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Marcelo Sevaybricker Moreira

SALLUM JUNIOR, B. O impeachment de Fer- Entretanto, os autores se limitavam a rever

RESENHA
nando Collor: sociologia de uma crise. São a bibliografia especializada sobre o assunto,
Paulo: Editora 34, 2015, 424p. concluindo que um exame crítico dela de-
monstrava a “carência de um esquema expli-
cativo de conjunto para o evento” (Sallum Jr.;
Marcelo Sevaybricker Moreira Casarões, 2011, p. 194). Além disso, eles lan-
çavam a hipótese, sem explorá-la em detalhes,
de que o impeachment de Collor teria ocorrido
SOCIOLOGIA POLÍTICA E CRISE NA em função de uma confluência de fatores mui-
NOVA REPÚBLICA to especiais, “a tradição comum de luta contra
o regime militar, a interação transpartidária e
suporte social” (Sallum Jr.; Casarões, 2011, p.
Em julho de 2015, publicou-se uma 198).
obra de peso nas ciências sociais brasileiras e O livro O Impeachment de Fernando
que, especialmente em função da conjuntura Collor apoia-se em seus estudos e de outros au-
recente do país, desperta atenção de qualquer tores sobre esse episódio e procura superá-los
leitor. O impeachment de Fernando Collor: so- na capacidade de formular uma interpretação
ciologia de uma crise, de Brasilio Sallum Jr., a um só tempo coerente, verossímil e a mais
veio a lume em momento oportuno, quando o ampla possível desse fenômeno. É digno de
país acaba de reviver a experiência dramática destaque que Sallum Jr tenha produzido um
de deposição de um presidente eleito por voto banco de dados significativos sobre a crise de
popular. Sem postular que a historia magistra 1992, a partir de entrevistas com atores políti-
vitae est, não convém, por outro lado, descon- cos à época e principalmente de material jor-
siderar possíveis conhecimentos a serem ex- nalístico.
traídos dessa obra para o tempo presente. Em suma, a obra consiste numa análise
Professor titular de Sociologia na Uni- exaustiva que acompanha diacronicamente a
versidade de São Paulo, esse autor notabilizou- vitória de Collor no pleito eleitoral de 1989,
se com publicações que versam sobre o Brasil a formação do governo, suas diversas fases e
republicano, como é o caso de Labirintos: dos crises até, por fim, sua renúncia à presidência
generais à Nova República (1996). Nesse es- da República e a formação do governo de tran-

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tudo, Sallum Jr. procurara analisar as tensões sição de Itamar Franco. O fato de considerar a
e as possibilidades do processo de transição crise que redundou na deposição do presiden-
política do país, de uma ditadura civil-militar te como um fenômeno não meramente institu-
para um regime democrático e de cidadania cional, mas social, isto é, relacionado à orga-
ampliada. Nele, o autor já adotara a perspec- nização mais geral da sociedade brasileira, às
tiva da sociologia política para analisar os pro- suas demandas e dinâmicas ao final do século
cessos de mudança social, isto é, a concepção XX, faz com que o livro tenha o mérito de dar
que avalia “as conexões significativas entre as um tratamento detalhado e, ao mesmo tempo,
várias esferas da sociedade envolvidas na mu- ampliado, na medida em que considera variá-
dança em pauta, desde econômica até a políti- veis de natureza diversa que influenciaram no
co-institucional.” (Sallum Jr., 1996, p. 9). desenrolar dos acontecimentos. Inflação, cres-
Depois dessa obra, Sallum Jr. publicou cimento econômico, mercado internacional,
um pequeno artigo, em coautoria, também formação de ministérios, coalizões partidárias,
sobre o tema da mudança social e, mais pre- oposição partidária, movimento sindical, ma-
cisamente, sobre o processo de impedimento nifestações de rua, comportamento da grande
do ex-presidente Fernando Collor de Melo. mídia, personalidade do presidente e mesmo

http://dx.doi.org/10.1590/S0103-49792016000300012
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a fortuna – sempre imponderável – compõem crítica mais minuciosa desse tipo de interpre-
o grande mapa interpretativo formulado nesse tação, cumpre destacar que, para Sallum Jr.,
interessante exercício de sociologia política. no final da década de 70 e início da de 80, a
É importante não desconsiderar o desa- estratégia desenvolvimentista do regime mili-
fio posto ao analista do período. Como explicar tar tornou-se inviável, por conta de uma série
que um presidente que conquistou 35 milhões de fatores nacionais e internacionais (endi-
de votos, que contava com excelente apoio vidamento crescente, pressão neoliberal em
popular e empresarial (70% de popularidade direção à ortodoxia econômica, crescimento
no início do mandato), que simbolizava, para incontrolado da inflação, etc.). Findado o pac-
muitos, a esperança de uma “Nova República”, to desenvolvimentista, a oposição ao governo
tornou-se objeto de contestação quase consen- tornou-se maior, tanto no parlamento e nos
sual pelos mais variados grupos da sociedade partidos, quanto nas ruas. As “Diretas Já”, ar-
brasileira? gumenta ele, “minou completamente o apoio
Sallum Jr. lança mão de uma hipótese ainda existente à política de democratização
para explicar como o impeachment de Collor gradual e limitada liderada pelo regime mili-
se tornou possível. O autor assevera que o tar” (Sallum Jr., 2015, p. 22), produzindo uma
evento em questão deve ser compreendido à crise de hegemonia política. Essa campanha
luz de um processo mais amplo de crise do Es- cívica exigia um novo projeto de Estado, uma
tado varguista ou do nacional-desenvolvimen- sociedade efetivamente democrática, com jus-
tismo. Na realidade, o autor já apresentara tese tiça e mobilização social. Nesse ciclo de cres-
semelhante no seu livro anterior, Labirintos. cente de ativismo cívico, mesmo com todas as
Agora, no livro de 2015, Sallum Jr. reitera essa dificuldades do processo de transição política
tese de interpretação do Brasil moderno, afir- (derrota da emenda constitucional Dante de
mando que o impeachment de Collor, na reali- Oliveira, eleição de um líder conservador para
dade, é um episódio que se insere na crise da a presidência da República, etc.), consolida-
forma varguista de Estado, que se cristalizara se, na Carta Constitucional de 1988, o projeto
com o próprio processo de redemocratização de construção de um Brasil que rompe com o
do país. padrão autoritário e não republicano do var-
Sallum Jr. faz jus a certa linhagem da so- guismo.
ciologia paulista para a qual há, no Brasil, uma Sallum Jr. considera que a elite política
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tradição estatista e autoritária, personificada brasileira, na luta contra a ditadura militar,


na figura de Vargas, a qual cumpre superar. “tentou renovar a estratégia desenvolvimentis-
Assim, a participação de Fernando Henrique ta, combinando crescimento econômico, dis-
Cardoso, expoente dessa tradição, como autor tribuição de renda e ampliação da cidadania”
da orelha do livro de Sallum Jr., é plenamente (2015, p. 38). Entretanto, essa possibilidade de
consonante com a tese geral do livro. Contu- ruptura com o varguismo não se concretizou,
do, uma das grandes dificuldades dessa tese pois o cenário político e econômico não mais
é compreender como a tradição varguista foi permitia a realização de semelhante projeto.
também fundamental para consolidar a cida- Mantém-se o impasse para a democratização
dania e a democracia no país, ainda que com efetiva da sociedade brasileira. A deposição de
diversas ambiguidades. A superação do var- Collor, na visão desse autor, seria, dessa feita,
guismo e de seus elementos autoritários pode apenas um desdobramento ulterior dessa cri-
conter, em germes, a limitação dessas conquis- se de hegemonia que acometia o país desde os
tas no contexto adverso em que se deu o pro- anos 80.
cesso de modernização do país. A insuficiência do processo de redemo-
Não sendo o caso, por ora, de fazer a cratização do país, entretanto, não pode ser

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creditada apenas na conta dos políticos, dos petitiva”, e os partidos de esquerda (PT, PDT,
partidos e dos movimentos sociais brasileiros. PSB, PCB, PC do B), que se posicionavam fron-
A rigor, é sempre importante lembrar que, à me- talmente contrários às reformas neoliberais.
dida que o Brasil se redemocratizava, o mundo O cenário de intensa polarização reve-
se via cada vez mais sob a influência da vaga lava que não se tratava de apenas um proces-
neoliberal. Essa concomitância limitou drasti- so de transição política, mas de substituição e
camente a possibilidade de consolidação e de de disputa em torno de que projeto de Estado
aprofundamento da recentíssima democracia adotar para a Nova República. É nesse cená-
nacional. “A estabilidade macroeconômica”, rio conflitivo e, ao mesmo tempo, de recessão
o “papel reduzido do Estado na economia” e econômica e de pressão neoliberal, que sur-
“a maior abertura para o exterior”, tripé fun- ge a figura messiânica de Fernando Collor de
damental do neoliberalismo no mundo, foram Melo, fortemente apoiado pela grande mídia e
assimilados, segundo Brasílio Sallum Jr., de adotando um discurso que agradava fortemen-
duas formas no Brasil, constituindo vertentes te o empresariado, visto que propunha uma
liberalizantes distintas e que disputavam o po- agenda liberalizante, ainda que mitigada em
der no país no fim do século XX. alguns pontos, por exemplo, em relação à pri-
A primeira delas defendia o direito à vatização de empresas estatais de setores con-
propriedade (em especial a rural, num contex- siderados estratégicos. Sua vitória na eleição
to de crescentes conflitos de terra), maior aber- de 1989 sugeria novos rumos para o país, uma
tura ao capital estrangeiro e flexibilidade da guinada contra a tradição desenvolvimentista
gestão empresarial da força de trabalho, além brasileira. Entretanto, como demonstra Sallum
da contenção do Estado como agente econômi- Jr., Collor enfrentaria diversos obstáculos para
co (embora continuassem a concordar com os a concretização dessa agenda, resultando, ao
subsídios estatais às empresas nacionais). Esse cabo, no seu impeachment.
Estado era visto, a partir dessa primeira verten- Como nota Leonardo Avritzer, a tessitu-
te, como sinônimo de atraso. A segunda, por ra argumentativa do livro de Sallum Jr. é cons-
seu turno, procurou fundir alguns princípios tituída pela análise dos diferentes interesses
do ideário neoliberal com algumas propostas econômicos que Collor representava e suas
do desenvolvimentismo. Para ela, o problema iniciativas políticas, ao lado das demandas dos
do país não se localizava propriamente no Es- diversos grupos de oposição, iniciativas essas

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tado, mas na estrutura produtiva que impedia frustradas em conseguir superar a crise e criar
o país de se integrar, de modo competitivo, no uma base de apoio ao governo, especialmente
mercado mundial. porque se baseavam numa concepção auto-
Se o empresariado se dividia entre essas crática e voluntarista de poder. Seu desejo de
variantes do neoliberalismo, o mesmo ocorria fazer um governo sem os partidos, compondo
com o movimento sindical. Enquanto CUT seu ministério à revelia da indicação partidá-
adotava uma política fortemente contrária a ria, revela a falta de virtù de Collor em con-
essa agenda, a CGT adotava uma postura pró- servar seu poder. Sua derrocada tornou-se
mercado, indicando como o cenário político possível, em suma, na medida em que o então
dos anos 80-90 era tensionado pelos proble- presidente se mostrou incapaz de atender às
mas da economia. O mesmo passa a ocorrer no reivindicações da sua base econômica e convi-
campo partidário e eleitoral. De um lado, tem- veu com crescentes ondas de insatisfação e de
se um novo partido surgido como dissidência mobilização popular contra o seu governo. Se
do PMDB, que adotava uma postura mais con- a tese de Sallum Jr. mostra-se inequivocamen-
servadora em assuntos econômicos, o PSDB, te muito bem construída no que diz respeito à
que adotava a bandeira da “integração com- articulação entre economia e disputa política,

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ela não discorre de modo satisfatório, argu- bora existam diversos aspectos ainda obscuros
menta Avritzer, sobre um novo arranjo insti- da política nacional. De qualquer modo, a obra
tucional criado com a Constituição de 1988, é relevante não apenas pelo que ela pode, in-
no qual órgãos e expedientes como Ministério diretamente, nos ensinar sobre a atual conjun-
Público e as Ações Diretas de Inconstituciona- tura, de recente impedimento da presidenta
lidade (ADINS), por exemplo, desempenham Dilma Rousseff, mas, principalmente, pelo que
um papel decisivo. ela pode nos dizer a respeito daquele período
Fica patente, portanto, que o livro O im- estudado.
peachment de Fernando Collor preenche uma
lacuna importante no entendimento do que
Recebido para publicação em 23 de maio de 2016
ocorreu no Brasil nos idos dos anos 90, em- Aceito em 27 de outubro de 2016
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Marcelo Sevaybricker Moreira - Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Professor do Departamento de Ciências Humanas da Universidade Federal de Lavras. Integra o Núcleo
de Pesquisa Sociologia & Política, desenvolvendo pesquisas na área de teoria política e política brasileira.
Suas mais recentes publicações são: A poliarquia brasileira e a reforma política: análise de uma contribuição
de Wanderley Guilherme dos Santos à teoria política, na Dados - Revista de Ciências Sociais, v.57, n. 2,
2014. marcelomoreira@dch.ufla.br

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