos sofrer?
— Não compreendo.
Nele sorriu.
— Decidiste perguntar-me uma coisa que não percebo. Como
queiras, dei-te uma resposta, agora é a minha vez. O bobo é teu
marido?
— Não, senhora.
— E porquê?
— É preciso uma razão?
— Sim, de facto é preciso.
— Fugimos juntos. O pai dele foi condenado como bruxo e eu
não queria ficar, não queria casar com um Steger, por isso fugi com
ele.
— Porque não querias casar?
— Estava sempre tudo imundo, senhora, e à noite não havia luz.
As velas são demasiado caras. Ficávamos sentados às escuras a
comer papas. Sempre papas. E eu não gostava do filho do Steger.
— E de Tyll?
— Já vos disse que ele não é meu marido.
— Agora é a tua vez de fazer outra pergunta — disse Liz.
— É difícil não ter nada?
— Como hei de saber? Diz-me tu!
— Não é fácil — respondeu Nele. — Caminha-se sem pátria,
sem proteção, sem uma casa contra o vento. Agora tenho casa.
— Se eu te mandar embora, deixas de ter. Então fugiram juntos,
mas porque não é ele teu marido?
— Um menestrel levou-nos. No mercado da vila seguinte
encontrámos um malabarista chamado Pirmin. Aprendemos o ofício
com ele, mas era um homem ruim e, além de nos bater, o que nos
dava de comer não era suficiente. Partimos para norte, para longe
da guerra, quase chegámos ao mar, mas então os suecos
desembarcaram e escapámo-nos para oeste.
— Tu, o Tyll e o Pirmin?
— Aí já éramos só os dois.
— Fugiram do Pirmin?
— O Tyll matou-o. Posso fazer outra pergunta, senhora?
Por instantes, Liz ficou em silêncio. Como o alemão de Nele era
rústico e bizarro, talvez ela tivesse percebido mal.
— Sim — respondeu —, agora és tu a perguntar.
— Quantas criadas tínheis antes?
— Segundo o meu contrato de matrimónio tinha quarenta e três
pessoas só ao meu serviço, entre elas seis camareiras da nobreza,
cada uma das quais tinha quatro aias.
— E hoje?
— Agora é de novo a minha vez. Porque não é ele teu marido?
Não gostas dele?
— É como um irmão e como os meus pais. É tudo o que tenho. E
eu sou tudo o que ele tem.
— Mas não o queres para marido?
— Não sou eu outra vez, senhora?
— Sim, és tu.
— Vós quiseste-lo para marido, senhora?
— A quem?
— A Sua Majestade. Vossa Majestade quis Sua Majestade para
marido de Vossa Majestade quando Vossa Majestade casou com
ele?
— Isso é diferente, rapariga.
— Porquê?
— Porque foi um assunto de Estado, o meu pai e os dois
ministros dos assuntos exteriores negociaram durante meses. Por
esse motivo eu queria-o, ainda antes de o ter visto.
— E quando Vossa Majestade o viu?
— Foi então que o quis de verdade — respondeu Liz com o
cenho franzido.
Aquela conversa já não lhe estava a agradar.
— Sua Majestade é um cavalheiro muito majestoso.
Liz lançou-lhe um olhar penetrante.
Nele devolveu-lhe o olhar com os olhos muito abertos. Não era
possível saber se estava a divertir-se à sua custa.
— Agora podes ir dançar — disse Liz.
Nele fez uma vénia e começou. Os seus sapatos batiam no
soalho de madeira, os braços oscilavam, os ombros giravam, o
cabelo esvoaçava. Era uma das danças mais difíceis da última
moda, e ela executava-a com tal graciosidade, que Liz lamentou já
não ter músicos.
Fechou os olhos, ouviu o ruído dos sapatos de Nele e pensou no
que iria vender a seguir. Ainda havia alguns quadros, entre eles o
seu retrato, pintado por aquele homem simpático de Delft, e o
daquele sujeito presumido com o grande bigode, que brandia o
pincel com tamanha pompa; o seu retrato parecia-lhe um tanto
tosco, mas provavelmente valia muito. Já se tinha desfeito das joias,
mas a situação não era desesperada, pois ainda havia um diadema
e dois ou três colares. Os sapatos tinham parado de bater e Liz
abriu os olhos. Estava sozinha na sala. Quando tinha Nele
desaparecido? Como se atrevia? Ninguém estava autorizado a sair
da presença de um soberano sem ter recebido ordem para isso.
Olhou pela janela. A relva já estava coberta por uma espessa
camada de neve e os ramos das árvores curvavam-se sob o peso.
Mas não tinha começado a nevar havia pouco? De súbito, já não
sabia há quanto tempo estava ali sentada, naquela cadeira junto da
janela, ao lado da lareira fria, com a manta remendada em cima dos
joelhos. Nele estivera ali havia pouco ou já há algum tempo? E
quantas pessoas tinha Frederico levado para Mainz, quem tinha
ficado com ela?
Tentou contá-las: o cozinheiro fora com ele, o bobo também, a
segunda aia tinha pedido uma semana livre para ir visitar os pais
doentes, o mais provável era não voltar. Talvez ainda houvesse
alguém na cozinha, ou talvez não, como podia saber se nunca tinha
entrado na cozinha? Supunha que também havia um guarda-
noturno, mas como à noite nunca saía do quarto, nunca o vira. E o
copeiro? Era um senhor idoso, bem-parecido e muito distinto, mas
de repente teve a impressão de que há muito tempo desaparecera,
ou tinha ficado em Praga ou morrera algures no caminho que
haviam feito de exílio em exílio — tal como o papá também tinha
morrido, sem que Liz tivesse voltado a vê-lo. E, de repente, quem
reinava em Londres era o irmão dela, a quem mal conhecia e do
qual nada se podia esperar.
Pôs-se de ouvido à escuta. Na divisão contígua havia qualquer
coisa a crepitar e a estralejar, mas quando susteve a respiração, a
fim de ouvir melhor, o ruído cessou e tudo ficou em silêncio.
— Está aí alguém?
Não houve resposta.
De qualquer sítio chegou o som de uma campainha. Sempre que
a tocava, aparecia alguém, era sempre assim, era assim que devia
ser, durante toda a sua vida fora assim. Mas onde estava essa
campainha?
Talvez em breve tudo fosse mudar. Se Gustavo Adolfo e
Frederico, ou seja, o homem com quem estivera quase a casar e o
homem com quem casara, chegassem a acordo, haveria de novo
festas em Praga, e eles poderiam voltar àquele alto castelo, no final
do inverno, quando a guerra recomeçasse. Era assim todos os
anos: quando nevava, havia uma pausa na guerra, e quando as
aves regressavam, as flores nasciam e o gelo derretia nos ribeiros,
a guerra recomeçava.
Estava um homem no quarto.
Aquilo era extraordinário. Por um lado, porque ela não tinha
tocado e, por outro, porque nunca o vira. Por instantes perguntou-se
se haveria motivo para se sentir atemorizada. Os assassinos eram
astutos, sabiam entrar furtivamente em toda a parte, não se estava
seguro em sítio nenhum. Mas aquele homem não parecia perigoso;
fez-lhe uma reverência como mandavam as regras e depois disse
uma coisa demasiado insólita para um assassino.
— O burro desapareceu, senhora.
— Que burro? Mas quem é?
— Quem é o burro?
— Não, quem é. Quem é…
Liz apontou para ele, mas o idiota não percebeu.
— Quem és tu?
O homem falou durante algum tempo. Liz tinha dificuldade em
entendê-lo, pois o seu alemão ainda não era bom, e o do
desconhecido era particularmente rude. Só pouco a pouco
conseguiu compreender que ele procurava explicar-lhe que era
responsável pelas cavalariças e que o bobo tinha levado o burro
imediatamente depois de ter regressado. O burro e Nele, levara-os a
ambos. Tinham partido os três.
— Só um burro? Os outros animais ainda aí estão?
Ele respondeu, ela não percebeu, ele tornou a responder, e Liz
compreendeu que não havia mais animais. Agora as cavalariças
estavam vazias. Era por isso que estava ali, explicou o homem,
precisava de uma nova tarefa.
— Mas como regressou o bobo? E Sua Majestade? Sua
Majestade também regressou?
Só o bobo tinha regressado, explicou o homem, que, por causa
das cavalariças vazias já não era o mestre das cavalariças, e depois
voltara a partir, com a mulher e o burro. E tinha deixado a carta.
— Uma carta? Mostra-ma!
O homem meteu a mão no bolso direito das calças, meteu-a no
esquerdo, coçou a cabeça, voltou a metê-la no direito, e encontrou
um pedaço de papel dobrado. Tinha pena do burro, declarou. Era
um animal invulgarmente esperto, o bobo não tinha o direito de o
levar. Ele tentara impedi-lo, mas o sujeito pregara-lhe uma partida
horrorosa. Fora muito desagradável e não queria falar disso.
Liz desdobrou a folha. Estava amarrotada e tinha manchas, de
modo que as letras estavam esborratadas. Mas reconheceu a
caligrafia mal a viu.
Por instantes, durante os quais uma parte do seu entendimento
já tinha abarcado tudo e a outra parte ainda não, a sua vontade foi
rasgar a carta e simplesmente esquecer que a tinha recebido. Mas,
como é evidente, isso não era possível. Fazendo apelo a todas as
suas forças, cerrou os punhos e leu.
II

Gustavo Adolfo não tinha o direito de o fazer esperar. E não só


por isso não ser delicado. Não, literalmente não podia fazê-lo. Um
indivíduo não era livre de se comportar perante uma pessoa real
como bem entendia, havia regras estritas. A coroa de São
Venceslau era mais antiga do que a da Suécia, e a Boémia era o
reino mais antigo e mais rico, além de que o rei da Boémia gozava
de um posição superior à do rei da Suécia, para já não referir que
um príncipe eleitor tinha estatuto de rei, o que estava demonstrado e
ficara estabelecido num parecer emitido pela corte do Palatinado. É
certo que havia sido objeto de proscrição imperial, mas o rei sueco
declarara guerra ao imperador que impusera essa sanção e a União
Protestante não aceitara essa privação da dignidade eleitoral. Por
esse motivo, o rei da Suécia tinha de o tratar como príncipe eleitor e,
como tal, estavam em pé de igualdade — uma igualdade no estatuto
geral de príncipe e, se se tomasse em conta a antiguidade da
família, a casa palatina era sem dúvida superior à casa de Vasa.
Fosse qual fosse o prisma pelo qual se encarasse a situação, era
intolerável Gustavo Adolfo fazê-lo esperar.
O rei tinha dores de cabeça. Respirava com dificuldade. Não
estava preparado para o cheiro do acampamento. Sabia que não
reinava a limpeza num lugar onde milhares e milhares de soldados
acampavam com o seu equipamento, e recordava-se ainda do
cheiro do seu próprio exército, que comandara às portas de Praga,
antes de todos os homens terem desaparecido, de todo o seu
sangue empapar o solo, de se terem desvanecido como fumo, mas
não se assemelhava àquilo, ele nunca imaginara nada de
semelhante. Já se sentia esse cheiro quando o acampamento ainda
nem estava ao alcance da vista, uma premonição acre e amarga na
paisagem despovoada.
— Meu Deus, que fedor — exclamara o rei.
— Horrível — concordara o bobo. — Horrível, horrível, horrível.
Devias lavar-te, Rei do Inverno.
O cozinheiro e os quatro soldados que os Estados Gerais
holandeses lhe tinham concedido de má vontade como escolta
tinham-se rido estupidamente e, por um momento, o rei detivera-se
a refletir, sem saber se devia tolerar aquela insolência; mas,
finalmente, os bobos serviam para aquilo, as coisas deviam ser
assim quando se era rei. O mundo tratava-o com respeito, mas o
bobo podia dizer-lhe tudo.
— O rei tem de se lavar — prosseguiu o cozinheiro.
— Os pés — acrescentou um soldado.
O rei olhou para o conde Hudenitz, que cavalgava ao seu lado,
mas, como este mantinha o rosto impassível, era possível que não
tivesse ouvido.
— E também as orelhas — disse outro soldado, e riram todos de
novo, exceto o conde e o bobo.
O rei não sabia o que fazer. Devia era dar uma sova naquele
desavergonhado, mas não se sentia bem, há dias que tinha tosse. E
se o outro se virasse contra ele? E, afinal, o soldado dependia dos
Estados Gerais, e não dele. Por outro lado, não podia permitir que
alguém o insultasse, à exceção do bobo da corte.
Foi então que, de uma elevação, avistaram o acampamento; o
rei esquecera-se da sua ira e os soldados não tinham pensado mais
em metê-lo a ridículo. Aos seus pés, estendia-se algo semelhante a
uma cidade branca, a ondular ao vento — uma cidade cujas casas
eram percorridas por um movimento suave, como se deslizassem e
oscilassem de um lado para o outro. Só ao olharem de novo se
aperceberam de que a cidade era composta por tendas.
O cheiro tornou-se mais penetrante à medida que se
aproximavam. Fazia arder os olhos, provocava uma pontada no
peito e, mesmo cobrindo a cara com um pano, passava através do
tecido. Reprimindo os vómitos, o rei franziu os olhos. Tentou
abrandar a respiração, mas em vão, não havia forma de escapar ao
cheiro, ainda ficou mais agoniado. Reparou que com o conde
Hudenitz se passava o mesmo e que também os soldados tapavam
o rosto com as mãos. O cozinheiro estava branco como um cadáver.
Até o bobo tinha perdido a sua habitual expressão descarada.
A terra estava revolvida, os cavalos enterravam-se, avançavam
com dificuldade como que a atravessar um pântano. As imundícies
amontoavam-se à beira da estrada; o rei tentava convencer-se de
que aquilo não era o que parecia, mas sabia que era exatamente
isso: os excrementos de centenas de milhares de pessoas.
Mas não cheirava só a isso. Cheirava a feridas e a pústulas, a
suor e a todas as doenças que a humanidade conhecia. O rei
pestanejou. Teve a sensação de que se podia ver o cheiro, uma
condensação amarela e venenosa no ar.
— Aonde vão?
Uma dezena de couraceiros barrou-lhes o caminho — homens
corpulentos e disciplinados, com capacetes e couraças, como o rei
não via desde o tempo que passara em Praga. Olhou para o conde
Hudenitz. O conde Hudenitz olhou para os soldados. Os soldados
olharam para o rei. Alguém tinha de falar, de o anunciar.
— Sua Majestade, o rei da Boémia e príncipe eleitor do
Palatinado — acabou por dizer o próprio rei. — De visita ao vosso
soberano.
— Onde está Sua Majestade, o rei da Boémia? — perguntou um
dos couraceiros.
Falava dialeto saxão e o rei teve de fazer um esforço para se
recordar de que do lado sueco só poucos suecos combatiam, do
mesmo modo que no exército dinamarquês só havia poucos
dinamarqueses e, em tempos, a lutar por Praga havia apenas umas
centenas de checos.
— Aqui — respondeu o rei.
O couraceiro olhou-o com um ar divertido.
— Sou eu. Sua Majestade sou eu.
Os outros couraceiros também fizeram sorrisos zombeteiros.
— Qual é a graça? — perguntou o rei. — Temos um salvo-
conduto, um convite do rei da Suécia. Conduzam-me imediatamente
à sua presença.
— Muito bem — respondeu o couraceiro.
— Não admito faltas de respeito — disse o rei.
— Tudo em ordem — respondeu o couraceiro. — Vinde comigo,
Majestade.
Em seguida, conduzira-os através dos círculos exteriores do
acampamento até ao interior. Enquanto o fedor, de tal modo
pestilento que se poderia pensar que não era possível tornar-se
mais forte, se tornava mesmo mais intenso, chegaram junto das
carroças cobertas que seguiam a tropa: timões erguiam-se bem alto,
cavalos doentes deitados por terra, crianças a brincar no lixo,
mulheres a amamentarem bebés ou a lavarem roupa em selhas
com água castanha. Eram as vivandeiras, mas eram também as
esposas, com as quais tantos mercenários viajavam. Quem tinha
família levava-a para a guerra, pois com quem havia de ficar?
Foi então que o rei viu qualquer coisa sinistra. Olhou e, a
princípio, não reconheceu o que era, como se a cena resistisse a
permitir que tal acontecesse; mas quando se olhava durante mais
tempo, tudo se organizava e percebia-se o que era. Depressa
desviou a vista. Perto de si, ouviu o conde Hudenitz suspirar.
Eram crianças mortas. Nenhuma delas com mais de cinco anos,
a maioria ainda nem com um ano. Estavam ali amontoadas e
pálidas, louras, ruivas e de cabelo castanho, e quando se olhava
com atenção viam-se muitos pares de olhos abertos, quarenta ou
mais, e o ar escuro de moscas. Quando as deixaram para trás, o rei
sentiu o impulso de se voltar, pois, embora não quisesse ver aquele
espetáculo, queria vê-lo, mas resistia.
Agora estavam no interior do acampamento, junto dos soldados.
As tendas estavam ao lado umas das outras, havia homens
sentados à volta da fogueira, a assar carne, a jogar às cartas, a
dormir no chão, a beber. Tudo teria sido normal, se não se vissem
tantos doentes: doentes caídos na lama, doentes deitados em sacos
de palha, doentes em cima de carroças — não apenas feridos, mas
homens com pústulas, homens com bubões na cara, homens com
olhos lacrimejantes e a babar-se, não eram poucos os que se
encontravam imóveis e curvados, sem que se pudesse dizer se
estavam mortos ou moribundos.
O fedor era quase insuportável. O rei e a sua comitiva tapavam o
nariz; todos procuravam não respirar e, só quando não podia deixar
de ser, inspiravam uma golfada de ar por trás da palma da mão. O
rei ficou de novo com náuseas, fez apelo a todas as suas forças,
mas de nada lhe valeu e vomitou de cima do cavalo. No mesmo
instante, aconteceu o mesmo ao conde Hudenitz, ao cozinheiro e
também a um dos soldados holandeses.
— Já está? — perguntou o couraceiro.
— Diz-se Vossa Majestade — corrigiu o bobo.
— Vossa Majestade — repetiu o couraceiro.
— Já está — disse o bobo.
Quando continuaram a cavalgar, o rei fechou os olhos, o que
ajudou um pouco, pois efetivamente sentia-se menos o cheiro
quando não se via. Mas ainda cheirava bastante. Ouviu alguém
dizer qualquer coisa, depois ouviu gritos, depois ainda gargalhadas
vindas de todos os lados, mas era-lhe indiferente; podiam divertir-se
à custa dele o que quisessem. Só queria não ter de suportar mais
aquele fedor.
E, com os olhos fechados, conduziram-no à tenda real, no centro
do acampamento, vigiado por uma dezena de suecos com uniforme
completo, a guarda de corpo do rei, que estava ali para o defender
de soldados descontentes. A coroa sueca tinha sempre o soldo em
atraso. Mesmo quando venciam todas as batalhas e tomavam tudo
o que o país derrotado oferecia, a guerra não era um negócio
rentável.
— Trago um rei — disse o couraceiro que os tinha conduzido.
Os guardas riram.
O rei ouviu os seus próprios soldados fazerem coro com eles.
— Conde Hudenitz! — disse na voz de comando mais severa de
que foi capaz. — Este comportamento insolente tem de terminar!
— Às vossas ordens, Majestade — murmurou o conde e,
estranhamente, aquilo funcionou, pois aqueles palermas calaram-
se.
O rei desceu do cavalo. Sentindo-se atordoado, inclinou-se para
a frente e tossiu durante algum tempo. Um dos guardas afastou a
lona da tenda e o rei entrou com os seus acompanhantes.
Decorrera meia eternidade. Já estavam à espera há duas horas,
talvez três, sentados em banquinhos baixos sem encosto, e o rei já
não sabia como interpretar o facto de o deixarem ali sentado; mas
era indispensável fechar os olhos, pois se se levantasse e se fosse
embora, ninguém a não ser aquele sueco podia ajudá-lo a regressar
a Praga. Aquilo teria a ver com o facto de o sujeito ter desejado
casar com Liz? Escrevera dezenas de cartas, inúmeras juras de
amor, vezes sem conta enviara o seu retrato, mas ela não o tinha
querido. Tinha de ser esse o motivo. Aquela era a sua mesquinha
vingança.
De qualquer modo, talvez assim apaziguasse a sua necessidade
de desforra. Talvez aquilo fosse um bom sinal. Provavelmente
aquela espera queria dizer que Gustavo Adolfo o iria ajudar.
Esfregou os olhos. Como sempre, quando estava enervado, sentia
as mãos moles e um ardor no estômago que nenhuma tisana de
ervas conseguia aliviar. Em tempos, durante os combates às portas
de Praga, esse ardor tornara-se tão forte que, por causa das cólicas,
se vira obrigado a retirar do campo de batalha; em casa, rodeado
pelos criados e cortesãos, aguardara o resultado, durante a pior
hora da sua vida até esse momento, pois tudo o que viria a suceder
depois, todas as horas e todos os momentos, ainda haviam sido
piores.
Ouviu-se a si próprio suspirar. O vento fazia estalar a lona da
tenda, ouviu vozes de homens no exterior, algures alguém gritava,
um ferido ou um homem a morrer de peste, em todos os
acampamentos havia casos de peste. Ninguém falava disso, pois
ninguém queria pensar no assunto, já que não se podia fazer nada.
— Tyll — disse o rei.
— Majestade? — respondeu o bobo.
— Faz qualquer coisa.
— Está a custar-te esperar?
O rei permaneceu em silêncio.
— E eu devo fazer qualquer coisa porque te aborreces por ele te
fazer esperar tanto tempo, por te tratar como ao seu esfolador, como
ao seu cabeleireiro, como ao criado que lhe limpa os penicos, não
é?
O rei continuou calado.
— Será um prazer. — O bobo fez uma vénia. — Olha-me nos
olhos.
Desconfiado, o rei olhou para o bobo. Os lábios finos, o queixo
afilado, o gibão sarapintado, a capa de pele de vitela; certa vez
perguntara-lhe porque usava aquele traje, se queria disfarçar-se de
animal, ao que o bobo respondera: «Não, não, de pessoa!»
Então fez o que o bobo lhe dissera e olhou-o nos olhos.
Pestanejou. Era desagradável, pois não estava habituado a suportar
o olhar de outrem. Mas tudo era preferível a ter de dizer que o sueco
o fazia esperar, além de que fora ele a pedir ao bobo que o
entretivesse e agora até sentia uma ponta de curiosidade pelo que
lhe ia na cabeça. Reprimiu o desejo de fechar os olhos e olhou para
o bobo.
Recordou-se da tela em branco. Estava pendurada na sala do
trono e, a princípio, divertira-o muito. «Diz às pessoas que os
estúpidos não veem o quadro, diz-lhes que só o veem os bem-
nascidos, diz isso e irás assistir a um prodígio!» Foi de morrer a rir
ver como os visitantes dissimulavam e olhavam o quadro em branco
com ares entendidos e acenos de cabeça. Como é natural, não
afirmavam ver o quadro, ninguém era assim tão idiota, e para quase
todos era evidente que o que estava pendurado não era mais do
que uma tela em branco. Porém, em primeiro lugar, não tinham a
certeza absoluta de não se encontrarem em presença de qualquer
tipo de magia e, em segundo lugar, não sabiam se Liz e o marido
acreditariam naquilo — e ser suspeito de ser estúpido ou de baixo
estrato era tão mau como sê-lo de facto.
A própria Liz não tinha dito nada. Ela própria, a sua esposa
maravilhosa, bela, mas, em última análise, nem sempre tão
inteligente quanto isso, olhara para o quadro e ficara em silêncio.
Nem sequer ela estava segura, o que era natural, dado ser apenas
uma mulher.
Ele sentira vontade de falar com ela. Liz, tinha querido dizer-lhe,
deixa-te de disparates, não finjas comigo! Mas, de súbito, não se
atrevera. Porque se ela estava convencida, por pouco que fosse, de
que a tela estava enfeitiçada, o que iria pensar dele?
E se trocasse impressões sobre o assunto com outras pessoas?
Se dissesse: Sua Majestade, o meu esposo, o rei, não viu nenhuma
imagem na tela, em que situação ficaria ele? O seu estatuto era
frágil, era um rei sem reino, um desterrado, totalmente dependente
do que pensavam dele. O que iria fazer quando constasse que na
sua sala do trono havia um quadro mágico que só os bem-nascidos
conseguiam ver, mas ele não? Claro que não havia nenhuma
imagem, fora uma brincadeira do bobo, mas agora a tela pendurada
começara a exercer um poder próprio, e, assustado, o rei reparara
que não conseguia tirá-la da parede nem dizer fosse o que fosse a
seu respeito, nem afirmar que via uma pintura onde esta não existia,
pois não havia um caminho mais seguro para dar a entender que
era um imbecil, nem podia dizer que a tela estava em branco, pois
se os outros acreditavam que o que ali estava pendurado era um
quadro mágico, com o poder de desmascarar os de baixo estrato e
os estúpidos, isso bastava para o meter a ridículo. Nem sequer
podia falar disso à sua pobre mulher, adorável e limitada. Estava
num beco sem saída. E tudo isso era obra do bobo.
Há quanto tempo estava o bobo a olhá-lo? Perguntou-se o que
teria ele em mente. Os olhos de Tyll eram muito azuis. Eram muito
claros, quase aguados, pareciam fitá-lo com uma luz difusa e, no
meio da menina do olho, havia um orifício, por trás do qual estava…
sim, o quê? Por trás estava Tyll. Por trás estava a alma do bobo,
aquilo que ele era.
O rei sentiu de novo vontade de fechar os olhos, mas aguentou
aquele olhar com firmeza. Compreendeu que o que passava para
um lado, também acontecia do outro: tal como ele via nas
profundezas do íntimo do bobo, este via nele.
De uma forma totalmente incongruente, recordou-se do momento
em que pela primeira vez havia olhado a esposa nos olhos, na noite
de núpcias. Como ela se mostrara tímida e receosa. Mantivera as
mãos diante do corpete que ele queria desapertar, mas depois
erguera os olhos e ele vira-lhe o rosto à luz das velas, de perto pela
primeira vez, e nessa altura tivera um vislumbre do que era de facto
ser uno com outra pessoa; porém, quando abrira os braços a fim de
a puxar para si, dera um encontrão no frasco com água de rosas
que estava em cima da mesa de cabeceira, e o tilintar dos
estilhaços quebrara o encanto: era como se ainda visse diante de si
o charco no soalho de ébano, sobre o qual flutuavam as pétalas de
rosa, como barquinhos. Eram cinco. Ainda se recordava
perfeitamente.
Então ela começara a chorar. Era evidente que ninguém lhe
explicara o que se tinha de passar numa noite de núpcias; então o
marido afastara-se dela, pois, embora um rei tivesse de ser forte, ele
era acima de tudo de temperamento doce, e haviam dormido um ao
lado do outro como irmãos.
Em outro quarto, na sua casa em Heidelberga, tinham discutido
mais tarde a grande decisão. Noite após noite, repetidas vezes, Liz
hesitara e dissuadira-o, como fazem as mulheres desde tempos
imemoriais, e vezes sem conta ele voltara a explicar-lhe que não se
recebe uma oferta semelhante se não for por vontade de Deus e
que temos de nos sujeitar ao destino. Mas como enfrentar a ira do
imperador?, exclamara ela inúmeras vezes, ninguém se insurgia
contra o imperador; e ele explicara-lhe pacientemente o que os seus
juristas lhe haviam exposto de forma tão convincente: que a
aceitação da coroa da Boémia não constituía uma quebra da paz do
império porque a Boémia não pertencia ao império.
E assim, finalmente, convencera-a, tal como havia convencido os
demais. Tinha-lhe explicado que o trono da Boémia cabia a quem os
nobres da Boémia quisessem para rei e, por esse motivo, tinham
trocado Heidelberga por Praga. E ele nunca esqueceria o dia da
coroação, a catedral imponente, o coro gigantesco, e as palavras
que, até ao momento presente, ressoavam no seu íntimo: agora és
rei, Fritz. És um dos grandes.
— Não feches os olhos — disse o bobo.
— Não estou a fechá-los — respondeu o rei.
— Fica calado — insistiu o bobo.
E o rei perguntou-se se devia não ligar, pois, apesar da liberdade
de que gozavam os bobos, aquilo ia demasiado longe.
— E o burro? — perguntou, para irritar Tyll. — Já aprendeu
alguma coisa?
— Não tarda a falar como um pregador — respondeu o bobo.
— E o que diz ele? — insistiu o rei. — O que é que ele já sabe?
Dois meses atrás, na presença do bobo, falara das maravilhosas
aves do Oriente, que sabiam construir frases inteiras, de modo que
era como se se ouvisse uma pessoa falar. Lera isso no livro de
Athanasius Kircher sobre o mundo animal criado pelo Senhor e,
desde então, a ideia das aves falantes não lhe saía do pensamento.
Mas o bobo respondera que não custava nada ensinar uma ave
a falar; bastava um pouco de habilidade para pôr um animal a
conversar. Os animais são mais inteligentes do que as pessoas, e é
por isso que se mantinham calados e tinham o cuidado de não se
meterem em complicações por qualquer disparate. Sempre que se
apresentavam bons motivos a uma besta de carga, esta quebrava o
silêncio, o que ele poderia demonstrar a qualquer momento em
troca de boa comida.
— Boa comida?
Não para si próprio, declarara o bobo, mas para o animal.
Procedia-se da seguinte maneira: metia-se a comida dentro de um
livro, que se apresentava ao animal repetidas vezes, com paciência
e firmeza. A gula fazia-o virar as folhas e assim ia captando cada
vez mais a língua humana, até que, ao fim de dois meses, se
obtinham resultados.
— Mas então que animal?
— Pode fazer-se com qualquer. A única condição é não ser
demasiado pequeno, pois, nesse caso, não se lhe ouve a voz. Com
as minhocas não se vai longe. Os insetos também não são bons,
afastam-se sempre a voar antes de terminarem uma frase. Os gatos
têm espírito de contradição e as aves coloridas do Oriente, que o
sábio jesuíta descreve, não existem aqui. Restam os cães, os
cavalos e os burros.
— Já não temos cavalos e o cão fugiu.
— Não se perdeu nada. Mas há o burro no estábulo. Preciso de
um ano para o pôr a…
— Dois meses!
— Não é muito.
Não sem malícia, o rei recordou ao bobo que fora ele próprio a
falar de dois meses. Seria apenas esse o tempo de que iria dispor, e
se ao fim de dois meses não se vissem resultados, podia ir-se
preparando para uma sova de proporções bíblicas.
— Mas preciso de comida para meter no livro — respondera o
bobo cabisbaixo. — E que não seja pouca.
Demais sabia o rei que a comida era sempre escassa. Mas
contemplara a lamentável tela em branco, pendurada na parede e,
com uma pérfida alegria antecipada, dissera ao seu bobo, que
desde há algum tempo lhe ocupava mais espaço no pensamento do
que era razoável, que, desde que o burro falasse daí a dois meses,
podia contar com tanta comida quanta precisasse para levar a cabo
o seu intento.
Com efeito, o bobo parecia manter o prometido. Todos os dias
desaparecia no estábulo levando consigo aveia, manteiga e uma
tigela de papas adoçadas com mel, assim como um livro. Certa vez,
o rei, dominado pela curiosidade e contra todas as conveniências,
fora ver o que se passava e dera com o bobo sentado o chão, com o
livro aberto sobre os joelhos, enquanto o burro olhava para nada,
com ar bonacheirão.
As coisas estavam a avançar muito bem, apressara-se o bobo a
afirmar, já tinham passado o I e o A e, daí a dois dias, contava
chegar ao som seguinte. Depois soltara umas gargalhadas que mais
pareciam um balido, e o rei, envergonhado pelo seu interesse em
todo aquele disparate, retirara-se sem uma palavra, para se ir
dedicar aos assuntos de Estado, o que, na triste realidade,
significava redigir uma carta a implorar apoio militar ao sogro em
Inglaterra e outra a pedir dinheiro aos Estados Gerais holandeses,
como sempre sem esperança.
— E então, o que diz ele? — repetiu o rei, olhando o bobo nos
olhos — O que é que já sabe dizer?
— O burro fala bem, mas fala sem tino. Sabe poucas coisas, viu
pouco do mundo, precisa de mais tempo.
— Nem mais um dia do que o combinado!
O bobo soltou uma risadinha.
— Nos olhos, rei, olha-me nos olhos e diz a todos o que vês!
O rei pigarreou, preparando-se para responder, mas custava-lhe
a falar. Estava escuro, as cores e as formas confundiam-se, viu-se
de novo perante a família inglesa: o pálido Jaime, o seu temível
sogro, Ana, a sogra dinamarquesa, rígida de arrogância, e a noiva,
para quem mal se atrevia a olhar. Sentiu então a cabeça à roda com
mais intensidade, o que cessou de novo, e deixou de saber onde
estava.
Teve um ataque de tosse, e quando recuperou o fôlego, verificou
que estava deitado no chão e que havia homens à sua volta. Só
lhes via os vultos indistintos. Acima deles havia qualquer coisa
branca, era a lona da tenda, sustentada por postes, a ondular
ligeiramente ao vento. Reconheceu o conde Hudenitz, com o
chapéu de penas apertado contra o peito e uma expressão
preocupada no rosto enrugado, ao seu lado o bobo, ao lado deste o
cozinheiro, ao lado deste um dos soldados, e ao lado deste um
sujeito com um uniforme sueco e um sorriso irónico. Teria
desmaiado?
O rei estendeu a mão e o conde Hudenitz agarrou-a e ajudou-o a
pôr-se de pé. Cambaleou, as pernas cederam de novo, o cozinheiro
segurou-o do outro lado, até ficar de pé. Sim, tinha desmaiado. No
momento menos oportuno, na tenda de Gustavo Adolfo, a quem ele,
com vigor e astúcia, tinha de convencer de que os destinos de
ambos estavam ligados, perdera os sentidos como uma mulher com
o espartilho apertado.
— Meus senhores — ouviu-se dizer —, aplaudi o bobo!
Reparou que tinha o peitilho da camisa manchado, e também a
gola, a jaqueta e a condecoração que tinha ao peito. Como se tinha
sujado?
— Uma salva de palmas para Tyll Ulenspiegel! — exclamou. —
Que truque magnífico! Que coisa fantástica. — Agarrou o bobo pela
orelha, que lhe pareceu mole, espetada e desagradável, de modo
que a soltou. — Mas tem cuidado, senão entregamos-te aos
jesuítas, isso é quase bruxaria, que belo truque!
O bobo ficou em silêncio, com um sorriso de viés. Como sempre,
o rei não soube interpretar a sua expressão.
— Este meu bobo é um mágico. Ide buscar água, limpai-me a
roupa, não fiqueis aí pasmados — disse o rei, com um riso
preocupado.
O conde Hudenitz começou a limpar-lhe a camisa com um pano;
enquanto limpava e esfregava, o seu rosto enrugado parecia pairar,
demasiado próximo do rei.
— É preciso ter cuidado com esse sujeito — exclamou o rei. —
Limpai mais depressa, Hudenitz. É preciso ter cautela! Mal me olha
nos olhos, caio redondo. Que mágico, que truque!
— Caíste sozinho — contrapôs o bobo.
— Tens de me ensinar esse truque! — exclamou o rei. —
Quando o burro aprender a falar, também quero aprender esse
truque.
— Estás a ensinar um burro a falar? — perguntou um dos
holandeses.
— Se alguém como tu sabe falar e se este rei tonto fala, porque
não pode um burro falar?
O rei teria dado uma bofetada ao bobo se não se sentisse tão
fraco, além de que, ao ouvir as gargalhadas dos soldados, ficou de
novo atordoado e o cozinheiro teve de o amparar.
E precisamente nesse momento tão inoportuno alguém puxou
para trás a lona que separava o espaço contíguo, dando passagem
a um homem com o traje vermelho do mordomo, que examinou o rei
com uma expressão de curiosidade condescendente.
— Sua Majestade aguarda-vos.
— Finalmente — disse o rei.
— Como? — perguntou o mestre de cerimónias. — Que
dissestes?
— Já não era sem tempo — disse o rei.
— Não se fala assim na antecâmara de Sua Majestade.
— Que esta criatura não me dirija a palavra!
O rei afastou-o com um encontrão e, em passo firme, entrou no
espaço contíguo.
Viu uma mesa de jogo, viu uma cama por fazer, viu ossos roídos
e maçãs meio comidas no chão. Viu um homem baixo e anafado,
com uma cabeça redonda, um nariz redondo, uma barriga redonda,
uma barba eriçada, cabelo ralo e olhos pequeninos e matreiros. Já a
aproximar-se do rei, agarrou-o por um braço com uma das mãos, ao
mesmo tempo que, com a outra, lhe batia com tanta força no peito
que o teria derrubado, se o outro não o tivesse puxado para si e
abraçado, dizendo:
— Querido amigo. Meu velho e querido amigo!
— Irmão — arquejou o rei.
Gustavo Adolfo exalava um cheiro intenso e tinha uma força
surpreendente. Empurrou o rei e examinou-o.
— Regozijo-me por finalmente nos conhecermos, querido irmão
— disse o rei.
Viu que aquele tratamento não agradava a Gustavo Adolfo, o
que confirmou o seu temor: o sueco não o encarava como um igual.
— Ao fim destes anos todos — repetiu o rei com toda a
dignidade de que foi capaz — depois de todas as cartas, de todas
as embaixadas, finalmente eis-nos cara a cara.
— É igualmente um prazer para mim — respondeu Gustavo
Adolfo. — Como estás? Como tens passado? Como vais de
dinheiro? Tens o suficiente para comer?
O rei demorou um momento a perceber que o outro o tratava por
tu. Isso estaria a acontecer na realidade?
Era provável que tal se devesse ao mau alemão daquele
homem, ou talvez fosse uma excentricidade sueca.
— A preocupação com a cristandade é um terrível peso para
mim — disse o rei. — Como também… — Engasgou-se. — Como
também deve ser para ti.
— Sim, é verdade — confirmou Gustavo Adolfo. — Queres beber
alguma coisa?
O rei refletiu. Só de pensar em vinho sentia náuseas, mas
recusar não devia ser inteligente.
— Muito bem! — exclamou Gustavo Adolfo fechando o punho, e,
embora o rei acalentasse a esperança de que, dessa vez, não lhe
fosse dar com ele, Gustavo Adolfo atingiu-o.
O rei ficou com falta de ar. Gustavo Adolfo estendeu-lhe um
copo. Pegou-lhe e bebeu. O vinho tinha um sabor repugnante.
— É um vinho horroroso — disse Gustavo Adolfo. — Recebemo-
lo de uma adega qualquer, não nos podemos pôr com esquisitices, a
guerra é assim.
— Creio que está estragado — disse o rei.
— Antes estragado do que nenhum — respondeu Gustavo
Adolfo. — O que desejas, meu amigo, porque estás aqui?
O rei olhou aquele rosto redondo, manhoso e barbudo. Então era
aquele o salvador da cristandade protestante, a grande esperança.
Como ele próprio fora em tempos. Como acontecera ter-se agora
transformado naquele monte de gordura com restos de comida na
barba?
— Vencemos — disse Gustavo Adolfo. — É por isso que estás
aqui? Porque os vencemos em todos os confrontos? Vencemo-los
no Norte, e depois quando avançámos, e depois, ainda mais a sul,
na Baviera. Saímos sempre vencedores, porque eles são fracos e
desorganizados. Porque não sabem como treinar os soldados. Mas
eu sei. Como é isso com o teu exército, ou antes, como era, quando
o tinhas, os teus soldados gostavam de ti, lá em Praga, antes de o
imperador os ter morto? Ainda ontem arranquei as orelhas a um que
queria desertar com o cofre.
O rei riu, pouco seguro.
— Fiz isso, a sério, não é difícil. Agarra-se e puxa-se, e a notícia
espalha-se. Os soldados acham divertido, porque se passou com
outro, mas ao mesmo tempo têm o cuidado de não fazer nada
semelhante. Quase não tenho suecos, na maioria são alemães, um
ou outro finlandês, e também escoceses, irlandeses e sei lá que
mais. Todos me adoram, foi por isso que vencemos. Queres
marchar ao meu lado? Foi por isso que vieste?
O rei pigarreou.
— Praga.
— O que há com Praga? Mas bebe lá um trago!
O rei olhou para o copo enojado.
— Preciso do teu apoio, irmão. Dá-me tropas e Praga cairá.
— Não preciso de Praga.
— A antiga capital imperial, recuperada para a verdadeira fé.
Seria um grande símbolo!
— Não preciso de símbolos. Nós, protestantes, sempre tivemos
bons símbolos, boas palavras, bons livros e bons cânticos, mas
fomos derrotados no campo de batalha, e tudo isto não nos serviu
de nada. Preciso de vitórias. Tenho de vencer Wallenstein. Já o
encontraste, conhece-lo?
O rei abanou a cabeça.
— Preciso de informações. Estou sempre a pensar nele, às
vezes sonho com ele. — Gustavo Adolfo dirigiu-se ao outro lado da
tenda, curvou-se, remexeu num baú e ergueu uma figura de cera. —
Ele é assim! Esse Friedland, aqui o tens, sempre que olho para ele
penso: hei de vencer-te, tu és astuto, mas eu sou-o ainda mais, tu
és forte, mas eu sou mais forte do que tu, as tuas tropas amam-te,
mas as minhas ainda me amam mais, tu tens o diabo do teu lado,
mas eu tenho Deus. Todos os dias lhe digo isto. E às vezes ele
responde.
— Responde?
— Tem poderes demoníacos. Claro que responde. — Com uma
expressão de súbito mal-humorada Gustavo Adolfo apontou para o
rosto esbranquiçado da figura de cera. — Então a sua boca mexe-
se e ele zomba de mim. Fala em voz baixa, porque é pequeno, mas
eu percebo tudo. Estúpido sueco, chama-me ele, sueco imbecil,
besta gótica, e diz que eu não sei ler. Mas eu sei ler! Queres que te
mostre? Leio em três línguas. Vou derrotar esse animal. Arranco-lhe
as orelhas. Corto-lhe os dedos. Deito-lhe fogo.
— Essa guerra começou em Praga — disse o rei. — Só quando
Praga…
— Não vamos fazer nada disso — disse Gustavo Adolfo. — Está
decidido, não se fala mais no assunto. — Sentou-se numa cadeira,
bebeu do seu copo e olhou para o rei com olhos húmidos e
cintilantes. — Mas o Palatinado.
— O que há com o Palatinado?
— Tens de o recuperar.
O rei demorou um instante a compreender o que ouvira.
— Querido irmão, ajudar-me-eis a recuperar o território que
herdei?
— As tropas espanholas no Palatinado não pode ser, têm de ser
expulsas de lá. Ou o Wallenstein as manda retirar ou eu dou cabo
delas. Não devem ter ilusões, talvez tenham os seus invencíveis
quadrados de infantaria, mas sabes que mais? Os invencíveis
quadrados não são tão invencíveis quanto isso, e eu hei de vencê-
los.
— Querido irmão! — O rei pegou na mão de Gustavo Adolfo.
Este levantou-se e apertou-lhe os dedos com tanta força, que o
rei teve de reprimir um grito de dor. Depois colocou-lhe a mão no
ombro e puxou-o para si. Abraçaram-se. E assim ficaram, durante
tanto tempo que a emoção do rei se desvaneceu. Por fim, Gustavo
Adolfo soltou-o e começou a percorrer a tenda de um lado para o
outro.
— Quando deixar de nevar, avançamos pela Baviera e, ao
mesmo tempo, a partir do Norte, num envolvimento duplo,
comprimindo-os. A seguir, prosseguimos com a ofensiva para
Heidelberga e expulsamo-los. Se tudo correr bem, nem precisamos
de uma grande batalha para conquistar o Palatinado Eleitor, e então
dou-to como feudo, e o imperador há de arrepender-se.
— Como feudo?
— Sim, como havia de ser?
— Quereis dar-me o Palatinado como feudo? O meu próprio
território?
— Quero.
— Não pode ser.
— Claro que pode.
— O Palatinado não vos pertence.
— Se o conquistar, pertence-me.
— Pensei que tínheis vindo a este império em nome de Deus e
da causa da fé!
— Que disparate!, claro que vim por isso! O que te passou pela
cabeça, meu grande rato, minha pedrinha, minha truta! Mas também
quero ficar com alguma coisa. Se me limitasse a dar-te o Palatinado,
o que ganhava com isso?
— Quereis dinheiro?
— Também quero dinheiro, mas não quero apenas dinheiro.
— Conseguirei o apoio da Inglaterra.
— Por causa da tua mulher? Até agora não te serviu de nada.
Deixaram-te a ver navios. Tomas-me por parvo? Pareço-te alguém
que pensa que os ingleses vêm a correr só porque tu os chamas?
— Se eu recuperar o Palatinado Eleitor, ficarei de novo à frente
da fação protestante no império, e eles virão.
— Tu nunca mais estarás à frente de nada.
— Como podeis…
— Calma, pobre homem, ouve-me. Apostaste forte, isso é bom,
é uma coisa de que gosto. Depois perdeste e desencadeaste toda
esta guerra absurda. Muito bem. Alguns apostam forte e ganham.
Eu, por exemplo. Um país pequeno, um exército pequeno, no
império a causa protestante que parece perdida, e quem me
aconselhou a apostar tudo numa carta, a reunir o exército e a
marchar para a Alemanha? Todos mo desaconselharam. Não faças
isso, tira daí o sentido, não podes ganhar. Mas fi-lo, venci e em
breve estarei em Viena a arrancar as orelhas a esse Wallenstein, e
o imperador ajoelhar-se-á aos meus pés, e perguntar-lhe-ei: ainda
queres ser imperador? Então faz o que Gustavo Adolfo te diz! Mas o
desenlace podia ter sido outro. Podia ter morrido. Podia estar num
barco, lavado em lágrimas, a remar de regresso ao Báltico. Não
basta ser-se um homem íntegro, forte, inteligente e destemido, pois
mesmo assim pode-se ser derrotado. E alguém como tu pode sair
vencedor. Há de tudo. Eu arrisquei e ganhei, tu arriscaste e
perdeste, mas o que podias ter feito? Sim, podias ter-te enforcado,
mas isso não é para todos, e no fim acaba por ser um pecado. Por
isso estás aqui. Porque tens de fazer qualquer coisa. Além disso
escreves cartas, a pedir e a fazer exigências, vais a audiências,
falas e negoceias, como se valesses alguma coisa, mas não vales
nada! A Inglaterra não te envia tropas. A União Protestante não vai
em teu auxílio. Os teus irmãos do império abandonaram-te. Só há
uma pessoa que te poderia restituir o Palatinado, e sou eu. E dou-to
como feudo. Se te ajoelhares perante mim e me jurares vassalagem
como teu senhor. Então, o que achas, Frederico? O que te parece?
Gustavo Adolfo cruzou os braços e olhou para o rei. A sua barba
eriçada estremeceu. O seu peito elevava-se e baixava, o rei ouvia-
lhe nitidamente a respiração.
— Preciso de tempo para refletir — conseguiu o rei dizer a custo.
Gustavo Adolfo riu.
— Não estais à espera…
O rei pigarreou, sem saber como continuar a frase, coçou a
testa, jurou a si mesmo não voltar a perder o conhecimento, num
momento como aquele isso estava fora de questão, e recomeçou:
— Não estais à espera de que tome essa decisão, sem antes…
— É precisamente disso que estou à espera. Quando convoquei
os meus generais para participarem na guerra, correndo todos os
riscos, achas que passei uma eternidade às voltas de um lado para
o outro? Achas que me aconselhei com a minha mulher? Achas que
antes me pus a rezar? Vou decidir isto já, disse, e então decidi, e
logo a seguir deixei de saber os motivos da minha decisão, mas de
qualquer modo era indiferente, porque já estava decidido! E os
generais já estavam à minha frente a dar vivas, e eu disse: sou o
Leão da Meia-Noite! Passou-me isso pela cabeça. — Deu umas
pancadinhas na testa. — Tão simples quanto isso. Sem pensar, e de
repente ocorreu-me isso. O Leão da Meia-Noite sou eu! E ao Leão
diz-se que sim, ou diz-se que não, mas não me faças perder tempo.
— A minha família possui a soberania sobre o Palatinado Eleitor,
bem como a imediatidade imperial desde…
— E julgas que não podes ser o primeiro da tua família a receber
o Palatinado da Suécia como feudo. Mas verás que não sou mau
tipo. Pagar-me-ás um tributo moderado, e quando não te apetecer ir
ao meu aniversário, na Suécia, envias o teu chanceler. Não te farei
nada. Dá-me um aperto de mão, aceita a minha proposta, não sejas
um sapato!
— Um sapato?
O rei não tinha a certeza de ter ouvido bem. Onde tinha aquele
homem aprendido alemão?
Gustavo Adolfo tinha o braço estendido, e a sua mão, pequena e
carnuda, oscilava diante do seu peito. Bastava-lhe apertá-la para ver
de novo o castelo de Heidelberga, as colinas e o rio, os finos raios
de sol filtrados pela hera a incidirem na colunata, os salões nos
quais tinha crescido. E Liz poderia voltar a ter a vida que lhe
competia, com aias suficientes, linhos e sedas macios, velas de cera
que não tremeluziam e gente dedicada, que sabia como falar com
uma soberana. Ele poderia regressar. E tudo seria como antes.
— Não — disse o rei.
Gustavo Adolfo pôs a cabeça de lado, como se tivesse ouvido
mal.
— Sou o rei da Boémia. Sou o príncipe eleitor do Palatinado.
Não aceito que ninguém me proponha o que me pertence como
feudo, a minha família é mais antiga do que a vossa, e vós, Gustavo
Adolfo, da casa real de Vasa, não tendes o direito de falar comigo
desta forma nem de me fazer uma oferta tão infame.
— Santo Deus! — exclamou Gustavo Adolfo.
O rei deu meia-volta.
— Espera!
Já a caminho da saída, o rei imobilizou-se. Embora sabendo que,
desse modo, anulava todo o efeito produzido, não conseguiu deixar
de o fazer. Uma centelha de esperança brilhou no seu íntimo sem
que nada a pudesse extinguir: era possível que a sua firmeza de
caráter tivesse influenciado de tal modo aquele homem que agora
ele lhe quisesse fazer uma nova proposta. Talvez lhe dissesse: és
um homem íntegro, enganei-me a teu respeito! Mas não, pensou o
rei, que disparate. No entanto, deteve-se, virou-se e odiou-se por
fazer isso.
— És um homem íntegro — disse Gustavo Adolfo.
O rei engoliu em seco.
— Enganei-me a teu respeito — disse Gustavo Adolfo.
O rei reprimiu um ataque de tosse. Doía-lhe o peito. Sentia-se
tonto.
— Vai com Deus — disse Gustavo Adolfo.
— O quê?
Gustavo Adolfo deu-lhe um soco amigável no braço.
— Vejo que és um homem a valer. Podes estar orgulhoso. E
agora desanda, tenho de vencer uma guerra.
— Nada mais? — perguntou o rei com a voz embargada. —
Essa foi a última palavra, isso é tudo, vai com Deus?
— Não preciso de ti. Vou conseguir o Palatinado de uma maneira
ou de outra, e provavelmente a Inglaterra vai apoiar-me mais
depressa se não estiveres ao meu lado, tu só lhes recordas a antiga
ignomínia e a derrota na batalha de Praga. É melhor para mim se
não fizermos este acordo, e é também melhor para ti, manténs a tua
dignidade. Vem!
Colocou o braço no ombro do rei, conduziu-o à saída e puxou
para o lado a lona da tenda.
Quando entraram na sala de espera, todos se levantaram. O
conde Hudenitz tirou o chapéu e fez uma vénia pronunciada. Os
soldados puseram-se em sentido.
— Quem é este? — perguntou Gustavo Adolfo.
O rei demorou um momento a compreender que ele se referia ao
bobo.
— Quem é este? — repetiu o bobo.
— Gosto de ti — disse Gustavo Adolfo.
— Eu não gosto de ti — ripostou o bobo.
— Ele é divertido, preciso de um assim — disse Gustavo Adolfo.
— Eu também te acho divertido — disse o bobo.
— Quanto queres por ele? — perguntou Gustavo Adolfo ao rei.
— Não te recomendo isso — disse o bobo. — Trago má sorte.
— A sério?
— Vê com quem vim. Olha o estado em que ele está.
Gustavo Adolfo olhou para o rei durante algum tempo. Este
devolveu-lhe o olhar e teve um ataque de tosse, que estivera a
reprimir durante todo o tempo.
— Vão — disse Gustavo Adolfo. — Vão depressa, despachem-
se, apressem-se. Não vos quero mais tempo no acampamento.
Retrocedeu, como se de súbito estivesse com medo. A lona
estalou ao fechar-se, e ele desapareceu.
O rei enxugou as lágrimas, provocadas pela tosse. Doía-lhe a
garganta. Tirou o chapéu, coçou a cabeça e procurou perceber o
que tinha acontecido.
Eis o que acontecera: estava tudo acabado. Nunca mais voltaria
a ver a sua pátria. E também nunca mais iria a Praga. Morreria no
exílio.
— Vamos — disse.
— Qual foi o resultado? — perguntou o conde Hudenitz. — No
que deu o encontro?
— Deixemos isso para mais tarde — disse o rei.
Apesar de tudo, quando por fim deixaram para trás o
acampamento, sentia-se aliviado. O ar tornou-se mais puro. O céu,
alto e azul, estendia-se sobre as suas cabeças, ao longe ondulavam
colinas. O conde Hudenitz perguntou-lhe mais duas vezes qual o
resultado da conversa e se podiam contar com um regresso a
Praga, mas, não obtendo resposta, desistiu.
O rei tossia. Perguntava-se se aquilo fora real: aquele homem
anafado, com mãos carnudas, as coisas horrorosas que dissera, a
oferta que havia desejado aceitar com todas as suas forças, mas
que tivera de recusar. Porquê?, perguntou-se de súbito, porque
tinha recusado? Já não sabia os motivos, ainda há pouco tão
prementes, mas que se haviam desvanecido em neblina. E podia
ver essa neblina azulada, que enchia o ar e tornava as colinas
indistintas.
Ouvia o bobo contar a sua vida e de repente teve a sensação de
que ele falava na sua mente, como se não cavalgasse ao seu lado,
mas fosse uma voz febril no interior da sua cabeça, uma parte de si
mesmo, que nunca quisera conhecer. Fechou os olhos.
O bobo contava como ele e a irmã tinham fugido de casa: o pai
ardera na fogueira condenado por feitiçaria, a mãe fugira para o
Oriente com um cavaleiro, talvez para Jerusalém ou para a
longínqua Pérsia, quem podia saber?
— Mas ela não é tua irmã — ouviu o cozinheiro dizer.
Ele e a irmã, dizia o bobo, a princípio tinham viajado com um
menestrel de terceira ordem, que fora bondoso com eles, e depois
com um malabarista, com o qual tinha aprendido tudo que sabia, um
bufão de categoria, um ótimo prestidigitador, um ator, que não tinha
de se esconder de ninguém, mas que, acima de tudo, era uma
pessoa de má índole, tão ruim que Nele o tomava pelo demónio.
Depois tinham percebido que ele era um pouco demónio e um
pouco animal, mas também um ser inofensivo, e, mal perceberam
isso, não precisaram mais de Pirmin, assim se chamava o
malabarista, e quando ele voltara a tratá-los mal, Nele cozinhara-lhe
um prato de cogumelos que ele tão depressa não iria esquecer, ou
talvez se tivesse esquecido imediatamente, pois desse modo
esticou o pernil: duas mancheias de cantarelos, um mata-bois, um
pedaço de canafrecha, e não foi preciso mais. A arte consistia em
misturar a canafrecha e o mata-bois, pois ambos eram mortais, mas
separados tinham um sabor amargo que se notava. Cozinhados
juntos, o seu aroma tornava-se doce e delicado, e o seu sabor não
despertava qualquer suspeita.
— Quer dizer que vocês o mataram? — perguntou um dos
soldados.
Ele não, respondeu o bobo. Tinha sido a irmã a matá-lo, ele não
fazia mal a uma mosca. E desatou a rir. Não tinham tido escolha. O
homem era tão ruim, que nem morto os tinha largado. Durante muito
tempo o espírito dele havia-os perseguido, à noite na floresta
ouviam-no rir, aparecia-lhes em sonhos e oferecia-lhes um ou outro
negócio.
— Que tipo de negócio?
O bobo não respondeu e, quando o rei abriu os olhos, reparou
que à sua volta caíam flocos de neve. Respirou fundo. A recordação
do cheiro pestilento do acampamento já começava a dissipar-se.
Meditativo, passou a língua pelos lábios, pensou em Gustavo Adolfo
e recomeçou a tossir. Estariam a cavalgar para trás? Isso já não lhe
parecia extraordinário, só não queria voltar ao acampamento
malcheiroso, ver-se de novo entre aqueles soldados e na presença
do rei da Suécia, que só queria escarnecer dele. Os campos em
redor já estavam cobertos por uma fina camada de branco, e sobre
os cepos das árvores — pois o exército ao avançar tinha abatido
todas as árvores — já se formavam montículos de neve. Inclinou a
cabeça para trás. O céu cintilava de flocos. Pensou na sua
coroação, nos quinhentos cantores e no coro a oito vozes, pensou
em Liz com o manto recamado de joias.
Tinham decorrido horas, talvez dias, quando recuperou a noção
do tempo; de qualquer modo, a paisagem modificara-se várias
vezes, agora havia tanta neve que os cavalos mal podiam avançar:
com cuidado, levantavam os cascos e, cautelosamente, voltavam a
poisá-los na alta camada de neve. Um vento frio fustigava-lhe o
rosto. Quando, a tossir, olhou em redor, reparou que os soldados
holandeses já não os acompanhavam. Só o conde Hudenitz, o
cozinheiro e o bobo cavalgavam ao seu lado.
— Onde estão os soldados? — perguntou, mas os outros não lhe
deram atenção.
Repetiu a pergunta mais alto e o conde Hudenitz olhou-o como
quem não compreende, semicerrou os olhos, e voltou a fixá-los à
sua frente, contra o vento.
Fugiram, pensou o rei.
— Tenho o exército que mereço — disse. Em seguida
acrescentou, por entre ataques de tosse: — O meu bobo, o meu
cozinheiro e o meu chanceler de uma corte que já não existe. O
meu exército imaginário, os meus últimos fiéis!
— Às tuas ordens — disse o bobo, que obviamente o ouvira
apesar do vento. — Agora e sempre. Estás doente, Majestade?
O rei percebeu, quase com alívio, que assim era: por isso os
ataques de tosse, as tonturas, a sua fraqueza perante o rei da
Suécia, a confusão. Estava doente! Isso fazia tanto sentido que não
pôde deixar de rir.
— Sim — exclamou alegremente. — Estou doente!
Enquanto se inclinava para a frente para tossir, por qualquer
motivo recordou os sogros. Desde o primeiro momento, sabia que
não gostavam dele. Mas conquistara-os com a sua elegância e os
seus modos cavalheirescos, com a sua lucidez alemã e com a sua
força interior.
E pensou no seu filho mais velho, no belo jovem a quem todos
tanto amavam. Se eu não regressar, havia dito ao jovem,
regressarás tu ao principado e recuperarás o elevado estatuto da
nossa família. Depois o barco tinha-se virado, o filho afogara-se, e
agora estava junto de Deus Nosso Senhor.
Onde eu em breve também estarei, pensou o rei, tocando na
testa a arder. Na glória eterna.
Virou a cabeça para o lado e ajeitou a almofada. Sentiu a sua
respiração escaldante. Tapou a cabeça com a manta, que estava
suja e malcheirosa. Quantas pessoas já teriam dormido naquela
cama?
Afastou a manta e olhou em redor. Era evidente que se
encontrava no quarto de uma estalagem. Havia um cântaro em cima
da mesa. O chão estava coberto de palha. Só havia uma janela,
com vidro grosso, e lá fora a neve redemoinhava. O cozinheiro
estava sentado num escabelo.
— Temos de continuar — disse o rei.
— Estais demasiado doente — contrapôs o cozinheiro —, não
podeis, Majestade, estais…
— Balelas — disse o rei. — Disparates, parvoíces, asneiras,
tretas. A Liz está à minha espera!
Ouviu o cozinheiro responder, mas antes de perceber o que ele
dizia, devia ter voltado a adormecer, pois encontrava-se de novo na
catedral, no trono, diante do altar-mor, a ouvir o coro e a pensar na
história do fuso que a mãe em tempos lhe contava. De súbito,
pareceu-lhe importante, mas não conseguia recordar-se da ordem
correta: quando se desenrolava o fuso, desenrolava-se também um
pedaço da vida e, quanto mais depressa se fazia girar, por se ter
pressa, por se estar com alguma dor ou porque as coisas não
corriam como se queria, mais depressa passava também a vida. E o
homem da história mal tinha começado a viver quando chegava ao
fim do fuso e tudo tinha passado. Mas o rei não conseguia recordar-
se do que se passava no meio, por isso, abriu os olhos e deu ordem
para continuarem, disse que tinham de seguir caminho, de
prosseguir a viagem para a Holanda, onde se situava o seu palácio
e a sua mulher o esperava com os membros da casa real, ataviada
com sedas e diadema, onde as festas não tinham fim e onde todos
os dias havia as representações teatrais de que ela tanto gostava,
interpretadas pelos melhores atores de todos os países deste
mundo do Senhor.
Para sua surpresa, encontrou-se de novo em cima do cavalo.
Alguém lhe tinha posto uma capa pelos ombros, mas ele continuava
a sentir o vento. O mundo parecia branco — o céu, o solo e também
as cabanas à direita e à esquerda do caminho.
— Onde está o Hudenitz? — perguntou.
— O conde foi-se embora! — exclamou o cozinheiro.
— Temos de continuar — disse o bobo. — Já não temos
dinheiro, o estalajadeiro pôs-nos a andar. Rei ou plebeu, disse ele,
aqui tem de pagar!
— Sim — disse o rei —, mas onde está o Hudenitz?
Tentou contar quantos homens compunham agora o seu
exército. Havia o bobo, o cozinheiro, ele próprio, e ainda havia o
bobo, eram quatro, mas quando voltava a contar para ter a certeza,
só chegava a dois, o bobo e o cozinheiro. Porém, como isso não
fazia sentido, voltava a contar e o resultado era três, mas na vez
seguinte eram outra vez quatro: o rei da Boémia, o cozinheiro, o
bobo, ele próprio. E acabou por desistir.
— Temos de desmontar — disse o cozinheiro.
Efetivamente, a neve era demasiado alta e os cavalos não
avançavam.
— Mas ele não pode andar — ouviu o bobo dizer, e, pela
primeira vez, a sua voz não era sarcástica, mas semelhante à de
uma pessoa normal.
— Mas temos de desmontar — repetiu o cozinheiro. — Estás a
ver que não podemos continuar.
— Sim — confirmou o bobo. — Estou a ver.
Enquanto o cozinheiro segurava as rédeas, o rei desceu do
cavalo, apoiado no bobo. Enterrou-se até aos joelhos. O cavalo
resfolegou aliviado, ao sentir-se livre daquele peso e um bafo
quente saiu-lhe das narinas. O rei deu-lhe umas palmadinhas no
focinho. O animal fitou-o com olhos turvos.
— Não podemos deixar os cavalos aqui parados — disse o rei.
— Não te preocupes — disse o bobo. — Antes que gelem,
alguém irá comê-los.
O rei tossiu. O bobo apoiava-o do lado esquerdo, o cozinheiro do
direito, e começaram a caminhar com dificuldade.
— Para onde vamos? — perguntou o rei.
— Para casa — respondeu o cozinheiro.
— Eu sei — disse o rei —, mas hoje, agora. Com este frio. Onde
vamos agora?
— A meio dia de marcha para oeste deve haver uma aldeia,
onde ainda haja pessoas — disse o cozinheiro.
— Ninguém sabe ao certo — disse o bobo.
— Com toda esta neve, meio dia de marcha é um dia de marcha
— disse o cozinheiro.
O rei tossia. Caminhava a custo, a tossir, e a tossir caminhava,
caminhava e caminhava, e tossia, e admirava-se por mal lhe doer o
peito.
— Creio que estou a melhorar — disse o rei.
— Claro que sim — disse o bobo. — Vê-se. Estais a melhorar,
Majestade.
O rei sentiu que iria cair se não estivesse amparado por aqueles
dois homens. A neve acumulada ia ficando mais alta, cada vez lhe
era mais difícil manter os olhos abertos com aquele vento frio.
— Onde está o Hudenitz? — ouviu-se perguntar pela terceira
vez.
Doía-lhe a garganta. Flocos de neve por toda a parte e, quando
fechava os olhos, continuava a vê-los: pontos cintilantes, que
dançavam e redemoinhavam. Suspirou, as pernas vergaram-se-lhe,
ninguém o susteve e a neve macia acolheu-o.
— Não o podemos deixar aqui estendido — ouviu alguém dizer
acima de si.
— O que havemos de fazer?
Mãos agarraram-no e puxaram-no para cima, uma delas
acariciou-lhe a cabeça quase com ternura, e isso recordou-lhe a sua
ama favorita, que o tinha criado, outrora, em Heidelberga, quando
ainda era príncipe e não rei e quando tudo ainda corria bem. Ao
caminhar, os seus pés enterravam-se na neve e quando abriu os
olhos por instantes, viu perto de si os contornos de telhados
pontiagudos, janelas vazias, um poço destruído, mas não havia
pessoas à vista.
— Não podemos entrar em nenhuma — ouviu dizer. — Os
telhados caíram e, além disso, estão lá lobos.
— Mas aqui fora gelamos — disse o rei.
— Nós dois não iremos gelar — disse o bobo.
O rei olhou à volta. E, de facto, o cozinheiro não estava à vista,
ele estava sozinho com Tyll.
— Ele foi tentar encontrar outro caminho — disse o bobo. — Não
lhe podemos levar a mal. Nas tempestades, cada um cuida de si.
— Porque não iremos gelar? — perguntou o rei.
— Estás a arder em febre. O frio não te fará mal, vais morrer
antes.
— De quê? — perguntou o rei.
— Da peste.
O rei ficou uns instantes em silêncio e depois perguntou:
— Eu tenho peste?
— Pobre homem. Pobre Rei do Inverno, tens, sim. Já há dias.
Não reparaste nos bubões no pescoço? Não reparaste quando
inspiravas?
O rei inspirou. O ar estava gélido. Tossiu.
— Se for peste — disse —, então vou contagiar-te.
— Está demasiado frio para isso.
— Agora posso deitar-me?
— Tu és um rei. Podes fazer o que quiseres, quando quiseres e
onde quiseres.
— Então ajuda-me! Vou estender-me.
— Vossa Majestade — disse o bobo, apoiando-lhe o pescoço e
ajudando-o a estender-se no solo.
Nunca o rei se tinha deitado em cama tão fofa. A neve parecia
emitir um brilho ténue, o céu já escurecia, mas os flocos ainda
cintilavam, radiosos. Perguntou-se se os pobres cavalos ainda
estariam vivos. Depois pensou em Liz.
— Podes levar-lhe uma mensagem?
— Claro que sim, Majestade.
Não lhe convinha que o bobo o tratasse com tanto respeito, não
era apropriado, pois tinha-se um bobo para que o cérebro não
adormecesse com tantas homenagens. Um bobo tinha de ser
descarado! Pigarreou, para o repreender, mas recomeçou a tossir e
tornou-se difícil falar.
Ainda havia outra coisa? Ah, sim, a mensagem para Liz. Ela
sempre amara o teatro, o que ele nunca entendera. As pessoas
subiam ao palco e fingiam que eram outros. Não pôde deixar de
sorrir. Um rei sem reino no meio da tempestade, sozinho com o seu
bobo — uma coisa assim nunca existira numa peça, era demasiado
ridículo. Tentou erguer-se, mas as suas mãos enterraram-se na
neve, e tornou a cair. Que mais tinha ainda de fazer? Ah, sim, o
recado para Liz.
— A rainha — disse.
— Sim — respondeu o bobo.
— Vais dizer-lhe?
— Vou.
O rei ficou à espera, mas o bobo continuava sem dar sinal de
zombar dele. Mas essa era a sua missão! Irritado, fechou os olhos.
Para sua surpresa, nada se modificou: continuava a ver o bobo e via
também a neve. Sentiu papel nas mãos, parecia ter sido o bobo a
meter-lho entre os dedos, e sentiu qualquer coisa dura, que devia
ser um pedaço de carvão. Voltaremos a ver-nos perante Deus,
queria escrever, durante toda a vida só te amei a ti; mas então tudo
se tornou confuso, e ficou sem saber ao certo se já tinha escrito
aquilo ou se apenas quisera escrevê-lo, e já não sabia bem a quem
devia dirigir aquela mensagem, pelo que escreveu com mão
trémula: agora sei que Gustavo Adolfo em breve estará morto, mas
eu morrerei antes. Porém, não era aquela a mensagem, o assunto
não era aquele, por isso acrescentou: olha bem pelo burro, ofereço-
to, mas não, não era isso que queria dizer a Liz, mas sim ao bobo, e
o bobo estava ali, podia dizer-lho em pessoa, enquanto a
mensagem era para Liz. Por isso preparou-se para recomeçar a
escrever, mas era tarde de mais, já não era possível. Já não tinha
força na mão.
Só lhe restava a esperança de ter escrito tudo o que era
importante.
Sem dificuldade, ergueu-se e começou a andar. Quando olhou
mais uma vez em redor, apercebeu-se de que eram de novo três: o
bobo, de joelhos e envolto na sua capa de pele, o rei deitado no
solo, já com metade do corpo coberto de branco, e ele. O bobo
ergueu os olhos. Os seus olhares encontraram-se. O bobo levou a
mão à testa e fez uma vénia.
O rei inclinou a cabeça numa saudação, deu meia-volta e
afastou-se. Agora, que já não se enterrava, avançava muito mais
depressa.
FOME
— Era uma vez — conta Nele.
É o terceiro dia que passam na floresta. De quando em quando,
um pouco de luz penetra na copa das árvores e, apesar da
folhagem lá no alto, ficam molhados de chuva. Perguntam-se se a
floresta alguma vez irá terminar. Pirmin, que vai à frente e, uma vez
por outra, coça o semicírculo da careca, não se vira para eles; às
vezes ouvem-no murmurar ou cantar numa língua estrangeira.
Agora já o conhecem bastante bem para não lhe dirigirem a palavra,
pois isso pode enfurecê-lo e, quando está furioso, não tarda a fazer-
lhes mal.
— Uma mãe tinha três filhas — conta Nele. — Tinham uma
galinha que pôs um ovo áureo.
— Um ovo como?
— De ouro.
— Disseste áureo.
— É o mesmo. As filhas eram muito diferentes umas das outras,
duas eram más, tinham uma alma negra, mas eram formosas. A
mais nova, pelo contrário, era boa e tinha uma alma branca como a
neve.
— Também era bonita?
— A mais bonita das três. Bela como um novo dia.
— Um novo dia?
— Sim — respondeu Nele irritada.
— Um novo dia é bonito?
— Muito.
— Um novo dia?
— Muito bonito. E as irmãs más obrigavam a mais nova a
trabalhar sem descanso, dia e noite, até ter os dedos em sangue de
tanto esfregar, os pés transformados nuns trambolhos doridos e o
cabelo grisalho antes de tempo. Um dia o ovo áureo fendeu-se e
dele saiu um Polegarzinho que perguntou: «O que desejas,
solteirona?»
— E onde estava o ovo antes?
— Não sei, estava num sítio qualquer.
— Todo o tempo?
— Sim, estava num sítio qualquer.
— Um ovo de ouro? E ninguém o levou?
— Isto é uma história!
— Inventaste-a?
Nele cala-se. A pergunta parece-lhe absurda. A silhueta do rapaz
na penumbra da floresta é muito esguia. Ele caminha um pouco
curvado, com a cabeça caída sobre o peito e o corpo magro e
ossudo, como se fosse uma figura de madeira que tivesse ganhado
vida. Nele teria inventado esse conto? Nem ela própria sabe. Ouviu
a mãe, as duas tias e a avó contar tantas histórias com
Polegarzinhos, ovos de ouro, lobos, cavaleiros, bruxas e tantas
irmãs más que já nem precisa de pensar. Quando se começa, aquilo
continua por si, e as diferentes partes encaixam umas nas outras,
umas vezes de uma maneira, outras vezes de outra, e assim se tem
uma história.
— Vá lá, continua a contar — diz o rapaz.
Enquanto Nele conta que o Polegarzinho, a pedido da irmã
formosa, a transformou numa andorinha, para ela poder voar até ao
País da Cocanha, onde tudo é bom e ninguém tem fome, a rapariga
repara que a floresta se vai tornando mais densa. Embora não
pareça, devem estar a aproximar-se da cidade de Augsburgo.
Pirmin detém-se. Vira-se para um lado e para o outro a farejar.
Alguma coisa lhe despertou a atenção. Inclina-se para a frente e
observa um tronco de bétula, com a casca preta e branca e uma
concavidade num ramo.
— O que é isto? — pergunta Nele e, no mesmo instante,
assusta-se com a sua imprudência.
Sente que, a seu lado, o rapaz se imobiliza.
Lentamente, Pirmin vira para eles a cabeçorra calva e disforme.
Os seus olhos brilham, hostis.
— Continua a contar — diz.
Ainda sente nos braços e nas pernas o sítio onde ele lhe deu
beliscões, e o ombro dói-lhe quase tanto como há quatro ou cinco
dias, quando ele lhe pegou no braço com destreza e o torceu atrás
das costas. O rapaz quis ajudá-la, mas Pirmin dera-lhe um pontapé
no estômago com tanta força que ele não conseguiu endireitar-se
durante o resto do dia.
Porém, até agora Pirmin nunca fora longe de mais. Magoou-os,
mas não demasiado, sempre que agarrou Nele, nunca o fez acima
do joelho nem abaixo do umbigo. Como sabe que podiam fugir os
dois a qualquer momento, retém-nos da única maneira possível:
ensina-lhes o que querem aprender.
— Continua a contar — repete. — Não volto a pedir-te.
E Nele, que continua a perguntar-se o que teria ele visto no
tronco da bétula, conta como o Polegarzinho e a andorinha chegam
às portas do País da Cocanha, que estão protegidas por um guarda
alto como uma torre. Este diz-lhes: aqui nunca terão fome nem
sede, mas não poderão entrar! Eles pedem, suplicam e imploram,
mas o guarda não sabe o que é piedade, tem um coração de pedra,
que lhe pesa muito no peito, sem palpitar, e por isso tudo o que faz
é repetir: não poderão entrar! Não poderão entrar!
Nele fica em silêncio. Os dois entreolham-se e aguardam.
— E depois? — pergunta Pirmin.
— Não entraram — responde Nele.
— Nunca?
— O coração dele era de pedra!
Pirmin fita-a durante um momento, depois desata a rir e continua
a andar, seguido pelos dois jovens. É quase noite e, ao contrário de
Pirmin, que pouco lhes dá, já não têm nada para comer.
Habitualmente, Nele suporta a fome melhor do que o rapaz.
Imagina que a dor e a fraqueza que sente dentro de si são uma
coisa que está noutro sítio e que não tem nada que ver com ela.
Mas hoje é o rapaz que aguenta melhor. Sente a fome como algo
leve, que palpita e paira, quase permitindo que ele se eleve nos
ares. Enquanto seguem ambos atrás de Pirmin, em pensamento ele
ainda está na lição que aprendeu nessa manhã: como imitas uma
pessoa? Como consegues olhar para o rosto de uma pessoa e
transformares-te nela? Como manténs a mesma postura que ela,
como fazes a tua voz soar como a dela e olhar como ela?
Não há nada de que as pessoas gostem mais do que disto e não
há nada que lhes dê mais vontade de rir. Mas tens de o fazer bem,
porque se o fazes mal, acabas na miséria. Para imitar alguém, tu,
meu idiota, tu, miúdo estúpido, tu, pedra obstinada e inútil, não
podes assemelhar-te apenas a ele, mas tens de te assemelhar ao
que ele próprio é, pois ele pode comportar-se de qualquer maneira,
mas tu tens de ser absolutamente como ele, e se não conseguires
isso, desiste, volta para o moinho do papá e não faças o Pirmin
perder tempo!
O que é preciso é olhar, entendes? Isso é o mais importante.
Observa! Compreende as pessoas. Não é assim tão difícil. Elas não
são complicadas. Não querem nada de extravagante, mas todas
querem o que querem de uma maneira um pouco diferente. E uma
vez que compreendas de que maneira uma pessoa quer qualquer
coisa, só tens de querer o mesmo, e o teu corpo acompanhará, a
tua voz modificar-se-á por si própria e os teus olhos observarão
como deve ser.
Claro que tens de praticar. Isso é sempre necessário. Praticar,
praticar, praticar. Tal como tens de praticar para dançares em cima
da corda ou para andares apoiado nas mãos ou como tens de
praticar ainda mais tempo antes de seres capaz de manter seis
bolas no ar: tens de praticar constantemente, sobretudo com um
professor que não deixa passar nada, pois o próprio deixa sempre
passar muitas coisas, uma pessoa não é exigente consigo mesma,
de modo que cabe ao professor dar-te pontapés, bater-te e dizer-te
que és um pobre diabo, que nunca fará nada de jeito.
E, de tanto pensar em como imitar as pessoas, o rapaz já quase
tinha esquecido a fome. Revê mentalmente os Steger, o ferreiro, o
padre e a velha Hanna Krell, que ele não sabia que era bruxa, mas
agora, que já sabe, muitas coisas adquirem um novo sentido. Um
após outro, evoca-os e representa mentalmente a postura e a
maneira de falar de cada um; curva os ombros, encolhe o peito,
move os lábios em silêncio: ajuda-me com o martelo, rapaz, espeta
este prego, e, por causa do reumatismo, a mão treme-lhe
ligeiramente quando a levanta.
Pirmin detém-se e manda-os apanhar ramos secos. Sabem que
isso é impossível: após três dias de chuva, a humidade infiltrou-se
por toda a parte, nada foi poupado e não há nada seco. Mas como
não querem que Pirmin fique furioso, agacham-se, rastejam por aqui
e por ali e remexem nos arbustos, como se andassem à procura.
— E depois? — murmura o rapaz. — Chegam ao País da
Cocanha?
— Não — murmura Nele. — Encontram um castelo onde reina
um rei muito mau, que matam, e a rapariga torna-se rainha.
— Ela casa com o Polegarzinho?
Nele ri.
— Porque não? — pergunta o rapaz.
Ele próprio fica surpreendido por querer saber uma coisa
daquelas, mas uma história tem de acabar em casamento, pois de
outro modo não há um final e tudo soa a falso.
— Como havia ela de casar com o Polegarzinho?
— Porque não?
— Porque ele é um Polegarzinho.
— Se ele souber fazer magia, pode tornar-se grande.
— Está bem, então ele faz magia e transforma-se num príncipe,
e casam; e, se não morreram, ainda hoje estão vivos. Está bem
assim?
— Está melhor.
Mas quando Pirmin vê os ramos húmidos que eles lhe levaram,
começa a gritar, a bater e a dar beliscões. As mãos dele são rápidas
e fortes e, quando se pensa ter escapado de uma, já se foi agarrado
pela outra.
— Ratazanas! — grita ele — Sarigueias, larvas de escaravelhos
estúpidas e inúteis, que não servem para nada, não admira que os
vossos pais vos tenham posto a andar!
— Não foi assim — diz Nele. — Nós é que fugimos.
— Sim, sim — exclama Pirmin —, sei que o carrasco atirou o pai
dele para a fogueira, ouvi muitas vezes contar!
— Foi enforcado — corrige o rapaz. — Não foi queimado.
— Tu viste?
O rapaz não responde.
— Trabalhar e penar! — Pirmin ri. — Viver, sofrer e aprender. Se
não sabes nada, fica de boca calada! Se o enforcaram por ser
bruxo, queimaram-no depois de morto, é assim, é isso que é
costume fazer. Ele ardeu na fogueira, e ainda por cima enforcaram-
no.
Pirmin põe-se de cócoras, a resmungar remexe na madeira,
esfrega hastes de madeira umas nas outras e fala em voz baixa
para consigo — o rapaz reconhece um ou outro sortilégio, arde,
fogo, fogo de Deus, anjo, trá-lo cá abaixo, acende o meu tronquinho,
dá-me uma pequena chama, faz arder este pauzinho; é uma antiga
fórmula, que Claus utilizava. E, de facto, não demora muito até o
rapaz sentir o cheiro da madeira a arder que tão bem conhece. Abre
os olhos e bate palmas. Com um sorriso zombeteiro, Pirmin faz uma
vénia. Enche as bochechas de ar e sopra o fogo. A madeira
incandescente ilumina-lhe o rosto. Atrás dele, a sua sombra dança,
agigantada, sobre os troncos das árvores.
— E agora atuem para mim!
— Estamos cansados — diz Nele.
— Se querem manducar, têm de atuar. Agora é assim. E
continuará a ser assim até esticarem o pernil. Vocês são gente
itinerante, ninguém vos protege, e, quando chove, não têm teto. Não
têm um lar. Não têm amigos, a não ser outros da vossa laia, que
não gostam muito de vocês, porque a comida é escassa. Por isso,
são livres. Não precisam de obedecer a ninguém. Só têm de fugir
depressa em situação de perigo. E, se tiverem fome, têm de atuar.
— Dás-nos comida?
— Não, comilão chorão, não, não! — A rir, Pirmin abana a
cabeça e senta-se atrás da fogueira. — Mais nada, nem uma
codeazinha, nem uma migalhinha, e não façam barulho, pois há
mercenários na floresta. A esta hora, já estão muito bêbedos e
também devem estar furiosos, porque os camponeses de
Nuremberga já se amotinaram. Se nos encontram, estamos bem
arranjados.
Hesitam ambos um momento, pois estão de facto muito
fatigados. Mas afinal é por isso que se encontram ali, foi por isso
que partiram com Pirmin — para atuarem, para aprenderem truques.
Primeiro o rapaz executa o seu número de funambulismo.
Estende a corda, não muito alta, embora entretanto tenha deixado
de cair — mas nunca se sabe o que Pirmin irá fazer, de repente
podia atirar-lhe qualquer coisa ou abanar a corda. O rapaz deu uns
passos cautelosos, para verificar se a corda está bem esticada, pois
à luz do crepúsculo mal consegue ver, depois ganha segurança e
caminha mais depressa, e em seguida corre no mesmo lugar. Salta,
gira no ar, cai sobre a corda e corre de costas até ao fim. Volta a
correr para trás, curva-se, de súbito corre apoiado nas mãos, chega
de novo ao outro extremo, dá uma volta no ar, cai sobre os pés,
move um pouco os braços para recuperar o equilíbrio e faz uma
vénia. Salta para o chão.
Nele aplaude que nem louca.
Pirmin cospe.
— Esse final foi horroroso.
O rapaz baixa-se, pega numa pedra, atira-a bem alto, agarra-a
de novo e, sem olhar, volta a lançá-la. Enquanto a pedra está no ar,
pega numa segunda e atira-a, agarra a primeira, lança-a, rápido
como um relâmpago pega numa terceira, agarra a segunda, atira-a
de novo, lança a terceira, agarra-a, lança a primeira e ajoelha-se
para apanhar a quarta. Finalmente, tem cinco pedras a girar à volta
da cabeça, a subir e a descer à luz do entardecer. Nele está de
respiração suspensa. Pirmin, imóvel, contempla, com os olhos
transformados em fendas.
A dificuldade consiste no facto de as pedras não terem a mesma
forma nem o mesmo peso. Por isso a mão tem de se adaptar a cada
uma, e cada vez agarra uma coisa diferente. O braço tem de ser
mais elástico com as pesadas e de atirar as leves com mais força,
de modo que todas voem com igual velocidade e descrevam a
mesma trajetória, o que só se consegue depois de ter praticado
muito. Mas também só se consegue quando uma pessoa se
esquece de que é ela própria que lança as pedras. De certo modo,
deve-se apenas olhar para elas enquanto voam. Quem se envolve
demasiado estraga tudo e quem pensa no que está a fazer perde o
ritmo e estraga tudo.
Durante mais algum tempo, o rapaz ainda consegue. Não pensa,
mantém-se mentalmente à margem, olha para o alto e vê as pedras
acima de si. Entre as folhas, apercebe-se da última luz do céu que
escurece, sente gotas na testa e nos lábios, ouve o crepitar das
chamas e dá-se conta de que não vai aguentar mais tempo, que
está prestes a atrapalhar-se — e, antecipando-se, deixa cair a
primeira pedra que rola para os arbustos atrás de si, depois a
segunda, a terceira, a quarta e, finalmente, a última. Surpreendido,
contempla as mãos vazias: onde estão elas? Com uma
perplexidade simulada, curva-se numa vénia.
Nele aplaude de novo, Pirmin faz um movimento desdenhoso
com a mão — mas o rapaz percebe que, quando ele não diz nada
negativo, é porque se saiu bem. Claro que saberia fazer
malabarismo melhor se Pirmin lhe emprestasse as bolas que tem
para o efeito. Tem seis, de couro grosso, lisas e manuseáveis, cada
uma de sua cor, de modo que, se as lançar com rapidez suficiente,
se transformam num repuxo cintilante e multicor. Pirmin guarda-as
no saco de juta, com que anda sempre ao ombro e em que as
crianças não se atrevem a tocar; experimentem a meter cá a mão
que vos parto os dedos. O rapaz viu Pirmin a fazer malabarismo
num qualquer povoado; é muito habilidoso, mas já não tão ágil como
em tempos e, reparando bem, vê-se que o excesso de cerveja forte
o está a fazer perder gradualmente o sentido do equilíbrio. Com
aquelas bolas, era provável que o rapaz fizesse melhor. Mas é
exatamente por isso que Pirmin nunca lhe permitirá utilizá-las.
Agora está na altura da atuação teatral. O rapaz dirige um aceno
de cabeça a Nele, que se levanta de um salto e começa a contar:
em tempos que já lá vão, dois exércitos reuniram-se às portas da
cidade dourada de Praga. Soam trombetas, cintilam as armaduras
dos guerreiros, e ali está o jovem rei, cheio de bravura,
acompanhado pela sua esposa inglesa. Mas para os generais do
imperador nada é sagrado, rufam os tambores, estás a ouvi-los?
Aproxima-se o destino fatal da cristandade.
Os jovens passam de um papel para outro, mudam de entoação,
de voz e de língua, e como não sabem checo, francês nem latim,
falam uma bela algaraviada. O rapaz é um general do imperador, dá
a voz de comando, ouve os canhões troarem atrás de si, vê os
mosqueteiros boémios apontarem-lhe as suas armas, ouve a ordem
de retirada, mas não quer saber, com a retirada não se ganha nada!
E avança, o perigo é grande, mas a sorte está do seu lado, os
mosqueteiros recuam ante a valentia do seu regimento, soam as
fanfarras da vitória, ele ouve-as mais nítidas do que a chuva, e já se
encontra na dourada sala do trono do imperador. Sua Majestade
está sentado no trono e, com mão delicada, coloca-lhe uma faixa de
condecoração: «Hoje salvastes o meu reino, Generalíssimo!» O
general vê os rostos dos grandes senhores do império, inclina a
cabeça, eles curvam-se numa vénia deferente. Então uma nobre
aproxima-se dele: «Só desejo dar-vos uma palavra, venho cumprir
uma missão!» Calmamente o general responde: «Seja o que for e
mesmo que me custe a vida, falai, porque vos amo.» E ela replica:
«Eu sei, nobre senhor, mas tendes de esquecê-lo. Ouvi o que tenho
a dizer-vos. Desejo que vós…»
Qualquer coisa bate na cabeça do rapaz; vê estrelas, as pernas
cedem-lhe, demora um momento a compreender que Pirmin lhe
atirou qualquer coisa. Toca na testa, curva-se, e lá está a pedra.
Uma vez mais, fica impressionado com a boa pontaria de Pirmin.
— Suas ratazanas — diz Pirmin. — Inúteis. Pensam que alguém
vai querer ver isto? Quem quer ver uns miúdos a representar? Estão
a fazer isto para vocês? Então voltem para os vossos pais, se eles
não arderam na fogueira. Ou estão a representar para os
espectadores? Nesse caso, têm de ser melhores. Têm de ter uma
história melhor, uma atuação melhor, de serem mais rápidos, mais
enérgicos, mais espirituosos, mais tudo! Além disso, têm de ensaiar!
— A testa dele! — grita Nele. — Está a sangrar!
— Mas não o suficiente. Ainda devia sangrar mais. Quem não
conhece a sua profissão, devia sangrar o dia inteiro.
— Grande suíno! — grita Nele.
Pensativo, Pirmin pega noutra pedra.
Nele agacha-se.
— Vamos recomeçar — diz o rapaz.
— Hoje não me apetece ver mais — diz Pirmin.
— Sim — insiste o rapaz. — Sim, sim. Mais uma vez.
— Não quero mais, já chega — diz Pirmin.
Então, sentam-se ao lado dele. O fogo reduziu-se a um débil
cintilar. O rapaz tem uma recordação, mas não sabe se a viveu ou
se a sonhou: ruído noturno vindo da parte mais densa do bosque,
zumbidos, estalidos e crepitações de todo o lado, e um grande
animal, com a cabeça de um burro, os olhos muito abertos, um grito
como nunca ouvira, e sangue quente a jorrar. Abana a cabeça para
afastar a recordação e pega na mão de Nele. Os seus dedos
apertam os dela.
Pirmin solta risadinhas. Mais uma vez, o rapaz pergunta-se se
aquele homem lhe lê os pensamentos. Isso nem é assim tão difícil,
como Claus lhe explicou, basta saber as fórmulas mágicas
apropriadas.
Na realidade, Pirmin nem é má pessoa. De qualquer modo, não
é mau de todo, não tão mau como parece à primeira vista. Às vezes,
há nele qualquer coisa de terno, uma indulgência que se poderia
converter em doçura, não tivesse ele de levar a vida dura da gente
itinerante. Na realidade, é demasiado velho para andar de terra em
terra, a suportar a chuva e a dormir debaixo de árvores, mas, de
algum modo, devido à má sorte e ao infortúnio, perdeu todas as
oportunidades de conseguir um trabalho com comida e cama, e
agora já não o encontrará. Dentro de alguns anos, os joelhos doer-
lhe-ão tanto que não lhe permitirão deslocar-se, e terá de ficar na
primeira aldeia que encontrar, em casa de qualquer camponês,
suficientemente compassivo para o aceitar como jornaleiro; mas
para isso precisará de ter sorte, pois ninguém quer dar guarida a
gente itinerante, isso dá azar, traz mau tempo e provoca a má-língua
dos vizinhos. Ou então Pirmin terá de mendigar, diante das
muralhas de Nuremberga, de Augsburgo ou de Munique, pois no
centro das cidades não são autorizados pedintes. As pessoas atiram
comida a esses infelizes, mas ela nunca é suficiente para todos e
são os mais fortes que a apanham. E nessa altura Pirmin acabará
por morrer de fome.
Ou então, as coisas não chegarão a esse ponto. Por exemplo,
em qualquer parte poderá tropeçar no caminho — as raízes
húmidas são traiçoeiras, é incrível como a madeira molhada pode
ser escorregadia; ou talvez uma pedra, na qual se apoiou ao trepar,
não seja tão firme como parece. Nesse caso, ficará à beira do
caminho, com uma perna partida, e quem passar por ele dará uma
curva, enojado, para evitar um sujeito deitado na terra, pois que
havia de fazer, levá-lo às costas? Aquecê-lo e alimentá-lo, cuidar
dele como de um irmão? Essas coisas acontecem nas lendas de
santos, mas não na realidade.
Então o que será o melhor que pode acontecer a Pirmin? O seu
coração parar. De repente, sentir uma pontada no peito, uma dor
inesperada percorrer-lhe as entranhas, durante uma representação
na praça do mercado: ergue a vista para as bolas, segue-se um
momento da mais intensa dor, e depois tudo passa.
Ele mesmo poderia provocá-lo. Não seria difícil. Há muita gente
itinerante que o faz — conhecem os cogumelos, que provocam
suavemente o sono. Num momento de fraqueza, Pirmin confessou
que não tem coragem. O mandamento mais duro de Deus proíbe-o:
quem se mata, escapa à injustiça deste mundo, mas fá-lo à custa do
martírio eterno no outro. E eterno não significa apenas muito tempo.
Significa que o mais longo espaço de tempo que se possa imaginar,
podendo ser mil vezes tantos anos quantos os que uma ave leva a
desfazer o Blocksberg com o bico, seria simplesmente a mais
pequena parte da sua mais pequena parte. E, embora dure tanto,
uma pessoa nunca se habitua ao horror, à solidão e ao sofrimento.
Assim está escrito. Então quem pode levar a mal a Pirmin que ele
seja como é?
Mas tudo poderia ter sido diferente. Pirmin também conheceu
bons tempos. Outrora teve um futuro. No ponto alto da sua vida,
chegou a Londres, e sempre que fica embriagado com a cerveja
começa a contar coisas dessa época. Fala do Tamisa, tão largo à
luz do entardecer, da oferta e do bulício das ruas — a cidade é tão
grande que se poderia percorrê-la durante dias sem nunca chegar
ao fim! E há teatros a cada esquina. Ele não percebia a língua, mas
a graciosidade dos atores e a veracidade dos seus rostos haviam-no
emocionado como mais nada voltaria a fazê-lo.
Nessa altura era jovem. Foi um dos muitos malabaristas que
atravessaram o Canal com o séquito do jovem príncipe eleitor
Frederico. Este ia para Inglaterra a fim de casar com a princesa
Isabel e, uma vez que os ingleses apreciavam espetáculos, levou
tudo o que o seu país tinha para oferecer: ventríloquos, engolidores
de fogo, bonecreiros, lutadores, homens que caminhavam sobre as
mãos, outros que davam arrotos, corcundas, manetas pintores, e
também Pirmin. No terceiro dia dos festejos, em casa de um certo
Bacon, Pirmin lançou as suas bolas diante de todos os grandes
cavalheiros e damas. As mesas estavam cobertas de flores, e o
dono da casa, à entrada do salão, exibia o seu sorriso pérfido e
inteligente.
— É como se ainda os visse à minha frente — diz Pirmin. — A
princesa empertigada e o noivo que não percebe o que lhe
aconteceu. Devíamos ir à procura dele!
— Devíamos ir o quê?
— À procura dele! Dizem que anda de país em país, a comer à
custa dos protestantes. Dizem que se comporta como se fosse rei e
que arrasta consigo a sua pequena corte. Mas terá um bobo? Talvez
um velho bobo da corte seja aquilo de que um rei sem reino precisa.
Era frequente Pirmin dizer aquilo. Talvez por efeito da muita
cerveja, repete-se, mas isso é-lhe indiferente. Mas agora, junto da
fogueira, mastiga o último pedaço de carne seca, com os jovens,
cheios de fome, sentados junto dele, de ouvido à escuta dos ruídos
da floresta. Estão de mão dada, a tentar pensar em coisas que os
distraiam da fome.
Com um pouco de prática, é muito fácil. Quem conhece bem a
fome, também sabe como se faz para reprimi-la durante algum
tempo. Tem de se apagar da mente qualquer imagem de coisas
comestíveis, de cerrar os punhos, de relaxar e de não pensar no
assunto. Em vez disso, é possível ficar melhor a pensar em
malabarismo, que se pode praticar mentalmente. Ou então a
imaginar como se anda na corda, a uma altura vertiginosa, acima de
cumes de montanhas e das nuvens. A fitar as brasas, o rapaz pisca
os olhos. A fome torna uma pessoa mais leve. E, enquanto fixa a
cintilação vermelha, é como se visse debaixo de si o dia vasto e
luminoso, como se o sol o cegasse.
Nele apoia a cabeça no seu ombro. O meu irmão, pensa. Agora,
ele é tudo o que tem. Pensa na sua casa, que não tornará a ver, na
mãe, quase sempre triste, no pai, que lhe batia muito mais do que
Pirmin, nos irmãos e nos moços. Pensa na vida que a esperava: o
filho de Steger, o trabalho na padaria. Claro que não se permite
pensar no pão — mas agora que pensou no que não devia ter
pensado, vê um pão fofo, sente o seu aroma e como seria mastigá-
lo.
— Não penses nisso! — exclama o rapaz.
Nele não contém o riso e pergunta-se como saberá o rapaz o
que lhe ia na mente. Mas funcionou, o pão desapareceu.
Pirmin caiu para a frente. Está deitado no chão, como uma saca
pesada, com as costas a subir e a descer, e a roncar como um
animal.
Preocupados, os jovens olham em redor.
Está frio.
Dentro em pouco o lume estará apagado.
A GRANDE ARTE
DA LUZ E DA SOMBRA
Adam Olearius, o matemático da corte, curador do gabinete de
curiosidades do ducado de Gottorf e autor de uma crónica sobre a
fatigante viagem de uma embaixada à Rússia e à Pérsia, da qual
regressara quase ileso poucos anos antes, nunca tinha falta de
palavras, embora naquele dia a inquietação lhe dificultasse a fala.
Com efeito, à sua frente, rodeado por meia dúzia de secretários
envergando hábitos negros, circunspecto, atento e transportando a
sua vastíssima cultura como se de um fardo ligeiro se tratasse,
encontrava-se, nada mais, nada menos, do que o padre Athanasius
Kircher, professor do Collegium Romanum.
Embora aquele fosse o seu primeiro encontro, comportavam-se
como se já se conhecessem de longa data, o que era habitual entre
eruditos. Olearius quis saber o que levara ali o seu ilustre colega,
não deixando intencionalmente claro se se referia ao Sacro Império
Romano-Germânico, a Holstein ou ao castelo de Gottorf, que se
erguia atrás deles.
Kircher refletiu durante algum tempo, como se tivesse de
procurar a resposta nas profundezas da memória, antes de
responder em voz baixa e um pouco aguda de mais que
abandonara a Cidade Eterna devido a diferentes projetos, o mais
importante dos quais era encontrar um remédio para a peste.
— Que Deus nos ajude — disse Olearius —, ela está de novo
em Holstein?
Kircher ficou em silêncio.
Olearius sentiu-se desconcertado por o seu interlocutor ser tão
jovem: era difícil imaginar que aquela cabeça, com traços
fisionómicos delicados resolvera o enigma da força magnética, o
enigma da luz, o enigma da música, e também, ao que constava, o
enigma da escrita do Antigo Egito. Olearius tinha consciência da sua
importância e a modéstia não era o seu forte. Mas, em presença
daquele homem, a voz ameaçava fraquejar-lhe.
Bem entendido que entre os eruditos não havia antagonismo
religioso. Há quase um quarto de século, quando a grande guerra
começara, a situação era diferente, mas as coisas tinham mudado.
Na Rússia, o protestante Olearius travara amizade com monges
franceses, e não constituía um segredo que Kircher se correspondia
com muitos eruditos calvinistas. Havia pouco, quando Kircher
mencionara incidentalmente a morte do rei sueco na batalha de
Lützen e, em relação a isso, falara do bom Deus misericordioso,
Olearius tivera de fazer apelo a toda a sua força interior, para não
responder que a morte de Gustavo Adolfo fora uma catástrofe, na
qual todas as pessoas razoáveis tinham de reconhecer a mão do
diabo.
— Dizeis que desejais curar a peste. — Olearius, ainda sem
conseguir responder, aclarou a garganta. — E dizeis, que viestes a
Holstein por esse motivo. Então a peste regressou ao nosso país?
Kircher deixou passar mais um momento e, como era seu hábito,
contemplou as pontas dos dedos antes de responder que, como era
natural, não fora ali a fim de encontrar um remédio para a peste,
embora a peste grassasse naquela região, pois, onde a peste
grassa, é precisamente onde não se encontra o meio para impedir a
sua propagação. A bondade divina determinara, e muito bem, que o
investigador do remédio, em vez de pôr a sua vida em perigo,
tivesse oportunidade de visitar lugares onde a doença ainda não se
disseminara, pois só aí se encontraria o que, pelo poder da natureza
e por vontade de Deus, iria reagir contra ela.
Estavam sentados no único banco de pedra não destruído do
parque do castelo e molhavam torrões de açúcar em vinho diluído
com água. Os seis secretários de Kircher permaneciam de pé, a
uma distância respeitosa, e observavam-nos fascinados.
O vinho não era bom e Olearius sabia que o parque e o castelo
também não eram nada de extraordinário. Os saqueadores tinham
abatido as velhas árvores, a erva estava coberta de manchas de
fogueiras e os arbustos estavam tão danificados como a fachada do
edifício, a que também faltava um pedaço do telhado. Olearius era
suficientemente idoso para ainda se recordar do tempo em que o
castelo era uma das glórias do Norte, o orgulho dos duques da
Jutlândia. Nessa altura, ele ainda era uma criança e o pai um
simples artesão, mas o duque reconhecera as suas capacidades e
mandara-o estudar, tendo-o mais tarde mandado como enviado à
Rússia e à distante e radiosa Pérsia, onde ele vira camelos, grifos,
torres de jade e serpentes que falavam. De bom grado aí teria
ficado, mas jurara fidelidade ao duque, e também a sua mulher o
esperava na pátria, ou pelo menos ele assim o pensava, pois a
esposa entretanto falecera sem que ele soubesse. Assim,
regressara ao frio império, à guerra e à triste existência de viúvo.
Kircher franziu os lábios, bebeu mais um trago de vinho, ficou
com o rosto crispado numa careta quase impercetível, limpou a
boca com um paninho manchado de vermelho e continuou a
explicar porque se encontrava ali:
— É uma experiência. Um novo método de encontrar certezas.
Fazem-se tentativas. Por exemplo, deita-se fogo a uma esfera feita
de enxofre, betume e carvão, e sente-se imediatamente que a visão
do fogo desencadeia a ira. Alguém que se encontre na mesma sala
fica dominado pela cólera. Isso deve-se ao facto de a esfera
reproduzir propriedades de Marte, o planeta vermelho. De maneira
semelhante, podem utilizar-se as propriedades aquosas de Neptuno
para acalmar naturezas excitadas, ou as propriedades
desconcertantes da enganadora Lua para envenenar os sentidos.
Basta uma pessoa sóbria passar pouco tempo nas proximidades de
um íman com propriedades semelhantes às da Lua para ficar tão
embriagada como se tivesse bebido um odre de vinho.
— Os ímanes embriagam?
— Lede o meu livro. A minha nova obra ainda contém mais
dados sobre esse assunto. Intitula-se Ars magna lucis et umbrae e
responde às perguntas em aberto.
— A quais?
— A todas. No que diz respeito à esfera de enxofre, a
experiência levou-me a administrar a um doente com peste uma
decocção de enxofre e sangue de caracol. Por um lado, o enxofre
elimina os elementos marcianos da doença e, por outro, o sangue
de caracol, enquanto substituto dracontológico, adoça o que
acidifica os humores do corpo.
— Como dizeis?
Kircher contemplou de novo a ponta dos dedos.
— O sangue de caracol substitui o sangue de dragão? —
perguntou Olearius.
— Não — respondeu Kircher pacientemente. — A bílis de
dragão.
— E o que vos levou até aí?
— A substituição tem os seus limites. Apesar da decocção, o
doente da experiência morreu, o que provou sem sombra de dúvida
que o verdadeiro sangue de dragão o teria curado. Então,
precisamos de um dragão, e em Holstein ainda vive o último dragão
do Norte.
Kircher olhou as mãos. A sua respiração formava pequenas
nuvens de vapor. Olearius tiritava. No interior do castelo não estava
muito mais quente, pois, até onde a vista alcançava, não se avistava
uma árvore, e o duque utilizava a pouca lenha que havia para
aquecer o seu quarto de dormir.
— Já alguém avistou esse dragão?
— Claro que não. Um dragão que fosse avistado não seria
dotado da propriedade mais importante dos dragões, ou seja, tornar-
se impossível de encontrar. Precisamente por esse motivo temos de
usar do mais extremo ceticismo quando nos confrontamos com
relatos de pessoas que afirmam ter avistado dragões, pois um
dragão que permite que o vejam seria a priori reconhecido como um
dragão que não é autêntico.
Olearius coçou a testa.
— Ao que parece, nesta região não há nenhum testemunho de
avistamento de um dragão. Por conseguinte, estou seguro de que
tem de haver algum por aqui.
— Mas em muitos outros lugares também não há testemunhos
semelhantes. Porquê precisamente aqui?
— Em primeiro lugar, porque a peste desapareceu desta região,
o que é um forte indício. Em segundo lugar, utilizei um pêndulo.
— Mas isso é magia!
— Não, se usarmos um pêndulo magnético. — Kircher fitou
Olearius com olhos cintilantes. O sorriso ligeiramente desdenhoso
desapareceu do seu rosto quando se curvou numa reverência e
perguntou com uma singeleza que confundiu Olearius: — Estais
disposto a ajudar-me?
— Em quê?
— A encontrar o dragão.
Olearius fez como se estivesse a refletir. A decisão não era
difícil. Já não era jovem, não tinha filhos e a esposa falecera. Todos
os dias visitava a sua sepultura e ainda lhe acontecia acordar à
noite e começar a chorar, tanta falta ela lhe fazia e tanto lhe pesava
a solidão. Nada o retinha ali. Quando o sábio mais importante do
mundo o convidava para uma aventura conjunta, não havia muito a
cismar. Inspirou antes de responder.
Mas Kircher antecipou-se. Pôs-se de pé e sacudiu o pó do
hábito.
— Muito bem, então partimos amanhã cedo.
— Gostaria de levar o meu assistente — disse Olearius
ligeiramente irritado. — O mestre Fleming é experiente e prestável.
— Ótimo — disse Kircher, visivelmente já a pensar noutra coisa.
— Então muito bem, amanhã de manhã cedo assim faremos.
Podeis levar-me à presença do duque?
— Neste momento, ele não recebe.
— Não vos preocupeis. Quando ele souber quem sou, fá-lo-á de
bom grado.

Quatro carruagens atravessavam o campo a sacolejar. Estava


frio, a pálida neblina matinal subia dos prados. A última viatura ia, do
chão ao teto, cheia de livros que Kircher havia pouco comprara em
Hamburgo; na terceira iam sentados três secretários que escreviam
manuscritos, na medida em que a viagem o permitia, na segunda
iam dois secretários a dormir e na da frente Athanasius Kircher,
Adam Olearius e o seu companheiro de viagens de muitos anos, o
mestre Fleming, mantinham uma conversa que outro secretário
seguia atentamente, com pena e papel sobre os joelhos, a fim de
registar tudo por escrito.
— Mas o que faremos se o encontrarmos? — perguntou
Olearius.
— Ao dragão? — perguntou Kircher.
Esquecendo, por instantes, a admiração que este lhe inspirava,
Olearius pensou: já não o aguento mais.
— Sim — confirmou. — Ao dragão.
Em vez de responder, Kircher virou-se para o mestre Fleming.
— Se bem percebi, sois músico.
— Sou médico. Mas, sobretudo, escrevo poemas. E estudei
música em Leipzig.
— Poemas em latim ou em francês?
— Em alemão.
— E por que motivo?
— O que faremos se o encontrarmos? — repetiu Olearius.
— Ao dragão? — perguntou Kircher, o que fez Olearius sentir
vontade de lhe dar uma bofetada.
— Sim — disse Olearius. — Ao dragão!
— Acalmamo-lo com música. Pressuponho que os cavalheiros
estudaram a minha obra Musurgia universalis.
— Musica? — perguntou Olearius.
— Musurgia.
— Porque não Musica?
Kircher lançou a Olearius um olhar reprovador.
— Claro que sim — respondeu Fleming. — Tudo o que sei sobre
harmonia, aprendi-o com a vossa obra.
— É frequente ouvir dizer isso. Quase todos os músicos o dizem.
É uma obra importante. Não é a mais importante que escrevi, mas
sem dúvida é importante. Vários príncipes querem mandar construir
órgãos hidráulicos como o que concebi. E em Braunschweig
tencionam construir o meu piano de gatos. Isso intriga-me um
pouco, pois tratava-se acima de tudo de uma obra de imaginação, e
duvido que os resultados sejam agradáveis ao ouvido.
— O que é um piano de gatos? — perguntou Olearius.
— Então não o lestes?
— É a minha memória. Já não sou um jovem. Desde aquela
nossa viagem fatigante, deixou de me obedecer.
— A quem o dizes! — intervém Fleming. — Ainda te lembras de
como foi quando os lobos nos cercaram em Riga?
— Um piano que produz som através do sofrimento de animais
— explicou Kircher. — Bate-se numa tecla e, em vez de fazer vibrar
uma corda, provoca-se uma dor bem doseada num pequeno animal,
sugiro gatos, mas também funcionaria com arganazes, cães seriam
demasiado grandes, grilos demasiado pequenos, e desse modo o
animal emite um som. Ao soltar a tecla, a dor cessa e o animal cala-
se. Ordenando os animais segundo a altura da sua voz, produzir-se-
ia a música mais invulgar.
Durante uns momentos reinou o silêncio. Olearius olhava para o
rosto de Kircher e Fleming mordia o lábio inferior.
— Porque escreveis os vossos poemas em alemão? —
perguntou Kircher por fim.
— Sei que parece singular — respondeu Fleming, que já estava
à espera da pergunta. — Mas é possível fazê-lo. A nossa língua
está a nascer. Aqui estamos nós, três homens do mesmo país, a
falar latim. Porquê? O alemão ainda pode ser uma língua inábil, um
caldo em ebulição, uma criatura ainda a formar-se, mas um dia
atingirá a maturidade.
— Voltando ao dragão — disse Olearius, a fim de mudar de
assunto.
Já tinha vivido aquilo muitas vezes: quando Fleming abordava o
seu tema favorito, durante muito tempo mais ninguém conseguia
falar. E, por fim, como sempre, acabaria a declamar poemas com o
rosto afogueado. Não eram maus, os seus poemas, tinham melodia
e intensidade. Mas quem queria ouvir poemas sem aviso prévio, e
ainda por cima em alemão?
— A nossa língua ainda é uma confusão de dialetos — disse
Fleming. — Se não sabemos como continuar uma frase, vamos
buscar a palavra apropriada ao latim, ao italiano, ou mesmo ao
francês e, de algum modo, formamos a frase à maneira latina. Mas
isto há de mudar! Temos de alimentar e de cuidar de uma língua, de
a ajudar a florescer! E ajudá-la consiste precisamente em compor
poesia. — As faces de Fleming estavam coradas, o seu bigode
ligeiramente eriçado e os olhos fixos. — Quem começa uma frase
em alemão deve esforçar-se por terminá-la em alemão!
— Não é contrário à vontade de Deus infligir dor a animais? —
perguntou Olearius.
— Porquê? — Kircher franziu a testa. — Não há diferença entre
os animais do Senhor e os objetos do Senhor. Os animais são
máquinas construídas na perfeição, que se compõem de outras
máquinas ainda mais perfeitas. Qual é a diferença entre produzir um
som a partir de uma coluna de água ou de um gatinho? Não deveis
querer dizer que os animais têm uma alma imortal, pois nesse caso
o Paraíso estaria a deitar por fora. Uma pessoa não poderia virar-se
sem pisar uma minhoca!
— Eu fui menino de coro em Leipzig — disse Fleming. — Todos
os dias, às cinco da manhã, tínhamos de cantar na Igreja de São
Tomás. Cada voz tinha de seguir o seu próprio punctus melódico, e
quem desafinava apanhava vergastadas. Era difícil, mas, certa
manhã, ainda me lembro, compreendi pela primeira vez o que é a
música. E quando mais tarde estudei a arte do contraponto,
compreendi o que é a linguagem. E como com ela se escreve
poesia. Gehen e sehen, Schmerz e Menschenherz. A rima alemã é
uma pergunta e uma resposta. Pein, Sein e Schein. A rima não é um
acaso fonético. Ela surge onde as ideias se harmonizam.
— É bom que sejais entendido em música — disse Kircher. —
Tenho comigo partituras para melodias que permitem arrefecer o
sangue dos dragões e acalmar-lhes o espírito. Sabeis tocar trompa?
— Não muito bem.
— E violino?
— Razoavelmente. Onde haveis obtido essas melodias?
— Compu-las em conformidade com os critérios científicos mais
rigorosos. Não vos inquieteis, não será necessário que toqueis
violino para o dragão, arranjaremos músicos para isso. Por uma
questão de estatuto social, não seria apropriado ser um de nós a
tocar os instrumentos.
Olearius fechou os olhos. Por instantes, viu em pensamento um
sáurio erguer-se do campo, com a cabeça da altura de uma torre
recortada contra o céu. Tu também poderias acabar assim, pensou,
depois de todos os perigos a que sobreviveste.
— Com todo o respeito pelo vosso entusiasmo, meu jovem —
disse Kircher —, a língua alemã não tem futuro. Em primeiro lugar,
porque é feia, pesada e pouco límpida, um idioma para gente
inculta, que não se lava. Em segundo lugar, já não há tempo para
um processo tão lento de crescimento e evolução. Dentro de setenta
e seis anos terminará a Idade do Ferro, o mundo será devorado pelo
fogo e Nosso Senhor regressará em toda a sua glória. Não é preciso
ser-se um grande astrólogo para prever isto. A simples matemática
é suficiente.
— E de que tipo de dragão se trata exatamente? — perguntou
Olearius.
— Provavelmente do lendário dragão com cabeça de gato. A
minha experiência de dracontologia está muito aquém da do meu
falecido mentor Tesimond, mas numa jornada que fiz a Hamburgo
diversas nuvenzinhas em forma de espiral deram-me a indicação
necessária. Já haveis estado em Hamburgo? É extraordinário como
a cidade não foi destruída.
— Nuvens? — perguntou Fleming. — Como pode um dragão
estar na origem…
— Não é origem, é uma analogia! Tal como é em cima, assim é
em baixo. As nuvens assemelham-se a moscas e o dragão com
cabeça de gato assemelha-se a uma minhoca. Moscas e minhocas
são insetos! Estais a ver?
Olearius apoiou a cabeça nas mãos. Não se sentia bem. Na
Rússia, passara milhares de horas em carruagens, mas isso fora já
há algum tempo, e já não era jovem. Claro que a sua indisposição
também podia ter a ver com Kircher, que se lhe tinha tornado
insuportável de um modo que não conseguia descrever.
— E se acalmarmos o dragão? — perguntou Fleming. — O que
faremos se o encontrarmos e o capturarmos?
— Tirar-lhe-emos sangue. Tanto quanto couber nos nossos
odres. Levá-lo-ei para Roma e, com a ajuda do meu assistente,
transformá-lo-ei num remédio contra a Peste Negra, que depois será
ministrado ao Papa, ao imperador, aos príncipes católicos… —
hesitou —, e talvez aos protestantes que o merecerem. A quem
exatamente, isso será preciso negociar. Talvez assim possamos pôr
fim à guerra. Seria justo se fosse precisamente eu, com a ajuda de
Deus, a pôr termo a esta chacina. Mencionar-vos-ia a ambos no
meu livro, como se impõe. Para ser exato, já o fiz.
— Já nos haveis mencionado?
— Para poupar tempo, já redigi o capítulo em Roma. Tende-lo
aqui, Guglielmo?
O secretário baixou-se e, entre gemidos, rebuscou debaixo do
banco onde estava sentado.
— No que diz respeito aos músicos — disse Olearius —, a minha
proposta seria que os procurássemos no circo ambulante que se
encontra no brejo de Holstein. Falam muito dele, as pessoas vêm de
longe para o ver. Aí deve haver músicos.
Com o rosto vermelho, o secretário endireitou-se e fez aparecer
um maço de papéis. Folheou-o durante uns momentos, assoou-se a
um lenço já não muito limpo, com o qual a seguir enxugou o suor,
pediu desculpa em voz baixa e começou a ler. O seu latim tinha uma
forte entoação italiana, e ele ia marcando o compasso com a pena
de uma forma um tanto afetada: «Depois empreendi a busca em
companhia de sábios alemães de nomeada. As circunstâncias eram
desfavoráveis, o tempo agreste, a guerra afastara-se da região,
embora ainda continuasse a enviar uma ou outra rajada de
adversidade, de modo que tínhamos de estar preparados para os
saqueadores, assim como para os bandos de salteadores e para os
animais corrompidos. Contudo, sem permitir que tudo isto me
desanimasse, encomendei a alma ao Todo-Poderoso, que sempre
tinha protegido este seu humilde servo, e em breve encontrei o
dragão, que se deixou facilmente acalmar e vencer por meio das
hábeis medidas adotadas. O seu sangue quente serviu-me de base
para novos empreendimentos, que descrevo em outras passagens
desta obra, e a mais terrível epidemia, que durante tanto tempo
afligira a cristandade, pôde ser finalmente afastada dos grandes,
dos poderosos e das pessoas de mérito, de maneira que no futuro
só atormentaria a gente simples. E então quando eu…»
— Obrigado, Guglielmo, basta. É evidente que, depois das
palavras «sábios alemães de nomeada», inseri os vossos nomes.
Não tendes de me agradecer. Insisto. Era o mínimo que podia fazer.
E talvez, pensou Olearius, fosse essa a imortalidade que lhe
estava destinada: uma menção no livro de Athanasius Kircher. O
seu próprio relato da viagem havia de desaparecer tão depressa
como os poemas que o pobre Fleming de quando em quando
mandava imprimir. O tempo voraz apagava quase tudo, mas contra
o que ali estava seria impotente. De uma coisa não restava dúvida:
enquanto o mundo existisse, Athanasius Kircher teria leitores.

Na manhã seguinte, encontraram o circo. O proprietário da


estalagem onde haviam pernoitado indicara-lhes que se dirigissem
para oeste; se seguissem sempre pela vereda que atravessava os
campos, dissera ele, não havia que enganar. E como ali não havia
colinas e todas as árvores tinham sido cortadas, não tardaram a
avistar à distância um mastro de bandeira, no qual esvoaçava um
pedaço de tecido colorido.
Dentro em pouco reconheceram as tendas e um semicírculo de
bancos de madeira para os espectadores, sobre os quais se via a
linha fina de uma corda esticada entre dois postes. Devia ter sido a
própria gente do circo a trazer toda a madeira. Entre as tendas
encontravam-se carroças cobertas, cavalos e burros a pastar,
algumas crianças a brincar, um homem a dormir numa rede. Uma
velha lavava roupa numa selha.
Kircher piscou os olhos. Não se sentia bem. Perguntou-se se
isso se deveria ao sacolejar da carruagem ou àqueles dois alemães.
Eram antipáticos, excessivamente sérios, limitados e cabeças-
duras; além disso, era difícil ignorá-los, pois cheiravam mal. Há
muito que não ia ao império germânico e quase se tinha esquecido
das dores de cabeça provocadas por se encontrar entre alemães.
Era evidente que ambos o subestimavam. Estava habituado a
isso. Já em criança havia sido subestimado, primeiro pelos pais,
depois pelo professor na escola da aldeia, até o padre lhe ter
aconselhado os jesuítas. Estes tinham-no mandado estudar, mas
então havia sido subestimado pelos colegas, que só viam nele um
jovem diligente. Nenhum se tinha apercebido de que valia muito
mais do que isso, só o seu mentor Tesimond reconhecera qualquer
coisa nele e tinha-o tirado daquela massa de monges de
pensamento lento. Tinham viajado os dois pelo país, ele aprendera
muito com Tesimond, mas também este o havia subestimado, não
confiando nele para lhe permitir uma existência como assistente, de
modo que se vira forçado a afastar-se, passo a passo e com
extrema prudência, pois não se devia inflamar o ânimo de uma
pessoa como o seu mentor. Fora obrigado a fazer como se os livros
que escrevia não passassem de um capricho inocente, mas,
secretamente, fora-os enviando, acompanhados por cartas
dedicatórias, às personalidades importantes do Vaticano.
Efetivamente, Tesimond não recuperara da ferida provocada pelo
facto de o seu secretário ter sido de súbito chamado a Roma;
adoecera e recusara dar-lhe a bênção quando se despediram. Era
como se Kircher ainda o visse à sua frente: o quarto em Viena e
Tesimond bem enrolado na manta. Aquele velho destroço
murmurara e fizera qualquer gesto como se não entendesse Kircher,
pelo que este tivera de partir sem a sua bênção para Roma, onde os
colaboradores da grande biblioteca o receberam de braços abertos,
para igualmente o subestimarem logo de seguida. Tinham pensado
que ele seria bom para preservar livros, cuidar de livros e estudar
livros, mas não haviam percebido que ele escrevia mais depressa
um livro do que outras pessoas levavam a lê-lo, e vira-se forçado a
provar que assim era, vezes sem conta, até finalmente o Papa o ter
nomeado para ocupar a cátedra mais importante da sua
universidade e lhe ter concedido todos os poderes especiais
possíveis.
Seria sempre assim. A desorientação da juventude ficara para
trás, já não perdia a noção do tempo. Mas as pessoas não
percebiam que força havia nele, nem a sua determinação e boa
memória. Mesmo agora, que era célebre em todos os países do
Senhor e que ninguém podia estudar nenhuma ciência sem
conhecer a obra de Athanasius Kircher, não conseguia deixar Roma
sem que acontecesse o mesmo: mal encontrava compatriotas, estes
avaliavam-no com o mesmo olhar depreciativo. Que erro ter
empreendido aquela viagem! Uma pessoa não devia sair do mesmo
sítio, devia trabalhar, fazer apelo a todas as suas forças e
desaparecer atrás dos livros. Devia ser uma autoridade sem corpo,
uma voz que o mundo ouvisse, sem se perguntar como era o corpo
de que provinha.
Cedera de novo a uma fraqueza. Na realidade, não era tanto a
peste que lhe importava; acima de tudo, precisava de um motivo
para procurar o dragão. Estes são os seres mais antigos e mais
inteligentes, dissera Tesimond, e quando te encontras diante de um
deles, tornas-te outra pessoa, depois de ouvires a sua voz, nada
volta a ser como antes. Kircher descobrira muitas coisas no mundo,
mas ainda lhe faltava encontrar um dragão, sem um dragão a sua
obra não estava completa, e, caso a situação se tornasse realmente
perigosa, podia sempre utilizar a derradeira e mais potente proteção
— aquele sortilégio a que só se podia recorrer uma vez na vida: em
caso de perigo extremo, sublinhara Tesimond, se o dragão se erguer
diante de ti e nada mais resultar, podes usá-lo uma vez, apenas
uma vez, uma única vez, repara bem, uma única vez. Só então
imaginas o mais potente dos quadrados mágicos.

SATOR
AREPO
TENET
OPERA
ROTAS

Este é o mais antigo de todos, o mais secreto, o que encerra


mais força. Tens de o ver diante de ti, fecha os olhos, vê-o
nitidamente e fala com os lábios cerrados, sem voz, sílaba a sílaba,
e depois di-lo em voz alta, com tanta clareza que o dragão te oiça,
dizes uma verdade que nunca disseste, nem ao teu amigo mais
chegado, nem sequer na confissão. O mais importante é nunca ter
sido proferida. Então levantar-se-á uma neblina, e poderás fugir.
Uma debilidade tomará os membros do monstro, um esquecimento
apático dominará o seu entendimento, e tu poderás escapar-te
antes que ele te possa apanhar. Quando voltar a si, não se
recordará de ti. Mas não te esqueças que só podes fazer isto uma
vez!
Kircher contemplou as pontas dos dedos. Se a música não
acalmasse o dragão, estava decidido a recorrer a este último
expediente e a fugir numa das carruagens. Provavelmente o dragão
comeria os secretários, o que era uma pena, em especial Guglielmo,
que era muito inteligente, e também os dois alemães. Mas ele
próprio escaparia, graças à ciência, nada tinha a recear.
Aquela seria a sua última viagem. Não estava disposto a fazer
outra, não se sentia capaz de voltar a enfrentar uma canseira
semelhante. Enjoou constantemente durante o percurso, a comida
era horrorosa, estava sempre frio, e não se devia menosprezar os
perigos: é certo que a guerra se deslocara para sul, mas isso não
queria dizer que ali, a norte, as coisas fossem agradáveis. Como
tudo estava devastado, e como era degradante a situação das
pessoas! Sem dúvida que em Hamburgo encontrara alguns livros
que há muito procurava — o Organicon de Hartmut Elias Warnick,
uma edição de Melusina mineralia de Gottfried von Rosenstein e
algumas folhas manuscritas possivelmente de Simon de Turim —,
mas nem isso era um consolo para a circunstância de já há
semanas ter tido de renunciar ao seu laboratório, onde tudo era
previsível, enquanto nos outros sítios reinava o caos.
Por que motivo a criação de Deus se mostrava sempre tão
rebelde, de onde viria essa tendência obstinada para a confusão e o
enleio? O que era claro para o espírito, revelava ser um
emaranhado. Depressa Kircher compreendera que devia seguir a
razão sem permitir que os caprichos da realidade criassem
incertezas. Se soubesse como levar a bom termo uma experiência,
então tinha de proceder dessa maneira, e se tivesse uma ideia
nítida das coisas, para a descrever era necessário respeitar essa
ideia e não a sua aparência.
Só por ter aprendido a ter confiança plena no espírito divino,
Kircher fora capaz de concluir a sua obra mais importante, a
decifração dos hieróglifos. Conseguira resolver o enigma graças à
antiga tábua com símbolos comprada em tempos pelo cardeal
Bembo: mergulhara tão fundo na pequena imagem que a havia
compreendido. A combinação de um lobo e de uma serpente tinha
de significar perigo, mas se houvesse por baixo uma linha ondulada
com pontinhos, Deus intervinha a proteger os que o mereciam, e
esses três símbolos juntos significavam misericórdia. Kircher caíra
de joelhos e agradecera ao Céu semelhante inspiração. A oval
virada para a esquerda representava o julgamento, e se fosse
acompanhada por um Sol, seria o Dia do Juízo, mas se fosse uma
Lua, isso significaria o tormento do homem que reza à noite e, por
conseguinte, a alma do pecador e, por vezes, também o Inferno. O
homenzinho tinha de representar o homem, mas se este tivesse
consigo um bastão, seria o homem que trabalhava ou o trabalho, e
os símbolos que se seguiam indicavam em que trabalhava: se
fossem pontos, seria um semeador, se fossem traços, um barqueiro,
e se fossem círculos, um sacerdote; e, uma vez que os sacerdotes
também escreviam, podia muito bem também ser um escriba,
consoante se encontrasse no princípio ou no fim da linha, pois o
sacerdote estava sempre no início e o escriba aparecia depois dos
acontecimentos que ele introduzia na obra. Kircher passara
semanas em êxtase, e em breve já não necessitava da tábua com
os símbolos; escrevia em hieróglifos, como se sempre o tivesse
feito. À noite não conseguia dormir, porque sonhava com símbolos,
e os seus pensamentos compunham-se de traços, pontos, ângulos
e ondas. Era o que se passava quando se sentia a misericórdia
divina. O seu livro, que dentro em pouco seria dado à estampa com
o título de Oedipus aegyptianus, foi a sua obra mas importante:
durante milhares de anos a humanidade quedara-se perplexa
perante aquele mistério, que ninguém soubera decifrar. Agora
estava resolvido.
A única contrariedade era as pessoas serem tão obtusas.
Recebia cartas de outros confrades do Oriente, que o informavam
da existência de sequências de símbolos cuja ordem não coincidia
com a que ele descrevera, e tinha de lhes responder que não era
importante o que um palerma qualquer há dezenas de milhares de
anos escrevinhara na pedra, qualquer pequeno escriba, que de
certeza tinha menos conhecimentos do que uma autoridade como
ele na matéria. Para quê ocupar-se dos seus erros? Aquele escriba
de segunda ordem recebera alguma carta de agradecimento de
César? Mas ele, Kircher, podia apresentar uma. Enviara ao
imperador um cântico laudatório em hieróglifos e andava sempre
com a carta de agradecimento que recebera de Viena, dobrada e
cosida no interior de uma bolsa de seda. Num movimento
involuntário, levou a mão ao peito e, ao aperceber-se do
pergaminho através do gibão, sentiu-se um pouco melhor.
As carruagens tinham parado.
— Não vos sentis bem? — perguntou Olearius. — Estais pálido.
— Sinto-me maravilhosamente — respondeu Kircher irritado.
Abriu a porta com brusquidão e apeou-se. O suor dos cavalos
produzia vapor. O prado também estava húmido. Kircher piscou os
olhos e apoiou-se à carruagem, com a cabeça à roda.
— Grandes homens — disse uma voz. — Aqui, entre nós!
Mais além, junto das tendas, havia pessoas, um pouco mais
perto estava a velha a lavar na selha, mas mesmo junto deles
encontrava-se apenas um burro. O animal ergueu os olhos, voltou a
baixar a cabeça e arrancou uns talos de erva.
— Também haveis ouvido? — perguntou Fleming.
Olearius, que se havia apeado atrás dele, fez que sim com a
cabeça.
— Sou eu — disse o burro.
— Há uma explicação para isto — disse Kircher.
— E qual é? — perguntou o burro.
— A arte do ventriloquismo — respondeu Kircher.
— Exatamente — disse o burro. — Sou o Orígenes.
— Onde está escondido o ventríloquo? — perguntou Olearius.
— Está a dormir — respondeu o burro.
Atrás deles, Fleming e o secretário também se tinham apeado,
seguidos pelos outros secretários.
— Isso não é mau — disse Fleming.
— É raro ele dormir — explicou o burro. — Mas agora está a
sonhar convosco.
A voz dele tinha um timbre profundo e tão extraordinário como se
não proviesse de uma garganta humana.
— Desejam ver a nossa atuação? Depois de amanhã vai haver
um espetáculo. Temos um comedor de fogo, um homem que anda
apoiado nas mãos e um engolidor de moedas, que sou eu. Deem-
me moedas, que eu engulo-as. Querem ver? Engulo-as todas.
Temos uma bailarina, uma atriz principal e uma donzela, que é
enterrada, fica uma hora debaixo de terra e, quando é desenterrada,
está fresca e não sufocada. E já vos disse que temos uma bailarina?
A atriz, a bailarina e a donzela são a mesma pessoa. E temos o
melhor funâmbulo do mundo, que é o nosso ator principal. Mas
neste momento está a dormir. Também temos um aleijado, quando
se olha para ele, fica-se logo com outra disposição. Mal se sabe
onde está a sua cabeça, e ele próprio não encontra os braços.
— E têm um ventríloquo — disse Olearius.
— És um espertalhão — disse o burro.
— Têm músicos? — perguntou Kircher, consciente do facto de
estar a conversar com um burro perante testemunhas poder
prejudicar a sua fama.
— Claro que temos — respondeu o burro. — Meia dúzia deles.
Os atores principais dançam, esse é o ponto alto do espetáculo, a
apoteose da nossa representação. Como poderiam fazê-lo sem
músicos?
— Basta — disse Kircher. — Agora o ventríloquo tem de
aparecer!
— Estou aqui — disse o burro.
Kircher fechou os olhos, expirou lentamente e voltou a inspirar.
Toda aquela viagem tinha sido um erro, pensou, aquela visita ali,
tudo aquilo fora um erro. Pensou na tranquilidade do seu gabinete,
na sua mesa de trabalho, de pedra, nos livros nas prateleiras, na
maçã descascada que o seu ajudante lhe levava todos os dias, ao
bater das três da tarde, no vinho tinto no seu copo preferido, de
cristal veneziano. Esfregou os olhos e deu meia-volta.
— Precisas de um cirurgião barbeiro? — perguntou o burro. —
Também vendemos medicamentos. Estou só a informar.
Não passa de um burro, pensou Kircher. Mas cerrou os punhos
de raiva. Até os animais alemães zombavam dele!
— Resolvei o assunto — disse a Olearius. — Falai com essa
gente.
Olearius olhou-o surpreendido.
Nesse momento, sem lhe dar mais atenção, Kircher já
regressava à carruagem por cima de um monte de esterco de burro.
Fechou a porta e correu as cortinas. Ouvia lá fora Olearius e
Fleming a falar com o burro. Por certo estavam todos a rir dele, mas
isso não o interessava. Não queria saber. A fim de acalmar o ânimo,
procurou pensar nos hieróglifos egípcios.

Quando Olearius e Fleming se aproximaram dela, a velha junto


da selha olhou para eles, após o que introduziu dois dedos na boca
e soltou um assobio. Imediatamente três homens e uma mulher
saíram de uma das tendas. Os homens eram invulgarmente
robustos, a mulher tinha cabelo castanho e já não era muito nova,
mas tinha os olhos límpidos e cheios de força.
— Temos cavalheiros importantes a visitar-nos — explicou a
mulher. — Não é frequente termos esta honra. Desejais ver a nossa
representação?
Olearius tentou responder, mas a voz não lhe obedeceu.
— O meu irmão é o melhor funâmbulo do mundo, foi bobo da
corte do Rei do Inverno. Quereis vê-lo?
A voz de Olearius continuava a recusar fazer-se ouvir.
— Não falais?
Olearius pigarreou. Sabia que estava a cair no ridículo, mas nada
podia fazer e não conseguia falar.
— Claro que o queremos ver — disse Fleming.
— Olhem, os nossos acrobatas — disse a mulher. — Mostrem
qualquer coisa a estes ilustres cavalheiros!
Imediatamente um dos três deixou-se cair para a frente e fez o
pino. O segundo trepou por ele a uma velocidade inumana e fez o
pino sobre os seus pés, após o que o terceiro trepou pelos dois e
ficou de pé sobre o segundo, com os braços esticados para o céu.
Então, num ápice, a mulher também trepou, e o terceiro puxou-a até
ela ficar de pé sobre a sua cabeça. Olearius olhava fixamente para
cima, vendo-a como que suspensa lá no alto.
— Quereis ver mais? — gritou ela para baixo.
— De bom grado veríamos — respondeu Fleming —, mas não
foi isso que nos trouxe aqui. Precisamos de músicos, pagamos bem.
— O ilustre cavalheiro que vos acompanha é mudo?
— Não — respondeu Olearius —, duas vezes não. Não sou
mudo, quero eu dizer.
Ela riu.
— Sou a Nele!
— E eu sou o mestre Fleming.
— Olearius — apresentou-se Olearius. — Matemático da corte
em Gottorf.
— Queres voltar a descer? — gritou Fleming. — Falar assim é
difícil!
Como que obedecendo a uma ordem, a torre humana desfez-se.
O homem do meio deu um salto, o homem de cima deu uma
reviravolta no ar, o homem de baixo deu uma cambalhota, a mulher
pareceu que ia cair, mas, sabe-se lá como, recuperou o equilíbrio no
ar, e ficaram todos de pé, na vertical. Fleming bateu palmas e
Olearius continuou a olhar fixamente.
— Não precisais de aplaudir — disse Nele —, isto não foi uma
atuação. Se o fosse, teríeis de pagar.
— Mas gostaríamos de pagar — disse Olearius. — Aos músicos.
— Isso tereis de lhes perguntar a eles. Todos os que estão
connosco são livres. Se quiserem ir convosco, podem ir. Se
quiserem continuar connosco, podem fazê-lo. No circo de
Ulenspiegel só está quem aí quer estar, pois não há melhor circo do
que este. Mesmo o aleijado está aqui de livre vontade, pois em
nenhum outro sítio estaria tão bem.
— Tyll Ulenspiegel está aqui? — perguntou Fleming.
— Por causa dele vêm pessoas de toda a parte — informou um
dos acrobatas. — Eu não me iria embora. Mas perguntai aos
músicos.
— Temos um flautista, um trombeteiro, um tamborileiro e um
homem que toca dois violinos ao mesmo tempo. Perguntai-lhes e,
se quiserem ir, separamo-nos como amigos e procuramos outros
músicos, não será difícil, todos querem colaborar no circo de
Ulenspiegel.
— Tyll Ulenspiegel? — perguntou Fleming de novo.
— Nem mais.
— E tu és irmã dele?
Nele abanou a cabeça.
— Mas disseste…
— Eu sei o que disse, ilustre senhor. Ele é meu irmão, mas eu
não sou sua irmã.
— Como é isso? — perguntou Olearius.
— Estais admirado, ilustre senhor!
Olhou-o no rosto, com os olhos brilhantes e o vento a brincar-lhe
nos cabelos. Olearius tinha a garganta seca e sentia os membros
tão fracos como se tivesse contraído uma doença.
— Não estais a perceber, não é verdade? — E, dando uma
cotovelada no peito de um dos acrobatas, perguntou-lhe: — Vais
buscar os músicos?
O homem fez um sinal de assentimento, atirou-se para a frente e
avançou apoiado nas mãos.
— Uma pergunta. — Fleming fez um sinal indicando o burro, que
pastava calmamente e, de quando em quando, erguia a cabeça
para os fitar com os seus olhos baços. — Quanto ao burro, quem…
— Ventriloquismo.
— Mas onde se esconde o ventríloquo?
— Perguntai ao burro — disse a velha.
— Quem és tu? — perguntou Fleming. — És a mãe dele?
— Deus me livre! — exclamou a velha. — Sou apenas a velha.
Não sou mãe nem filha de ninguém.
— Filha de alguém terás de ser.
— E se todos de quem era filha já estiverem debaixo de terra, de
quem sou filha? Sou a Else Kornfass, de Stangenriet. Sentava-me à
porta da minha casa, cavava o meu jardim e não pensava em nada,
quando apareceram Ulenspiegel, ela, esta Nele, e o Orígenes com o
carro, e eu gritei-lhe, Deus te salve, Tyll, porque o reconheci, todos o
conhecem, e, de repente, ele puxou as rédeas para parar o carro e
respondeu: deixa lá Deus em paz, não preciso disso para nada, e
vem daí. Não sabia o que ele queria e respondi-lhe: com as velhas
não se brinca, em primeiro lugar são pobres e fracas e, em segundo
lugar, podem lançar-te um feitiço que te faz adoecer. Mas ele
retorquiu: este sítio não foi feito para ti. És uma das nossas. E eu:
isso seria verdade em tempos, mas agora estou velha! E ele a
seguir: velhos somos nós todos. E eu: mas eu já estou com os pés
para a cova. E ele: estamos todos. E eu: se eu cair para o lado pelo
caminho, que farão vocês? E então ele: deixamos-te ali caída, pois
não tenho amigos mortos. A isso já não soube o que responder,
ilustre cavalheiro, e para aqui estou.
— Come-nos couro e cabelo — disse Nele. — Trabalha pouco,
dorme muito e está sempre a opinar.
— Tudo isso é verdade — ripostou a velha.
— Mas decora tudo — prosseguiu Nele. — Recita baladas
longuíssimas, sem nunca esquecer uma linha.
— Baladas alemãs? — perguntou Fleming.
— Claro — respondeu a velha. — Nunca aprendi espanhol.
— Vamos lá ouvir — disse Fleming.
— Se pagardes, podereis ouvir.
Fleming remexeu na algibeira. Por um momento Olearius pensou
ter visto alguém lá em cima; ergueu os olhos para a corda, mas esta
oscilava suavemente ao vento. O acrobata voltou, seguido por três
homens com instrumentos.
— Isto vai custar-vos bom dinheiro — disse o primeiro.
— Vamos convosco — disse o segundo —, mas queremos
dinheiro.
— Dinheiro e ouro — acrescentou o primeiro.
— E muito — disse o terceiro.
— O que desejais ouvir?
E, sem que Olearius lhes tivesse dado uma ordem, colocaram-se
em posição e começaram a tocar. Um dedilhava o alaúde, outro
soprava a gaita de foles, o terceiro agitava as baquetas do tambor e
Nele, atirando o cabelo para trás, começou a dançar, enquanto a
velha recitava uma balada ao ritmo da música. Não cantava, mas
falava com entoação e o seu ritmo fundia-se com o da melodia. A
história era sobre dois amantes que não podiam reunir-se porque o
mar os separava, e Fleming sentou-se na erva junto da velha, para
não perder uma palavra.

Na carruagem, Kircher, a segurar a cabeça com as mãos,


perguntava-se quando iria parar aquele barulho atroz. Escrevera a
obra mais importante sobre música e, precisamente por esse
motivo, tinha um ouvido demasiado apurado para que aquela
chinfrineira popular lhe agradasse. De súbito, a carruagem pareceu-
lhe demasiado estreita, os bancos duros e aquela música vulgar
anunciava uma alegria em que o mundo inteiro, à exceção dele,
participava.
Suspirou. Finos raios de sol frios penetravam pelas frestas das
cortinas. Por instantes, pareceu-lhe que o que via era um produto
monstruoso da sua dor de cabeça e dos seus olhos doridos, e só
depois compreendeu que não estava enganado. Havia alguém
sentado à sua frente.
Seria chegado o momento? Sempre soubera que um dia lhe
apareceria Satanás em pessoa, mas, curiosamente, faltavam os
sinais. Não cheirava a enxofre, o indivíduo tinha dois pés humanos e
a cruz que Kircher usava ao pescoço não ficara quente. Quem ali
estava sentado, embora Kircher não compreendesse como
conseguira entrar tão silenciosamente, era um ser humano. Era
magríssimo e tinha os olhos muito enterrados nas órbitas. Vestia um
gibão com gola de pele e pousara no banco os pés, calçados com
sapatos pontiagudos, o que era um descaramento grosseiro. Kircher
virou-se para a porta.
O homem inclinou-se para a frente, pousou-lhe a mão no ombro
num gesto quase terno e com a outra fechou a tranca.
— Gostaria de fazer uma pergunta — disse o desconhecido.
— Não tenho dinheiro — respondeu Kircher. — Pelo menos aqui
na carruagem. Quem o tem é um dos secretários que se encontram
lá fora.
— Fico contente por estares aqui. Esperei tanto tempo que
pensei que nunca chegaria a oportunidade, mas tu tens de saber:
todas as oportunidades chegam, é isso que é fantástico, chegam
todas em qualquer altura. E, quando te vi, pensei: finalmente vou
ficar a saber. Dizem que és capaz de curar, e eu também sou,
sabes? A casa da morte em Mainz. Cheia de doentes com peste,
um antro de tosse, de gemidos, de lamentos, e eu disse: tenho um
pó para vos vender que vos porá de boa saúde, e aqueles pobres
desgraçados, cheios de esperança, exclamaram: dá-nos esse pó!
Primeiro tenho de o preparar, respondi eu, e eles gritaram: faz o pó,
fá-lo, faz o teu pó! E eu respondi: não é assim tão fácil, falta-me um
ingrediente e, para o conseguir, tem de morrer alguém. Fez-se
silêncio. Eles ficaram atónitos. Ninguém proferiu palavra. E eu
exclamei: lamento, mas tenho de matar um, do nada, nada resulta.
Também sou alquimista, sabes? Tal como tu, conheço as forças
ocultas e os espíritos que curam também me obedecem.
Começou a rir. Kircher olhou-o fixamente e, em seguida,
estendeu a mão para a porta.
— Não faças isso — disse o homem com uma voz que levou
Kircher a retirar imediatamente a mão. — Como disse, um tem de
morrer, e não sou eu a decidir quem será, tereis de ser vós a
resolver. E eles perguntaram: como iremos fazer? E eu respondi: o
que estiver mais doente, o que fizer menos falta. Além disso, vejam
quem ainda consegue correr, peguem nas muletas, deitem a correr,
e eu encarregar-me-ei do último que ficar aqui. E, num abrir e fechar
de olhos, a casa ficou vazia. Ficaram lá dentro três mortos e
nenhum vivo. Vejam, disse eu, podem andar, já não estão
moribundos, eu curei-vos. Já não me reconheces, Athanasius?
Kircher olhou-o fixamente.
— Foi há muito tempo — prosseguiu o homem. — Há muitos
anos, muito vento na cara, muita geada, o sol a queimar, a fome
também a queimar, uma pessoa muda. Embora tu, com as tuas
faces coradas, estejas igual.
— Sei quem tu és — respondeu Kircher.
Ouviam a música, vinda do exterior. Kircher perguntou-se se
devia pedir auxílio, mas as portas estavam trancadas. Ainda que o
ouvissem, o que era improvável, primeiro teriam de arrombar a porta
e, nessa altura, era melhor nem pensar no que o indivíduo lhe faria.
— O que o livro contém. Muito gostaria de saber. Ele teria dado a
vida por isso. E foi o que aconteceu. Mas nunca chegou a saber.
Mas agora eu poderia descobrir. Sempre pensei, talvez volte a ver o
jovem doutor, talvez ainda venha a saber, e aqui estás. Então? O
que continha esse livro em latim?
Kircher começou a rezar em silêncio.
— Não tinha capa, mas tinha imagens. Numa delas via-se um
grilo, noutra um animal que não existe, com duas cabeças e asas,
ou talvez exista, que sei eu? Noutra via-se um homem numa igreja,
mas sem telhado, tinha colunas por cima, ainda me lembro, e por
cima das colunas havia outras colunas. Claus mostrou-ma e disse:
olha, isto é o mundo. Eu não percebi, e creio que ele também não.
Mas se ele não chegou a sabê-lo, pelo menos eu quero saber. Mas
tu, que examinaste as coisas dele e também percebes latim, diz-me
lá: que género de livro era, quem o escreveu e como se chama?
Kircher tinha as mãos a tremer. Recordava nitidamente o rapaz
de outrora, e também o moleiro, cujos últimos gritos roucos na forca
nunca haveria de esquecer, e, com igual clareza e nitidez, recordava
a confissão da moleira lavada em lágrimas. Mas, durante a sua vida,
tivera tantos livros entre as mãos, ao folheá-los passara tantas
páginas e vira tantas palavras impressas, que já nem conseguia
distingui-las. Sem dúvida que se tratava de um livro que o moleiro
possuía. Mas isso não ajudava, a sua memória falhava.
— Lembras-te do interrogatório? — perguntou o homem magro
numa voz suave. — O homem mais velho, o padre, sempre afirmou:
não tenhas medo, não te faremos mal se disseres a verdade.
— E tu assim fizeste.
— E ele não me fez mal, mas, se tivesse feito, eu não teria
fugido.
— Sim — disse Kircher —, nisso fizeste bem.
— Nunca soube o que foi feito da minha mãe. Houve quem a
tivesse visto ir-se embora, mas ninguém a viu chegar a outro sítio
qualquer.
— Nós salvámos-te — disse Kircher. — O diabo também te teria
apanhado, pois não é possível viver perto dele e ficar ileso. Quando
te opuseste ao teu pai, ele perdeu o poder sobre ti. O teu pai
confessou e arrependeu-se. Deus é misericordioso.
— Só quero saber do livro. Tens de me dizer. E não mintas,
porque me aperceberei. Isso era o que sempre dizia o teu velho
padre: não mintas, porque me aperceberei. Mas estavas
constantemente a mentir-lhe e ele não se apercebia.
O homem inclinou-se para a frente. O seu nariz estava agora
apenas a um palmo do rosto de Kircher; não parecia tanto estar a
olhá-lo quanto a cheirá-lo. Tinha os olhos semicerrados, e Kircher
teve a impressão de o ouvir inspirar o ar como se farejasse.
— Já não sei — disse Kircher.
— Não acredito.
— Esqueci-me.
— Mas não acredito mesmo nisso.
Kircher pigarreou.
— Sator — disse em voz baixa, após o que se calou. Os seus
olhos fecharam-se, mas agitavam-se sob as pálpebras, como se
olhassem para um lado e para outro, e depois voltaram a abrir-se.
Uma lágrima correu-lhe pela face. — Tens razão — disse numa voz
neutra. — Minto muito. Menti ao doutor Tesimond, mas isso não é
nada. Também menti a Sua Santidade. E a Sua Majestade, o
Imperador. Minto nos livros. Minto sempre.
O professor continuou a falar, com a voz entrecortada, mas Tyll
não conseguia perceber o que dizia. Um estranho torpor invadira-o.
Enxugou a testa, um suor frio corria-lhe pelo rosto. O banco à sua
frente estava vazio, encontrava-se sozinho na carruagem e a porta
estava aberta. A bocejar, apeou-se.
Lá fora, pairava uma bruma pesada. Nuvens de neblina
passavam a rolar, o ar estava saturado de branco. Os músicos
tinham parado de tocar, divisavam-se vultos fantasmagóricos, eram
os acompanhantes do professor, e aquela sombra além devia ser
Nele. Um cavalo relinchou algures.
Tyll sentou-se no chão. A neblina já se ia tornando menos
espessa, penetrada por um ou outro raio de sol. Já se distinguiam
as carruagens, algumas tendas e o contorno do semicírculo de
bancos para os espectadores. Um momento mais tarde, o dia
estava radioso, vapor de água elevava-se da erva e a bruma havia-
se dissipado.
Os secretários entreolharam-se, estupefactos. Um dos dois
cavalos que puxavam a carruagem tinha desaparecido e o timão
apontava para o céu. Enquanto todos se perguntavam de onde
surgira aquela súbita neblina, enquanto os acrobatas faziam rodas,
pois não conseguiam conter-se nem por uns instantes, enquanto o
burro arrancava talos de erva, enquanto a velha recomeçava a
recitar para Fleming e enquanto Olearius e Nele conversavam um
com o outro, Tyll estava sentado, imóvel, com os olhos
semicerrados e o nariz erguido contra o vento. E também não se
levantou quando um dos secretários se aproximou e disse a
Olearius que Sua Excelência o professor Kircher havia partido a
cavalo sem se despedir. Nem sequer deixara recado.
— Sem ele não encontraremos o dragão — disse Olearius.
— Devemos esperar? — perguntou o secretário. — Talvez ele
volte.
Olearius lançou um olhar na direção de Nele.
— Isso seria o melhor.
— O que se passa contigo? — perguntou Nele, que se tinha
aproximado de Tyll.
Este ergueu os olhos.
— Não sei.
— O que aconteceu?
— Esqueci-me.
— Faz malabarismo para nós vermos. Depois fica tudo melhor.
Tyll levantou-se. Apalpou o saquinho com que andava sempre e
tirou dele primeiro uma bola de couro amarela, depois uma
vermelha, depois uma azul e depois uma verde. Com um ar
indolente, começou a atirá-las ao ar, e ia tirando cada vez mais
bolas, mais uma, e outra e outra, até parecerem dezenas que
saltavam sobre as suas mãos abertas. Todos olhavam as bolas que
subiam, caíam e voltavam a subir, e nem sequer os secretários
continham um sorriso.

Era de manhã cedo. Nele aguardava há bastante tempo diante


da tenda. Refletira, andara de um lado para o outro, rezara,
arrancara erva, chorara em silêncio, massajara os dedos e
recompusera-se.
Por fim, esgueirou-se para dentro da tenda. Tyll dormia, mas
quando ela lhe tocou no ombro, ficou imediatamente bem acordado.
Ela disse-lhe que tinha passado a noite no campo com o senhor
Olearius, o funcionário da corte de Gottorf.
— Sim, e então?
— Desta vez, é diferente.
— Ele não te deu um presente bonito?
— Sim, deu.
— Então foi como sempre.
— Ele quer que eu vá com ele.
Tyll ergueu as sobrancelhas, numa surpresa simulada.
— Quer casar comigo.
— Não.
— Sim.
— Casar?
— Sim.
— Contigo?
— Comigo.
— Porquê?
— Tem intenções sérias. Vive num castelo. Diz que não é um
castelo bonito e que é frio no inverno, mas tem o suficiente para
comer e um duque que zela pelas suas necessidades, e tudo o que
ele tem de fazer é dar aulas aos filhos do duque e às vezes fazer
umas contas e olhar pelos livros.
— Senão os livros fogem?
— O que quero dizer é que ele tem uma boa vida.
Tyll rolou para fora do saco de palha e pôs-se de pé.
— Então tens de ir com ele.
— Não gosto muito dele, mas é boa pessoa. E vive muito
sozinho. A mulher morreu quando ele estava na Rússia. Não sei
onde é a Rússia.
— É perto de Inglaterra.
— Acabámos por não ir a Inglaterra.
— Em Inglaterra é tudo como aqui.
— E quando voltou da Rússia ela tinha morrido; não tinham
filhos, e desde então ele sente-se muito triste. Goza de uma saúde
relativamente boa, foi uma coisa em que reparei, e creio que é
alguém em quem se pode confiar. Não voltarei a encontrar outro
como ele.
Tyll aproximou-se dela e passou-lhe o braço à volta dos ombros.
Ouviram lá fora a velha a recitar uma balada. Ao que parecia,
Fleming ainda estava sentado junto dela e fazia-a continuar a
recitar, sucessivas vezes, a fim de memorizar.
— Um homem assim é melhor do que um Steger — disse Nele.
— É provável que este não te vá bater.
— Pode ser que não — disse Nele, pensativa. — E, se me bater,
dou-lhe também. Havia de ficar admirado.
— Até podes ainda vir a ter filhos.
— Não gosto de crianças. E ele já é velho. Mas, com filhos ou
sem eles, ficar-me-á grato.
Fez-se silêncio. O vento fazia estalar a lona da tenda, e a velha
voltou ao princípio da balada.
— Para dizer a verdade, não quero.
— Mas tens de o fazer.
— Porquê?
— Porque já não somos jovens, irmã. E não iremos ficar mais
jovens. Nem um dia. Ninguém que seja velho e não tenha pátria
pode esperar um bom futuro. E ele vive num castelo.
— Mas nós pertencemos um ao outro.
— Sim.
— Talvez ele também te leve.
— Isso é impossível. Não posso ficar a viver num castelo. Não
aguentava. E, mesmo que aguentasse, não iriam querer-me lá muito
tempo. Ou me punham a andar, ou eu deitava fogo ao castelo. Uma
coisa ou outra. Mas, como seria o teu castelo, não podia deitar-lhe
fogo, de modo que isso não vai acontecer.
Permaneceram em silêncio durante algum tempo.
— Sim, isso não vai acontecer — disse Nele por fim.
— Afinal, porque te quer ele? — perguntou Tyll. — Não és tão
bonita quanto isso.
— Ainda apanhas na boca.
Tyll riu.
— Acho que ele me ama.
— O quê?
— Já sei, já sei.
— Ama-te?
— Coisas assim acontecem.
Lá fora, o burro emitiu um ruído de burro e a velha deu início a
outra balada.
— Se os saqueadores não tivessem passado… — disse Nele. —
Em tempos, na floresta.
— Não fales disso.
Nele calou-se.
— Gente como ele não se liga a gente como tu — disse Tyll. —
Deve ser um bom homem. E mesmo que não seja um bom homem,
tem um teto sobre a cabeça e moedas na bolsa. Diz-lhe que vais
com ele e diz-lho antes que ele mude de opinião.
Nele começou a chorar. Tyll tirou-lhe a mão do ombro e olhou-a.
Dentro em pouco, ela acalmou-se.
— Vais visitar-me? — perguntou Nele.
— Não creio.
— Porque não?
— Como podia isso ser? Ele não vai querer que lhe recordem
onde te encontrou. No castelo ninguém deve saber, e tu própria não
vais querer que saibam. Os anos vão passar, irmã, em breve nada
disto será verdade, só os teus filhos se hão de maravilhar por
dançares e cantares tão bem e seres capaz de apanhar tudo o que
te atiram.
Nele deu-lhe um beijo na testa. Em passo hesitante, esgueirou-
se para fora da tenda, endireitou-se e dirigiu-se à carruagem, a fim
de comunicar ao matemático da corte que aceitava a sua proposta e
que iria com ele para Gottorf.
Quando voltou, encontrou a tenda de Tyll vazia. Rápido como um
relâmpago, ele partira, sem levar nada consigo, à exceção das bolas
de malabarismo, de uma corda comprida e do burro. Só o mestre
Fleming, que o encontrara no prado, falara com ele. Mas não quis
revelar o que Tyll dissera.

O circo dispersou em todas as direções. Os músicos partiram


com os acrobatas para sul, o engolidor de fogo foi com a velha para
oeste e os restantes dirigiram-se para noroeste, na esperança de se
afastarem da guerra e da fome. O aleijado foi acolhido no gabinete
de curiosidades do príncipe eleitor da Baviera. Três meses mais
tarde, os secretários chegaram a Roma, onde Athanasius Kircher já
os esperava com impaciência. Nunca mais abandonou a cidade,
realizou milhares de experiências e escreveu dezenas de livros, até
morrer, quarenta anos mais tarde, coberto de honrarias.
Nele Olearius sobreviveu três anos a Kircher. Teve filhos e
sepultou o esposo, a quem nunca amou, mas a quem sempre
estimou por ele a tratar bem e não esperar dela mais do que
amizade. Viu o castelo de Gottorf florescer com um novo esplendor,
viu crescer os netos e ainda pegou ao colo no primeiro bisneto.
Ninguém suspeitava de que em tempos calcorreara o país com Tyll
Ulenspiegel, mas, exatamente como este previra, os seus netos
ficavam pasmados ao ver a avó, já idosa, ainda ser capaz de
apanhar tudo o que lhe lançavam. Foi querida e venerada, sem que
ninguém desconfiasse de que, em tempos, fora outra coisa que não
uma senhora respeitável. E nunca contou a ninguém que sempre
acalentara a esperança de que o rapaz com quem outrora partira da
aldeia dos seus pais regressasse para a levar.
Só quando a morte estava à porta e, com ela, a desorientação
dos últimos dias, de súbito lhe pareceu estar a vê-lo. Magro e
sorridente, junto da janela, magro e sorridente, a entrar no quarto; e,
a sorrir, ela soergueu-se e disse:
— Como demoraste!
O duque de Gottorf, filho daquele outro duque que em tempos
contratara o marido, acorrera ao seu leito de morte, para se
despedir do membro mais antigo da sua casa. Compreendendo que
aquele não era o momento de corrigir erros, tomou na sua a
pequena mão rígida que ela lhe estendia e foi o instinto a ditar-lhe a
resposta:
— Sim, mas agora estou aqui.

No mesmo ano, na planície de Holstein, morreu o último dragão


do Norte. Tinha dezassete mil anos e estava cansado de viver
escondido.
Assim, assentou a cabeça na urze, estendeu na erva macia o
corpo, que se confundia tão completamente com o que o rodeava
que nem sequer as águias o distinguiam, suspirou e, por breves
instantes, lamentou que fossem acabar as fragrâncias, as flores e o
vento e não tornar a ver as nuvens de tempestade, o nascer do sol e
a curva da sombra da Terra na Lua azul-cobalto, de que sempre
tanto gostara.
Fechou os quatro olhos e resmoneou baixinho, como se sentisse
um pardal pousar-lhe no nariz. Vira tantas coisas que lhe parecia
tudo bem, mas continuava sem saber o que se iria passar com ele
depois da morte. Com um suspiro, adormeceu. A sua vida fora
longa. Agora era tempo de se transformar.
NA GALERIA SUBTERRÂNEA
«Deus, Todo-Poderoso, Nosso Senhor Jesus Cristo, ajuda-nos»,
dissera Matthias havia pouco, e Korff respondera: «Mas Deus não
está aqui!», e Eisenkurt replicara: «Deus está em toda a parte,
estúpido», e Matthias retorquira: «Aqui em baixo não». Então todos
tinham desatado a rir e, nessa altura, tinha havido um estrondo e
uma rajada de ar tão forte e tão quente que os lançara ao chão. Tyll
caiu em cima de Korff, Matthias em cima de Eisenkurt, e nesse
momento ficou tudo às escuras. Durante algum tempo, ninguém se
mexeu, todos sustinham a respiração, cada um perguntava-se se
teria morrido e só pouco a pouco compreenderam — uma vez que
não se compreende uma coisa semelhante imediatamente — que a
galeria tinha ruído. Sabiam que não deviam fazer o menor barulho,
pois se os suecos tinham perfurado até ali, se estavam às escuras
por cima deles, com as suas facas reluzentes, o melhor era ficarem
quietinhos, sem respirar, sem fungar, sem arfar nem tossir.
Como está escuro. Mas é uma escuridão diferente da de lá de
cima. Quando se está às escuras, ainda se vê qualquer coisa. Não
se sabe muito bem o que se vê, mas não é nada de nada; mexemos
a cabeça, e a escuridão não é igual em toda a parte e, quando nos
habituamos, veem-se contornos. Mas ali não. A escuridão é sempre
igual. O tempo passa e, quanto mais tempo passa sem conseguirem
suster a respiração e recomeçar a respirar com toda a cautela,
continua a estar tão escuro como se Deus tivesse apagado toda a
luz do mundo.
Finalmente, como é evidente não haver suecos com facas por
cima deles, Korff diz:
— Temos de fazer um relatório!
E Matthias:
— Desde quando és tu o chefe, meu bebedolas?
E Korff:
— O tenente esticou o pernil ontem, meu monte de merda, e
agora sou eu quem está à frente em antiguidade.
E Matthias:
— Sim, lá em cima talvez, mas não aqui.
E Korff:
— Se não fizeres um relatório, mato-te. Tenho de saber quem
está ainda vivo.
E Tyll:
— Eu julgo que ainda estou vivo.
A verdade é que não tem a certeza. Como é possível sabê-lo
quando se está estendido no chão, às escuras? Mas agora, que
ouviu a sua voz, constata que assim é.
— Então afasta-te — diz Korff. — Estás em cima de mim, trinca-
espinhas!
Lá razão tem ele, pensa Tyll, de facto não é lá muito bom estar
deitado em cima do Korff. Por isso, rola para o lado.
— Matthias, agora vais fazer também um relatório — diz Korff.
— Então faço um relatório.
— Kurt?
Aguardam, mas Eisenkurt, a quem todos chamam assim devido
à sua mão direita de ferro1, ou talvez seja a esquerda, já ninguém
se recorda, porque está escuro e não se vê nada, não faz um
relatório.
— Kurt?
Está tudo em silêncio, agora já não se ouvem mais explosões.
Ainda há pouco se ouviam estampidos ao longe, vindos de cima,
que faziam tremer as pedras; eram os suecos de Torstensson, a
tentar fazer ir pelos ares os bastiões. Mas agora só se ouve o ruído
da respiração. Ouve-se Tyll respirar, ouve-se Korff e Matthias, mas
não se ouve Kurt.
— Estás morto? — pergunta Korff. — Esticaste o pernil, Kurt?
Mas Kurt continua sem dizer nada, o que não é habitual nele,
pois em geral é difícil fazê-lo ficar calado. Tyll ouve Matthias às
apalpadelas. Tateia o pescoço de Kurt, à procura das pulsações,
depois a mão — primeiro a de ferro, depois a verdadeira. Tyll não
contém a tosse. Ali não circula ar, está tudo coberto de poeira, a
atmosfera é densa como manteiga.
— Sim, ele está morto — diz Matthias por fim.
— De certeza? — pergunta Korff.
Pela sua voz, percebe-se que está exasperado — desde a
véspera que goza de antiguidade, porque o tenente morreu, e ali
estão apenas dois subordinados.
— Ele não está a respirar — diz Matthias. — E não tem o
coração a bater, não quer falar, e aqui, podes apalpar, falta-lhe
metade da cabeça.
— Grande merda — diz Korff.
— Sim — concorda Matthias —, uma merda das grandes.
Embora, repara, eu não gostasse dele. Ontem tirou-me a faca, e
quando lhe disse que ma devolvesse, respondeu que da melhor
vontade, mas só espetando-ma entre as costelas. Foi bem feito para
ele.
— Sim, foi bem feito — concorda Korff. — Que Deus tenha
piedade da sua alma.
— Daqui não sai ela — diz Tyll. — A sua alma. Como vai ela
conseguir sair daqui?
Durante algum tempo, ficam em silêncio, angustiados, pois todos
pensam que a alma de Kurt ainda pode estar ali, fria, viscosa e
provavelmente irada. É então que se ouve raspar, empurrar,
arrastar.
— O que estás a fazer? — pergunta Korff.
— Estou à procura da minha faca — responde Matthias. — Não
a vou deixar com este estupor.
Tyll tem um novo ataque de tosse. Em seguida pergunta:
— O que aconteceu? Não estou aqui há muito tempo, porque
está escuro?
— Porque o sol não chega aqui — responde Korff. — Há
demasiada terra entre ele e nós.
É bem feito para mim, pensa Tyll, se ele agora zombar, não foi
uma pergunta inteligente. E, a fim de a melhorar, insiste:
— Temos de morrer?
— Claro que sim — responde Korff. — Nós e todos os outros.
Também nisto ele tem razão, pensa Tyll, embora, quem sabe?,
eu por exemplo até agora não tivesse morrido. Depois, uma vez que
as trevas podem deixar uma pessoa muito confusa, tenta recordar-
se de como foi parar à galeria.
Para já, tem de se recordar como foi parar a Brünn. Podia ter
podido ir para outro sítio — uma conclusão a que se chega sempre
posteriormente —, mas foi para Brünn porque ouviu dizer que a
cidade era rica e segura. E ninguém suspeitava de que Torstensson
também para lá ia com meio exército sueco, pois diziam sempre que
ele iria para Viena, onde estava o imperador, só que nunca se sabe
o que pensam os senhores importantes por baixo dos seus grandes
chapéus.
E depois foi por causa do comandante da cidade, com as suas
sobrancelhas farfalhudas, a sua pera, as faces reluzentes de
gordura e aquele orgulho que lhe saía por cada dedinho esticado.
Estivera a observar Tyll na praça principal, aparentemente com
dificuldade, por as pálpebras lhe pesarem tão aristocraticamente e
porque alguém como ele está plenamente convencido de que
merece um espetáculo melhor do que um bobo com um gibão
colorido.
— Não sabes mostrar nada melhor? — resmungara.
Não é frequente Tyll irritar-se, mas, quando isso acontece, não
há quem o supere nos insultos, e diz coisas que uma pessoa como
o outro nunca irá esquecer. Quem era ele ao certo? De facto a
escuridão baralha a recordação de uma pessoa. O estúpido foi que
estavam a recrutar homens para defender a fortaleza de Brünn.
— Espera lá. Tu vais colaborar, vais com os soldados! Podes
escolher a tua unidade. Tenham cuidado, não vá ele dar à sola!
Depois o comandante começara a rir, como se tivesse dito uma
boa graça, e de facto não tinha sido tão má quanto isso, pois há que
reconhecer que num cerco ninguém pode fugir; caso isso fosse
possível, não seria um cerco.
— O que fazemos agora? — ouve Tyll Matthias perguntar.
— Vamos procurar a picareta — responde Korff. — Tem de estar
aqui. Desde já te digo que, sem a picareta, nem precisamos de
tentar. Sem ela, está tudo acabado.
— Era o Kurt que a tinha — diz Tyll. — Tem de estar debaixo do
Kurt.
Ouve os dois a esgaravatar, a empurrar, a apalpar e a praguejar
no escuro. Permanece sentado, não quer estorvá-los e, acima de
tudo, não quer que eles se recordem de que quem levava a picareta
era ele, e não Kurt. Não tem a certeza absoluta, porque ali em baixo
uma pessoa fica cada vez mais confusa, ainda se recorda com
clareza dos acontecimentos distantes, mas quanto mais próximo se
está de uma explosão como a de há pouco, mais aguados e diluídos
ficam os pensamentos. Tem quase a certeza de que levava a
picareta, mas como ela era pesada e estava sempre a ir parar-lhe
entre as pernas, deve estar em qualquer sítio da galeria. Claro que
fica calado a esse respeito, é preferível que fiquem os dois a pensar
que a picareta está com Eisenkurt, pois esse já deixou tudo para
trás, tanto se lhe dá, e é-lhe indiferente se os outros ficarem
furiosos.
— Ajudas-me, trinca-espinhas? — pergunta Matthias.
— Claro que ajudo — responde Tyll, sem se mexer. — Estou
farto de procurar! Procuro como um louco, como uma toupeira, não
estás a ouvir?
E como ele é bom a mentir, isso basta-lhes. O facto de Tyll não
se mexer, tem que ver com a atmosfera, que é asfixiante, não entra
nem sai um sopro de ar, depressa uma pessoa perde os sentidos
para não mais acordar. Num ambiente assim, o melhor é
permanecer imóvel e respirar apenas o estritamente necessário.
Teria sido melhor não se ter oferecido para os sapadores. Fora
um erro. Os sapadores andam lá por baixo, tinha ele pensado, e as
balas voam por cima. A terra protege-os, pensara ele. O inimigo tem
sapadores para fazer explodir as nossas muralhas e nós temos
sapadores para fazer explodir as galerias que os inimigos escavam
por baixo das nossas muralhas. Os sapadores escavam, pensara
ele, enquanto cá em baixo picamos e batemos com as picaretas. E
se um sapador for atento, pensara ele, e aproveitar o momento,
pode continuar a cavar e abrir um túnel só para si, conseguindo sair
para o exterior, em qualquer sítio para lá das fortificações, pensara
ele, e escapar antes que alguém se dê conta. E uma vez que Tyll
pensara isso, dissera ao oficial, que o agarrava pelo colarinho, que
queria ir para os sapadores.
E o oficial:
— O quê?
— O comandante disse que posso escolher!
E o oficial:
— Sim, mas… De verdade? Para os sapadores?
— É como ouvistes.
Sim, tinha sido uma estupidez. Os sapadores morrem quase
sempre, mas isso só lhe tinham dito quando estava no subsolo. Em
cinco sapadores morrem quatro. Em dez, morrem oito. Em vinte,
morrem dezasseis, em cinquenta, quarenta e sete, em cem, morrem
todos.
Ainda bem que Orígenes sobrevivera. Graças à discussão que
tinham tido no mês anterior, a caminho de Brünn.
— Na floresta há lobos que têm fome — dissera o burro —, não
me deixes aqui.
— Não tenhas medo, os lobos estão muito longe.
— Estão tão perto que lhes sinto o cheiro. Tu trepas para uma
árvore, mas eu fico aqui em baixo, e o que irá ser de mim se
vierem?
— Faz o que te digo!
— E se dizes disparates?
— Fazes na mesma. Porque eu sou o ser humano. Nunca devia
ter-te ensinado a falar.
— A ti, também não te deviam ter ensinado a falar, é raro dizeres
qualquer coisa que faça sentido, e já não fazes malabarismo com
segurança. Não tarda a que te escorregue um pé da corda. Não
tens nada que me dar ordens!
E então Tyll ficara em cima da árvore, furioso, e o burro, furioso,
ficara debaixo dela. Tyll tinha dormido tantas vezes em cima de
árvores que isso já não lhe parecia difícil — é preciso um ramo
grosso, uma corda para atar e um bom sentido do equilíbrio; e,
como para tudo o mais na vida, muita prática.
À meia-noite ouviu o burro vociferar. Até a Lua nascer, tinha
resmungado e rezingado, e Tyll sentira pena dele, mas era tarde e,
durante a noite, não se pode seguir caminho, o que se havia de
fazer? Por isso voltou a adormecer e, quando tornou a acordar, o
burro já não estava ali. Não tinham sido os lobos, ter-se-ia
apercebido se eles se tivessem aproximado; era evidente que o
burro decidira que podia seguir sozinho e que não precisava de um
ventríloquo.
Quanto ao malabarismo, Orígenes tinha razão. Ali, em Brünn, à
frente da catedral, Tyll falhara um movimento e uma bola caíra ao
chão. Fingira tê-lo feito de propósito e fizera uma cara de que todos
tinham rido, mas uma coisa assim não tem graça nenhuma, pode
tornar a acontecer, e que será dele se, da próxima vez, lhe falhar o
pé sobre a corda?
O lado bom é que agora já não tem de se preocupar com isso.
Não parece haver perspetivas de alguma vez irem sair dali.
— Não parece haver perspetivas de alguma vez irmos sair daqui
— diz Matthias.
Em boa verdade foi Tyll, foram os seus pensamentos que, na
escuridão, se extraviaram e foram parar à cabeça de Matthias, mas
talvez se tivesse dado o oposto, quem sabe? Além disso agora
veem-se luzinhas, como pequenos pirilampos a esvoaçarem; mas
Tyll sabe que não são reais pois, embora veja as luzes, vê também
que continua a estar tão escuro como antes.
Matthias suspira e, nessa altura, Tyll ouve uma pancada, como
se alguém tivesse batido com o punho na parede. Nessa altura
Matthias diz um belo palavrão, que Tyll não conhecia. Tenho de o
fixar, pensa ele, mas esquece-o imediatamente e pergunta-se se
não o teria apenas imaginado, embora, na realidade, o que tinha
imaginado? De súbito, já não sabe.
— Não vamos sair daqui — diz Matthias de novo.
— Cala essa estúpida boca — diz Korff. — Vamos encontrar a
picareta e escavamos para sair daqui, Deus ajudar-nos-á.
— Porque havia de ajudar? — pergunta Matthias.
— Também não ajudou o tenente — diz Tyll.
— Vou esmagar-vos a cabeça — diz Korff —, e então é que de
certeza não saem daqui.
— E tu, que és o Tyll Ulenspiegel, porque vieste parar aos
sapadores? — pergunta Matthias.
— Obrigaram-me. Achas que me ofereci como voluntário? E tu,
porque estás aqui?
— Também fui obrigado. Roubei pão e, num abrir e fechar de
olhos, acorrentaram-me. Mas tu, famoso como és, como aconteceu
isso? Porque obrigam alguém como tu?
— Aqui em baixo não há ninguém famoso — diz Korff.
— E a ti, quem te obrigou? — pergunta Tyll a Korff.
— A mim ninguém me obriga a nada. Quem quiser obrigar Korff,
terá de o matar primeiro. Estava nos tamborileiros de Christian von
Halberstadt, depois fui mosqueteiro dos franceses, depois dos
suecos, mas como não me pagavam o soldo, voltei para os
franceses como artilheiro. Porém, deram com a minha bateria,
nunca se viu coisa assim, um tiro certeiro, em cheio com uma bala
de canhão, toda a pólvora pelos ares, fogo como no fim do mundo,
mas aqui o Korff atirou-se para os arbustos com rapidez suficiente
para sobreviver. Depois passei para as tropas imperiais, mas não
precisavam de um canhoneiro e eu não queria voltar a ser
alabardeiro, por isso vim para Brünn, e como já não tinha dinheiro e
ninguém recebe um soldo tão bom como os sapadores, fui escavar.
Já estou nisto há três semanas. A maioria não sobrevive tanto
tempo. Ainda há pouco estava ao lado dos suecos, agora mato os
suecos, e vocês os dois, meus estupores, têm sorte de estarem
enterrados aqui com o Korff, porque o Korff não vai desta para
melhor tão facilmente quanto isso. — Quer dizer mais qualquer
coisa, mas falta-lhe o ar, tosse, e fica algum tempo calado. — Tu,
trinca-espinhas, tens dinheiro? — pergunta por fim.
— Não tenho cheta — responde Tyll.
— Mas famoso como és… É possível ser famoso e não ter
dinheiro?
— Quem é estúpido pode.
— E tu és estúpido?
— Irmão, se eu fosse esperto, estava aqui?
Korff não pode deixar de rir. E como Tyll sabe que ninguém o
está a ver, apalpa o gibão. As moedas de ouro na gola, as de prata
na carcela dos botões, as duas pérolas, bem cosidas em baixo na
bainha, tudo ainda no sítio.
— Sinceramente. Dar-to-ia, se tivesse.
— Então não passas também de um pobre diabo — diz Korff.
— Para todo o sempre, ámen.
Os três não contêm o riso.
Tyll e Korff param de rir. Matthias continua.
Esperam, mas ele continua a rir.
— Ele não para — diz Korff.
— Deve estar a enlouquecer — comenta Tyll.
Ficam à espera. Matthias continua a rir.
— Eu estive às portas de Magdeburgo — diz Korff. — Estive com
os sitiadores, foi antes de ter passado para os suecos, quando ainda
estava com a tropa do imperador. Quando a cidade caiu,
apoderámo-nos de tudo, queimámos tudo, matámos todos. Podem
fazer o que quiserem, disse o general. Sabes que não se consegue
imediatamente, antes uma pessoa tem de se habituar a poder fazer
o que quiser. A que isso funcione. A fazer o que quiser com
pessoas.
De repente, Tyll tem a sensação de que estão de novo no
exterior, os três sentados num prado, sob o céu azul e um Sol tão
radioso que têm de fechar os olhos. Mas enquanto bate as
pálpebras, também sabe que isso não é possível, e depois já não
sabe o que sabia há pouco, que isso não é possível, e começa a
tossir por causa do ar asfixiante, e o prado desapareceu.
— Acho que o Kurt disse qualquer coisa — diz Matthias.
— Não disse nada — contrapõe Korff.
Ele tem razão, pensa Tyll, que também não ouviu nada. Foi o
Matthias que imaginou, o Kurt não disse nada.
— Eu também ouvi — diz Tyll.
— O Kurt disse qualquer coisa.
Imediatamente ouve-se Matthias sacudir o cadáver de Eisenkurt.
— Ainda estás vivo? — exclama. — Ainda estás aí?
Tyll recorda-se da véspera, ou seria da antevéspera? Do ataque
em que mataram o tenente. De súbito, o buraco na parede da
galeria, de súbito facas, gritos, estrondos e estampidos, o tenente
atirou-se ao chão e comprimiu-se contra o solo, um dos outros
pisou-lhe as costas e, quando ergueu de novo a cabeça, tudo
acabou: um sueco cravou-lhe a faca num olho, Korff degolou o
sueco, Matthias deu um tiro de pistola na barriga do segundo sueco
que o tinha deixado aos gritos como um porco na matança, pois
nada dói tanto como um tiro na barriga, e o terceiro sueco, com o
sabre, cortou a cabeça de um dos deles, cujo nome Tyll não chegou
a saber, pois era novo ali, e isso agora já não interessa, já não é
preciso saber o nome, de modo que o sangue brotou a jorros, como
água vermelha, mas o sueco não se pôde congratular durante muito
tempo, pois Korff, ainda com a pistola carregada, alvejou-o na
cabeça, clip-clap, zip-zap, não demorou mais do que isso.
Essas coisas não demoram muito tempo. Também outrora, na
floresta, tudo se passou muito depressa, Tyll não consegue evitar a
recordação, tem de pensar no sucedido, devido à escuridão. Nas
trevas tudo se confunde, e o que havia sido esquecido, reaparece
de repente. Nunca estivera tão perto da morte como nessa altura,
na floresta, sentira-lhe a mão, sabe a sensação que provoca, por
isso a reconhece tão bem agora. Nunca falou do assunto e nunca
mais voltou a pensar nele. Com efeito, é possível fazer isso: não
pensar numa coisa. Assim é como se não tivesse acontecido.
Porém agora, na escuridão, tudo vem à superfície. Fechar os
olhos serve de tão pouco como tê-los bem abertos, e, a fim de
afastar esses pensamentos, diz:
— Vamos cantar? Talvez alguém nos oiça!
— Eu não canto — diz Korff.
Então Korff começa a cantar: há uma ceifeira que se chama
Morte. Matthias acompanha-o, depois Tyll junta-se a eles, e
imediatamente os outros dois fazem silêncio para o escutar. A voz
de Tyll é aguda, límpida e poderosa. Com a ajuda de Deus tornou-
se forte. Hoje tem a gadanha afiada, qualquer garganta pode ser
cortada, em breve irá talhar, só nos resta penar.
— Cantem também! — diz Tyll.
E eles assim fazem, mas Matthias interrompe-se de seguida e ri
para consigo. Cuidado, florzinha formosa. O que hoje ainda é fresco
e garrido, amanhã já terá desaparecido. Agora ouvem que Kurt
também canta. A voz não é muito alta, é rouca e desafinada, mas
uma pessoa não deve ser exigente; quando alguém está morto,
pode custar-lhe a cantar. O narciso perfumado, que é ornamento do
prado, o jacinto sem igual, um adorno oriental. Cuidado, florzinha
formosa.
— Com mil raios — exclama Korff.
— Eu disse-te que ele é famoso — diz Matthias. — É uma honra.
Um homem respeitável a esticar o pernil connosco.
— Lá famoso sou — diz Tyll —, mas nunca na vida fui
respeitável. Acham que alguém nos ouviu a cantar e que alguém vai
aparecer?
Põem-se à escuta. As explosões recomeçaram. Um estrépito,
um tremor do solo, silêncio. Um estrépito, um tremor, silêncio.
— O Torstensson está a fazer ir pelos ares metade da muralha
da cidade — diz Matthias.
— Não vai conseguir — diz Korff. — Os nossos sapadores são
melhores do que os deles. Encontram as galerias suecas e enchem-
nas de fumo. Ainda não viste o grande Karl furioso.
— O grande Karl está sempre furioso, mas também está sempre
borracho — diz Matthias. — A esse, estrangulo-o com uma mão
atrás das costas.
— Tu tens o cérebro toldado!
— Queres que diga a todos? Pensas que és um grande senhor
por causa de Magdeburgo, mas eu sei onde estavas!
Korff fica calado durante uns momentos, e depois diz baixinho:
— Olha que dou cabo de ti.
— Ah, sim?
— Podes crer.
Em seguida calam-se durante algum tempo, e ouvem-se as
detonações de explosivos à superfície, ao mesmo tempo que se
ouvem rolar pedras. Matthias não diz nada, porque percebeu que
Korff fala a sério; e Korff não diz nada, pois de súbito assalta-o a
saudade, Tyll sabe isso muito bem, pois na escuridão os
pensamentos não ficam apenas com quem os teve, mas, quer se
queira, quer não, também se recebem os dos outros. Korff sente a
saudade do ar, da luz e da liberdade de se mover para onde muito
bem quer. E depois, como isso lhe lembra outra coisa, exclama:
— A Hanne, a gorda!
— Ah, sim — diz Matthias.
— Aquelas coxas roliças — diz Korff. — Aquele traseiro.
— Santo Deus! — exclama Matthias. — O traseiro. O cu. Aquele
cu atrás.
— Tu também te puseste nela?
— Não — responde Matthias. — Não a conheço.
— E as mamas dela — diz Korff. — Em Tübingen, conheci outra
com umas mamas assim. Deviam tê-la visto. Fazia tudo o que
queríamos, como se Deus não existisse.
— Tiveste muitas mulheres, Ulenspiegel? — pergunta Matthias.
— Tu, que tinhas dinheiro, deves ter podido dar-te a esse luxo.
Conta lá.
Tyll prepara-se para responder, mas, de repente, já não é
Matthias que está ao seu lado, mas o jesuíta no seu escabelo, que
ele vê tão nitidamente como outrora: tens de dizer a verdade, tens
de nos contar como o moleiro chamava o demónio, tens de nos
dizer que tinhas medo. Porque tens de dizer isso? Porque é
verdade. Porque nós sabemos. E quando tu mentes, olha, lá está o
mestre Tilman, olha o que ele tem na mão, irá utilizá-lo, então fala. A
tua mãe também falou. A princípio não queria, teve de lhe doer, mas
depois falou, é sempre assim, depois de lhes doer, falam todos. Já
sabemos o que vais dizer, pois sabemos o que é verdade, mas
temos de o ouvir da tua boca. E a seguir ainda disse num murmúrio,
inclinado para ele, quase com afabilidade: o teu pai está perdido.
Não irás salvá-lo. Mas podes salvar-te a ti. Ele iria querer que o
fizesses.
Mas Tyll sabe que o jesuíta não está ali, só estão ali os dois
sapadores, e Pirmin além, na vereda da floresta, onde acabaram de
o deixar deitado. Não se vão embora, grita Pirmin, eu encontro-vos,
eu faço-vos mal! E isso é um erro, pois ficam a saber que não
devem ajudá-lo, e o rapaz ainda volta atrás a correr e pega no saco
com as bolas. Como se o estivessem a esfolar vivo, Pirmin berra e
pragueja como um carroceiro, não só por as bolas serem o seu bem
mais precioso, mas porque compreende o que significa o rapaz
levá-las: malditos sejam, hei de encontrar-vos, não irei desta para
melhor, vou ficar aqui para vos procurar! É assustador vê-lo assim
deitado, a contorcer-se, por isso o rapaz deita a correr e continua a
ouvi-lo ao longe, sem parar de correr. Nele corre ao seu lado, e
continuam sempre a ouvi-lo, a culpa é dele, diz a rapariga ofegante,
mas o rapaz sente que as maldições de Pirmin funcionam e que
lhes vai suceder uma desgraça qualquer, em pleno dia. Ajuda-me,
rei, tira-me daqui, desfaz o que aconteceu em tempos na floresta.
— Ora conta lá — diz alguém — Tyll conhece a voz, recorda-se,
é Matthias. — Fala-nos dos traseiros, das mamas, diz qualquer
coisa. Se vamos morrer, queremos ouvir falar de mamas.
— Não vamos morrer — diz Korff.
— Mas conta — diz Matthias.
Conta, diz também o Rei do Inverno. O que houve na floresta,
recordas-te do que foi?
Mas o rapaz não diz. Nem ao rei, nem a mais ninguém, nem
mesmo a si próprio, pois quando não pensamos nisso, é como se
tivéssemos esquecido, e o que se esquece, não aconteceu.
Conta, diz o Rei do Inverno.
— Anão de um raio! — exclama Tyll, que pouco a pouco vai
ficando furioso.
Tu, rei sem reino, tu nulidade, que, para além do mais, estás
morto. Deixa-me, desanda daqui.
— Desanda tu — riposta Matthias. — Não estou morto, o Kurt é
que está morto. Conta!
Mas o rapaz não pode contar, porque já se esqueceu. Esqueceu-
se da vereda na floresta, de Nele e de si próprio ali na vereda,
esqueceu-se de tudo isso, esqueceu-se das vozes na folhagem, não
continuem, mas também não foi assim, não era isso que as vozes
sussurravam, pois, nesse caso, Nele e ele ter-lhes-iam dado
ouvidos, e de repente estão os três à frente deles, aqueles três de
quem já não se recorda, a quem já não vê, de quem já se esqueceu,
ali à frente deles.
Saqueadores. Desgrenhados, enraivecidos, sem saber por que
motivo. Olhem para isto, diz um deles, miúdos! Por sorte, Nele
pensa no que o rapaz lhe disse: estaremos seguros desde que
sejamos mais rápidos. Se correres mais depressa do que os outros,
não te acontece nada. Então Nele muda de direção e deita a correr.
Mais tarde, o rapaz já não sabe — e como havia de saber se
esqueceu tudo? — porque não desatou também a correr; mas as
coisas são como são, um erro basta — não perceber qualquer coisa
uma vez, ficar demasiado tempo de olhos arregalados uma vez, e o
homem já lhe pousou a mão no ombro. Curva-se para ele. Cheira a
aguardente e a cogumelos. O rapaz quer correr, mas é tarde de
mais, a mão fica onde está, e o outro homem está ao seu lado, o
terceiro foi atrás de Nele, mas já está a voltar para trás, a tossir, é
evidente que não conseguiu apanhá-la.
O rapaz ainda tenta fazê-los rir. Aprendeu isso com Pirmin, que
se encontra a uma hora de caminho dali, que talvez ainda esteja
vivo e que os teria conduzido melhor, pois na sua companhia nunca
encontraram lobos nem malfeitores, nem uma única vez em tanto
tempo. Então tenta fazê-los rir, mas em vão, eles não querem rir,
estão demasiado furiosos, têm dores, um está ferido e pergunta:
tens dinheiro? E de facto ele tem um pouquinho, e dá-lho. Diz-lhes
que pode dançar para eles, caminhar apoiado nas mãos, ou fazer
malabarismo, e eles ficam quase curiosos, embora a seguir se deem
conta de que para isso teriam de soltá-lo. Não somos assim tão
parvos, diz o que o segura.
Nesse momento, o rapaz compreende que nada pode fazer, a
não ser esquecer o que se passou; esquecer, ainda antes que
acabe de acontecer: esquecer as mãos, os rostos, tudo. Não estar
ali, onde está nesse momento, mas sim ao lado de Nele, enquanto
ela corre e por fim para e se apoia a uma árvore a recuperar o
fôlego. Depois volta para trás furtivamente, sustendo a respiração e
com o cuidado de não fazer estalar nenhum ramo ao pisá-lo, e
esconde-se nos arbustos, pois os três homens aproximam-se e, aos
tombos, passam por ela sem dar pela sua presença e seguem
caminho; apesar disso, ela espera ainda algum tempo antes de sair
do seu esconderijo e de continuar pelo caminho que havia pouco
percorria com o rapaz. Quando o encontra, ajoelha-se junto dele e
ambos compreendem que têm de esquecer aquilo e que ele deixará
de sangrar, pois uma pessoa como ele não morre. Sou feito de ar,
diz o rapaz. Não me acontece nada. Não há motivo para
lamentações. Mesmo assim tive sorte. Podia ter sido pior.
Estar ali preso na galeria, por exemplo, é provavelmente pior,
pois ali nem esquecer ajuda. Mesmo que esqueça a galeria na qual
está preso, não deixa de estar lá.
— Vou para o mosteiro — diz Tyll. — Quando sair daqui. Estou a
falar a sério.
— Para o de Melk? — pergunta Matthias. — Estive lá. É
magnífico.
— Para o de Andechs. Tem muralhas sólidas. Se há sítio onde
se está seguro, é em Andechs.
— Levas-me contigo?
Com todo o prazer, pensa Tyll. Se nos tirares daqui, vamos
juntos. E diz:
— De certeza que não deixam entrar patifes como tu.
Sabe que era o contrário, por causa da escuridão. Foi só uma
graça, pensa, claro que te deixam entrar. E diz:
— Sei mentir muito bem!
Tyll põe-se de pé. É melhor manter a boca fechada. Doem-lhe as
costas, não consegue apoiar-se na perna esquerda. É preciso
proteger os pés, só temos dois, e quando se magoa um não se pode
voltar para cima da corda.
— Nós tínhamos duas vacas — diz Korff. — A mais velha dava
bom leite.
Também ele se deixou enredar numa recordação. É como se Tyll
visse tudo aquilo à sua frente: a casa, o prado, fumo a sair da
chaminé, um pai e uma mãe, tudo pobre e sujo, mas foi essa a
infância que Korff teve.
Tyll apalpa a parede. Ali está a estrutura de madeira que
colocaram antes, tem um pedaço partido em cima, ou será em
baixo? Ouve Korff chorar baixinho.
— Ela desapareceu — lamuria-se Korff. — Foi-se, foi-se! Um
leite tão bom!
Tyll mexe num pedaço de rocha do teto, que está mal preso e se
solta, fazendo cair pedras.
— Para — exclama Matthias.
— Não fui eu — diz Tyll. — Juro.
— Às portas de Magdeburgo perdi o meu irmão — diz Korff. —
Com um tiro na cabeça.
— Eu perdi a minha mulher — diz Matthias. — Em
Braunschweig, ela ia nos carros de abastecimento que seguiam os
soldados, a peste levou-a, e aos dois filhos também.
— Como se chamava ela?
— Johanna — responde Matthias. — A mulher. O nome dos
filhos, já não sei.
— Eu perdi a minha irmã — diz Tyll.
Korff anda de um lado para o outro, aos tropeções, Tyll ouve-o
junto de si e recua. É melhor não chocar com ele. Um sujeito como
Korff não suporta que o empurrem, bate imediatamente. Ouve-se
nova explosão, caem de novo pedras, o teto não vai aguentar muito
mais.
Verás, diz Pirmin, que estar morto não é tão mau quanto isso.
Habituas-te.
— Mas eu não vou morrer — riposta Tyll.
— Ainda bem — diz Korff. — É assim mesmo, trinca-espinhas!
Tyll pisa qualquer coisa mole, deve ser Kurt, depois choca com
uma parede de pedra miúda, ali foi onde a galeria ruiu. Quer cavar
com as mãos, pois agora é indiferente, já não é preciso poupar ar,
mas começa imediatamente a tossir, e as pedras não se movem,
Korff tinha razão, sem picareta é impossível.
Não tenhas medo, mal dás por isso, diz Pirmin. A cabeça já está
meio avariada, o resto também começa a falhar, depois vais perder
os sentidos e, quando acordares, estás morto.
Vou pensar em ti, diz Orígenes. Ainda vou chegar longe, a seguir
vou aprender a escrever, e se quiseres escrevo um livro sobre ti,
para crianças e velhos. O que achas?
E não queres saber o que me aconteceu?, pergunta Agneta. Tu
e eu, eu e tu, há quanto tempo foi? Nem sequer sabes se ainda
estou viva, filhinho.
— Nem quero saber — responde Tyll.
Tu traíste-o como eu. Não precisas de estar zangada comigo. Tal
como eu, chamaste-lhe servo do diabo. Um bruxo, tal como eu. O
que eu disse, tu também disseste.
Mais uma vez, ela tem razão, diz Claus.
— Talvez, se encontrarmos a picareta — diz Matthias entre
gemidos. — Talvez com a picareta consigamos abrir um buraco.
Vivo ou morto, pões demasiado peso nessa diferença, diz Claus.
Há tantos compartimentos entre esses dois estados. Tantos cantos
empoeirados, onde já não estás num, mas ainda não estás no outro.
Tantos sonhos, dos quais já não podes despertar. Vi um caldeirão
de sangue a ferver sobre as chamas e as sombras a dançarem em
redor, e quando a grande forma negra apontar para um deles,
embora só o faça uma vez em mil anos, então os gritos não têm fim,
então metes a cabeça no sangue e bebes, e sabes, isso ainda está
longe de ser o Inferno, nem sequer é a entrada para ele. Vi lugares
onde as almas ardem como tochas, só que com mais calor e mais
luz e para toda a eternidade, sem pararem de gritar, porque a sua
dor também não para, e isso continua a não ser o Inferno. Pensas
que fazes ideia do que é, meu filho, mas não fazes. Pensas que
estar aí encerrado na galeria é quase como estar morto, que a
guerra é quase o Inferno, mas a verdade é que tudo, tudo é melhor;
estar aí em baixo é melhor, lá fora, nesse mar de sangue, é melhor,
no potro de tortura é melhor. Por isso, não te deixes ir, fica vivo.
Tyll não contém o riso.
— Porque estás a rir? — pergunta Korff.
— Então revela-me um sortilégio — pede Tyll. — Não és grande
coisa como mágico, mas talvez tenhas aprendido algum.
Com quem estás a falar?, pergunta Pirmin. Aqui não há nenhum
espírito além de mim.
De novo uma explosão, a que se segue um estrondo, Matthias
desata aos gritos, uma parte do teto deve ter desabado.
Reza, diz Eisenkurt. A mim apanhou-me primeiro, agora é a vez
do Matthias.
Tyll acocora-se. Ouve Korff chamar, mas Matthias já não
responde. Sente qualquer coisa correr-lhe na face, no pescoço, no
ombro, parece-lhe uma aranha, mas ali não há animais, tem de ser
sangue. Apalpa e encontra uma ferida na testa, começa junto da
raiz dos cabelos e vai até à cana do nariz. É muito suave ao tato, e
o rego de sangue é cada vez maior. Mas não sente nada.
— Meu Deus, perdoa-me — diz Korff. — Nosso Senhor Jesus
Cristo, perdoa-me. Espírito Santo. Matei um camarada por causa
das botas. As minhas tinham buracos, ele dormia a sono solto, isso
foi no acampamento junto de Munique, que havia de fazer?,
precisava de umas botas! Então deitei-lhes a mão. Estrangulei-o, ele
ainda abriu os olhos, mas já nem conseguiu gritar. Precisava mesmo
de umas botas. E ele tinha um medalhão, que afastava as balas,
também fiquei com ele, por causa do medalhão nunca fui atingido.
Contra o estrangulamento, de nada serviu.
— Achas-me com cara de padre? — pergunta Tyll. — Podes ir
confessar-te à tua avó, deixa-me em paz.
— Meu adorado Jesus — diz Korff. — Em Braunschweig libertei
uma mulher da estaca, uma bruxa, era de manhã muito cedo, iam
queimá-la ao meio-dia. Era muito nova. Eu ia a passar, ninguém viu
porque ainda estava escuro, cortei as amarras que a prendiam e
disse-lhe: depressa, corre comigo! Ela assim fez, muito grata, e
depois possuí-a, tantas vezes quanto quis, e quis muitas vezes, e a
seguir cortei-lhe o pescoço e enterrei-a.
— Eu perdoo-te. Ainda hoje vais estar comigo no paraíso.
Mais uma explosão.
— Porque estás a rir? — pergunta Korff.
— Porque tu não vais para o paraíso, nem hoje nem mais tarde.
Nem Satanás quer tocar num patife como tu. E, além disso, rio
porque não vou morrer.
— Vais, pois — diz Korff. — Não quis acreditar, mas nunca mais
vamos sair daqui. Para o Korff está tudo acabado.
De novo um estrondo, que faz tremer tudo. Tyll cobre a cabeça
com as mãos, como se isso lhe servisse de alguma coisa.
— Talvez esteja tudo acabado para o Korff. Mas não para mim.
Não vou morrer hoje. — Dá um salto, como se estivesse em cima da
corda. Dói-lhe a perna, mas está bem firme nos pés. Cai-lhe uma
pedra no ombro, e corre-lhe mais sangue pela face. Um novo
estrépito e caem mais pedras. — E também não vou morrer amanhã
nem em nenhum outro dia. Não quero! Não vou fazer isso, estás a
ouvir?
Korff não responde, embora talvez ainda oiça.
Então Tyll grita:
— Não vou fazer isso, vou-me embora, isto aqui já não me
agrada.
Um estampido, um tremor, mais uma pedra cai e roça-lhe no
ombro.
— Agora vou andando. Foi o que sempre fiz. Em situações de
aperto, vou-me embora. Não vou morrer aqui. Não vou morrer hoje.
Não vou morrer!

1 Eisen significa ferro em alemão. (N. da T.)


VESTEFÁLIA
I

Ela caminhava tão direita como antes. Doíam-lhe quase sempre


as costas, mas não deixava que isso se notasse e usava a bengala
em que se tinha de apoiar como se fosse um acessório de moda.
Continuava a ser parecida com os quadros de outros tempos e o
que restava da sua beleza era suficiente para deixar perplexas as
pessoas que, inesperadamente, se viam frente a frente com ela — o
que era o caso naquele momento em que atirou para trás o capuz
de pele e percorreu a antecâmara com um olhar firme. A um sinal
combinado, a aia que a seguia anunciou que Sua Majestade, a
rainha da Boémia, desejava falar com o embaixador imperial.
Viu como os lacaios trocavam olhares entre si. Era evidente que,
daquela vez, os espiões tinham falhado, ninguém estava preparado
para a sua chegada. Havia partido da sua casa em Haia sob um
falso nome; o salvo-conduto, emitido pelos Estados Gerais das
províncias holandesas unidas, identificava-a como Madame de
Cournouailles. Acompanhada apenas pelo cocheiro e pela aia,
seguira para leste, passando por Bentheim, Oldenzaal e
Ibbenbüren, atravessando campos ao abandono e aldeias
destruídas por incêndios, bosques com as árvores cortadas, as
paisagens sempre iguais da guerra. Não havia estalagens, tinham
passado a noite na carruagem, estendidos nos bancos, o que era
perigoso, embora nem lobos nem saqueadores se tivessem
mostrado interessados no pequeno veículo de uma velha rainha. E
assim tinham chegado sãos e salvos à estrada que ligava Münster a
Osnabrück.
No mesmo instante, tudo se havia modificado. Nos prados a erva
crescia alta e as casas tinham telhados intactos. Um ribeiro fazia
girar a roda de um moinho. À beira da estrada, havia casinhas de
vigia, diante das quais se encontravam homens bem alimentados,
armados de alabardas. Era a região neutra, onde não grassava a
guerra.
Diante dos muros de Osnabrück, um guarda aproximara-se da
janela da carruagem e perguntara o que desejavam. Sem proferir
palavra, a menina Von Quadt, a aia, estendera-lhe o salvo-conduto,
que o homem olhara sem grande interesse, indicando com um
aceno que podiam continuar. O primeiro cidadão com quem se
tinham deparado à beira da estrada, vestido com roupa limpa e com
a barba bem aparada, indicara-lhes o caminho para a residência do
emissário imperial. Aí chegados, o cocheiro ajudara-as, a ela e à
aia, a apear-se, e levara-as ao colo para não pisarem o solo
enlameado, depositando-as diante da entrada com a roupa
incólume. Dois alabardeiros haviam-lhes aberto as portas. Com a
segurança de quem entra em sua própria casa — segundo o
protocolo vigente em toda a Europa, um rei de visita era também o
dono da casa em toda a parte —, ela entrara na antecâmara, e a aia
informara que a ama desejava ver o embaixador.
Os lacaios cochicharam e trocaram sinais. Liz sabia que tinha de
aproveitar o efeito da surpresa. Em nenhuma daquelas cabeças
podia tomar forma a ideia de que era possível recusar recebê-la.
Há muito que não se apresentava como soberana. Quem vivia
numa casa exígua e só recebia a visita de comerciantes que
exigiam a devolução do dinheiro que lhe haviam emprestado, não
era muitas vezes que tinha essa oportunidade. Mas ela era
sobrinha-neta de Isabel, a Rainha Virgem, neta de Maria da
Escócia, filha de Jaime, senhor de dois reinos, e já em criança lhe
haviam ensinado a guardar a postura, a maneira de andar e o
comportamento de uma rainha. Também isso era um mister e quem
o aprendia nunca mais voltaria a esquecê-lo.
O mais importante era não fazer perguntas e não hesitar. Não
deixar transparecer nenhum gesto de impaciência nem a menor
agitação que pudesse ser tomada por dúvida. Tanto os pais como o
seu pobre Frederico, já há tanto falecido que tinha de olhar os seus
retratos para não se esquecer do seu rosto, assumiam essa atitude,
como se não houvesse reumatismo, fraqueza e preocupações
capazes de os afetarem.
Depois de ter passado algum tempo de pé muito direita, rodeada
de cochichos e de olhares pasmados, deu um passo e logo um
segundo em direção aos dois batentes da porta chapeados a ouro.
Na província de Vestefália não havia nenhuma porta semelhante,
alguém devia tê-la trazido de longe, bem como os quadros
pendurados nas paredes e os tapetes, os cortinados de damasco,
as tapeçarias de seda, os candelabros de muitos braços e os dois
lustres de cristal do teto, nos quais, embora fosse dia claro, todas as
velas ardiam. Nenhum duque e nenhum príncipe, nem sequer o
Papa, teriam convertido uma casa burguesa de uma pequena
cidade num palácio como aquele. Os únicos a fazê-lo eram o rei de
França e o imperador.
Sem se deter, avançou para a porta. Agora não podia hesitar. O
menor assomo de insegurança bastaria para recordar aos dois
lacaios, postados à esquerda e à direita da entrada, que era
possível não lhe abrir a porta. Se tal acontecesse, a sua iniciativa
sairia gorada. Nesse caso, teria de se sentar num dos assentos de
peluche, até aparecer alguém a dizer-lhe que, infelizmente, o
embaixador não dispunha de tempo, mas que o seu secretário a
receberia daí a duas horas, perante o que ela protestaria,
respondendo-lhe o lacaio friamente que lamentava; ela levantaria a
voz, o lacaio, impassível, repetiria o mesmo, ela levantaria ainda
mais a voz, outros lacaios acorreriam, e ela deixaria de ser uma
rainha para se converter numa senhora idosa que protestava na
antecâmara.
Por esse motivo, tinha de funcionar. Não haveria uma segunda
tentativa. Tinha de se mover como se aquela porta não existisse,
não podia abrandar; tinha de continuar e, caso ninguém abrisse, de
se atirar contra aquela porta com tanta força que a aia que a seguia
a dois passos de distância chocaria com as suas costas, e a
vergonha seria insuportável. Precisamente por esse motivo, iam
abrir-lhe; era esse o truque.
Funcionou. Com uma expressão desconcertada, os lacaios
pegaram nos puxadores e abriram os batentes de par em par. Liz
entrou na sala de receções. Voltou-se e, com um gesto da mão,
indicou à aia que não a seguisse, o que era insólito. Uma rainha não
fazia visitas sem acompanhantes. Mas aquela não era uma situação
normal. Estupefacta, a aia deteve-se, e os lacaios fecharam a porta.
A divisão parecia gigantesca. Talvez isso se devesse à hábil
disposição dos espelhos, ou talvez se tratasse de um truque do
mágico da corte vienense. O espaço parecia tão grande que não se
percebia como cabia na casa. Estendia-se como o salão de um
palácio e um caudal de tapetes separava Liz de uma secretária
distante. Ao fundo, através dos cortinados de damasco abertos,
entrevia-se uma série de divisões, ainda mais tapetes, mais
candelabros de ouro, mais lustres e quadros.
Atrás da secretária, levantou-se um cavalheiro de baixa estatura,
com uma barba grisalha e uma aparência tão discreta que Liz
demorou um momento a dar por ele. Tirou o chapéu e fez uma
reverência palaciana.
— Sede bem-vinda — disse ele. — Poderei acalentar a
esperança, Madame, de que a viagem não tenha sido demasiado
incómoda?
— Sou Isabel, rainha da…
— Perdoai-me a interrupção, que se destina apenas a poupar
esforços a Vossa Alteza. Não são necessárias explicações, estou ao
corrente.
Liz demorou algum tempo a compreender o que ele dissera.
Inspirou antes de lhe perguntar como sabia quem ela era, mas mais
uma vez ele foi mais rápido.
— Porque é a minha profissão saber coisas, Madame. E a minha
missão é entendê-las.
Ela franziu o sobrolho. Sentia calor, o que em parte se devia ao
casaco de peles e, em parte, ao facto de não estar habituada a que
a interrompessem. Agora ele estava curvado para a frente, com uma
mão em cima da mesa, a outra atrás das costas, como se estivesse
acometido por um ataque de lumbago. Em passos rápidos, ela
avançou para uma das cadeiras que se encontravam diante da
secretária. Porém, como num sonho, a sala era tão grande e a
secretária encontrava-se tão longe que iria demorar a alcançá-la.
O facto de ele a ter tratado por Alteza significava que prezava a
sua posição de membro da família real inglesa, embora não a
reconhecesse como rainha da Boémia, pois, de outro modo, tê-la-ia
tratado por Majestade; e de modo nenhum a reconhecia como
princesa, pois nesse caso teria usado a expressão Alteza
Sereníssima, o que em Inglaterra pouco significava, mas ali, no
império germânico, tinha mais valor do que a Alteza usada com a
filha de um rei. E precisamente por aquele homem saber como
proceder, era necessário sentar-se antes que ele a convidasse a
fazê-lo, pois enquanto, como é natural, tinha de oferecer uma
cadeira a uma princesa, não lhe cabia fazê-lo tratando-se de uma
rainha. Os soberanos sentam-se onde muito bem querem e todos os
outros ficam de pé, até o monarca lhes permitir que se sentem.
— Vossa Alteza deseja…
Mas como a cadeira ainda estava longe, Liz interrompeu-o:
— Sois quem eu presumo?
Essa pergunta levou-o a ficar um momento em silêncio. Por um
lado, porque não estava à espera que ela falasse bem alemão. Liz
aproveitara bem o tempo, não se tinha mantido ociosa durante todos
aqueles anos, tivera lições com um jovem alemão encantador, a
quem estimava muito e por quem quase se poderia ter apaixonado.
Era frequente sonhar com ele e uma vez tinha-lhe mesmo escrito
uma carta, mas tal não era possível, não se podia permitir um
escândalo. Por outro lado, guardou silêncio porque ela o tinha
magoado. Um embaixador imperial devia ser tratado por Excelência
— por todos, exceto por um rei. Tinha de insistir em que ela usasse
um tratamento que Liz jamais lhe poderia conceder. Esse problema
tinha uma única solução: uma pessoa como ela e uma pessoa como
ele nunca se deviam encontrar.
Quando o embaixador retomou a palavra, Liz mudou de direção,
dirigiu-se a um escabelo e sentou-se; agora fora ela a adiantar-se.
Regozijou-se com aquela pequena vitória, apoiou a bengala à
parede e entrelaçou os dedos no regaço. Foi então que viu o olhar
dele.
Sentiu-se gelada. Como pudera cometer um erro semelhante?
Por certo que tal se devia a ter perdido a prática com os anos. Como
era natural, não podia ficar de pé nem esperar que ele a mandasse
sentar, mas um assento sem costas era inadmissível. Enquanto
rainha, mesmo em presença do imperador tinha direito a instalar-se
num assento com um apoio para as costas e para os braços.
Sentar-se num fauteuil já seria rebaixar-se, mas um escabelo era
impensável. E, deliberadamente, o embaixador só mandara instalar
escabelos na sala de visitas, e só atrás da sua secretária havia uma
cadeira com encosto.
Que fazer? Sorriu, e decidiu comportar-se como se aquilo não
tivesse importância. Mas agora era ele quem estava em vantagem:
bastar-lhe-ia mandar entrar as pessoas que se encontravam na
antecâmara e a notícia de que Liz havia estado sentada à sua frente
num escabelo propagar-se-ia como fogo em palha seca. Mesmo em
Inglaterra rir-se-iam dela.
— Isso depende do que Vossa Alteza se digne presumir —
respondeu ele —, mas tal como a este humilde servo de Vossa
Alteza não compete supor que Vossa Alteza possa presumir outra
coisa que não o que está certo, de igual modo não me ficaria bem
responder com um sim à pergunta de Vossa Alteza. Sou Johann von
Lamberg, embaixador do imperador, ao serviço de Vossa Alteza.
Desejais um refresco? Vinho?
Esse foi outro hábil insulto à sua dignidade de rainha, pois a um
monarca não se oferece nada — enquanto dono da casa, ele tem o
direito de exigir o que lhe aprouver. Coisas dessas não eram de
somenos importância. Três anos tinham os embaixadores passado
apenas a deliberar quem devia fazer a vénia a quem e qual dos dois
devia ser o primeiro a deschapelar-se. Quem cometesse um erro de
etiqueta não podia sair vitorioso. Por esse motivo, Liz ignorou a
oferta, o que não foi uma decisão fácil, pois tinha muita sede.
Permaneceu imóvel no seu escabelo, a observar o embaixador. Isso
sabia ela fazer. Aprendera a ficar calmamente sentada, nisso tinha
prática, pelo menos ninguém a superava.
Lamberg, por seu lado, continuava inclinado para a frente, com
uma mão em cima da mesa e a outra atrás das costas.
Aparentemente, assumia essa atitude para não ter de decidir se
havia de se sentar ou de ficar de pé: perante uma rainha não devia
sentar-se, embora perante uma princesa constituísse uma violação
da etiqueta um embaixador imperial ficar de pé enquanto ela estava
sentada. Uma vez que, enquanto embaixador do imperador não
reconhecia o título de rainha de Liz, teria sido lógico sentar-se —
mas, ao mesmo tempo também era uma afronta grave que, dessa
maneira, evitava por cortesia e por ainda não saber de que armas e
propostas ela dispunha.
— Permitis que vos faça uma pergunta?
De súbito, a maneira de falar do embaixador foi-lhe tão
desagradável como o seu sotaque austríaco.
— Como Vossa Alteza sabe melhor do que ninguém, tem aqui
lugar um congresso de embaixadores. Desde o início das
negociações, nenhum príncipe pôs o pé em Münster e em
Osnabrück. Muito se congratula este servidor dedicado de Vossa
Alteza por poder acolher a gentil visita de Vossa Alteza na sua
humilde habitação, ao mesmo tempo que receia… — Suspirou
como se proferir aquelas palavras lhe causasse uma profunda
preocupação — … que isso seja inconveniente.
— Quereis dizer que também devíamos ter enviado um
embaixador.
Lamberg sorriu de novo. Liz sabia o que ele pensava e sabia que
ele sabia que ela sabia: tu não és ninguém, vives numa casa
exígua, estás afogada em dívidas, não envias embaixador aos
congressos.
— É como se eu não estivesse aqui — disse Liz. — Por isso
podemos falar, não é verdade? Podeis imaginar que se trata de um
monólogo. Como se falásseis em pensamento, e eu, em
pensamento, vos respondesse.
Sentiu qualquer coisa com que não tinha contado. Passara tanto
tempo ocupada com preparativos, a ponderar, a recear aquele
encontro, e agora que o momento era chegado acontecia algo
extraordinário: divertia-se! Todos aqueles anos numa casa exígua,
afastada de pessoas de nomeada e de acontecimentos importantes
— agora, de súbito, encontrava-se de novo num palco, rodeada de
ouro, de prata e de tapeçarias, a falar com um homem astuto,
perante o qual cada palavra contava.
— Todos sabemos que o Palatinado é um eterno pomo de
discórdia — disse ela. — E o mesmo se pode dizer do cargo de
príncipe eleitor palatino, que o meu falecido marido desempenhou.
Ele riu baixinho.
Isso deixou-a desorientada. Mas era precisamente essa a
intenção dele e, por esse motivo, não podia mostrar-se perturbada.
— Os príncipes eleitores do império — prosseguiu — não irão
aceitar que os Wittelsbacher bávaros conservem o eleitorado, de
que o imperador tão injustamente desapossou o meu marido. Se
César pode fazê-lo com um de nós, dirão, pode fazê-lo com todos. E
se nós…
— Se permitis que o diga, aceitaram esse estado de coisas
durante muito tempo. O vosso esposo, bem como Vossa Alteza,
encontrava-se sujeito à proscrição imperial, o que, em qualquer
outro lugar, me obrigaria a mandar prender Vossa Alteza.
— Foi por isso que viemos aqui, e não a qualquer outro lugar.
— Se me permitis…
— Permito-vos, mas primeiro ouvi-me. O duque da Baviera, que
se intitula príncipe eleitor, usurpou o título do meu marido. O
imperador não tem o direito de eliminar um eleitorado. Os príncipes
eleitores elegem o imperador, mas não é o imperador que elege os
príncipes eleitores. Porém, ambos sabemos qual é a situação. O
imperador deve dinheiro aos bávaros, que têm de novo na mão a
nobreza católica. Por esse motivo, fazemos-vos uma proposta.
Somos a rainha coroada da Boémia, e a coroa…
— Se me permitis, durante um único inverno há trinta…
— … passará para o meu filho.
— A coroa da Boémia não é hereditária. Se o fosse, os nobres
boémios não teriam podido oferecer o trono ao conde palatino
Frederico, esposo de Vossa Alteza. O facto de ele ter aceitado a
coroa significa que sabia que o filho de Vossa Alteza não pode
reivindicar esse direito.
— Pode ver-se a situação por esse prisma, mas terá de ser
assim? É possível que a Inglaterra não encare as coisas desse
modo. Se o meu filho fizer essa reivindicação, a Inglaterra apoiá-lo-
á.
— Em Inglaterra grassa uma guerra civil.
— Exatamente e, caso o meu irmão seja deposto pelo
parlamento, oferecerão a coroa inglesa ao meu filho.
— Isso é, no mínimo, improvável.
Ouviram-se trombetas a tocar no exterior: um som metálico, que
subiu, ficou durante algum tempo a pairar no ar até se extinguir. Liz
ergueu o sobrolho numa expressão interrogativa.
— É Longueville, o colega francês — elucidou Lamberg. — Cada
vez que se senta a comer, manda tocar a fanfarra. Todos os dias.
Está aqui com um séquito de seiscentos homens. Com quatro
retratistas que estão constantemente a pintá-lo e três escultores em
madeira que fazem bustos dele. A que se destinam, é um segredo
de Estado.
— Haveis-lhe perguntado?
— Não estamos autorizados a falar uns com os outros.
— Isso não é impeditivo para as negociações?
— Não estamos aqui como amigos nem para travarmos
amizade. O embaixador do Vaticano desempenha o papel de
mediador entre nós, bem como o embaixador de Veneza entre mim
e os protestantes, pois o embaixador do Vaticano também não está
autorizado a falar com protestantes. E agora tenho de me despedir,
Madame, a honra desta conversa é tão grande como imerecida,
mas tarefas prementes exigem que lhes dedique o meu tempo.
— Um oitavo eleitorado.
Lamberg ergueu a cabeça. Por instantes, o seu olhar cruzou-se
com o de Liz. Em seguida, tornou a baixá-lo para a mesa.
— O bávaro ficará com o seu eleitorado — disse Liz. —
Renunciamos formalmente à Boémia. E se…
— Se me permitis, Alteza, não podeis renunciar a algo que não
vos pertence.
— O exército sueco está às portas de Praga. Em breve a cidade
voltará a estar nas mãos dos protestantes.
— Por certo os suecos não vos entregarão a cidade, caso
venham a tomá-la.
— Dentro em breve a guerra irá terminar. Então haverá uma
amnistia. E também haverá a rutura… a suposta rutura da paz
imperial devido à retirada do meu esposo.
— A amnistia há muito que foi negociada. Todos os atos de
guerra serão perdoados, à exceção dos cometidos por uma única
pessoa.
— Imagino de quem se trata.
— Foi o esposo de Vossa Alteza quem deu início a esta guerra
interminável. Com a ajuda de um conde palatino que quis elevar-se
demasiado. Não digo que Vossa Alteza seja culpada, mas não
posso imaginar que a filha do grande Jaime nem sequer tenha
tentado chamar à razão o seu ambicioso esposo. — Lentamente,
Lamberg empurrou para trás a cadeira e levantou-se. — A guerra já
dura há tanto tempo que a maioria dos que vivem hoje em dia nunca
conheceram a paz. Só os velhos se recordam do que isso é. Eu e os
meus colegas, incluindo esse palerma que manda tocar a fanfarra
quando se senta à mesa, somos os únicos que podemos pôr-lhe
termo. Cada um deles quer territórios que os outros de modo
nenhum estão dispostos a dar-lhe, cada um exige subsídios, cada
um quer que se anulem tratados de apoio que os outros consideram
irrescindíveis, a fim de que em vez deles surjam novos tratados que
outros consideram inaceitáveis. Isto já supera em muito as
capacidades humanas. No entanto, temos de o conseguir. Fostes
vós a começar esta guerra, Madame. Serei eu a acabar com ela.
Puxou um cordão de seda que se encontrava em cima da
secretária. Vindo da sala contígua, Liz ouviu o som de uma
campainha. Agora ele está a chamar um secretário, pensou, algum
anão grisalho para me acompanhar à saída. Sentiu-se atordoada. A
sala parecia subir e descer, como se estivesse num navio. Nunca
ninguém falara assim com ela.
Um raio de luz chamou-lhe a atenção. Penetrava por uma
estreita fenda entre os cortinados, e grãos de poeira dançavam no
seu interior. Um espelho na parede em frente captou-o e projetou-o
na parede oposta, onde iluminou um ponto de uma moldura. O
quadro era de Rubens: representava uma mulher alta, um homem
com uma lança e, por cima deles, uma ave no céu azul. A imagem
parecia ressumar serenidade. Liz recordou-se de Rubens, um
homem triste, com uma respiração pesada e audível. Tinha querido
comprar um quadro dele, mas era excessivamente caro para as
suas posses; além do dinheiro, nada parecia interessar o pintor.
Como podia pintar assim?
— Praga nunca foi para nós — disse Liz. — Praga foi um erro.
Mas, segundo as leis do império, o Palatinado pertence ao meu
filho. O imperador não tinha o direito de nos privar da dignidade
eleitoral. Por esse motivo não regressei a Inglaterra. O meu irmão
convidou-me repetidas vezes, mas formalmente a Holanda continua
a fazer parte do império e, enquanto aí viver, manteremos esta
pretensão.
Uma porta abriu-se, dando entrada a um homem corpulento, com
um rosto afável e olhos inteligentes. Tirou o chapéu e fez uma vénia.
Embora fosse jovem, era quase calvo.
— O conde Wolkenstein — apresentou Lamberg. — O nosso
cavalier d’ambassade. Encarregar-se-á de vos encontrar um
alojamento. Já não há quartos nas estalagens, cada canto está
ocupado com os embaixadores e os seus séquitos.
— Não queremos a Boémia — prosseguiu Liz —, mas não
abdicamos do eleitorado. O meu primogénito, que era inteligente e
encantador e que teria conseguido uma conciliação, faleceu. O
barco voltou-se e ele morreu afogado.
— Sinto muito — disse Wolkenstein com uma simplicidade que a
comoveu.
— O meu segundo filho, o seguinte na sucessão ao trono, não é
inteligente nem encantador, mas tem direito à dignidade eleitoral do
Palatinado, e se o bávaro não a devolver, tem de criar um oitavo
eleitorado. Os protestantes não irão tolerar outra alternativa. De
outro modo, regressarei a Inglaterra, onde o Parlamento destituirá o
meu irmão e fará o meu filho rei. Já no trono inglês ele reclamará
Praga, e a guerra não terminará. Impedirei que tal aconteça. Eu
sozinha.
— Não precisamos de ficar com os ânimos tão exaltados —
disse Lamberg. — Transmitirei a mensagem de Vossa Alteza a Sua
Majestade Imperial.
— E o meu marido tem de ser incluído na amnistia. Se todos os
atos de guerra vão ser perdoados, então os seus também têm de o
ser.
— Nunca na vida — ripostou Lamberg.
A arder de cólera, Liz pôs-se de pé. Sentiu que tinha corado,
mas conseguiu erguer as comissuras dos lábios, pousar a bengala
no chão e dirigir-se à porta.
— Foi uma grande honra, uma honra inesperada, que iluminou
esta humilde residência.
Lamberg tirou o chapéu e fez uma reverência. Na sua voz não
havia sombra de ironia.
Liz ergueu a mão no displicente aceno real e continuou a andar
sem proferir palavra.
Wolkenstein alcançou-a, chegou à porta e bateu a dar sinal.
Imediatamente os lacaios que se encontravam no exterior abriram
os batentes. Liz saiu para a antecâmara, seguida por Wolkenstein. À
frente da aia, dirigiram-se à saída.
— No que diz respeito ao alojamento de Vossa Alteza Real —
disse Wolkenstein —, poderíamos oferecer-vos…
— Não é necessário incomodar-vos.
— Não é nenhum incómodo, mas sim um grande…
— Estais de facto convencido de que eu desejo alojar-me num
antro repleto de espiões imperiais?
— Para ser sincero, onde quer que Sua Alteza Real se aloje, o
local estará repleto de espiões. Temo-los de sobra. Somos vencidos
nos campos de batalha, e já não nos restam muitos segredos. De
que se iriam ocupar os nossos pobres espiões durante todo o dia?
— O imperador está a ser derrotado nos campos de batalha?
— Eu próprio lá estive, na Baviera. O meu dedo ficou lá! —
Ergueu a mão a fim de lhe mostrar que o indicador direito da luva
estava vazio. — Perdemos meio exército. Vossa Alteza Real não
escolheu um mau momento. Nunca fazemos cedências enquanto
nos sentimos fortes.
— O momento é propício?
— O momento é sempre propício quando se começa bem.
Regozija-te contigo mesmo e ignora o sofrimento se sorte, lugar e
hora conspiram contra ti.
— Como?
— É de um poeta alemão. É uma coisa que temos agora, poetas
alemães! Chama-se Paul Fleming. As suas obras são tão lindas que
dão vontade de chorar. Infelizmente morreu cedo, doente dos
pulmões. Uma pessoa nem se atreve a imaginar aonde poderia ter
chegado. É por causa dele que escrevo em alemão.
— Poemas? — perguntou Liz com um sorriso.
— Prosa.
— A sério? Em alemão? Uma vez tentei com Opitz…
— Opitz!
— Sim, Opitz.
Riram ambos.
— Sei que parece uma tolice — disse Wolkenstein. — Mas creio
que é possível, e por isso decidi um dia escrever a minha vida em
alemão. Por esse motivo estou aqui. Um dia vão querer saber como
foi este grande congresso. Levei um malabarista de Andechs a
Viena, ou, na realidade, foi ele que me levou a Viena, pois sem ele
teria morrido. Mas quando Sua Majestade Imperial o mandou para
aqui a fim de atuar perante os embaixadores, aproveitei a ocasião e
juntei-me a ele.
Liz fez um sinal à aia, que saiu a correr para chamar a
carruagem. Era um veículo muito bonito, rápido e até certo ponto
conforme ao estatuto de Liz. Esta gastara as últimas poupanças a
alugá-lo por duas semanas, provido de dois cavalos vigorosos e de
um cocheiro de confiança. Isso significava que podia ficar três dias
em Osnabrück antes de dar início à viagem de regresso.
Saiu de casa e cobriu a cabeça com o capuz de pele. O encontro
tinha corrido bem? Não sabia. Teria podido dizer muitas coisas mais,
abordar muito mais temas, mas era sempre assim. Certa vez o papá
dissera que só era possível utilizar uma pequena parte das armas
de que se dispunha.
A matraquear, a carruagem aproximou-se. O cocheiro desceu.
Liz voltou-se para olhar e constatou com profundo pesar que o
gordo cavalier d’ambassade não a havia seguido. De bom grado
teria falado um pouco mais com ele.
O cocheiro passou-lhe um braço à volta das ancas e transportou-
a até à carruagem.
II

Na manhã seguinte, Liz encontrou-se com o embaixador sueco.


Dessa vez, anunciara a sua visita, a Suécia era uma potência amiga
e não eram necessárias situações imprevistas. O embaixador iria
alegrar-se por se encontrar com ela.
A noite tinha sido atroz. Após uma longa busca, tinham
encontrado um quarto numa estalagem particularmente suja: sem
janela, com carqueja no chão e um estreito saco de palha a fazer de
cama, que teve de partilhar com a ama. Quando, decorridas horas,
conseguira por fim cair num sono agitado, sonhara com Frederico.
Estavam de novo em Heidelberga, como outrora, antes de
indivíduos com nomes impronunciáveis lhes terem imposto a coroa
da Boémia. Ao lado um do outro, percorriam uma das galerias de
pedra do palácio, e ela sentia no mais fundo da sua alma o que era
duas pessoas estarem unidas. Ao acordar, ouvira roncar o cocheiro
que dormia à porta do lado de fora e pensara que já vivia sem o
marido há tanto tempo como o que havia estado casada com ele.
Quando entrou na antecâmara do embaixador, teve de reprimir
um bocejo, pois dormira muito pouco. Também ali havia tapetes,
mas as paredes nuas tinham uma frieza protestante, e só na mais
longa estava pendurado um crucifixo com pérolas incrustadas.
Encontravam-se presentes muitas pessoas: algumas examinavam
documentos, outras, inquietas, andavam de um lado para o outro,
dando a entender que já aguardavam há muito tempo. Como era
possível a antecâmara de Lamberg estar vazia? Teria outra, ou
talvez mesmo várias?
Todos os olhares se dirigiram para Liz. Fez-se silêncio. Como na
véspera, avançou para a porta em passo firme, enquanto a aia,
atrás dela, anunciava em voz sonora e um tanto aguda em demasia,
a chegada da rainha da Boémia. De súbito, Liz foi assaltada pelo
temor nervoso de que, daquela vez, as coisas não corressem bem.
E, na realidade, o lacaio não estendeu a mão para o puxador da
porta.
Com um meio passo deselegante imobilizou-se, de um modo tão
abrupto que teve de se apoiar com a mão na porta. Ouviu a aia que
a seguia quase tropeçar. Sentiu calor. Ouviu murmúrios, ouviu
cochichos e, sim, também ouviu risadinhas.
Lentamente, deu dois passos à retaguarda. Por sorte, a aia teve
a presença de espírito para recuar de igual modo. Com a mão
esquerda crispada, Liz agarrou na bengala e olhou para o lacaio
com o seu sorriso mais encantador.
O homem fitou-a com um ar palerma. Como é natural, ninguém o
tinha informado de que havia uma rainha da Boémia, era jovem, não
sabia nada e não queria correr o risco de cometer um erro. Quem
podia censurá-lo?
Porém, ela não podia ir sentar-se assim, sem mais nem menos.
Uma rainha não se instalava na antecâmara até terem tempo para a
receber. É certo que havia bons motivos para os soberanos não
viajarem para um congresso de embaixadores. Mas que outra coisa
teria podido fazer? O filho, por cuja dignidade eleitoral ela lutava, era
demasiado arrogante e inexperiente, e, sem dúvida, teria deitado
tudo a perder. E ela não dispunha de diplomatas.
Permaneceu tão imóvel como o lacaio. Os murmúrios
aumentaram. Ouviu risadas sonoras. Não corar, pensou, isso é que
não. Apenas não corar!
Agradeceu a Deus de todo o coração quando alguém abriu a
porta do outro lado. Uma cabeça surgiu na abertura. Um olho
encontrava-se mais alto do que o outro, o nariz apresentava-se
extraordinariamente de viés, os lábios eram cheios, mas pareciam
não unir bem. No queixo tinha uma pera desgrenhada.
— Vossa Majestade — disse o rosto.
Liz entrou, e o homem oblíquo tornou a fechar a porta
rapidamente, como se quisesse evitar que outros entrassem atrás
dela.
— Alvise Contarini, para vos servir — disse em francês. —
Embaixador da República de Veneza. Encontro-me aqui na
condição de mediador. Acompanhai-me.
Conduziu-a ao longo de um corredor estreito. Também ali as
paredes estavam nuas, mas o tapete era requintado e, como Liz
reconheceu, pois finalmente decorara dois palácios, valiosíssimo.
— Umas palavras prévias — disse Contarini. — Tal como
anteriormente, a maior dificuldade é a França exigir que a linha
imperial da Casa de Áustria deixe de apoiar a linha espanhola. À
Suécia seria indiferente, mas devido aos avultados subsídios que
este país recebeu de França, os suecos têm de satisfazer essa
exigência. O imperador continua a opor-se categoricamente.
Enquanto este assunto não estiver resolvido, não conseguiremos a
assinatura de nenhuma das três coroas.
Liz inclinou a cabeça e esboçou um sorriso impercetível, como
toda a vida fizera quando não percebia qualquer coisa.
Provavelmente, pensou, aquele homem não esperava nada de
concreto da sua parte e falava apenas por hábito. Em todas as
cortes havia gente assim.
Chegaram ao fim do corredor, Contarini abriu a porta e cedeu-lhe
passagem com uma reverência.
— Vossa Majestade, os embaixadores suecos: o conde
Oxenstierna e o doutor Adler Salvius.
Exasperada, olhou em redor. Lá estavam eles sentados, um no
canto direito, o outro no esquerdo da sala de receção, em poltronas
de igual tamanho, como que dispostas por um pintor. No meio da
sala, encontrava-se um outro assento com apoios para os braços.
Quando Liz se dirigiu a eles, os dois homens puseram-se de pé e
fizeram uma reverência profunda. Liz sentou-se e ambos ficaram de
pé. Oxenstierna era um homem gordo, com as faces cheias; Salvius
era alto e magro e, sobretudo, parecia muito cansado.
— Vossa Majestade esteve com Lamberg? — perguntou Salvius
em francês.
— Estais ao corrente?
— Osnabrück é uma cidade pequena — respondeu Oxenstierna.
— Vossa Majestade sabe que isto é um congresso de
embaixadores? Não há príncipes, nem monarcas e…
— Estou a par disso. A bem dizer, não estou aqui. E o motivo de
não estar aqui é o eleitorado a que a minha família tem direito. Se
estou bem informada, a Suécia apoia a nossa reivindicação da
restituição do título.
Era bom falar francês; as palavras saíam mais depressa, as
expressões apropriadas ocorriam-lhe, como se fosse a própria
língua a construir as frases. Teria preferido falar inglês, a língua rica,
dúctil e melodiosa do seu país, a língua do teatro e da poesia, mas
ali quase ninguém a percebia. Também não havia embaixador inglês
em Osnabrück, finalmente o papá tinha-os sacrificado, a ela e a
Frederico, a fim de poupar o seu país à guerra.
Esperou. Ninguém proferiu palavra.
— Isto está certo? — perguntou por fim. — A Suécia apoiou a
nossa pretensão, não é verdade?
— Em princípio — respondeu Salvius.
— Se a Suécia insistir na restituição do nosso título real, o meu
filho oferecerá a sua renúncia a essa mesma restituição, desde que
a corte imperial nos garanta, num acordo secreto, a criação de um
oitavo eleitorado.
— O imperador não pode criar um novo eleitorado — observou
Oxenstierna. — Não tem o direito de o fazer.
— Terá, se os nobres lhe permitirem — disse Liz.
— Mas não estão autorizados a fazê-lo — disse Oxenstierna. —
Além disso, queremos muito mais, nomeadamente a restituição de
tudo que foi tirado ao nosso lado no ano de vinte e três.
— Um novo eleitorado seria do interesse dos católicos, porque a
Baviera conservaria a dignidade eleitoral. E seria do interesse dos
protestantes, porque o nosso lado ficaria com mais um príncipe
eleitor protestante.
— Talvez — disse Salvius.
— Jamais — disse Oxenstierna.
— Os dois cavalheiros têm razão — disse Contarini.
Liz olhou-o com uma expressão interrogativa.
— Nada mais é possível — disse Contarini em alemão. — É
necessário que tenham ambos razão. Um está muito próximo do
pai, o chanceler, e quer prosseguir com a guerra, e o outro foi
enviado pela rainha, para firmar a paz.
— Que dizeis? — perguntou Oxenstierna.
— Citei um provérbio alemão.
— A Boémia não faz parte do império — disse Oxenstierna. —
Não podemos incluir Praga nas negociações. Teríamos de resolver
isso primeiro. Antes de se negociar, tem sempre de se negociar
previamente o que se quer de facto negociar.
— Por outro lado, Sua Majestade, a rainha… — disse Salvius —
Sua Majestade não tem experiência, e o meu pai é o seu tutor. E ele
pensa que…
— Era.
— Como?
— A rainha é maior.
— Acabou de atingir a maioridade. O meu pai, o chanceler, é o
estadista mais experiente da Europa. Desde que o nosso grande
Gustavo Adolfo exalou o último suspiro em Lützen…
— Desde então praticamente não vencemos mais nada. Sem o
auxílio dos franceses, estaríamos perdidos.
— Quereis dizer…
— Quem sou eu para apoucar o mérito do vosso pai, Sua
Excelência o ilustríssimo senhor chanceler do império? Porém, sou
de opinião…
— Mas talvez a vossa opinião não conte tanto, senhor doutor
Salvius, talvez a opinião do segundo embaixador não…
— Do responsável máximo pela negociação.
— Nomeado pela rainha. Cujo tutor é o meu pai!
— Era. O vosso pai era o seu tutor!
— Talvez possamos chegar a acordo de que vale a pena refletir
sobre a proposta de Sua Majestade — disse Contarini. — Não
precisamos de dizer que a acatamos, nem de prometer que iremos
refletir sobre ela, mas podemos todos chegar a acordo de que vale a
pena refletir sobre ela.
— Isso não chega — disse Liz. — Mal Praga for tomada, tem de
se dar uma ordem oficial ao conde Lamberg para que devolva ao
meu filho o trono da Boémia. Então o meu filho prometer-lhe-á
imediatamente, num acordo secreto, renunciar ao trono, mal, por
seu lado, firmar um acordo secreto com a Suécia e a França sobre o
oitavo eleitorado. Isso tem de acontecer depressa.
— Nada se faz depressa — disse Contarini. — Estou aqui desde
o princípio das negociações. Pensei que não aguentava um mês
nesta província horrorosa onde está sempre a chover. Entretanto,
passaram cinco anos.
— Sei como é envelhecer enquanto se espera — disse Liz. — E
não vou esperar mais. Se a Suécia não exigir a coroa boémia, de
modo que o meu filho possa renunciar a ela em troca da dignidade
eleitoral, seremos nós a renunciar ao eleitorado. Então não disporeis
de mais nada que vos permita conseguir um oitavo eleitorado. Seria
o fim da nossa dinastia, mas eu regressaria a Inglaterra. Seria um
prazer estar de novo em casa. Seria um prazer voltar a ir ao teatro.
— Para mim também seria um prazer estar em Veneza — disse
Contarini. — Ainda gostaria de ser doge.
— Vossa Majestade permite que pergunte — disse Salvius. — A
fim de compreender. Haveis vindo aqui para exigir algo que nós
próprios nunca teríamos tentado obter. E a vossa ameaça é a
seguinte: se não fizermos o que desejais, retirareis a vossa
exigência? Como havemos de chamar a uma manobra semelhante?
Liz esboçou o seu sorriso mais misterioso. Nesse momento
quase sentiu pena de não estar no palco de um teatro, na
semiobscuridade de uma sala de espetáculos diante de um público
a escutá-la apaixonadamente. Pigarreou e, embora já soubesse que
resposta ia dar, fingiu refletir, a fim de conseguir maior efeito sobre
aqueles espectadores inexistentes.
— Proponho que lhe chameis política — disse finalmente.
III

Ao princípio da tarde do dia seguinte, o último da sua estadia em


Osnabrück, Liz deixou o seu quarto na estalagem para se dirigir à
receção do bispo. Ninguém a tinha convidado, mas ela ouvira dizer
que todas as pessoas de uma certa importância deviam estar
presentes. Um dia mais tarde, por essa hora, já estaria a atravessar
uma paisagem devastada, de regresso à sua casa exígua em Haia.
Não podia protelar mais aquilo. Tinha de partir, não apenas
devido à falta de dinheiro, mas também porque conhecia bem as
regras de um bom drama: uma rainha deposta, que aparecia de
repente e voltava a desaparecer, causava sensação. Mas uma
rainha deposta que aparecia e ficava, até se habituarem à sua
presença e começarem a dizer graças sobre a sua pessoa, não
resultava. Tinha aprendido isso na Holanda, onde, em tempos, ela e
Frederico tinham sido recebidos e tratados tão cordialmente e onde,
entretanto, os membros dos Estados Gerais alegavam sempre
qualquer impedimento quando ela lhes pedia que a recebessem.
Aquela receção seria a sua última entrada em cena. Fizera as
suas propostas, dissera o que tinha a dizer. Não podia fazer mais
pelo filho.
Infelizmente, esse filho encontrava-se a seguir ao irmão dela na
linha sucessória e era um verdadeiro palerma. Ambos se pareciam
com o avô, mas sem o menor vestígio da sua sagacidade; eram
homens dominadores e presunçosos, com uma voz profunda,
ombros largos e movimentos amplos, que adoravam ir à caça. O
irmão dela, em Inglaterra, por certo perderia a sua guerra contra o
parlamento, e o filho, caso viesse a ser príncipe eleitor, dificilmente
passaria à história como um grande governante. Tinha trinta anos, o
que significava que já não era jovem e, de momento, andava a
deambular pela Inglaterra, provavelmente à caça, enquanto ela
negociava a seu favor na Vestefália. As poucas cartas que recebia
dele eram breves e de uma frieza próxima da hostilidade.
E, como sempre que pensava nele, ocorreu-lhe a imagem do
outro filho: o seu primogénito belo, inteligente e brilhante, que
herdara a alma doce do pai e o discernimento da mãe — o seu
orgulho, a sua alegria e a sua esperança. Quando aquela imagem
lhe vinha à mente, apresentava simultaneamente diferentes rostos:
via-o como fora com três meses, com doze, com catorze anos. E
então sentia irromper outra imagem, que acompanhava qualquer
pensamento com o filho e que, por esse motivo, a levava a esforçar-
se por pensar nele tão pouco quanto possível: o barco a virar-se, o
abismo negro do rio. Conhecia a sensação de engolir água
involuntariamente quando se nadava, mas afogar-se? Não
conseguia imaginar como seria.
Osnabrück era minúscula, e teria podido ir a pé da estalagem.
Porém, as ruas eram sujas, mesmo em comparação com a
Alemanha. E, além do mais, que impressão causaria isso?
Deixou, pois, que o cocheiro a transportasse de novo até à
carruagem, recostou-se e viu desfilar as casas estreitas de telhados
pontiagudos. A aia ia sentada ao seu lado, em silêncio; estava
habituada a que Liz a ignorasse e nunca lhe dirigia a palavra;
comportar-se como uma peça de mobiliário era a única coisa que
uma aia tinha de saber fazer. Estava frio e caía uma chuva miúda,
embora se vislumbrasse a mancha pálida do Sol atrás das nuvens.
A chuva limpava o ar do cheiro das vielas. Crianças passavam a
correr e Liz viu um grupo de soldados a cavalo e, em seguida, uma
carroça puxada por um burro, carregada com sacas de farinha.
Viraram para a praça central. Aí, situava-se a residência do
embaixador imperial, onde havia estado dois dias antes; no meio da
praça erguia-se uma picota da altura de um homem, com orifícios
para a cabeça e os braços. Segundo lhe havia contado a
estalajadeira, ainda no mês anterior uma bruxa havia estado ali. O
juiz fora compassivo, tinham-lhe poupado a vida e, depois de passar
dez dias naquele instrumento de tortura, tinham-na expulsado da
cidade.
A catedral alemã era tosca, um mastodonte mal-acabado, com
uma torre mais grossa do que a outra. Ao lado haviam-lhe
acrescentado um edifício comprido, com cornijas maciças e um
telhado pontiagudo. Diversas carruagens obstruíam a praça, de
modo que Liz não podia avançar. O cocheiro viu-se obrigado a parar
a uma certa distância e a transportá-la até ao portal. O homem
cheirava mal e tinha a capa de pele empapada de chuva, mas, em
todo o caso, não a deixou cair.
Pô-la no chão com movimentos um tanto bruscos; Liz apoiou-se
à bengala para não perder o equilíbrio. Em momentos semelhantes,
sentia o peso da idade. Puxou o capuz para trás e pensou: a minha
última entrada em cena. Invadiu-a uma excitação como não
experimentava há anos. O cocheiro voltou para trás, para ir buscar a
aia, mas, em vez de esperar, Liz entrou sozinha.
Logo no átrio ouviu música. Deteve-se, à escuta.
— Sua Majestade, o imperador, enviou-nos os melhores
violinistas da corte.
Lamberg envergava uma capa púrpura. Ao pescoço tinha o colar
da Ordem do Tosão de Ouro. Ao seu lado, encontrava-se
Wolkenstein. Tiraram ambos os chapéus e fizeram uma vénia. Liz
dirigiu um aceno de cabeça a Wolkenstein, que lhe sorriu.
— Vossa Alteza parte amanhã — disse Lamberg.
Irritou-a a frase não soar como uma pergunta, mas sim como
uma ordem.
— Como sempre, o senhor conde está bem informado.
— Nunca tão bem quanto desejaria. Mas garanto a Vossa Alteza
que não lhe será fácil escutar música como esta em nenhum outro
sítio. Viena quer dar provas ao congresso da sua boa vontade.
— Por Viena perder no campo de batalha?
Lamberg fingiu não ter ouvido a pergunta.
— E assim a corte enviou os seus melhores músicos e atores e o
seu melhor malabarista. Vossa Alteza esteve na Suécia?
— De facto sabeis tudo.
— E agora Vossa Alteza também sabe que os suecos estão
divididos.
No exterior ouviram-se as trombetas, lacaios abriram a porta de
par em par, dando entrada a um homem resplandecente de pedras
preciosas, que conduzia pelo braço uma senhora com uma longa
cauda e um diadema. Ao passar, o homem lançou a Lamberg um
olhar não desprovido de simpatia, com uma inclinação de cabeça
tão impercetível que não chegava a ser um cumprimento.
— França? — perguntou Liz.
Lamberg fez um gesto de assentimento.
— Haveis enviado a nossa proposta para Viena?
Lamberg não respondeu. Não era possível saber se tinha ouvido
a pergunta.
— Ou não é necessário fazê-lo? Tendes poder para serdes vós a
decidir?
— Uma decisão do imperador é sempre uma decisão do
imperador e de mais ninguém. E agora tenho de despedir-me de
Vossa Alteza. Mesmo sob a proteção de um nome falso não é
conveniente um humilde servidor falar com Vossa Alteza.
— Por estarmos sob proscrição imperial ou por a senhora vossa
esposa ficar com ciúmes?
Lamberg riu baixinho.
— Se Vossa Alteza o permitir, o conde Wolkenstein acompanhar-
vos-á ao salão.
— Ele está autorizado a fazê-lo?
— O conde é uma alma livre perante Deus. Está autorizado a
fazer tudo o que não infringir as regras.
Wolkenstein ofereceu-lhe o braço, Liz pousou a mão sobre as
costas da mão dele, e, com passos comedidos, dirigiram-se ao
salão.
— Estão aqui todos os embaixadores? — perguntou ela.
— Todos. Só que nem todos podem cumprimentar todos, nem
todos falar com todos. Tudo está rigorosamente regulamentado.
— Estais autorizado a falar comigo, Wolkenstein?
— De modo nenhum. Mas posso caminhar ao vosso lado. E
contarei isso aos meus netos. E escreverei sobre isso. A rainha da
Boémia, escreverei, a lendária Isabel, que…
— A Rainha do Inverno?
— Queria dizer a fair phoenix bride.
— Sabeis inglês?
— Um pouco.
— Haveis lido John Donne?
— Não muito. Mas pelo menos li o belo poema em que ele exorta
o pai de Vossa Alteza Real a apoiar finalmente o rei da Boémia. No
man is an island.
Ela ergueu os olhos. O teto do salão de receções estava
decorado com os frescos imperfeitos que era frequente ver em
terras alemãs — habitualmente a obra de um artista italiano de
segunda classe que em Florença nunca conseguiria ter êxito. Numa
cornija viam-se estátuas de santos com uma expressão grave. Dois
empunhavam lanças, outros dois tinham cruzes, um tinha os punhos
fechados, outro ostentava uma coroa. Sob a cornija haviam
colocado tochas, e em quatro grandes lustres suspensos do teto
ardiam dezenas de velas, multiplicadas por espelhos. Junto da
parede do fundo encontravam-se seis músicos: quatro violinistas,
um harpista e o último com uma trompa estranha, como Liz nunca
vira.
Deram atenção à música. Mesmo em Whitehall, Liz nunca ouvira
nada semelhante. Um dos violinos fazia elevar-se das profundezas
uma melodia, que um outro retomava, conferindo-lhe nitidez e vigor,
para a passar em seguida ao terceiro, enquanto o quarto violino lhe
associava uma segunda melodia mais ligeira. Inesperadamente, as
duas melodias uniam-se, fundiam-se uma na outra, eram
recuperadas pela harpa, que agora ocupava o ponto central,
enquanto os violinos, como numa conversa em voz baixa, já haviam
dado início a uma nova melodia; precisamente nesse momento, a
harpa devolvia-lhes a primeira melodia, ambas associavam-se, e
sobre elas erguia-se o alegre clamor de uma terceira melodia,
metálica e palpitante, pela voz da trompa.
Em seguida, fez-se silêncio. A peça havia sido curta, mas era
como se tivesse durado mais tempo, como se fosse portadora de
um tempo próprio. Um ou outro espectador bateu as palmas
hesitante. Outros permaneceram em silêncio, parecendo escutar o
que lhes ia no íntimo.
— No caminho para aqui tocavam todas as noites para nós
ouvirmos — disse Wolkenstein. — O alto chama-se Hans Kuchner, é
da aldeia de Hagenbrunn, não andou na escola e mal sabe falar,
mas o Senhor abençoou-o com este dom.
— Vossa Majestade!
Um par avançara para ela: um cavalheiro com um rosto anguloso
e uma grande queixada, com uma senhora pelo braço que parecia
transida de frio.
Com tristeza, Liz constatou que Wolkenstein, que visivelmente
também não estava autorizado a dar mostras de se aperceber da
presença daquele homem, recuou um passo, cruzou as mãos atrás
das costas e afastou-se. O homem fez uma reverência e a mulher
uma pequena mesura.
— Wesenbeck — apresentou-se ele, pronunciando o som
consonântico no final do nome com uma tal dureza que mais parecia
uma pequena explosão. — O segundo embaixador do príncipe de
Brandeburgo. Para servir Vossa Majestade.
— Que gentil! — exclamou Liz.
— Exigir um oitavo eleitorado. As minhas homenagens!
— Não exigimos nada. Sou uma mulher fraca. As mulheres não
negoceiam nem exigem. O meu filho, por seu lado, neste momento
não possui nenhum título que lhe permita exigir seja o que for. Não
podemos fazer reivindicações. Só nos resta renunciar. Isso foi o que
eu propus com toda a humildade. Mais ninguém pode renunciar à
coroa da Boémia, só nós podemos fazê-lo, e estamos dispostos a
isso em troca da dignidade eleitoral. Deviam ser os nobres
protestantes a exigir a coroa para nós.
— E nós também.
Liz sorriu.
— E, se não o fizermos, por exemplo por não querermos que os
Wittelsbacher da Baviera mantenham a sua dignidade eleitoral…
— Isso seria um erro, pois irão mesmo conservá-la e, nesse
caso, renunciaríamos ao título de príncipe eleitor do Palatinado.
Com toda a clareza e perante o mundo inteiro. E então não vos
restaria nada mais para exigir.
Pensativo, o embaixador fez um aceno de assentimento.
De súbito, ocorreu a Liz uma ideia em que até então não se
atrevera a pensar. A sua iniciativa seria bem-sucedida! Quando
tivera a ideia de alugar uma carruagem para viajar até Osnabrück e
intervir nas negociações, a princípio, essa iniciativa parecera-lhe
completamente absurda. Levara quase um ano a reunir a confiança
em si mesma e mais um ano para pôr o seu plano em prática.
Porém, no fundo, durante todo o tempo estivera à espera de que se
rissem dela.
Mas agora, perante o homem com a grande queixada,
apercebeu-se, perplexa, de que, efetivamente, podia ser bem-
sucedida e conseguir o título de príncipe eleitor para o filho. Não fui
boa mãe para ti, pensou, e nem se pode dizer que te tenha amado
como devia, mas fiz uma coisa por ti: não regressei a Inglaterra,
permaneci na casa exígua a fingir que vivia numa corte no exílio,
rejeitei todos os homens depois da morte do teu pobre pai, embora
muitos me quisessem, e alguns muito jovens, pois eu era uma lenda
e, além do mais, formosa; mas sabia que, a fim de concretizar a
nossa reivindicação, não podia suscitar um escândalo, e nem por
um instante me esqueci disso.
— Contamos convosco — disse Liz. Teria encontrado o tom certo
ou teria sido demasiado solene? Mas aquele homem tinha uma
queixada tão grande, umas sobrancelhas tão farfalhudas e, quando
pronunciara o nome, quase ficara com os olhos marejados de
lágrimas. Para ele, o tom pomposo era apropriado.
— Contamos com Brandeburgo.
Ele fez uma vénia.
— Podeis contar com Brandeburgo.
A esposa contemplava Liz com um olhar de gelo. Na esperança
de que a conversa tivesse terminado, Liz dirigiu o olhar para
Wolkenstein, mas este já não estava visível; e agora também os
brandeburgueses se haviam afastado com passos lentos.
Ficou sozinha. Os músicos recomeçaram a tocar. Liz contou os
compassos e reconheceu a última dança em moda, um minuete.
Formaram-se duas filas, os cavalheiros de um lado, as damas do
outro. As filas afastaram-se, depois tornaram a aproximar-se, os
pares deram as mãos enluvadas. Depois de uma volta, separaram-
se, as filas voltaram a afastar-se, e tudo se repetiu, enquanto a
música retomava o tema inicial com variações ligeiras e cantantes:
afastar-se, juntar-se, uma volta, afastar-se. Na melodia ressoava
saudade, e adivinhava-se, sem se captar plenamente, de quem ou
de quê. Ali estava o embaixador francês ao lado do conde
Oxenstierna; sem olharem um para o outro, moviam-se, com passos
cadenciados, ao ritmo da música. Ali estava Contarini, com um par
que era uma dama muito jovem e esguia, de uma beleza fascinante;
mais além via-se Wolkenstein, com os olhos semicerrados,
completamente entregue à música e já sem pensar nela.
Liz lamentou não poder participar na dança. Sempre gostara de
dançar, mas tudo de que ainda dispunha era a sua posição e esta
era demasiado elevada para se ir integrar numa das filas. Além
disso, era-lhe difícil mover-se, o seu manto de peles era
excessivamente grosso para um salão aquecido por tantas tochas,
mas não podia despi-lo, pois o vestido que tinha por baixo era
demasiado singelo. Aquele arminho era a única peça de roupa que
lhe restava do seu antigo guarda-roupa, todas as peças restantes
haviam sido empenhadas ou vendidas. Sempre se perguntara
porque tinha conservado aquela capa. Agora sabia.
As filas voltaram a juntar-se, mas se súbito reinou a desordem.
Encontrava-se alguém no meio do salão e, ao que parecia, não fazia
menção de sair do caminho dos dançarinos. Os que se encontravam
nas margens continuaram a mover-se ao som da música — ali
estava Salvius, além a esposa do embaixador de Brandeburgo —,
embora no meio as filas já não pudessem juntar-se; os dançarinos
chocavam uns com os outros, perdiam o equilíbrio, todos tentavam
contornar quem ali se encontrava de pé. Era um homem
magríssimo, com as faces cavadas, o queixo pontiagudo e uma
cicatriz na testa. Vestia um gibão colorido, calças tufadas e belos
sapatos de couro. Na cabeça tinha um barrete com guizos colorido.
Agora começava também a fazer malabarismo com uns objetos de
aço que voavam pelo ar, primeiro dois, depois três, depois quatro e
depois cinco.
Demoraram uns instantes a compreender todos ao mesmo
tempo: eram adagas! As pessoas recuavam, os homens
agachavam-se, as senhoras protegiam a cara com as mãos. Mas as
adagas curvas regressavam sempre às mãos do homem, sempre na
posição certa, sempre com o cabo para baixo, ao mesmo tempo que
ele começava também a dançar — com pequenos passos, para a
frente e para trás, primeiro lentamente, depois mais depressa, o que
fez a música modificar-se, pois não era ele que a seguia, mas o
contrário. Já mais ninguém dançava, todos tinham criado espaço
para o ver melhor, como girava à volta de si mesmo, enquanto as
adagas refulgentes voavam cada vez mais alto. A dança deixara de
ser compassada e elegante, para se tornar uma corrida selvagem
no encalço de um ritmo vertiginoso e galopante, cada vez mais
célere.
Em seguida, começou a cantar. A sua voz era aguda e metálica,
mas, sem perder o fôlego, ele mantinha-a afinada. Ninguém
percebia as suas palavras, que deviam ser numa língua inventada.
No entanto, era como se todos compreendessem o que dizia,
embora não conseguissem expressá-lo em palavras.
Agora havia menos adagas no ar. Apenas quatro, agora só três,
uma após outra guardada no cinto.
Um grito ecoou pelo salão. Repentinamente, a saia verde de
uma dama, a esposa de Contarini, ficou salpicada de vermelho. Ao
que parecia, uma das adagas roçara a palma da mão do
malabarista, embora o seu rosto nada deixasse transparecer — a rir,
lançou a última tão alto, que ela passou entre os braços de um
lustre, sem tocar num único vidro e, enquanto descia a girar, o
homem apanhou-a e guardou-a. A música cessou e ele fez uma
vénia.
Os aplausos irromperam.
— Tyll! — gritou alguém.
— Bravo, Tyll! — gritou outro.
— Bravo! Bravo!
Os músicos recomeçaram a tocar. Liz sentiu-se atordoada.
Devido à profusão de velas, fazia imenso calor no salão, e o seu
manto de peles era demasiado grosso. À direita, no vestíbulo, por
trás de uma porta aberta, avistou uma escada de caracol. Hesitou, e
depois subiu.
A escada era tão íngreme que duas vezes teve de parar sem
fôlego. Apoiou-se à parede. Por instantes, viu tudo turvo, os joelhos
fraquejaram-lhe e pensou que ia desfalecer. Depois recuperou as
forças, recompôs-se e continuou a subir. Por fim, chegou a uma
pequena varanda.
Atirou o capuz para trás e apoiou-se ao parapeito de pedra. Lá
em baixo, estendia-se a praça principal, à direita da qual se erguiam
as torres da catedral, recortadas contra o céu. O Sol devia ter
acabado de se pôr. Uma chuva fina continuava a impregnar o ar.
Lá em baixo, no lusco-fusco, um homem atravessava a praça.
Era Lamberg. Caminhava inclinado para a frente, com pequenos
passos arrastados, em direção à sua residência. O manto púrpura
que levava pelos ombros esvoaçava indolentemente. Por um
momento, deteve-se diante da porta, ensimesmado, parecendo
refletir. Em seguida entrou.
Liz fechou os olhos. O ar frio fazia-lhe bem.
— Como vai o meu burro? — perguntou.
— Está a escrever um livro. E tu, pequena Liz, como estás?
Ela abriu os olhos. Tyll encontrava-se ao seu lado, apoiado no
parapeito. Tinha a mão enrolada num pano.
— Estás bem conservada — disse ele. — Envelheceste, mas
ainda estás boa da cabeça e com bom aspeto.
— Tu também. Só o gorro é que não te fica bem.
Ele ergueu a mão ilesa e brincou com os guizos.
— O imperador quer que eu o use porque me desenharam assim
numa brochura de que ele gosta. Mandei que te trouxessem para
Viena, disse-me ele, e agora deves apresentar-te como te
conhecem.
Com uma expressão interrogativa, Liz apontou para a sua mão
embrulhada no pano.
— Diante dos grandes senhores, de vez em quando cometo
erros. Então dão-me mais dinheiro.
— Como está o imperador?
— Como toda a gente. À noite dorme, e gosta que as pessoas
sejam simpáticas com ele.
— E como está a Nele?
Ele permaneceu em silêncio durante uns instantes, como se
tentasse recordar-se a quem ela se referia.
— Casou-se — respondeu por fim. — Há muito tempo.
— A paz vai chegar, Tyll. Vou voltar para casa. Viajar por mar,
para Inglaterra. Queres ir comigo? Dou-te um quarto quente, e não
terás fome. Mesmo quando não puderes atuar mais.
Ele não respondeu. Às gotas de chuva tinham-se misturado
tantos flocos que já não restavam dúvidas de que estava a nevar.
— Em nome dos velhos tempos — disse Liz. — Sabes tão bem
como eu que, mais cedo ou mais tarde, o imperador se vai fartar de
ti. Depois vais outra vez parar à rua. Ficas melhor a viver comigo.
— Estás a propor-me uma esmola, pequena Liz? Uma sopa
diária, uma manta grossa e umas pantufas quentes até eu morrer
em paz?
— Não é tão mau quanto isso.
— Mas sabes o que é melhor? Ainda melhor do que morrer em
paz?
— Diz-me.
— Não morrer, pequena Liz. Isso ainda é melhor.
Ela dirigiu-se à escada. Vindas de baixo, do salão, ouviu vozes
altas, gargalhadas e música. Quando tornou a virar-se para ele, Tyll
já lá não estava. Surpreendida, curvou-se sobre o parapeito, mas a
praça encontrava-se mergulhada na escuridão e Tyll não estava à
vista.
Se continuasse a nevar assim, pensou ela, no dia seguinte
estaria tudo sob um manto de brancura e a viagem de regresso a
Haia poderia ser difícil. Não era demasiado cedo para estar a
nevar? Provavelmente, um desgraçado qualquer iria parar ao
pelourinho por causa disso.
E, no entanto, a culpada sou eu, pensou. Eu é que sou a Rainha
do Inverno!
Inclinou a cabeça para trás e abriu a boca tanto quanto podia. Há
muito que não fazia isso. A neve era tão doce e fria como outrora,
quando era rapariga. E então, para melhor a saborear e porque
sabia que na escuridão ninguém a via, deitou a língua de fora.

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