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26/11/12

Edição 51 > _ensaio > Dezembro de 2010

O fim da polarização
Nada de PT ou PSDB: a verdadeira força hegemônica da política brasileira é o pemedebismo.

por Marcos Nobre

A partir das eleições de 2006, a disputa pelo título de “melhor governo da história deste país” foi
politicamente decidida a favor de Lula, contra a era FHC. Já o debate acadêmico, em sentido
contrário, parecia se encaminhar para entronizar (para o bem ou para o mal, dependendo da
avaliação) o Plano Real como marco de um novo período da história brasileira. Foi quando o cientista
social André Singer, num artigo publicado em 2009 na revista Novos Estudos do Cebrap, resolveu
comprar a briga e estabelecer o lulismo como momento inaugural de uma nova era. Segundo suas
análises, o governo Lula construiu um programa político ao longo de dois mandatos, cuja base social
estaria na massa popular desorganizada que conquistou, nesse período, substanciais melhorias em seu
padrão de vida. Lula teria realizado uma operação política de troca de sua base eleitoral e de apoio
entre as eleições de 2002 e de 2006. Conforme a tese, ele abandonou a base tradicional na classe
média em favor de um “subproletariado”, caracterizado por um profundo e disseminado
conservadorismo. Foi nesses termos que Singer deu corpo e densidade à expressão até então vaga do
“lulismo”, levando a discussão a outro patamar.

Em textos mais recentes, Singer deu a esse suposto conservadorismo de massa profundidade
histórica, em registro local e internacional, por assim dizer. O lado nacional conecta a nova base social
de Lula a uma corrente social subterrânea que o levaria a Getúlio Vargas e à “herança populista dos
anos 1940/1950” e que estaria ligada, no presente, a um “povo lulista que deseja distribuição de renda

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sem radicalização política”, como afirmou em artigo publicado na Folha de S.Paulo.

Já é suficientemente inquietante a aproximação com um paternalismo avesso à democracia. Tanto


mais que Singer nem mesmo distingue entre o Getúlio Vargas da ditadura do Estado Novo e o
presidente eleito da década de 50. Mas a complicação fica ainda maior quando aproxima o lulismo do
New Deal dos Estados Unidos da década de 30, como fez em ensaio publicado na edição de outubro de
piauí. Essa comparação com um momento passado da história norte-americana pretende, na
verdade, apontar para o futuro – para o Brasil que teria sido inaugurado pela era Lula e que teria
como imagem a formação da nova classe média dos Estados Unidos depois do período do presidente
Franklin D. Roosevelt.

A comparação com o New Deal parece deslocada por várias razões. A começar pelo fato de que, nos
Estados Unidos, ele se seguiu a nada menos do que a crise de 1929. Ao contrário de Obama agora,
Roosevelt chegou três anos depois da maior catástrofe econômica da história do capitalismo em
tempos de paz e encontrou o terreno propício – não obstante a derrota histórica nas eleições
legislativas de 1938 – para alcançar um novo grande acordo social. Sem falar no fato elementar de que
o patamar de desenvolvimento social, econômico e democrático dos Estados Unidos pré-1929 não
tem base de comparação com o Brasil de 2002. E, tudo somado, um vaivém entre o New Deal, Lula e o
Estado Novo nem de longe pode ser considerado como uma operação inofensiva.

Seja como for, está ausente a referência à democracia e a uma cultura política democrática – tanto no
caso dos Estados Unidos como no caso do Brasil. Como se a presença ou ausência da tradição e da
prática democráticas não fosse elemento estrutural para pensar qualquer aproximação ou
comparação entre situações sociais e históricas distintas. De maneira crua, o que se tem na
argumentação de Singer é o suposto de que aumentar a renda da população pobre tem resultados
conservadores. Um pressuposto, aliás, que não é demonstrado. Surge como um economicismo de
novo tipo. Não apenas por ignorar o papel das instituições e de uma cultura política democrática –
fenômenos “superestruturais”, como se costumava dizer no velho jargão marxista –, mas por reduzir
a política ao reflexo de uma população que compra e consome.

Com essa redução, desaparece do horizonte também a crítica. Desaparece todo o universo de
obstáculos à efetiva democratização da sociedade que caracteriza a política do país. Desaparece a
imagem de uma sociedade amputada por uma representação política excludente, como é o caso da
brasileira. Supor conservadorismo sem examinar as condições políticas concretas do
desenvolvimento da democracia naturaliza esse mesmo conservadorismo.

A situação é outra quando se olha tanto o período FHC como o período Lula do ponto de vista mais
amplo do processo de redemocratização iniciado nos anos 80. Dessa perspectiva, tanto o marco
representado pelo Plano Real quanto aquele representado pelo governo Lula se apresentam como
momentos de inflexão em uma linha de desenvolvimento que os precede e, em boa medida, os
determina. Ao mesmo tempo, é apenas essa ampliação do horizonte que permite enxergar a cultura
política mais duradoura que caracteriza a sociedade brasileira, juntamente com sua forma mais
relevante e estrutural de obstrução democrática. A essa cultura política herdada dos anos 80 dou o
nome de “pemedebismo”.

É possível ver o desenvolvimento da política do país desde então como uma sequência de tentativas
de lidar com esse fenômeno fundamental, seja para combatê-lo, seja para neutralizá-lo, seja para
dirigi-lo. De maneiras diferentes, tanto o Plano Real como o “lulismo” foram tentativas de controlar o
pemedebismo de fundo da política brasileira. Por isso, por mais importantes que pareçam e de fato
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sejam, são momentos de inflexão em uma linha de força muito mais duradoura e consistente.

A pemedebização não tem a ver apenas com o crescimento ou a eventual hegemonia de um partido
dentro de um governo. Tem a ver com uma lógica. A título de exemplo, basta pensar que uma figura
como Aécio Neves pode perfeitamente ser pensado nesse registro. Se tiver a oportunidade e as
condições políticas para isso, certamente ele será um símbolo do pemedebismo, mesmo que nunca se
transfira partidariamente para o PMDB e continue no PSDB.

O pemedebismo significa uma lógica, portanto. Lógica que, sim, se formou e se consolidou a partir da
configuração concreta do PMDB na década de 80, nas condições específicas em que se deu a
redemocratização. Mas que se autonomizou em relação ao partido, mesmo que este continue ainda
hoje a ser o seu fiel depositário na política brasileira.

Para entender esse movimento, é preciso voltar três décadas e puxar o fio da meada desde lá. O que é
um exercício bem distante de ser óbvio no momento atual, em que a euforia da irresistível ascensão
do país à condição de potência mundial deixa ver com dificuldade o fato elementar de que períodos de
crise não foram a exceção, mas a regra, no quarto de século que vai de 1978 a 2003.

Com a reforma partidária de 1980, o MDB, já então PMDB, ganhou o importante problema de saber
como não se esvaziar, de como manter dentro da mesma legenda correntes, tendências e mesmo
partidos inteiros que tinham poucas afinidades além da unidade da luta contra a ditadura. Com o
pluripartidarismo, parecia que o sentido do MDB também havia se esgotado.

Ocorre que não só o MDB guardava um capital político de altíssimo valor. Dispersar forças naquele
momento poderia significar também colocar inteiramente nas mãos dos militares a transição
democrática. Pois a antiga Arena tinha se tornado o PDS e conseguira manter a maior parte de seus
quadros. Se a oposição se dispersasse naquele momento, o Colégio Eleitoral de 1985 poderia eleger
um nome civil do PDS como presidente da República, em lugar de Tancredo Neves.

Para conseguir manter dentro de um mesmo partido correntes e tendências tão heterogêneas, a nova
sigla aperfeiçoou um sistema interno de regras de disputa que já funcionara durante a década de 70 e
que, a partir de 1983, precisava também incluir figuras de uma nova ordem de grandeza:
governadores de estado. Esse sistema pode ser descrito de maneira simples como um sistema de
vetos. (Coisa muito diferente – e ainda mais complicada – seria a de circunscrever a “base social”
desse pemedebismo, de tão impressionante longevidade e vitalidade na política nacional, uma tarefa
que não cabe aqui).

É um modo de fazer política que franqueia entrada no partido a quem assim o deseje. Pretende, no
limite, engolir e administrar todos os interesses e ideias presentes na sociedade. Em segundo lugar,
garante a quem entrar que, caso consiga se organizar como grupo de pressão, ganhará o direito de
vetar qualquer deliberação ou decisão que diga respeito a seus interesses. Foi assim que o PMDB se
organizou a partir da década de 80. Como se o partido fosse, em si mesmo, um governo de união
nacional.

Foi uma resposta tipicamente conservadora ao brutal descompasso entre uma democracia sem
instituições e a altíssima participação popular nos anos 80, especialmente visível no período da
Constituinte. Em lugar de democratizar aceleradamente as suas instituições, a política brasileira,
liderada pelo PMDB, construiu um sistema de filtros, obstáculos e vetos que procurava represar e
atender seletivamente à verdadeira enxurrada participativa que se viu naqueles tempos, inédita na
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história do país.

O essencial da cultura política inaugurada pelo PMDB na década de 80 é o fato de que, desde o
declínio da ditadura militar, sua identidade deixa de se construir por oposição a um inimigo, real ou
imaginário, e passa a ser construída com base em um discurso inteiramente anódino e abstrato, sem
inimigos, cujo sentido mais importante é garantir o sistema de ingresso universal e de vetos seletivos.

Reafirma-se, então, a visão realista de que a democracia não passa do exercício da capacidade de
bloquear o oponente, não de enfrentá-lo abertamente no espaço público. Pressupõe que maiorias não
se formam positivamente em favor de políticas determinadas, mas sim porque se mostram capazes de
desviar, contornar ou neutralizar vetos. No mais, é uma cultura política que aceita mecanismos de
participação e deliberação democráticos. Desde que não ameacem seriamente o sistema de vetos.

Mas essa lógica, digamos, inclusiva do pemedebismo tem seus limites. A política simplesmente deixa
de funcionar quando a polarização desaparece. Quando todos estão, por assim dizer, incluídos,
quando estão aPTos e organizados para vetar, em algum momento vem a paralisia, uma tendência
inscrita no próprio pemedebismo.

Na década de 80, a paralisia política coincidiu com a desorganização econômica. Produziu uma
Constituição que contém muitas e diferentes constituições dentro de si – o que, por razões que não
vêm ao caso aqui, acabou por ser positivo para a sua consolidação. E culminou com uma inflação
inteiramente fora de controle e com a humilhante derrota de Ulysses Guimarães na eleição
presidencial de 1989.

A desorganização econômica tinha nome e sobrenome conhecidos. Chamava-se inflação, “inflação


inercial”. Teve papel central na manutenção do pacto de desigualdade brasileiro dos anos de nacional-
desenvolvimentismo, entre as décadas de 30 e 80. Nos limites rígidos de uma economia fechada e, na
maior parte do século XX, de regimes autoritários e/ou coronelistas, a inflação auxiliou na promoção
de desenvolvimento econômico rápido e intenso sem alterar fundamentalmente os padrões desiguais
de distribuição de renda. Um pacto que pretendia se sustentar na melhoria geral dos padrões de vida.
Não foi por acaso que um dos primeiros atos da ditadura militar de 1964 tenha sido o de
institucionalizar a inflação sob a forma da “correção monetária”.

Em um determinado momento, entretanto, a inflação deixou de ser o mecanismo mais eficiente para a
manutenção do pacto de desigualdade que caracteriza a história brasileira, revelando divisões e
disputas potencialmente desagregadoras no interior dos próprios estratos sociais privilegiados. Esse
foi não apenas o momento em que a inflação se tornou hiperinflação. A hora histórica coincidiu
também com o declínio da ditadura militar, com a redemocratização e com o esgotamento do modelo
chamado nacional-desenvolvimentista. Foi esse nó social que coube ao pemedebismo não desatar.

A coincidência histórica de hiperinflação e redemocratização moldou um sistema político


programado para o quanto possível impedir a formação de blocos hegemônicos capazes de impor
perdas definitivas a terceiras partes. E não é difícil ver que a tarefa de superar simultaneamente a
hiperinflação e o modelo nacional-desenvolvimentista sem regressão autoritária não é factível em
uma configuração política como essa.

Para mostrar isso, basta lembrar que, até 1994, governos estaduais tinham no Brasil relevantes
instrumentos para fazer política econômica, independentemente do chamado governo central. E que
os tímidos ensaios de abertura econômica da década de 80 – como a abertura para o investimento,
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por exemplo – foram feitos na margem e por políticas específicas de ministérios e órgãos da área
econômica.

Dito de outro modo, a resposta pemedebista canônica é a do adiamento permanente de soluções


definitivas. Normalmente considerada como o período do “ajuste estrutural” à nova etapa do
capitalismo mundial, a década de 80 foi, na verdade, a do adiamento do ajuste mediante a manutenção
da hiperinflação e do fechamento da economia. Não é de estranhar, portanto, que esse adiamento
estrutural leve, mais cedo ou mais tarde, à paralisia.

O que explica também, do lado oposto, que a década tenha se encerrado com a opção antipemedebista
por excelência, com a eleição de Fernando Collor. A paralisia pemedebista trouxe seu oposto para o
centro da arena política: Collor, com uma única bala, queria matar a inflação e o nacional-
desenvolvimentismo. No fundo, a oscilação entre os extremos da paralisia pemedebista e do
cesarismo alucinado de Collor colocou as bases para o surgimento da nova versão do pacto de
desigualdade brasileiro representado pelo Plano Real.

A reorganização que veio com o Plano de 1994 não alterou substancialmente a lógica pemedebista – o
que, aliás, não surpreende, se lembrarmos que o próprio FHC se formou na política partidária dentro
do MDB/PMDB. Mas o novo modelo de gerenciamento político do período FHC deu ao pemedebismo
direção e sentido, submetendo essa cultura política a um sistema bipolar que o conteve em limites
administráveis.

Em lugar dos dois extremos – pemedebismo ou Collor – FHC colocou a ponta seca do compasso em
um novo centro político, estabelecendo a partir daí dois polos no sistema, um liderado pelo PSDB, o
outro pelo PT. Além dos aliados históricos de cada um dos lados, a regra seria construir uma coalizão
de “A a Z” sob a liderança do polo no poder.

Como já deve estar claro a esta altura, controlar a inflação significava ao mesmo tempo controlar a
tendência pemedebista da política brasileira. É nesse sentido que a aliança PSDB/PFL foi,
literalmente, a outra face da moeda, do Real. Controlar a inflação não dependia apenas de um
aprendizado técnico-econômico com os sucessivos fracassos dos planos anti-inflacionários de 1986 a
1991: Cruzado (I e II), Bresser, Verão, Collor (1 e 2). Dependia ao mesmo tempo da construção de um
bloco político capaz de superar a crise estrutural de hegemonia da redemocratização que é chamada
aqui de pemedebismo. Ou seja, há um vínculo interno entre a “inflação inercial” e a “política inercial”
que se cristalizou sob a forma de sistema político a partir da década de 80.

Ao se aliar ao PFL e, posteriormente, a quem mais estivesse disponível, o governo FHC estabeleceu
um campo de forças em que ao PT só restariam duas possibilidades: permanecer indefinidamente na
oposição ou fazer um movimento em direção ao centro político, com uma nova e mais “flexível”
estratégia de alianças.

No caso de um movimento do PT em direção ao centro, a condição propriamente partidária imposta


pelo modelo era uma só: o partido conseguiria vir a governar o país se, além dos parceiros históricos,
viesse a se aliar ao PMDB. O que efetivamente aconteceu no governo Lula, ainda que somente depois
do cataclismo do “mensalão”. “Mensalão”, aliás, que marca o ponto de chegada e o apogeu da
engenharia política do Plano Real. Foi quando, pela primeira vez em 25 anos, uma crise política não
afetou a economia.

Mas a história ainda não chegou a 2005. Para chegar ao primeiro mandato de Lula é preciso ainda
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lembrar de pelo menos mais uma das mudanças estruturais decisivas introduzidas pelo Plano Real e
que marcou o ocaso do poder dos governadores de estado, tradicionais candidatos a gerentes do
condomínio político pemedebista brasileiro. O primeiro movimento de neutralização veio com a
própria estabilidade da moeda, que teve um efeito devastador sobre a dívida pública. Sem o
permanente adiamento representado pela inflação, os governadores se viram em dificuldades
orçamentárias intransponíveis e, do outro lado, encontraram no governo federal um duro negociador
na reestruturação das dívidas estaduais.

O segundo movimento foi concomitante. Retirando do âmbito dos estados praticamente toda e
qualquer possibilidade de praticar política fiscal e monetária – o que era comum no período
inflacionário – o governo federal garantiu o monopólio da irresponsabilidade fiscal, julgada então
necessária para alcançar a estabilização econômica pretendida. A mesma irresponsabilidade que
negou aos estados. Não por acaso, foi o tempo mais quente da chamada “guerra fiscal”, em que os
governadores lançaram mão dos parcos e únicos recursos que lhes restaram para obter investimentos
em troca de isenções e benefícios tributários e fiscais.

A concentração dos principais instrumentos de política fiscal e monetária nas mãos do governo
federal foi essencial para neutralizar essa que foi uma das principais fontes de alimentação do
pemedebismo na década de 80. E seu episódio inaugural e mais marcante ocorreu antes mesmo da
posse de FHC como presidente: a intervenção no Banco do Estado de São Paulo, o Banespa, realizada
às vésperas da posse do governador do estado, até então principal líder do PSDB, Mario Covas.

Depois de perder sua segunda eleição presidencial em 1994, Lula tomou a decisão de fazer mudanças
significativas no PT, reorientando radicalmente sua estratégia. Tinha chegado à conclusão de que o
Plano Real havia alterado profundamente a lógica da política brasileira, a começar pelo fato de ter
resolvido o principal problema nacional, a inflação. Foi nesse momento que começou a ser construída
tanto uma maioria partidária disciplinada como uma nova política de alianças partidárias e eleitorais.

O movimento inaugural nessa direção foi a eleição de José Dirceu para a presidência do PT. A partir
de 1995 – e não sem conflitos com o próprio Lula, diga-se – Dirceu implementou à risca o plano,
isolando ou mesmo expulsando militantes e grupos políticos inteiros que se opunham à nova
orientação, construindo um sólido bloco de apoio majoritário, e buscando estabelecer pontes com
partidos e figuras políticas até então consideradas como inimigos. O ápice dessa estratégia se deu na
eleição de 2002 e seu símbolo é a candidatura a vice-presidente na chapa de Lula do empresário José
Alencar, então senador do hoje extinto PL.

Lula ganhou a eleição sem o apoio formal do PMDB. Mas não conseguiu estabilidade para governar
até o momento em que cumpriu o destino que lhe tinha sido reservado pelo arranjo imposto pelo
Plano Real. Não que Lula não tenha tentado fugir a essa camisa de força herdada. Ao contrário,
escolheu inicialmente construir novas alianças apenas com a miríade de pequenos e médios partidos à
disposição e fazer acordos individuais com parlamentares do PMDB, não com o partido como um
todo, ou pelo menos com a porção dele que pudesse ser atraída para a base do governo.

Nesse momento de seu primeiro mandato, Lula operava ainda como árbitro do PT e não como
presidente da República. O governo estava dividido essencialmente entre facções do partido que
continuavam a se digladiar por espaço como antes. E Lula continuava a ocupar a posição de “último
recurso” que sempre ocupou nas disputas internas do partido, interferindo diretamente apenas
quando o seu próprio prestígio estava em causa.

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Essa situação fez com que as figuras de José Dirceu e de Antonio Palocci se sobressaíssem e passassem
como que a canalizar todas as disputas internas ao governo em duas facções concorrentes. Dirceu
apoiado no PT, Palocci como porta-voz de outras forças partidárias dentro do governo e do mercado
financeiro. Por essa época, as negociações políticas eram extremamente delicadas, já que Lula não
autorizava (nem desautorizava, ao mesmo tempo) ninguém a negociar em seu nome.

Foi essa instabilidade estrutural que o levou a recusar, em 2004, o acordo com o PMDB construído
durante meses por José Dirceu. Entre outras coisas, porque isso significaria também, nesse contexto,
dar poder demais a Dirceu na disputa interna. O resultado foi o abismo do “mensalão”. E a
consequente aliança formal com o PMDB, em 2005, momento em que Lula finalmente assumiu a
Presidência da República e o papel de articulador político de seu próprio governo.

E, quando parecia que o scriPT traçado em 1994 estava sendo seguido à risca, Lula deu o troco. Em
lugar de apenas se limitar a trazer o PMDB e o estritamente necessário para a sustentação política do
governo, passou a ampliar sistematicamente o centro político estabelecido a partir do Plano Real e a
tornar quase impossível a vida de um oposicionista. Com taxas de aprovação popular jamais vistas,
Lula investiu contra a lógica da polarização que organizava todo o sistema. Manteve-a apenas nos
limites do necessário para alcançar os efeitos eleitorais pretendidos. Mas, de fato, roubou o chão do
polo liderado pelo PSDB.

Lula esteve em condições de ampliar de tal maneira o centro político que a polarização praticamente
desapareceu. Deu à oposição a alternativa de aderir ou de se encantoar na extrema-direita. Ou seja,
não lhe deu alternativa. Ou lhe deu uma alternativa ainda mais estreita do que aquela que lhe tinha
sido imposta por FHC.

Esse movimento solapou de tal maneira as bases do sistema político do Plano Real que é difícil
imaginar como elas poderiam ser hoje recompostas. O acordo selado em torno do centro político se
tornou de tal maneira amplo que toda e qualquer polarização parece artificial. Artificialismo,
entretanto, que tem sua utilidade eleitoral, sem dúvida. E que explica também por que a eleição de
2010 ficou entre o chocho e o abstruso, sem nada de realmente relevante entre as duas coisas.

Em uma sociedade que – por muito boas razões, diga-se – não acredita em consensos, o primordial é
tentar garantir não ser atropelado por um dos propalados “consensos” do momento. Como por toda a
América Latina, as eleições da última década significaram a ascensão de pobres e remediados à
condição de representados políticos.

O que talvez seja específico do caso brasileiro é a maneira como ocorre a “inclusão”. Também no caso
da representação do que André Singer chamou de subproletariado, tento mostrar aqui que é o mesmo
mecanismo característico da cultura política brasileira que se encontra em ação: o de igualar “estar
incluído” com “ter poder de veto”.

Lula representa quem nunca teve verdadeiramente representação, não porque simbolize um
conservadorismo que seria próprio aos excluídos políticos, mas porque é o fiador de que não haverá
retrocesso nesse avanço democrático à brasileira. Ao contrário da ladainha conservadora, ser
representado não é apenas ser objeto de políticas públicas; é igualmente acreditar que não será
atropelado por mais um dos muitos “consensos” que o país produz de quando em quando.

É por tudo isso que penso que André Singer tem razão em dizer, no ensaio de piauí, que “durante um
tempo longo o norte da sociedade será dado pelo anseio histórico de reduzir a pobreza e a
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desigualdade no Brasil”. Como me parece ter razão ao acrescentar em seguida: “Em que grau e
velocidade, a luta de classes dirá.” Ocorre que a determinação do “grau e velocidade” depende
também de análises políticas concretas, que sejam capazes de mostrar as tendências do sistema.
Depende de uma análise política capaz de vincular esse movimento à própria lógica da democracia
brasileira, com os potenciais e os obstáculos ao seu aprofundamento. Do contrário, a posição do
lulismo como pretenso momento inaugural de uma era perde o gume analítico e seu eventual poder
explicativo.

O que tento mostrar aqui é que há uma tendência à paralisia no sistema político brasileiro cuja lógica
chamo de pemedebista, cujas raízes devem ser buscadas na década de 80, no início da
redemocratização brasileira. Tento mostrar também que essa tendência intrínseca impõe dificuldades
estruturais à produção de polarizações consistentes e duradouras. E que o momento atual é de
enfraquecimento da polarização, um momento em que a paralisia pode suplantar uma vez mais o
sistema bipolar instituído pela lógica política do Plano Real.

No caso da reviravolta política de Lula examinada aqui, por exemplo, o alargamento do centro
político e o enfraquecimento da polarização tiveram por consequência trazer para o primeiro plano
justamente o pemedebismo, até então subordinado e subterrâneo. E essa novidade é um elemento
determinante do “grau e velocidade” em que poderão se dar ou não as transformações no país.

O marco do novo surto pemedebista pode ser representado pela resistência de José Sarney na
presidência do Senado apesar de uma saraivada de denúncias, em 2009. O apoio decisivo de Lula à
permanência de Sarney na presidência do Senado selou a aliança com o PMDB para a eleição
presidencial de 2010 e, ao mesmo tempo, marcou a volta do pemedebismo à disputa pela hegemonia
da gramática política brasileira. Ao contrário de casos anteriores, que resultaram em renúncia ou
cassação de mandatos, a permanência de Sarney mostrou que o centro político ganhou tal amplitude e
poderio que pode em grande medida ignorar protestos sistemáticos e generalizados da sociedade.

Uma contraprova do caráter determinante dessa cultura política de fundo pemedebista está em que,
desde o primeiro mandato, Lula caminhou justamente por onde não encontrou vetos: nos aumentos
reais do salário mínimo, na ampliação dos programas sociais, nas reformas microeconômicas do
crédito. Mas isso estava ainda longe da política desenvolvimentista do segundo mandato, que induziu
a criação de oligopólios nacionais com pretensões de internacionalização.

Na nova política, os grupos escolhidos pelo governo como vencedores tinham todas as razões para
comemorar, assim como os demais tinham motivo de sobra para se recolherem, evitando possíveis
represálias. Além disso, o crescimento econômico expressivo e praticamente contínuo tornou os reais
perdedores apenas residuais. Seja por que razão for, o fato é que a nova orientação
desenvolvimentista não encontrou resistência social e política relevantes. E, coincidência ou não, esse
desenvolvimentismo movido a subsídios, desonerações e subvenções só deslanchou com a entrada
definitiva do PMDB no governo, depois do “mensalão”.

Tão ou mais importante que isso, a chegada do PMDB ao governo Lula trouxe ainda um elemento
novo ao modelo de liderança bipolar herdado da engenharia política imposta por FHC. Lula criou
onde e como pôde políticas sociais compensatórias. Só que repartiu de maneira desigual os seus
dividendos políticos.

O PT ficou com a formulação, com o controle dos projetos e com o crédito de paternidade (ou
maternidade, como se queira). E o PMDB recebeu a maior parte da execução das políticas –
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justamente a parte que contempla o poder local e abastece a política miúda. O programa Luz para
Todos, não por acaso criado por Dilma Rousseff quando ministra das Minas e Energia, pode ser visto
como caso exemplar dessa lógica lulista de repartição de dividendos políticos.

É justamente essa lógica de repartição de dividendos políticos que está ameaçada de agora em diante.
E não apenas porque a própria repartição terá de ser negociada. O sucesso do Plano Real e a
popularidade de Lula conseguiram ainda contrabalançar, conter e direcionar em alguma medida o
pemedebismo. Mas são eventos passados e irrepetíveis.

Quanto mais se radicalizou a polarização entre PT e PSDB, tanto mais o pemedebismo se impôs. Não
se trata de dizer sem mais que a polarização é falsa e que não há diferenças entre os dois polos. Mas,
quanto mais o pemedebismo avança, mais a polarização é amplificada artificialmente, servindo à
manutenção de uma lógica política profunda que não é nem petista nem tucana.

Durante dezesseis anos, o sucesso do Plano Real e os altíssimos índices de aprovação do governo Lula
permitiram manter sob certo controle a tendência do sistema à pemedebização. Parece que não mais.
A possível oposição se encontra hoje entrincheirada justamente em governos estaduais, o lugar
político menos propício para enfrentar as coalizões de “A a Z” que caracterizam os governos desde
FHC. Além disso, um Congresso ainda mais fragmentado serve de caldo de cultura política ideal para a
expansão do pemedebismo.

A ironia e a tragédia da história estão em que o pemedebismo encontrou na “blindagem” da economia


contra “interferências políticas” o elemento que lhe faltava para voltar a disputar a hegemonia
política, para sair de sua posição de relativa subordinação de mais de quinze anos para um novo
protagonismo. Note-se, aliás, que o fiel depositário do pemedebismo, o partido que lhe deu origem,
procurou mesmo se mostrar fiador dessa “blindagem”, filiando quadros tão importantes e
incongruentes entre si como Henrique Meirelles e Delfim Netto. O resultado regressivo desse
processo é visível a olho nu: uma política que tende a se descolar da sociedade, uma política que tende
a se fechar sobre si mesma. E que, no limite, pode levar à paralisia.

Tornado aliado em sentido enfático nas eleições de 2010, o PMDB vai levar a disputa entre situação e
oposição para dentro do governo. É por isso também que o tamanho nominal da bancada parlamentar
que apoia o governo tem menos importância do que as matérias específicas em pauta, do que o estado
da disputa interna ao governo. Ou seja, a mais importante disputa política será entre o PMDB e o
pemedebismo, de um lado, e o PT e seus possíveis aliados, de outro.

Não será uma briga bonita de ver. As fábricas de dossiês vão se multiplicar como nunca. Já durante a
eleição de 2010, a ministra-chefe da Casa Civil, Erenice Guerra, foi a primeira baixa, o prenúncio do
que virá. Sua queda dá uma pálida ideia de como serão os embates futuros.

A primeira das duas batalhas decisivas será uma vez mais a eleição municipal – a mesma, aliás, que
esteve na origem do “mensalão”, é importante lembrar. Depois de 2012, a segunda batalha acontecerá
na data limite para parlamentares trocarem de partido sem penalidades, na segunda metade de 2013.
Enquanto isso, o PMDB fará de tudo para colocar sob sua órbita de influência o maior número
possível de parlamentares de outros partidos.

A primeira escaramuça – que de maneira alguma será decisiva – acontecerá na eleição para a
presidência da Câmara e do Senado, no início de 2011. Sendo que a figura de José Sarney é aqui
emblemática: o atual presidente do Senado e candidato à recondução ao cargo foi justamente o
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O f 26/11/12
im da polarização | piauí_51 [rev ista piauí] pra quem tem um clique a mais

presidente no auge do pemedebismo da década de 80. Sabe muito bem o que significa estar nas mãos
de um Congresso que funciona segundo essa lógica.

Não é nem um pouco fácil imaginar o lugar que poderá ter a oposição durante o governo Dilma. Há
quem confie em supostas leis da política e ache que é assim mesmo, que a oposição vai se reorganizar
e acabar aparecendo. Mas não são muitos esses otimistas científicos.

No momento, resta à oposição formal hibernar. Aliás, tudo indica que também a disputa pela
liderança do PSDB será duríssima. Aécio Neves decidiu ir para o tudo ou nada contra a pretensão de
Serra de presidir o partido. Se perder para o grupo paulista, Aécio não permanecerá no PSDB senão o
tempo suficiente para encontrar um solo alternativo para suas pretensões presidenciais.

Mas, mesmo quando conseguir se reorganizar, a oposição pode, no máximo, servir de massa de
manobra na disputa entre PT e PMDB. E manter a esperança de que o pemedebismo afinal vença e
venha a produzir a paralisia que lhe é própria. Isso seria capaz de dar novo fôlego à oposição, talvez
em aliança com o próprio PMDB. Mas também esse não é um cenário alentador para a democracia
brasileira. Porque, no fundo, o jogo político não vai se dar entre situação e oposição, mas entre a crise
de um sistema organizado em polos e a pemedebização.

Uma eventual hegemonia do pemedebismo tenderia a levar a uma situação semelhante ao estado de
paralisia política dos anos 80. Em termos concretos, poderia comprometer seriamente a Copa do
Mundo ou as Olimpíadas, por exemplo, já que as obras de infraestrutura são as primeiras a serem
afetadas por uma crise política profunda. Marcaria o retorno da concomitância entre crises políticas e
abalos na economia.

Seja como for, se não é possível prever os resultados de uma regressão política dessa magnitude, é
pelo menos possível dizer que, no médio e longo prazo, sua efetiva ocorrência exigirá uma
reorganização de grandes proporções. Porque o sistema político não sobrevive sem polarização. E a
polarização dos últimos quinze anos não tem mais densidade suficiente para organizar e estruturar o
sistema.

Um sistema em estado de não polarização é o elemento do pemedebismo. E, se um cenário regressivo


não se deixa ver hoje em toda a sua possível amplitude e gravidade, pelo menos suas marcas mais
gerais são bem visíveis: um tempo de bonança, desigualdade e pequena política. Ou até que uma nova
polarização se produza para superar uma vez mais a paralisia pemedebista.

Agradecimento

Maria Cristina Fernandes não tem nenhuma responsabilidade pelo que escrevi acima, mas sem suas
sugestões e críticas o texto simplesmente não seria o que é.

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