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Prefácio
O mar de Sargaços é uma vasta região do oceano Atlântico, próxima ao
Caribe, que compreende mais de três milhões de quilômetros quadrados.
Nessa área proliferam algas (conhecidas como “sargaços”, daí o nome
que se dá ao mar), que cobrem sua superfície como um tapete,
dificultando a navegação. Sua existência é conhecida desde os tempos
mais remotos e desperta um misto de curiosidade, medo e fascínio nos
navegantes, devido aos relatos, hoje considerados fantasiosos, de
exploradores fenícios e cartagineses — esses relatos deram origem a
inúmeras lendas a respeito de supostos monstros marinhos e outras
criaturas, que habitariam o local e seriam responsáveis por acidentes,
naufrágios e outros mistérios da região.
Trata-se de uma região polvilhada de belas ilhas, dentre as quais
está a Jamaica, escolhida pela escritora antilhana Jean Rhys como
cenário para o seu romance Vasto mar de Sargaços, publicado
originalmente em 1966, após uma longa ausência da cena literária, no
qual a autora aborda outra grande dificuldade de “navegação”: o choque
entre a cultura do Império Britânico, em seu auge como potência
colonizadora no século XIX, e a cultura local, dos povos submetidos à
colonização.
Nascida em 1890, Jean Rhys iniciou sua carreira literária na
década de 1930, ao longo da qual publicou quatro livros: Quartet
(1930), After Leaving Mr Mackenzie (1931), Voyage in the Dark
(1934, publicado em português como Viagem no escuro) e Good
Morning, Midnight (1939, publicado em português como Bom-dia,
Meia-Noite). Nenhum destes romances lhe trouxe especial consagração,
de modo que a escritora interrompeu sua carreira e mergulhou em um
período de reclusão que durou mais de 20 anos, dando origem até
mesmo a boatos de que havia falecido. Em 1966, entretanto, ressurgiu
com o romance que é considerado sua obra-prima — Wide Sargasso
Sea (Vasto mar de Sargaços).
Conta a própria Jean Rhys, na introdução à edição original da
obra, que a ideia para um novo romance começou a se impor ao longo
desse período de reclusão. Ela havia terminado a leitura de Jane Eyre, a
clássica obra vitoriana de Charlotte Brontë, e se viu absolutamente
fascinada pela figura quase irreal da personagem que talvez seja a mais
instigante do romance: Bertha Antoinette Mason, a “louca do sótão”, a
primeira mulher de Mr. Edward Rochester. Seu fascínio advinha do fato
de que Bertha, assim como a própria Jean Rhys, era uma mulher
caribenha vivendo na Inglaterra, com todas as dificuldades originadas
desse choque entre culturas.
Para melhor avaliar a questão, é preciso compreender que a era
vitoriana na Inglaterra, que se estendeu de 1837 a 1901, foi um período
bastante severo em termos de moral e costumes. A moral vitoriana
preconizava que todos os impulsos, principalmente os sexuais, deveriam
ser controlados com rigor — a mulher, em especial, deveria submeter-se
ao ato sexual apenas para agradar ao seu marido, assim como deveria
submeter-se a ele em todas as outras esferas da vida. Reclamar um
direito, elevar a voz, enraivecer-se, chorar ou mesmo apresentar as
flutuações de humor tão características do ciclo hormonal feminino são
exemplos de atitudes que poderiam facilmente levar uma mulher a ser
rotulada como “instável” ou “descontrolada”; em suma, “louca”.
Vasto mar de Sargaços representa a iniciativa de dar voz a essa
mulher intensa e vivaz, oriunda de uma cultura muito diferente da
cultura vitoriana opressora de seu marido, e nunca compreendida por
ele. Em Jane Eyre, Bertha Mason é uma personagem secundária, que
não é ouvida senão por seus gritos desesperados enquanto passa dia após
dia aprisionada no sótão; o foco de atenção do romance de Charlotte
Brontë está, como seria de esperar, no par de protagonistas, Jane Eyre e
Edward Rochester. Em Vasto mar de Sargaços, o marido de Antoinette
Cosway permanece anônimo ao longo de todo o romance — é
importante notar, porém, que esse anonimato não sobrevive à percepção
do leitor familiarizado com a obra-prima de Charlotte Brontë. O foco
central de atenção, entretanto, está em Antoinette, que logo é rebatizada
Bertha pelo marido — como se assim fosse possível despi-la de sua
identidade anterior e forçá-la a assumir uma nova, mais cordata e
submissa, e, portanto, mais adequada ao padrão vigente na época. A
obra de Jean Rhys oferece ao leitor a possibilidade de vislumbrar o
passado dessa personagem tão enigmática quanto fascinante — o
romance funciona como uma “introdução” a Jane Eyre, uma releitura
construída a partir de um ponto de vista pós-colonial.
A recepção do romance, quando de sua primeira publicação, foi
calorosa; ao longo dos anos, sua popularidade cresceu de forma estável,
talvez por se tratar de um romance que agrega tantos dos tópicos e
questões que vêm inquietando a ficção e a crítica literária desde meados
do século XX, como a descolonização e as relações assimétricas de poder
entre antigas metrópoles e colônias. Tal fato, por si só, já bastaria para
justificar a excelente iniciativa de lançar uma tradução em português;
some-se a isso o grande prazer que o público certamente encontrará na
leitura deste romance. Que o desfrutem!

CARLA PORTILHO
Professora de Literaturas de Língua Inglesa
na Universidade Federal Fluminense
“A s irmãs Brontë tinham, é claro, o toque de genialidade (ou muito
mais), especialmente Emily. Então, lendo Jane Eyre não se pode evitar a
leitura fluente, sem maiores considerações. Mas, eu, lendo mais tarde, e
muitas vezes, fiquei chocada com o retrato de lunática que ela traça, as
cenas crioulas eradas, e sobretudo a crueldade real do sr. Rochester.
Afinal de contas, ele era um homem abastado e haveria maneiras mais
gentis de dispor (ou esconder) uma mulher indesejada — ouvi a história
de uma — e o marido se comportou de forma bem diferente. (Outra
pista).
Mesmo quando eu sabia que tinha que escrever o livro — ainda
assim não parecia tocar no ponto certo — e essa é uma razão (embora
não a única) por que demorou tanto. Não tinha havido o clique. Não
estava lá. Por mais que eu tentasse.
Foi só quando escrevi este poema — aí o clique aconteceu — e
tudo estava lá e sempre tinha estado.”

Trecho de carta escrita em 14 de abril de 1964


por Jean Rhys para seu amigo Francis Wydham,
a respeito de Vasto mar de sargaços.
D izem que quando o tempo fecha o melhor é cerrar fileiras, e foi isso
que os brancos fizeram. Mas nós não estávamos nas fileiras deles. As
damas jamaicanas jamais aceitaram minha mãe, “porque ela é muito
cheia de si”, Christophine dizia.
Ela era a segunda mulher do meu pai, jovem demais para ele, na
opinião delas, e, pior ainda, uma moça da Martinica. Quando lhe
perguntei por que tão poucas pessoas nos visitavam, ela disse que a
estrada de Spanish Town para a Fazenda Coulibri, onde morávamos, era
muito ruim e que conserto de estrada agora era coisa do passado. (Meu
pai, visitas, cavalos, sentir-me segura na cama — tudo isso pertencia ao
passado.)
Outro dia eu a ouvi conversando com o Sr. Luttrell, nosso vizinho
e seu único amigo.
— É claro que eles têm seus próprios infortúnios. Ainda estão
esperando pela indenização que os ingleses prometeram quando o Ato
de Emancipação foi promulgado. Alguns vão ter que esperar por muito
tempo.
Como ela poderia saber que o Sr. Luttrell ia ser o primeiro a se
cansar de esperar? Numa noite calma, ele matou seu cachorro com um
tiro, saiu nadando mar afora e nunca mais voltou. Nenhum agente veio
de Londres para cuidar da propriedade dele — o nome dela era Repouso
do Nelson — e estranhos vinham de Spanish Town para fofocar e
discutir a tragédia.
— Morar em Repouso do Nelson? Por nada neste mundo. É um
lugar azarado.
A casa do Sr. Luttrell ficou abandonada, com o vento sacudindo as
venezianas. Logo os negros começaram a dizer que era mal-assombrada,
recusavam-se a se aproximar dela. E ninguém se aproximava de nós.
Eu me acostumei com uma vida solitária, mas minha mãe ainda
tinha planos e esperanças — talvez ela tivesse que ter esperança toda vez
que passava por um espelho.
Ela ainda andava a cavalo todas as manhãs, sem se importar com
os negros que se juntavam em grupos para caçoar dela, especialmente
depois que suas roupas de montaria ficaram velhas (eles prestam atenção
em roupas, eles entendem de dinheiro).
Então, um dia, muito cedo, eu vi o cavalo dela caído debaixo do
jasmineiro. Cheguei perto dele, mas ele não estava doente, estava morto
e seus olhos estavam pretos de moscas. Saí correndo e não falei nada,
porque achei que, se não contasse a ninguém, talvez não fosse verdade.
Mas, um pouco mais tarde, Godfrey encontrou-o, ele tinha sido
envenenado.
— Agora nós estamos ilhados — disse minha mãe —; agora, o que
vai ser de nós?
— Eu não posso vigiar o cavalo dia e noite. Estou velho demais —
disse Godfrey. — Quando o tempo passa, é melhor deixar passar. Não
adianta agarrar-se a ele. O Senhor não faz distinção entre preto e
branco, preto e branco é igual para Ele. Descanse em paz, porque os
justos não serão desamparados. — Mas ela não podia. Ela era jovem.
Como poderia deixar de tentar recuperar todas as coisas que tinham ido
embora tão de repente, tão sem aviso?
— Você é cego quando quer ser — disse ela com raiva —, e é
surdo quando quer ser. Ô velho hipócrita — ficava ela repetindo. — Ele
sabia o que eles iam fazer.
— O príncipe diabólico deste mundo — disse Godfrey —, mas
este mundo não dura muito para os mortais.

Ela convenceu um médico de Spanish Town a vir examinar o meu


irmãozinho Pierre, que cambaleava ao andar e não conseguia falar
direito. Eu não sei o que o médico disse a ela ou o que ela disse a ele,
mas ele nunca mais voltou e, depois disso, ela mudou. De repente, não
aos poucos. Ela ficou magra e calada, e no fim se recusava a sair de casa.
Nosso jardim era grande e bonito como aquele jardim da Bíblia —
a árvore da vida crescia lá. Mas tinha ficado selvagem. Os atalhos
estavam cobertos de vegetação e um cheiro de flores mortas misturava-se
ao cheiro doce das flores vivas. Debaixo das samambaias, altas como as
árvores de samambaia da floresta, a luz era verde. Orquídeas brotavam
fora do alcance ou por algum motivo não podiam ser tocadas. Uma
parecia uma serpente; outra, um polvo com tentáculos marrons, longos e
finos, sem folhas, que pendiam de uma raiz retorcida. Duas vezes por
ano a orquídea-polvo florescia — e então não se enxergava nem um
pedacinho de tentáculo. Era uma massa de brancos, amarelos e roxos em
forma de sino, maravilhosa de ver. O perfume era muito doce e forte. Eu
nunca me aproximava dela.
Toda a Fazenda Coulibri tinha ficado selvagem como o jardim,
tinha virado um matagal. Não havia mais escravidão — por que alguém
deveria trabalhar? Isto nunca me entristeceu. Eu não me lembrava do
lugar quando era próspero.
Minha mãe normalmente andava de um lado para o outro no
glacis, um terraço calçado e coberto de telhas que percorria todo o
comprimento da casa e subia até um bambuzal. Do bambuzal, tinha
uma visão clara do mar, mas qualquer um que passasse podia olhar para
ela. As pessoas olhavam, e às vezes riam. Muito depois de o som sumir
na distância, ela continuava de olhos e punhos cerrados. Um vinco
formava-se entre suas sobrancelhas negras, profundo — parecia cortado
com uma faca. Eu detestava aquele vinco, e uma vez toquei-lhe a testa
tentando alisá-lo. Mas ela me empurrou, não com estupidez, mas
calmamente, friamente, sem dizer uma palavra, como se tivesse decidido
de uma vez por todas que, para ela, eu era inútil. Ela queria sentar com o
Pierre ou andar para onde quisesse sem ser incomodada, ela queria paz e
tranquilidade. Eu já tinha idade para cuidar de mim.
— Ah, me deixa em paz — dizia ela —, me deixa em paz. — E,
depois que eu soube que falava sozinha, passei a ter um pouco de medo
dela.
Então eu passava a maior parte do meu tempo na cozinha, uma
construção separada, um tanto afastada da casa. Christophine dormia no
quartinho ao lado.
Quando caía a noite, ela cantava para mim se estivesse com
vontade. Nem sempre eu conseguia entender suas canções em patuá —
ela também era da Martinica —, mas me ensinou a que dizia “Os
pequeninos crescem, os filhos nos abandonam, será que voltarão?” e uma
outra sobre as flores do cedro que duram apenas um dia.
As melodias eram alegres, mas as letras eram tristes e sua voz
sempre tremia e falseava nas notas altas. “Adieu.” Não adieu como nós
dizíamos, mas à dieu, o que afinal fazia mais sentido. O homem
apaixonado ficou sozinho, a moça foi abandonada, os filhos jamais
voltaram. Adieu.
Suas canções não eram como as canções jamaicanas, e ela não era
como as outras mulheres.
Ela era muito mais escura — preto-azulada, com um rosto fino e
traços retos. Usava um vestido preto, pesados brincos de ouro e um lenço
amarelo — cuidadosamente amarrado com as duas pontas para a frente.
Nenhuma outra mulher negra usava preto nem amarrava o lenço à moda
da Martinica. Tinha uma voz e um riso calmos (quando ria), e, embora
soubesse falar bem o inglês, quando queria, além de francês e do patuá,
ela se preocupava em falar do jeito que elas falavam. Mas elas não
queriam saber dela, e ela nunca via o filho que trabalhava em Spanish
Town. Christophine tinha apenas uma amiga — uma mulher chamada
Maillotte, e Maillotte não era jamaicana.
As moças da baixada que às vezes ajudavam a lavar roupa e limpar
a casa tinham pavor dela. Era por isso, conforme logo descobri, que elas
vinham — porque ela nunca pagou nada a elas. Entretanto, elas traziam
frutas e legumes de presente c. depois que escurecia, eu costumava ouvir
vozes abafadas vindas da cozinha.
Então eu perguntei a respeito de Christophine. Ela era muito
velha? Ela sempre estivera conosco?
— Ela foi o presente de casamento do seu pai para mim; um dos
presentes dele. Ele achou que eu ficaria feliz com uma moça da
Martinica. Não sei qual era a idade dela quando a trouxeram para a
Jamaica, era bem jovem. Não sei quantos anos tem agora. Isto importa?
Por que você me atormenta querendo saber de coisas que aconteceram
há tanto tempo? Christophine ficou comigo porque quis. Pode ter
certeza de que teve as suas boas razões para isto. Eu me arrisco a dizer
que nós teríamos morrido se ela se tivesse voltado contra nós, e esse teria
sido um destino melhor. Morrer e cair no esquecimento, ter paz. Não
saber que se está abandonado, difamado, indefeso. Todos aqueles que
morreram... Quem tem uma palavra boa para dizer sobre eles agora?
— Godfrey também ficou — disse eu. — E Sass.
— Eles ficaram — disse ela zangada — porque precisavam de um
lugar para dormir e de alguma coisa para comer. Aquele garoto Sass!
Quando a mãe dele deu o fora e o deixou aqui, ela não estava ligando a
mínima, ele era um esqueleto. Agora está ficando um rapaz grande e
forte, e logo, logo vai embora. Nós não o veremos de novo. Godfrey é
um patife. Essa gente nova não é boa com os velhos, e ele sabe disto. É
por isso que ele fica. Não faz nada, mas come que nem um cavalo. Finge
que é surdo. Ele não é surdo, ele não quer é ouvir. Aquilo é um
demônio!
— Por que você não diz a ele para encontrar outro lugar para
morar? — disse, e ela riu.
— Ele não iria. Provavelmente tentaria obrigar-nos a sair. Eu
aprendi a não me meter com gente ruim — disse ela.
Se você mandasse Christophine embora, será que ela iria?, pensei.
Mas não perguntei. Tive medo de perguntar.
Estava quente demais naquela tarde. Eu podia ver as golas de suor
sobre seu lábio superior e os círculos escuros sob seus olhos. Comecei a
abaná-la, mas ela virou a cabeça para o outro lado. Disse que conseguiria
descansar se eu a deixasse em paz.
Antes, eu teria voltado sem fazer barulho para vê-la dormindo no
sofá azul — antes, eu arranjava desculpas para ficar perto dela enquanto
ela escovava os cabelos, uma capa preta e macia para me cobrir, para me
esconder, para me guardar em segurança.
Mas agora não. Agora não.

Estas eram todas as pessoas que existiam em minha vida — minha mãe
e Pierre, Christophine, Godfrey e Sass, que nos havia abandonado.
Eu nunca olhei para nenhum negro estranho. Eles nos odiavam.
Eles nos chamavam de baratas brancas. Era melhor não mexer em casa
de marimbondos. Um dia, uma garotinha foi atrás de mim cantando
“Vai embora, barata branca, vai embora, vai embora”. Eu apressei o
passo, mas ela andou mais depressa ainda. “Barata branca, vai embora,
vai embora. Ninguém quer você. Vai embora.”
Quando me vi a salvo em casa, sentei perto do velho muro no
fundo do jardim. Era coberto de musgo verde, macio como veludo, e tive
vontade de nunca mais me mexer. Tudo ficaria pior se eu me mexesse.
Christophine encontrou-me lá quando já estava quase escuro, e eu estava
tão dura que ela teve que me ajudar a levantar. Ela não disse nada, mas
na manhã seguinte Tia estava na cozinha com a mãe dela, Maillotte,
amiga de Christophine. Logo Tia ficou minha amiga, e eu me
encontrava com ela quase todas as manhãs na curva da estrada que ia dar
no rio.
Às vezes nós saíamos do poço ao meio-dia, às vezes ficávamos até
o final da tarde. Então Tia acendia uma fogueira (o fogo sempre acendia
para ela, pedras afiadas não cortavam os seus pés descalços, eu nunca a vi
chorar). Nós cozinhávamos bananas-verdes numa velha panela de ferro e
as comíamos com os dedos numa cabaça, e depois de comer ela
adormecia imediatamente. Eu não conseguia dormir, mas não ficava
inteiramente acordada, deitada ali na sombra, contemplando o poço —
profundo e verde-escuro sob as árvores, verde-amarronzado se tivesse
chovido, mas de um verde faiscante sob o sol. A água era tão limpa que
dava para ver as pedrinhas no fundo da parte rasa. Azuis e brancas e
listradas de vermelho. Muito bonito. Cedo ou tarde, nós nos
separávamos na curva da estrada. Minha mãe nunca perguntou onde eu
tinha estado ou o que tinha feito.
Christophine tinha me dado umas moedas novas, que eu guardava
no bolso do vestido. Um dia elas caíram, então eu as coloquei sobre uma
pedra. Elas brilhavam como ouro ao sol e Tia ficou olhando para elas.
Tinha olhinhos pequenos, muito pretos, bem enfiados na cabeça.
Então ela apostou comigo três moedas que eu não era capaz de dar
uma cambalhota dentro d’água “como você diz que consegue”.
— É claro que eu consigo.
— Eu nunca vi você fazer isso — disse ela. — Só falar.
— Aposto todo o meu dinheiro que consigo — insisti.
Mas depois de uma cambalhota, ainda dei uma volta e subi
sufocada. Tia riu e disse que dessa vez parecia que eu estava morrendo
afogada. Então ela pegou o dinheiro.
— Eu consegui — eu disse quando consegui falar, mas ela sacudiu
a cabeça. Eu não tinha feito direito, e, além disso, moedas de um
centavo não davam para muita coisa. Por que eu estava olhando para ela
daquele jeito?
— Então pode ficar com elas, sua negrinha trapaceira — eu disse,
porque estava cansada e enjoada de tanta água que tinha bebido. —
Posso pegar mais, se eu quiser.
Ela disse que não foi isso que ouvira dizer. Ouvira dizer que nós
todos estávamos pobres como mendigos. Comíamos peixe salgado —
não tínhamos dinheiro para peixe fresco. Que a casa velha estava tão
cheia de goteiras que era preciso correr com uma cabaça para aparar a
água quando chovia. Tinha muita gente branca na Jamaica. Gente
branca de verdade, que tinha muito ouro. Eles não olhavam para nós,
não chegavam perto de nós. Gente branca de antigamente não passava
de negro branco agora, e negro preto era melhor que negro branco.
Eu me enrolei na minha toalha rasgada e sentei numa pedra, de
costas para ela, tremendo de frio. Mas o sol não conseguiu esquentar-
me. Eu queria ir para casa. Olhei em volta e Tia tinha sumido. Procurei
por um bom tempo, sem conseguir acreditar que ela havia levado o meu
vestido — a minha roupa de baixo não, ela não usava roupa de baixo —,
mas o meu vestido, que tinha sido lavado, passado e engomado naquela
manhã. Ela deixara o dela para mim, e eu finalmente o vesti e fui para
casa sob o sol escaldante, sentindo-me mal, odiando-a. Eu estava
planejando dar a volta pelos fundos da casa e ir para a cozinha, mas, ao
passar pelas cocheiras, parei para olhar para três cavalos estranhos e
minha mãe me viu e me chamou. Ela estava no glacis com duas jovens
senhoras e um cavalheiro. Visitas! Subi os degraus contrafeita — eu já
desejara visitas um dia, mas isto tinha sido anos antes.
Eles são muito bonitos, pensei, e usavam roupas tão lindas que eu
olhei para o chão, e quando eles riram — o cavalheiro foi quem riu mais
alto — eu corri para casa, para o meu quarto. Fiquei lá com as costas
encostadas na porta, e podia sentir meu coração batendo em todo o meu
corpo. Eu os ouvi conversando e ouvi quando partiram. Saí do quarto e
minha mãe estava sentada no sofá azul. Ela me olhou por algum tempo,
antes de dizer que eu tinha me comportado de forma muito estranha. O
meu vestido estava ainda mais sujo do que habitualmente.
— É o vestido de Tia.
— Mas por que você está usando o vestido de Tia? Tia? Qual
delas é Tia?
Christophine, que estava ouvindo da copa, veio na mesma hora e
recebeu ordem de buscar um vestido limpo para mim.
— Joga fora essa coisa. Queime-a.
Então elas discutiram.
Christophine disse que eu não tinha nenhum vestido limpo.
— Ela só tem dois vestidos, um em uso, outro lavando. Você quer
que caia do céu um vestido limpo? Tem gente que é mesmo maluca.
— Ela deve ter um outro vestido — disse minha mãe. — Em
algum lugar.
Mas Christophine lhe disse bem alto que era uma vergonha. Ela
anda solta por aí, vai virar uma imprestável. E ninguém está ligando.
Minha mãe foi até a janela. (“Náufraga”, diziam as suas costas
retas, o seu cabelo cuidadosamente enrolado. “Náufraga.”)
— Ela tem um velho vestido de musseline. Encontre-o.
Enquanto Christophine esfregava o meu rosto e amarrava minhas
tranças com um pedaço novo de barbante, ela me contou que aquelas
eram as pessoas novas que moravam em Repouso do Nelson. Eles se
intitulavam Luttrell, mas, ingleses ou não ingleses, não eram como o
velho Sr. Luttrell.
— O velho Sr. Luttrell cospe na cara deles se vir o modo como
eles olharam para você. A desgraça entrou nesta casa hoje. A desgraça.
O velho vestido de musseline foi encontrado e rasgou quando eu o
forcei para entrar. Ela não notou.
Acabou a escravidão! Ela não podia deixar de rir!
— Essa gente nova tem lei. A mesma coisa. Tem juiz. Tem multa.
Tem cadeia e trabalhos forçados. Tem máquina para esmagar os pés das
pessoas. Os novos são piores do que os velhos, mais espertos, só isso.
Minha mãe não olhou para mim nem falou comigo a noite inteira,
e eu pensei: “Ela tem vergonha de mim, o que Tia disse é verdade.”
Fui para a cama cedo e dormi na mesma hora. Sonhei que estava
andando na floresta. Não estava sozinha. Alguém que me odiava estava
comigo, fora do alcance da minha vista. Eu podia ouvir passos pesados
aproximando-se e, embora lutasse e gritasse, não conseguia me mexer.
Acordei chorando. O lençol estava no chão e minha mãe olhava para
mim.
— Você teve um pesadelo?
— Tive um sonho ruim.
Ela suspirou e me cobriu.
— Você estava fazendo um barulhão. Tenho que ficar com Pierre,
você o assustou.
Fiquei ali deitada, pensando: “Estou segura. Tenho o canto da
porta do quarto e a mobília amiga. Tenho a árvore da vida no jardim e o
muro verde de musgo. A barreira dos rochedos e as montanhas altas. E a
barreira do mar. Estou segura. Estou a salvo dos estrangeiros.”
A luz da vela no quarto de Pierre ainda estava lá quando tornei a
dormir. Acordei na manhã seguinte, sabendo que nada seria como antes.
As coisas mudariam e continuariam a mudar.
Não sei como ela conseguiu dinheiro para comprar a musseline
branca e a cor-de-rosa. Metros e metros de musseline. Ela pode ter
vendido o seu último anel, pois havia sobrado um. Eu o vi na sua caixa
de joias — o anel e um medalhão com um trevo dentro. Elas estavam
costurando de manhã bem cedo e continuavam costurando quando eu
fui dormir. Em uma semana, ela estava com um vestido novo e eu
também.
Os Luttrell lhe emprestaram um cavalo, e ela saía cavalgando bem
cedo e só voltava bem tarde no dia seguinte — exausta porque tinha ido
a um baile ou a um piquenique ao luar. Ela estava alegre e sorridente —
mais jovem do que eu jamais a vira — e a casa ficava triste depois que ela
saía.
Então eu também saía e ficava fora até escurecer. Eu nunca ficava
muito tempo no poço, nunca encontrei Tia.
Eu pegava outra estrada, passava pela velha usina de açúcar e pelo
moinho de água que já não girava havia muitos anos. Eu ia a lugares em
Coulibri que ainda não conhecia, onde não havia estrada, nem caminho,
nem trilha. E quando o capim afiado cortava as minhas pernas e meus
braços, eu pensava: “É melhor do que gente.” Formigas-pretas ou
vermelhas, ninhos altos cheios de formigas-brancas, chuva que me
encharcava até os ossos — uma vez eu vi uma cobra. Tudo melhor do
que gente.
Melhor. Melhor, melhor do que gente.
Contemplar as flores vermelhas e amarelas ao sol sem pensar em
nada era como se uma porta abrisse e eu estivesse em outro lugar, como
se eu fosse outra coisa. Não mais eu mesma.
Eu conhecia aquela hora do dia em que, embora o céu seja quente
e azul e não haja nenhuma nuvem, ele pode ter uma aparência muito
ameaçadora.
Eu fui dama de honra quando minha mãe se casou com o Sr.
Mason, em Spanish Town. Christophine ondulou o meu cabelo. Eu
carreguei o buquê, e tudo o que usei era novo — até os meus lindos
sapatos. Mas todos os olhos desviavam-se da minha cara de ódio. Eu
tinha ouvido o que todas aquelas pessoas afáveis e sorridentes diziam a
respeito dela quando ela não estava perto, e elas não sabiam que eu
estava. Escondida delas no jardim quando visitavam Coulibri, eu ficava
escutando.
— Um casamento extravagante, e ele se arrependerá. Por que um
homem tão rico, que poderia escolher entre todas as moças das Índias
Ocidentais e muitas da Inglaterra também, provavelmente?
— Por que provavelmente? — disse a outra voz. — Com certeza.
Então por que ele resolveu casar-se com uma viúva sem um tostão e
Coulibri em ruínas? Problemas causados pela libertação dos escravos
mataram o velho Cosway? Bobagem, a propriedade já estava decadente
muitos anos antes disso. Ele bebeu até morrer. Diversas vezes... bem... e
todas aquelas mulheres! Ela nunca fez nada para impedi-lo; ela o
encorajava. Presentes e sorrisos para os bastardos todo Natal. Velhos
costumes? Alguns velhos costumes deveriam ser mortos e enterrados. O
novo marido dela vai ter que gastar um dinheirão para tornar a casa
habitável, parece uma peneira de tanta goteira. E o que dizer das baias e
da cocheira escura como breu, e os alojamentos dos empregados e a
cobra de quase dois metros que eu vi com meus próprios olhos enrolada
na tampa da privada da última vez que estive aqui? Assustada? Eu gritei.
Então aquele velho horrível que ela abriga apareceu, dando gargalhadas.
Quanto às duas crianças, o menino é um débil mental que é mantido
escondido, e a menina, na minha opinião, está indo pelo mesmo
caminho, tem uma expressão ameaçadora.
— Ah, eu concordo — disse a outra —, mas Annette é uma
mulher tão bonita. E como dança bem. Faz-me lembrar daquela canção,
“leve como uma pluma levada pela brisa alguma coisa”, ou será o ar?
Não me lembro.

Sim, como dançava bem — aquela noite em que eles voltaram para casa
da lua de mel em Trinidad e dançaram no glacis, sem música. Não havia
necessidade de música quando ela dançava. Eles pararam e ela se
inclinou para trás sobre o braço dele, até que seus cabelos negros
tocassem o chão — e mais para trás ainda. Depois ergueu o corpo num
segundo, rindo. Ela fez aquilo parecer tão fácil — como se qualquer
pessoa pudesse fazer, e ele a beijou —, um longo beijo. Dessa vez eu
também estava lá, mas eles tinham esquecido de mim, e logo eu também
deixei de pensar neles. Eu estava me lembrando daquela mulher
dizendo: “Dançar! Ele não veio para as Índias Ocidentais para dançar —
ele veio para ganhar dinheiro como todos fazem. Algumas das grandes
propriedades estão sendo vendidas muito baratas, e a desgraça de uns é
sempre a alegria de outros. Não, a coisa toda é um mistério. É sempre
útil ter uma feiticeira da Martinica por perto.” Ela estava se referindo a
Christophine. Ela disse isto zombando, sem acreditar, mas logo outras
pessoas estavam dizendo a mesma coisa — e acreditando.
Enquanto a casa estava sendo consertada e eles estavam em
Trinidad, Pierre t eu ficamos com tia Cora em Spanish Town.
O Sr. Mason não simpatizava com tia Cora, uma antiga dona de
escravos que havia escapado da miséria, uma fugitiva da Divina
Providência.
— Por que ela não fez nada para ajudar vocês?
Eu disse a ele que o marido dela era inglês e não gostava de nós, e
ele disse:
— Bobagem.
— Não é bobagem, eles moravam na Inglaterra e ele ficava
zangado quando ela escrevia para nós. Ele odiava as Índias Ocidentais.
Quando ele morreu, havia pouco tempo, ela voltou para casa; antes
disso, o que ela podia fazer? Ela não era rica.
— Isso é o que ela diz. Eu não acredito. Uma mulher frívola. No
lugar da sua mãe, eu ficaria magoada com o comportamento dela.
“Nenhum de vocês nos compreende”, pensei.
Coulibri parecia igual quando eu tornei a vê-la, embora estivesse limpa e
arrumada, sem capim no meio das pedras e sem goteiras. Mas parecia
igual. Sass tinha voltado e eu fiquei contente. Eles sentem o cheiro do
dinheiro, alguém disse. O Sr. Mason contratou novos empregados — eu
não gostei de nenhum, com exceção de Mannie, o cavalariço. Foi o
falatório das pessoas sobre Christophine que mudou Coulibri, não os
consertos, nem a mobília nova, nem as caras estranhas. O falatório deles
sobre Christophine e obeah foi o que mudou a casa.
Eu conhecia o quarto dela muito bem — os quadros da Sagrada
Família e a oração por uma boa morte. Tinha uma colcha de retalhos
colorida, um armário desconjuntado para guardar suas roupas e minha
mãe lhe dera uma velha cadeira de balanço.
Entretanto, um dia, quando esperava por ela lá, de repente senti
muito medo. A porta estava aberta para a luz do sol, alguém estava
assobiando perto das cocheiras, mas eu fiquei com medo. Eu tinha
certeza de que, escondidos no quarto (atrás do velho armário preto?),
havia uma mão seca de homem, penas brancas de galinha, um galo com
o pescoço cortado, morrendo muito lentamente. Gota a gota, o sangue
pingava numa bacia vermelha e eu imaginei que podia ouvir o barulho.
Ninguém jamais havia falado comigo sobre feitiçaria — mas eu sabia o
que encontraria se tivesse coragem de procurar. Então Christophine
entrou sorrindo e contente de me ver. Nada de alarmante jamais
aconteceu e eu esqueci, ou disse a mim mesma que havia esquecido.
O Sr. Mason riria se soubesse o quanto eu tinha ficado assustada.
Ele riria mais alto ainda do que riu quando minha mãe disse a ele que
queria sair de Coulibri.
Isso começou quando eles tinham mais ou menos um ano de
casados. Eles sempre diziam as mesmas coisas, e eu raramente prestava
atenção na discussão. Eu sabia que nós éramos odiados — mas ir
embora... excepcionalmente, eu concordei com o meu padrasto. Isso não
era possível.
— Você deve ter algum motivo — dizia ele, e ela respondia:
— Eu preciso de uma mudança. — Ou então: — Nós podíamos ir
visitar o Richard. — (Richard, filho do primeiro casamento do Sr.
Mason, estava na escola em Barbados. Em breve ele iria para a
Inglaterra e nós havíamos estado muito pouco com ele.)
— Um agente poderia tomar conta da propriedade. Por enquanto.
As pessoas aqui nos odeiam. Elas com certeza me odeiam. — Ela disse
isso com todas as letras, um dia, e foi quando ele riu com vontade.
— Annette, seja razoável. Você era a viúva de um senhor de
escravos, a filha de um senhor de escravos, e você estava morando aqui
sozinha, com duas crianças, havia quase cinco anos, quando nos
conhecemos. As coisas estavam péssimas naquela época. Mas você
nunca foi importunada, nunca foi maltratada.
— Como você sabe que eu não fui maltratada? — perguntou ela.
— Nós éramos tão pobres que éramos motivo de riso — disse ela a ele.
— Mas agora não somos mais pobres — continuou. — Você não é um
homem pobre. Você acha que eles não sabem da sua propriedade em
Trinidad? E da propriedade em Antígua? Eles falam sem parar sobre
nós. Inventam histórias sobre você, e mentiras sobre mim. Tentam
descobrir o que comemos todo dia.
— Eles estão curiosos. É natural. Você viveu muito tempo
sozinha, Annette. Você imagina uma inimizade que não existe. Sempre
num extremo ou no outro. Você voou no meu pescoço como uma gata
selvagem quando eu usei a expressão pretinho. Nem pretinho nem preto.
Eu só posso dizer gente negra.
— Você não aprecia, nem mesmo reconhece, o que há de bom
neles — disse ela —, e não quer acreditar no reverso da medalha.
— Eles são preguiçosos demais para ser perigosos — disse o Sr.
Mason. — Eu sei disso.
— Eles são mais vivos do que você, preguiçosos ou não, e podem
ser perigosos e cruéis por motivos que você não entenderia.
— Não, eu não entendo — sempre dizia o Sr. Mason. — Eu não
entendo mesmo.
Mas ela continuava falando sem parar. Com persistência. Com
raiva.
O Sr. Mason parou perto das cabanas vazias a caminho de casa
naquela tarde.
— Foram todos para um desses bailes — disse ele. — Jovens e
velhos. Como isto aqui parece deserto.
— Nós ouviremos os tambores, se houver dança. — Eu queria que
ele continuasse logo, mas ficou parado perto das cabanas para ver o sol
se pôr; o céu e o mar estavam em fogo quando finalmente saímos de
Bertrand Bay. De uma longa distância, eu vi a sombra da nossa casa bem
alta sobre suas fundações de pedra. Havia um cheiro de samambaias e de
água de rio, e eu me senti segura de novo, como se fosse um dos justos.
(Godfrey dizia que nós não éramos justos. Um dia, quando estava
bêbado, ele me disse que estávamos todos condenados e que não
adiantava rezar.)
— Eles escolheram uma noite muito quente para dançar — disse o
Sr. Mason, e tia Cora foi até o glacis. — Que dança? Onde?
— Tem alguma festa nas vizinhanças. As cabanas estão vazias. Um
casamento, talvez?
— Um casamento, não — disse. — Nunca tem nenhum
casamento. — Ele franziu a testa para mim, mas tia Cora sorriu.
Depois que eles entraram, eu encostei os braços na balaustrada fria
do glacis e pensei que nunca gostaria muito dele. Eu ainda o chamava de
Sr. Mason na minha cabeça. “Boa-noite, papai branco”, eu disse uma
noite, e ele não ficou aborrecido, ele riu. Em alguns aspectos, era melhor
antes de ele aparecer, embora ele nos tenha salvado da pobreza e da
aflição. “Bem na hora também.” Os pretos não nos odiavam tanto
quando éramos pobres. Nós éramos brancos, mas não tínhamos
escapado e logo estaríamos mortos porque não tínhamos mais nenhum
dinheiro. O que havia para odiar?
Agora tinha começado de novo, e pior do que antes, minha mãe
sabe, mas não consegue fazer com que ele acredite. Eu gostaria de poder
dizer a ele que lá não é como os ingleses pensam que é. Eu gostaria...
Eu podia ouvi-los conversando e tia Cora rindo. Eu estava
contente por ela estar morando conosco. E eu podia ouvir os bambus
tremerem e estalarem, embora não houvesse vento. Tinha estado quente,
parado e seco por vários dias. As cores tinham sumido do céu, a luz era
azul e não podia durar muito. O glacis não era um bom lugar quando a
noite vinha chegando, Christophine dizia. Quando eu entrei, minha
mãe estava falando com uma voz agitada:
— Muito bem. Como você se recusa a ir, eu vou e vou levar Pierre
comigo. Espero que você não faça nenhuma objeção a isso.
— Você tem toda razão, Annette — disse tia Cora, e isso me
surpreendeu. Ela raramente falava quando eles discutiam.
O Sr. Mason também pareceu surpreso e nada satisfeito.
— Você fala tão irrefletidamente — disse ele. — E está tão
enganada. É claro que você pode sair para espairecer, se quiser. Eu
prometo.
— Você já me prometeu isso antes — disse ela. — Você não
cumpre as suas promessas.
Ele suspirou:
— Eu me sinto muito bem aqui. Entretanto, vamos providenciar
alguma coisa. Muito em breve.
— Eu não vou mais ficar em Coulibri — disse minha mãe. — Não
é seguro. Não é seguro para o Pierre.
Tia Cora concordou.
Como estava tarde, eu comi com eles, em vez de comer sozinha,
como de costume. Myra, uma das empregadas novas, estava parada ao
lado do aparador, esperando para trocar os pratos. Nós comíamos
comida inglesa agora, carne de vaca e de carneiro, tortas e pudins.
Eu estava contente em ser uma menina inglesa, mas sentia falta da
comida de Christophine.
Meu padrasto falou de um plano para importar trabalhadores —
coolies, ele os chamava — das Índias Orientais. Depois que Myra saiu,
tia Cora disse:
— Eu não falaria nisso se fosse você. Myra está ouvindo.
— Mas as pessoas aqui se recusam a trabalhar. Elas não querem
trabalhar. Veja este lugar — é de partir o coração.
— Corações foram partidos — disse ela. — Pode ter certeza disso.
Suponho que você saiba o que está fazendo.
— Você quer dizer...
— Eu não disse nada, só que seria mais prudente não contar os
seus planos — necessários e compassivos, sem dúvida — para aquela
mulher. Eu não confio nela.
— Vocês viveram a vida inteira aqui e não sabem nada sobre o
povo. É estarrecedor. Eles são crianças — não fariam mal a uma mosca.
— Crianças infelizes machucam moscas, sim — disse tia Cora.
Myra tornou a entrar com o ar fúnebre de sempre, embora ela
sempre sorrisse quando falava sobre o inferno. Ela me disse que todo
mundo ia para o inferno; para ser salva a pessoa tinha de pertencer à
seita dela, e mesmo assim — era melhor não ter muita certeza. Ela tinha
braços finos, mãos e pés grandes, e o lenço que usava em volta da cabeça
era sempre branco. Nunca listrado ou de uma cor alegre.
Então eu desviei os olhos dela e olhei para o meu quadro favorito,
“A filha de Miller”, uma linda moça inglesa de cachos castanhos e olhos
azuis e um vestido decotado. Depois olhei por cima da toalha branca e
do vaso de flores amarelas para o Sr. Mason, tão seguro de si, tão
indubitavelmente inglês. E para a minha mãe, tão indubitavelmente não
inglesa, mas também não negra branca. Não a minha mãe. Nunca tinha
sido. Nunca poderia ser. Sim, ela teria morrido, eu pensei, se não o
tivesse conhecido. E pela primeira vez eu me senti grata e gostei dele.
Há mais de uma maneira de ser feliz, talvez seja melhor ter paz, sentir-
se satisfeita e protegida, como eu me sinto, viver muitos e muitos anos
em paz, e depois talvez eu me salve, apesar do que Myra diz. (Quando
eu perguntei a Christophine o que acontece quando a gente morre, ela
disse: “Você quer saber demais.”) Eu me lembrei de dar um beijo de
boa-noite no meu padrasto. Um dia, tia Cora disse:
— Ele fica muito magoado porque você nunca o beija.
— Ele não parece magoado — retruquei.
— É um grande erro deixar-se levar pelas aparências — disse ela
—, de uma forma ou de outra.
Entrei no quarto de Pierre, que era ao lado do meu, o último da
casa. Os bambus ficavam ao lado da janela dele. Você quase podia tocar
neles. Ele ainda tinha um berço e dormia cada vez mais, quase o tempo
todo. Era tão magro que eu conseguia erguê-lo com facilidade. O Sr.
Mason tinha prometido que mais tarde iria levá-lo para a Inglaterra, lá
ele ficaria curado, ficaria igual às outras pessoas. “E o que você acha
disto?” Eu pensei enquanto o beijava. “O que você vai achar de ser
exatamente igual às outras pessoas?” Ele parecia feliz dormindo. Mas
isso vai ser mais tarde. Mais tarde. Agora durma. Foi então que eu ouvi
os bambus estalarem de novo e um som como um sussurro. Eu me forcei
a olhar pela janela. Havia uma lua cheia, mas eu não vi ninguém, nada
além de sombras.
Deixei uma luz na cadeira ao lado da minha cama e esperei por
Christophine, pois gostava de vê-la antes de dormir. Mas ela não veio e
a vela queimou até apagar, tirando de mim a sensação de paz e
segurança. Eu queria ter um grande cão deitado ao lado da minha cama
para me proteger, queria não ter ouvido um barulho no bambuzal, ou
então queria ser ainda bem pequena e acreditar no meu bastão. Não era
um bastão, mas um pedaço de madeira longo e fino, com dois pregos na
ponta, uma ripa, talvez. Eu o peguei logo depois que mataram o nosso
cavalo, e achei que poderia defender-me com ele; se o pior acontecer, eu
posso lutar até o fim, embora os melhores sejam derrotados e essa é uma
outra canção. Christophine arrancou fora os pregos, mas deixou que eu
guardasse a ripa, e eu me afeiçoei a ela, acreditava que ninguém poderia
fazer-me mal quando ela estivesse perto de mim, perdê-la teria sido uma
grande desgraça. Tudo isso foi há muito tempo, quando eu ainda era
infantil e acreditava que tudo tinha vida, não apenas o rio e a chuva, mas
cadeiras, espelhos, xícaras, tudo.
Acordei e ainda era noite, e minha mãe estava lá.
— Levanta, se veste e depois desce depressa — disse ela. Estava
vestida, mas não tinha prendido o cabelo e uma de suas tranças estava
solta. — Rápido — repetiu ela, depois entrou no quarto de Pierre, ao
lado. Eu a ouvi falando com Myra, e ela respondendo. Fiquei ali deitada,
meio adormecida, olhando para a vela acesa em cima da cômoda, até
ouvir um barulho, como se uma cadeira tivesse caído no pequeno quarto,
então me levantei e me vesti.
A casa tinha diferentes níveis. Havia três degraus do meu quarto e
do de Pierre até a sala de jantar e depois mais três degraus da sala de
jantar para o resto da casa, que nós chamávamos de “lá embaixo”. As
portas de duas folhas da sala de jantar não estavam fechadas, e eu pude
ver que a grande sala de visitas estava cheia de gente. O Sr. Mason,
minha mãe, Christophine, Mannie e Sass. Tia Cora estava sentada no
sofá azul, no canto da sala, usando um vestido de seda preta, o cabelo
cuidadosamente arrumado. Parecia muito altiva, pensei. Mas Godfrey
não estava lá, nem Myra, nem a cozinheira, nem nenhum dos outros.
— Não há motivo para ficar alarmada — estava dizendo meu
padrasto quando eu entrei. — Um punhado de negros bêbados. — Ele
abriu a porta que dava para o glacis e saiu. — O que é isso? — gritou
ele. — O que vocês querem? — Um barulho horrível ergueu-se, como
animais uivando, mas pior. Ouvimos pedras caindo no glacis. Ele estava
pálido quando tornou a entrar, mas tentou sorrir enquanto fechava a
porta e passava a tranca.
“Eles são mais do que eu pensava, e estão de péssimo humor. Vão
arrepender-se de manhã. Prevejo ofertas de compota de tamarindo e
doces de gengibre amanhã.”
— Amanhã será tarde demais — disse tia Cora —, tarde demais
para doces de gengibre ou qualquer outra coisa.
Minha mãe, que não estava prestando atenção a nenhum dos dois,
disse:
— Pierre está dormindo e Myra está com ele, eu achei melhor
deixá-lo em seu quarto, longe deste barulho horrível. Eu não sei. Talvez.
— Ela estava torcendo as mãos, sua aliança de casamento caiu e rolou
para um canto perto da escada. Meu padrasto e Mannie abaixaram-se ao
mesmo tempo para apanhá-la, então Mannie endireitou o corpo e disse:
— Meu Deus, eles puseram fogo nos fundos da casa. — Ele
apontou para a porta do meu quarto, que eu tinha fechado ao sair, e por
baixo dela estava saindo fumaça.
Eu não vi minha mãe mover-se, de tão rápida que ela foi. Abriu a
porta do meu quarto e eu não a vi, só vi fumaça. Mannie correu atrás
dela, e também o Sr. Mason, só que mais devagar. Tia Cora me abraçou.
— Não tenha medo, você está segura. — Só por um instante, eu
fechei os olhos e descansei a cabeça em seu ombro. Ela cheirava a
baunilha, eu me lembro. Depois senti um outro cheiro, de cabelo
queimado, e olhei e vi que minha mãe estava na sala carregando Pierre.
Era o cabelo dela que tinha queimado e estava com aquele cheiro.
Eu pensei: Pierre está morto. Ele parecia morto. Estava branco e
não fazia nenhum som, e sua cabeça estava pendurada para trás no braço
dela, como se ele não tivesse vida, e os olhos estavam revirados para trás,
de modo que você só via o branco. Meu padrasto disse:
— Annette, você está ferida, suas mãos... — Mas ela nem olhou
para ele.
— O berço dele estava pegando fogo — disse ela para tia Cora. —
O quartinho está em chamas e Myra não estava lá. Ela foi embora. Ela
não estava lá.
— Isso não me surpreende nem um pouco — disse tia Cora. Ela
deitou Pierre no sofá, inclinou-se sobre ele, depois levantou a saia, tirou
sua anágua branca e começou a rasgá-la em tiras.
— Ela o deixou, fugiu, e o deixou lá sozinho para morrer — disse
minha mãe, ainda sussurrando. Por isso foi ainda mais terrível quando
ela começou a xingar o Sr. Mason aos gritos, chamando-o de idiota,
idiota burro e cruel. — Eu disse a você, eu disse a você muitas e muitas
vezes o que iria acontecer. — Sua voz ficou embargada, mas ela
continuou gritando: — Você não me ouviu, você debochou de mim, seu
hipócrita sorridente, você também não devia ficar vivo, você sabe tanto,
não é? Por que não vai lá fora e pede a eles para deixarem você ir? Diga
como você é inocente. Diga que você sempre confiou neles.
Fiquei tão chocada que tudo pareceu confuso. E aconteceu
rapidamente. Eu vi Mannie e Sass cambaleando com o peso de duas
enormes jarras de cerâmica que ficavam na copa. Eles jogaram a água no
quarto e ela formou uma poça negra no chão, mas a fumaça rolou por
cima da poça. Então Christophine, que tinha corrido para o quarto da
minha mãe para buscar a jarra que havia lá, voltou e falou com minha
tia:
— Parece que eles puseram fogo do outro lado da casa.
— Eles devem ter subido naquela árvore do lado de fora — disse
tia Cora. — Este lugar vai queimar como lenha e não há nada que
possamos fazer para evitar. Quanto antes sairmos daqui, melhor.
Mannie perguntou para o menino:
— Está com medo? — Sass sacudiu a cabeça. — Então vem —
disse ela.
— Sai da frente — disse ele, empurrando o Sr. Mason. Uma
escada estreita de madeira ia da copa para os anexos, a cozinha, os
quartos dos empregados, as cocheiras. Era para lá que eles estavam indo.
— Pegue a criança — disse tia Cora a Christophine — e venha.
Estava muito quente no glacis também, eles urraram quando
saímos, depois houve outro urro atrás de nós. Eu não tinha visto
chamas, só fumaça e fagulhas, mas agora eu via chamas altas subindo na
direção do céu, porque os bambus tinham pegado fogo. Havia algumas
árvores de samambaia perto, verdes e úmidas, e uma delas também
estava queimando.
— Vem depressa — disse tia Cora, e ela foi primeiro, segurando a
minha mão. Christophine veio atrás, carregando Pierre, e nós descemos
os degraus do glacis sem dizer uma palavra. Mas quando eu procurei a
minha mãe, vi que o Sr. Mason, o rosto vermelho de calor, parecia estar
arrastando-a e ela resistindo, lutando. Eu o ouvi dizer:
— É impossível, agora é tarde demais.
— Ela quer a caixa de joias dela? — disse tia Cora.
— Caixa de joias? Nada tão sensato! — berrou o Sr. Mason. —
Ela queria voltar para pegar aquele maldito papagaio. Eu não vou deixar.
— Ela não respondeu, apenas lutou silenciosamente, contorcendo-se
como um gato e mostrando os dentes.
Nosso papagaio chamava-se Coco, um papagaio verde. Ele não
falava muito bem, sabia dizer Qui est là? Qui est là?, e responder a si
mesmo Ché Coco, Ché Coco. Depois que o Sr. Mason aparou-lhe as
asas, ele ficou muito mal-humorado, e, embora pousasse calmamente no
ombro da minha mãe, atacava qualquer um que se aproximasse dela e
bicava os pés da pessoa.
— Annette — disse tia Cora. — Eles estão rindo de você, não
permita que riam de você. — Então ela parou de lutar e ele nos seguiu,
meio sustentando-a, meio empurrando-a, praguejando em voz alta.
Eles ainda estavam quietos, e havia tantos que eu mal podia
enxergar um pedaço de grama ou as árvores. Devia haver muita gente da
baixada, mas eu não identifiquei ninguém. Todos pareciam iguais, era o
mesmo rosto repetido sem parar, olhos brilhando, bocas semiabertas
para gritar. Nós já tínhamos passado da pedra de montar quando eles
viram Mannie chegando com a carruagem. Sass vinha atrás, montado
num cavalo e puxando outro. Havia uma sela de mulher no que ele
estava puxando.
Alguém gritou “Vejam só o inglês preto! Vejam só os negros
brancos!”, e então todos começaram a gritar: “Vejam só os negros
brancos! Vejam os malditos negros brancos!” Uma pedra passou
raspando pela cabeça de Mannie, ele xingou de volta e eles se afastaram
dos cavalos, que começaram a empinar, assustados.
— Andem logo, pelo amor de Deus — disse o Sr. Mason. —
Entrem na carruagem, subam nos cavalos. — Mas nós não podíamos
avançar porque eles estavam nos cercando. Alguns estavam rindo e
sacudindo pedaços de pau, alguns dos que estavam atrás carregavam
tochas e estava claro como o dia. Tia Cora segurou minha mão com
muita força e seus lábios moveram-se, mas eu não consegui ouvir por
causa do barulho. E eu estava com medo, porque sabia que os que riam
iam ser os piores. Fechei os olhos e esperei. O Sr. Mason parou de
xingar e começou a rezar numa voz alta e lamuriosa. A oração terminou
assim: “Que Deus Todo-poderoso nos proteja.” E Deus, que é realmente
misterioso, que não tinha enviado nenhum sinal quando puseram fogo
em Pierre enquanto ele dormia, nem um trovão, nem um relâmpago, o
Deus misterioso atendeu imediatamente ao Sr. Mason e respondeu. Os
gritos pararam.
Abri os olhos, todo mundo estava olhando para cima e apontando
para Coco, que estava na balaustrada do glacis com as penas pegando
fogo. Ele tentou voar, mas suas asas cortadas falharam e ele caiu,
berrando. Ele estava todo envolto em chamas.
Eu comecei a chorar.
— Não olhe — disse tia Cora. — Não olhe. — Ela se abaixou e
me abraçou, e eu escondi o rosto, mas pude sentir que eles não estavam
mais tão perto. Ouvi alguém dizer alguma coisa sobre azar e me lembrei
que dava muito azar matar um papagaio, ou até mesmo ver um papagaio
morrer. Então eles começaram a se retirar, rapidamente,
silenciosamente, e os que ficaram se afastaram e nos observaram
atravessar o gramado. Eles não estavam mais rindo.
— Alcancem a carruagem, alcancem a carruagem — disse o Sr.
Mason. — Depressa! — Ele alcançou primeiro, segurando o braço da
minha mãe, depois Christophine carregando Pierre, e tia Cora foi a
última, ainda segurando a minha mão. Nenhum de nós olhou para trás.
Mannie tinha parado os cavalos na curva da estrada de cascalho e,
quando chegamos perto, o ouvimos gritar:
— O que vocês são, hein? Animais selvagens? — Ele estava
falando para um grupo de homens e algumas mulheres que estavam
cercando a carruagem. Um homem de cor com um facão na mão estava
segurando as rédeas. Eu não vi Sass nem os outros dois cavalos.
— Entrem — disse o Sr. Mason. — Não liguem para ele, entrem.
— O homem com o facão disse não. Disse que iríamos chamar a polícia
e contar um monte de mentiras. Uma mulher disse-lhe que nos deixasse
ir. Que tudo tinha sido um acidente e que eles tinham muitas
testemunhas. — Myra testemunha para nós.
— Cala essa boca — disse o homem. — Você esmaga centopeia,
esmaga ela, deixa um pedacinho e ela cresce de novo... Em quem você
acha que a polícia vai acreditar, hein? Em você ou no negro branco?
O Sr. Mason olhou para ele. Ele não parecia assustado e, sim,
pasmo demais para falar. Mannie ergueu o chicote da carruagem, mas
um dos homens mais pretos arrancou-o de suas mãos, partiu-o de
encontro ao joelho e o atirou longe.
— Fuja, inglês preto, como o garoto fugiu. Esconda-se no mato. É
melhor para você.
Foi tia Cora quem deu um passo à frente e disse:
— O meninozinho está muito ferido. Se não conseguirmos
socorro, ele vai morrer.
O homem disse:
— Então preto e branco, eles queimam igual, hein?
— Queimam — disse ela. — Aqui e no além, como você irá
descobrir. Muito em breve.
Ele largou as rédeas e aproximou o rosto do dela. Disse que ia
atirá-la no fogo se ela rogasse praga nele. Sua bruxa velha, ele disse. Mas
ela não recuou um centímetro, ela olhou bem nos olhos dele e ameaçou-
o com o fogo eterno numa voz calma.
— E nunca uma gota de sangria irá esfriar a sua língua em chamas
— disse ela. Ele tornou a xingá-la, mas recuou.
— Agora entrem — disse o Sr. Mason. — Você, Christophine,
entre com a criança. — Christophine entrou. — Agora você — disse ele
à minha mãe. Mas ela havia se virado e estava olhando para a casa, e
quando ele segurou no braço dela, ela gritou.
Uma mulher disse que só tinha ido até lá para ver o que ia
acontecer. Outra mulher começou a chorar. O homem com o facão
disse:
— Você chora por ela... quando foi que ela um dia chorou por
você? Me responda isso.
Mas então eu também me virei. A casa estava queimando, o céu
amarelo-avermelhado parecia o pôr do sol, e eu soube que nunca mais
tornaria a ver Coulibri. Não restaria nada, as samambaias douradas e as
samambaias prateadas, as orquídeas, os lírios e as rosas, as cadeiras de
balanço e o sofá azul, o jasmim e a madressilva, e o retrato da Filha de
Miller. Quando eles terminassem, não restaria nada, a não ser paredes
escuras e a pedra de montar. Isso sempre ficava. Não podia ser roubado
nem queimado.
Então, não muito longe, eu vi Tia e a mãe dela, e corri para ela,
pois ela era tudo o que restara da minha vida como tinha sido. Nós
tínhamos comido a mesma comida, dormido lado a lado, tomado banho
no mesmo rio. Enquanto corria, eu pensava: Vou morar com Tia e ser
igual a ela. Não deixar Coulibri. Não ir embora. Não. Quando cheguei
perto, vi a pedra em sua mão, mas não a vi atirá-la. Também não a senti,
só uma coisa úmida, escorrendo pelo meu rosto. Olhei para ela e vi seu
rosto contorcer-se quando ela começou a chorar. Olhamos uma para a
outra, sangue no meu rosto, lágrimas no dela. Era como se eu estivesse
vendo a mim mesma. Como num espelho.

— Eu vi minha trança amarrada com uma fita vermelha quando me


levantei — disse eu. — Em cima da cômoda. Pensei que fosse uma
cobra.
— Seu cabelo teve que ser cortado. Você esteve muito doente, meu
bem — disse tia Cora. — Mas está segura aqui comigo agora. Nós todos
estamos a salvo, como eu disse que estaríamos. Mas você deve ficar na
cama. Por que está andando pelo quarto? O seu cabelo vai crescer de
novo — disse ela. — Mais comprido e mais forte.
— Só que mais escuro — disse eu.
— Por que não mais escuro?
Ela me ergueu no colo e eu gostei de sentir o colchão macio sob o
corpo e gostei de ser coberta com um lençol frio.
— Está na hora do seu mingau — disse ela, e saiu. Quando
terminei, ela pegou a xícara e ficou olhando para mim.
— Eu me levantei porque queria saber onde estava.
— E você sabe, não é? — perguntou ela com uma voz ansiosa.
— É claro. Mas como foi que eu cheguei na sua casa?
— Os Luttrell foram muito bons. Assim que Mannie chegou em
Repouso do Nelson, eles enviaram uma rede e quatro homens. Você foi
um bocado sacudida. Mas eles fizeram tudo o que foi possível. O jovem
Sr. Luttrell foi cavalgando ao seu lado o tempo todo. Isto não foi gentil?
— Sim — disse eu. Ela parecia magra e velha e seu cabelo não
estava arrumado, então eu fechei os olhos, sem querer olhar para ela.
— Pierre está morto, não está?
— Ele morreu no caminho, pobrezinho — disse ela.
“Ele morreu antes disso”, pensei, mas estava cansada demais para
falar.
— Sua mãe está no campo. Descansando. Recuperando-se. Você
irá vê-la logo.
— Eu não sabia — disse eu. — Por que ela foi embora?
— Você esteve muito doente por quase seis semanas. Você não
percebia nada.
Que adiantava eu dizer a ela que já tinha estado acordada antes e
que tinha ouvido minha mãe gritando: “Qui est là? Qui est là?”; e em
seguida: “Não toque em mim. Se tocarem mim, eu mato você! Covarde!
Hipócrita! Vou matar você!” Eu tinha tapado os ouvidos com as mãos
porque os gritos dela eram altos e terríveis. Tornei a dormir e, quando
acordei, tudo estava quieto.
Tia Cora ainda estava sentada ao lado da minha cama, olhando
para mim.
— Minha cabeça está enfaixada. Está tão quente — eu disse. —
Eu vou ficar com uma marca na testa?
— Não, não. — Ela sorriu pela primeira vez. — O ferimento está
cicatrizando muito bem. Não vai atrapalhar você no dia do seu
casamento — disse ela.
Ela se inclinou e me beijou.
— Você quer alguma coisa? Uma bebida gelada?
— Não, uma bebida, não. Canta para mim. Eu gosto disso. Ela
começou com uma voz trêmula:

Toda noite às oito e meia


Alguém bate, toc-toc...

— Essa não. Eu não gosto dessa. Canta “Antes de eu ser


libertada”.
Ela sentou do meu lado e cantou bem baixinho “Antes de eu ser
libertada”. Eu ouvi até “a tristeza que sinto em meu coração por...”. Eu
não ouvi o final, mas antes de dormir eu ouvi, “A tristeza que sinto em
meu coração por...”.

Eu ia ver a minha mãe. Tinha insistido em ter Christophine comigo,


mais ninguém, e como eu ainda não estava muito bem, eles
concordaram. Eu me lembro da sensação estranha que senti enquanto
viajávamos porque eu não esperava vê-la. Ela era parte de Coulibri, que
tinha desaparecido, então ela desaparecera também, eu tinha certeza.
Mas, quando chegamos na casinha bonita e arrumada onde ela vivia
agora (eles disseram), saltei da carruagem e corri o mais rápido que pude
pelo gramado. Havia uma porta aberta que dava para a varanda. Entrei
sem bater e fiquei olhando para as pessoas que estavam na sala. Um
homem de cor, uma mulher de cor, e uma mulher branca sentada com a
cabeça tão baixa que eu não pude ver seu rosto. Mas reconheci seu
cabelo, uma trança bem mais curta que a outra. E seu vestido. Coloquei
os braços em volta dela e beijei-a. Ela me apertou com tanta força que
eu mal pude respirar, e pensei: “Não é ela.” E em seguida: “Deve ser
ela.” Ela olhou para a porta, depois para mim, depois outra vez para a
porta. Eu não podia dizer “ele está morto”, então sacudi a cabeça. “Mas
eu estou aqui, eu estou aqui”, disse eu, e ela disse: “Não”, baixinho.
Depois “Não, não, não” muito alto, e me empurrou para longe dela. Eu
caí de encontro à parede e me machuquei. O homem e a mulher
estavam segurando os braços dela e Christophine estava lá. A mulher
disse:
— Por que você traz a criança para criar problema, problema,
problema? Eu já tenho problema demais aqui.
No caminho de volta para a casa de tia Cora, nós não dissemos
uma palavra.
No primeiro dia que tive que ir para o convento, eu me agarrei em
tia Cora como alguém se agarraria à vida, se gostasse dela. Ela acabou
ficando impaciente, então eu obriguei a mim mesma a largá-la,
atravessar o corredor, descer os degraus até a rua e, como eu já esperava,
eles estavam esperando por mim debaixo da árvore. Havia dois deles,
um menino e uma menina. O menino tinha cerca de 14 anos e era alto e
forte para a idade, tinha pele branca, um branco feio, coberto de sardas,
sua boca era uma boca de negro e ele tinha olhos pequenos, como
pedacinhos de vidro verde. Tinha olhos de peixe morto. O pior, o mais
terrível de tudo, era que o cabelo dele era crespo, cabelo de negro, mas
vermelho, e suas sobrancelhas e pestanas eram vermelhas também. A
menina era bem preta e não usava lenço na cabeça. Seu cabelo havia sido
trançado, e eu pude sentir o cheiro enjoado do óleo que haviam passado
na cabeça dela ali de onde eu estava, dos degraus da casa escura, limpa,
agradável da tia Cora, olhando para eles. Eles pareciam tão inofensivos e
calmos; ninguém teria notado o brilho nos olhos do menino.
Então a menina sorriu e começou a estalar os dedos. Cada dedo
que ela estalava eu dava um pulo e minhas mãos começavam a suar. Eu
estava segurando alguns livros na mão direita e passei-os para debaixo
do braço, mas foi tarde demais, ficou uma marca na palma da minha
mão e uma mancha na capa do livro. A menina começou a rir, bem
baixinho, e foi então que o ódio me invadiu e, junto com o ódio, a
coragem, e eu consegui passar sem olhar para eles.
Eu sabia que eles estavam me seguindo, eu sabia que enquanto eu
estivesse à vista da casa da tia Cora eles não fariam nada além de andar
atrás de mim, a uma certa distância. Mas eu sabia quando eles iam
chegar perto. Seria quando eu estivesse subindo a ladeira. Havia muros e
jardins de cada lado da ladeira e não haveria ninguém lá naquela hora da
manhã.
Na metade da ladeira, eles me cercaram e começaram a falar. A
menina disse:
— Olha a menina maluca, você é maluca igual a sua mãe. Sua tia
está com medo de ter você em casa. Ela mandou você para ficar trancada
com as freiras. Sua mãe anda sem sapatos nem meias nos pés, ela sans
culottes. Ela tentou matar o marido e tentou matar você também
naquele dia que você foi visitar. Ela tem olhos de zumbi, e você também
tem olhos de zumbi. Por que você não olha pra mim? — O menino
apenas disse:
— Um dia eu pego você sozinha, espera só, um dia eu pego você
sozinha.
Quando cheguei no alto da ladeira, eles começaram a me
empurrar, eu podia sentir o cheiro do cabelo da menina.
Uma rua comprida e vazia estendia-se na direção do convento, do
muro do convento e de um portão de madeira. Eu ia ter que tocar o sino
antes de entrar. A menina disse:
— Você não quer olhar para mim, eu faço você me olhar. — Ela
me empurrou, e os livros que eu estava carregando caíram no chão.
Agachei para apanhá-los e vi que um menino alto que estava
andando do outro lado da rua tinha parado e estava olhando para nós.
Então ele atravessou correndo. Tinha pernas compridas, seus pés mal
tocavam o chão. Assim que o viram, eles deram a volta e se afastaram.
Ele olhou para eles, espantado. Eu teria preferido morrer a correr
enquanto eles estavam lá, mas, assim que foram embora, eu corri. Deixei
meus livros no chão e o menino alto veio atrás de mim.
— Você deixou cair isto — disse ele e sorriu. Eu sabia quem ele
era, o nome dele era Sandi, o filho de Alexander Cosway. Antes eu teria
dito “meu primo Sandi”, mas os sermões do Sr. Mason tinham me
deixado desconfiada dos meus parentes de cor.
— Obrigada — murmurei.
— Vou falar com aquele menino — disse ele. — Ele não vai
incomodar você de novo.
Ao longe eu podia ver o cabelo vermelho do meu inimigo que se
afastava a toda, mas ele não tinha a menor chance. Sandi alcançou-o
antes que ele chegasse na esquina. A menina tinha desaparecido. Eu não
esperei para ver o que aconteceu, mas toquei o sino com toda a força.
Finalmente abriram a porta. A freira era uma mulher de cor e
pareceu zangada.
— Você não deve tocar o sino desse jeito — disse ela. — Eu vim o
mais rápido que pude. — Então eu ouvi a porta fechar-se atrás de mim.
E então desatei a chorar. Ela perguntou se eu estava doente, mas
não consegui responder. Segurou a minha mão, ainda estalando a língua
e resmungando com mau humor, e atravessou o pátio comigo, passou
pela sombra da árvore grande, e não entrou pela porta da frente, entrou
numa sala grande, fresca, com chão de pedra. Havia panelas penduradas
na parede e uma lareira de pedra. Havia outra freira no fundo da sala e,
quando o sino tornou a tocar, a primeira freira foi atender. A segunda
freira, também uma mulher de cor, trouxe uma bacia com água, mas
com a mesma rapidez com que ela limpava o meu rosto, eu recomeçava a
chorar. Quando viu a minha mão, ela perguntou se eu tinha caído e me
machucado. Sacudi negativamente a cabeça, e ela limpou a mancha com
delicadeza.
— O que foi que aconteceu, por que você está chorando? O que
aconteceu com você? — Mas eu não consegui responder. Ela me trouxe
um copo de leite, eu tentei beber, mas engasguei.
— Ô, lá, lá — disse ela sacudindo os ombros, e saiu.
Quando tornou a voltar, havia uma terceira freira com ela, que
disse numa voz calma:
— Você já chorou o suficiente, agora precisa parar. Você tem um
lenço? — Eu lembrei que o havia deixado cair. A freira nova enxugou os
meus olhos com um lenço enorme, deu-o para mim e perguntou o meu
nome.
— Antoinette — eu disse.
— É claro — disse ela. — Eu sei. Você é Antoinette Cosway; quer
dizer, Antoinette Mason. Alguém assustou você?
— Sim.
— Agora olha para mim — disse ela. — Você não vai ter medo de
mim.
Eu olhei para ela. Tinha grandes olhos castanhos, muito meigos, e
estava vestida de branco, sem aquele avental engomado que as outras
usavam. A faixa em volta da cabeça era de linho, e acima do linho
branco um véu preto de uma fazenda fina, que caía em pregas pelas suas
costas. Suas bochechas eram vermelhas e seu rosto, risonho, com duas
covinhas. Suas mãos eram pequenas, mas pareciam inchadas e
desajeitadas, diferentes do resto dela. Foi só mais tarde que eu soube que
elas eram aleijadas por causa do reumatismo. Ela me levou para uma sala
mobiliada formalmente, com cadeiras de espaldar reto e uma mesa
envernizada no meio. Depois que ela conversou comigo, eu contei mais
ou menos por que estava chorando e disse que não gostava de andar
sozinha até a escola.
— Isso tem que ser resolvido — disse ela. — Vou escrever para a
sua tia. Agora madre St. Justine está esperando por você. Eu mandei
chamar uma menina que já está conosco há quase um ano. O nome dela
é Louise, Louise de Plana. Se você se sentir deslocada, ela irá explicar
tudo.

Louise e eu seguimos por um caminho pavimentado até a sala de aula.


Havia grama dos dois lados do caminho e árvores e sombras de árvores,
e de vez em quando um alegre arbusto florido. Ela era muito bonita e,
quando sorriu para mim, mal pude acreditar que tinha estado tão infeliz.
— Nós sempre chamamos a madre St. Justine de madre Suco de
Lima — disse ela. — Ela não é muito inteligente, a coitada. Você vai
ver.

Bem depressa, enquanto posso, eu preciso me lembrar da sala quente.


Da sala quente, das carteiras de pinho, do calor do banco subindo pelo
meu corpo, pelos meus braços e minhas mãos. Mas do lado de fora eu
via frescor, sombra azul sobre um muro branco. Minha agulha é sem
jeito e range quando entra e sai da tela.
— Minha agulha está praguejando — murmuro para Louise, que
senta do meu lado. Nós estamos bordando rosas de seda com ponto de
cruz sobre um pano de fundo claro. Podemos colorir as rosas como
quisermos, e as minhas são verdes, azuis e roxas. Embaixo, eu vou
escrever o meu nome em vermelho vivo, Antoinette Mason, née
Cosway, Convento do Monte Calvário, Spanish Town, Jamaica, 1839.
Enquanto trabalhamos, madre St. Justine nos lê histórias do livro
sobre a vida dos santos. Santa Rosa, Santa Bárbara, Santa Inês. Mas nós
temos a nossa própria santa, o esqueleto de uma menina de catorze anos
sob o altar da capela do convento. As Relíquias. Mas eu me pergunto
como foi que as freiras as trouxeram para cá. Num baú? Especialmente
preparado para isso? Como? Mas aqui está ela, e o nome dela é Santa
Inocência. Nós não conhecemos sua história, ela não está no livro. As
santas das quais ouvimos falar foram todas muito bonitas e ricas. E
foram amadas por jovens ricos e bonitos.
— ... mais linda e mais ricamente vestida do que ele jamais a tinha
visto — recita madre St. Justine. — Ela sorriu e disse: “Teófilo, aqui está
uma rosa do jardim do meu Esposo, em quem você não acreditava.” A
rosa que ele encontrou ao lado dele ao acordar nunca murchou. Ela
ainda existe. — (Ah, mas onde? Onde?) — E Teófilo converteu-se ao
cristianismo — diz madre St. Justine, lendo bem depressa agora —, e
tornou-se um dos Mártires Sagrados. — Ela fecha o livro ruidosamente
e recomenda que empurremos para trás as cutículas de nossas unhas ao
lavarmos as mãos. Higiene, bons modos e bondade para com os pobres
É
de Deus. Uma torrente de palavras. (“É a fase da vida em que ela está”,
disse Hélène de Plana, “ela não pode evitar, pobre Justine.”) — Quando
alguém ofende ou maltrata os miseráveis ou os infelizes, está ofendendo
o próprio Cristo e Ele não esquecerá, pois eles são os Seus escolhidos.
— Esta observação é feita com uma voz casual e indiferente, e ela passa
diretamente para o tema da ordem e da castidade, esse cristal sem jaça
que, uma vez quebrado, jamais pode ser consertado. E em seguida
comportamento. Como todo mundo, ela se deixou enfeitiçar pelas irmãs
de Plana e cita-as como exemplos para a turma. Eu as admiro. Elas
ficam sentadas com tanta pose, tão imperturbáveis enquanto ela chama a
atenção para a excelência do penteado da Srta. Hélène, feito sem a ajuda
de um espelho.
— Por favor, Hélène, diga-me como você penteia o cabelo, porque
quando eu crescer quero que o meu fique igual ao seu.
— É muito fácil. Você o penteia para cima, assim, e depois o
empurra um pouquinho para a frente, assim, e então você coloca alguns
grampos para prendê-lo. Mas não grampos demais.
— Mas, Hélène, o meu não fica parecido com o seu, não importa
o que eu faça.
Suas pestanas bateram, ela desviou o rosto, educada demais para
declarar o óbvio. Nós não temos espelho no dormitório, uma vez eu vi
uma freira nova, bem jovem, da Irlanda, olhando-se num barril de água,
sorrindo para ver se suas covinhas ainda estavam lá. Quando ela me viu,
ficou vermelha, e eu pensei: agora ela não vai mais gostar de mim.
Às vezes era o cabelo da Srta. Hélène e às vezes o comportamento
impecável da Srta. Germaine, e às vezes era o cuidado que a Srta.
Louise tinha com seus lindos dentes. E se nós nunca sentimos inveja,
elas nunca pareceram vaidosas. Hélène e Germaine, um pouco
desdenhosas, distantes talvez, mas Louise nem mesmo isso. Ela não se
envolvia naquilo — como se soubesse que tinha nascido para outras
coisas. Os olhos castanhos de Hélène podiam ser ríspidos, os olhos
cinzentos de Germaine eram lindos, suaves e melancólicos, ela falava
devagar e, ao contrário da maioria das meninas crioulas, era muito
calma. É fácil imaginar o que aconteceu com aquelas duas, marcadas
pela ilegitimidade. Ah, mas Louise! Sua cintura fina, suas mãos finas e
morenas, seus cachos pretos que cheiravam a vetiver, sua voz doce e
aguda, cantando tão despreocupadamente na capela sobre a morte.
Como um pássaro cantaria. Qualquer coisa poderia ter acontecido com
você, Louise, qualquer coisa mesmo, e eu não ficaria surpresa.
E houve uma outra santa, madre St. Justine disse, ela viveu mais
tarde, mas também na Itália, ou será que foi na Espanha? Itália significa
colunas brancas e água verde. Espanha significa sol quente sobre pedras,
a França é uma dama de cabelos negros vestida de branco, porque
Louise nasceu na França há 15 anos, e minha mãe, a quem eu devo
esquecer e por quem devo rezar como se estivesse morta, embora esteja
viva, gostava de se vestir de branco.
Ninguém falava nela agora que Christophine tinha nos deixado
para morar com o filho. Eu raramente via o meu padrasto. Ele
aparentemente não gostava da Jamaica, em especial de Spanish Town, e
costumava passar vários meses fora.
Numa tarde quente de julho, minha tia me disse que estava indo
passar um ano na Inglaterra. Sua saúde não estava boa e ela precisava de
uma mudança. Enquanto falava, ela trabalhava numa colcha de retalhos.
Os pedaços de seda em forma de losango fundiam-se uns com os outros,
vermelhos, azuis, roxos, verdes, amarelos, formando todos uma única cor
tremeluzente. Ela passara horas e horas trabalhando nela, e agora estava
quase pronta. Eu ia sentir-me solitária? Ela perguntou e eu disse “não”,
contemplando as cores. Horas e horas e horas, pensei.

Este convento era o meu refúgio, um lugar de sol e de morte, onde de


manhã bem cedo o toque de um alarme de madeira acordava as nove de
nós que ocupávamos o dormitório comprido. Acordávamos e víamos a
irmã Marie Augustine sentada, serena e composta, com as costas bem
retas, numa cadeira dura. O longo salão marrom estava cheio de raios
dourados de sol e de sombras de árvores que se moviam em silêncio. Eu
aprendi a dizer bem depressa como as outras diziam: “Ofereço todas as
orações, trabalhos e sofrimentos deste dia.” Mas e a felicidade, eu
pensava a princípio, será que não há felicidade? Tem que haver. Ah,
felicidade, é claro, felicidade, ora.
Mas eu logo esquecia a felicidade, descendo as escadas correndo
até a enorme banheira de pedra onde nos banhávamos vestidas com
nossas longas camisolas de algodão cinzento que iam até os tornozelos.
O cheiro de sabão quando você se ensaboava cautelosamente por baixo
da camisola, um truque a ser aprendido, vestir-se com recato, outro
truque. Grandes manchas de sol enquanto subíamos correndo a escada
de madeira do refeitório. Café quente e pãezinhos com a manteiga
derretendo. Mas depois da refeição, agora e na hora da nossa morte, e ao
meio-dia e às seis da tarde, agora e na hora da nossa morte. Permita que
uma luz perpétua brilhe sobre elas. Esta é pela minha mãe, eu
costumava pensar, onde quer que sua alma esteja vagando, pois ela
deixou o seu corpo. Então eu me lembrei do quanto ela detestava luz
forte e do quanto amava a sombra e o frescor. É uma luz diferente, elas
me disseram. Ainda assim, eu não conseguia dizer as palavras. Logo nós
estávamos de volta às sombras inconstantes do lado de fora, mais lindas
do que qualquer luz perpétua poderia ser, e em pouco tempo eu aprendi
a repetir sem pensar como as outras faziam. Sobre mudar agora e na
hora da nossa morte, pois isso é só o que temos.
Tudo era luz ou escuridão. As paredes, as cores fulgurantes das
flores no jardim, os hábitos das freiras eram claros, mas seus véus, o
crucifixo pendurado em suas cinturas, a sombra das árvores, eram pretos.
Era assim que era, claro e escuro, sol e sombra, céu e inferno, pois uma
das freiras sabia tudo sobre inferno, e quem não sabe? Mas outra sabia
sobre o céu e os atributos dos abençoados, dos quais um dos menos
importantes é a beleza transcendente. O menos importante de todos. Eu
mal podia esperar por todo aquele êxtase, e uma vez rezei muito para
morrer. Então me lembrei de que isso era pecado. Não me lembro se é
soberba ou desespero, mas sei que é um pecado mortal. Então rezei
muito tempo por causa disso também, mas a ideia me vinha à mente,
tantas coisas são pecado, por quê? Outro pecado, pensar nisso.
Entretanto, felizmente, a irmã Marie Augustine diz que pensamentos
não são pecados, se eles forem logo afastados. Você diz: Senhor, me
salve, estou perdida. Acho muito reconfortante saber exatamente o que
tem que ser feito. Mesmo assim, eu não rezei com tanta frequência
depois disso, e logo deixei de rezar completamente. Eu me senti mais
corajosa, mais feliz, mais impetuosa. Mas não mais segura.
Durante este tempo, quase 18 meses, meu padrasto visitou-me
diversas vezes. Primeiro, ele falava com a madre superiora, depois eu ia
até a sala, vestida como se fosse para um jantar ou para visitar amigos.
Ele me dava presentes na hora de ir embora, doces, um medalhão, uma
pulseira, uma vez um belo vestido, que, é claro, eu não pude usar.
A última vez que ele veio foi diferente. Eu soube disso assim que
entrei na sala. Ele me beijou, segurou-me a uma certa distância,
olhando-me com cuidado e com um ar crítico, depois sorriu e disse que
eu estava mais alta do que ele havia imaginado. Eu lembrei a ele que
estava com mais de 17 anos, já era uma mulher feita.
— Eu não me esqueci do seu presente — disse ele.
Por me sentir envergonhada e pouco à vontade, eu respondi
friamente:
— Eu não posso usar todas essas coisas que o senhor compra para
mim.
— Você vai usar o que quiser quando estiver morando comigo —
retorquiu ele.
— Onde? Em Trinidad?
— É claro que não. Aqui, por enquanto. Comigo e com a sua tia
Cora, que está finalmente voltando para casa. Ela diz que outro inverno
inglês irá matá-la. E com o Richard. Você não pode passar o resto da
vida escondida.
“Por que não?”, pensei.
Acho que ele percebeu o meu desapontamento, porque começou a
brincar, a me fazer cumprimentos, e a fazer perguntas tão absurdas que
logo eu também estava rindo. O que eu achava de ir morar na
Inglaterra? Então, antes que eu pudesse responder, eu tinha aprendido a
dançar, ou as freiras eram severas demais?
— Elas não são nada severas — eu disse. — O bispo que as visita
todo ano diz que elas são indulgentes. Muito indulgentes. Ele diz que é
o clima.
— Espero que elas tenham dito a ele para não se meter.
— Ela disse. A madre superiora disse. Algumas das outras ficaram
assustadas. Elas não são severas, mas ninguém me ensinou a dançar.
— Isso não vai ser o mais difícil. Eu quero que você seja feliz,
Antoinette, que se sinta segura, eu tentei cuidar disso, mas teremos
tempo para conversar sobre isso mais tarde.
Quando estava saindo do convento, ele disse num tom
despreocupado:
— Eu convidei uns amigos ingleses para virem passar o próximo
inverno aqui. Você não ficará entediada.
— O senhor acha que eles virão? — eu disse, meio em dúvida.
— Um deles virá. Eu tenho certeza.
Pode ter sido o modo como ele sorriu, mas de novo um
sentimento de decepção, tristeza, perda quase me sufocou. Desta vez eu
não deixei que ele percebesse.
Foi como naquela manhã em que encontrei o cavalo moro. Se eu
não disser nada, talvez não seja verdade.
Mas todas no convento sabiam. As meninas ficaram muito
curiosas, mas eu me recusei a responder as perguntas delas, e pela
primeira vez fiquei aborrecida com os rostos alegres das freiras.
Elas estão seguras. Como podem saber como as coisas podem ser
lá fora?
Esta foi a segunda vez em que eu tive o meu sonho.
Mais uma vez eu saio de casa, em Coulibri. Ainda é noite e eu
estou andando na direção da floresta. Estou usando um vestido
comprido e sapatilhas finas, então caminho com dificuldade, seguindo o
homem que está comigo, erguendo a saia do meu vestido. O vestido é
branco e bonito e eu não quero sujá-lo. Eu o sigo, morta de medo, mas
não faço nenhum esforço para salvar-me; se alguém tentasse salvar-me,
eu não permitiria. Isto tem que acontecer. Então nós chegamos à
floresta. Estamos debaixo das árvores escuras e altas e não há vento
algum.
— Aqui? — Ele se vira e olha para mim, o rosto carregado de
ódio, e quando vejo isto, começo a chorar. Ele sorri astutamente.
— Aqui não, ainda não — diz ele, e eu o sigo, chorando. Agora eu
não tento erguer o vestido, ele se arrasta na terra, o meu lindo vestido.
Nós não estamos mais na floresta, e sim num jardim cercado por um
muro de pedra e as árvores são diferentes. Eu não as conheço. Há uma
escada que sobe. Está escuro demais para ver o muro ou os degraus, mas
eu sei que eles estão lá e penso:
“Vai ser quando eu subir esta escada. No topo.” Eu tropeço no
meu vestido e não consigo me levantar. Toco numa árvore e me agarro
nela.
— Venha, venha. — Mas eu acho que não vou mais avançar. A
árvore balança e sacode como se estivesse tentando livrar-se de mim.
Mas eu continuo agarrada nela e os segundos se passam e cada um deles
parece mil anos. — Venha, venha para cá — disse uma voz estranha, e a
árvore parou de balançar e de sacudir.

Agora a irmã Marie Augustine está me levando para fora do dormitório,


perguntando se estou doente, dizendo que eu não devo perturbar as
outras e, embora eu ainda esteja tremendo, imagino se ela me levará para
trás das cortinas misteriosas até o lugar onde ela dorme. Mas não. Ela
me senta numa cadeira, desaparece, e após algum tempo volta com uma
xícara de chocolate quente.
— Sonhei que estava no inferno — eu disse.
— Esse sonho é ruim. Afaste-o da sua mente; nunca mais torne a
pensar nele. — E esfregou minhas mãos frias para aquecê-las.
Ela tem a mesma aparência de sempre, composta e arrumada, e eu
tenho vontade de perguntar se ela se levanta antes do amanhecer ou se
nem chegou a se deitar.
— Beba o seu chocolate.
Enquanto estou bebendo, eu me lembro de que, depois do enterro
da minha mãe, de manhã bem cedinho, quase tão cedo como agora, nós
fomos para casa tomar chocolate e comer bolo. Ela morreu no ano
passado, ninguém me disse como, e eu não perguntei. O Sr. Mason
estava lá, junto com Christophine, e mais ninguém. Christophine
chorou amargamente, mas eu não consegui. Eu rezei, mas as palavras
caíram no chão sem significar nada.
Agora a imagem dela está misturada com o meu sonho.
Eu a vi com sua roupa remendada, cavalgando um cavalo
emprestado, tentando acenar no início da estrada de cascalho em
Coulibri, e meus olhos encheram-se outra vez de lágrimas.
— Acontecem coisas tão terríveis — eu disse. — Por quê? Por
quê?
— Você não deve preocupar-se com esse mistério — disse a irmã
Marie Augustine. — Nós não sabemos por que o demônio às vezes leva
a melhor. Ainda não.
Ela nunca foi tão sorridente quanto as outras, e agora não estava
sorrindo. Ela parecia triste.
Ela disse, como se falasse consigo mesma:
— Agora volte para a cama, sem fazer barulho. Pense em coisas
calmas, tranquilas e tente dormir. Logo eu darei o sinal. Logo será
amanhã de manhã.
E ntão estava tudo terminado, os avanços e recuos, as dúvidas e
hesitações. Tudo acabado, para o bem ou para o mal. Lá estávamos nós,
abrigando-nos da chuvarada sob uma enorme mangueira, eu, minha
esposa Antoinette e uma empregadinha mestiça chamada Amélie.
Debaixo de uma árvore próxima, eu podia ver a nossa bagagem coberta
com um pano grosso, os dois carregadores e um menino segurando
cavalos descansados, contratados para conduzir-nos a 3 mil metros de
altura, onde ficava a casa em que passaríamos a nossa lua de mel.
A moça Amélie disse esta manhã:
— Espero que o senhor seja muito feliz na sua doce casa de lua de
mel. — Ela estava rindo de mim, percebi. Uma criaturinha bonita, mas
dissimulada, maliciosa, malévola talvez, como muitas outras neste lugar.
— É só uma pancada de chuva — disse Antoinette ansiosamente.
— Vai parar logo.
Contemplei os tristes coqueiros inclinados, os barcos de pesca
recolhidos à praia coberta de cascalho, a fileira de choupanas caiadas de
branco, e perguntei o nome da aldeia.
— Massacre.
— E quem foi massacrado aqui? Escravos?
— Não, não. — Ela pareceu chocada. — Escravos não. Algo deve
ter acontecido muito tempo atrás. Agora ninguém se lembra mais.
A chuva começou a cair com mais força, gotas enormes soavam
como granizo nas folhas da árvore, e o mar rastejava furtivamente para a
frente e para trás.
Então isto aqui é Massacre. Não é o fim do mundo, é apenas o
último estágio da nossa interminável viagem que começou na Jamaica, o
início da nossa doce lua de mel. E tudo irá parecer muito diferente com
sol.
Fora combinado que nós deixaríamos Spanish Town
imediatamente depois da cerimônia e passaríamos algumas semanas
numa das ilhas Windward, numa pequena propriedade que pertencera à
mãe de Antoinette. Eu concordei. Como havia concordado com todo o
resto.
As janelas das choupanas estavam fechadas, as portas abertas para
o silêncio e a escuridão. Então apareceram três garotinhos, que ficaram
olhando para nós. O menor usava apenas uma medalha em volta do
pescoço e a aba de um chapéu de pescador. Quando sorri para ele,
começou a chorar. Uma mulher chamou de dentro de uma das
choupanas e ele saiu correndo, ainda berrando.
Os outros dois o seguiram devagar, olhando diversas vezes para
trás.
Como se isto fosse um sinal, uma segunda mulher apareceu na
porta, depois uma terceira.
— É Caro — disse Antoinette. — Tenho certeza de que é Caro.
Caroline — chamou ela, acenando, e a mulher acenou de volta. Uma
criatura velha e espalhafatosa, usando um vestido estampado de flores,
um lenço listrado na cabeça e brincos de ouro.
— Você vai ficar encharcada, Antoinette — eu disse.
— Não, a chuva está parando. — Ela ergueu a saia do seu traje de
montaria e atravessou a rua correndo. Eu a observei com um olhar
crítico. Ela usava um chapéu de três bicos que lhe caía muito bem. Pelo
menos sombreava seus olhos, que são grandes demais e podem ser
desconcertantes. Tenho a impressão de que ela nunca pisca. Olhos
oblíquos, tristes, escuros e estrangeiros. Ela pode ser crioula de pura
descendência inglesa, mas eles não são ingleses nem europeus. E quando
foi que eu comecei a notar tudo isso a respeito da minha esposa
Antoinette? Acho que foi depois que saímos de Spanish Town. Ou
notei antes, mas me recusei a admitir o que estava vendo? Não que eu
tenha tido muito tempo para notar alguma coisa. Casei-me um mês
depois de ter chegado à Jamaica, e nesse período passei três semanas de
cama, com febre.
As duas mulheres ficaram gesticulando na porta da choupana,
falando não em inglês, mas no feio patuá que eles usam nesta ilha. A
chuva começou a gotejar na minha nuca, aumentando a sensação de
desconforto e melancolia que eu estava sentindo.
Pensei na carta que deveria ter escrito para a Inglaterra uma
semana antes. Querido pai...
— Caroline está perguntando se você quer se abrigar na casa dela.
Era Antoinette. Ela falou de forma hesitante, como se esperasse
uma recusa, então foi fácil recusar.
— Mas você está ficando molhado — disse ela.
— Não tem importância. — Eu sorri para Caroline e sacudi a
cabeça.
— Ela vai ficar muito desapontada — disse minha mulher, e em
seguida tornou a atravessar a rua e entrou na choupana escura.
Amélie, antes sentada de costas para nós, virou-se. Sua expressão
mostrava uma tal satisfação maliciosa, uma tal inteligência e, acima de
tudo, uma tal intimidade que eu senti vergonha e desviei os olhos.
“Bem”, pensei. “Eu tive febre. Ainda não voltei a ser o que era.”
A chuva não estava tão forte e eu fui conversar com os
carregadores. O primeiro homem não era um nativo da ilha.
— Este lugar é muito selvagem, não é civilizado. Por que o senhor
veio para cá? — Ele me disse que era chamado de Jovem Touro e que
tinha 27 anos de idade. Um corpo magnífico e um rosto tolo e
convencido. O nome do outro homem era Emile, sim, ele nascera na
aldeia, morava lá. — Pergunte quantos anos ele tem — sugeriu o Jovem
Touro. Emile disse, numa voz interrogativa:
— Catorze? Sim, eu tenho 14 anos, meu senhor.
— Impossível — retruquei. Eu podia ver os fios grisalhos em sua
barba rala.
— Cinquenta e seis anos, talvez. — Ele parecia ansioso em
agradar.
O Jovem Touro riu alto.
— Ele não sabe quantos anos tem, ele não pensa nisso. Estou
dizendo ao senhor que esta gente não é civilizada.
Emile resmungou:
— Minha mãe sabia, mas ela está morta. — Então ele pegou um
trapo azul, que torceu e pôs no alto da cabeça.
A maioria das mulheres estava na porta das casas olhando para
nós, mas sem sorrir. Pessoas sombrias num lugar sombrio. Alguns dos
homens dirigiam-se para os barcos. Quando Emile gritou, dois foram
na direção dele. Ele cantou numa voz grave. Eles responderam, depois
ergueram a pesada cesta de vime e puseram-na na cabeça dele, cantando.
Ele a equilibrou com uma das mãos e saiu andando, descalço sobre as
pedras pontudas, sem dúvida o membro mais alegre da festa de
casamento. Quando o Jovem Touro equilibrou sua carga, ele olhou para
mim de lado, todo prosa, e também começou a cantar em inglês.
O menino trouxe os cavalos até uma pedra grande, e eu vi
Antoinette saindo da choupana. O sol esquentou e começou a subir
vapor do capim atrás de nós. Amélie tirou os sapatos, amarrou um no
outro e pendurou no pescoço. Ela equilibrou sua cesta na cabeça e saiu
andando com a mesma facilidade que os carregadores. Nós montamos,
viramos uma curva e a aldeia desapareceu. Um galo cantou alto e eu me
lembrei da noite anterior, que havíamos passado na cidade. Antoinette
ficou sozinha num quarto, ela estava exausta. Eu fiquei deitado,
acordado, ouvindo os galos cantando a noite inteira, depois levantei bem
cedo e vi as mulheres com bandejas equilibradas na cabeça, cobertas com
um pano branco, indo para a cozinha. A mulher com pãezinhos para
vender, a mulher com bolos, a mulher com doces. Na rua, outra gritava
Bon sirop, bon sirop!, e eu me senti em paz.

A estrada era em aclive. De um lado, uma parede verdejante, do outro,


um precipício que terminava lá embaixo na ribanceira. Nós paramos e
contemplamos as colinas, as montanhas e o mar azul-esverdeado.
Soprava uma brisa morna, mas eu entendi por que o carregador havia
dito que aquele era um lugar selvagem. Não apenas selvagem, mas
ameaçador. Aquelas colinas iam cercando você.
— Quanto verde. — Foi tudo o que pude dizer, e, lembrando-me
de Emile gritando para os pescadores e do som da sua voz, perguntei
sobre ele.
— Eles cortam caminho pelos atalhos. Vão chegar em Granbois
muito antes de nós.
Tudo é demais, eu senti enquanto cavalgava cansadamente atrás
dela. Azul demais, roxo demais, verde demais. As flores vermelhas
demais, as montanhas altas demais, as colinas próximas demais. E a
mulher é uma estranha. Sua expressão suplicante me aborrece. Eu não a
comprei, ela é que me comprou, ou pensa que comprou. Eu olhei para a
crina grossa do cavalo... Querido pai. As 30 mil libras me foram pagas
sem discussão ou restrição. Não foi feita nenhuma provisão para ela (isso
tem de ser providenciado). Agora eu tenho uma renda modesta. Nunca
envergonharei o senhor nem o meu querido irmão, o filho que o senhor
ama. Nem cartas suplicantes nem pedidos sórdidos. Nenhuma das
manobras furtivas de um filho mais moço. Eu vendi minha alma, ou o
senhor a vendeu, e, afinal de contas, será que foi um mau negócio? A
moça é considerada linda, ela é linda. E no entanto...
Enquanto isso, os cavalos iam sacudindo-se pela estrada irregular.
Estava ficando mais frio. Um pássaro assobiou, uma nota longa e triste.
— Que pássaro é esse? — Ela estava muito à frente e não ouviu. O
pássaro tornou a assobiar. Um pássaro da montanha. Agudo e doce. Um
som muito solitário.
Ela parou e disse:
— Vista o casaco agora. — Eu vesti, e percebi que não estava mais
agradavelmente refrescado, e sim com frio sob a camisa encharcada de
suor.
Continuamos a cavalgar, em silêncio na tarde que caía, o paredão
de árvores de um lado, o precipício do outro. Agora o mar estava de um
azul sereno, profundo e escuro.
Chegamos à margem de um riacho.
— Aqui começa Granbois.
Ela sorriu para mim. Foi a primeira vez que eu a vi sorrir com
simplicidade e naturalidade. Ou talvez fosse a primeira vez que eu
tivesse tido uma atitude simples e natural para com ela. Um broto de
bambu projetava-se do desfiladeiro, a água que caía dele era azul-
prateada. Ela desmontou rapidamente, apanhou uma folha grande, em
forma de trevo, e bebeu daquela água. Depois apanhou outra folha,
dobrou-a e trouxe-a para mim.
— Prove. Isto é água da montanha. — Assim, sorrindo, ela
poderia ser qualquer bela garota inglesa e, para agradá-la, eu bebi. Era
fria, pura e doce, de uma cor linda contra o verde da folha.
— Agora nós vamos descer, e depois tornar a subir — disse ela. —
Então estaremos lá. — Quando falou novamente, acrescentou: — A
terra aqui é vermelha, você já notou?
— Ela é vermelha em algumas partes da Inglaterra também.
— Ah, Inglaterra, Inglaterra — respondeu zombeteiramente, e o
som ficou pairando no ar como um aviso que eu preferi ignorar.
Logo estávamos cavalgando por uma estrada pavimentada de
pedras e paramos junto a uma escada de pedra. Havia um enorme
pinheiro à esquerda e, à direita, o que parecia ser a imitação de uma casa
de veraneio inglesa — quatro colunas de madeira e um telhado de sapê.
Ela desmontou e subiu os degraus correndo. No topo, um gramado
grosseiro e, no fim do gramado, uma casa branca bem estragada.
— Agora você está em Granbois. — Eu contemplei as montanhas,
roxas contra um céu muito azul. Empoleirada sobre pernas de pau, a
casa parecia afastar-se da floresta que estava atrás dela e projetar-se
ansiosamente na direção do mar distante. Ela era mais desajeitada do
que feia, um tanto triste, como se eu soubesse que ela não poderia durar.
Um grupo de negros estava parado perto dos degraus da varanda.
Antoinette correu pelo gramado, e quando eu fui atrás dela colidi com
um menino que vinha na direção oposta. Ele revirou os olhos, com um
ar assustado, e correu na direção dos cavalos sem pedir desculpas. Uma
voz de homem disse:
— Inclinem-se agora, inclinem-se. Façam cara de inteligente. —
Havia quatro deles. Uma mulher, uma garota e um homem alto e de ar
digno estavam juntos. Antoinette estava abraçada com uma outra
mulher. — Foi Bertrand quem quase o derrubou. Estas são Rose e
Hilda. Este é o Baptiste.
Os empregados sorriam timidamente enquanto ela os apresentava:
— E esta aqui é Christophine, que foi minha babá muito tempo
atrás.
Baptiste disse que aquele era um dia muito feliz e que nós
havíamos trazido tempo bom conosco. Ele falava bem inglês, mas no
meio da sua saudação de boas-vindas Hilda começou a rir. Ela era uma
garota de uns 12 ou 14 anos, usando um vestido branco sem mangas que
mal lhe chegava aos joelhos. O vestido estava impecavelmente limpo,
mas seu cabelo, embora amaciado com óleo e penteado em diversas
trancinhas, dava-lhe uma aparência selvagem. Baptiste franziu a testa
para ela e ela riu ainda mais alto, depois tapou a boca com a mão, subiu
a escada de madeira e entrou na casa. Pude ouvir seus pés descalços
correndo pela varanda.
— Doudou, ché cocotte — disse a mulher idosa a Antoinette. Eu
a olhei atentamente, mas ela me pareceu insignificante. Era mais preta
do que os outros, e suas roupas, até mesmo o lenço que usava em volta
da cabeça, eram discretas em termos de cor. Ela me olhou com firmeza,
não com aprovação, ao que me pareceu. Nós nos encaramos por quase
um minuto. Eu desviei os olhos primeiro, e ela sorriu para si mesma,
empurrou Antoinette de leve e desapareceu nas sombras dos fundos da
casa. Os outros empregados já tinham desaparecido.
Parado na varanda, eu respirei a doçura do ar. Pude sentir o cheiro
de cravo e canela, de rosas e flor de laranjeira. E um frescor
embriagante, como se tudo isso jamais tivesse sido respirado antes.
Quando Antoinette disse: “Venha, vou mostrar-lhe a casa”, eu fui com
ela de má vontade, porque o resto do lugar parecia deserto e
abandonado. Ela me levou até uma grande sala precisando de pintura.
Havia um pequeno sofá bem gasto, uma mesa de mogno no meio,
algumas cadeiras de espaldar reto e uma velha cômoda de carvalho com
pés de latão imitando patas de leão.
Segurando minha mão, ela foi até o aparador, onde dois copos de
ponche de rum estavam servidos. Ela me entregou um e disse:
— À felicidade.
— À felicidade — respondi.
O cômodo seguinte era maior e mais vazio. Tinha duas portas,
uma que dava para a varanda e outra que estava ligeiramente aberta e
dava para um pequeno quarto. Uma cama grande, uma mesa redonda ao
lado, duas cadeiras, uma surpreendente penteadeira com tampo de
mármore e um grande espelho. Sobre a cama havia duas grinaldas de
jasmim.
— Alguém espera que eu use isto? E quando?
Eu coroei a mim mesmo com uma das grinaldas e fiz uma careta
para o espelho.
— Não acho que isso combine com o meu belo rosto, o que você
acha?
— Você parece um rei, um imperador.
— Deus me livre — eu disse, e tirei a grinalda. Ela caiu no chão e,
quando me dirigi à janela, eu pisei nela. O quarto encheu-se do perfume
das flores esmagadas. Vi o reflexo dela no espelho abanando-se com um
pequeno leque de folha de palmeira colorido de vermelho e azul nas
pontas. Senti minha testa encher-se de suor e me sentei, ela se ajoelhou
do meu lado e enxugou o meu rosto com seu lenço.
— Você não gosta daqui? Esta é a minha casa e tudo está do nosso
lado. Antigamente — disse ela — eu costumava dormir com um pedaço
de pau ao meu lado para me defender, se fôssemos atacados. Você pode
avaliar como eu tinha medo.
— Medo de quê?
Ela sacudiu a cabeça.
— De tudo, de nada.
Alguém bateu na porta e ela disse:
— É só Christophine.
— A velha que foi sua babá? Você tem medo dela?
— Não, como poderia ter?
— Se ela fosse mais alta — eu disse —, uma dessas mulheres
robustas coberta de adornos, talvez eu tivesse medo dela.
Ela riu.
— Aquela porta dá no seu quarto de vestir.
Eu a fechei delicadamente atrás de mim.
Ele me pareceu entulhado, comparado com o vazio do resto da
casa. Havia um tapete, o único que eu tinha visto, um armário de uma
madeira bonita que eu não identifiquei. Sob a janela aberta, havia uma
pequena escrivaninha com papel, penas e tinta. Um refúgio, eu estava
pensando, quando alguém disse:
— Este era o quarto do Sr. Mason, meu senhor, mas ele não vinha
muito aqui. Ele não gostava do lugar. — Baptiste, parado na porta da
varanda, tinha um cobertor pendurado no braço.
— É bastante confortável — eu disse. Ele estendeu o cobertor na
cama.
— Às vezes faz frio aqui de noite — disse ele. E então saiu. Mas a
sensação de segurança tinha me abandonado. Eu olhei em volta,
desconfiado. A porta que dava para o quarto dela podia ser trancada, e
uma barra de madeira grossa manteria a outra fechada. Este era o último
cômodo da casa. Uma escada de madeira na varanda levava a outro
gramado; ao lado dela havia uma laranjeira. Voltei para o quarto de
vestir e olhei pela janela. Vi uma estrada de barro, enlameada em alguns
trechos, ladeada por uma fileira de árvores altas. Do outro lado da
estrada, diversos anexos meio ocultos. Um deles era a cozinha. Não
havia chaminé, mas saía fumaça pela janela. Eu me sentei na cama
estreita e fiquei ouvindo. Não se ouvia nenhum som, exceto o barulho do
rio. Parecia que eu estava sozinho na casa. Havia uma estante grosseira
feita de três tábuas de madeira sobre a escrivaninha e eu dei uma olhada
nos livros, poemas de Byron, romances de Sir Walter Scott, Confissões
de um consumidor de ópio, uns velhos volumes marrons, e, na última
prateleira, Vida e correspondência de... O resto tinha sido comido pelas
traças.

Querido pai, chegamos da Jamaica após alguns dias de


desconforto. Esta pequena propriedade nas ilhas Windward
faz parte dos bens da família e Antoinette é muito ligada a
ela. Ela queria chegar aqui o mais depressa possível. Tudo
funcionou de acordo com seus desejos e planos. Eu me
entendi, é claro, com Richard Mason. O pai dele morreu
logo depois da minha partida para as Índias Ocidentais,
como o senhor deve saber. Ele é um bom sujeito, hospitaleiro
e amável; pareceu gostar de mim e demonstrou completa
confiança em mim. Este lugar é muito bonito, mas minha
doença deixou-me cansado demais para apreciá-lo
inteiramente. Dentro de poucos dias tornarei a escrever-lhe.

Reli a caria e acrescentei um pós-escrito:

Tenho a impressão de que o deixei sem notícias por muito


tempo, uma vez que o simples anúncio do meu casamento
não foi propriamente uma notícia. Fiquei de cama, com
febre, durante duas semanas, logo depois que cheguei a
Spanish Town. Não foi nada grave, mas me deixou bem
deprimido. Hospedei-me com os Fraser; amigos dos Mason.
O Sr. Fraser é um inglês, um juiz aposentado, e insistiu em
contar-me detalhadamente alguns dos seus processos. Eu
não conseguia pensar nem escrever coerentemente. Neste
lugar fresco e distante chamado Granbois (Altas Montanhas,
eu suponho), já me sinto melhor, e minha próxima carta será
maior e mais explícita.

Um lugar fresco e remoto... E eu imaginei como eles faziam para


enviar cartas. Dobrei a minha e coloquei-a numa gaveta da escrivaninha.
Quanto às minhas confusas impressões, elas jamais serão escritas.
Há espaços em branco em minha mente que não podem ser
preenchidos.

Era tudo muito colorido, muito estranho, mas não significava nada para
mim. E nem ela, a moça com quem eu ia me casar. Quando finalmente
a conheci, curvei-me, sorri, beijei sua mão, dancei com ela.
Desempenhei o papel que me fora reservado. Ela nunca teve nada a ver
comigo. Todo movimento que eu fazia era um esforço de vontade, e às
vezes eu ficava imaginando se ninguém notava isto. Eu escutava a minha
própria voz e me admirava dela, calma, correta, mas sem tonalidade
alguma. Mas devo ter tido um desempenho perfeito. Se vi alguma
expressão de dúvida ou curiosidade foi em um rosto negro, não em um
branco.
Eu me lembro muito pouco da cerimônia em si. Placas de
mármore nas paredes celebrando as virtudes da última geração de
fazendeiros. Todos benevolentes. Todos senhores de escravos. Todos
descansando em paz. Quando saímos da igreja, eu peguei na mão dela.
Estava fria como gelo no sol escaldante.
Depois eu me vi numa mesa comprida, numa sala cheia de gente.
Leques de folha de palmeira, uma multidão de empregados, os lenços de
cabeça das mulheres listrados de vermelho e amarelo, os rostos sombrios
dos homens. O gosto forte de ponche, o gosto mais puro do
champanhe, minha noiva de branco, mas eu mal me lembro do seu
semblante. Depois, em outra sala, mulheres vestidas de preto. Prima
Julia, prima Ada, tia Lina. Gordas ou magras, todas elas se pareciam.
Brincos de ouro em orelhas furadas. Pulseiras de prata tilintando nos
pulsos.
— Estamos deixando a Jamaica esta noite — eu disse a uma delas,
e ela respondeu após uma pausa:
— É claro, Antoinette não gosta de Spanish Town. A mãe dela
também não gostava. — Olhando-me fixamente. (Será que os olhos
delas ficam menores à medida que envelhecem? Menores, mais
redondos, mais inquisitivos?) Depois disso, eu tive a impressão de ver a
mesma expressão no rosto de todas elas. Curiosidade? Pena? Zombaria?
Mas por que teriam pena de mim? Logo de mim, que me arranjei tão
bem?
Na manhã anterior ao casamento, Richard Mason entrou de
repente no meu quarto, na casa dos Fraser, quando eu estava terminando
a primeira xícara de café.
— Ela não vai levar isto até o fim!
— Não vai levar o que até o fim?
— Ela não vai casar com você.
— Mas por quê?
— Ela não diz por quê.
— Ela deve ter alguma razão para isso.
— Ela se recusa a dar uma razão. Eu passei uma hora discutindo
com aquela tola.
Nós nos entreolhamos.
— Está tudo pronto, os presentes, os convites. O que vou dizer ao
seu pai? — Ele parecia estar à beira das lágrimas.
— Se ela não quer, então pronto — disse eu. — Ela não pode ser
arrastada até o altar. Deixa eu me vestir. Eu tenho que ouvir o que ela
tem a dizer.
Ele saiu cabisbaixo, e, enquanto me vestia, pensei que, se isto
acontecesse, eu iria realmente fazer papel de bobo. Não me agradava
voltar para a Inglaterra no papel de pretendente rejeitado por essa
rapariga crioula. Eu tinha mesmo que saber por quê.
Ela estava sentada numa cadeira de balanço com a cabeça baixa. O
cabelo penteado em duas compridas tranças caía-lhe nos ombros. A uma
certa distância dela, perguntei suavemente:
— O que aconteceu, Antoinette? O que foi que eu fiz?
Ela não disse nada.
Você não quer casar comigo?
— Não — respondeu ela bem baixinho.
— Mas por quê?
— Tenho medo do que possa acontecer.
— Mas você não lembra que ontem à noite eu lhe disse que
quando você fosse minha esposa não teria mais motivo para ter medo?
— Sim — disse ela. — Aí o Richard entrou e você riu. Eu não
gostei do modo como você riu.
— Mas eu estava rindo de mim mesmo, Antoinette.
Ela olhou para mim e eu a tomei nos braços e beijei-a.
— Você não sabe nada a meu respeito — disse ela.
— Eu confio em você, se você confiar em mim. Está combinado?
Você me deixará muito infeliz se me mandar embora sem dizer o que foi
que eu fiz para desagradá-la. Eu partirei com o coração triste.
— Seu coração triste — disse ela, e tocou o meu rosto. Eu a beijei
ardentemente, prometendo-lhe paz, felicidade, segurança, mas quando
eu disse: “Posso dizer ao pobre Richard que foi um engano? Ele também
está triste”, ela não me respondeu. Apenas balançou a cabeça.

Pensando em tudo isto, no rosto zangado de Richard, na voz dela


dizendo “Você pode me dar paz?”, devo ter dormido.
Acordei ao som de vozes no quarto ao lado, risos e barulho de
água. Fiquei ouvindo, ainda tonto de sono. Antoinette dizia:
— Não ponha mais perfume no meu cabelo. Ele não gosta.
A outra:
— O homem não gosta de perfume? Nunca ouvi dizer isso antes.
— Estava escurecendo.
A sala de jantar estava toda iluminada. Havia velas sobre a mesa,
uma fileira de velas no aparador, candelabros de três braços sobre o velho
baú. As duas portas que davam para a varanda estavam abertas, mas não
havia vento. As chamas brilhavam retas. Ela estava sentada no sofá, e
fiquei imaginando por que nunca percebera o quanto era linda. Seu
cabelo estava penteado para trás e caía bem abaixo da cintura. Percebi os
reflexos vermelhos e dourados que havia nele. Ela pareceu satisfeita
quando elogiei seu vestido, e me disse que o havia mandado fazer em St.
Pierre, na Martinica.
— Chamam este estilo de à la Joséphine.
— Você fala em St. Pierre como se fosse Paris — eu disse.
— Mas é a Paris das Índias Ocidentais.
Havia umas flores cor-de-rosa sobre a mesa, e o nome delas ecoou
agradavelmente em minha cabeça. Coralita Coralita. A comida, embora
muito condimentada, era mais leve e mais apetitosa do que tudo o que
eu havia provado até então na Jamaica. Nós bebemos champanhe.
Diversas mariposas e besouros conseguiram entrar na sala, voaram para
cima das velas e caíram mortos sobre a toalha. Amélie varreu-os com
uma escovinha. Inutilmente. Apareceram mais mariposas e besouros.
— É verdade — disse ela — que a Inglaterra parece um sonho?
Porque uma das minhas amigas que se casou com um inglês escreveu-
me dizendo isso. Ela disse que Londres às vezes parece um sonho frio e
escuro. Eu quero acordar.
— Bem — respondi, aborrecido —, é precisamente isto que a sua
linda ilha parece ser para mim, totalmente irreal e como um sonho.
— Mas como é que rios, montanhas e mar podem ser irreais?
— E como é que milhões de pessoas, suas casas e suas ruas podem
ser irreais?
— Mais facilmente — disse ela —, muito mais facilmente. Sim,
uma cidade grande deve parecer um sonho.
“Não, isto aqui é que é irreal e parece um sonho”, pensei.
A longa varanda era mobiliada com cadeiras de lona, duas redes e
uma mesa de madeira sobre a qual ficava um telescópio em um tripé.
Amélie levou velas com cúpulas de vidro, mas a noite engoliu a luz fraca.
Havia um forte perfume de flores — as flores perto do rio que abrem à
noite, ela me disse — e o barulho, abafado na sala, era ensurdecedor.
— Crac-cracs — explicou ela —, eles fazem um ruído igual ao seu
nome, e grilos e sapos.
Debrucei na grade e vi centenas de pirilampos.
— Ah, sim, pirilampos na Jamaica, aqui eles são chamados de La
belle.
Uma mariposa grande, tão grande que eu achei que fosse um
pássaro, bateu numa das velas, apagou-a e caiu no chão.
— Ela é bem grande — eu disse.
— Está muito queimada?
— Está mais atordoada do que machucada.
Peguei a linda criatura com o meu lenço e coloquei-a sobre a grade
da varanda. Por um momento ela ficou imóvel, e sob a fraca luz de vela
pude ver suas cores brilhantes, o desenho complicado nas asas. Sacudi
delicadamente o lenço e ela voou.
— Espero que essa bela dama esteja segura — eu disse.
— Ela voltará, se nós não apagarmos as velas. Está bem claro sob
as estrelas.
Realmente o brilho das estrelas era tanto que se viam as sombras
das árvores e das colunas da varanda refletidas no chão.
— Vamos dar uma volta — disse ela —, quero contar uma história
para você.
Nós atravessamos a varanda e descemos a escada que ia dar no
gramado.
— Nós costumávamos vir aqui para fugir do calor de junho, julho
e agosto. Eu vim três vezes com a minha tia Cora, que está doente. Isso
foi depois... — Ela parou e encostou a mão na cabeça.
— Se for uma história triste, não me conte esta noite.
— Não é triste — disse ela. — É só que algumas coisas acontecem
e ficam gravadas para sempre, mesmo que você esqueça por que ou
quando aconteceram. Foi naquele quartinho.
Olhei para onde ela estava apontando, mas só consegui ver o
contorno de uma cama estreita e de uma ou duas cadeiras.
— Eu me lembro de que a noite estava muito quente. A janela
estava fechada e eu pedi a Christophine para abri-la, porque à noite vem
uma brisa das colinas. Uma brisa da terra. Não do mar. Estava tão
quente que a minha camisola grudava no corpo, mas eu dormi assim
mesmo. E então, de repente, eu estava acordada. Vi dois ratos enormes,
do tamanho de gatos, no parapeito da janela, olhando para mim.
— Não me surpreende que você tenha ficado com medo.
— Mas eu não fiquei com medo. Isso é que foi estranho. Olhei
para eles e eles não se moveram. Eu podia ver a mim mesma no espelho
do outro lado do quarto, vestida com a minha camisola branca com um
babado em volta do pescoço, olhando para aqueles ratos, e os ratos
imóveis olhando para mim.
— Bem, e o que aconteceu?
— Eu me virei, puxei o lençol e voltei a dormir instantaneamente.
— E acabou a história?
— Não, eu tornei a acordar de repente como da primeira vez e os
ratos não estavam lá, mas eu senti muito medo. Saí depressa da cama e
corri para a varanda. Deitei-me nesta rede. Nesta aqui. — Ela apontou
para uma rede lisa, com uma corda presa em cada um dos quatro cantos.
“Havia lua cheia aquela noite, e eu fiquei um longo tempo olhando
para ela. Não havia nenhuma nuvem correndo atrás dela, então ela
parecia estar imóvel e brilhando sobre mim. Na manhã seguinte,
Christophine ficou zangada. Ela disse que era muito ruim dormir ao
luar em dia de lua cheia.”
— E você contou a ela sobre os ratos?
— Não, até hoje eu nunca tinha contado isso a ninguém. Mas eu
nunca os esqueci.
Eu queria dizer alguma coisa que pudesse reconfortá-la, mas o
perfume das flores do rio estava forte demais. Eu me senti tonto.
— Você também acha isso — disse ela —, que eu dormi ao luar
por tempo demais?
Sua boca exibia um sorriso fixo, mas seus olhos estavam tão
retraídos e solitários que eu a abracei, embalei-a como se fosse uma
criança e cantei para ela. Uma velha canção que eu achava que havia
esquecido:

Salve a rainha da noite silenciosa,


Mostre o seu brilho, mostre o seu brilho, Tordo,
ao morrer.

Ela prestou atenção, depois cantou junto comigo:

Mostre o seu brilho, mostre o seu brilho, Tordo,


ao morrer.
Não havia ninguém na casa e só duas velas na sala que antes estava
tão feericamente iluminada. O quarto dela estava escuro, com uma vela
encoberta ao lado da cama e outra na penteadeira. Havia uma garrafa de
vinho na mesinha redonda. Já era muito tarde quando eu servi dois
copos e disse a ela para beber à nossa felicidade, ao nosso amor e ao dia
sem fim que ia ser o amanhã. Eu era jovem então. Foi curta a minha
juventude.

Acordei na manhã seguinte, na luz verde-amarelada, sentindo-me


desconfortável como se alguém me estivesse vigiando. Ela devia estar
acordada havia algum tempo. Seu cabelo estava trançado e ela usava
outra camisola branca. Virei-me para tomá-la nos braços, eu ia
desmanchar as suas tranças, mas bateram discretamente na porta.
— Eu já mandei Christophine embora duas vezes — disse ela. —
Nós acordamos muito cedo aqui. A manhã é a melhor hora do dia.
“Entre”, disse ela, e Christophine entrou com o nosso café numa
bandeja. Ela estava arrumada e tinha um ar muito imponente. A saia do
seu vestido estampado arrastava-se pelo chão e farfalhava quando ela
andava, e seu turbante de seda amarela estava cuidadosamente amarrado.
Pesados brincos de ouro puxavam para baixo o lóbulo das orelhas. Ela
nos desejou bom-dia sorrindo e colocou a bandeja com café, bolos de
mandioca e geleia de goiaba na mesa redonda. Eu saí da cama e entrei
no quarto de vestir. Alguém tinha estendido o meu roupão em cima da
cama. Olhei pela janela. O céu sem nuvens era de um azul mais claro do
que eu havia imaginado, mas enquanto olhava, tive a impressão de que a
cor mudava para um azul mais escuro. Ao meio-dia eu sabia que ele
estaria dourado, e depois de um tom metálico devido ao calor. Agora
estava fresco e agradável e o próprio ar era azul. Finalmente, eu me
afastei da luz e do espaço e voltei para o quarto, que ainda estava na
semiobscuridade. Antoinette estava recostada nos travesseiros com os
olhos fechados. Ela os abriu e sorriu quando eu entrei. A negra parada
ao lado dela disse:
— Prove o meu sangue de touro, patrão. — O café que ela me
entregou estava delicioso e suas mãos eram finas, de dedos longos, muito
bonitas, eu acho.
— Não é o mijo de cavalo que as madames inglesas tomam —
disse ela. — Eu as conheço. Ficam bebendo aquele mijo amarelo de
cavalo e falando um monte de mentiras. — O vestido dela se arrastou
pelo chão com um ruído farfalhante quando ela se dirigiu para a porta.
Lá, ela virou de frente para nós. — Eu mandei a garota limpar a
bagunça que o senhor fez com os jasmins, eles atraem baratas para
dentro de casa. Tome cuidado para não escorregar nas flores, jovem
patrão. — Ela se esgueirou pela porta.
— O café dela é delicioso, mas a linguagem é horrível e ela podia
levantar um pouco o vestido. Deve ficar imundo com aqueles metros de
saia arrastando pelo chão.
— Quando elas não levantam o vestido é sinal de respeito — disse
Antoinette. — Ou em dias de festa ou quando vão à missa.
— E hoje é dia de festa?
— Ela queria que fosse dia de festa.
— Seja qual for a razão, não é um hábito higiênico.
— É sim. Você não entende. Elas não se importam de sujar o
vestido porque isto mostra que aquele não é o único vestido que têm.
Você não gosta de Christophine?
— Ela deve ser uma pessoa de muito valor, sem dúvida. Mas não
posso dizer que eu goste da sua linguagem.
— Não quer dizer nada — disse Antoinette.
— E ela parece tão preguiçosa. Fica perambulando de um lado
para o outro.
— Mais uma vez você está enganado. Ela parece lenta, mas todo
movimento que faz é correto, então, no fim, ela é rápida.
Tomei outra xícara de sangue de touro. (Sangue de touro, pensei.
O Jovem Touro.)
— Como foi que esta penteadeira veio parar aqui?
— Eu não sei. Ela sempre esteve aqui, que eu me lembre. Muitos
móveis foram roubados, mas esse não.
Havia duas rosas cor-de-rosa na bandeja, cada uma num pequeno
jarro marrom. Uma delas estava totalmente aberta, e quando toquei nela
as pétalas caíram.
— Rose elle a vécu — eu disse, e ri. — Este poema é verdadeiro?
Será que todas as coisas belas têm um destino triste?
— Não, é claro que não.
Seu leque estava sobre a mesa; ela o apanhou rindo, tornou a
recostar-se e fechou os olhos.
— Acho que não vou me levantar da cama esta manhã.
— Não vai se levantar? Hora nenhuma?
— Vou me levantar quando quiser. Eu sou muito preguiçosa, você
sabe, igual a Christophine. É comum eu passar o dia inteiro na cama. —
Ela abanou o leque. — O poço é aqui pertinho. Vá logo, antes que fique
quente; Baptiste irá mostrar-lhe. Há dois poços, um deles nós
chamamos de poço de champanhe, porque tem uma cachoeira, não
muito grande, mas gostosa de sentir nos ombros. Mais embaixo fica o
poço da noz-moscada, que é marrom e fica à sombra de uma enorme
árvore de noz-moscada. Dá para nadar nele. Mas tenha cuidado.
Lembre-se de colocar suas roupas em cima de uma pedra e, antes de
tornar a vesti-las, sacuda-as bem. Cuidado com a formiga-vermelha,
essa é a pior. Ela é muito pequena, mas é bem vermelha, então dá para
ver facilmente. Tome cuidado — disse ela, e sacudiu o leque.

Uma manhã, logo depois que chegamos, a fileira de árvores altas do lado
de fora da minha janela amanheceu coberta de florezinhas claras, frágeis
demais para resistir ao vento. Elas só duraram um dia, e pareciam neve
sobre o gramado — neve com um perfume leve e doce. Em seguida o
vento as levou embora.
O bom tempo durou mais. Durou toda a semana e a outra e a
outra e a outra. Nenhum sinal de mudança. A fraqueza que havia
resultado da febre foi embora, assim como todos os meus receios.
Eu ia bem cedo para o poço e ficava lá durante horas, sem querer
deixar o rio, a sombra das árvores, as flores que abriam à noite. Elas
ficavam bem fechadas, penduradas, abrigando-se sob as folhas grossas.
Era um lugar lindo — selvagem, intocado, principalmente
intocado, com uma beleza estranha, perturbadora, secreta. E guardava o
seu segredo. Eu me via pensando: “O que eu estou vendo não é nada —
eu quero o que ele esconde — isso é que tem significado.”
No final da tarde, quando a água estava mais quente, ela se
banhava comigo. Perdia algum tempo atirando pedrinhas numa rocha
plana que ficava no meio do poço.
— Eu o vi. Ele não morreu nem foi para nenhum outro rio. Ainda
está aqui. Os caranguejos de terra são inofensivos. Dizem que eles são
inofensivos. Eu não gostaria de...
— Nem eu. São umas criaturas horríveis.
Ela era indecisa, não tinha certeza de nada. Quando lhe perguntei
se as cobras que às vezes víamos eram venenosas, ela respondeu:
— Aquelas não. A fer de lance sim, é claro, mas não tem nenhuma
aqui — e acrescentou: —, mas como é que eles podem ter certeza? Você
acha que eles sabem? — E depois: — Nossas cobras não são venenosas.
É claro que não.
Entretanto, ela estava convicta do caranguejo gigante, e uma tarde,
quando eu a estava observando, mal podendo acreditar que aquela era a
criatura pálida e silenciosa com quem eu tinha me casado, observando-a
vestida com sua camisola azul, azul de bolas brancas, erguida bem acima
dos joelhos, ela parou de rir, gritou um aviso e atirou uma pedra grande.
Ela atirou como um menino, com um movimento seguro e gracioso, e
eu vi umas garras bem compridas, grandes e afiadas, desaparecendo.
— Ele não o atacará se você ficar longe daquela pedra. Ele mora
lá. Ah, é um outro tipo de caranguejo. Eu não sei o nome em inglês.
Muito grande e muito velho.
Quando estávamos voltando para casa, perguntei quem lhe
ensinara a mirar tão bem.
— Ah, Sandi me ensinou, um garoto que você nunca viu.

Toda tarde nós assistíamos ao pôr do sol do abrigo coberto de sapê que
ela chamava de ajoupa, e eu chamava de pavilhão. Nós olhávamos o céu
e o mar distantes em fogo — todas as cores estavam nesse fogo e as
enormes nuvens, debruadas e entretecidas de chamas. Mas eu me
cansava logo do espetáculo. Ficava esperando pelo perfume das flores na
beira do rio — elas abriam quando escurecia, e escurecia muito depressa.
Não a noite ou a escuridão que eu conhecia, mas uma noite de estrelas
faiscantes, uma lua diferente — noite cheia de estranhos ruídos. Ainda
assim noite, não dia.
— O homem que é dono da Fazenda Consolação é um eremita —
estava dizendo ela. — Ele nunca recebe ninguém, quase nunca fala, pelo
que dizem.
— Um vizinho eremita me agrada bastante. Muito mesmo.
— Existem quatro eremitas nesta ilha — disse ela. — Quatro de
verdade. Outros fingem que são eremitas, mas partem quando começa a
estação das chuvas. Ou então vivem bêbados. É aí que coisas tristes
acontecem.
— Então este lugar é tão solitário quanto parece ser? — perguntei.
— Sim, ele é solitário. Você é feliz aqui?
— Quem não seria?
— Eu amo este lugar mais do que qualquer outro no mundo.
Como se ele fosse uma pessoa. Mais que uma pessoa.
— Mas você não conhece o mundo — eu disse para implicar.
— Não, só conheço este lugar, e a Jamaica, é claro. Coulibri,
Spanish Town. Não conheço nenhuma outra ilha. O mundo é mais
bonito, então?
Como responder a isto?
— É diferente — eu disse.
Ela me contou que por muito tempo eles não souberam o que
estava acontecendo em Granbois.
— Quando o Sr. Mason veio — ela sempre chamava o padrasto de
Sr. Mason —, a floresta estava engolindo tudo. — O capataz bebia, a
casa estava em ruínas, toda a mobília tinha sido roubada, então
descobriu-se Baptiste. Um mordomo. Em St. Kitts. Mas nascido nesta
ilha e desejoso de voltar. — Ele é um ótimo capataz — dissera ela, e eu
tinha concordado, guardando para mim a opinião que tinha de Baptiste,
de Christophine e de todos os outros. — Baptiste diz... Christophine
quer..
Ela confiava neles, e eu não. Mas eu não podia dizer isso. Ainda
não era o momento.
Nós não os víamos muito. A cozinha e a agitada vida da cozinha
ficavam a uma certa distância. Quanto ao dinheiro que ela distribuía
com tanta facilidade, sem contar, sem saber quanto tinha dado, ou os
rostos desconhecidos que apareciam e desapareciam, embora nunca
antes de comer uma lauta refeição e tomar um trago de rum, conforme
descobri — irmãs, primos, tias e tios —, se ela não fazia nenhuma
pergunta, como eu poderia fazer?
A casa era varrida e espanada muito cedo, geralmente antes de eu
À
acordar. Hilda trazia o café e havia sempre duas rosas na bandeja. Às
vezes ela dava um sorriso doce e infantil, às vezes ria alto, de um modo
grosseiro, largava a bandeja e saía correndo.
— Garota estúpida — eu dizia.
— Não, não. Ela é tímida. As moças daqui são muito tímidas.
Após o almoço, ao meio-dia, havia silêncio até o jantar, que era
servido muito mais tarde do que na Inglaterra. Caprichos de
Christophine, eu tinha certeza. Então nos deixavam sozinhos. Às vezes
um olhar de esguelha ou um olhar malicioso me deixavam aborrecido,
mas nunca por muito tempo. Agora não, eu pensava. Ainda não.
Geralmente estava chovendo quando eu acordava durante a noite,
uma chuva leve e caprichosa, uma chuva brincalhona que dançava, ou
um som abafado, que ia ficando mais alto, mais persistente, mais forte,
um som inexorável. Mas sempre música, uma música que eu nunca
ouvira antes.
Então eu passava longos minutos contemplando-a à luz de vela,
imaginava por que parecia triste adormecida, e amaldiçoava a febre ou a
cautela que me haviam deixado tão cego, tão fraco, tão hesitante. Eu me
lembrava do esforço dela para fugir. (Não, sinto muito, não quero me
casar com você.) Ela teria cedido aos argumentos daquele homem,
Richard, às suas ameaças talvez, eu não tinha nenhuma confiança nele,
ou às minhas bajulações e promessas não muito sinceras? De todo modo,
ela cedera, mas friamente, de má vontade, tentando proteger-se com o
silêncio e um rosto sem expressão. Armas frágeis, que não haviam
servido para grande coisa nem durado muito. Se eu esqueci a cautela, ela
esqueceu o silêncio e a frieza.
Devo acordá-la e ouvir as coisas que ela diz, que murmura, no
escuro. De dia, não.
— Eu nunca desejei viver antes de conhecê-lo. Sempre achei que
seria melhor se eu morresse. Tanto tempo de espera antes que tudo se
acabe.
— E você alguma vez contou isto a alguém?
— Não havia ninguém para contar, ninguém para ouvir. Ah, você
não pode imaginar o que era Coulibri.
— Mas, e depois de Coulibri?
— Depois de Coulibri era tarde demais. Eu não mudei.
O dia inteiro ela era igual a qualquer outra moça, sorria para si
mesma no espelho (Você gosta deste perfume?), tentava ensinar-me as
canções que cantava, pois estas me perseguiam.
Adieu foulard, adieu madras, ou Ma belle ka di maman li. Minha
linda garota disse para sua mãe (Não, não é assim. Agora presta atenção.
É assim). Ela ficava calada, ou zangada, sem motivo algum, e conversava
com Christophine em patuá.
— Por que você beija e abraça Christophine? — eu dizia.
— Porque não?
— Eu não beijaria nem abraçaria nenhuma delas, não conseguiria.
Ao ouvir isto, ela ria por um bom tempo e nunca me dizia por que
estava rindo.
Mas à noite, que diferença, até a voz dela mudava. Sempre essa
conversa de morte. (Ela está tentando dizer-me que este é o segredo
deste lugar? Que não há outra maneira? Ela sabe. Ela sabe.)
— Por que você me fez desejar viver? Por que fez isso comigo?
— Porque eu quis. Não é o bastante?
— Sim, é o bastante. Mas se um dia você não quiser. O que eu
faço então? Suponhamos que você leve embora esta felicidade quando eu
não estiver olhando...
— E perca a minha? Quem seria tão idiota?
— Eu não estou acostumada a ser feliz — disse ela. — Isso me dá
medo.
— Nunca fique com medo. Se ficar, não conte a ninguém.
— Eu compreendo. Mas a experiência não ajuda.
— O que ajudaria? — Ela não respondeu; então, uma noite,
sussurrou:
— Se eu pudesse morrer. Agora que estou tão feliz. Você faria
isso? Você não teria que me matar. Diga morra e eu morrerei. Você não
acredita em mim? Então experimente, experimente, diga morra e me
veja morrer.
— Morra, então! Morra! — Eu a vi morrer muitas vezes. Do meu
jeito, não do dela. No sol, na sombra, ao luar, à luz de velas. Nas longas
tardes em que a casa ficava vazia. Apenas o sol nos fazia companhia.
Nós o fechávamos lá fora. E por que não? Em pouco tempo ela estava
tão ansiosa em fazer amor quanto eu, mais perdida e sufocada depois.
— Aqui eu posso fazer o que quero — dizia ela, não eu, e depois
eu passei a dizer também. Parecia verdade naquele lugar solitário. —
Aqui eu posso fazer o que quero.
Raramente encontrávamos alguém quando saíamos de casa.
Quando encontrávamos, a pessoa nos cumprimentava e seguia o seu
caminho.
Eu passei a gostar daquela gente da montanha, silenciosa,
reservada, nunca servil, nunca curiosa (ou pelo menos eu achava que
não), sem saber que seu rápido olhar de esguelha via tudo que eles
queriam ver.
Era à noite que eu tinha uma sensação de perigo e tentava
esquecê-la e ignorá-la.
— Você está segura — eu dizia. Ela gostava disto: de que lhe
dissessem “você está segura”. Ou então eu tocava o seu rosto com
delicadeza e sentia a presença de lágrimas. Lágrimas, nada! Palavras,
menos que nada. Quanto à felicidade que eu lhe proporcionava, isso era
pior que nada. Eu não a amava. Eu tinha sede dela, mas isso não é amor.
Eu sentia muito pouca ternura por ela, ela era uma estranha para mim,
uma estranha que não pensava nem sentia como eu.

Uma tarde, a visão de um vestido que ela deixara no chão do seu quarto
deixou-me ofegante e selvagem de desejo. Quando fiquei exausto,
afastei-me dela e dormi, sem uma palavra ou uma carícia. Acordei e ela
estava me beijando — beijos suaves e leves.
— Está tarde — disse ela, e sorriu. — Deixe-me cobri-lo. A brisa
que vem do continente é fria,
— E você, não está com frio?
— Ah, eu vou estar logo pronta. Vou usar o vestido que você gosta
esta noite.
— Sim, use-o.
O chão estava cheio de roupas espalhadas, dela e minhas. Ela
pisou nelas despreocupadamente ao dirigir-se para o guarda-roupa.
— Eu estava pensando, vou mandar fazer outro exatamente igual
— prometeu ela alegremente. — Você vai ficar contente?
— Muito contente.
Se ela era uma criança, não era uma criança burra, mas era uma
criança obstinada. Ela me interrogava frequentemente a respeito da
Inglaterra, e ouvia atentamente as minhas respostas, mas eu tinha
certeza de que nada do que eu dizia fazia muita diferença. A cabeça dela
já estava feita. Um romance sentimental, uma observação ouvida ao
acaso e nunca esquecida, um desenho, um quadro, uma canção, uma
valsa, uma nota de música, e suas opiniões foram formadas. Sobre a
Inglaterra e sobre a Europa. Eu não consegui mudá-las e,
provavelmente, nada as mudaria. A realidade poderia confundi-la,
desnorteá-la, magoá-la, mas não seria realidade. Seria apenas um erro,
uma infelicidade, a escolha de um caminho errado, suas ideias fixas
jamais mudariam.
Nada do que eu disse exerceu qualquer influência sobre ela.
Morra então. Durma. Isso é tudo que eu posso dar a você... Eu me
pergunto se ela jamais se deu conta do quanto esteve perto de morrer.
Do modo dela, não do meu. Esse não era um jogo seguro de se jogar —
naquele lugar. Desejo, Ódio, Vida, Morte ficavam muito próximos no
escuro. Era melhor nem saber quão próximos. Melhor não pensar, nem
por um momento. Próximos não. O mesmo...
— Você está segura — eu dizia para ela e para mim mesmo. —
Fecha os olhos. Descansa.
Então eu ficava ouvindo o barulho da chuva, uma melodia
monótona que parecia que ia durar para sempre... Chuva, chuva
interminável. Afoga-me em sono. E logo.
Na manhã seguinte, havia poucos vestígios dessas chuvaradas. Se
algumas das flores estavam danificadas, as outras tinham um perfume
mais doce, o ar estava mais azul e de grande frescor. Só o caminho de
terra do lado de fora é que estava enlameado. Pequenas poças d’água
brilhavam sob o sol quente, terra vermelha demora a secar.

— Isto aqui chegou para o senhor de manhã bem cedo, patrão — disse
Amélie. — Foi Hilda quem recebeu. — Ela me entregou um envelope
volumoso endereçado numa caligrafia cuidadosa. “Entregue em mãos.
Urgente” estava escrito num canto.
“Um dos nossos vizinhos eremitas”, pensei. “E um anexo para
Antoinette”. Então eu avistei Baptiste parado perto da escada da
varanda, coloquei a carta no bolso e me esqueci dela.
Eu estava mais atrasado do que habitualmente naquela manhã,
mas depois de me vestir fiquei um longo tempo sentado, ouvindo o
barulho da cachoeira, com os olhos entreabertos, sonolento e satisfeito.
Quando enfiei a mão no bolso para pegar meu relógio, toquei no
envelope e o abri.

Caro senhor. Empunho a minha pena após muito pensar e


meditar, mas no fim a verdade é sempre melhor do que a
mentira. Eis o que tenho a dizer. O senhor foi
vergonhosamente enganado pela família Mason. Talvez
tenham dito ao senhor que o nome da sua esposa é Cosway,
que o cavalheiro inglês Sr. Mason era apenas o seu padrasto,
mas não disseram que tipo de gente eram esses Cosway.
Senhores de escravos cruéis e detestáveis durante várias
gerações — sim, todo mundo na Jamaica os odeia e também
nesta bela ilha onde eu espero que a sua estadia seja longa e
agradável apesar de tudo, pois alguns não merecem piedade.
Crueldade não é o pior. Existe loucura nessa família. O velho
Cosway morreu completamente doido, igualzinho ao pai
dele.
O senhor pergunta que provas eu tenho e por que
estou me intrometendo na sua vida. Vou dizer por quê. Eu
sou irmão da sua esposa, filho de outra mulher, da filial,
como dizemos aqui. Nosso pai era um homem
desavergonhado, e de todos os seus filhos ilegítimos eu sou o
mais infeliz e miserável.
Minha mãe morreu quando eu era bem pequeno e
minha madrinha tomou conta de mim. O velho deu algum
dinheiro para isso, embora não gostasse de mim. Não, aquele
velho demônio não gostava de mim nem um pouco, e,
quando eu fiquei mais velho, percebi e pensei: Deixa estar
que o meu dia há de chegar. Pergunte aos mais velhos sobre
estes desagradáveis incidentes, alguns irão lembrar.
Quando madame sua esposa morreu, o depravado
tornou a casar bem depressa, com uma moça da Martinica
— foi demais para ele. Vivia bêbado de manhã até de noite,
e morreu delirando e praguejando.
Então veio o glorioso Ato de Emancipação, que trouxe
encrenca para alguns dos ricos e poderosos. Ninguém se
dispunha a trabalhar para a jovem mulher e seus dois filhos,
e aquele lugar, Coulibri, ficou logo tomado pelo mato, como
ficam todas as propriedades aqui quando ninguém cultiva a
terra. Ela não tinha dinheiro nem amigos, pois os franceses e
os ingleses são como cão e gato nesta ilha desde tempos
muito remotos. Ferem, matam, tudo.
A mulher chamada Christophine também veio da
Martinica para ficar com ela e um velho, Godfrey, bobo
demais para entender o que acontece. Alguns são assim. Essa
jovem Sra. Cosway era inútil e mimada, não sabia fazer nada
e logo a loucura que havia nela, e em todas essas crioulas
brancas, aflorou. Ela se fechou em casa, falando e rindo
sozinha como muitos podem atestar. Quanto à menina,
Antoinette, assim que aprendeu a andar, passou a se
esconder sempre que via alguém.
Nós todos esperávamos ouvir dizer que a mulher tinha
saltado de um precipício “fini batt’e”, como dizemos aqui e
que significa “desistir da luta”.
Mas não. Ela se casou outra vez com o inglês rico, Sr.
Mason, e eu poderia dizer muito sobre isso, mas o senhor
não iria acreditar, então eu calo a minha boca. Dizem que ele
a amava tanto que se tivesse o mundo numa bandeja daria
para ela — mas não adiantou.
A loucura piorou e ela teve que ser trancafiada, porque
tentou matar o marido — sendo que a loucura não foi tudo.
Essa, senhor, é a mãe da sua esposa — esse é o pai
dela. Eu saí da Jamaica. Não sei o que aconteceu com a
mulher. Alguns dizem que ela está morta, outros dizem que
não. Mas o velho Mason se afeiçoou muito à menina
Antoinette e deixou metade do dinheiro dele para ela
quando morreu.
Quanto a mim, eu andei por aí, não tive muita sorte,
mas guardei um dinheirinho e soube de uma casa que estava
para vender nesta ilha, perto de Massacre. Estava muito
barata, então eu comprei. As notícias custam a chegar aqui
neste lugar selvagem, e quando tive notícias da Jamaica
soube que o velho Mason estava morto e que a família
planejava casar a moça com um jovem inglês que não sabia
nada a respeito dela. Então eu achei que o meu dever de
cristão era avisar o cavalheiro que ela não era moça para ele
casar por causa do sangue ruim que ela trazia de ambos os
lados. Mas eles são brancos, eu sou mestiço. Eles são ricos,
eu sou pobre. Enquanto eu pensava nessas coisas, eles agiram
depressa, enquanto o senhor ainda estava fraco de febre, e o
levaram diante do juiz, antes que o senhor pudesse fazer
muitas perguntas. Se isto é verdade ou não, só o senhor pode
dizer.
Então o senhor vem para esta ilha passar a lua de mel,
e é certo que o senhor colocou a coisa nos meus ombros e
que sou eu que devo contar a verdade ao senhor. Ainda
assim, eu hesitei.
Ouvi dizer que o senhor era jovem e bonito e que tinha
uma palavra gentil para todos, pretos, brancos, mestiços.
Mas soube também que a moça é tão linda quanto a mãe e
que o senhor está enfeitiçado por ela. Ela está nos seus ossos
e no seu sangue. Dia e noite. Mas o senhor, um homem
honrado, sabe bem que para um casamento é preciso mais do
que isso. Isso não dura. O velho Mason também ficou
enfeitiçado pela mãe dela, e veja o que aconteceu com ele.
Senhor, eu rezo para que ainda esteja em tempo de avisá-lo
sobre o que deve fazer.
Senhor, pergunte a si mesmo como eu poderia inventar
uma história destas e por que razão. Quando saí da Jamaica,
eu sabia ler e escrever um pouco. O bom homem em
Barbados ensinou-me mais, me deu livros, disse para eu ler a
Bíblia todos os dias e eu fui aprendendo sem esforço. Ele
ficou surpreso com a minha rapidez. Mas eu ainda sou um
homem ignorante e não inventei esta história. Não poderia.
É tudo verdade.
Sento ao lado da minha janela e as palavras voam à
minha volta como pássaros — com a ajuda de Deus eu
agarro algumas.
Levei uma semana para escrever esta carta. Não
conseguia dormir à noite pensando no que dizer. Agora
estou rapidamente chegando ao fim, e minha tarefa está
cumprida.
Ainda não acredita em mim? Então pergunte àquele
demônio de homem, Richard Mason, três perguntas e
obrigue-o a responder. A mãe da sua mulher está trancafiada,
é louca ou coisa pior? Morta ou viva, eu não sei.
O irmão da sua mulher era retardado mental, embora
Deus o tenha piedosamente levado embora muito cedo?
A sua própria esposa está indo pelo mesmo caminho da
mãe e todo mundo sabe disso?
Richard Mason é um homem astuto e irá contar-lhe
uma porção de lorotas, que é como chamamos mentiras por
aqui, a respeito do que aconteceu em Coulibri e isso e aquilo.
Não ouça. Obrigue-o a responder sim ou não.
Se ele ficar de boca fechada, pergunte a outras pessoas,
pois muitas acham vergonhosa a maneira como aquela
família tratou o senhor e seus parentes.
Imploro que venha visitar-me, pois há mais coisas que
o senhor deve saber. Mas minha mão dói, minha cabeça dói
e meu coração parece uma pedra por causa da dor que eu
estou lhe causando. Dinheiro é bom, mas nenhum dinheiro
pode pagar por uma mulher louca na sua cama. Louca e pior
ainda.
Largo minha pena com um último pedido. Venha ver-
me bem depressa. Seu criado. Daniel Cosway.
Pergunte a Amélie onde eu moro. Ela sabe, e ela me
conhece. Ela é desta ilha.

Dobrei cuidadosamente a carta e guardei-a no bolso. Não fiquei


nada surpreso. Era como se estivesse esperando por aquilo. Durante
algum tempo, não sei se muito ou pouco, fiquei ali sentado ouvindo o
barulho do rio. Finalmente levantei-me, o sol já estava quente. Fui
caminhando todo tenso, sem conseguir raciocinar. Então passei por uma
orquídea com longos talos de flores de um marrom dourado. Uma delas
tocou-me o rosto e eu me lembrei de ter colhido algumas para ela um
dia. “Elas são como você”, eu disse a ela. Então eu parei, quebrei um dos
talos e esmaguei-o na lama. Isto me trouxe de volta à razão. Encostei-
me numa árvore, suando e tremendo. “Está quente demais hoje”, eu
disse em voz alta, “quente demais”. Quando avistei a casa, comecei a
caminhar silenciosamente. Não havia ninguém por perto. A porta da
cozinha estava fechada e o lugar parecia deserto. Subi os degraus e
atravessei a varanda, e quando ouvi vozes, parei atrás da porta que dava
para o quarto de Antoinette. Eu podia ver o reflexo dela no espelho. Ela
estava na cama, e Amélie estava varrendo.
— Acaba logo — disse Antoinette — e vai dizer a Christophine
que eu quero falar com ela.
Amélie parou, segurando o cabo da vassoura.
— Christophine vai embora — disse ela.
— Vai embora? — repetiu Antoinette.
— É, vai — disse Amélie. — Christophine não gosta desta casa de
lua de mel. — Ela se virou e me viu, e então riu alto. — Seu marido está
atrás da porta e parece que viu um zumbi. Talvez ele também esteja
cansado da doce lua de mel.
Antoinette pulou da cama e deu uma bofetada nela.
— Eu também bato em você, sua barata branca, eu também bato
em você — disse Amélie, e bateu.
Antoinette agarrou o cabelo dela. Amélie, que estava com os
dentes arreganhados, parecia estar tentando morder.
— Antoinette, pelo amor de Deus — eu disse da porta.
Ela se virou, muito pálida. Amélie enterrou o rosto nas mãos e
fingiu que estava soluçando, mas eu pude vê-la observando-me através
dos dedos.
— Vai embora, criança — eu disse.
— Você a chama de criança — disse Antoinette. — Ela é mais
velha que o próprio demônio, e o demônio não é mais cruel.
— Diga a Christophine para vir aqui — eu disse para Amélie.
— Sim, patrão, sim, patrão — respondeu ela, de olhos baixos. Mas
assim que saiu do quarto, ela começou a cantar:

A barata branca casou.


A barata branca casou,
A barata branca compra um rapaz.
A barata branca casou.

Antoinette deu alguns passos para a frente. Ela caminhou


tropegamente. Fui ajudá-la, mas ela me empurrou, sentou-se na cama
com os dentes trincados e começou a dar puxões no lençol, fazendo um
ruído de contrariedade com a boca. Pegou uma tesoura na mesinha
redonda e cortou o lençol ao meio, depois cortou cada uma das metades
em tiras.
O barulho que fez impediu-me de ouvir Christophine entrando,
mas Antoinette ouviu.
— Você não está indo embora? — quis ela saber.
— Estou sim — respondeu Christophine.
— E o que vai ser de mim? — disse Antoinette.
— Levanta, menina, e se veste. Uma mulher tem que ter coragem
para viver neste mundo cruel.
Ela havia trocado de roupa, estava usando um vestido de algodão
sem graça e tinha tirado seus pesados brincos de ouro.
— Eu já vivi muitos problemas — disse ela. — Tenho direito ao
meu descanso. Tenho a casa que sua mãe me deu tanto tempo atrás e
tenho o meu jardim e o meu filho para trabalhar para mim. Um rapaz
preguiçoso, mas eu faço ele trabalhar. Além disso, o jovem patrão não
gosta de mim, e talvez eu também não goste muito dele. Se ficar aqui,
vou trazer problemas e discórdia para a sua casa.
— Se você não está feliz aqui, então pode ir — disse Antoinette.
Amélie entrou no quarto com duas jarras de água quente. Ela me
olhou de esguelha e sorriu.
Christophine disse numa voz suave:
— Amélie. Se você tornar a sorrir desse jeito, só mais uma vez, eu
vou amassar a sua cara como se estivesse amassando banana. Está
ouvindo? Responda, menina!
— Sim, Christophine — disse Amélie. Ela pareceu assustada.
— E também vou fazer você ficar com uma dor de barriga que
você nem pode imaginar. Talvez você fique de cama muito tempo com a
dor de barriga que eu vou dar para você. Talvez você nunca mais se
levante por causa da dor de barriga que eu vou dar para você. Então
fique quieta e comportada. Está ouvindo?
— Sim, Christophine — disse Amélie, e saiu de fininho do
quarto.
— Ela não presta para nada — disse Christophine com desprezo.
— Ela vive se esgueirando como uma centopeia.
Ela beijou Antoinette no rosto. Depois olhou para mim, sacudiu a
cabeça e resmungou em patuá antes de sair.
— Você ouviu o que aquela garota estava cantando? — disse
Antoinette.
— Nem sempre eu entendo o que elas dizem ou cantam. Ou
qualquer outra coisa.
— Era uma canção sobre uma barata branca. Sou eu. É assim que
eles chamam a todos nós que estávamos aqui antes do povo deles vendê-
los para os mercadores de escravos. E eu ouvi mulheres inglesas nos
chamarem de negros brancos. Então muitas vezes me perguntei quem eu
sou e onde é o meu país e a que lugar eu pertenço e por que eu nasci.
Quer sair agora, por favor? Eu tenho que me vestir, como Christophine
disse.

Depois de esperar meia hora, eu bati na porta. Não houve resposta,


então eu pedi a Baptiste para me trazer algo para comer. Ele estava
sentado sob a laranjeira que ficava na ponta da varanda. Ele serviu a
comida com uma expressão tão triste que concluí que aquele povo era
extremamente vulnerável. Quantos anos eu tinha quando aprendi a
ocultar o que sentia? Eu era bem pequeno. Devia ter uns seis anos,
cinco, talvez menos. Disseram-me que era necessário, e eu sempre
aceitei essa opinião. Se estas montanhas me provocam, ou o rosto de
Baptiste, ou os olhos de Antoinette, eles estão errados, são
melodramáticos, irreais (a Inglaterra deve ser totalmente irreal, como
um sonho, ela disse).
O ponche de rum que eu tinha tomado estava muito forte, e
quando acabei de comer, fiquei com muita vontade de dormir. E por que
não? Todo mundo dorme a esta hora. Eu imaginei os cachorros e os
gatos e os galos e as galinhas todos dormindo, e até a água do rio
correndo mais devagar.
Acordei, pensei imediatamente em Antoinette e abri a porta do
seu quarto, mas ela também estava dormindo. Ela estava de costas para
mim e perfeitamente imóvel. Eu olhei pela janela. O silêncio era
perturbador, absoluto. Eu teria gostado de ouvir um cachorro latindo,
um homem serrando madeira. Nada. Silêncio. Calor. Faltavam cinco
minutos para as três.

Eu saí e fui andando pelo caminho que via da minha janela. Devia ter
chovido muito durante a noite, porque o barro vermelho estava muito
enlameado. Passei por um pequeno cafezal, depois por alguns arbustos
de goiabeira. Enquanto caminhava, recordava o rosto do meu pai, seus
lábios finos, e os olhos redondos e arrogantes do meu irmão. Eles
sabiam. E Richard, o tolo, ele sabia também. E a moça com seu rosto
sorridente e vazio. Todos eles sabiam.
Comecei a andar bem depressa, depois parei porque a luz estava
diferente. Uma luz verde. Eu tinha chegado na floresta e ninguém pode
enganar-se com a floresta. Ela é hostil. O caminho estava coberto de
mato, mas era possível segui-lo. Prossegui sem olhar para as árvores altas
que se erguiam dos dois lados. Passei por cima de um tronco caído cheio
de formigas brancas. Como é que alguém consegue descobrir a verdade?,
pensei, e este pensamento não me levou a lugar algum. Ninguém me
contaria a verdade. Nem meu pai nem Richard Mason e muito menos a
moça com quem eu me casara. Eu fiquei imóvel, e tive tanta certeza de
estar sendo observado que olhei por cima do ombro. Não havia nada
além das árvores e da luz verde sob elas. Dava para ver um atalho e eu
continuei, olhando para os dois lados e de vez em quando para trás. Foi
por isso que tropecei numa pedra e quase caí. A pedra em que tropecei
não era uma pedra comum, era parte de uma estrada pavimentada.
Tinha havido uma estrada pavimentada ali naquela floresta. O atalho
terminou numa clareira. Nela estavam as ruínas de uma casa de pedras, e
ao redor das ruínas havia árvores de uma altura inacreditável. Atrás das
ruínas, havia uma laranjeira coberta de frutas, com folhas de um verde
muito escuro. Um lugar lindo. E calmo — tão calmo que pensar ou
planejar pareciam ser coisas sem importância. Pensar o quê, planejar
como? Debaixo da laranjeira eu percebi pequenos buquês de flores
amarrados com capim.
Não sei quanto tempo fiquei lá antes de começar a sentir frio. A
luz tinha mudado e as sombras estavam compridas. Era melhor voltar
antes de escurecer, pensei. Então vi uma menina com uma grande cesta
equilibrada na cabeça. Ela me viu e, para minha surpresa, deu um grito
alto, ergueu os braços e correu. A cesta caiu, eu chamei por ela, mas ela
tornou a gritar e correu mais depressa. Ela soluçava enquanto corria,
fazendo um ruído assustado. Então ela desapareceu. Eu devo estar a
poucos minutos do caminho, pensei, mas, depois de ter caminhado por
um bom tempo, vi que a vegetação e as trepadeiras estavam prendendo
minhas pernas e que as árvores se fechavam sobre minha cabeça. Resolvi
voltar para a clareira e recomeçar, mas o resultado foi o mesmo. Estava
ficando escuro. Era inútil dizer a mim mesmo que eu não estava longe
da casa. Eu estava perdido e com medo no meio das árvores inimigas,
tão certo do perigo que, quando ouvi passos e um grito, não respondi.
Os passos e a voz se aproximaram. Então eu gritei de volta. A princípio
não reconheci Baptiste. Ele estava usando calças de algodão azul
erguidas acima dos joelhos e um largo cinto de couro trabalhado em
volta da cintura estreita. Ele empunhava um facão e a luz refletia na
lâmina afiada, branco-azulada. Ele não sorriu quando me viu.
— Estamos procurando há muito tempo pelo senhor — disse ele.
— Eu me perdi.
Ele grunhiu em resposta e foi andando bem depressa na minha
frente, mostrando o caminho e cortando os galhos e trepadeiras que nos
impediam de caminhar com golpes certeiros de facão.
— Antigamente havia uma estrada aqui; onde ela ia dar? —
perguntei.
— Estrada nenhuma — respondeu ele.
— Mas eu vi. Uma estrada pavé, como os franceses faziam nas
ilhas.
— Estrada nenhuma.
— Quem morava naquela casa?
— Dizem que era um padre. Père Lilièvre. Ele morou aqui há
muitos anos.
— Passou uma criança — eu disse. — Ela pareceu muito assustada
quando me viu. Tem alguma coisa errada com esse lugar? — Ele sacudiu
os ombros. — Tem algum fantasma, algum zumbi ali? — insisti.
— Não sei nada sobre essas bobagens.
— Houve uma estrada aqui em algum momento.
— Estrada nenhuma — repetiu ele teimosamente.
Já estava quase escuro quando chegamos de volta no caminho de
barro. Ele passou a andar mais devagar, virou-se e sorriu para mim. Era
como se ele tivesse colocado a sua máscara de serviço no rosto selvagem
e reprovador que eu tinha visto.
— Você não gosta da floresta à noite?
Ele não respondeu, mas apontou para uma luz e disse:
— Faz muito tempo que estou procurando pelo senhor. A Srta.
Antoinette ficou com medo de que tivesse acontecido alguma coisa.
Quando chegamos na casa, eu estava muito cansado.
— Parece que o senhor está com febre — disse ele.
— Eu já tive isso.
— Não há limite para o número de vezes que se pode ter febre.
Não havia ninguém na varanda e nenhum som vinha da casa. Nós
dois ficamos parados na estrada, olhando para cima, então ele disse:
— Vou mandar a moça para servi-lo, patrão.
Hilda levou-me uma grande tigela de sopa e um pouco de fruta.
Eu experimentei a porta do quarto de Antoinette. Estava trancada e a
luz estava apagada. Hilda deu um risinho nervoso.
Eu disse a ela que não queria comer nada, mandei que trouxesse a
garrafa de rum e um copo. Bebi, depois apanhei o livro que estava lendo;
The Glittering Coronet of Isles era o título, e eu comecei a ler o capítulo
sobre “Obeah”:

Um zumbi é uma pessoa morta que parece estar viva ou uma


pessoa viva que parece estar morta. Um zumbi pode ser
também o espírito de um lugar; geralmente maligno, mas
que ás vezes pode ser aplacado por meio de sacrifícios ou de
oferendas de flores e frutas. (Eu me lembrei imediatamente
dos buquês de flores na casa em ruínas do padre.) “Eles
gritam ao vento que é sua voz, eles se encrespam no mar que
é sua ira.”
Isso foi o que eu soube, mas percebi que os negros, via
de regra, recusam-se a discutir a magia negra em que muitos
deles acreditam. Ela é chamada de Voodoo no Haiti —
Obeah em algumas das ilhas, de outro nome na América do
Sul. Eles confundem as coisas contando mentiras quando são
pressionados. As pessoas brancas, às vezes crédulas, fingem
que acham tudo isso uma bobagem. Casos de mortes súbitas
ou misteriosas são atribuídos a um veneno conhecido dos
negros que não pode ser identificado. O que complica ainda
mais a questão é...

Eu não olhei para cima, embora o visse na janela, mas continuei


cavalgando, sem pensar, até chegar nas pedras. As pessoas daqui as
chamam de Mounes Mors (os Mortos). Preston recuou ao vê-las, dizem
que cavalos sempre fazem isso. Depois deu um tropeção feio, então eu
desmontei e fui andando, puxando-o pelas rédeas. Estava ficando quente
e eu estava cansada quando alcancei o caminho que vai dar na casinha de
dois cômodos de Christophine, com telhado de madeira e não de sapê.
Ela estava sentada num caixote debaixo da mangueira, fumando um
cachimbo branco de barro, e disse:
— É você, Antoinette? O que traz você aqui tão cedo?
— Eu só queria vê-la — eu disse.
Ela me ajudou a tirar a sela de Preston e a levá-lo até um riacho ali
perto. Ele bebeu como se estivesse com muita sede, depois se sacudiu e
relinchou. Saiu água de suas narinas. Nós o deixamos comendo capim e
voltamos para debaixo da mangueira. Ela sentou em seu caixote e
empurrou outro para mim, mas eu me ajoelhei ao lado dela, tocando
num fino bracelete de prata que ela usava sempre.
— Você continua com o mesmo cheiro — eu disse.
— Você veio de tão longe só para me dizer isso? — disse ela. Suas
roupas cheiravam a algodão limpo, passado e engomado. Tantas vezes eu
a vira no rio, em Coulibri, com água até os joelhos, sua saia comprida
arregaçada, lavando seus vestidos e suas roupas brancas, depois batendo-
os contra as pedras. Às vezes, havia outras mulheres, todas elas batendo
com suas roupas nas pedras, um som alegre e animado. Por fim, elas
estendiam as roupas molhadas no sol, enxugavam a testa e começavam a
rir e a conversar. Ela também cheirava igual a elas, um cheiro tão bom e
reconfortante para mim (mas ele não gosta). O céu estava azul-escuro
visto através das folhas verde-escuras da mangueira, e eu pensei: “Este é
o meu lugar, e é a ele que eu pertenço, e é aqui que eu quero ficar.”
Então eu pensei: “Que bela árvore, mas aqui é alto demais para dar
mangas, e talvez ela nunca floresça”, e pensei em mim mesma deitada
sozinha na minha cama, no colchão macio e sedoso, no meio dos belos
lençóis, só escutando. Finalmente, eu disse:
— Christophine, ele não me ama, acho que me odeia. Ele agora
sempre dorme no quarto de vestir, e os empregados sabem disso. Se eu
me zango, ele demonstra um desprezo mudo: às vezes passa horas sem
falar comigo e eu não suporto mais isso, não suporto. O que devo fazer?
Ele não era assim no começo — admiti.
Hibiscos vermelhos e cor-de-rosa floresciam bem em frente à
porta da casa; ela acendeu o cachimbo e não respondeu.
— Responda — disse eu. Ela soltou uma baforada de fumaça.
— Você me faz uma pergunta difícil, eu dou uma resposta difícil;
faz a mala e vai embora.
— Embora? Embora para onde? Para algum lugar estranho, onde
nunca mais irei vê-lo? Não, isso não, porque então todo mundo vai rir de
mim, e não apenas os empregados.
— Se você for, não é de você que vão rir, é dele.
— Eu não vou fazer isso.
— Por que pergunta, se quando eu respondo você diz que não? Por
que você vem até aqui, se quando eu digo a verdade você diz que não?
— Mas deve haver outra coisa que eu possa fazer.
Ela fez uma cara triste.
— Quando um homem não ama você, quanto mais você tenta,
mais ele odeia você, homem é assim. Se você os ama, eles tratam você
mal, se você não ama, eles ficam noite e dia atrás de você, perturbando o
seu espírito. Eu soube de você e seu marido — disse ela.
— Mas eu não posso ir embora. Afinal de contas, ele é meu
marido.
Ela cuspiu por cima do ombro.
— Todas as mulheres, de todas as cores, não passam de idiotas. Eu
tenho três filhos. Um deles vivendo neste mundo, cada um de um pai
diferente, mas nenhum marido, graças a Deus. Eu guardo o meu
dinheiro. Não dou para nenhum vagabundo.
— Quando é que eu devo partir, para onde devo ir?
— Veja só, uma moça branca e rica como você, e mais boba que o
resto. Um homem não trata você bem, levanta a barra da saia e vai
embora. Faz isso e ele vai atrás de você.
— Ele não irá atrás de mim. E você tem que entender que agora
eu não sou mais rica, não tenho mais nenhum dinheiro, tudo que eu
tinha pertence a ele.
— O que é que você está dizendo? — disse ela asperamente.
— Essa é a lei inglesa.
— Lei! Foi o rapaz Mason quem fez isso, aquele rapaz é pior que
Satanás e uma noite destas ele vai queimar no fogo do inferno. Presta
atenção no que eu vou dizer. Diz ao seu marido que você não está
passando bem, que quer visitar sua prima na Martinica. Pede a ele
gentilmente para dar para você um pouco do seu próprio dinheiro, o
homem não é mau, ele vai dar. Quando você conseguir se afastar, fica
longe. Pede mais dinheiro. Ele vai ficar satisfeito em mandar mais. No
fim, ele vai perceber o que você está fazendo, que você consegue viver
sem ele, e se ele vir você gorda e feliz, vai querer você de volta. Os
homens são assim. É melhor não ficar naquela casa velha. Sai daquela
casa, eu estou avisando.
— Você acha que eu devo deixá-lo?
— Você está perguntando, então eu vou responder.
— Sim. Eu até que podia mesmo, mas por que iria para a
Martinica? Quero conhecer a Inglaterra, talvez eu conseguisse arranjar
dinheiro para isso. Não dele, mas eu sei como arranjar. Se eu for
embora, tenho que ir para bem longe.
Eu tenho estado muito infeliz, pensei; isto não pode durar para
sempre, tanta infelicidade é capaz de matar uma pessoa. Eu vou ser uma
pessoa diferente quando morar na Inglaterra, e coisas diferentes vão me
acontecer... Inglaterra, colorida de rosa no mapa do livro de geografia,
mas na página ao lado as palavras estão muito coladas umas nas outras,
são muito pesadas. Artigos de exportação, carvão, ferro, lã. Artigos de
Importação e Características da População. Nomes, Essex, Chelmsford
on the Chelmer. The Yorkshire and Lincolnshire wolds. Wolds? Isso
quer dizer montanhas? De que altura? Com a metade da altura das
nossas, ou nem isso? Frescas folhas verdes no curto e fresco verão. Verão.
As plantações de milho são como as plantações de cana-de-açúcar, mas
de uma cor dourada e não tão altas. Depois do verão, as árvores ficam
nuas, e aí vem o inverno e a neve. Plumas brancas caindo? Pedacinhos
de papel caindo? Dizem que a geada forma desenhos de flores nas
vidraças. Eu preciso saber mais do que sei agora. Pois sei da casa onde
terei frio e me sentirei deslocada, sei que a cama onde me deitarei tem
cortinas vermelhas e que já dormi lá muitas vezes antes, muito tempo
atrás. Quanto tempo atrás? Naquela cama eu irei sonhar o fim do meu
sonho. Mas meu sonho não tem nada a ver com a Inglaterra. Tenho que
parar de pensar assim, tenho que me lembrar dos lustres e dos bailes, dos
cisnes e das rosas e da neve. E da neve.
— Inglaterra — disse Christophine, que estava me vigiando. —
Você acha que existe esse lugar?
— Como você pode perguntar isso? Você sabe que existe.
— Eu nunca vi o maldito lugar, como é que eu vou saber?
— Você não acredita que exista um país chamado Inglaterra?
Ela pestanejou e respondeu depressa:
— Eu não disse que não acredito, eu disse que não conheço, eu
conheço o que vejo com os meus olhos, e nunca vi esse lugar. Além
disso, eu me pergunto, será que esse lugar é como dizem que é? Uns
dizem uma coisa, outros dizem outra, eu ouvi dizer que o frio é de gelar
os ossos e que lá roubam o seu dinheiro, que eles são mais espertos que o
demônio. Você tem dinheiro no bolso: quando torna a olhar, bam! Nada
de dinheiro. Por que você quer ir para esse lugar frio e cheio de ladrões?
Se este lugar existe, eu nunca vi, disso eu tenho certeza.
Eu fiquei olhando para ela, pensando: “Mas como ela pode saber o
que é melhor para mim, essa negra velha, teimosa, que não tem certeza
se existe um lugar chamado Inglaterra?” Ela apagou o cachimbo e ficou
olhando para mim, sem expressão alguma nos olhos.
— Christophine — eu disse —, eu posso fazer o que você me
aconselhou. Mas não agora. — (Agora, eu pensei, eu tenho que dizer o
que vim aqui para dizer.) — Você soube o que eu queria assim que me
viu, e sem dúvida você sabe agora. Não sabe? — Eu vi que minha voz
estava ficando alta e esganiçada.
— Calma — disse ela. — Se o homem não ama você, eu não
posso obrigá-lo a amar.
— Pode sim, eu sei que pode. É isso que eu quero e foi por isso
que eu vim aqui. Você pode fazer as pessoas amarem ou odiarem. Ou...
ou morrerem — eu disse.
Ela jogou a cabeça para trás e riu alto. (Mas ela nunca ri alto, e por
que ela está rindo?)
— Então você acredita nessa história sem pé nem cabeça sobre
obeah, que as pessoas falam quando estão bêbadas? Tudo isso é bobagem
e maluquice. E também isso não é para béké. Tem confusão muito
grande quando béké se mete com isso.
— Você tem que fazer, tem que fazer — eu disse.
— Quieta. Jo-jo, meu filho, está para chegar; se ele viu você
chorando, vai contar para todo mundo.
— Eu vou ficar quieta, não vou chorar. Mas, Christophine, se ele,
meu marido, viesse para mim uma só noite. Só mais uma vez. Eu faria
ele me amar.
— Não, doudou. Não.
— Sim, Christophine.
— Você está dizendo bobagem. Mesmo que eu possa fazê-lo ir
para a sua cama, não posso fazê-lo amar você. Depois ele vai odiar você.
— Não. E que importa se isso acontecer? Ele me odeia agora. Eu
o ouço toda noite andando de um lado para o outro na varanda. De um
lado para o outro. Quando passa pela minha porta, ele diz: “Boa-noite,
Bertha.” Ele não me chama mais de Antoinette. Descobriu que esse era
o nome da minha mãe. “Espero que você durma bem, Bertha.” Não
pode ficar pior que isso — eu disse. — Se ele vier mais uma noite, talvez
eu consiga dormir depois. Eu durmo tão mal agora. E eu sonho.
— Não, eu não vou me envolver com isso por você.
Então eu dei um soco numa pedra, obrigando-me a falar
calmamente:
— Fugir para a Martinica ou para a Inglaterra ou para qualquer
outro lugar, isso sim é uma mentira. Ele jamais me daria dinheiro para ir
embora, e ficaria furioso se eu pedisse. Seria um escândalo se eu o
abandonasse, e ele detesta escândalos. Mesmo que eu conseguisse fugir,
e como?, ele me obrigaria a voltar. E Richard também. Aliás, todo
mundo. Fugir dele, desta ilha, essa é a mentira. Que motivo eu daria
para ir embora e quem acreditaria em mim?
Quando baixou a cabeça, ela pareceu velha, e eu pensei: “Ah,
Christophine, não fica velha. Você é a minha única amiga, não se afasta
de mim ficando velha.”
— Seu marido sem dúvida adora dinheiro — disse ela. — Isso não
é mentira. Dinheiro é atraente para todo mundo, mas, para aquele
homem, dinheiro é tudo, ele não consegue enxergar mais nada.
— Então me ajuda.
— Ouça, doudou ché. Muita gente fala mal de você e da sua mãe.
Eu sei disso. Eu sei quem está falando e o que estão dizendo. O homem
não é mau, apesar de adorar dinheiro, mas ele ouve tantas histórias que
não sabe em que acreditar. É por isso que fica longe de você. Eu não
confio em nenhuma dessas pessoas que estão perto de você. Não aqui.
Não na Jamaica.
— Nem na tia Cora?
— Sua tia agora é uma mulher muito velha, ela virou a cara para a
parede.
— Como é que você sabe? — eu disse. Pois foi exatamente isso
que aconteceu.
Quando passei pelo quarto dela, eu a ouvi discutindo com Richard
e compreendi que era a respeito do meu casamento.
— É um absurdo — disse ela. — É uma vergonha. Você está
entregando tudo o que a criança possui para um perfeito estranho. Seu
pai jamais teria permitido isso. Ela deveria ser protegida legalmente.
Pode-se fazer um acordo, e era isso que deveria ser feito. Essa era a
intenção dele.
— Você está falando de um cavalheiro honrado e não de um patife
— disse Richard. — Eu não estou em posição de estabelecer condições,
como você sabe muito bem. Considerando as circunstâncias, ela tem
muita sorte em consegui-lo. Por que eu deveria insistir num contrato
feito por um advogado se confio nele? Eu confiaria minha própria vida a
ele — prosseguiu ele com uma voz fingida.
— É a vida dela que você está confiando a ele, não a sua —
retrucou ela.
— Cala a sua boca pelo amor de Deus, sua velha tola — disse ele,
e bateu a porta ao sair. Estava tão zangado que nem sequer me viu
parada no corredor. Ela estava recostada na cama quando eu entrei no
quarto dela.
— Esse rapaz é um idiota, ou finge que é. Eu não gostei nada do
que vi desse honrado cavalheiro. Empertigado. Duro como uma tábua e
burro como uma porta, na minha opinião, exceto no que diz respeito aos
seus próprios interesses.
Ela estava muito pálida e tremia toda, então eu a fiz cheirar os sais
que estavam na penteadeira. Ficavam numa garrafa de vidro vermelho
com tampa dourada. Ela encostou a garrafa no nariz, mas sua mão caiu
como se ela estivesse cansada demais para sustentá-la. Então ela virou de
costas para a janela, o céu, o espelho, as coisas bonitas que enfeitavam a
sua penteadeira. A garrafa vermelha e dourada caiu no chão. Ela virou o
rosto para a parede.
— O Senhor nos abandonou — disse ela, e fechou os olhos. Ela
não disse mais nada, e após algum tempo eu achei que estivesse
dormindo. Ela estava doente demais para ir ao casamento e eu fui me
despedir dela, eu estava feliz e animada, pensando na minha lua de mel.
Eu a beijei, e ela me deu uma bolsinha de seda. — Meus anéis. Dois são
valiosos. Não mostre para ele. Esconda-os. Prometa-me.
Eu prometi, mas, quando abri a bolsinha, um dos anéis de ouro
era bem simples. Pensei em vender o outro ontem, mas quem aqui vai
comprar o que eu tenho para vender?...
Christophine estava dizendo:
— Sua tia está muito velha e muito doente, e aquele rapaz Mason
não serve para nada. É você que precisa ter coragem e lutar por si
mesma. Fale com o seu marido, com bastante calma, conte a ele sobre
sua mãe e tudo o que aconteceu em Coulibri e por que ela ficou doente e
o que fizeram com ela. Não grite com o homem nem faça cara de louca.
Também não chore. Com ele, não adianta chorar. Fale direito e faça
com que ele compreenda.
— Eu tentei — eu disse —, mas ele não acredita em mim. Agora é
tarde demais para isso. — (Sempre é tarde demais para a verdade,
pensei.) — Vou tentar de novo, se você fizer o que pedi. Ah,
Christophine, eu estou com tanto medo — acrescentei —, eu não sei
por que, mas sinto muito medo. O tempo todo. Me ajuda.
Ela disse alguma coisa que eu não entendi. Depois pegou um
pauzinho afiado e desenhou linhas e círculos na terra debaixo da árvore,
e em seguida apagou-os com o pé.
— Se você falar com ele primeiro, eu faço o que você quer.
— Agora?
— Sim — disse ela. — Agora olha para mim. Olha bem nos meus
olhos.
Tive uma tonteira quando fiquei em pé, e ela entrou em casa
resmungando e saiu lá de dentro com uma xícara de café.
— Coloquei uma boa dose de rum branco aí dentro — disse ela.
— Seu rosto parece o de um fantasma e seus olhos estão vermelhos
como coucriant. Fique calma, veja, Jo-jo está chegando, ele diz para
todo mundo tudo o que ouve. O rapaz parece uma cabaça furada.
Quando acabei de tomar o café, comecei a rir.
— Eu tenho estado tão infeliz por nada, por nada — eu disse.
O filho dela estava carregando uma cesta na cabeça. Eu observei
como suas pernas morenas e fortes subiam a ladeira sem nenhum
esforço. Ele pareceu surpreso e curioso quando me viu, mas perguntou
educadamente, em patuá, se eu estava bem, se o patrão estava com boa
saúde.
— Sim, Jo-jo, obrigada, nós dois estamos bem.
Christophine ajudou-o com a cesta, depois foi buscar a garrafa de
rum e encheu a metade de um copo. Ele bebeu rapidamente. Depois ela
encheu o copo com água e ele bebeu, como é costume deles.
— A patroa está indo embora — disse ela, em inglês. — O cavalo
dela está ali atrás. Vai pôr a sela nele.
Entrei na casa com ela. Havia uma mesa de madeira na sala, um
banco e duas cadeiras quebradas. O quarto dela era grande e escuro. Ela
ainda tinha aquela colcha colorida de retalhos, a folha de palmeira do
Domingo de Ramos e a oração por uma boa morte. Mas depois que eu
notei um montinho de penas de galinha num canto, não olhei mais
nada.
— Então você já está com medo, hein? — E quando eu vi a
expressão do seu rosto, tirei minha carteira do bolso e joguei-a em cima
da cama.
— Você não tem que me dar dinheiro. Eu estou fazendo esta
loucura porque você me pediu... não por dinheiro.
— E é uma loucura? — disse eu sussurrando, e ela tornou a rir,
desta vez baixinho.
— Se béké diz que é loucura, então é loucura. Béké é esperta como
o demônio. Mais esperta que Deus. Não é? Agora presta atenção, que eu
vou dizer o que você tem que fazer.
Quando saímos para a luz do sol, Jo-jo estava segurando Preston
perto de uma pedra grande. Eu subi na pedra e montei.
— Até logo, Christophine; até logo, Jo-jo.
— Até logo, patroa.
— Você virá visitar-me muito em breve, Christophine?
— Eu vou sim.
Quando cheguei no final da trilha, olhei para trás. Ela estava
falando com Jo-jo e ele parecia curioso e alegre. Um galo cantou ali por
perto, e eu pensei; “Isso indica traição, mas quem é o traidor?” Ela não
queria fazer isso. Eu a forcei com o meu dinheiro sujo. E o que é que
alguém sabe sobre traidores, ou por que Judas fez o que fez?
Eu me lembro de cada segundo daquela manhã; se fechar os olhos,
consigo ver o azul profundo do céu e as folhas da mangueira, os hibiscos
vermelhos e cor-de-rosa, o lenço amarelo que ela usava em volta da
cabeça, amarrado à moda da Martinica com as pontas para a frente, mas
agora eu vejo tudo imóvel, fixado para sempre como as cores em uma
janela de vitral. Só as nuvens se movem. O que ela me deu estava
embrulhado numa folha, e parecia macio e fresco contra a minha pele.

— A patroa foi fazer uma visita — disse Baptiste quando trouxe o meu
café naquela manhã. — Ela vai voltar esta noite ou então amanhã. Ela
resolveu isto rapidamente e foi embora.
De tarde, Amélie trouxe-me uma segunda carta.
Por que o senhor não responde? Não acredita em mim?
Então pergunte a qualquer pessoa — todo mundo em
Spanish Town sabe. Por que o senhor acha que o trouxeram
para este lugar? Quer que eu vá na sua casa e conte tudo na
frente de todo mundo? Ou o senhor vem aqui ou então eu
vou...

Neste ponto eu parei de ler. A garota, Hilda, entrou no quarto e eu


perguntei a ela:
— Amélie está aqui?
— Está sim, patrão.
— Diz que eu quero falar com ela.
— Sim senhor, patrão.
Ela tapou a boca com a mão como se quisesse abafar uma risada,
mas seus olhos, que eram os mais negros que eu já tinha visto, tão negros
que era impossível distinguir as pupilas das íris, estavam assustados e
confusos.
Eu me sentei na varanda, de costas para o mar, e foi como se eu
tivesse feito isso a vida toda. Não conseguia imaginar um clima diferente
ou um céu diferente. Eu conhecia a forma das montanhas tão bem
quanto conhecia a forma das duas jarras marrons, cheias de perfumadas
flores brancas, que estavam em cima da mesa. Eu sabia que a moça
estaria usando um vestido branco. Ela seria branca e marrom, seus
cachos, seu cabelo de moça branca, como ela dizia, meio ocultos por um
lenço vermelho, seus pés descalços. Haveria o céu e as montanhas, as
flores e a moça e a sensação de que tudo aquilo era um pesadelo, e a leve
esperança consoladora de que talvez eu acordasse.
Ela se encostou na coluna da varanda, com uma graça espontânea,
um ar suficientemente respeitoso, e esperou.
— Esta carta foi entregue a você? — perguntei.
— Não, patrão. Foi Hilda quem trouxe.
— E esse homem que escreve é seu amigo?
— Meu amigo não — disse ela.
— Mas ele conhece você, ou diz que conhece.
— Ah, sim, eu conheço o Daniel.
— Muito bem, então. Quer dizer a ele que as cartas dele me
aborrecem, e que para o próprio bem dele é melhor que ele pare de me
escrever? Se ele vier com uma carta, você devolve para ele.
Compreendeu?
— Sim, patrão. Eu compreendi.
Ainda encostada na coluna da varanda, ela sorriu para mim e eu
tive a impressão de que a qualquer momento seu sorriso iria
transformar-se numa boa gargalhada. Foi para impedir que isto
acontecesse que eu continuei:
— Por que ele escreve para mim?
Ela respondeu inocentemente:
— Ele não diz por quê? Ele escreve duas cartas e não diz por que
está escrevendo? Se o senhor não sabe, eu também não sei.
— Mas você o conhece? — eu disse. — O nome dele é Cosway?
— Uns dizem que sim, outros dizem que não. Mas é assim que ele
chama a si mesmo.
Ela acrescentou que Daniel era um homem muito arrogante, que
estava sempre lendo a Bíblia e que vivia como gente branca. Tentei
descobrir o que ela queria dizer com isso, e ela explicou que ele tinha
uma casa igual a de gente branca, com um cômodo só para sentar. Que
ele tinha dois retratos na parede, do pai e da mãe.
— Gente branca?
— Ah, não, de cor.
— Mas ele me disse na primeira carta que o pai dele era branco.
Ela sacudiu os ombros.
— Tudo isso aconteceu há muito tempo. — Era fácil ver o
desprezo que ela sentia por coisas acontecidas há muito tempo. — Vou
dar seu recado a ele, patrão. — Então ela acrescentou: — Por que o
senhor não vai visitá-lo? É muito melhor. Daniel é um homem mau e
ele virá aqui criar confusão para o senhor. É melhor que não venha.
Dizem que ele foi pregador em Barbados, ele fala como um pregador, e
ele tem um irmão na Jamaica, em Spanish Town, Sr. Alexander.
Homem muito rico. É dono de três lojas de rum e duas mercearias. —
Ela me lançou um olhar afiado como uma faca. — Eu ouvi dizer que a
Sra. Antoinette e o filho dele, o Sr. Sandi, iam se casar, mas tudo isso é
bobagem. A Srta. Antoinette é uma moça branca, com muito dinheiro,
ela não ia casar com um homem de cor, mesmo ele não parecendo ser de
cor. Pergunta à Srta. Antoinette, ela vai contar para o senhor.
Como Hilda, ela tapou a boca com a mão como se não conseguisse
conter o riso e se afastou.
Depois ela se virou e disse numa voz bem baixinha:
— Eu tenho pena do senhor.
— O que foi que você disse?
— Eu não disse nada, patrão.

Uma mesa grande coberta com um pano vermelho franjado fazia a


pequena sala parecer mais quente ainda; a única janela estava fechada.
— Coloquei sua cadeira perto da porta — disse Daniel —, entra
uma brisa por baixo. — Mas não havia brisa nenhuma, nem um sopro
de ar, o lugar ficava na parte de baixo da montanha, quase ao nível do
mar.
“Quando o ouvi chegando, tomei uma boa dose de rum, e depois
um copo d’água para me acalmar, mas ele não me acalmou, ele escorre
dos meus olhos em lágrimas e lamentações. Por que o senhor não me
respondeu quando escrevi pela primeira vez?” Ele continuou falando,
com os olhos fixos num texto emoldurado, pendurado na parede suja: A
Vingança É Minha.
“O Senhor tardou muito, meu Deus”, disse ele, olhando para o
texto. “Eu o apressei um pouco.” Então ele enxugou o rosto magro e
amarelo e assoou o nariz num canto da toalha da mesa.
“Chamam-me de Daniel”, disse ele, ainda sem olhar para mim,
“mas meu nome é Esaú. Tudo o que recebi daquele maldito demônio do
meu pai foram xingamentos e abandono. Meu pai era o velho Cosway,
com sua laje de mármore branco na igreja inglesa de Spanish Town à
vista de todos. Há um timbre sobre ela, uma citação em latim e palavras
escritas em letras grandes e pretas. Nunca vi tanta mentira. Espero que
aquela pedra fique pendurada em volta do pescoço dele e o arraste para o
inferno no fim. ‘Piedoso’, escreveram nela. ‘Amado por todos.’ Nem uma
palavra sobre as pessoas que ele compra e vende como se fossem gado.
‘Misericordioso para com os fracos’, eles escreveram. Misericórdia! O
homem tem um coração de pedra. Às vezes, quando ele se cansa de uma
mulher, o que acontece logo, ele se livra dela como se livrou da minha
mãe, dá para ela um casebre e um pedaço de terra (alguns chamam
aquilo de jardim), mas ele não faz isso por piedade, faz por orgulho. Eu
nunca vi um homem mais arrogante e orgulhoso como ele — ele anda
como se fosse o dono do mundo. ‘Não ligo a mínima’, ele diz. Ele que
espere... Eu ainda posso ver aquela laje diante dos meus olhos porque
vou sempre lá para vê-la. Sei de cor todas as mentiras que contam —
ninguém se levanta e diz: ‘Por que escrevem mentiras na igreja?...’ Estou
dizendo isto para o senhor saber com que tipo de gente se envolveu. O
coração conhece a sua amargura, mas mantê-la trancada o tempo todo é
muito duro. Eu me lembro como se fosse ontem da manhã em que ele
me rogou uma praga. Eu tinha 16 anos e estava nervoso. Saí de casa
bem cedo. Fui andando até Coulibri — levou cinco ou seis horas. Ele
não se recusou a me ver; ele me recebeu com toda a calma e a primeira
coisa que me disse foi que eu o estava sempre incomodando atrás de
dinheiro. Isto porque às vezes eu pedia ajuda para comprar um par de
sapatos ou coisa semelhante. Para não andar de pés no chão como um
negrinho. Coisa que eu não sou. Ele me olhou como se eu fosse lixo, e
eu também me zanguei. ‘Afinal de contas, eu tenho os meus direitos’, eu
disse a ele, e sabe o que foi que ele fez? Ele riu na minha cara. Quando
acabou de rir, ele me perguntou como era o meu nome. ‘Não posso
lembrar dos nomes de todos eles — é esperar muito de mim’, ele disse,
falando para si mesmo. Ele parecia muito velho sob o sol forte daquela
manhã. ‘Foi o senhor mesmo que me chamou de Daniel’, eu disse a ele.
‘Eu não sou um escravo como a minha mãe era.’
‘“Sua mãe era uma grande espertalhona’, ele disse, ‘e eu não sou
nenhum idiota. Mas a mulher está morta, então já chega. Mas, se tiver
um pingo de sangue meu nessa sua carcaça magra, eu como o meu
chapéu.’ Nessa altura, o meu sangue estava fervendo, então eu gritei de
volta para ele: ‘Então come. Come. Você não tem muito tempo.
Também não tem muito tempo para beijar e amar a sua nova esposa. Ela
é jovem demais para você.’ ‘Pelo amor de Deus!’, ele disse, e o rosto dele
ficou vermelho e em seguida cinzento. Ele tentou levantar-se, mas caiu
sentado de volta na cadeira. Pegou um tinteiro grande de prata que
estava em cima da escrivaninha e atirou na minha cabeça, me xingando,
mas eu me abaixei e o tinteiro foi bater na porta. Eu tive que rir, mas saí
depressa. Ele me mandou dinheiro — nem uma palavra, só o dinheiro.
Foi a última vez que eu o vi.”
Daniel respirou fundo, tornou a enxugar o rosto e me ofereceu
rum. Eu fiz um sinal negativo com a cabeça e agradeci, ele encheu meio
copo e bebeu.
— Isso foi há muito tempo — disse ele.
— Por que você quis falar comigo, Daniel?
O último drinque parecia tê-lo deixado sóbrio. Ele olhou
diretamente para mim e falou com mais naturalidade:
— Eu insisti porque tenho uma coisa para dizer. Quando o senhor
perguntar se o que eu disse é verdade, vai perguntar, embora não goste
de mim, eu sei disso; mas sabe muito bem que a minha carta não era
uma mentira. Cuidado com quem for falar. Muitas pessoas gostam de
dizer coisas pelas suas costas, na sua frente ficam com medo, ou então
não querem comprometer-se. Agora, o juiz, ele sabe de muita coisa, mas
a mulher dele é muito amiga da família Mason, e ela o impede de falar,
se puder. E tem o meu meio-irmão Alexander, que é de cor como eu,
mas não tão azarado, ele vai querer contar um monte de mentiras para o
senhor. Ele era o favorito do velho e prosperou desde o início. Sim,
Alexander agora é um homem rico, mas ele não fala sobre isso. Como
prosperou, ele tem duas caras, não fala mal dos brancos. Tem aquela
mulher lá na sua casa, Christophine. Ela é a pior. Ela teve que sair da
Jamaica porque ia para a cadeia. Sabia disso?
— Por que a mandaram para a cadeia? O que foi que ela fez?
Ele desviou os olhos.
— Eu disse que abandonei Spanish Town, não sei tudo que
aconteceu. É alguma coisa muito ruim. Ela é uma obeah, e eles a
apanharam. Eu não acredito nessa história de demônio, mas muitos
acreditam. Christophine é uma mulher má, e ela vai mentir para o
senhor mais ainda do que a sua mulher. A sua mulher fala macio, mas
mente.
O relógio preto e dourado que estava numa prateleira bateu quatro
horas.
Eu tenho que ir. Tenho que fugir deste rosto amarelo e suado e
desta sala detestável. Fiquei sentado, imóvel, sem ação, olhando para ele.
— Gosta do meu relógio? — perguntou Daniel. — Trabalhei
muito para comprá-lo. Mas foi para agradar a mim mesmo. Eu não
tenho que agradar a mulher nenhuma. Compra isso, compra aquilo; na
minha opinião, elas não passam de demônios encarnados. Mas o
Alexander não, ele não consegue ficar longe delas, e no fim acabou se
casando com uma moça de pele muito clara, de família muito
respeitável. O filho dele, Sandi, parece um homem branco, mas é mais
bonito do que qualquer homem branco, e dizem que é recebido por
muita gente branca. A sua mulher conhece Sandi há muito tempo.
Pergunta a ela que ela conta. Mas acho que não tudo. — Ele riu. — Ah,
não, tudo não. Eu os vi juntos quando eles pensavam que ninguém
estava vendo. Eu a vi quando ela... Está indo embora, é? — Ele correu
para a porta.
“Não, o senhor não pode ir antes de eu contar uma última coisa. O
senhor não quer que eu conte tudo o que eu sei. Ela começou com o
Sandi. Eles o enganaram direitinho sobre essa moça. Ela olha bem nos
seus olhos e fala macio — e só conta mentiras. Mentiras. A mãe dela era
assim. Dizem que ela é pior que a mãe, e ela é pouco mais que uma
criança. O senhor devia estar surdo se não ouviu as pessoas rindo
quando casou com ela. Não gaste a sua raiva comigo. Não sou eu que o
estou enganando, eu só quero abrir os seus olhos... Um cavalheiro inglês,
alto e bonito como o senhor, não vai querer tocar num rato amarelo
igual a mim, hein? Além disso, eu entendo muito bem. O senhor
acredita em mim, mas quer abafar tudo, como os ingleses costumam
fazer. Tudo bem. Mas para eu ficar de boca fechada o senhor tem que
me pagar. O que são quinhentas libras para o senhor? Para mim, são a
minha vida.”
Eu fui tomado de nojo. De nojo e de raiva.
— Está bem! — gritou ele, e se afastou da porta. — Vai então...
sai. Agora é minha vez de dizer isso. Sai. Sai. E se eu não receber o
dinheiro que eu quero, o senhor vai ver o que eu vou fazer.
“Mande o meu amor para a sua esposa — minha irmã!”, gritou ele
maldosamente às minhas costas. “O senhor não é o primeiro a beijar
aquele rostinho bonito. Rosto bonito, pele macia, uma bela cor — não
amarela como a minha. Mas mesmo assim, minha irmã...”
Quando cheguei no final do caminho, fora do alcance da vista e
dos ouvidos de quem estava na casa, parei. O mundo estava entregue ao
calor e às moscas, e a luz era ofuscante depois da penumbra daquela
pequena sala. Uma cabra preta e branca amarrada ali perto olhava-me
fixamente, e, por um período que me pareceu enorme, fiquei olhando
para aqueles olhos verde-amarelados. Então fui até a árvore onde tinha
deixado o meu cavalo e voltei para casa o mais rápido que pude.

O telescópio foi afastado para um lado da mesa, abrindo espaço para


uma garrafa de rum e dois copos sobre uma bandeja de prata manchada.
Eu fiquei escutando os incessantes ruídos noturnos e assistindo à
procissão de pequenas mariposas e besouros voando em direção à chama
das velas, depois me servi de uma dose de rum e bebi. Na mesma hora
os ruídos noturnos diminuíram, foram ficando mais distantes, tornaram-
se suportáveis, até mesmo agradáveis.
— Você quer me ouvir, pelo amor de Deus — disse Antoinette.
Ela já dissera isso antes e eu não tinha respondido, então eu disse:
— É claro. Eu seria o insensível que você sem dúvida acha que eu
sou se não concordasse.
— Por que você me odeia? — quis saber ela.
— Eu não a odeio, eu estou muito aflito com você, estou louco de
aflição — respondi. Mas isto não era verdade, eu não estava nem um
pouco aflito, eu estava calmo, era a primeira vez em muito tempo que eu
me sentia assim tão calmo e controlado.
Ela estava usando o vestido branco que eu havia admirado, mas ele
tinha escorregado por cima do ombro e parecia grande demais para ela.
Eu a observei segurar o pulso esquerdo com a mão direita, um hábito
desagradável.
— Então por que você nunca se aproxima de mim? — disse ela. —
Ou me beija, ou conversa comigo? Por que você acha que eu tenho que
aguentar isto, que motivo você tem para me tratar assim? Você tem
algum motivo?
— Sim — respondi —, eu tenho um motivo. — E acrescentei bem
baixinho: — Meu Deus.
— Você está sempre invocando Deus — disse ela. — Você acredita
em Deus?
— É claro, é claro que eu acredito no poder e na sabedoria do meu
Criador.
Ela ergueu as sobrancelhas e os cantos da boca caíram de um jeito
interrogativo e zombeteiro. Por um momento, ela ficou muito parecida
com Amélie. Talvez elas sejam aparentadas, pensei. É possível, é até
provável aqui neste maldito lugar.
— E você — eu disse. — Você acredita em Deus?
— Não importa — respondeu ela calmamente — o que eu
acredito ou o que você acredita, porque não podemos fazer nada a
respeito disso, nós somos como isto aqui. — Ela deu um piparote numa
mariposa morta que estava em cima da mesa. — Mas eu fiz uma
pergunta, como você deve lembrar. Você vai responder?
Tornei a beber e o meu cérebro estava frio e lúcido.
— Muito bem, mas antes eu quero que você me responda uma
coisa. A sua mãe está viva?
— Não, ela está morta, ela morreu.
— Quando?
— Não faz muito tempo.
— Então por que você me disse que ela morreu quando você era
pequena?
— Porque me mandaram dizer isto, e porque é verdade. Ela
realmente morreu quando eu era pequena. Existem sempre duas mortes,
a verdadeira e a que as pessoas ficam sabendo.
— Duas pelo menos — eu disse — para os que têm sorte. — Nós
ficamos em silêncio por alguns instantes, depois eu continuei: — Eu
recebi uma carta de um homem que diz chamar-se Daniel Cosway.
— Ele não tem direito a esse nome — disse ela depressa. — O
nome verdadeiro dele, se é que ele tem um, é Daniel Boyd. Ele odeia
todos os brancos, mas é a mim que ele odeia mais. Ele conta mentiras a
nosso respeito e tem certeza de que você vai acreditar nele e que não vai
ouvir o outro lado.
— Existe um outro lado? — perguntei.
— Sempre existe o outro lado, sempre.
— Depois da segunda carta dele, que era ameaçadora, eu achei
melhor ir vê-lo.
— Você o viu — disse ela. — Eu sei o que foi que ele contou para
você. Que a minha mãe era louca e que era uma mulher sem escrúpulos,
e que o meu irmãozinho que morreu era retardado de nascença, um
débil mental, e que eu também sou louca. Foi isso que ele disse, não foi?
— Sim, essa foi a história que ele contou, tem alguma verdade
nela? — perguntei, com calma e frieza.
Uma das velas soltou um clarão e eu vi as olheiras sob os olhos
dela, sua boca com as pontas viradas para baixo, seu rosto magro e tenso.
— Não vamos falar sobre isso agora — eu disse. — Esta noite é
melhor você descansar.
— Mas nós temos que falar sobre isso. — A voz dela estava alta e
aguda.
— Só se você prometer que vai ser razoável.
Mas este não é o lugar, nem a hora, eu pensei, aqui nesta varanda
escura com as velas queimando e a noite vigiando e ouvindo lá fora.
— Esta noite não — tornei a dizer. — Vamos deixar para outra
hora.
— Talvez eu não possa contar para você em outro lugar ou em
outra hora. Em outra hora não, agora. Você está com medo? — disse
ela, imitando a voz dos negros, cantada e insolente.
Então eu a vi estremecer e lembrei que ela estava usando um xale
de seda amarela. Eu me levantei (meu cérebro tão claro e tão frio, meu
corpo tão pesado). O xale estava numa cadeira da sala, havia velas no
aparador e eu as levei para a varanda, acendi duas, e pus o xale em volta
dos seus ombros.
— Mas por que não me contar amanhã, à luz do dia?
— Você não tem o direito — disse ela com violência. — Você não
tem o direito de fazer perguntas a respeito da minha mãe e depois se
recusar a ouvir minha resposta.
— É claro que eu vou ouvir, é claro que podemos conversar agora,
se é isso que você quer. — Mas a sensação de algo desconhecido e hostil
era muito forte. — Eu me sinto um estranho aqui — eu disse. — Eu
sinto que este lugar é meu inimigo e está do seu lado.
— Você está muito enganado — disse ela. — Ele não é para você
nem para mim. Ele não tem nada a ver com nenhum de nós dois. É por
isso que você tem medo dele, porque ele é diferente. Eu descobri isso há
muito tempo, quando era uma criança. Eu o amei porque não tinha mais
nada para amar, mas ele é tão indiferente quanto este Deus que você
invoca com tanta frequência.
— Podemos conversar aqui ou em qualquer outro lugar — eu disse
—, como você quiser.
A garrafa de rum estava quase vazia, então eu fui até a sala de
jantar e trouxe outra. Ela não tinha comido nada e recusara o vinho, mas
agora ela se serviu de um drinque, molhou os lábios nele e tornou a
largá-lo.
— Você quer saber sobre a minha mãe, eu vou contar-lhe sobre
ela, a verdade, não mentiras. — Então, ela ficou tanto tempo calada que
eu disse delicadamente:
— Eu sei que depois que o seu pai morreu ela ficou muito sozinha
e infeliz.
— E muito pobre — disse ela. — Não se esqueça disto. Durante
cinco anos. Falando parece pouco, mas é muito para se viver. E sozinha.
Ela ficou tão sozinha que se afastou das outras pessoas, isso acontece.
Aconteceu comigo também, mas foi mais fácil para mim porque eu mal
me lembrava de um tempo diferente. Para ela, foi estranho e assustador.
E ela era tão bonita. Eu costumava pensar que toda vez que se olhava no
espelho ela devia ter esperança e fingir. Eu também fingia. Coisas
diferentes, é claro. Você consegue passar muito tempo fingindo, mas um
dia tudo desmorona e você está sozinha. Nós estávamos sozinhas no
lugar mais lindo do mundo, não é possível que possa haver um lugar tão
lindo quanto Coulibri. O mar não ficava longe, mas nós nunca o
escutávamos, sempre escutávamos o rio. O mar não. Era uma casa
antiga, e antes tinha existido uma avenida de palmeiras-reais, mas
muitas delas tinham caído e outras tinham sido cortadas e as que
restaram pareciam perdidas. Árvores perdidas. Então envenenaram o
cavalo dela e ela não pôde mais cavalgar. Ela trabalhava no jardim
mesmo quando o sol estava quente e as pessoas diziam: “Agora entra,
patroa.”
— E quem eram essas pessoas?
— Christophine estava conosco, e Godfrey, o velho jardineiro,
ficou, e um menino, eu esqueço o nome dele. Ah, sim. — Riu ela. — O
nome dele era Sinistro, porque a madrinha dele achou que esta era uma
palavra bonita. O padre disse: “Eu não posso batizar esta criança com o
nome de Sinistro, ele tem que ter outro nome”, então o nome dele era
Sinistro Thomas, e nós o chamávamos de Sass. Era Christophine quem
comprava nossa comida na aldeia, e ela convenceu umas moças a
ajudarem-na a varrer e lavar roupa. Nós teríamos morrido, minha mãe
sempre dizia, se ela não tivesse ficado conosco. Muitos morreram
naquela época, tanto brancos quanto pretos, principalmente os mais
velhos, mas hoje em dia ninguém fala daquele tempo. Foi tudo
esquecido, exceto as mentiras. Mentiras nunca são esquecidas, elas
continuam e aumentam.
— E você? — eu disse. — E quanto a você?
— Eu nunca ficava triste de manhã — disse ela —, e todo dia era
um dia novo para mim. Eu me lembro do gosto do leite e do pão, e do
som do relógio batendo devagar, e da primeira vez que o meu cabelo foi
amarrado com barbante, porque não tinha sobrado nenhuma fita e não
havia dinheiro para comprar. Todas as flores do mundo estavam no
nosso jardim, e às vezes, quando eu tinha sede, eu lambia as gotas de
chuva das folhas do jasmineiro depois de um temporal. Se eu pudesse
fazer você ver, porque eles o destruíram e agora ele só existe aqui. — Ela
bateu na testa. — Uma das melhores coisas era um lance de degraus
rasos que desciam do glacis até a pedra de montar, o corrimão era de
ferro trabalhado.
— Ferro batido — corrigi.
— Sim, de ferro batido, e no final do último degrau ele era curvo
como um ponto de interrogação, e quando eu punha a mão nele, o ferro
era quente e eu me sentia confortada.
— Mas você disse que estava sempre alegre.
— Não, eu disse que eu estava sempre alegre de manhã, nem
sempre de tarde e nunca depois que o sol se punha, pois depois que o sol
se punha a casa ficava assombrada, alguns lugares são assim. Então veio
aquele dia em que ela viu que eu estava crescendo como uma negra
branca e ficou com vergonha de mim, foi depois desse dia que tudo
mudou. Sim, a culpa foi minha, foi por minha culpa que ela começou a
planejar e a trabalhar freneticamente, numa febre para mudar nossas
vidas. Aí as pessoas começaram a nos visitar de novo e, embora eu as
odiasse e tivesse medo dos seus olhos frios e debochados, aprendi a
ocultar isto.
— Não — eu disse.
— Por que não?
— Você nunca aprendeu a ocultar isto — eu disse.
— Eu aprendi a tentar — disse Antoinette. Não muito bem,
pensei.
— E então veio a noite em que eles destruíram tudo. — Ela se
recostou na cadeira, muito pálida. Eu coloquei um pouco de rum no
copo e lhe ofereci, mas ela empurrou o copo com tanta violência que a
bebida derramou em seu vestido. — Não sobrou nada. Eles o
destruíram. Era um lugar sagrado. Era consagrado ao sol! — Comecei a
imaginar até que ponto aquilo era verdade, e até que ponto era
distorcido pela imaginação. Sem dúvida, muitas das velhas propriedades
foram queimadas. Viam-se ruínas por toda a parte.
Como se adivinhasse os meus pensamentos, ela continuou
calmamente:
— Mas eu estava falando sobre minha mãe. Depois eu tive febre.
Estava na casa de tia Cora em Spanish Town. Ouvi gritos e depois
alguém rindo muito alto. Na manhã seguinte, tia Cora me contou que
minha mãe estava doente e tinha ido para o campo. Isto não me pareceu
estranho, porque ela era parte de Coulibri, e se Coulibri havia sido
destruída e retirada da minha vida, pareceu natural que ela também
desaparecesse. Fiquei doente por um longo tempo. Minha cabeça estava
enfaixada porque alguém tinha atirado uma pedra em mim. Tia Cora
me disse que a ferida estava cicatrizando e que não me prejudicaria no
dia do meu casamento. Mas eu acho que ela me estragou para o dia do
meu casamento e para todos os outros dias e noites.
— Antoinette, as suas noites não estão estragadas, nem os seus
dias, afaste as coisas tristes. Não pense nelas e nada estará estragado, eu
prometo.
Mas meu coração estava pesado como chumbo.
— Pierre morreu — continuou ela como se não tivesse ouvido o
que eu disse —, e minha mãe passou a odiar o Sr. Mason. Ela não
permitia que ele se aproximasse dela ou tocasse nela. Ela disse que o
mataria, acho que tentou mesmo matá-lo. Então ele comprou uma casa
para ela e contratou um casal de cor para tomar conta dela. Durante
algum tempo ele ficou triste, mas frequentemente deixava a Jamaica e
passava um bom tempo em Trinidad. Ele quase a esqueceu.
— E você a esqueceu também — não pude deixar de dizer.
— Eu não sou uma pessoa negligente — disse Antoinette. — Mas
ela... ela não me queria. Ela me empurrou e gritou quando fui visitá-la.
Eles me disseram que eu a fiz piorar. As pessoas falavam dela, não a
deixavam em paz, ficava todo mundo falando dela e calavam a boca
quando me viam. Um dia eu resolvi ir vê-la, sozinha. Antes de chegar na
casa, eu ouvi seu choro. Eu pensei: vou matar quem estiver maltratando
a minha mãe. Desmontei do cavalo e corri para a varanda, de onde podia
espiar para dentro da sala. Eu me lembro do vestido que ela estava
usando, um vestido de festa bem decotado, e ela estava descalça. Havia
um preto gordo com um copo de rum na mão. Ele disse: “Bebe isto que
você vai esquecer.” Ela bebeu tudo sem parar. Ele despejou mais, e ela
pegou o copo, riu e atirou-o por cima do ombro. Ele caiu no chão e
espatifou-se. “Limpe isso”, o homem disse para a mulher, “senão ela vai
pisar em cima."
“‘Se ela pisar, vai ser muito bom’, a mulher disse. ‘Talvez ela fique
quieta.’ Entretanto, ela pegou uma vassoura e uma pá e varreu os cacos.
Eu vi tudo isso. Minha mãe não olhava para eles. Ela andava de um lado
para o outro e dizia: ‘Mas que surpresa agradável, Sr. Luttrell. Godfrey,
leve o cavalo do Sr. Luttrell.’ Depois ela pareceu ficar cansada e sentou-
se na cadeira de balanço. Eu vi o homem erguê-la da cadeira e beijá-la.
Eu o vi colar sua boca na dela, e ela ficou toda mole nos braços dele e ele
riu. A mulher também riu, mas ficou zangada. Quando eu vi isso, fugi
correndo. Christophine estava esperando por mim quando eu voltei
chorando. ‘Você não tinha nada que ir até lá’, ela disse. Eu disse: ‘Cala a
boca, seu demônio, seu maldito demônio preto do inferno.’
Christophine disse: ‘Ai-ai-ai! Que bicho te mordeu!’”
Após um longo tempo, eu a ouvi dizer, como se estivesse falando
com ela mesma: “Eu disse tudo o que queria dizer. Tentei fazer você
entender. Mas nada mudou.” Ela riu.
— Não ria desse jeito, Bertha.
— Meu nome não é Bertha; por que você me chama de Bertha?
— Porque é um nome que eu gosto muito. Eu penso em você
como Bertha.
— Não faz mal — disse ela.
— Quando você saiu hoje de manhã, para onde foi? — perguntei.
— Fui ver Christophine. Vou contar tudo o que você quiser saber
em poucas palavras, porque palavras não adiantam de nada, agora eu sei
disso.
— Por que você foi vê-la?
— Fui pedir para ela fazer uma coisa para mim.
— E ela fez?
— Sim. — Outra longa pausa.
— Você pediu um conselho a ela, foi isso?
Ela não respondeu.
— O que foi que ela disse?
— Ela disse que eu devia ir embora, deixar você.
— Ah, ela disse isso? — perguntei, surpreso.
— Sim, o conselho que ela me deu foi esse.
— Eu quero fazer o que for melhor para nós dois — eu disse. —
Muito do que você me contou é estranho, é diferente do que eu fui
levado a esperar. Você não acha que talvez a Christophine tenha razão?
Que se você fosse embora deste lugar, ou se eu fosse embora, como você
preferir, é claro, por algum tempo, talvez fosse a coisa mais sensata que
poderíamos fazer? — Então eu disse rispidamente: — Bertha, você está
dormindo, você está doente, por que não me responde? — Eu me
levantei, fui até a cadeira onde ela estava e segurei suas mãos frias. —
Nós já estamos aqui sentados há muito tempo, já é muito tarde.
— Vai você — disse ela. — Eu quero ficar aqui no escuro... que é o
meu lugar — acrescentou ela.
— Que bobagem — eu disse. Eu rodeei o corpo dela com meus
braços para ajudá-la a levantar-se, beijei-a, mas ela se afastou.
— Sua boca está mais fria do que as minhas mãos — disse ela. Eu
tentei rir. No quarto, fechei as venezianas.
— Agora durma, amanhã nós conversamos.
— Sim — concordou ela —, é claro, mas você vem aqui me dar
boa-noite?
— É claro que sim, minha querida Bertha.
— Bertha não, esta noite não — disse ela.
— Mas de todas as noites é justamente nesta que você precisa ser
Bertha.
— Como você quiser — disse ela.
Quando entrei no quarto dela, notei o pó branco espalhado pelo
chão. Essa foi a primeira coisa que perguntei a ela: sobre o pó. Perguntei
o que era. Ela disse que era para afastar as baratas.
— Você não notou que nesta casa não tem nem baratas nem
centopeias? Se você soubesse como esses bichos são horríveis. — Ela
acendera todas as velas e o quarto estava cheio de sombras. Havia seis na
penteadeira e três na mesa ao lado da cama. A luz a transformou. Eu
nunca a tinha visto tão alegre e tão linda. Ela serviu duas taças de vinho
e me entregou uma, mas eu juro que foi antes de beber que eu tive
vontade de enterrar o rosto em seus cabelos como costumava fazer. Eu
disse:
— Nós estávamos deixando os fantasmas nos perturbarem. Por
que não podemos ser felizes?
— Christophine também entende de fantasmas, mas não é assim
que ela os chama.
— Ela não precisava ter feito comigo o que fez. Eu vou sempre
afirmar isso, ela não precisava ter feito aquilo. Quando me entregou a
taça, ela estava sorrindo. Eu me lembro de ter dito numa voz que não
era a minha que estava claro demais. Eu me lembro de ter apagado as
velas que estavam na mesa ao lado da cama e não me lembro de mais
nada. Não me lembro de mais nada daquela noite.
Acordei no escuro, depois de ter sonhado que estava enterrado
vivo, e, quando acordei, a sensação de sufocação persistiu. Havia alguma
coisa tapando a minha boca; cabelo com um perfume doce e forte. Eu o
tirei, mas mesmo assim não conseguia respirar. Fechei os olhos e fiquei
deitado, imóvel, por alguns segundos. Quando tornei a abri-los, vi as
velas consumidas até o fim naquela abominável penteadeira, e então
soube onde estava. A porta que dava para a varanda estava aberta e a
brisa era tão fria que eu vi que devia ser muito cedo, ainda de
madrugada. Eu também estava com frio, com um frio mortal, com dor e
com náuseas. Saí da cama sem olhar para ela, fui cambaleando até o meu
quarto de vestir e me olhei no espelho. Virei de costas na mesma hora.
Eu não consegui vomitar. Mas tive muitas ânsias de vômito.
Fui envenenado, pensei. Mas foi uma ideia tola, como uma criança
soletrando as letras de uma palavra que não sabe ler, e que, se soubesse,
não faria nenhum sentido. Eu estava tonto demais para ficar em pé e caí
para trás, em cima da cama, olhando para a colcha que era de um tom
de amarelo esquisito. Depois de contemplá-la por algum tempo,
consegui ir até a janela e vomitar. Tive a impressão de ficar horas
vomitando. Eu me encostava na parede e enxugava o rosto, e aí a náusea
e o vômito recomeçavam. Quando passou, fiquei deitado na cama, fraco
demais para me mexer.
Eu nunca fiz um esforço maior na minha vida do que fiz então.
Queria ficar ali deitado e dormir, mas me obriguei a levantar. Estava
fraco e tonto, mas não estava mais enjoado nem com dor. Vesti o meu
roupão e joguei água no rosto, depois abri a porta do quarto dela.
A luz fria batia nela e eu contemplei a curva triste dos seus lábios,
a linha entre suas sobrancelhas grossas, profunda como se tivesse sido
feita com uma faca. Enquanto estava olhando, ela se mexeu e esticou o
braço. Eu pensei friamente, sim, muito bonita, o pulso fino, a curva
doce do antebraço, o cotovelo redondo, a curva do ombro. Tudo ali, tudo
certo. Enquanto olhava, com ódio, o rosto dela suavizou-se, ficou outra
vez muito jovem, ela até pareceu sorrir. Um truque de luz, talvez. O que
mais poderia ser?
Ela pode acordar a qualquer momento, eu disse a mim mesmo. Eu
tenho que ser rápido. Sua roupa de baixo rasgada estava no chão, eu
puxei o lençol com delicadeza, como se estivesse cobrindo uma morta.
Uma das taças estava vazia, ela havia esvaziado a dela. Havia um pouco
de vinho no fundo da outra que estava sobre a penteadeira. Molhei o
dedo no vinho e provei. Estava amargo. Não tornei a olhar para ela, mas
saí para a varanda com a taça na mão. Hilda estava lá com uma vassoura
na mão. Eu coloquei um dedo na frente dos lábios e ela me olhou com
os olhos arregalados, depois me imitou, pondo um dedo na frente dos
lábios.
Assim que eu me vesti e saí da casa, comecei a correr.
Não me lembro com clareza daquele dia, para onde eu corri, se caí,
se chorei, se fiquei deitado, exausto. Mas me vi finalmente perto da casa
em ruínas e da laranjeira-brava. Ali, com a cabeça apoiada nos braços,
devo ter dormido, e quando acordei estava ficando tarde e o vento estava
gelado. Eu me levantei e encontrei o caminho que levava de volta para
casa. Consegui evitar todas as plantas rasteiras, e não tropecei nem uma
vez. Fui para o meu quarto de vestir e, se passei por alguém, não
enxerguei, e se alguém falou comigo, não escutei.
Havia uma bandeja sobre a mesa com uma jarra de água, um copo
e alguns bolos de peixe. Eu bebi quase toda a água, porque estava com
sede, mas não toquei na comida. Sentei na cama esperando, pois sabia
que Amélie viria, e sabia que ela ia dizer: “Sinto pena do senhor.”
Ela veio silenciosamente, descalça.
— Vou ver alguma coisa para o senhor comer — disse ela. Trouxe
frango frio, pão, frutas e uma garrafa de vinho, e eu tomei um copo sem
falar nada, depois outro. Ela partiu um pouco da comida, sentou-se ao
meu lado e me deu comida na boca como se eu fosse uma criança. Seu
braço, atrás da minha cabeça, estava quente, mas a parte de fora, quando
toquei, estava fresca, quase fria. Contemplei o seu rosto bonito e
inexpressivo, endireitei o corpo e afastei o prato. Então ela acrescentou:
— Tenho pena do senhor.
— Você já me disse isso antes, Amélie. Essa é a única música que
conhece?
Houve uma centelha de alegria nos seus olhos, mas, quando eu ri,
ela colocou a mão sobre a minha boca apreensivamente. Eu a puxei para
o meu lado e nós dois começamos a rir. É disso que eu mais me lembro
daquele encontro. Ela era tão alegre, tão natural, e deve ter passado um
pouco daquela alegria para mim, pois não tive um único momento de
remorso. E não fiquei sequer ansioso para saber o que estava
acontecendo por trás da fina parede que dividia o quarto em que
estávamos do quarto da minha mulher.
De manhã, é claro, o meu sentimento mudou.
Outra complicação. Impossível. E a pele dela era mais escura, seus
lábios eram mais grossos do que eu havia imaginado.
Ela estava dormindo profunda e silenciosamente, mas seus olhos
estavam alertas quando ela os abriu, e após alguns instantes, mostraram
uma alegria reprimida. Eu me sentia satisfeito e em paz, mas não alegre
como ela, não, por Deus, não alegre. Não senti a menor vontade de tocar
nela e ela percebeu isto, pois levantou-se imediatamente e começou a se
vestir.
— Esse vestido é muito gracioso — eu disse, e ela me mostrou as
diversas maneiras que ele podia ser usado, arrastando no chão, um pouco
levantado para mostrar a anágua de renda, ou bem acima dos joelhos.
Eu lhe disse que ia deixar a ilha em breve, mas que antes de partir
queria lhe dar um presente. Foi um presente generoso, mas ela o recebeu
sem um agradecimento e sem nenhuma expressão no rosto. Quando
perguntei o que pretendia fazer, ela disse:
— Faz muito tempo que eu sei o que eu quero fazer, e sei que não
vou conseguir aqui neste lugar.
— Você é bonita o suficiente para conseguir o que quiser — eu
disse.
— Sim — concordou ela com simplicidade. — Mas não aqui.
Ao que parecia, ela queria ir para junto da irmã, que era costureira
em Demerara, mas não ia ficar em Demerara, ela disse. Ela queria ir
para o Rio. Havia homens ricos no Rio.
— E quando é que você vai começar tudo isso? — perguntei,
achando graça.
— Vou começar agora. — Ela ia pegar um dos barcos de pesca em
Massacre e chegar na cidade.
Eu ri e brinquei com ela. Disse que ela estava fugindo da velha
Christophine.
Ela estava séria ao responder:
— Eu não desejo mal a ninguém, mas não vou ficar aqui.
Perguntei como ela iria até Massacre.
— Eu não quero nem cavalo nem mula — disse ela. — Minhas
pernas são suficientemente fortes para me levar.
Quando ela estava saindo, eu não pude resistir e perguntei, meio
triste, meio triunfante:
— Bem, Amélie, você ainda tem pena de mim?
— Sim — respondeu ela. — Eu tenho pena do senhor. Mas o meu
coração diz que eu devo ter pena dela também.
Ela fechou a porta com delicadeza. Eu me deitei e fiquei prestando
atenção no som que eu sabia que deveria escutar, os cascos do cavalo da
minha mulher afastando-se da casa.
Eu me virei e dormi, até que Baptiste me acordou com o café. O
rosto dele estava sombrio.
— A cozinheira está indo embora — anunciou.
— Por quê?
Ele sacudiu os ombros e fez um gesto com as duas mãos abertas.
Eu me levantei, olhei pela janela e a vi sair da cozinha, uma
mulher grandalhona. Ela não sabia falar inglês, ou dizia que não sabia.
Eu esqueci disso quando disse:
— Eu tenho que falar com ela. Que trouxa é aquela que ela está
carregando na cabeça?
— É o cobertor dela — disse Baptiste. — Ela vai voltar para
buscar o resto. Não adianta falar com ela. Ela não vai ficar nesta casa.
Eu ri.
— Você vai embora também?
— Não — respondeu Baptiste. — Eu sou o capataz aqui.
Notei que ele não disse nem “senhor" nem “patrão” ao falar
comigo.
— E a garota, Hilda?
— Hilda vai fazer o que eu mandar. Hilda vai ficar.
— Excelente — eu disse. — Então por que você está tão nervoso?
A sua patroa vai voltar logo.
Ele tornou a sacudir os ombros e resmungou, mas não sei se estava
falando sobre moral ou sobre o trabalho extra que ia ter que fazer, pois
ele resmungou em patuá.
Eu disse a ele para pendurar uma das redes da varanda debaixo dos
cedros, e lá eu passei o resto do dia.
Baptiste providenciou as refeições, mas pouco sorriu e não falou
nada, limitou-se a responder ao que eu perguntei. Minha mulher não
tinha voltado. Entretanto eu não estava nem solitário nem infeliz. Sol,
sono e a água fresca do rio eram suficientes. Eu escrevi uma carta
cautelosa para o Sr. Fraser no terceiro dia.
Eu disse a ele que estava pensando num livro sobre obeah e tinha
me lembrado do caso que ele contara. Será que ele tinha alguma ideia do
paradeiro da mulher? Ela ainda estava na Jamaica?
Esta carta foi enviada pelo mensageiro que passava duas vezes por
semana, e ele deve ter respondido imediatamente, porque eu recebi a
resposta em poucos dias:

Eu tenho pensado muito no senhor e em sua esposa. E


estava para escrever-lhe. Eu não me esqueci do caso. A
mulher em questão chamava-se Josephine, ou Christophine
Dubois, um nome assim, e tinha sido uma das empregadas
dos Cosway. Depois que saiu da cadeia, ela desapareceu, mas
todo mundo sabia que o Sr. Mason a ajudava. Ouvi dizer que
ela tinha ou que ganhara uma casinha e um pedaço de terra
perto de Granbois. Ela é inteligente a seu modo e sabe
expressar-se bem, mas eu não gostava nem um pouco do
jeito dela, e a considerava uma pessoa muito perigosa. Minha
mulher insistiu que ela fora embora para a terra dela, a
Martinica, e ficou muito aborrecida por eu ter mencionado o
assunto mesmo daquela forma tão indireta. Agora eu sei que
ela não voltou para a Martinica, então escrevi muito
discretamente para Hill, o inspetor de polícia branco da sua
cidade. Se ela morar perto do senhor e se meter a fazer
aquelas maluquices, informe-o imediatamente. Ele mandará
dois policiais até sua casa, e desta vez ela não se livrará com
facilidade. Eu garanto que...

Bem feito para você, Josephine, ou Christophine, eu pensei. Bem


feito para você, Fina.

Era aquela meia hora depois do pôr do sol, a meia hora azul, como eu a
chamava. O vento diminui, a luminosidade é muito bonita, as
montanhas com seus contornos bem nítidos, cada folha em cada árvore
clara e distinta. Eu estava sentado na rede, assistindo, quando
Antoinette passou a cavalo. Ela passou por mim sem me olhar,
desmontou e entrou em casa. Eu ouvi a porta do quarto dela bater e sua
campainha tocar violentamente. Baptiste veio correndo pela varanda. Eu
me levantei da rede e entrei na sala. Ele tinha aberto a arca e apanhado
uma garrafa de rum. Despejou um bocado numa garrafa de vidro, que
colocou numa bandeja com um copo.
— Para quem é isso? — perguntei. Ele não respondeu.
— Sem destino? — eu disse, e ri.
— Eu não quero saber de nada disso — disse ele.
— Baptiste! — gritou Antoinette com uma voz aguda.
— Sim, patroa. — Ele olhou diretamente para mim e saiu levando
a bandeja.
Quanto à velha, eu vi sua sombra antes de vê-la. Ela também
passou por mim, sem virar a cabeça. Também não entrou no quarto de
Antoinette, nem olhou na direção dele. Ela atravessou a varanda, desceu
a escada do outro lado e entrou na cozinha. Naquele curto espaço de
tempo, tinha ficado escuro e Hilda entrou para acender as velas. Quando
falei com ela, ela me lançou um olhar assustado e saiu correndo. Eu abri
a arca e olhei para as fileiras de garrafas lá dentro. Ali estava o rum que
mata você em cem anos, o conhaque, o vinho branco e o vinho tinto
contrabandeados, imagino, de St. Pierre, Martinica — a Paris das Índias
Ocidentais. Foi rum que eu escolhi para beber. Sim, ele era suave na
boca, eu esperei um segundo para a explosão de calor e luz em meu
peito, pela força e pelo calor correndo pelo meu corpo. Então
experimentei a porta do quarto de Antoinette. Ela cedeu ligeiramente.
Ela devia ter posto alguma peça de mobília encostada nela, aquela mesa
redonda, provavelmente. Tornei a empurrar e a abri o suficiente para vê-
la. Ela estava deitada de costas na cama. Seus olhos estavam fechados e
ela respirava pesadamente. Tinha puxado o lençol até o queixo. Numa
cadeira ao lado da cama estava a garrafa vazia, um copo com um resto de
rum e uma pequena campainha de bronze.
Fechei a porta e me sentei com os cotovelos na mesa, pois achei
que sabia o que ia acontecer e o que eu tinha que fazer. A sala estava
opressivamente quente, então apaguei a maioria das velas e esperei na
semiescuridão. Depois fui até a varanda para vigiar a porta da cozinha,
onde brilhava uma luz.
Logo a garota saiu, seguida por Baptiste. Ao mesmo tempo, a
campainha tocou no quarto. Ambos entraram na sala, e eu fui atrás.
Hilda acendeu todas as velas com um olhar assustado na minha direção.
A campainha continuou a tocar.
— Prepare uma dose bem forte para mim, Baptiste. É disso que
estou precisando.
Ele deu um passo para longe de mim e disse:
— A Srta. Antoinette...
— Baptiste, onde você está? — chamou Antoinette. — Por que
você não vem?
— Eu vou o mais rápido que posso — disse Baptiste. Mas quando
ele estendeu a mão para a garrafa, eu a afastei dele.
Hilda saiu correndo da sala. Baptiste e eu ficamos olhando um
para o outro. Achei que seus olhos grandes e saltados e sua expressão do
mais completo espanto eram cômicos.
Antoinette berrou do quarto:
— Baptiste! Christophine! Fina! Fina!
— Que komesse! — disse Baptiste. — Vou chamar Christophine.
Ele saiu correndo quase tão depressa quanto a garota pouco antes.
A porta do quarto de Antoinette abriu-se. Quando a vi, fiquei tão
chocado que não consegui dizer nada. O cabelo dela caía, desgrenhado,
dentro dos olhos, que estavam vermelhos e arregalados, o rosto estava
vermelho e parecia inchado. Ela estava descalça. Entretanto, quando
falou, sua voz era baixa, quase inaudível:
— Eu toquei a campainha porque estava com sede. Será que
ninguém ouviu?
Antes que eu pudesse impedir, ela se precipitou para a mesa e
agarrou a garrafa de rum.
— Não beba mais — eu disse.
— E que direito você tem de dizer o que eu devo ou não fazer?
Christophine! — Ela tornou a chamar, mas sua voz falseou.
— Christophine é uma velha má, e você sabe disso tão bem
quanto eu — eu disse. — Ela não ficará aqui por muito mais tempo.
— Ela não ficará aqui por muito mais tempo — repetiu ela, me
imitando —, nem você, nem você. Eu achei que você gostava tanto dos
negros — disse ela, ainda com aquela voz afetada —, mas isso é só mais
uma mentira. Você prefere as mocinhas marronzinhas, não é? Você
ofendeu os colonos e inventou histórias sobre eles, mas fez a mesma
coisa. Você mandou a moça embora mais depressa, e sem nenhum
dinheiro ou com menos dinheiro, e a diferença é só essa.
— Escravidão não era uma questão de gostar ou desgostar — eu
disse, tentando falar calmamente. — Era uma questão de justiça.
— Justiça. Eu já ouvi essa palavra. É uma palavra fria. Eu já a
experimentei — disse ela, ainda falando baixinho. — Eu a escrevi. Eu a
escrevi diversas vezes e ela sempre me pareceu uma grande mentira. Não
existe justiça. — Ela bebeu mais um pouco de rum e continuou: —
Minha mãe, de quem todos falam, que justiça ela teve? Minha mãe
sentada na sua cadeira de balanço, falando sobre cavalos mortos e
cavalheiros mortos e um demônio negro beijando a sua triste boca.
Como você beijou a minha — acrescentou ela.
A sala agora estava insuportavelmente quente.
— Vou abrir a janela para entrar um pouco de ar — eu disse.
— A noite vai entrar junto e a lua e o perfume das flores que você
tanto detesta.
Quando eu me virei da janela, ela estava bebendo de novo.
— Bertha — eu disse.
— O meu nome não é Bertha. Você está tentando transformar-me
em outra pessoa, chamando-me por outro nome. Eu sei, isso também é
obeah.
Lágrimas escorreram dos seus olhos.
— Se o meu pai, o meu pai de verdade, estivesse vivo, você não
voltaria depressa para cá depois que ele tivesse terminado com você. Se
ele estivesse vivo. Sabe o que foi que você me fez? Não é a garota, não é.
Mas eu amava este lugar e você o transformou num lugar que eu odeio.
Eu costumava achar que se perdesse tudo na vida, ainda teria isto aqui, e
agora você estragou isto também. Aqui é apenas mais um lugar onde eu
fui infeliz, e todas as outras coisas não são nada comparadas com o que
aconteceu aqui. Eu agora odeio isto aqui tanto quanto odeio você, e
antes de morrer eu vou mostrar para você o quanto eu o odeio.
Então, para minha surpresa, ela parou de chorar e disse:
— Ela é assim tão mais bonita do que eu? Você não me ama nem
um pouco?
— Não, não amo — eu disse (ao mesmo tempo lembrando de
Amélie dizendo: “Você gosta do meu cabelo? Não é mais bonito do que
o dela?”). — Não neste momento.
Ela riu. Uma gargalhada louca.
— Está vendo. Você é assim. Uma pedra. Mas é bem feito para
mim, porque tia Cora disse para eu não me casar com ele. Nem que ele
estivesse forrado de diamantes. E ela me disse muitas outras coisas. Você
está falando da Inglaterra, eu disse, e quanto ao vovô passando o copo
por cima da garrafa de água e as lágrimas correndo pelo seu rosto por
todos os amigos mortos, que ele nunca mais iria ver. Isso nunca teve
nada a ver com a Inglaterra, ela disse. Pelo contrário:

Um pé de pau e uma perna de pau


Para Charlie sobre a água.
Charlie, Charlie

— ela cantou numa voz rouca. E ergueu a garrafa para beber de


novo.
Eu disse, e minha voz não estava muito calma:
— Não.
Consegui segurar o pulso dela com uma das mãos e a garrafa de
rum com a outra, mas, quando senti seus dentes no meu braço, larguei a
garrafa. O cheiro tomou conta da sala. Mas agora eu estava zangado, e
ela percebeu. Ela quebrou outra garrafa contra a parede e ficou com o
vidro quebrado na mão, fitando-me com um olhar assassino.
— Se você me tocar uma única vez, vai ver se eu sou uma covarde
igual a você.
Então ela amaldiçoou tudo em mim, meus olhos, minha boca,
cada membro do meu corpo, e era como um sonho, eu ali naquela sala
grande e quase sem móveis, com as velas bruxuleando e aquela estranha
de olhos vermelhos e cabelos desgrenhados, que era minha esposa,
gritando obscenidades para mim. Foi no meio deste pesadelo que eu
ouvi a voz calma de Christophine:
— Cala a boca e fica quieta. E não chora. Chorar não adianta com
ele. Eu já disse isso antes para você. Chorar não adianta.
Antoinette atirou-se no sofá e continuou a soluçar. Christophine
olhou para mim e seus olhos pequeninos estavam muito tristes.
— Por que o senhor fez isso, hein? Por que não levou aquela
garota sem-vergonha, que não vale nada, para outro lugar? Mas ela gosta
de dinheiro do mesmo jeito que o senhor gosta de dinheiro, deve ter
sido por isso que se juntaram. São da mesma laia.
Eu não pude suportar mais, tornei a sair da sala e fui me sentar na
varanda.
Meu braço estava sangrando e doendo, e eu enrolei o lenço nele,
mas parecia que tudo à minha volta era hostil. O telescópio afastou-se
de mim e disse não me toque. As árvores pareciam ameaçadoras e suas
sombras movendo-se devagar no chão me ameaçavam. A ameaça verde.
Eu a vinha sentindo desde a primeira vez em que vi esse lugar. Não
havia nada que eu conhecesse, nada que pudesse confortar-me.
Fiquei escutando. Christophine estava falando baixinho. Minha
mulher chorava. Então uma porta se fechou. Elas tinham ido para o
quarto. Alguém estava cantando “Ma belle ka di”, ou seria a canção
sobre um dia e mil anos? Mas o que quer que estivessem dizendo ou
cantando, era perigoso. Eu precisava proteger-me. Caminhei devagar
pela varanda escura. Pude ver Antoinette estendida na cama, imóvel.
Como uma boneca. Mesmo quando me ameaçou com a garrafa, ela dava
a impressão de ser uma marionete. “Ti moun”, eu ouvi, e “Doudou che”,
e a ponta de um lenço de cabeça formou um dedo na parede. “Do do
l’enfant do.” Ouvindo, eu comecei a sentir sono e frio.
Arrastei-me de volta para a sala iluminada por velas, que ainda
cheirava fortemente a rum. Apesar disso, abri a arca e peguei outra
garrafa. Era nisso que eu estava pensando quando Christophine entrou.
Eu estava pensando em tomar uma última dose, bem forte, no meu
quarto, trancar as duas portas e dormir.
— Espero que o senhor esteja satisfeito, espero que esteja bem
satisfeito — disse ela —, e não venha com suas mentiras para cima de
mim. Eu sei muito bem o que o senhor fez com aquela moça. Sei
melhor do que ninguém. E também não pense que eu tenho medo do
senhor.
— Então ela foi correndo fazer queixa de que eu a tinha
maltratado, não foi? Eu devia ter adivinhado.
— Ela não me contou nada — disse Christophine. — Nada
mesmo. É sempre a mesma coisa. Ninguém pode ter orgulho, só o
senhor. Ela tem mais orgulho que o senhor, e não disse nada. Eu a vi
parada na porta da minha casa, com aquela expressão no rosto, e vi que
alguma coisa ruim tinha acontecido com ela. Eu sabia que tinha que agir
depressa, e foi o que eu fiz.
— Você parece mesmo ter agido. E o que foi que fez antes de
trazê-la de volta nas condições em que ela está agora?
— O que eu fiz! Cuidado! Não me provoque mais do que eu já me
sinto provocada. É melhor eu nem contar. Quer saber o que foi que eu
fiz? Eu disse: “Doudou, se você está com problema, fez bem em me
procurar.” E dei um beijo nela. Foi quando eu dei o beijo que ela
começou a chorar, não antes. Ela estava segurando o choro havia muito
tempo, eu acho. Então eu a deixei chorar. Essa foi a primeira coisa.
Deixar chorar, para desafogar o coração. Quando ela não tinha mais o
que chorar, eu dei a ela uma xícara de leite, ainda bem que eu tinha um
pouco de leite em casa. Ela não quis comer, não quis falar. Então eu
disse: “Deita na cama, doudou, e tenta dormir, eu posso muito bem
dormir no chão, não me importo.” Ela não ia conseguir dormir sem
ajuda, isso é certo, mas eu consegui que ela dormisse. Foi isso que eu fiz.
Quanto ao que o senhor fez, um dia o senhor vai pagar por isso.
“Quando elas ficam desse jeito”, ela disse, “primeiro tem que
chorar, depois têm que dormir. Não me fale em médico, eu sei mais do
que qualquer médico. Eu despi Antoinette para ela dormir mais à
vontade; foi aí que eu vi como o senhor foi bruto com ela, hein?”
Nesse ponto, ela riu — uma risada alegre e sacudida.
— Tudo aquilo é sem importância, é nada. Se o senhor visse o que
eu vejo neste lugar com o facão afiado e brilhando num canto, não faria
essa cara por tão pouco. O senhor só fez com que ela o amasse mais, se
era isso que queria. Não é por isso que ela tinha aquela expressão de
morte no rosto. Ah, não.
“Uma noite”, ela continuou, “eu tive que ficar segurando o nariz de
uma mulher porque o marido quase o tinha decepado com o facão. Eu
fiquei segurando, mandei um menino ir correndo buscar o médico, e o
médico veio galopando de madrugada para costurar a mulher. Quando
terminou, ele me disse: ‘Christophine, você tem uma grande presença de
espírito.’ Foi isso que ele me disse. Nessa altura o homem estava
chorando como um bebê. Ele disse: ‘Doutor, eu não queria fazer isso.
Simplesmente aconteceu.’ ‘Eu sei, Rupert’, o médico disse, ‘mas não
pode acontecer de novo. Por que você não guarda o maldito facão no
outro quarto?’, ele disse. Eles só tinham dois cômodos pequenos, então
eu disse: ‘Não, doutor, ia ser muito pior ao lado da cama. Em pouco
tempo eles iam fazer picadinho um do outro.’ O médico riu muito. Ah,
ele era um bom médico. Quando terminou de costurar o nariz da
mulher, eu não vou dizer que estava igual ao que era antes, mas não se
notava muito. O nome do homem era Rupert. Já reparou que tem um
monte de Rupert por aqui? Um é príncipe Rupert, e o que faz música é
Rupert the Rine. O senhor já o viu? Ele vende as músicas dele lá na
cidade, perto da ponte. Foi na cidade que eu morei quando deixei a
Jamaica pela primeira vez. É um bonito nome, hein — Rupert — mas
de onde foi que tiraram esse nome? Acho que foi de antigamente.
“Aquele médico era um médico de antigamente. Esses novos, eu
não gosto. A primeira palavra que eles dizem é polícia. Polícia — isso é
uma coisa que eu não gosto.”
— Tenho certeza que não — eu disse. — Mas você ainda não me
contou o que aconteceu quando a minha mulher esteve na sua casa.
Nem o que foi que você fez exatamente.
— Sua mulher! — disse ela. — O senhor me faz rir. Eu não sei
tudo o que o senhor fez, mas sei de algumas coisas. Todo mundo sabe
que o senhor casou com ela pelo dinheiro e ficou com tudo. E agora
quer acabar com ela porque tem inveja dela. Ela é muito melhor do que
o senhor, ela tem sangue melhor nela e não liga para dinheiro, que
dinheiro não é nada para ela. Ah, eu vi isso da primeira vez que olhei
para o senhor. O senhor era jovem, mas já era insensível. O senhor
enganou a menina. Fez ela pensar que era capaz de ofuscar o próprio sol.
Foi assim, eu pensei. Foi assim mesmo. Mas é melhor não dizer
nada. Então, com certeza os dois irão embora e será a minha vez de
dormir — um sono longo e profundo, e muito distante.
— E então — continuou ela com sua voz de juiz — o senhor fez
amor com ela até ela ficar bêbada de amor, nenhum rum seria capaz de
deixá-la tão bêbada, até não poder mais viver sem isso. É ela que não
pode mais ver o sol agora. Só consegue ver o senhor. Mas tudo o que o
senhor quer é acabar com ela.
(Não da forma como você pensa, pensei.)
— Mas ela resistiu, hein? Ela resistiu.
(Sim, ela resistiu. Uma pena.)
— Então o senhor finge acreditar em todas as mentiras que aquele
maldito filho da mãe contou.
(Aquele maldito filho da mãe contou.)
Agora cada palavra que ela dizia ecoava alto em minha cabeça.
— Para o senhor ter uma desculpa para largá-la sozinha.
(Largá-la sozinha.)
— Sem dizer por quê.
(Por quê?)
— Amor nunca mais, é?
(Amor nunca mais.)
— E foi então — disse eu friamente — que você entrou, não foi?
Você tentou me envenenar.
— Envenenar o senhor? Mas este homem está louco! Ela veio me
procurar e pediu que eu fizesse alguma coisa para o senhor voltar a amá-
la, e eu disse que não me envolvo com isso para béké. Eu disse a ela que
era bobagem.
(Bobagem, bobagem.)
— E, mesmo não sendo bobagem, é forte demais para béké.
(Forte demais para béké. Forte demais.)
— Mas ela chorou e me implorou.
(Ela chorou e me implorou.)
— Então eu dei a ela alguma coisa para amor.
(Para amor.)
— Mas o senhor não a ama. Tudo o que o senhor quer é acabar
com ela. E isso ajudou o senhor a acabar com ela.
(Acabar com ela.)
— Ela me contou que no meio de tudo isso o senhor começou a
chamá-la de nomes. Marionette. Ou uma palavra parecida.
— Sim, eu me lembro disso.
(Marionette, Antoinette, Marionetta, Antoinetta.)
— Essa palavra significa boneca, não é? Porque ela não fala. O
senhor quer forçá-la a chorar e a falar.
(Forçá-la a chorar e a falar.)
— Mas não conseguiu. Então inventou outra coisa. Foi se divertir
com aquela garota sem-vergonha no quarto ao lado, e falaram e riram e
fizeram amor de modo que ela ouvisse tudo. O senhor queria que ela
ouvisse.
Sim, não foi por acaso. Eu quis mesmo.
(Fiquei acordado a noite inteira, muito depois de eles terem
dormido, e assim que amanheceu eu me levantei, me vesti e selei o
Preston. E vim procurar você. Ah, Christophine. Fina, Fina, me ajuda.)
— Você ainda não me disse exatamente o que fez com minha...
com Antoinette.
— Sim, eu vou dizer. Eu a fiz dormir.
— O quê? O tempo todo?
— Não, não. Eu a acordava para se sentar ao sol, para tomar
banho no rio. Mesmo que ela estivesse caindo de sono. Eu preparei uma
sopa bem forte. Eu dei leite a ela, o que tinha, e frutas que colhi das
minhas árvores. Quando ela se recusava a comer, eu dizia: “Coma por
mim, doudou.” E ela comia tudo, depois tornava a dormir.
— E por que foi que você fez tudo isso?
Houve um longo silêncio. Então ela disse:
— Era melhor ela dormir. Ela precisava dormir enquanto eu
trabalhava para ela, para fazê-la ficar boa de novo. Mas não vou falar
disso com o senhor.
— Infelizmente a sua cura não foi bem-sucedida. Você não a
deixou melhor. Você a deixou pior.
— Eu consegui sim — disse ela zangada. — Eu consegui. Mas
fiquei com medo de que ela dormisse demais, por tempo demais. Ela
não é béké como o senhor, mas é béké, e não como nós também. Há
manhãs em que ela não consegue acordar, ou, se acorda, é como se ainda
estivesse dormindo. Eu não quero dar a ela mais nada do que... do que
dei. Então — continuou ela depois de outra pausa —, eu deixei que ela
tomasse rum. Eu sabia que isso não ia fazer mal a ela. Não muito. Assim
que tomou o rum, ela começou a gritar que tinha que voltar para o
senhor, e eu não consegui acalmá-la. Ela disse que viria mesmo que eu
não viesse com ela, mas implorou que eu viesse. E eu ouvi bem quando o
senhor disse a ela que não a amava, com grande calma e frieza o senhor
falou, e desfez todo o bem que eu tinha feito.
— O bem que você fez! Estou cansado da sua maluquice,
Christophine. Você parece ter permitido que ela se embriagasse com
rum vagabundo, e agora ela está um caco. Eu mal a reconheço. Não sei
por que você fez isso, suponho que por me odiar. E já que você ouviu
tanta coisa, talvez tenha ouvido tudo o que ela admitiu, se vangloriou
até, e os nomes feios de que me chamou. A sua doudou sem dúvida sabe
dizer obscenidades.
— Pois eu digo que não. Nada disso tem importância. O senhor a
deixou tão infeliz que ela não sabe o que está dizendo. O pai dela, o
velho Sr. Cosway, praguejava como um louco, ela aprendeu isto com ele.
E uma vez, quando era pequena, ela fugiu para ficar junto dos
pescadores e dos marinheiros no cais do porto. Aqueles homens! — Ela
virou os olhos para cima. — Nunca alguém acharia que eles um dia
tinham sido bebês inocentes. Ela voltou imitando eles. Ela não entende
o que diz.
— Acho que ela entendeu cada palavra, e teve a intenção de dizer
tudo o que disse. Mas você tem razão, Christophine, nada disso tem
importância. Não foi nada. Não havia nenhum facão aqui, então
ninguém saiu ferido. Ninguém saiu prejudicado. Tenho certeza de que
você se encarregou disso por mais bêbada que a tenha deixado.
— O senhor é um bocado cruel para uma pessoa tão jovem.
— Essa é a sua opinião.
— Eu disse isso a ela. Eu avisei a ela. Eu disse: esse não é um
homem que irá ajudá-la quando a vir alquebrada. Só os melhores fazem
isso. Os melhores, e às vezes os piores.
— Mas sem dúvida você me acha um dos piores, não?
— Não — disse ela com indiferença —, para mim o senhor não é
nem dos melhores nem dos piores. O senhor é... — ela sacudiu os
ombros — o senhor não irá ajudá-la. Eu disse isso a ela.
Quase todas as velas tinham apagado. Ela não acendeu outras —
nem eu. Nós ficamos sentados quase no escuro. Eu devia interromper
esta conversa inútil, pensei, mas não podia parar de ouvir, hipnotizado,
aquela voz escura vindo da escuridão:
— Eu conheço essa moça. Ela nunca mais vai pedir amor ao
senhor, ela vai preferir morrer. Mas eu, Christophine, imploro ao
senhor. Ela o ama tanto. Ela está sedenta do senhor. Espere, e talvez
possa amá-la de novo. Um pouco, como ela diz. Um pouco. O pouco
que o senhor é capaz de amar.
Eu sacudi a cabeça e continuei a sacudi-la mecanicamente.
— Tudo o que aquele filho da mãe amarelo contou para o senhor é
mentira. E ele não é um Cosway. A mãe dele era uma mulher sem
escrúpulos e tentou enganar o velho, mas o velho não se deixou enganar.
“Um a mais ou a menos”, ele dizia, e ria às gargalhadas. Ele estava
errado. Quanto mais ele fazia por aquela gente, mais ela o odiava. O
ódio que existe naquele homem, Daniel, ele não pode ter paz com tanto
ódio. Se eu soubesse que o senhor vinha para cá, eu teria impedido. Mas
vocês se casaram depressa, deixaram a Jamaica depressa. Não houve
tempo.
— Ela me disse que tudo o que ele contou era verdade. Ela não
estava mentindo naquela hora.
— Como o senhor a machucou, ela quis machucar de volta, foi por
isso.
— E disse que a mãe dela era louca. Outra mentira?
Christophine não respondeu imediatamente. Quando o fez, sua
voz não estava mais tão calma:
— Eles a levaram a isso. Quando ela perdeu o filho, perdeu
temporariamente o juízo, e eles a isolaram. Disseram que estava maluca,
agiram como se estivesse maluca. Perguntas, perguntas. Mas nenhuma
palavra gentil, nenhum amigo, e o marido foi embora, abandonou-a.
Não me deixavam vê-la. Eu tentei, mas não consegui. Não deixavam
Antoinette vê-la. No fim, louca, eu não sei, ela desistiu, não ligava mais
para nada. Aquele homem que estava encarregado dela fazia sexo com
ela quando tinha vontade e a mulher dele contava. Aquele homem e
outros. Por isso eles a guardavam. Ah, Deus não existe.
— Só os seus espíritos — disse eu a ela.
— Só os meus espíritos — disse ela com firmeza. — Na sua Bíblia
está escrito que Deus é um espírito, lá não diz que ele é o único. De jeito
nenhum. Eu me entristeço com o que aconteceu com a mãe dela, e não
posso deixar que aconteça de novo. O senhor a chama de boneca? Ela
não satisfaz o senhor? Experimente de novo, acho que ela agora vai
satisfazê-lo. Se o senhor a abandonar, eles vão destruí-la, como fizeram
com a mãe dela.
— Eu não vou abandoná-la — eu disse cansadamente. — Vou
fazer tudo o que puder por ela.
— O senhor vai amá-la como antes?
(Dê um beijo por mim na sua mulher; minha irmã. Amá-la como
eu a amei — ah, sim, eu a amei. Como posso prometer isso?) Eu não
disse nada.
— Ela é que não vai ficar satisfeita. Ela é uma moça crioula, e tem
o sol nela. Diga a verdade. Ela não foi à sua casa, nesse lugar chamado
Inglaterra que eu já ouvi falar tanto; ela não foi à sua linda casa para
implorar ao senhor para casar com ela. Não, foi o senhor que veio de tão
longe até a casa dela, foi o senhor que implorou para ela casar. E ela ama
o senhor e deu tudo o que tinha para o senhor. Agora o senhor diz que
não a ama e acaba com ela. O que é que vai fazer com o dinheiro dela,
hein? — A voz dela ainda estava calma, mas ao falar cm “dinheiro”, ela
sibilou como uma cobra.
Eu pensei: é claro, esse é o motivo dessa falação toda. Eu não me
senti mais tonto, nem cansado, nem hipnotizado, e sim alerta, pronto
para me defender.
Por que, ela perguntou, eu não devolvia metade do dote de
Antoinette e ia embora da ilha — “Vá embora das Índias Ocidentais se
não a quer mais”.
Eu perguntei quanto dinheiro exatamente ela tinha em mente,
mas ela foi vaga a respeito.
— O senhor resolve isso com os advogados.
— E o que acontecerá com ela então?
Ela, Christophine, tomaria conta de Antoinette (e do dinheiro
também, é claro).
— Vocês duas ficarão aqui? — Torci para a minha voz estar tão
macia quanto a dela.
Não, elas iriam para a Martinica. Depois, para outros lugares.
— Eu quero ver o mundo antes de morrer.
Talvez por eu estar tão calmo e composto ela tenha acrescentado
maliciosamente:
— Ela pode casar com outra pessoa. Esquecer o senhor e viver
feliz.
Uma onda de ciúme e raiva me inundou. Ah, não, ela não vai
esquecer. Eu ri.
— Está rindo de mim? Por que está rindo de mim?
— É claro que eu estou rindo de você, sua velha ridícula. Eu não
pretendo mais discutir meus assuntos particulares com você. Nem com a
sua patroa. Eu ouvi tudo o que você tinha a dizer e não acredito em
você. Agora, diga adeus para Antoinette, e depois vá embora. Você é
culpada por tudo o que aconteceu aqui, portanto não volte.
Ela endireitou os ombros e pôs as mãos nas cadeiras.
— Por que o senhor está me mandando embora? Esta casa é da
mãe da Srta. Antoinette, e agora pertence a ela. Quem é o senhor para
me mandar embora?
— Posso garantir que a casa agora é minha. Ou você vai ou eu
chamo os homens para botarem você para fora.
— O senhor acha que algum homem daqui vai tocar em mim?
Eles não são idiotas como o senhor para porem as mãos em mim.
— Então eu vou chamar a polícia, estou avisando. Deve haver
alguma lei e ordem mesmo nesta ilha abandonada.
— Não tem polícia aqui — disse ela. — Nem correntes, nem
trabalhos forçados, nem solitária. Este é um país livre e eu sou uma
mulher livre.
— Christophine, você morou anos na Jamaica e conhece o Sr.
Fraser, magistrado em Spanish Town, muito bem. Eu escrevi para ele
sobre você. Quer escutar o que ele respondeu? — Ela ficou olhando para
mim. Eu li alto o final da carta de Fraser: “Escrevi muito discretamente
para Hill, o inspetor de polícia branco da sua cidade. Se ela morar perto
do senhor e se meter a fazer aquelas maluquices, informe-o
imediatamente. Ele mandará dois policiais até a sua casa, e desta vez ela
não se livrará com facilidade...” Você deu o veneno para a sua patroa e
ela o colocou no meu vinho?
— Eu já disse, o senhor está dizendo bobagem.
— Vamos ver, eu guardei um pouco daquele vinho.
— Eu disse a ela. Nunca funciona para béké. Sempre traz
problemas... Então o senhor vai me mandar embora e ficar com todo o
dinheiro dela. E o que vai fazer com ela?
— Não vejo por que deveria contar-lhe os meus planos. Eu
pretendo voltar para a Jamaica para consultar os médicos de Spanish
Town e o irmão dela. Vou seguir o conselho deles. É só isso que eu
pretendo fazer. Ela não está bem.
— O irmão dela! — Ela cuspiu no chão. — Richard Mason não é
irmão dela. O senhor acha que pode me enganar? O senhor quer o
dinheiro dela, mas não a quer. O senhor está pensando em fingir que ela
está louca. Eu sei disso. Os médicos vão dizer o que o senhor mandar.
Aquele homem, Richard, vai dizer o que o senhor quiser que ele diga,
alegre e satisfeito, eu sei. Ela vai ficar igual à mãe dela. O senhor está
fazendo isso por dinheiro? Então o senhor é tão ruim quanto Satanás!
Eu disse alto e violentamente:
— E você pensa que eu queria tudo isto? Eu daria a vida para
desfazer isto. Eu daria os meus olhos para nunca ter visto este lugar
abominável.
Ela riu.
— Esta é a primeira verdade que o senhor diz. O senhor escolhe o
que vai dar, é? Então escolhe. O senhor se meteu numa coisa que não
sabe o que é. — Ela começou a resmungar consigo mesma. Não em
patuá. Nessa altura eu já conhecia o som do patuá.
Ela é tão louca quanto a outra, pensei, e me virei para a janela.
Os empregados estavam parados, em grupo, debaixo do craveiro.
Baptiste, o menino que ajudava com os cavalos e a garotinha, Hilda.
Christophine estava certa. Eles não tinham a menor intenção de se
envolver naquela história.
Quando olhei para ela, seu rosto era uma máscara e ela me olhava
sem medo. Eu tinha que admitir que ela era uma lutadora. Contra a
minha vontade, repeti:
— Você quer dizer adeus a Antoinette?
— Eu dei a ela alguma coisa para dormir — nada que possa fazer
mal. Não vou acordá-la para dizer coisas tristes. Deixo isso para o
senhor.
— Você pode escrever para ela — eu disse inflexivelmente.
— Ler e escrever eu não sei. Outras coisas eu sei.
Ela foi embora sem olhar para trás.

Eu tinha perdido o sono inteiramente. Fiquei andando de um lado para


o outro da sala e senti um formigamento na ponta dos dedos. Ele correu
pelos meus braços e alcançou o coração, que começou a bater muito
depressa. Enquanto caminhava, eu falava sozinho. Recitei a carta que
pretendia escrever.
“Agora eu sei que o senhor planejou isto porque queria livrar-se de
mim. O senhor não sentia nenhum amor por mim. Nem o meu irmão.
O seu plano deu certo porque eu era jovem, tolo, vaidoso, crédulo.
Acima de tudo porque eu era jovem. O senhor foi capaz de fazer isso
comigo...”
Mas eu não sou mais jovem agora, pensei, então parei de andar e
bebi. Este rum é mesmo suave como leite de mãe ou bênção de pai.
Eu podia imaginar sua expressão, caso eu mandasse a carta e ele a
lesse.
Eu escrevi:
Caro pai,
Estaremos partindo desta ilha com destino à Jamaica
muito em breve. Circunstâncias inesperadas, pelo menos
inesperadas para mim, forçaram-me a tomar esta decisão.
Estou certo de que o senhor sabe ou pode adivinhar o que
aconteceu, e estou certo de que irá concordar que quanto
menos falar com as pessoas sobre os meus problemas
pessoais, especialmente o meu casamento, melhor. Falo tanto
no seu interesse quanto no meu. Tornarei a entrar em
contato. Muito em breve, eu espero.

Em seguida, escrevi para a firma de advogados com a qual eu tinha


lidado em Spanish Town. Disse que queria alugar uma casa mobiliada
não muito próxima à cidade, espaçosa o suficiente para permitir dois
conjuntos separados de aposentos. Também disse a eles para
contratarem uma equipe de empregados, aos quais eu estava disposto a
pagar muito bem — desde que eles mantivessem a boca fechada, eu
pensei —, desde que fossem discretos, escrevi. Minha esposa e eu
chegaríamos na Jamaica dentro de mais ou menos uma semana, e
esperávamos encontrar tudo providenciado.
Enquanto eu escrevia esta carta, um galo cantava insistentemente
do lado de fora. Peguei o primeiro livro que encontrei e atirei nele, mas
ele se afastou alguns metros e continuou a cantar.
Baptiste apareceu, olhando na direção do quarto silencioso de
Antoinette.
— Você tem mais deste famoso rum? — perguntei.
— Tem muito rum — disse ele.
— Ele tem mesmo cem anos de idade?
Ele fez sinal que sim, indiferentemente. Cem anos, mil anos é
tudo o mesmo para le bon Dieu e para Baptiste também.
— Por que esse maldito galo não para de cantar?
— Está anunciando que o tempo vai mudar.
Como os olhos dele estavam fixos no quarto, eu gritei para ele:
— Dormindo, dormi, dormi!
Ele sacudiu a cabeça e saiu.
Ele me olhou com a cara fechada, e eu também fechei a cara ao
reler a carta que tinha escrito para os advogados. Não importa quanto eu
pagasse aos empregados jamaicanos, eu jamais conseguiria comprar
discrição. Eles fariam fofocas a meu respeito, inventariam canções a meu
respeito (mas eles inventam canções a respeito de tudo e de todos. Você
precisa ouvir a que eles fizeram sobre a mulher do governador). Aonde
quer que eu fosse, as pessoas falariam de mim. Tomei um pouco mais de
rum e, enquanto bebia, desenhei uma casa cercada de árvores. Uma casa
grande. Dividi o terceiro andar em quartos e num dos quartos desenhei
uma mulher em pé — um rabisco infantil, uma bolinha para a cabeça,
uma maior para o corpo, um triângulo para a saia, linhas oblíquas para
os braços e pés. Mas era uma casa inglesa.
Árvores inglesas. Eu imaginei se algum dia tornaria a ver a
Inglaterra.

Sob os oleandros... Eu fiquei olhando para as montanhas escondidas e


para a neblina concentrada em suas faces. Está fresco hoje; fresco, calmo
e nublado como um verão inglês. Mas é um lugar bonito em qualquer
clima; por mais que eu viaje, nunca verei lugar mais bonito.
Os meses de furacão não estão muito distantes, pensei, e vi a
árvore enterrar as suas raízes mais profundamente, preparando-se para
enfrentar o vento. Inútil. Se o vento vier, todas elas serão derrubadas.
Algumas das palmeiras-reais continuam em pé (ela me disse). Sem
galhos, como grandes colunas marrons, ainda assim elas continuam em
pé — desafiando o vento. Não é à toa que elas são chamadas de reais. Os
bambus escolhem um caminho mais fácil, eles se inclinam até o chão e
ficam ali, gemendo, estalando, implorando piedade. O vento passa,
desdenhoso, sem se importar com essas coisas abjetas. (Deixe-as viver.)
Uivando, gritando, rindo, o vento selvagem passa.
Mas tudo isso só vai acontecer daqui a alguns meses. Agora está
fazendo um verão inglês, tão fresco, tão cinzento. Entretanto eu penso
na minha vingança e em furacões. Palavras atropelam-se em minha
cabeça (ações também). Palavras. Pena é uma delas. Ela não me dá
sossego.
Pena como de um recém-nascido nu no meio da ventania.
Eu li isso há muito tempo, quando era jovem — agora eu detesto
poetas e poesia. Assim como odeio música, que tanto amava antes.
Cante suas canções, Rupert the Rine, mas eu não as ouvirei, embora
digam que você tem uma voz doce...
Pena. Ela não existe para mim? Amarrado a uma louca pelo resto
da vida — uma bêbada mentirosa e louca —, igual à mãe dela.
“Ela ama tanto o senhor, tanto. Ela está sedenta do senhor. Ame-a
um pouco, como ela diz. É só o que o senhor pode amar — um pouco. ”
Pode rir por último, demônio. Você pensa que eu não sei? Ela está
sedenta de qualquer um — não de mim...
Ela vai perder aquele cabelo negro, e rir e elogiar e bajular (uma
moça louca. Não vai fazer diferença para ela quem ela está amando). Ela
vai gemer e gritar e se entregar como nenhuma mulher sã faria — ou
poderia. Ou poderia. Depois vai ficar deitada, imóvel, tão imóvel quanto
este dia nublado. Uma louca que sempre sabe a hora. Mas nunca faz.
Até ter bebido tanto, ter aprontado tantas vezes que os vagabundos
vão rir dela. E eu tenho que presenciar isso — eu? Não, eu vou ser mais
esperto.
“Ela ama tanto o senhor, tanto. Tente mais uma vez. ”
Eu digo que ela não ama ninguém, ou ama a qualquer um. Eu não
poderia tocar nela. Exceto da forma como o furacão irá tocar nesta
árvore — e quebrá-la. Você disse que eu fiz isso? Não. Aquilo foi
causado pela violência do amor. Agora eu o farei.
Ela não vai mais rir sob o sol. Ela não vai mais se enfeitar e sorrir
para si mesma naquele maldito espelho. Tão confiante, tão satisfeita.
Criatura vaidosa e tola. Feita para amar? Sim, mas não vai ter
nenhum amante, porque eu não a quero e ela não verá mais ninguém.
A árvore estremece. Estremece e reúne todas as suas forças. E
espera.
(Tem um vento fresco soprando agora um vento frio. Será que ele
traz o recém-nascido para enfrentar a fúria dos furacões?)
Ela disse que amava este lugar. Pois ela nunca mais irá vê-lo. Eu
vou ver se ela derrama uma lágrima, uma lágrima humana. Não aquele
rosto vazio cheio de ódio. Vou escutar... para ver se ela diz até logo, ou
talvez adieu. Adieu — como naquelas canções antigas que ela cantava.
Sempre adieu (e todas as canções dizem isso). Se ela também disser isto,
ou chorar, eu a tomarei nos braços, a minha doida. Ela é louca, mas é
minha, minha. Que me importam os deuses ou demônios ou o próprio
Destino. Se ela sorrir ou chorar ou fizer as duas coisas. Para mim.
Antoinette — eu também posso ser meigo. Esconde seu rosto.
Esconda-se, mas em meus braços. Logo você verá quanta meiguice.
Minha doida. Minha menina louca.
Temos aqui um dia nublado para ajudá-la. Nada de sol impudente.
Nada de sol... nada de sol. O tempo mudou.
Baptiste estava esperando com os cavalos selados. O garoto estava
parado perto do craveiro, e próximo a ele a cesta que ele deveria carregar.
Essas cestas são leves e à prova d’água. Eu tinha resolvido usar uma para
levar umas poucas roupas — a maioria dos nossos pertences deveria
seguir dentro de um ou dois dias. Uma carruagem estaria esperando por
nós em Massacre. Eu tinha providenciado tudo.
Ela estava lá na ajoupa; cuidadosamente vestida para a viagem, eu
notei, mas com o rosto vazio, sem expressão alguma. Lágrimas? Não
existe uma única lágrima nela. Bem, vamos ver. Será que ela lembra de
alguma coisa, eu pensei, será que sente alguma coisa? (Aquela nuvem
azul, aquela sombra, e a Martinica. Está claro agora... Ou os nomes das
montanhas. Não, montanhas não. Morne, ela diria. “Montanha é uma
palavra feia — para eles.” Ou as histórias sobre Jack Spaniards. Há
muito tempo. E quando ela disse: “Olha! A Gota de Esmeralda! Isso
traz boa sorte.” Sim, por um momento o céu ficou verde — um belo pôr
do sol verde. Estranho. Mas não tão estranho quanto dizer que ele traz
boa sorte.)
Afinal, eu estava preparado para a indiferença dela. Eu sabia que
meus sonhos eram sonhos. Mas a tristeza que senti ao olhar para aquela
velha casa branca — eu não estava preparado para ela. Mais do que
nunca, ela parecia lutar para se manter afastada da floresta negra e
sinuosa como uma serpente. Ela gritava ainda mais alto e com mais
desespero: Salve-me da destruição, da ruína e da desolação. Salve-me da
morte lenta causada pelas formigas. Mas o que estão fazendo aqui, seus
loucos? Tão perto da floresta. Vocês não sabem que este é um lugar
perigoso? E que a floresta escura sempre vence? Sempre. Se não sabem,
saberão em breve, e eu não posso fazer nada para ajudá-los.
Baptiste estava muito diferente. Não havia nele mais nenhum
traço do serviçal polido. Ele estava usando um chapéu de palha de aba
larga, como um chapéu de pescador, mas com a coroa achatada e não
alta e pontuda. Seu cinto largo de couro estava engraxado, bem como o
cabo do seu cutelo, e sua camisa e sua calça de algodão azul estavam
impecavelmente limpas. O chapéu, eu sabia, era à prova d’água. Ele
estava preparado para a chuva que, sem sombra de dúvida, estava a
caminho.
Eu disse que gostaria de despedir-me da garota que vivia rindo —
Hilda. “Hilda não está aqui”, ele respondeu no seu inglês claudicante.
“Hilda foi embora — ontem.”
Ele falou com educação, mas eu pude sentir o seu antagonismo e o
seu desprezo. O mesmo desprezo daquele demônio quando ela disse:
“Prove o meu sangue de touro.” Querendo dizer: isto fará de você um
homem. Talvez. E o que me importa o que eles pensam de mim!
Quanto a ela, eu a havia esquecido por enquanto. Portanto, nunca vou
entender por que, de repente, desconcertantemente, eu tive certeza de
que tudo o que eu havia imaginado ser verdadeiro era falso. Falso. Só a
magia e o sonho são verdadeiros — todo o resto é uma mentira. Tira da
cabeça. O segredo está aqui. Aqui.
(Mas está perdido, esse segredo, e aqueles que o sabem não podem
contar.)
Não está perdido. Eu o havia encontrado num lugar escondido e
eu o guardaria, não o deixaria escapar. Assim como faria com ela.
Eu olhei para ela. Ela estava olhando para o mar distante. Era a
própria imagem do silêncio.
Canta, Antoinette. Agora eu posso ouvi-la.

Aqui o vento diz que já foi, que já foi,


E o mar diz tem que ser, tem que ser,
E o sol diz pode ser, há de ser,
E a chuva...?

Você tem que prestar atenção nisso. A nossa chuva conhece todas
as canções.
E todas as lágrimas?
Todas, todas, todas.
Sim, eu vou prestar atenção na chuva. Vou escutar o pássaro da
montanha. Ah, de cortar o coração é aquela única nota — aguda, doce,
solitária, mágica. Você prende a respiração para escutar... Não... Foi
embora. O que eu poderia dizer a ela?
Não fique triste. Ou pense Adieu. Nunca Adieu. Nós tornaremos
a ver o sol se pôr — muitas vezes, e talvez vejamos a Gota de Esmeralda,
o clarão verde que traz sorte. E você tem que rir e conversar como
costumava fazer — contar-me sobre a batalha perto de Saints ou sobre o
piquenique em Marie Galante — o famoso piquenique que se
transformou numa luta. Ou sobre os piratas e o que eles faziam entre
uma viagem e outra. Porque cada viagem podia ser a última. Sol e
sangria formam uma mistura embriagadora. Depois — o terremoto. Ah,
sim, dizem que Deus ficou zangado com as coisas que eles faziam, então
acordou do Seu sono, soprou uma vez e todos desapareceram. Então ele
tornou a dormir. Mas eles deixaram seus tesouros, ouro e mais do que
ouro. Uma parte é encontrada — mas quem acha nunca conta, porque,
você sabe, pela lei do tesouro, a pessoa só fica com um terço. E as
pessoas querem tudo, então nunca falam nada. Às vezes são coisas
preciosas, ou joias. Não tem limite para o que as pessoas acham e
vendem em segredo para algum homem cauteloso que pondera, hesita,
faz perguntas que não são respondidas, e depois paga em dinheiro. Todo
mundo sabe que peças de ouro, tesouros aparecem em Spanish Town (e
aqui também). Em todas as ilhas, surgidos do nada, ninguém sabe de
onde. Porque é melhor não falar em tesouro. É melhor não contar a eles.
Sim, é melhor não contar a eles. Eu não vou contar para você que
eu mal prestava atenção nas suas histórias. Eu esperava ansiosamente
pela noite e pela escuridão e pela hora em que as damas-da-noite se
abrem.

Cubram a lua,
Apaguem as estrelas.
Amor no escuro, pois somos feitos para o escuro.

Tão cedo, tão cedo.

Como os piratas gabolas, vamos aproveitar tudo o que temos de


bom e de ruim até as últimas consequências. Vamos dar não um terço,
mas tudo. Tudo — tudo — tudo. Não vamos guardar nada...
Não, eu diria — eu sei o que eu diria. “Eu cometi um erro terrível.
Perdoe-me.”
Eu disse isso olhando para ela, vendo o ódio em seus olhos — e
sentindo o meu próprio ódio nascendo para encontrar o dela. Mais uma
vez a mudança vertiginosa, o lembrar, o retorno ao ódio. Eles me
compraram, a mim, com seu dinheiro torpe. Você os ajudou a fazer isso.
Você me enganou, me traiu, e fará ainda pior se tiver a chance... (Aquela
garota, ela olha bem no seu olho e fala com voz macia — e só fala
mentiras. Mentiras. A mãe dela era assim. Dizem que ela é pior que a
mãe.)
... Se o meu destino é o inferno, que seja. Chega de falsos paraísos.
Chega dessa maldita magia. Você me odeia e eu te odeio. Vamos ver
quem odeia melhor. Mas, primeiro, primeiro eu vou destruir o seu ódio.
Agora. O meu ódio é mais frio, mais forte, e você não terá nenhum ódio
com que se aquecer. Você não terá nada.
E foi o que eu fiz. Eu vi o ódio abandonar os olhos dela. Eu o
forcei a sair. E, junto com o ódio, a beleza dela. Ela era apenas um
fantasma. Um fantasma no dia cinzento. Nada mais restava além de
desesperança. Diga morra e eu morrerei. Diga morra e me veja morrer.
Ela ergueu os olhos. Lindos olhos vazios. Olhos loucos. Uma
mulher louca. Eu não sei o que teria dito ou feito. Pesando na balança
— tudo. Mas nesse momento o menino sem nome encostou a cabeça no
craveiro e soluçou. Soluços altos, de cortar o coração. Eu o teria
estrangulado com prazer. Mas consegui controlar-me, aproximar-me
deles e dizer friamente:
— O que há com ele? Por que ele está chorando?
Baptiste não respondeu. Seu rosto sombrio ficou ainda mais
sombrio e isso foi tudo o que eu obtive de Baptiste.
Ela viera atrás de mim e respondeu. Eu mal reconheci sua voz.
Nenhum calor, nenhuma doçura. A boneca tinha uma voz de boneca,
uma voz ofegante, mas curiosamente indiferente.
— Ele me perguntou quando chegamos aqui, se nós, se você o
levaria junto quando fosse embora. Ele não quer dinheiro. Só quer estar
conosco. Porque... — ela parou e passou a língua nos lábios — ele o ama
muito. Então eu disse que sim. Leve-o. Baptiste disse que você não vai
levá-lo. Por isso ele está chorando.
— É claro que eu não vou levá-lo — eu disse zangado. (Meu
Deus! Um garoto meio selvagem além de... além de...)
— Ele sabe inglês — disse ela, ainda com indiferença. — Ele se
esforçou muito para aprender inglês.
— Ele não aprendeu um inglês que eu consiga entender — eu
disse. E ao contemplar seu rosto branco e duro, a minha fúria cresceu:
— Que direito você tem de fazer promessas em meu nome? Ou em falar
por mim?
— Não, eu não tinha o direito, desculpe. Eu não o entendo. Não
sei nada sobre você, e não posso falar por você...
E isso foi tudo. Eu me despedi de Baptiste. Ele inclinou o corpo
de leve, de má vontade, e resmungou — suponho que tenha desejado
boa viagem. Tenho certeza de que ele estava torcendo para nunca mais
pôr os olhos em mim.
Ela montou e ele se aproximou dela. Quando ela estendeu a mão,
ele a tomou e, ainda segurando a mão dela, falou-lhe com grande
ansiedade. Eu não ouvi o que ele disse, mas achei que então ela fosse
chorar. Não, o sorriso de boneca voltou — pregado ao seu rosto. Mesmo
que ela tivesse chorado como Madalena, não teria feito nenhuma
diferença. Eu estava exausto. Todas aquelas emoções loucas e
contraditórias tinham desaparecido e me deixado esgotado e vazio.
Lúcido.
Eu estava cansado daquelas pessoas. Eu não gostava da risada
delas nem de suas lágrimas, de sua bajulação e inveja, arrogância e
mentira. E odiava o lugar.
Eu odiava as montanhas e as colinas, os rios e a chuva. Odiava o
pôr do sol fosse de qualquer cor, odiava sua beleza e sua magia e o
segredo que eu jamais iria desvendar. Odiava sua indiferença e a
crueldade que fazia parte da sua beleza. Acima de tudo, eu a odiava.
Porque ela pertencia à magia e à beleza. Ela me deixara com sede, e toda
a minha vida eu teria sede e sentiria saudade do que tinha perdido antes
de encontrar.
Então nós partimos e o deixamos — o lugar escondido. Não para
mim e não para ela. Eu cuidaria disso. Ela já percorreu grande parte do
caminho agora.
Muito em breve ela se juntará a todos os outros que sabem o
segredo e se recusam a contar. Ou não podem. Ou tentam e falham
porque não sabem o suficiente. Eles podem ser reconhecidos. Rostos
brancos, olhos vagos, gestos desnorteados, gargalhada estridente. O
modo como andam e falam e gritam ou tentam matar (a si mesmos ou a
você) se você rir deles. Sim, eles têm que ser vigiados. Pois chega uma
hora em que eles tentam matar, e depois desaparecem. Mas outros estão
esperando para tomar seus lugares, é uma fila muito longa. Ela é um
deles. Eu também posso esperar — pelo dia em que ela não passará de
uma lembrança a ser evitada, presa a sete chaves, e, como todas as
lembranças, uma lenda. Ou uma mentira...
Eu lembro que, quando viramos a curva, eu pensei em Baptiste e
imaginei se ele teria outro nome — eu nunca tinha perguntado. E, em
seguida, decidi que venderia a propriedade por quanto me oferecessem.
Eu tinha a intenção de devolvê-la a ela. Agora — de que adiantaria?
Aquele garoto estúpido nos seguiu, com o cesto equilibrado na
cabeça. Ele usava as costas da mão para enxugar as lágrimas. Quem
poderia imaginar que um garoto pudesse chorar daquele jeito. À toa. À
toa...
“S abiam que ele estava na Jamaica quando seu pai e seu irmão
morreram”, Grace Poole disse. “Ele herdou tudo, mas já era um homem
rico antes disso. Algumas pessoas têm sorte, foi o que comentaram, e
houve boatos acerca da mulher que trouxe de volta com ele para a
Inglaterra. No dia seguinte, a Sra. Eff me chamou e reclamou do
falatório. Eu não admito falatório. Eu disse isso para você quando você
veio. Os empregados comentam e não há como impedi-los, eu disse. E
não sei se me sinto bem com esta situação, madame. Quando respondi
ao seu anúncio, a senhora disse que a pessoa que eu teria de cuidar não
era uma mocinha. Eu perguntei se era uma mulher idosa e a senhora
disse que não. Agora que a conheço, não sei o que pensar. Ela fica
sentada tremendo e é tão magrinha. Se ela morrer nas minhas mãos,
quem levará a culpa? Espere, Grace, ela disse. Ela estava segurando uma
carta. Antes de decidir, ouça o que o dono da casa tem a dizer sobre isto.
‘Se a Sra. Poole é satisfatória, por que não dar a ela o dobro, o triplo do
dinheiro’, ela leu, e dobrou a carta, mas não antes que eu tivesse visto as
palavras que estavam escritas na página seguinte, ‘mas pelo amor de
Deus, eu não quero mais ouvir falar nesse assunto’. Havia um selo
estrangeiro no envelope. ‘Eu não sirvo ao diabo por dinheiro algum’, eu
disse. Ela disse: ‘Se você imagina que ao servir a este cavalheiro está
servindo ao diabo, você está cometendo o maior engano da sua vida. Eu
o conheci quando era menino. Eu o conheci quando era rapaz. Ele era
amável, generoso, corajoso. Sua estadia nas Índias Ocidentais
transformou-o completamente. Seus cabelos estão grisalhos e seus olhos,
cheios de tristeza. Não me peça para ter pena de ninguém que tenha
alguma responsabilidade nisso. Eu já falei demais. Não estou disposta a
triplicar o seu dinheiro, Grace, mas concordo em pagar-lhe o dobro.
Mas não deve haver mais nenhum falatório. Se houver, eu a demitirei na
mesma hora. Não acho que vá ser impossível encontrar alguém para
ocupar o seu lugar. Tenho certeza de que voei compreende.’ Sim, eu
compreendo, eu disse.
“Então, todos os empregados foram mandados embora e ela
contratou uma cozinheira, uma arrumadeira e você, Leah. Eles foram
mandados embora, mas como ela poderia impedi-los de falar? Se você
me perguntar, eu acho que o condado inteiro sabe. Os boatos que eu
ouvi — muito distantes da verdade. Mas eu não contradigo, fico de boca
fechada. Afinal de contas, a casa é grande e segura, um abrigo do mundo
lá fora que, diga você o que quiser, pode ser muito cruel para uma
mulher. Talvez por isso é que eu tenha ficado.”
As paredes grossas, ela pensou. Depois do portão, uma longa
avenida de árvores, e dentro da casa as lareiras acesas e os quartos rubros
e brancos. Mas acima de tudo as paredes grossas, mantendo a distância
todas as coisas contra as quais você lutou até não ter mais forças para
lutar. Sim, talvez tenha sido por isso que nós todas ficamos — a Sra. Eff
e Lcah e eu. Todas nós, exceto aquela moça que vive dentro da sua
própria escuridão. Uma coisa eu tenho que dizer, ela não perdeu a
coragem. Ela ainda é feroz. Eu não dou as costas para ela quando ela
está com aquela expressão nos olhos. Eu a conheço.

Neste quarto, eu acordo cedo e fico deitada tremendo porque faz muito
frio. Finalmente, Grace Poole, a mulher que toma conta de mim, acende
o fogo com papel e gravetos e pedaços de carvão. Ela se ajoelha para
atiçá-lo com um fole. O papel encolhe, os gravetos estalam e cospem, o
carvão arde e incendeia. Finalmente as chamas sobem, e elas são lindas.
Eu saio da cama e me aproximo para contemplá-las e para pensar por
que me trouxeram para cá. Por que razão? Deve haver uma razão. O que
é que eu tenho que fazer? Quando cheguei aqui, achei que seria por um
dia, dois dias, uma semana talvez. Pensei que quando o visse e falasse
com ele eu seria sábia como as serpentes, mansa como as pombinhas.
“Eu lhe dou tudo o que tenho de boa vontade”, eu diria, “e nunca mais o
incomodarei se você me deixar partir.” Mas ele nunca veio.
A mulher, Grace, dorme no meu quarto. De noite, às vezes, eu a
vejo sentada à mesa contando dinheiro. Ela ergue uma moeda de ouro e
sorri. Depois guarda tudo numa bolsinha de couro e pendura a bolsinha
no pescoço de modo que fique escondida dentro do vestido. A princípio
ela costumava olhar para mim antes de fazer isso, mas eu sempre fingia
estar dormindo, agora ela não se preocupa mais comigo. Ela bebe de
uma garrafa sobre a mesa e vai para a cama, ou estende os braços sobre a
mesa, deita a cabeça nos braços e dorme. Mas eu fico deitada vendo o
fogo apagando. Quando ela está roncando, eu me levanto e provo a
bebida sem cor da garrafa. A primeira vez que fiz isso tive vontade de
cuspir, mas consegui engolir. Quando voltei para a cama, consegui me
lembrar melhor das coisas e voltar a pensar. E não estava com tanto frio.
Aqui só tem uma janela, bem no alto — não dá para olhar para
fora. Minha cama tinha portas, mas elas foram retiradas. Não há mais
quase nada no quarto. A cama dela, um armário preto, a mesa no meio
com duas cadeiras pretas com frutas e flores entalhadas. Elas têm
espaldar alto e não têm braços. O quarto de vestir é muito pequeno, o
quarto ao lado deste tem tapeçarias nas paredes. Um dia, olhando para a
tapeçaria, eu reconheci a minha mãe usando um vestido de baile, mas
com os pés descalços. Ela estava olhando para longe de mim, por cima
da minha cabeça, exatamente como costumava fazer. Eu não contaria
isto para Grace. O nome dela não devia ser Grace. Nomes são
importantes, como quando ele se recusava a me chamar de Antoinette, e
eu vi Antoinette flutuando para fora da janela com seus perfumes, suas
belas roupas e seu espelho.
Não tem nenhum espelho aqui e eu não sei como sou agora. Eu
me lembro de me ver escovando o cabelo no espelho e como os meus
olhos olhavam de volta para mim. A moça que eu via era eu, mas não
era exatamente eu. Muito tempo atrás, quando eu era uma criança e
muito solitária, eu tentei beijá-la. Mas havia o espelho entre nós —
duro, frio e enevoado com a minha respiração. Agora eles levaram tudo
embora. O que eu estou fazendo neste lugar e quem sou eu?
A porta do quarto das tapeçarias está sempre trancada. Eu sei que
ele vai dar numa passagem. É lá que Grace fica parada e conversa com
uma outra mulher que eu nunca vi. O nome dela é Leah. Eu fico
escutando, mas não consigo entender o que elas dizem.
Então ainda há o som de cochichos que eu escutei a vida inteira,
mas estas vozes são diferentes.
Quando a noite chega, e ela já bebeu bastante e está dormindo, é
fácil apanhar as chaves. Agora eu sei onde ela as guarda. Então eu abro a
porta e entro no mundo deles. Ele é, como eu sempre soube, feito de
papelão. Eu já o vi antes em algum lugar, este mundo de papelão onde
tudo é colorido de marrom ou de vermelho escuro ou de amarelo sem
um pingo de luz. Enquanto caminho pelos corredores, sinto vontade de
ver o que há por trás do papelão. Eles me dizem que estou na Inglaterra,
mas eu não acredito neles. Nós nos perdemos a caminho da Inglaterra.
Quando? Onde? Eu não me lembro, mas nós nos perdemos. Será que
foi aquela noite na cabine, quando ele me encontrou conversando com o
rapaz que trazia a minha comida? Eu pus os braços em volta do pescoço
dele e pedi que me ajudasse. Ele disse: “Eu não sabia o que fazer,
senhor.” Eu quebrei os copos e os pratos de encontro à vigia. Eu queria
que o vidro quebrasse e o mar pudesse entrar. Uma mulher veio e depois
um homem mais velho que limpou todos os cacos de vidro do chão. Ele
não olhou para mim enquanto estava fazendo isso. O terceiro homem
disse: “Beba isto para você dormir.” Eu bebi e disse: “Não é o que parece
ser.” “Eu sei. Nunca é”, ele disse. E então eu dormi. Quando acordei, era
um mar diferente. Mais frio. Foi naquela noite, eu acho, que nós
mudamos de curso e perdemos o caminho para a Inglaterra. Esta casa de
papelão onde eu caminho à noite não é a Inglaterra.

Uma manhã, quando eu acordei, estava com o corpo todo dolorido. Não
de frio, um outro tipo de dor. Eu vi que meus pulsos estavam vermelhos
e inchados. Grace disse:
— Suponho que você vá me dizer que não se lembra de nada que
aconteceu na noite passada.
— Quando foi a noite passada? — disse.
— Ontem.
— Eu não me lembro de ontem.
— Na noite passada, um cavalheiro veio visitá-la — disse ela.
— Qual deles foi?
Porque eu sabia que havia pessoas estranhas na casa. Quando
apanhei as chaves e entrei no corredor, eu os ouvi rindo e conversando
ao longe, como pássaros, e havia luz no andar de baixo.
Virando a esquina, eu vi uma moça saindo do quarto dela. Ela
usava um vestido branco e cantarolava baixinho. Eu me encostei na
parede porque não queria que ela me visse, mas ela parou e olhou em
volta. Ela não viu nada além de sombras, eu me encarreguei disso, mas
ela não foi andando até a escada. Ela correu. Encontrou outra moça, e a
segunda moça disse:
— Você viu um fantasma?
— Eu não vi nada, mas achei ter sentido alguma coisa.
— Era o fantasma — disse a segunda, e elas desceram a escada
juntas.
— Qual dessas pessoas veio me ver, Grace Poole? — perguntei.
Ele não veio. Mesmo que estivesse dormindo, eu teria sabido. Ele
ainda não veio. Ela disse:
— Eu acho que você lembra muito mais do que finge lembrar. Por
que você se comportou daquele jeito, quando eu havia prometido que
você seria calma e sensata? Nunca mais vou tentar ajudar você. Seu
irmão veio visitá-la.
— Eu não tenho nenhum irmão.
— Ele disse que era seu irmão.
Minha mente recuou muito no tempo.
— O nome dele era Richard?
— Ele não me disse como se chamava.
— Eu o conheço — eu disse, e pulei da cama. — Está tudo aqui,
está tudo aqui, mas eu escondi dos seus olhos de fera assim como
escondo tudo. Mas onde está? Onde foi que eu escondi? Na sola dos
meus sapatos? Debaixo do colchão? Em cima do armário? No bolso do
meu vestido vermelho? Onde, onde está esta carta? Era curta, porque eu
me lembrei que Richard não gostava de cartas longas. Caro Richard, por
favor me tire deste lugar onde estou morrendo porque é tão frio e
escuro.
A Sra. Poole disse:
— Não adianta ficar procurando agora. Ele foi embora e não vai
mais voltar — eu também não voltaria se estivesse no lugar dele.
— Não consigo me lembrar do que aconteceu — eu disse. — Não
consigo me lembrar.
— Quando ele entrou — disse Grace Poole —, ele não reconheceu
você.
— Você pode acender o fogo — eu disse —, eu estou com muito
frio.
— Este cavalheiro chegou de repente e insistiu em vê-la, e esse foi
o agradecimento que ele recebeu. Você correu para cima dele com uma
faca, e quando ele tomou a faca da sua mão, você mordeu o braço dele.
Você não o verá de novo. E aonde foi que conseguiu aquela faca? Eu
disse a eles que você a roubou de mim, mas eu sou muito cuidadosa.
Estou acostumada com gente como você. Não foi de mim que você tirou
a faca. Você deve tê-la comprado naquele dia que eu saí com você. Eu
disse à Sra. Eff que você tinha que sair de casa.
— Quando nós fomos à Inglaterra — eu disse.
— Sua tola — disse ela —, isto aqui é a Inglaterra.
— Eu não acredito nisso — eu disse —, eu nunca vou acreditar
nisso.
(Naquela tarde nós fomos à Inglaterra. Havia grama e água cor de
azeitona e árvores altas dando para a água. Isto, eu pensei, é a Inglaterra.
Se eu pudesse ficar aqui, eu poderia ficar boa e o barulho na minha
cabeça iria parar. Deixe-me ficar mais um pouco, eu disse, e ela se
sentou debaixo de uma árvore e adormeceu. Um pouco mais longe havia
uma charrete — uma mulher estava dirigindo. Foi ela quem me vendeu
a faca. Eu dei em troca o medalhão que usava no pescoço.)
Grace Poole disse:
— Então você não lembra que atacou esse cavalheiro com uma
faca? Eu disse que você ficaria quieta. “Eu preciso falar com ela”, disse
ele. Ah, ele foi avisado, mas não quis ouvir. Eu estava no quarto, mas
não ouvi tudo o que ele disse, exceto: “Eu não posso interferir
legalmente entre você e seu marido.” Foi quando ele disse “legalmente”
que você voou em cima dele, e quando ele torceu sua mão e tirou a faca,
você o mordeu. Você está dizendo que não se lembra de nada disso?
Agora eu lembro que ele não me reconheceu. Eu o vi olhar para
mim e seus olhos foram primeiro para um canto e depois para o outro,
sem encontrar o que esperavam. Ele olhou para mim e falou como se cu
fosse uma estranha. O que você faz quando uma coisa dessas acontece
com você? Por que você está rindo de mim?
— Você também escondeu o meu vestido vermelho? Se eu o
estivesse usando, ele teria me reconhecido.
— Ninguém escondeu o seu vestido — disse ela. — Ele está
pendurado no armário.
Ela olhou para mim e disse:
— Eu não acredito que você saiba há quanto tempo está aqui,
pobre criatura.
— Pelo contrário — eu disse —, só eu sei há quanto tempo estou
aqui. Noites e dias e dias e noites, centenas deles escorrendo pelos meus
dedos. Mas isso não importa. O tempo não significa nada. Mas algo que
você pode tocar e segurar, como o meu vestido vermelho, isso tem um
significado. Onde ele está?
Ela fez um sinal com a cabeça na direção do armário e os cantos
de sua boca entortaram para baixo. Assim que eu girei a chave, eu o vi
pendurado, da cor do fogo e do pôr do sol. Da cor das flores do
flamboyant.
— Se você for enterrada debaixo de um flamboyant — eu disse —,
a sua alma será erguida quando ele florescer. Todo mundo quer isso.
Ela sacudiu a cabeça, mas não se moveu nem tocou em mim.
O perfume que veio do vestido foi muito fraco, a princípio, depois
ficou mais forte. Perfume de vetiver e jasmim, de canela e terra e
limeiras em flor. O perfume do sol e o perfume da chuva.

... Eu estava usando um vestido dessa cor quando Sandi veio ver-me
pela última vez.
— Você vem comigo? — perguntou.
— Não — respondi —, não posso.
— Então é adeus?
— Sim, é adeus.
— Mas eu não posso deixá-la assim — disse ele —, você está
infeliz.
— Você está perdendo tempo — retruquei —, e nós temos tão
pouco.
Sandi vinha sempre me visitar quando aquele homem eslava fora,
e, quando eu saía dirigindo, eu me encontrava com ele. Os empregados
sabiam, mas nenhum deles contava.
Agora não havia mais tempo, então nós nos beijamos naquela
estúpida sala. Leques abertos decoravam as paredes. Nós já nos
havíamos beijado muitas vezes, mas não daquele jeito. Aquele foi o beijo
da vida e da morte, e você só sabe muito tempo depois o que é isso, o
beijo da vida e da morte. O navio branco apitou três vezes, uma vez
alegremente, uma vez chamando, uma vez para dizer adeus.

Eu peguei o vestido vermelho e o coloquei na minha frente.


— Ele me faz ficar intemperada e lasciva? — eu disse. Aquele
homem me disse isso. Ele tinha descoberto que Sandi estivera na casa e
que eu tinha ido vê-lo. Eu nunca soube quem contou.
— Filha sem-vergonha de uma mãe sem-vergonha — disse-me
ele.
— Ah, guarda isso — disse Grace Poole —, vem comer sua
comida. Seu roupão cinza está aqui. Por que eles não podem dar uma
coisa melhor para você vestir está além da minha compreensão. Eles são
suficientemente ricos para isso.
Mas eu fiquei segurando o vestido, imaginando se eles teriam feito
a última coisa que poderiam fazer. Se eles o haviam trocado quando eu
não estava olhando. Se eles o haviam trocado e aquele não era o meu
vestido — mas como eles tinham conseguido arranjar o perfume?
— Bem, não fique aí parada tremendo de frio — disse ela, com
uma amabilidade fora do comum.
Eu deixei o vestido cair no chão, e olhei do fogo para o vestido e
do vestido para o fogo.
Coloquei o roupão cinza nos ombros, mas disse a ela que não
estava com fome e ela não tentou me obrigar a comer, como faz às vezes.
— É melhor mesmo você não lembrar da noite passada — disse
ela. — O cavalheiro desmaiou e foi uma confusão aqui em cima. Sangue
por toda a parte, e eu fui acusada de permitir que você o atacasse. E o
patrão é esperado em poucos dias. Eu nunca mais vou tentar ajudá-la.
Não existe mais ajuda possível para alguém no seu estado.
— Se eu estivesse usando o meu vestido vermelho, Richard me
teria reconhecido.
— Seu vestido vermelho — disse ela, e riu.
Mas eu olhei para o vestido no chão e foi como se o fogo tivesse se
espalhado pelo quarto. Foi lindo e me lembrou que havia uma coisa que
eu precisava fazer. Eu vou me lembrar, pensei. Vou me lembrar muito
em breve.

Essa foi a terceira vez que eu tive o meu sonho, e ele terminou. Agora eu
sei que o lance de escada conduz a este quarto onde estou deitada, vendo
a mulher adormecida com a cabeça sobre os braços. No meu sonho, eu
espero até ela começar a roncar, depois eu me levanto, pego as chaves e
saio com uma vela na mão. Desta vez foi mais fácil do que nunca, e eu
fui andando como se estivesse voando.
Todas as pessoas que tinham estado hospedadas na casa tinham
ido embora, porque as portas dos quartos estavam fechadas, mas eu tive
a impressão de que havia alguém me seguindo, me perseguindo, rindo.
De vez em quando eu olhava para a direita e para a esquerda, mas nunca
para trás, porque não queria ver aquele fantasma de mulher que dizem
que assombra este lugar. Eu desci a escada. Fui mais longe do que jamais
fora antes. Havia alguém falando numa das salas. Eu passei sem fazer
barulho, bem devagar.
Finalmente cheguei no hall, onde havia um lampião aceso.
Lembro-me de quando cheguei. Um lampião e a escadaria escura e o
véu cobrindo o meu rosto. Eles pensam que eu não me lembro, mas eu
me lembro. Havia uma porta à direita. Eu a abri e entrei. Era uma sala
grande com um tapete vermelho e cortinas vermelhas. Todo o resto era
branco. Eu me sentei num sofá para olhar para ela e ela me pareceu
triste e fria e vazia, como uma igreja sem altar. Eu quis vê-la melhor,
então acendi todas as velas, e havia muitas. Acendi-as cuidadosamente
com a que eu estava carregando, mas não consegui alcançar o lustre.
Então olhei em volta à procura do altar, porque com tantas velas e tanto
vermelho aquela sala me fazia lembrar uma igreja. Então ouvi um
relógio batendo e ele era de ouro. Ouro é o ídolo que eles veneram.
De repente eu me senti muito infeliz naquela sala, embora o sofá
onde eu estava sentada fosse tão macio que eu chegava a afundar nele.
Eu tive a impressão de que ia adormecer. Então imaginei ouvir passos e
pensei: o que eles vão dizer, o que vão fazer se me acharem aqui? Segurei
meu pulso direito com a mão esquerda e esperei. Mas não era nada.
Depois disso eu me senti muito cansada. Muito cansada. Eu quis sair
daquela sala, mas a minha vela tinha queimado até o fim e eu peguei
uma das outras. De repente, eu estava no quarto da tia Cora. Eu vi o sol
entrando pela janela, a árvore do lado de fora e as sombras das folhas no
chão, mas vi também as velas de cera e tive ódio delas. Então derrubei
todas elas. A maioria delas apagou, mas uma colocou fogo nas cortinas
finas que havia por trás das cortinas vermelhas. Eu ri quando vi a linda
cor se espalhando tão depressa, mas não fiquei lá para assistir. Tornei a ir
para o hall com a vela alta na mão. Foi então que eu a vi — o fantasma.
A mulher de cabelos compridos. Ela estava cercada por uma moldura
dourada, mas eu a reconheci. Deixei cair a vela que estava carregando e
pegou fogo na ponta de uma toalha e eu vi as chamas saltarem.
Enquanto eu corria ou talvez flutuava ou voava, eu gritei “Me ajuda,
Christophine”, e, olhando para trás, vi que tinha sido ajudada. Havia
uma pequena parede de fogo me protegendo, mas ela era quente demais,
ela me queimou e eu me afastei dela.
Havia mais velas sobre uma mesa, e eu peguei uma delas e subi
correndo o primeiro lance de escadas e o segundo. No segundo andar, eu
atirei fora a vela. Mas não fiquei para assistir. Subi correndo o último
lance de escadas e atravessei o corredor. Passei pelo quarto para onde
eles me levaram ontem ou anteontem, não me lembro. Talvez tenha sido
há muito tempo, porque eu parecia conhecer muito bem a casa. Eu sabia
como fugir do calor e da gritaria, pois havia muita gritaria agora.
Quando sai para as ameias do telhado, estava fresco e eu mal podia
ouvi-los. Eu me sentei ali em silêncio. Não sei por quanto tempo fiquei
ali sentada. Então eu me virei e vi o céu. Estava vermelho e toda a
minha vida estava nele. Eu vi o grande relógio e a colcha de retalhos da
tia Cora, de todas as cores, eu vi as orquídeas e os jasmins e a árvore da
vida em chamas. Eu vi o lustre e o tapete vermelho do primeiro andar e
os bambus e as samambaias, e as samambaias douradas e prateadas, e o
macio veludo verde do musgo no muro do jardim. Eu vi a minha casa de
bonecas e os livros e a pintura da Filha de Miller. Ouvi o papagaio gritar
como ele fazia toda vez que via um estranho: Qui est là? Qui est là?, e o
homem que me odiava também estava gritando: Bertha! Bertha! O
vento bateu no meu cabelo e ele se ergueu como se fossem asas. Talvez
ele pudesse me sustentar, pensei, se eu pulasse naquelas pedras duras lá
embaixo. Mas quando olhei pela borda do telhado, vi o poço de
Coulibri. Tia estava lá. Ela acenou me chamando e, quando eu hesitei,
ela riu. Eu a ouvi dizer: Você está com medo? E ouvi a voz do homem:
Bertha! Bertha! Tudo isso eu vi e ouvi numa fração de segundo. E o céu
tão vermelho. Alguém gritou, e eu pensei: Por que foi que eu gritei? Eu
chamei: “Tia!” e pulei e acordei.
Grace Poole estava sentada à mesa, mas ela também tinha ouvido
o grito, porque disse:
— O que foi isso? — Ela se levantou, se aproximou e olhou para
mim. Eu fiquei imóvel, respirando normalmente, com os olhos
fechados. — Eu devo ter sonhado — disse ela. Então ela voltou, não
para a mesa, mas para a cama. Esperei um longo tempo, até ela começar
a roncar, então me levantei, peguei as chaves e abri a porta. Eu estava do
lado de fora segurando a minha vela. Agora, finalmente, eu sabia por
que tinham me trazido para cá e o que eu tinha que fazer. Devia haver
uma corrente de ar, porque a chama piscou e eu pensei que tinha
apagado. Mas eu a protegi com a mão e ela tornou a brilhar para me
iluminar ao longo do corredor escuro.
Sobre a autora

Jean Rhys nasceu em Dominica, nas Índias Ocidentais


(Caribe). Mudou-se para Londres aos 16 anos e começou a
escrever em Paris, na década de 1920, incentivada pelo escritor
Ford Madox Ford. Seu primeiro livro publicado foi a coletânea
de contos The Left Bank (1927). A obra que deflagrou sua
carreira foi Voyage in the Dark (1934), assumidamente
autobiográfica, escrita no calor dos acontecimentos de sua
juventude e burilada mais tarde. Entre seus maiores sucessos
estão Quartet (1929), romance transposto por James Ivory para
o cinema em 1981, com Isabelle Adjani, Alan Bates e Maggie
Smith. Vasto mar de sargaços (1966), escrito ao longo de 20
anos, é hoje referência nos estudos de literatura de língua inglesa
em todo o mundo.

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