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Prefácio
O mar de Sargaços é uma vasta região do oceano Atlântico, próxima ao
Caribe, que compreende mais de três milhões de quilômetros quadrados.
Nessa área proliferam algas (conhecidas como “sargaços”, daí o nome
que se dá ao mar), que cobrem sua superfície como um tapete,
dificultando a navegação. Sua existência é conhecida desde os tempos
mais remotos e desperta um misto de curiosidade, medo e fascínio nos
navegantes, devido aos relatos, hoje considerados fantasiosos, de
exploradores fenícios e cartagineses — esses relatos deram origem a
inúmeras lendas a respeito de supostos monstros marinhos e outras
criaturas, que habitariam o local e seriam responsáveis por acidentes,
naufrágios e outros mistérios da região.
Trata-se de uma região polvilhada de belas ilhas, dentre as quais
está a Jamaica, escolhida pela escritora antilhana Jean Rhys como
cenário para o seu romance Vasto mar de Sargaços, publicado
originalmente em 1966, após uma longa ausência da cena literária, no
qual a autora aborda outra grande dificuldade de “navegação”: o choque
entre a cultura do Império Britânico, em seu auge como potência
colonizadora no século XIX, e a cultura local, dos povos submetidos à
colonização.
Nascida em 1890, Jean Rhys iniciou sua carreira literária na
década de 1930, ao longo da qual publicou quatro livros: Quartet
(1930), After Leaving Mr Mackenzie (1931), Voyage in the Dark
(1934, publicado em português como Viagem no escuro) e Good
Morning, Midnight (1939, publicado em português como Bom-dia,
Meia-Noite). Nenhum destes romances lhe trouxe especial consagração,
de modo que a escritora interrompeu sua carreira e mergulhou em um
período de reclusão que durou mais de 20 anos, dando origem até
mesmo a boatos de que havia falecido. Em 1966, entretanto, ressurgiu
com o romance que é considerado sua obra-prima — Wide Sargasso
Sea (Vasto mar de Sargaços).
Conta a própria Jean Rhys, na introdução à edição original da
obra, que a ideia para um novo romance começou a se impor ao longo
desse período de reclusão. Ela havia terminado a leitura de Jane Eyre, a
clássica obra vitoriana de Charlotte Brontë, e se viu absolutamente
fascinada pela figura quase irreal da personagem que talvez seja a mais
instigante do romance: Bertha Antoinette Mason, a “louca do sótão”, a
primeira mulher de Mr. Edward Rochester. Seu fascínio advinha do fato
de que Bertha, assim como a própria Jean Rhys, era uma mulher
caribenha vivendo na Inglaterra, com todas as dificuldades originadas
desse choque entre culturas.
Para melhor avaliar a questão, é preciso compreender que a era
vitoriana na Inglaterra, que se estendeu de 1837 a 1901, foi um período
bastante severo em termos de moral e costumes. A moral vitoriana
preconizava que todos os impulsos, principalmente os sexuais, deveriam
ser controlados com rigor — a mulher, em especial, deveria submeter-se
ao ato sexual apenas para agradar ao seu marido, assim como deveria
submeter-se a ele em todas as outras esferas da vida. Reclamar um
direito, elevar a voz, enraivecer-se, chorar ou mesmo apresentar as
flutuações de humor tão características do ciclo hormonal feminino são
exemplos de atitudes que poderiam facilmente levar uma mulher a ser
rotulada como “instável” ou “descontrolada”; em suma, “louca”.
Vasto mar de Sargaços representa a iniciativa de dar voz a essa
mulher intensa e vivaz, oriunda de uma cultura muito diferente da
cultura vitoriana opressora de seu marido, e nunca compreendida por
ele. Em Jane Eyre, Bertha Mason é uma personagem secundária, que
não é ouvida senão por seus gritos desesperados enquanto passa dia após
dia aprisionada no sótão; o foco de atenção do romance de Charlotte
Brontë está, como seria de esperar, no par de protagonistas, Jane Eyre e
Edward Rochester. Em Vasto mar de Sargaços, o marido de Antoinette
Cosway permanece anônimo ao longo de todo o romance — é
importante notar, porém, que esse anonimato não sobrevive à percepção
do leitor familiarizado com a obra-prima de Charlotte Brontë. O foco
central de atenção, entretanto, está em Antoinette, que logo é rebatizada
Bertha pelo marido — como se assim fosse possível despi-la de sua
identidade anterior e forçá-la a assumir uma nova, mais cordata e
submissa, e, portanto, mais adequada ao padrão vigente na época. A
obra de Jean Rhys oferece ao leitor a possibilidade de vislumbrar o
passado dessa personagem tão enigmática quanto fascinante — o
romance funciona como uma “introdução” a Jane Eyre, uma releitura
construída a partir de um ponto de vista pós-colonial.
A recepção do romance, quando de sua primeira publicação, foi
calorosa; ao longo dos anos, sua popularidade cresceu de forma estável,
talvez por se tratar de um romance que agrega tantos dos tópicos e
questões que vêm inquietando a ficção e a crítica literária desde meados
do século XX, como a descolonização e as relações assimétricas de poder
entre antigas metrópoles e colônias. Tal fato, por si só, já bastaria para
justificar a excelente iniciativa de lançar uma tradução em português;
some-se a isso o grande prazer que o público certamente encontrará na
leitura deste romance. Que o desfrutem!
CARLA PORTILHO
Professora de Literaturas de Língua Inglesa
na Universidade Federal Fluminense
“A s irmãs Brontë tinham, é claro, o toque de genialidade (ou muito
mais), especialmente Emily. Então, lendo Jane Eyre não se pode evitar a
leitura fluente, sem maiores considerações. Mas, eu, lendo mais tarde, e
muitas vezes, fiquei chocada com o retrato de lunática que ela traça, as
cenas crioulas eradas, e sobretudo a crueldade real do sr. Rochester.
Afinal de contas, ele era um homem abastado e haveria maneiras mais
gentis de dispor (ou esconder) uma mulher indesejada — ouvi a história
de uma — e o marido se comportou de forma bem diferente. (Outra
pista).
Mesmo quando eu sabia que tinha que escrever o livro — ainda
assim não parecia tocar no ponto certo — e essa é uma razão (embora
não a única) por que demorou tanto. Não tinha havido o clique. Não
estava lá. Por mais que eu tentasse.
Foi só quando escrevi este poema — aí o clique aconteceu — e
tudo estava lá e sempre tinha estado.”
Estas eram todas as pessoas que existiam em minha vida — minha mãe
e Pierre, Christophine, Godfrey e Sass, que nos havia abandonado.
Eu nunca olhei para nenhum negro estranho. Eles nos odiavam.
Eles nos chamavam de baratas brancas. Era melhor não mexer em casa
de marimbondos. Um dia, uma garotinha foi atrás de mim cantando
“Vai embora, barata branca, vai embora, vai embora”. Eu apressei o
passo, mas ela andou mais depressa ainda. “Barata branca, vai embora,
vai embora. Ninguém quer você. Vai embora.”
Quando me vi a salvo em casa, sentei perto do velho muro no
fundo do jardim. Era coberto de musgo verde, macio como veludo, e tive
vontade de nunca mais me mexer. Tudo ficaria pior se eu me mexesse.
Christophine encontrou-me lá quando já estava quase escuro, e eu estava
tão dura que ela teve que me ajudar a levantar. Ela não disse nada, mas
na manhã seguinte Tia estava na cozinha com a mãe dela, Maillotte,
amiga de Christophine. Logo Tia ficou minha amiga, e eu me
encontrava com ela quase todas as manhãs na curva da estrada que ia dar
no rio.
Às vezes nós saíamos do poço ao meio-dia, às vezes ficávamos até
o final da tarde. Então Tia acendia uma fogueira (o fogo sempre acendia
para ela, pedras afiadas não cortavam os seus pés descalços, eu nunca a vi
chorar). Nós cozinhávamos bananas-verdes numa velha panela de ferro e
as comíamos com os dedos numa cabaça, e depois de comer ela
adormecia imediatamente. Eu não conseguia dormir, mas não ficava
inteiramente acordada, deitada ali na sombra, contemplando o poço —
profundo e verde-escuro sob as árvores, verde-amarronzado se tivesse
chovido, mas de um verde faiscante sob o sol. A água era tão limpa que
dava para ver as pedrinhas no fundo da parte rasa. Azuis e brancas e
listradas de vermelho. Muito bonito. Cedo ou tarde, nós nos
separávamos na curva da estrada. Minha mãe nunca perguntou onde eu
tinha estado ou o que tinha feito.
Christophine tinha me dado umas moedas novas, que eu guardava
no bolso do vestido. Um dia elas caíram, então eu as coloquei sobre uma
pedra. Elas brilhavam como ouro ao sol e Tia ficou olhando para elas.
Tinha olhinhos pequenos, muito pretos, bem enfiados na cabeça.
Então ela apostou comigo três moedas que eu não era capaz de dar
uma cambalhota dentro d’água “como você diz que consegue”.
— É claro que eu consigo.
— Eu nunca vi você fazer isso — disse ela. — Só falar.
— Aposto todo o meu dinheiro que consigo — insisti.
Mas depois de uma cambalhota, ainda dei uma volta e subi
sufocada. Tia riu e disse que dessa vez parecia que eu estava morrendo
afogada. Então ela pegou o dinheiro.
— Eu consegui — eu disse quando consegui falar, mas ela sacudiu
a cabeça. Eu não tinha feito direito, e, além disso, moedas de um
centavo não davam para muita coisa. Por que eu estava olhando para ela
daquele jeito?
— Então pode ficar com elas, sua negrinha trapaceira — eu disse,
porque estava cansada e enjoada de tanta água que tinha bebido. —
Posso pegar mais, se eu quiser.
Ela disse que não foi isso que ouvira dizer. Ouvira dizer que nós
todos estávamos pobres como mendigos. Comíamos peixe salgado —
não tínhamos dinheiro para peixe fresco. Que a casa velha estava tão
cheia de goteiras que era preciso correr com uma cabaça para aparar a
água quando chovia. Tinha muita gente branca na Jamaica. Gente
branca de verdade, que tinha muito ouro. Eles não olhavam para nós,
não chegavam perto de nós. Gente branca de antigamente não passava
de negro branco agora, e negro preto era melhor que negro branco.
Eu me enrolei na minha toalha rasgada e sentei numa pedra, de
costas para ela, tremendo de frio. Mas o sol não conseguiu esquentar-
me. Eu queria ir para casa. Olhei em volta e Tia tinha sumido. Procurei
por um bom tempo, sem conseguir acreditar que ela havia levado o meu
vestido — a minha roupa de baixo não, ela não usava roupa de baixo —,
mas o meu vestido, que tinha sido lavado, passado e engomado naquela
manhã. Ela deixara o dela para mim, e eu finalmente o vesti e fui para
casa sob o sol escaldante, sentindo-me mal, odiando-a. Eu estava
planejando dar a volta pelos fundos da casa e ir para a cozinha, mas, ao
passar pelas cocheiras, parei para olhar para três cavalos estranhos e
minha mãe me viu e me chamou. Ela estava no glacis com duas jovens
senhoras e um cavalheiro. Visitas! Subi os degraus contrafeita — eu já
desejara visitas um dia, mas isto tinha sido anos antes.
Eles são muito bonitos, pensei, e usavam roupas tão lindas que eu
olhei para o chão, e quando eles riram — o cavalheiro foi quem riu mais
alto — eu corri para casa, para o meu quarto. Fiquei lá com as costas
encostadas na porta, e podia sentir meu coração batendo em todo o meu
corpo. Eu os ouvi conversando e ouvi quando partiram. Saí do quarto e
minha mãe estava sentada no sofá azul. Ela me olhou por algum tempo,
antes de dizer que eu tinha me comportado de forma muito estranha. O
meu vestido estava ainda mais sujo do que habitualmente.
— É o vestido de Tia.
— Mas por que você está usando o vestido de Tia? Tia? Qual
delas é Tia?
Christophine, que estava ouvindo da copa, veio na mesma hora e
recebeu ordem de buscar um vestido limpo para mim.
— Joga fora essa coisa. Queime-a.
Então elas discutiram.
Christophine disse que eu não tinha nenhum vestido limpo.
— Ela só tem dois vestidos, um em uso, outro lavando. Você quer
que caia do céu um vestido limpo? Tem gente que é mesmo maluca.
— Ela deve ter um outro vestido — disse minha mãe. — Em
algum lugar.
Mas Christophine lhe disse bem alto que era uma vergonha. Ela
anda solta por aí, vai virar uma imprestável. E ninguém está ligando.
Minha mãe foi até a janela. (“Náufraga”, diziam as suas costas
retas, o seu cabelo cuidadosamente enrolado. “Náufraga.”)
— Ela tem um velho vestido de musseline. Encontre-o.
Enquanto Christophine esfregava o meu rosto e amarrava minhas
tranças com um pedaço novo de barbante, ela me contou que aquelas
eram as pessoas novas que moravam em Repouso do Nelson. Eles se
intitulavam Luttrell, mas, ingleses ou não ingleses, não eram como o
velho Sr. Luttrell.
— O velho Sr. Luttrell cospe na cara deles se vir o modo como
eles olharam para você. A desgraça entrou nesta casa hoje. A desgraça.
O velho vestido de musseline foi encontrado e rasgou quando eu o
forcei para entrar. Ela não notou.
Acabou a escravidão! Ela não podia deixar de rir!
— Essa gente nova tem lei. A mesma coisa. Tem juiz. Tem multa.
Tem cadeia e trabalhos forçados. Tem máquina para esmagar os pés das
pessoas. Os novos são piores do que os velhos, mais espertos, só isso.
Minha mãe não olhou para mim nem falou comigo a noite inteira,
e eu pensei: “Ela tem vergonha de mim, o que Tia disse é verdade.”
Fui para a cama cedo e dormi na mesma hora. Sonhei que estava
andando na floresta. Não estava sozinha. Alguém que me odiava estava
comigo, fora do alcance da minha vista. Eu podia ouvir passos pesados
aproximando-se e, embora lutasse e gritasse, não conseguia me mexer.
Acordei chorando. O lençol estava no chão e minha mãe olhava para
mim.
— Você teve um pesadelo?
— Tive um sonho ruim.
Ela suspirou e me cobriu.
— Você estava fazendo um barulhão. Tenho que ficar com Pierre,
você o assustou.
Fiquei ali deitada, pensando: “Estou segura. Tenho o canto da
porta do quarto e a mobília amiga. Tenho a árvore da vida no jardim e o
muro verde de musgo. A barreira dos rochedos e as montanhas altas. E a
barreira do mar. Estou segura. Estou a salvo dos estrangeiros.”
A luz da vela no quarto de Pierre ainda estava lá quando tornei a
dormir. Acordei na manhã seguinte, sabendo que nada seria como antes.
As coisas mudariam e continuariam a mudar.
Não sei como ela conseguiu dinheiro para comprar a musseline
branca e a cor-de-rosa. Metros e metros de musseline. Ela pode ter
vendido o seu último anel, pois havia sobrado um. Eu o vi na sua caixa
de joias — o anel e um medalhão com um trevo dentro. Elas estavam
costurando de manhã bem cedo e continuavam costurando quando eu
fui dormir. Em uma semana, ela estava com um vestido novo e eu
também.
Os Luttrell lhe emprestaram um cavalo, e ela saía cavalgando bem
cedo e só voltava bem tarde no dia seguinte — exausta porque tinha ido
a um baile ou a um piquenique ao luar. Ela estava alegre e sorridente —
mais jovem do que eu jamais a vira — e a casa ficava triste depois que ela
saía.
Então eu também saía e ficava fora até escurecer. Eu nunca ficava
muito tempo no poço, nunca encontrei Tia.
Eu pegava outra estrada, passava pela velha usina de açúcar e pelo
moinho de água que já não girava havia muitos anos. Eu ia a lugares em
Coulibri que ainda não conhecia, onde não havia estrada, nem caminho,
nem trilha. E quando o capim afiado cortava as minhas pernas e meus
braços, eu pensava: “É melhor do que gente.” Formigas-pretas ou
vermelhas, ninhos altos cheios de formigas-brancas, chuva que me
encharcava até os ossos — uma vez eu vi uma cobra. Tudo melhor do
que gente.
Melhor. Melhor, melhor do que gente.
Contemplar as flores vermelhas e amarelas ao sol sem pensar em
nada era como se uma porta abrisse e eu estivesse em outro lugar, como
se eu fosse outra coisa. Não mais eu mesma.
Eu conhecia aquela hora do dia em que, embora o céu seja quente
e azul e não haja nenhuma nuvem, ele pode ter uma aparência muito
ameaçadora.
Eu fui dama de honra quando minha mãe se casou com o Sr.
Mason, em Spanish Town. Christophine ondulou o meu cabelo. Eu
carreguei o buquê, e tudo o que usei era novo — até os meus lindos
sapatos. Mas todos os olhos desviavam-se da minha cara de ódio. Eu
tinha ouvido o que todas aquelas pessoas afáveis e sorridentes diziam a
respeito dela quando ela não estava perto, e elas não sabiam que eu
estava. Escondida delas no jardim quando visitavam Coulibri, eu ficava
escutando.
— Um casamento extravagante, e ele se arrependerá. Por que um
homem tão rico, que poderia escolher entre todas as moças das Índias
Ocidentais e muitas da Inglaterra também, provavelmente?
— Por que provavelmente? — disse a outra voz. — Com certeza.
Então por que ele resolveu casar-se com uma viúva sem um tostão e
Coulibri em ruínas? Problemas causados pela libertação dos escravos
mataram o velho Cosway? Bobagem, a propriedade já estava decadente
muitos anos antes disso. Ele bebeu até morrer. Diversas vezes... bem... e
todas aquelas mulheres! Ela nunca fez nada para impedi-lo; ela o
encorajava. Presentes e sorrisos para os bastardos todo Natal. Velhos
costumes? Alguns velhos costumes deveriam ser mortos e enterrados. O
novo marido dela vai ter que gastar um dinheirão para tornar a casa
habitável, parece uma peneira de tanta goteira. E o que dizer das baias e
da cocheira escura como breu, e os alojamentos dos empregados e a
cobra de quase dois metros que eu vi com meus próprios olhos enrolada
na tampa da privada da última vez que estive aqui? Assustada? Eu gritei.
Então aquele velho horrível que ela abriga apareceu, dando gargalhadas.
Quanto às duas crianças, o menino é um débil mental que é mantido
escondido, e a menina, na minha opinião, está indo pelo mesmo
caminho, tem uma expressão ameaçadora.
— Ah, eu concordo — disse a outra —, mas Annette é uma
mulher tão bonita. E como dança bem. Faz-me lembrar daquela canção,
“leve como uma pluma levada pela brisa alguma coisa”, ou será o ar?
Não me lembro.
Sim, como dançava bem — aquela noite em que eles voltaram para casa
da lua de mel em Trinidad e dançaram no glacis, sem música. Não havia
necessidade de música quando ela dançava. Eles pararam e ela se
inclinou para trás sobre o braço dele, até que seus cabelos negros
tocassem o chão — e mais para trás ainda. Depois ergueu o corpo num
segundo, rindo. Ela fez aquilo parecer tão fácil — como se qualquer
pessoa pudesse fazer, e ele a beijou —, um longo beijo. Dessa vez eu
também estava lá, mas eles tinham esquecido de mim, e logo eu também
deixei de pensar neles. Eu estava me lembrando daquela mulher
dizendo: “Dançar! Ele não veio para as Índias Ocidentais para dançar —
ele veio para ganhar dinheiro como todos fazem. Algumas das grandes
propriedades estão sendo vendidas muito baratas, e a desgraça de uns é
sempre a alegria de outros. Não, a coisa toda é um mistério. É sempre
útil ter uma feiticeira da Martinica por perto.” Ela estava se referindo a
Christophine. Ela disse isto zombando, sem acreditar, mas logo outras
pessoas estavam dizendo a mesma coisa — e acreditando.
Enquanto a casa estava sendo consertada e eles estavam em
Trinidad, Pierre t eu ficamos com tia Cora em Spanish Town.
O Sr. Mason não simpatizava com tia Cora, uma antiga dona de
escravos que havia escapado da miséria, uma fugitiva da Divina
Providência.
— Por que ela não fez nada para ajudar vocês?
Eu disse a ele que o marido dela era inglês e não gostava de nós, e
ele disse:
— Bobagem.
— Não é bobagem, eles moravam na Inglaterra e ele ficava
zangado quando ela escrevia para nós. Ele odiava as Índias Ocidentais.
Quando ele morreu, havia pouco tempo, ela voltou para casa; antes
disso, o que ela podia fazer? Ela não era rica.
— Isso é o que ela diz. Eu não acredito. Uma mulher frívola. No
lugar da sua mãe, eu ficaria magoada com o comportamento dela.
“Nenhum de vocês nos compreende”, pensei.
Coulibri parecia igual quando eu tornei a vê-la, embora estivesse limpa e
arrumada, sem capim no meio das pedras e sem goteiras. Mas parecia
igual. Sass tinha voltado e eu fiquei contente. Eles sentem o cheiro do
dinheiro, alguém disse. O Sr. Mason contratou novos empregados — eu
não gostei de nenhum, com exceção de Mannie, o cavalariço. Foi o
falatório das pessoas sobre Christophine que mudou Coulibri, não os
consertos, nem a mobília nova, nem as caras estranhas. O falatório deles
sobre Christophine e obeah foi o que mudou a casa.
Eu conhecia o quarto dela muito bem — os quadros da Sagrada
Família e a oração por uma boa morte. Tinha uma colcha de retalhos
colorida, um armário desconjuntado para guardar suas roupas e minha
mãe lhe dera uma velha cadeira de balanço.
Entretanto, um dia, quando esperava por ela lá, de repente senti
muito medo. A porta estava aberta para a luz do sol, alguém estava
assobiando perto das cocheiras, mas eu fiquei com medo. Eu tinha
certeza de que, escondidos no quarto (atrás do velho armário preto?),
havia uma mão seca de homem, penas brancas de galinha, um galo com
o pescoço cortado, morrendo muito lentamente. Gota a gota, o sangue
pingava numa bacia vermelha e eu imaginei que podia ouvir o barulho.
Ninguém jamais havia falado comigo sobre feitiçaria — mas eu sabia o
que encontraria se tivesse coragem de procurar. Então Christophine
entrou sorrindo e contente de me ver. Nada de alarmante jamais
aconteceu e eu esqueci, ou disse a mim mesma que havia esquecido.
O Sr. Mason riria se soubesse o quanto eu tinha ficado assustada.
Ele riria mais alto ainda do que riu quando minha mãe disse a ele que
queria sair de Coulibri.
Isso começou quando eles tinham mais ou menos um ano de
casados. Eles sempre diziam as mesmas coisas, e eu raramente prestava
atenção na discussão. Eu sabia que nós éramos odiados — mas ir
embora... excepcionalmente, eu concordei com o meu padrasto. Isso não
era possível.
— Você deve ter algum motivo — dizia ele, e ela respondia:
— Eu preciso de uma mudança. — Ou então: — Nós podíamos ir
visitar o Richard. — (Richard, filho do primeiro casamento do Sr.
Mason, estava na escola em Barbados. Em breve ele iria para a
Inglaterra e nós havíamos estado muito pouco com ele.)
— Um agente poderia tomar conta da propriedade. Por enquanto.
As pessoas aqui nos odeiam. Elas com certeza me odeiam. — Ela disse
isso com todas as letras, um dia, e foi quando ele riu com vontade.
— Annette, seja razoável. Você era a viúva de um senhor de
escravos, a filha de um senhor de escravos, e você estava morando aqui
sozinha, com duas crianças, havia quase cinco anos, quando nos
conhecemos. As coisas estavam péssimas naquela época. Mas você
nunca foi importunada, nunca foi maltratada.
— Como você sabe que eu não fui maltratada? — perguntou ela.
— Nós éramos tão pobres que éramos motivo de riso — disse ela a ele.
— Mas agora não somos mais pobres — continuou. — Você não é um
homem pobre. Você acha que eles não sabem da sua propriedade em
Trinidad? E da propriedade em Antígua? Eles falam sem parar sobre
nós. Inventam histórias sobre você, e mentiras sobre mim. Tentam
descobrir o que comemos todo dia.
— Eles estão curiosos. É natural. Você viveu muito tempo
sozinha, Annette. Você imagina uma inimizade que não existe. Sempre
num extremo ou no outro. Você voou no meu pescoço como uma gata
selvagem quando eu usei a expressão pretinho. Nem pretinho nem preto.
Eu só posso dizer gente negra.
— Você não aprecia, nem mesmo reconhece, o que há de bom
neles — disse ela —, e não quer acreditar no reverso da medalha.
— Eles são preguiçosos demais para ser perigosos — disse o Sr.
Mason. — Eu sei disso.
— Eles são mais vivos do que você, preguiçosos ou não, e podem
ser perigosos e cruéis por motivos que você não entenderia.
— Não, eu não entendo — sempre dizia o Sr. Mason. — Eu não
entendo mesmo.
Mas ela continuava falando sem parar. Com persistência. Com
raiva.
O Sr. Mason parou perto das cabanas vazias a caminho de casa
naquela tarde.
— Foram todos para um desses bailes — disse ele. — Jovens e
velhos. Como isto aqui parece deserto.
— Nós ouviremos os tambores, se houver dança. — Eu queria que
ele continuasse logo, mas ficou parado perto das cabanas para ver o sol
se pôr; o céu e o mar estavam em fogo quando finalmente saímos de
Bertrand Bay. De uma longa distância, eu vi a sombra da nossa casa bem
alta sobre suas fundações de pedra. Havia um cheiro de samambaias e de
água de rio, e eu me senti segura de novo, como se fosse um dos justos.
(Godfrey dizia que nós não éramos justos. Um dia, quando estava
bêbado, ele me disse que estávamos todos condenados e que não
adiantava rezar.)
— Eles escolheram uma noite muito quente para dançar — disse o
Sr. Mason, e tia Cora foi até o glacis. — Que dança? Onde?
— Tem alguma festa nas vizinhanças. As cabanas estão vazias. Um
casamento, talvez?
— Um casamento, não — disse. — Nunca tem nenhum
casamento. — Ele franziu a testa para mim, mas tia Cora sorriu.
Depois que eles entraram, eu encostei os braços na balaustrada fria
do glacis e pensei que nunca gostaria muito dele. Eu ainda o chamava de
Sr. Mason na minha cabeça. “Boa-noite, papai branco”, eu disse uma
noite, e ele não ficou aborrecido, ele riu. Em alguns aspectos, era melhor
antes de ele aparecer, embora ele nos tenha salvado da pobreza e da
aflição. “Bem na hora também.” Os pretos não nos odiavam tanto
quando éramos pobres. Nós éramos brancos, mas não tínhamos
escapado e logo estaríamos mortos porque não tínhamos mais nenhum
dinheiro. O que havia para odiar?
Agora tinha começado de novo, e pior do que antes, minha mãe
sabe, mas não consegue fazer com que ele acredite. Eu gostaria de poder
dizer a ele que lá não é como os ingleses pensam que é. Eu gostaria...
Eu podia ouvi-los conversando e tia Cora rindo. Eu estava
contente por ela estar morando conosco. E eu podia ouvir os bambus
tremerem e estalarem, embora não houvesse vento. Tinha estado quente,
parado e seco por vários dias. As cores tinham sumido do céu, a luz era
azul e não podia durar muito. O glacis não era um bom lugar quando a
noite vinha chegando, Christophine dizia. Quando eu entrei, minha
mãe estava falando com uma voz agitada:
— Muito bem. Como você se recusa a ir, eu vou e vou levar Pierre
comigo. Espero que você não faça nenhuma objeção a isso.
— Você tem toda razão, Annette — disse tia Cora, e isso me
surpreendeu. Ela raramente falava quando eles discutiam.
O Sr. Mason também pareceu surpreso e nada satisfeito.
— Você fala tão irrefletidamente — disse ele. — E está tão
enganada. É claro que você pode sair para espairecer, se quiser. Eu
prometo.
— Você já me prometeu isso antes — disse ela. — Você não
cumpre as suas promessas.
Ele suspirou:
— Eu me sinto muito bem aqui. Entretanto, vamos providenciar
alguma coisa. Muito em breve.
— Eu não vou mais ficar em Coulibri — disse minha mãe. — Não
é seguro. Não é seguro para o Pierre.
Tia Cora concordou.
Como estava tarde, eu comi com eles, em vez de comer sozinha,
como de costume. Myra, uma das empregadas novas, estava parada ao
lado do aparador, esperando para trocar os pratos. Nós comíamos
comida inglesa agora, carne de vaca e de carneiro, tortas e pudins.
Eu estava contente em ser uma menina inglesa, mas sentia falta da
comida de Christophine.
Meu padrasto falou de um plano para importar trabalhadores —
coolies, ele os chamava — das Índias Orientais. Depois que Myra saiu,
tia Cora disse:
— Eu não falaria nisso se fosse você. Myra está ouvindo.
— Mas as pessoas aqui se recusam a trabalhar. Elas não querem
trabalhar. Veja este lugar — é de partir o coração.
— Corações foram partidos — disse ela. — Pode ter certeza disso.
Suponho que você saiba o que está fazendo.
— Você quer dizer...
— Eu não disse nada, só que seria mais prudente não contar os
seus planos — necessários e compassivos, sem dúvida — para aquela
mulher. Eu não confio nela.
— Vocês viveram a vida inteira aqui e não sabem nada sobre o
povo. É estarrecedor. Eles são crianças — não fariam mal a uma mosca.
— Crianças infelizes machucam moscas, sim — disse tia Cora.
Myra tornou a entrar com o ar fúnebre de sempre, embora ela
sempre sorrisse quando falava sobre o inferno. Ela me disse que todo
mundo ia para o inferno; para ser salva a pessoa tinha de pertencer à
seita dela, e mesmo assim — era melhor não ter muita certeza. Ela tinha
braços finos, mãos e pés grandes, e o lenço que usava em volta da cabeça
era sempre branco. Nunca listrado ou de uma cor alegre.
Então eu desviei os olhos dela e olhei para o meu quadro favorito,
“A filha de Miller”, uma linda moça inglesa de cachos castanhos e olhos
azuis e um vestido decotado. Depois olhei por cima da toalha branca e
do vaso de flores amarelas para o Sr. Mason, tão seguro de si, tão
indubitavelmente inglês. E para a minha mãe, tão indubitavelmente não
inglesa, mas também não negra branca. Não a minha mãe. Nunca tinha
sido. Nunca poderia ser. Sim, ela teria morrido, eu pensei, se não o
tivesse conhecido. E pela primeira vez eu me senti grata e gostei dele.
Há mais de uma maneira de ser feliz, talvez seja melhor ter paz, sentir-
se satisfeita e protegida, como eu me sinto, viver muitos e muitos anos
em paz, e depois talvez eu me salve, apesar do que Myra diz. (Quando
eu perguntei a Christophine o que acontece quando a gente morre, ela
disse: “Você quer saber demais.”) Eu me lembrei de dar um beijo de
boa-noite no meu padrasto. Um dia, tia Cora disse:
— Ele fica muito magoado porque você nunca o beija.
— Ele não parece magoado — retruquei.
— É um grande erro deixar-se levar pelas aparências — disse ela
—, de uma forma ou de outra.
Entrei no quarto de Pierre, que era ao lado do meu, o último da
casa. Os bambus ficavam ao lado da janela dele. Você quase podia tocar
neles. Ele ainda tinha um berço e dormia cada vez mais, quase o tempo
todo. Era tão magro que eu conseguia erguê-lo com facilidade. O Sr.
Mason tinha prometido que mais tarde iria levá-lo para a Inglaterra, lá
ele ficaria curado, ficaria igual às outras pessoas. “E o que você acha
disto?” Eu pensei enquanto o beijava. “O que você vai achar de ser
exatamente igual às outras pessoas?” Ele parecia feliz dormindo. Mas
isso vai ser mais tarde. Mais tarde. Agora durma. Foi então que eu ouvi
os bambus estalarem de novo e um som como um sussurro. Eu me forcei
a olhar pela janela. Havia uma lua cheia, mas eu não vi ninguém, nada
além de sombras.
Deixei uma luz na cadeira ao lado da minha cama e esperei por
Christophine, pois gostava de vê-la antes de dormir. Mas ela não veio e
a vela queimou até apagar, tirando de mim a sensação de paz e
segurança. Eu queria ter um grande cão deitado ao lado da minha cama
para me proteger, queria não ter ouvido um barulho no bambuzal, ou
então queria ser ainda bem pequena e acreditar no meu bastão. Não era
um bastão, mas um pedaço de madeira longo e fino, com dois pregos na
ponta, uma ripa, talvez. Eu o peguei logo depois que mataram o nosso
cavalo, e achei que poderia defender-me com ele; se o pior acontecer, eu
posso lutar até o fim, embora os melhores sejam derrotados e essa é uma
outra canção. Christophine arrancou fora os pregos, mas deixou que eu
guardasse a ripa, e eu me afeiçoei a ela, acreditava que ninguém poderia
fazer-me mal quando ela estivesse perto de mim, perdê-la teria sido uma
grande desgraça. Tudo isso foi há muito tempo, quando eu ainda era
infantil e acreditava que tudo tinha vida, não apenas o rio e a chuva, mas
cadeiras, espelhos, xícaras, tudo.
Acordei e ainda era noite, e minha mãe estava lá.
— Levanta, se veste e depois desce depressa — disse ela. Estava
vestida, mas não tinha prendido o cabelo e uma de suas tranças estava
solta. — Rápido — repetiu ela, depois entrou no quarto de Pierre, ao
lado. Eu a ouvi falando com Myra, e ela respondendo. Fiquei ali deitada,
meio adormecida, olhando para a vela acesa em cima da cômoda, até
ouvir um barulho, como se uma cadeira tivesse caído no pequeno quarto,
então me levantei e me vesti.
A casa tinha diferentes níveis. Havia três degraus do meu quarto e
do de Pierre até a sala de jantar e depois mais três degraus da sala de
jantar para o resto da casa, que nós chamávamos de “lá embaixo”. As
portas de duas folhas da sala de jantar não estavam fechadas, e eu pude
ver que a grande sala de visitas estava cheia de gente. O Sr. Mason,
minha mãe, Christophine, Mannie e Sass. Tia Cora estava sentada no
sofá azul, no canto da sala, usando um vestido de seda preta, o cabelo
cuidadosamente arrumado. Parecia muito altiva, pensei. Mas Godfrey
não estava lá, nem Myra, nem a cozinheira, nem nenhum dos outros.
— Não há motivo para ficar alarmada — estava dizendo meu
padrasto quando eu entrei. — Um punhado de negros bêbados. — Ele
abriu a porta que dava para o glacis e saiu. — O que é isso? — gritou
ele. — O que vocês querem? — Um barulho horrível ergueu-se, como
animais uivando, mas pior. Ouvimos pedras caindo no glacis. Ele estava
pálido quando tornou a entrar, mas tentou sorrir enquanto fechava a
porta e passava a tranca.
“Eles são mais do que eu pensava, e estão de péssimo humor. Vão
arrepender-se de manhã. Prevejo ofertas de compota de tamarindo e
doces de gengibre amanhã.”
— Amanhã será tarde demais — disse tia Cora —, tarde demais
para doces de gengibre ou qualquer outra coisa.
Minha mãe, que não estava prestando atenção a nenhum dos dois,
disse:
— Pierre está dormindo e Myra está com ele, eu achei melhor
deixá-lo em seu quarto, longe deste barulho horrível. Eu não sei. Talvez.
— Ela estava torcendo as mãos, sua aliança de casamento caiu e rolou
para um canto perto da escada. Meu padrasto e Mannie abaixaram-se ao
mesmo tempo para apanhá-la, então Mannie endireitou o corpo e disse:
— Meu Deus, eles puseram fogo nos fundos da casa. — Ele
apontou para a porta do meu quarto, que eu tinha fechado ao sair, e por
baixo dela estava saindo fumaça.
Eu não vi minha mãe mover-se, de tão rápida que ela foi. Abriu a
porta do meu quarto e eu não a vi, só vi fumaça. Mannie correu atrás
dela, e também o Sr. Mason, só que mais devagar. Tia Cora me abraçou.
— Não tenha medo, você está segura. — Só por um instante, eu
fechei os olhos e descansei a cabeça em seu ombro. Ela cheirava a
baunilha, eu me lembro. Depois senti um outro cheiro, de cabelo
queimado, e olhei e vi que minha mãe estava na sala carregando Pierre.
Era o cabelo dela que tinha queimado e estava com aquele cheiro.
Eu pensei: Pierre está morto. Ele parecia morto. Estava branco e
não fazia nenhum som, e sua cabeça estava pendurada para trás no braço
dela, como se ele não tivesse vida, e os olhos estavam revirados para trás,
de modo que você só via o branco. Meu padrasto disse:
— Annette, você está ferida, suas mãos... — Mas ela nem olhou
para ele.
— O berço dele estava pegando fogo — disse ela para tia Cora. —
O quartinho está em chamas e Myra não estava lá. Ela foi embora. Ela
não estava lá.
— Isso não me surpreende nem um pouco — disse tia Cora. Ela
deitou Pierre no sofá, inclinou-se sobre ele, depois levantou a saia, tirou
sua anágua branca e começou a rasgá-la em tiras.
— Ela o deixou, fugiu, e o deixou lá sozinho para morrer — disse
minha mãe, ainda sussurrando. Por isso foi ainda mais terrível quando
ela começou a xingar o Sr. Mason aos gritos, chamando-o de idiota,
idiota burro e cruel. — Eu disse a você, eu disse a você muitas e muitas
vezes o que iria acontecer. — Sua voz ficou embargada, mas ela
continuou gritando: — Você não me ouviu, você debochou de mim, seu
hipócrita sorridente, você também não devia ficar vivo, você sabe tanto,
não é? Por que não vai lá fora e pede a eles para deixarem você ir? Diga
como você é inocente. Diga que você sempre confiou neles.
Fiquei tão chocada que tudo pareceu confuso. E aconteceu
rapidamente. Eu vi Mannie e Sass cambaleando com o peso de duas
enormes jarras de cerâmica que ficavam na copa. Eles jogaram a água no
quarto e ela formou uma poça negra no chão, mas a fumaça rolou por
cima da poça. Então Christophine, que tinha corrido para o quarto da
minha mãe para buscar a jarra que havia lá, voltou e falou com minha
tia:
— Parece que eles puseram fogo do outro lado da casa.
— Eles devem ter subido naquela árvore do lado de fora — disse
tia Cora. — Este lugar vai queimar como lenha e não há nada que
possamos fazer para evitar. Quanto antes sairmos daqui, melhor.
Mannie perguntou para o menino:
— Está com medo? — Sass sacudiu a cabeça. — Então vem —
disse ela.
— Sai da frente — disse ele, empurrando o Sr. Mason. Uma
escada estreita de madeira ia da copa para os anexos, a cozinha, os
quartos dos empregados, as cocheiras. Era para lá que eles estavam indo.
— Pegue a criança — disse tia Cora a Christophine — e venha.
Estava muito quente no glacis também, eles urraram quando
saímos, depois houve outro urro atrás de nós. Eu não tinha visto
chamas, só fumaça e fagulhas, mas agora eu via chamas altas subindo na
direção do céu, porque os bambus tinham pegado fogo. Havia algumas
árvores de samambaia perto, verdes e úmidas, e uma delas também
estava queimando.
— Vem depressa — disse tia Cora, e ela foi primeiro, segurando a
minha mão. Christophine veio atrás, carregando Pierre, e nós descemos
os degraus do glacis sem dizer uma palavra. Mas quando eu procurei a
minha mãe, vi que o Sr. Mason, o rosto vermelho de calor, parecia estar
arrastando-a e ela resistindo, lutando. Eu o ouvi dizer:
— É impossível, agora é tarde demais.
— Ela quer a caixa de joias dela? — disse tia Cora.
— Caixa de joias? Nada tão sensato! — berrou o Sr. Mason. —
Ela queria voltar para pegar aquele maldito papagaio. Eu não vou deixar.
— Ela não respondeu, apenas lutou silenciosamente, contorcendo-se
como um gato e mostrando os dentes.
Nosso papagaio chamava-se Coco, um papagaio verde. Ele não
falava muito bem, sabia dizer Qui est là? Qui est là?, e responder a si
mesmo Ché Coco, Ché Coco. Depois que o Sr. Mason aparou-lhe as
asas, ele ficou muito mal-humorado, e, embora pousasse calmamente no
ombro da minha mãe, atacava qualquer um que se aproximasse dela e
bicava os pés da pessoa.
— Annette — disse tia Cora. — Eles estão rindo de você, não
permita que riam de você. — Então ela parou de lutar e ele nos seguiu,
meio sustentando-a, meio empurrando-a, praguejando em voz alta.
Eles ainda estavam quietos, e havia tantos que eu mal podia
enxergar um pedaço de grama ou as árvores. Devia haver muita gente da
baixada, mas eu não identifiquei ninguém. Todos pareciam iguais, era o
mesmo rosto repetido sem parar, olhos brilhando, bocas semiabertas
para gritar. Nós já tínhamos passado da pedra de montar quando eles
viram Mannie chegando com a carruagem. Sass vinha atrás, montado
num cavalo e puxando outro. Havia uma sela de mulher no que ele
estava puxando.
Alguém gritou “Vejam só o inglês preto! Vejam só os negros
brancos!”, e então todos começaram a gritar: “Vejam só os negros
brancos! Vejam os malditos negros brancos!” Uma pedra passou
raspando pela cabeça de Mannie, ele xingou de volta e eles se afastaram
dos cavalos, que começaram a empinar, assustados.
— Andem logo, pelo amor de Deus — disse o Sr. Mason. —
Entrem na carruagem, subam nos cavalos. — Mas nós não podíamos
avançar porque eles estavam nos cercando. Alguns estavam rindo e
sacudindo pedaços de pau, alguns dos que estavam atrás carregavam
tochas e estava claro como o dia. Tia Cora segurou minha mão com
muita força e seus lábios moveram-se, mas eu não consegui ouvir por
causa do barulho. E eu estava com medo, porque sabia que os que riam
iam ser os piores. Fechei os olhos e esperei. O Sr. Mason parou de
xingar e começou a rezar numa voz alta e lamuriosa. A oração terminou
assim: “Que Deus Todo-poderoso nos proteja.” E Deus, que é realmente
misterioso, que não tinha enviado nenhum sinal quando puseram fogo
em Pierre enquanto ele dormia, nem um trovão, nem um relâmpago, o
Deus misterioso atendeu imediatamente ao Sr. Mason e respondeu. Os
gritos pararam.
Abri os olhos, todo mundo estava olhando para cima e apontando
para Coco, que estava na balaustrada do glacis com as penas pegando
fogo. Ele tentou voar, mas suas asas cortadas falharam e ele caiu,
berrando. Ele estava todo envolto em chamas.
Eu comecei a chorar.
— Não olhe — disse tia Cora. — Não olhe. — Ela se abaixou e
me abraçou, e eu escondi o rosto, mas pude sentir que eles não estavam
mais tão perto. Ouvi alguém dizer alguma coisa sobre azar e me lembrei
que dava muito azar matar um papagaio, ou até mesmo ver um papagaio
morrer. Então eles começaram a se retirar, rapidamente,
silenciosamente, e os que ficaram se afastaram e nos observaram
atravessar o gramado. Eles não estavam mais rindo.
— Alcancem a carruagem, alcancem a carruagem — disse o Sr.
Mason. — Depressa! — Ele alcançou primeiro, segurando o braço da
minha mãe, depois Christophine carregando Pierre, e tia Cora foi a
última, ainda segurando a minha mão. Nenhum de nós olhou para trás.
Mannie tinha parado os cavalos na curva da estrada de cascalho e,
quando chegamos perto, o ouvimos gritar:
— O que vocês são, hein? Animais selvagens? — Ele estava
falando para um grupo de homens e algumas mulheres que estavam
cercando a carruagem. Um homem de cor com um facão na mão estava
segurando as rédeas. Eu não vi Sass nem os outros dois cavalos.
— Entrem — disse o Sr. Mason. — Não liguem para ele, entrem.
— O homem com o facão disse não. Disse que iríamos chamar a polícia
e contar um monte de mentiras. Uma mulher disse-lhe que nos deixasse
ir. Que tudo tinha sido um acidente e que eles tinham muitas
testemunhas. — Myra testemunha para nós.
— Cala essa boca — disse o homem. — Você esmaga centopeia,
esmaga ela, deixa um pedacinho e ela cresce de novo... Em quem você
acha que a polícia vai acreditar, hein? Em você ou no negro branco?
O Sr. Mason olhou para ele. Ele não parecia assustado e, sim,
pasmo demais para falar. Mannie ergueu o chicote da carruagem, mas
um dos homens mais pretos arrancou-o de suas mãos, partiu-o de
encontro ao joelho e o atirou longe.
— Fuja, inglês preto, como o garoto fugiu. Esconda-se no mato. É
melhor para você.
Foi tia Cora quem deu um passo à frente e disse:
— O meninozinho está muito ferido. Se não conseguirmos
socorro, ele vai morrer.
O homem disse:
— Então preto e branco, eles queimam igual, hein?
— Queimam — disse ela. — Aqui e no além, como você irá
descobrir. Muito em breve.
Ele largou as rédeas e aproximou o rosto do dela. Disse que ia
atirá-la no fogo se ela rogasse praga nele. Sua bruxa velha, ele disse. Mas
ela não recuou um centímetro, ela olhou bem nos olhos dele e ameaçou-
o com o fogo eterno numa voz calma.
— E nunca uma gota de sangria irá esfriar a sua língua em chamas
— disse ela. Ele tornou a xingá-la, mas recuou.
— Agora entrem — disse o Sr. Mason. — Você, Christophine,
entre com a criança. — Christophine entrou. — Agora você — disse ele
à minha mãe. Mas ela havia se virado e estava olhando para a casa, e
quando ele segurou no braço dela, ela gritou.
Uma mulher disse que só tinha ido até lá para ver o que ia
acontecer. Outra mulher começou a chorar. O homem com o facão
disse:
— Você chora por ela... quando foi que ela um dia chorou por
você? Me responda isso.
Mas então eu também me virei. A casa estava queimando, o céu
amarelo-avermelhado parecia o pôr do sol, e eu soube que nunca mais
tornaria a ver Coulibri. Não restaria nada, as samambaias douradas e as
samambaias prateadas, as orquídeas, os lírios e as rosas, as cadeiras de
balanço e o sofá azul, o jasmim e a madressilva, e o retrato da Filha de
Miller. Quando eles terminassem, não restaria nada, a não ser paredes
escuras e a pedra de montar. Isso sempre ficava. Não podia ser roubado
nem queimado.
Então, não muito longe, eu vi Tia e a mãe dela, e corri para ela,
pois ela era tudo o que restara da minha vida como tinha sido. Nós
tínhamos comido a mesma comida, dormido lado a lado, tomado banho
no mesmo rio. Enquanto corria, eu pensava: Vou morar com Tia e ser
igual a ela. Não deixar Coulibri. Não ir embora. Não. Quando cheguei
perto, vi a pedra em sua mão, mas não a vi atirá-la. Também não a senti,
só uma coisa úmida, escorrendo pelo meu rosto. Olhei para ela e vi seu
rosto contorcer-se quando ela começou a chorar. Olhamos uma para a
outra, sangue no meu rosto, lágrimas no dela. Era como se eu estivesse
vendo a mim mesma. Como num espelho.
Era tudo muito colorido, muito estranho, mas não significava nada para
mim. E nem ela, a moça com quem eu ia me casar. Quando finalmente
a conheci, curvei-me, sorri, beijei sua mão, dancei com ela.
Desempenhei o papel que me fora reservado. Ela nunca teve nada a ver
comigo. Todo movimento que eu fazia era um esforço de vontade, e às
vezes eu ficava imaginando se ninguém notava isto. Eu escutava a minha
própria voz e me admirava dela, calma, correta, mas sem tonalidade
alguma. Mas devo ter tido um desempenho perfeito. Se vi alguma
expressão de dúvida ou curiosidade foi em um rosto negro, não em um
branco.
Eu me lembro muito pouco da cerimônia em si. Placas de
mármore nas paredes celebrando as virtudes da última geração de
fazendeiros. Todos benevolentes. Todos senhores de escravos. Todos
descansando em paz. Quando saímos da igreja, eu peguei na mão dela.
Estava fria como gelo no sol escaldante.
Depois eu me vi numa mesa comprida, numa sala cheia de gente.
Leques de folha de palmeira, uma multidão de empregados, os lenços de
cabeça das mulheres listrados de vermelho e amarelo, os rostos sombrios
dos homens. O gosto forte de ponche, o gosto mais puro do
champanhe, minha noiva de branco, mas eu mal me lembro do seu
semblante. Depois, em outra sala, mulheres vestidas de preto. Prima
Julia, prima Ada, tia Lina. Gordas ou magras, todas elas se pareciam.
Brincos de ouro em orelhas furadas. Pulseiras de prata tilintando nos
pulsos.
— Estamos deixando a Jamaica esta noite — eu disse a uma delas,
e ela respondeu após uma pausa:
— É claro, Antoinette não gosta de Spanish Town. A mãe dela
também não gostava. — Olhando-me fixamente. (Será que os olhos
delas ficam menores à medida que envelhecem? Menores, mais
redondos, mais inquisitivos?) Depois disso, eu tive a impressão de ver a
mesma expressão no rosto de todas elas. Curiosidade? Pena? Zombaria?
Mas por que teriam pena de mim? Logo de mim, que me arranjei tão
bem?
Na manhã anterior ao casamento, Richard Mason entrou de
repente no meu quarto, na casa dos Fraser, quando eu estava terminando
a primeira xícara de café.
— Ela não vai levar isto até o fim!
— Não vai levar o que até o fim?
— Ela não vai casar com você.
— Mas por quê?
— Ela não diz por quê.
— Ela deve ter alguma razão para isso.
— Ela se recusa a dar uma razão. Eu passei uma hora discutindo
com aquela tola.
Nós nos entreolhamos.
— Está tudo pronto, os presentes, os convites. O que vou dizer ao
seu pai? — Ele parecia estar à beira das lágrimas.
— Se ela não quer, então pronto — disse eu. — Ela não pode ser
arrastada até o altar. Deixa eu me vestir. Eu tenho que ouvir o que ela
tem a dizer.
Ele saiu cabisbaixo, e, enquanto me vestia, pensei que, se isto
acontecesse, eu iria realmente fazer papel de bobo. Não me agradava
voltar para a Inglaterra no papel de pretendente rejeitado por essa
rapariga crioula. Eu tinha mesmo que saber por quê.
Ela estava sentada numa cadeira de balanço com a cabeça baixa. O
cabelo penteado em duas compridas tranças caía-lhe nos ombros. A uma
certa distância dela, perguntei suavemente:
— O que aconteceu, Antoinette? O que foi que eu fiz?
Ela não disse nada.
Você não quer casar comigo?
— Não — respondeu ela bem baixinho.
— Mas por quê?
— Tenho medo do que possa acontecer.
— Mas você não lembra que ontem à noite eu lhe disse que
quando você fosse minha esposa não teria mais motivo para ter medo?
— Sim — disse ela. — Aí o Richard entrou e você riu. Eu não
gostei do modo como você riu.
— Mas eu estava rindo de mim mesmo, Antoinette.
Ela olhou para mim e eu a tomei nos braços e beijei-a.
— Você não sabe nada a meu respeito — disse ela.
— Eu confio em você, se você confiar em mim. Está combinado?
Você me deixará muito infeliz se me mandar embora sem dizer o que foi
que eu fiz para desagradá-la. Eu partirei com o coração triste.
— Seu coração triste — disse ela, e tocou o meu rosto. Eu a beijei
ardentemente, prometendo-lhe paz, felicidade, segurança, mas quando
eu disse: “Posso dizer ao pobre Richard que foi um engano? Ele também
está triste”, ela não me respondeu. Apenas balançou a cabeça.
Uma manhã, logo depois que chegamos, a fileira de árvores altas do lado
de fora da minha janela amanheceu coberta de florezinhas claras, frágeis
demais para resistir ao vento. Elas só duraram um dia, e pareciam neve
sobre o gramado — neve com um perfume leve e doce. Em seguida o
vento as levou embora.
O bom tempo durou mais. Durou toda a semana e a outra e a
outra e a outra. Nenhum sinal de mudança. A fraqueza que havia
resultado da febre foi embora, assim como todos os meus receios.
Eu ia bem cedo para o poço e ficava lá durante horas, sem querer
deixar o rio, a sombra das árvores, as flores que abriam à noite. Elas
ficavam bem fechadas, penduradas, abrigando-se sob as folhas grossas.
Era um lugar lindo — selvagem, intocado, principalmente
intocado, com uma beleza estranha, perturbadora, secreta. E guardava o
seu segredo. Eu me via pensando: “O que eu estou vendo não é nada —
eu quero o que ele esconde — isso é que tem significado.”
No final da tarde, quando a água estava mais quente, ela se
banhava comigo. Perdia algum tempo atirando pedrinhas numa rocha
plana que ficava no meio do poço.
— Eu o vi. Ele não morreu nem foi para nenhum outro rio. Ainda
está aqui. Os caranguejos de terra são inofensivos. Dizem que eles são
inofensivos. Eu não gostaria de...
— Nem eu. São umas criaturas horríveis.
Ela era indecisa, não tinha certeza de nada. Quando lhe perguntei
se as cobras que às vezes víamos eram venenosas, ela respondeu:
— Aquelas não. A fer de lance sim, é claro, mas não tem nenhuma
aqui — e acrescentou: —, mas como é que eles podem ter certeza? Você
acha que eles sabem? — E depois: — Nossas cobras não são venenosas.
É claro que não.
Entretanto, ela estava convicta do caranguejo gigante, e uma tarde,
quando eu a estava observando, mal podendo acreditar que aquela era a
criatura pálida e silenciosa com quem eu tinha me casado, observando-a
vestida com sua camisola azul, azul de bolas brancas, erguida bem acima
dos joelhos, ela parou de rir, gritou um aviso e atirou uma pedra grande.
Ela atirou como um menino, com um movimento seguro e gracioso, e
eu vi umas garras bem compridas, grandes e afiadas, desaparecendo.
— Ele não o atacará se você ficar longe daquela pedra. Ele mora
lá. Ah, é um outro tipo de caranguejo. Eu não sei o nome em inglês.
Muito grande e muito velho.
Quando estávamos voltando para casa, perguntei quem lhe
ensinara a mirar tão bem.
— Ah, Sandi me ensinou, um garoto que você nunca viu.
Toda tarde nós assistíamos ao pôr do sol do abrigo coberto de sapê que
ela chamava de ajoupa, e eu chamava de pavilhão. Nós olhávamos o céu
e o mar distantes em fogo — todas as cores estavam nesse fogo e as
enormes nuvens, debruadas e entretecidas de chamas. Mas eu me
cansava logo do espetáculo. Ficava esperando pelo perfume das flores na
beira do rio — elas abriam quando escurecia, e escurecia muito depressa.
Não a noite ou a escuridão que eu conhecia, mas uma noite de estrelas
faiscantes, uma lua diferente — noite cheia de estranhos ruídos. Ainda
assim noite, não dia.
— O homem que é dono da Fazenda Consolação é um eremita —
estava dizendo ela. — Ele nunca recebe ninguém, quase nunca fala, pelo
que dizem.
— Um vizinho eremita me agrada bastante. Muito mesmo.
— Existem quatro eremitas nesta ilha — disse ela. — Quatro de
verdade. Outros fingem que são eremitas, mas partem quando começa a
estação das chuvas. Ou então vivem bêbados. É aí que coisas tristes
acontecem.
— Então este lugar é tão solitário quanto parece ser? — perguntei.
— Sim, ele é solitário. Você é feliz aqui?
— Quem não seria?
— Eu amo este lugar mais do que qualquer outro no mundo.
Como se ele fosse uma pessoa. Mais que uma pessoa.
— Mas você não conhece o mundo — eu disse para implicar.
— Não, só conheço este lugar, e a Jamaica, é claro. Coulibri,
Spanish Town. Não conheço nenhuma outra ilha. O mundo é mais
bonito, então?
Como responder a isto?
— É diferente — eu disse.
Ela me contou que por muito tempo eles não souberam o que
estava acontecendo em Granbois.
— Quando o Sr. Mason veio — ela sempre chamava o padrasto de
Sr. Mason —, a floresta estava engolindo tudo. — O capataz bebia, a
casa estava em ruínas, toda a mobília tinha sido roubada, então
descobriu-se Baptiste. Um mordomo. Em St. Kitts. Mas nascido nesta
ilha e desejoso de voltar. — Ele é um ótimo capataz — dissera ela, e eu
tinha concordado, guardando para mim a opinião que tinha de Baptiste,
de Christophine e de todos os outros. — Baptiste diz... Christophine
quer..
Ela confiava neles, e eu não. Mas eu não podia dizer isso. Ainda
não era o momento.
Nós não os víamos muito. A cozinha e a agitada vida da cozinha
ficavam a uma certa distância. Quanto ao dinheiro que ela distribuía
com tanta facilidade, sem contar, sem saber quanto tinha dado, ou os
rostos desconhecidos que apareciam e desapareciam, embora nunca
antes de comer uma lauta refeição e tomar um trago de rum, conforme
descobri — irmãs, primos, tias e tios —, se ela não fazia nenhuma
pergunta, como eu poderia fazer?
A casa era varrida e espanada muito cedo, geralmente antes de eu
À
acordar. Hilda trazia o café e havia sempre duas rosas na bandeja. Às
vezes ela dava um sorriso doce e infantil, às vezes ria alto, de um modo
grosseiro, largava a bandeja e saía correndo.
— Garota estúpida — eu dizia.
— Não, não. Ela é tímida. As moças daqui são muito tímidas.
Após o almoço, ao meio-dia, havia silêncio até o jantar, que era
servido muito mais tarde do que na Inglaterra. Caprichos de
Christophine, eu tinha certeza. Então nos deixavam sozinhos. Às vezes
um olhar de esguelha ou um olhar malicioso me deixavam aborrecido,
mas nunca por muito tempo. Agora não, eu pensava. Ainda não.
Geralmente estava chovendo quando eu acordava durante a noite,
uma chuva leve e caprichosa, uma chuva brincalhona que dançava, ou
um som abafado, que ia ficando mais alto, mais persistente, mais forte,
um som inexorável. Mas sempre música, uma música que eu nunca
ouvira antes.
Então eu passava longos minutos contemplando-a à luz de vela,
imaginava por que parecia triste adormecida, e amaldiçoava a febre ou a
cautela que me haviam deixado tão cego, tão fraco, tão hesitante. Eu me
lembrava do esforço dela para fugir. (Não, sinto muito, não quero me
casar com você.) Ela teria cedido aos argumentos daquele homem,
Richard, às suas ameaças talvez, eu não tinha nenhuma confiança nele,
ou às minhas bajulações e promessas não muito sinceras? De todo modo,
ela cedera, mas friamente, de má vontade, tentando proteger-se com o
silêncio e um rosto sem expressão. Armas frágeis, que não haviam
servido para grande coisa nem durado muito. Se eu esqueci a cautela, ela
esqueceu o silêncio e a frieza.
Devo acordá-la e ouvir as coisas que ela diz, que murmura, no
escuro. De dia, não.
— Eu nunca desejei viver antes de conhecê-lo. Sempre achei que
seria melhor se eu morresse. Tanto tempo de espera antes que tudo se
acabe.
— E você alguma vez contou isto a alguém?
— Não havia ninguém para contar, ninguém para ouvir. Ah, você
não pode imaginar o que era Coulibri.
— Mas, e depois de Coulibri?
— Depois de Coulibri era tarde demais. Eu não mudei.
O dia inteiro ela era igual a qualquer outra moça, sorria para si
mesma no espelho (Você gosta deste perfume?), tentava ensinar-me as
canções que cantava, pois estas me perseguiam.
Adieu foulard, adieu madras, ou Ma belle ka di maman li. Minha
linda garota disse para sua mãe (Não, não é assim. Agora presta atenção.
É assim). Ela ficava calada, ou zangada, sem motivo algum, e conversava
com Christophine em patuá.
— Por que você beija e abraça Christophine? — eu dizia.
— Porque não?
— Eu não beijaria nem abraçaria nenhuma delas, não conseguiria.
Ao ouvir isto, ela ria por um bom tempo e nunca me dizia por que
estava rindo.
Mas à noite, que diferença, até a voz dela mudava. Sempre essa
conversa de morte. (Ela está tentando dizer-me que este é o segredo
deste lugar? Que não há outra maneira? Ela sabe. Ela sabe.)
— Por que você me fez desejar viver? Por que fez isso comigo?
— Porque eu quis. Não é o bastante?
— Sim, é o bastante. Mas se um dia você não quiser. O que eu
faço então? Suponhamos que você leve embora esta felicidade quando eu
não estiver olhando...
— E perca a minha? Quem seria tão idiota?
— Eu não estou acostumada a ser feliz — disse ela. — Isso me dá
medo.
— Nunca fique com medo. Se ficar, não conte a ninguém.
— Eu compreendo. Mas a experiência não ajuda.
— O que ajudaria? — Ela não respondeu; então, uma noite,
sussurrou:
— Se eu pudesse morrer. Agora que estou tão feliz. Você faria
isso? Você não teria que me matar. Diga morra e eu morrerei. Você não
acredita em mim? Então experimente, experimente, diga morra e me
veja morrer.
— Morra, então! Morra! — Eu a vi morrer muitas vezes. Do meu
jeito, não do dela. No sol, na sombra, ao luar, à luz de velas. Nas longas
tardes em que a casa ficava vazia. Apenas o sol nos fazia companhia.
Nós o fechávamos lá fora. E por que não? Em pouco tempo ela estava
tão ansiosa em fazer amor quanto eu, mais perdida e sufocada depois.
— Aqui eu posso fazer o que quero — dizia ela, não eu, e depois
eu passei a dizer também. Parecia verdade naquele lugar solitário. —
Aqui eu posso fazer o que quero.
Raramente encontrávamos alguém quando saíamos de casa.
Quando encontrávamos, a pessoa nos cumprimentava e seguia o seu
caminho.
Eu passei a gostar daquela gente da montanha, silenciosa,
reservada, nunca servil, nunca curiosa (ou pelo menos eu achava que
não), sem saber que seu rápido olhar de esguelha via tudo que eles
queriam ver.
Era à noite que eu tinha uma sensação de perigo e tentava
esquecê-la e ignorá-la.
— Você está segura — eu dizia. Ela gostava disto: de que lhe
dissessem “você está segura”. Ou então eu tocava o seu rosto com
delicadeza e sentia a presença de lágrimas. Lágrimas, nada! Palavras,
menos que nada. Quanto à felicidade que eu lhe proporcionava, isso era
pior que nada. Eu não a amava. Eu tinha sede dela, mas isso não é amor.
Eu sentia muito pouca ternura por ela, ela era uma estranha para mim,
uma estranha que não pensava nem sentia como eu.
Uma tarde, a visão de um vestido que ela deixara no chão do seu quarto
deixou-me ofegante e selvagem de desejo. Quando fiquei exausto,
afastei-me dela e dormi, sem uma palavra ou uma carícia. Acordei e ela
estava me beijando — beijos suaves e leves.
— Está tarde — disse ela, e sorriu. — Deixe-me cobri-lo. A brisa
que vem do continente é fria,
— E você, não está com frio?
— Ah, eu vou estar logo pronta. Vou usar o vestido que você gosta
esta noite.
— Sim, use-o.
O chão estava cheio de roupas espalhadas, dela e minhas. Ela
pisou nelas despreocupadamente ao dirigir-se para o guarda-roupa.
— Eu estava pensando, vou mandar fazer outro exatamente igual
— prometeu ela alegremente. — Você vai ficar contente?
— Muito contente.
Se ela era uma criança, não era uma criança burra, mas era uma
criança obstinada. Ela me interrogava frequentemente a respeito da
Inglaterra, e ouvia atentamente as minhas respostas, mas eu tinha
certeza de que nada do que eu dizia fazia muita diferença. A cabeça dela
já estava feita. Um romance sentimental, uma observação ouvida ao
acaso e nunca esquecida, um desenho, um quadro, uma canção, uma
valsa, uma nota de música, e suas opiniões foram formadas. Sobre a
Inglaterra e sobre a Europa. Eu não consegui mudá-las e,
provavelmente, nada as mudaria. A realidade poderia confundi-la,
desnorteá-la, magoá-la, mas não seria realidade. Seria apenas um erro,
uma infelicidade, a escolha de um caminho errado, suas ideias fixas
jamais mudariam.
Nada do que eu disse exerceu qualquer influência sobre ela.
Morra então. Durma. Isso é tudo que eu posso dar a você... Eu me
pergunto se ela jamais se deu conta do quanto esteve perto de morrer.
Do modo dela, não do meu. Esse não era um jogo seguro de se jogar —
naquele lugar. Desejo, Ódio, Vida, Morte ficavam muito próximos no
escuro. Era melhor nem saber quão próximos. Melhor não pensar, nem
por um momento. Próximos não. O mesmo...
— Você está segura — eu dizia para ela e para mim mesmo. —
Fecha os olhos. Descansa.
Então eu ficava ouvindo o barulho da chuva, uma melodia
monótona que parecia que ia durar para sempre... Chuva, chuva
interminável. Afoga-me em sono. E logo.
Na manhã seguinte, havia poucos vestígios dessas chuvaradas. Se
algumas das flores estavam danificadas, as outras tinham um perfume
mais doce, o ar estava mais azul e de grande frescor. Só o caminho de
terra do lado de fora é que estava enlameado. Pequenas poças d’água
brilhavam sob o sol quente, terra vermelha demora a secar.
— Isto aqui chegou para o senhor de manhã bem cedo, patrão — disse
Amélie. — Foi Hilda quem recebeu. — Ela me entregou um envelope
volumoso endereçado numa caligrafia cuidadosa. “Entregue em mãos.
Urgente” estava escrito num canto.
“Um dos nossos vizinhos eremitas”, pensei. “E um anexo para
Antoinette”. Então eu avistei Baptiste parado perto da escada da
varanda, coloquei a carta no bolso e me esqueci dela.
Eu estava mais atrasado do que habitualmente naquela manhã,
mas depois de me vestir fiquei um longo tempo sentado, ouvindo o
barulho da cachoeira, com os olhos entreabertos, sonolento e satisfeito.
Quando enfiei a mão no bolso para pegar meu relógio, toquei no
envelope e o abri.
Eu saí e fui andando pelo caminho que via da minha janela. Devia ter
chovido muito durante a noite, porque o barro vermelho estava muito
enlameado. Passei por um pequeno cafezal, depois por alguns arbustos
de goiabeira. Enquanto caminhava, recordava o rosto do meu pai, seus
lábios finos, e os olhos redondos e arrogantes do meu irmão. Eles
sabiam. E Richard, o tolo, ele sabia também. E a moça com seu rosto
sorridente e vazio. Todos eles sabiam.
Comecei a andar bem depressa, depois parei porque a luz estava
diferente. Uma luz verde. Eu tinha chegado na floresta e ninguém pode
enganar-se com a floresta. Ela é hostil. O caminho estava coberto de
mato, mas era possível segui-lo. Prossegui sem olhar para as árvores altas
que se erguiam dos dois lados. Passei por cima de um tronco caído cheio
de formigas brancas. Como é que alguém consegue descobrir a verdade?,
pensei, e este pensamento não me levou a lugar algum. Ninguém me
contaria a verdade. Nem meu pai nem Richard Mason e muito menos a
moça com quem eu me casara. Eu fiquei imóvel, e tive tanta certeza de
estar sendo observado que olhei por cima do ombro. Não havia nada
além das árvores e da luz verde sob elas. Dava para ver um atalho e eu
continuei, olhando para os dois lados e de vez em quando para trás. Foi
por isso que tropecei numa pedra e quase caí. A pedra em que tropecei
não era uma pedra comum, era parte de uma estrada pavimentada.
Tinha havido uma estrada pavimentada ali naquela floresta. O atalho
terminou numa clareira. Nela estavam as ruínas de uma casa de pedras, e
ao redor das ruínas havia árvores de uma altura inacreditável. Atrás das
ruínas, havia uma laranjeira coberta de frutas, com folhas de um verde
muito escuro. Um lugar lindo. E calmo — tão calmo que pensar ou
planejar pareciam ser coisas sem importância. Pensar o quê, planejar
como? Debaixo da laranjeira eu percebi pequenos buquês de flores
amarrados com capim.
Não sei quanto tempo fiquei lá antes de começar a sentir frio. A
luz tinha mudado e as sombras estavam compridas. Era melhor voltar
antes de escurecer, pensei. Então vi uma menina com uma grande cesta
equilibrada na cabeça. Ela me viu e, para minha surpresa, deu um grito
alto, ergueu os braços e correu. A cesta caiu, eu chamei por ela, mas ela
tornou a gritar e correu mais depressa. Ela soluçava enquanto corria,
fazendo um ruído assustado. Então ela desapareceu. Eu devo estar a
poucos minutos do caminho, pensei, mas, depois de ter caminhado por
um bom tempo, vi que a vegetação e as trepadeiras estavam prendendo
minhas pernas e que as árvores se fechavam sobre minha cabeça. Resolvi
voltar para a clareira e recomeçar, mas o resultado foi o mesmo. Estava
ficando escuro. Era inútil dizer a mim mesmo que eu não estava longe
da casa. Eu estava perdido e com medo no meio das árvores inimigas,
tão certo do perigo que, quando ouvi passos e um grito, não respondi.
Os passos e a voz se aproximaram. Então eu gritei de volta. A princípio
não reconheci Baptiste. Ele estava usando calças de algodão azul
erguidas acima dos joelhos e um largo cinto de couro trabalhado em
volta da cintura estreita. Ele empunhava um facão e a luz refletia na
lâmina afiada, branco-azulada. Ele não sorriu quando me viu.
— Estamos procurando há muito tempo pelo senhor — disse ele.
— Eu me perdi.
Ele grunhiu em resposta e foi andando bem depressa na minha
frente, mostrando o caminho e cortando os galhos e trepadeiras que nos
impediam de caminhar com golpes certeiros de facão.
— Antigamente havia uma estrada aqui; onde ela ia dar? —
perguntei.
— Estrada nenhuma — respondeu ele.
— Mas eu vi. Uma estrada pavé, como os franceses faziam nas
ilhas.
— Estrada nenhuma.
— Quem morava naquela casa?
— Dizem que era um padre. Père Lilièvre. Ele morou aqui há
muitos anos.
— Passou uma criança — eu disse. — Ela pareceu muito assustada
quando me viu. Tem alguma coisa errada com esse lugar? — Ele sacudiu
os ombros. — Tem algum fantasma, algum zumbi ali? — insisti.
— Não sei nada sobre essas bobagens.
— Houve uma estrada aqui em algum momento.
— Estrada nenhuma — repetiu ele teimosamente.
Já estava quase escuro quando chegamos de volta no caminho de
barro. Ele passou a andar mais devagar, virou-se e sorriu para mim. Era
como se ele tivesse colocado a sua máscara de serviço no rosto selvagem
e reprovador que eu tinha visto.
— Você não gosta da floresta à noite?
Ele não respondeu, mas apontou para uma luz e disse:
— Faz muito tempo que estou procurando pelo senhor. A Srta.
Antoinette ficou com medo de que tivesse acontecido alguma coisa.
Quando chegamos na casa, eu estava muito cansado.
— Parece que o senhor está com febre — disse ele.
— Eu já tive isso.
— Não há limite para o número de vezes que se pode ter febre.
Não havia ninguém na varanda e nenhum som vinha da casa. Nós
dois ficamos parados na estrada, olhando para cima, então ele disse:
— Vou mandar a moça para servi-lo, patrão.
Hilda levou-me uma grande tigela de sopa e um pouco de fruta.
Eu experimentei a porta do quarto de Antoinette. Estava trancada e a
luz estava apagada. Hilda deu um risinho nervoso.
Eu disse a ela que não queria comer nada, mandei que trouxesse a
garrafa de rum e um copo. Bebi, depois apanhei o livro que estava lendo;
The Glittering Coronet of Isles era o título, e eu comecei a ler o capítulo
sobre “Obeah”:
— A patroa foi fazer uma visita — disse Baptiste quando trouxe o meu
café naquela manhã. — Ela vai voltar esta noite ou então amanhã. Ela
resolveu isto rapidamente e foi embora.
De tarde, Amélie trouxe-me uma segunda carta.
Por que o senhor não responde? Não acredita em mim?
Então pergunte a qualquer pessoa — todo mundo em
Spanish Town sabe. Por que o senhor acha que o trouxeram
para este lugar? Quer que eu vá na sua casa e conte tudo na
frente de todo mundo? Ou o senhor vem aqui ou então eu
vou...
Era aquela meia hora depois do pôr do sol, a meia hora azul, como eu a
chamava. O vento diminui, a luminosidade é muito bonita, as
montanhas com seus contornos bem nítidos, cada folha em cada árvore
clara e distinta. Eu estava sentado na rede, assistindo, quando
Antoinette passou a cavalo. Ela passou por mim sem me olhar,
desmontou e entrou em casa. Eu ouvi a porta do quarto dela bater e sua
campainha tocar violentamente. Baptiste veio correndo pela varanda. Eu
me levantei da rede e entrei na sala. Ele tinha aberto a arca e apanhado
uma garrafa de rum. Despejou um bocado numa garrafa de vidro, que
colocou numa bandeja com um copo.
— Para quem é isso? — perguntei. Ele não respondeu.
— Sem destino? — eu disse, e ri.
— Eu não quero saber de nada disso — disse ele.
— Baptiste! — gritou Antoinette com uma voz aguda.
— Sim, patroa. — Ele olhou diretamente para mim e saiu levando
a bandeja.
Quanto à velha, eu vi sua sombra antes de vê-la. Ela também
passou por mim, sem virar a cabeça. Também não entrou no quarto de
Antoinette, nem olhou na direção dele. Ela atravessou a varanda, desceu
a escada do outro lado e entrou na cozinha. Naquele curto espaço de
tempo, tinha ficado escuro e Hilda entrou para acender as velas. Quando
falei com ela, ela me lançou um olhar assustado e saiu correndo. Eu abri
a arca e olhei para as fileiras de garrafas lá dentro. Ali estava o rum que
mata você em cem anos, o conhaque, o vinho branco e o vinho tinto
contrabandeados, imagino, de St. Pierre, Martinica — a Paris das Índias
Ocidentais. Foi rum que eu escolhi para beber. Sim, ele era suave na
boca, eu esperei um segundo para a explosão de calor e luz em meu
peito, pela força e pelo calor correndo pelo meu corpo. Então
experimentei a porta do quarto de Antoinette. Ela cedeu ligeiramente.
Ela devia ter posto alguma peça de mobília encostada nela, aquela mesa
redonda, provavelmente. Tornei a empurrar e a abri o suficiente para vê-
la. Ela estava deitada de costas na cama. Seus olhos estavam fechados e
ela respirava pesadamente. Tinha puxado o lençol até o queixo. Numa
cadeira ao lado da cama estava a garrafa vazia, um copo com um resto de
rum e uma pequena campainha de bronze.
Fechei a porta e me sentei com os cotovelos na mesa, pois achei
que sabia o que ia acontecer e o que eu tinha que fazer. A sala estava
opressivamente quente, então apaguei a maioria das velas e esperei na
semiescuridão. Depois fui até a varanda para vigiar a porta da cozinha,
onde brilhava uma luz.
Logo a garota saiu, seguida por Baptiste. Ao mesmo tempo, a
campainha tocou no quarto. Ambos entraram na sala, e eu fui atrás.
Hilda acendeu todas as velas com um olhar assustado na minha direção.
A campainha continuou a tocar.
— Prepare uma dose bem forte para mim, Baptiste. É disso que
estou precisando.
Ele deu um passo para longe de mim e disse:
— A Srta. Antoinette...
— Baptiste, onde você está? — chamou Antoinette. — Por que
você não vem?
— Eu vou o mais rápido que posso — disse Baptiste. Mas quando
ele estendeu a mão para a garrafa, eu a afastei dele.
Hilda saiu correndo da sala. Baptiste e eu ficamos olhando um
para o outro. Achei que seus olhos grandes e saltados e sua expressão do
mais completo espanto eram cômicos.
Antoinette berrou do quarto:
— Baptiste! Christophine! Fina! Fina!
— Que komesse! — disse Baptiste. — Vou chamar Christophine.
Ele saiu correndo quase tão depressa quanto a garota pouco antes.
A porta do quarto de Antoinette abriu-se. Quando a vi, fiquei tão
chocado que não consegui dizer nada. O cabelo dela caía, desgrenhado,
dentro dos olhos, que estavam vermelhos e arregalados, o rosto estava
vermelho e parecia inchado. Ela estava descalça. Entretanto, quando
falou, sua voz era baixa, quase inaudível:
— Eu toquei a campainha porque estava com sede. Será que
ninguém ouviu?
Antes que eu pudesse impedir, ela se precipitou para a mesa e
agarrou a garrafa de rum.
— Não beba mais — eu disse.
— E que direito você tem de dizer o que eu devo ou não fazer?
Christophine! — Ela tornou a chamar, mas sua voz falseou.
— Christophine é uma velha má, e você sabe disso tão bem
quanto eu — eu disse. — Ela não ficará aqui por muito mais tempo.
— Ela não ficará aqui por muito mais tempo — repetiu ela, me
imitando —, nem você, nem você. Eu achei que você gostava tanto dos
negros — disse ela, ainda com aquela voz afetada —, mas isso é só mais
uma mentira. Você prefere as mocinhas marronzinhas, não é? Você
ofendeu os colonos e inventou histórias sobre eles, mas fez a mesma
coisa. Você mandou a moça embora mais depressa, e sem nenhum
dinheiro ou com menos dinheiro, e a diferença é só essa.
— Escravidão não era uma questão de gostar ou desgostar — eu
disse, tentando falar calmamente. — Era uma questão de justiça.
— Justiça. Eu já ouvi essa palavra. É uma palavra fria. Eu já a
experimentei — disse ela, ainda falando baixinho. — Eu a escrevi. Eu a
escrevi diversas vezes e ela sempre me pareceu uma grande mentira. Não
existe justiça. — Ela bebeu mais um pouco de rum e continuou: —
Minha mãe, de quem todos falam, que justiça ela teve? Minha mãe
sentada na sua cadeira de balanço, falando sobre cavalos mortos e
cavalheiros mortos e um demônio negro beijando a sua triste boca.
Como você beijou a minha — acrescentou ela.
A sala agora estava insuportavelmente quente.
— Vou abrir a janela para entrar um pouco de ar — eu disse.
— A noite vai entrar junto e a lua e o perfume das flores que você
tanto detesta.
Quando eu me virei da janela, ela estava bebendo de novo.
— Bertha — eu disse.
— O meu nome não é Bertha. Você está tentando transformar-me
em outra pessoa, chamando-me por outro nome. Eu sei, isso também é
obeah.
Lágrimas escorreram dos seus olhos.
— Se o meu pai, o meu pai de verdade, estivesse vivo, você não
voltaria depressa para cá depois que ele tivesse terminado com você. Se
ele estivesse vivo. Sabe o que foi que você me fez? Não é a garota, não é.
Mas eu amava este lugar e você o transformou num lugar que eu odeio.
Eu costumava achar que se perdesse tudo na vida, ainda teria isto aqui, e
agora você estragou isto também. Aqui é apenas mais um lugar onde eu
fui infeliz, e todas as outras coisas não são nada comparadas com o que
aconteceu aqui. Eu agora odeio isto aqui tanto quanto odeio você, e
antes de morrer eu vou mostrar para você o quanto eu o odeio.
Então, para minha surpresa, ela parou de chorar e disse:
— Ela é assim tão mais bonita do que eu? Você não me ama nem
um pouco?
— Não, não amo — eu disse (ao mesmo tempo lembrando de
Amélie dizendo: “Você gosta do meu cabelo? Não é mais bonito do que
o dela?”). — Não neste momento.
Ela riu. Uma gargalhada louca.
— Está vendo. Você é assim. Uma pedra. Mas é bem feito para
mim, porque tia Cora disse para eu não me casar com ele. Nem que ele
estivesse forrado de diamantes. E ela me disse muitas outras coisas. Você
está falando da Inglaterra, eu disse, e quanto ao vovô passando o copo
por cima da garrafa de água e as lágrimas correndo pelo seu rosto por
todos os amigos mortos, que ele nunca mais iria ver. Isso nunca teve
nada a ver com a Inglaterra, ela disse. Pelo contrário:
Você tem que prestar atenção nisso. A nossa chuva conhece todas
as canções.
E todas as lágrimas?
Todas, todas, todas.
Sim, eu vou prestar atenção na chuva. Vou escutar o pássaro da
montanha. Ah, de cortar o coração é aquela única nota — aguda, doce,
solitária, mágica. Você prende a respiração para escutar... Não... Foi
embora. O que eu poderia dizer a ela?
Não fique triste. Ou pense Adieu. Nunca Adieu. Nós tornaremos
a ver o sol se pôr — muitas vezes, e talvez vejamos a Gota de Esmeralda,
o clarão verde que traz sorte. E você tem que rir e conversar como
costumava fazer — contar-me sobre a batalha perto de Saints ou sobre o
piquenique em Marie Galante — o famoso piquenique que se
transformou numa luta. Ou sobre os piratas e o que eles faziam entre
uma viagem e outra. Porque cada viagem podia ser a última. Sol e
sangria formam uma mistura embriagadora. Depois — o terremoto. Ah,
sim, dizem que Deus ficou zangado com as coisas que eles faziam, então
acordou do Seu sono, soprou uma vez e todos desapareceram. Então ele
tornou a dormir. Mas eles deixaram seus tesouros, ouro e mais do que
ouro. Uma parte é encontrada — mas quem acha nunca conta, porque,
você sabe, pela lei do tesouro, a pessoa só fica com um terço. E as
pessoas querem tudo, então nunca falam nada. Às vezes são coisas
preciosas, ou joias. Não tem limite para o que as pessoas acham e
vendem em segredo para algum homem cauteloso que pondera, hesita,
faz perguntas que não são respondidas, e depois paga em dinheiro. Todo
mundo sabe que peças de ouro, tesouros aparecem em Spanish Town (e
aqui também). Em todas as ilhas, surgidos do nada, ninguém sabe de
onde. Porque é melhor não falar em tesouro. É melhor não contar a eles.
Sim, é melhor não contar a eles. Eu não vou contar para você que
eu mal prestava atenção nas suas histórias. Eu esperava ansiosamente
pela noite e pela escuridão e pela hora em que as damas-da-noite se
abrem.
Cubram a lua,
Apaguem as estrelas.
Amor no escuro, pois somos feitos para o escuro.
Neste quarto, eu acordo cedo e fico deitada tremendo porque faz muito
frio. Finalmente, Grace Poole, a mulher que toma conta de mim, acende
o fogo com papel e gravetos e pedaços de carvão. Ela se ajoelha para
atiçá-lo com um fole. O papel encolhe, os gravetos estalam e cospem, o
carvão arde e incendeia. Finalmente as chamas sobem, e elas são lindas.
Eu saio da cama e me aproximo para contemplá-las e para pensar por
que me trouxeram para cá. Por que razão? Deve haver uma razão. O que
é que eu tenho que fazer? Quando cheguei aqui, achei que seria por um
dia, dois dias, uma semana talvez. Pensei que quando o visse e falasse
com ele eu seria sábia como as serpentes, mansa como as pombinhas.
“Eu lhe dou tudo o que tenho de boa vontade”, eu diria, “e nunca mais o
incomodarei se você me deixar partir.” Mas ele nunca veio.
A mulher, Grace, dorme no meu quarto. De noite, às vezes, eu a
vejo sentada à mesa contando dinheiro. Ela ergue uma moeda de ouro e
sorri. Depois guarda tudo numa bolsinha de couro e pendura a bolsinha
no pescoço de modo que fique escondida dentro do vestido. A princípio
ela costumava olhar para mim antes de fazer isso, mas eu sempre fingia
estar dormindo, agora ela não se preocupa mais comigo. Ela bebe de
uma garrafa sobre a mesa e vai para a cama, ou estende os braços sobre a
mesa, deita a cabeça nos braços e dorme. Mas eu fico deitada vendo o
fogo apagando. Quando ela está roncando, eu me levanto e provo a
bebida sem cor da garrafa. A primeira vez que fiz isso tive vontade de
cuspir, mas consegui engolir. Quando voltei para a cama, consegui me
lembrar melhor das coisas e voltar a pensar. E não estava com tanto frio.
Aqui só tem uma janela, bem no alto — não dá para olhar para
fora. Minha cama tinha portas, mas elas foram retiradas. Não há mais
quase nada no quarto. A cama dela, um armário preto, a mesa no meio
com duas cadeiras pretas com frutas e flores entalhadas. Elas têm
espaldar alto e não têm braços. O quarto de vestir é muito pequeno, o
quarto ao lado deste tem tapeçarias nas paredes. Um dia, olhando para a
tapeçaria, eu reconheci a minha mãe usando um vestido de baile, mas
com os pés descalços. Ela estava olhando para longe de mim, por cima
da minha cabeça, exatamente como costumava fazer. Eu não contaria
isto para Grace. O nome dela não devia ser Grace. Nomes são
importantes, como quando ele se recusava a me chamar de Antoinette, e
eu vi Antoinette flutuando para fora da janela com seus perfumes, suas
belas roupas e seu espelho.
Não tem nenhum espelho aqui e eu não sei como sou agora. Eu
me lembro de me ver escovando o cabelo no espelho e como os meus
olhos olhavam de volta para mim. A moça que eu via era eu, mas não
era exatamente eu. Muito tempo atrás, quando eu era uma criança e
muito solitária, eu tentei beijá-la. Mas havia o espelho entre nós —
duro, frio e enevoado com a minha respiração. Agora eles levaram tudo
embora. O que eu estou fazendo neste lugar e quem sou eu?
A porta do quarto das tapeçarias está sempre trancada. Eu sei que
ele vai dar numa passagem. É lá que Grace fica parada e conversa com
uma outra mulher que eu nunca vi. O nome dela é Leah. Eu fico
escutando, mas não consigo entender o que elas dizem.
Então ainda há o som de cochichos que eu escutei a vida inteira,
mas estas vozes são diferentes.
Quando a noite chega, e ela já bebeu bastante e está dormindo, é
fácil apanhar as chaves. Agora eu sei onde ela as guarda. Então eu abro a
porta e entro no mundo deles. Ele é, como eu sempre soube, feito de
papelão. Eu já o vi antes em algum lugar, este mundo de papelão onde
tudo é colorido de marrom ou de vermelho escuro ou de amarelo sem
um pingo de luz. Enquanto caminho pelos corredores, sinto vontade de
ver o que há por trás do papelão. Eles me dizem que estou na Inglaterra,
mas eu não acredito neles. Nós nos perdemos a caminho da Inglaterra.
Quando? Onde? Eu não me lembro, mas nós nos perdemos. Será que
foi aquela noite na cabine, quando ele me encontrou conversando com o
rapaz que trazia a minha comida? Eu pus os braços em volta do pescoço
dele e pedi que me ajudasse. Ele disse: “Eu não sabia o que fazer,
senhor.” Eu quebrei os copos e os pratos de encontro à vigia. Eu queria
que o vidro quebrasse e o mar pudesse entrar. Uma mulher veio e depois
um homem mais velho que limpou todos os cacos de vidro do chão. Ele
não olhou para mim enquanto estava fazendo isso. O terceiro homem
disse: “Beba isto para você dormir.” Eu bebi e disse: “Não é o que parece
ser.” “Eu sei. Nunca é”, ele disse. E então eu dormi. Quando acordei, era
um mar diferente. Mais frio. Foi naquela noite, eu acho, que nós
mudamos de curso e perdemos o caminho para a Inglaterra. Esta casa de
papelão onde eu caminho à noite não é a Inglaterra.
Uma manhã, quando eu acordei, estava com o corpo todo dolorido. Não
de frio, um outro tipo de dor. Eu vi que meus pulsos estavam vermelhos
e inchados. Grace disse:
— Suponho que você vá me dizer que não se lembra de nada que
aconteceu na noite passada.
— Quando foi a noite passada? — disse.
— Ontem.
— Eu não me lembro de ontem.
— Na noite passada, um cavalheiro veio visitá-la — disse ela.
— Qual deles foi?
Porque eu sabia que havia pessoas estranhas na casa. Quando
apanhei as chaves e entrei no corredor, eu os ouvi rindo e conversando
ao longe, como pássaros, e havia luz no andar de baixo.
Virando a esquina, eu vi uma moça saindo do quarto dela. Ela
usava um vestido branco e cantarolava baixinho. Eu me encostei na
parede porque não queria que ela me visse, mas ela parou e olhou em
volta. Ela não viu nada além de sombras, eu me encarreguei disso, mas
ela não foi andando até a escada. Ela correu. Encontrou outra moça, e a
segunda moça disse:
— Você viu um fantasma?
— Eu não vi nada, mas achei ter sentido alguma coisa.
— Era o fantasma — disse a segunda, e elas desceram a escada
juntas.
— Qual dessas pessoas veio me ver, Grace Poole? — perguntei.
Ele não veio. Mesmo que estivesse dormindo, eu teria sabido. Ele
ainda não veio. Ela disse:
— Eu acho que você lembra muito mais do que finge lembrar. Por
que você se comportou daquele jeito, quando eu havia prometido que
você seria calma e sensata? Nunca mais vou tentar ajudar você. Seu
irmão veio visitá-la.
— Eu não tenho nenhum irmão.
— Ele disse que era seu irmão.
Minha mente recuou muito no tempo.
— O nome dele era Richard?
— Ele não me disse como se chamava.
— Eu o conheço — eu disse, e pulei da cama. — Está tudo aqui,
está tudo aqui, mas eu escondi dos seus olhos de fera assim como
escondo tudo. Mas onde está? Onde foi que eu escondi? Na sola dos
meus sapatos? Debaixo do colchão? Em cima do armário? No bolso do
meu vestido vermelho? Onde, onde está esta carta? Era curta, porque eu
me lembrei que Richard não gostava de cartas longas. Caro Richard, por
favor me tire deste lugar onde estou morrendo porque é tão frio e
escuro.
A Sra. Poole disse:
— Não adianta ficar procurando agora. Ele foi embora e não vai
mais voltar — eu também não voltaria se estivesse no lugar dele.
— Não consigo me lembrar do que aconteceu — eu disse. — Não
consigo me lembrar.
— Quando ele entrou — disse Grace Poole —, ele não reconheceu
você.
— Você pode acender o fogo — eu disse —, eu estou com muito
frio.
— Este cavalheiro chegou de repente e insistiu em vê-la, e esse foi
o agradecimento que ele recebeu. Você correu para cima dele com uma
faca, e quando ele tomou a faca da sua mão, você mordeu o braço dele.
Você não o verá de novo. E aonde foi que conseguiu aquela faca? Eu
disse a eles que você a roubou de mim, mas eu sou muito cuidadosa.
Estou acostumada com gente como você. Não foi de mim que você tirou
a faca. Você deve tê-la comprado naquele dia que eu saí com você. Eu
disse à Sra. Eff que você tinha que sair de casa.
— Quando nós fomos à Inglaterra — eu disse.
— Sua tola — disse ela —, isto aqui é a Inglaterra.
— Eu não acredito nisso — eu disse —, eu nunca vou acreditar
nisso.
(Naquela tarde nós fomos à Inglaterra. Havia grama e água cor de
azeitona e árvores altas dando para a água. Isto, eu pensei, é a Inglaterra.
Se eu pudesse ficar aqui, eu poderia ficar boa e o barulho na minha
cabeça iria parar. Deixe-me ficar mais um pouco, eu disse, e ela se
sentou debaixo de uma árvore e adormeceu. Um pouco mais longe havia
uma charrete — uma mulher estava dirigindo. Foi ela quem me vendeu
a faca. Eu dei em troca o medalhão que usava no pescoço.)
Grace Poole disse:
— Então você não lembra que atacou esse cavalheiro com uma
faca? Eu disse que você ficaria quieta. “Eu preciso falar com ela”, disse
ele. Ah, ele foi avisado, mas não quis ouvir. Eu estava no quarto, mas
não ouvi tudo o que ele disse, exceto: “Eu não posso interferir
legalmente entre você e seu marido.” Foi quando ele disse “legalmente”
que você voou em cima dele, e quando ele torceu sua mão e tirou a faca,
você o mordeu. Você está dizendo que não se lembra de nada disso?
Agora eu lembro que ele não me reconheceu. Eu o vi olhar para
mim e seus olhos foram primeiro para um canto e depois para o outro,
sem encontrar o que esperavam. Ele olhou para mim e falou como se cu
fosse uma estranha. O que você faz quando uma coisa dessas acontece
com você? Por que você está rindo de mim?
— Você também escondeu o meu vestido vermelho? Se eu o
estivesse usando, ele teria me reconhecido.
— Ninguém escondeu o seu vestido — disse ela. — Ele está
pendurado no armário.
Ela olhou para mim e disse:
— Eu não acredito que você saiba há quanto tempo está aqui,
pobre criatura.
— Pelo contrário — eu disse —, só eu sei há quanto tempo estou
aqui. Noites e dias e dias e noites, centenas deles escorrendo pelos meus
dedos. Mas isso não importa. O tempo não significa nada. Mas algo que
você pode tocar e segurar, como o meu vestido vermelho, isso tem um
significado. Onde ele está?
Ela fez um sinal com a cabeça na direção do armário e os cantos
de sua boca entortaram para baixo. Assim que eu girei a chave, eu o vi
pendurado, da cor do fogo e do pôr do sol. Da cor das flores do
flamboyant.
— Se você for enterrada debaixo de um flamboyant — eu disse —,
a sua alma será erguida quando ele florescer. Todo mundo quer isso.
Ela sacudiu a cabeça, mas não se moveu nem tocou em mim.
O perfume que veio do vestido foi muito fraco, a princípio, depois
ficou mais forte. Perfume de vetiver e jasmim, de canela e terra e
limeiras em flor. O perfume do sol e o perfume da chuva.
... Eu estava usando um vestido dessa cor quando Sandi veio ver-me
pela última vez.
— Você vem comigo? — perguntou.
— Não — respondi —, não posso.
— Então é adeus?
— Sim, é adeus.
— Mas eu não posso deixá-la assim — disse ele —, você está
infeliz.
— Você está perdendo tempo — retruquei —, e nós temos tão
pouco.
Sandi vinha sempre me visitar quando aquele homem eslava fora,
e, quando eu saía dirigindo, eu me encontrava com ele. Os empregados
sabiam, mas nenhum deles contava.
Agora não havia mais tempo, então nós nos beijamos naquela
estúpida sala. Leques abertos decoravam as paredes. Nós já nos
havíamos beijado muitas vezes, mas não daquele jeito. Aquele foi o beijo
da vida e da morte, e você só sabe muito tempo depois o que é isso, o
beijo da vida e da morte. O navio branco apitou três vezes, uma vez
alegremente, uma vez chamando, uma vez para dizer adeus.
Essa foi a terceira vez que eu tive o meu sonho, e ele terminou. Agora eu
sei que o lance de escada conduz a este quarto onde estou deitada, vendo
a mulher adormecida com a cabeça sobre os braços. No meu sonho, eu
espero até ela começar a roncar, depois eu me levanto, pego as chaves e
saio com uma vela na mão. Desta vez foi mais fácil do que nunca, e eu
fui andando como se estivesse voando.
Todas as pessoas que tinham estado hospedadas na casa tinham
ido embora, porque as portas dos quartos estavam fechadas, mas eu tive
a impressão de que havia alguém me seguindo, me perseguindo, rindo.
De vez em quando eu olhava para a direita e para a esquerda, mas nunca
para trás, porque não queria ver aquele fantasma de mulher que dizem
que assombra este lugar. Eu desci a escada. Fui mais longe do que jamais
fora antes. Havia alguém falando numa das salas. Eu passei sem fazer
barulho, bem devagar.
Finalmente cheguei no hall, onde havia um lampião aceso.
Lembro-me de quando cheguei. Um lampião e a escadaria escura e o
véu cobrindo o meu rosto. Eles pensam que eu não me lembro, mas eu
me lembro. Havia uma porta à direita. Eu a abri e entrei. Era uma sala
grande com um tapete vermelho e cortinas vermelhas. Todo o resto era
branco. Eu me sentei num sofá para olhar para ela e ela me pareceu
triste e fria e vazia, como uma igreja sem altar. Eu quis vê-la melhor,
então acendi todas as velas, e havia muitas. Acendi-as cuidadosamente
com a que eu estava carregando, mas não consegui alcançar o lustre.
Então olhei em volta à procura do altar, porque com tantas velas e tanto
vermelho aquela sala me fazia lembrar uma igreja. Então ouvi um
relógio batendo e ele era de ouro. Ouro é o ídolo que eles veneram.
De repente eu me senti muito infeliz naquela sala, embora o sofá
onde eu estava sentada fosse tão macio que eu chegava a afundar nele.
Eu tive a impressão de que ia adormecer. Então imaginei ouvir passos e
pensei: o que eles vão dizer, o que vão fazer se me acharem aqui? Segurei
meu pulso direito com a mão esquerda e esperei. Mas não era nada.
Depois disso eu me senti muito cansada. Muito cansada. Eu quis sair
daquela sala, mas a minha vela tinha queimado até o fim e eu peguei
uma das outras. De repente, eu estava no quarto da tia Cora. Eu vi o sol
entrando pela janela, a árvore do lado de fora e as sombras das folhas no
chão, mas vi também as velas de cera e tive ódio delas. Então derrubei
todas elas. A maioria delas apagou, mas uma colocou fogo nas cortinas
finas que havia por trás das cortinas vermelhas. Eu ri quando vi a linda
cor se espalhando tão depressa, mas não fiquei lá para assistir. Tornei a ir
para o hall com a vela alta na mão. Foi então que eu a vi — o fantasma.
A mulher de cabelos compridos. Ela estava cercada por uma moldura
dourada, mas eu a reconheci. Deixei cair a vela que estava carregando e
pegou fogo na ponta de uma toalha e eu vi as chamas saltarem.
Enquanto eu corria ou talvez flutuava ou voava, eu gritei “Me ajuda,
Christophine”, e, olhando para trás, vi que tinha sido ajudada. Havia
uma pequena parede de fogo me protegendo, mas ela era quente demais,
ela me queimou e eu me afastei dela.
Havia mais velas sobre uma mesa, e eu peguei uma delas e subi
correndo o primeiro lance de escadas e o segundo. No segundo andar, eu
atirei fora a vela. Mas não fiquei para assistir. Subi correndo o último
lance de escadas e atravessei o corredor. Passei pelo quarto para onde
eles me levaram ontem ou anteontem, não me lembro. Talvez tenha sido
há muito tempo, porque eu parecia conhecer muito bem a casa. Eu sabia
como fugir do calor e da gritaria, pois havia muita gritaria agora.
Quando sai para as ameias do telhado, estava fresco e eu mal podia
ouvi-los. Eu me sentei ali em silêncio. Não sei por quanto tempo fiquei
ali sentada. Então eu me virei e vi o céu. Estava vermelho e toda a
minha vida estava nele. Eu vi o grande relógio e a colcha de retalhos da
tia Cora, de todas as cores, eu vi as orquídeas e os jasmins e a árvore da
vida em chamas. Eu vi o lustre e o tapete vermelho do primeiro andar e
os bambus e as samambaias, e as samambaias douradas e prateadas, e o
macio veludo verde do musgo no muro do jardim. Eu vi a minha casa de
bonecas e os livros e a pintura da Filha de Miller. Ouvi o papagaio gritar
como ele fazia toda vez que via um estranho: Qui est là? Qui est là?, e o
homem que me odiava também estava gritando: Bertha! Bertha! O
vento bateu no meu cabelo e ele se ergueu como se fossem asas. Talvez
ele pudesse me sustentar, pensei, se eu pulasse naquelas pedras duras lá
embaixo. Mas quando olhei pela borda do telhado, vi o poço de
Coulibri. Tia estava lá. Ela acenou me chamando e, quando eu hesitei,
ela riu. Eu a ouvi dizer: Você está com medo? E ouvi a voz do homem:
Bertha! Bertha! Tudo isso eu vi e ouvi numa fração de segundo. E o céu
tão vermelho. Alguém gritou, e eu pensei: Por que foi que eu gritei? Eu
chamei: “Tia!” e pulei e acordei.
Grace Poole estava sentada à mesa, mas ela também tinha ouvido
o grito, porque disse:
— O que foi isso? — Ela se levantou, se aproximou e olhou para
mim. Eu fiquei imóvel, respirando normalmente, com os olhos
fechados. — Eu devo ter sonhado — disse ela. Então ela voltou, não
para a mesa, mas para a cama. Esperei um longo tempo, até ela começar
a roncar, então me levantei, peguei as chaves e abri a porta. Eu estava do
lado de fora segurando a minha vela. Agora, finalmente, eu sabia por
que tinham me trazido para cá e o que eu tinha que fazer. Devia haver
uma corrente de ar, porque a chama piscou e eu pensei que tinha
apagado. Mas eu a protegi com a mão e ela tornou a brilhar para me
iluminar ao longo do corredor escuro.
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