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A resiliência do bolsonarismo nas

eleições de 2022
5 de outubro de 2022

Por G. Lessa – Membro do Comitê Central do PCB


Os resultados do primeiro turno das eleições gerais de 2022 revelam
que, mesmo com a provável vitória de Lula no segundo turno, persiste
a hegemonia do bolsonarismo entre 40% dos brasileiros. Essa
hegemonia constitui fenômeno recente e enraizado demais para
refluir em apenas quatro anos, ainda mais por ter tido Bolsonaro o
controle da máquina federal e a possibilidade de cooptar a maioria
dos parlamentares. Portanto, para entender a resiliência do
bolsonarismo neste pleito eleitoral, será importante voltarmos a
discutir as causas, o conteúdo ideológico, a dinâmica, a estrutura e as
possibilidades deste tragicômico movimento político.

Fascismo e neofascismo

Inicialmente, é importante diferenciar o fascismo do neofascismo. Os


dois estão separados por noventa anos de história. Têm
convergências decisivas, mas não são o mesmo fenômeno. Deixar
escapar as singularidades do neofascismo é empobrecer a análise do
bolsonarismo. O primeiro se desenvolveu e chegou ao poder em
países industrializados que não passaram por revoluções
democráticas vitoriosas: Alemanha, Japão e Itália, principalmente.
Não foi apenas produto da fase imperialista do capitalismo, mas,
principalmente, uma das expressões ideológicas e políticas da forma
particular deste sistema econômico objetivar-se em países nos quais
os trabalhadores não conseguiram vitórias capazes de impor às
classes dominantes, de maneira duradoura, o respeito às liberdades
democráticas.

O surgimento e a ascensão do neofascismo vai tornar-se possível em


quadra histórica muito diferente, já no final do século XX, marcada
pelo fim do pacto fordista do pós-guerra, a financeirização da
economia, a reestruturação produtiva, o fim da URSS e do
protagonismo dos maiores partidos comunistas, a decadência da
hegemonia norte-americana, a ascensão econômica e política
chinesa, o consenso científico relativo ao aquecimento global e a
revolução digital nas comunicações, entre outros elementos. O
neofascismo não se deterá diante de qualquer cultura política
nacional, impondo-se como força política decisiva mesmo em países
com tradição democrática interna, como a França e as nações
setentrionais da Europa.

O neofascismo crescerá em mundo dilacerado pelas políticas


neoliberais, balizadas no chamado Consenso de Washington, que
provocaram a retirada do Estado da arbitragem das mudanças na
sociedade, deixando os indivíduos desamparados diante de turbilhão
de incertezas econômicas, políticas e morais. Este foi o chão do
fortalecimento dos doutrinarismos religiosos. O neofascismo será
nutrido e trará em si as marcas desta situação. Os governos
socialdemocratas, renegando bandeiras históricas, passaram a
restringir as políticas sociais em benefício do ajuste fiscal garantidor
dos investimentos financeiros. Esta e outras concessões análogas
levaram os grandes partidos reformistas, pilares do Estado de bem-
estar social, a perder votos entre a classe trabalhadora.
Simultaneamente, a reação exageradamente derrotista no
movimento comunista internacional ao fim da URSS destruiu o
protagonismo de grandes partidos revolucionários, como o PCF e o
PCI. Então, a fragilidade das esquerdas e a adoção do neoliberalismo
raiz pelos partidos liberais solaparam a base popular da democracia
formal, pois o sistema político se fechou para qualquer programa
econômico sensível aos problemas da maioria da população.
A gênese material do neofascismo brasileiro

Os governos Lula (2003/2010) foram construídos sob a Espada de


Dâmocles forjada pelo equilíbrio fiscal e a estigmatização das
políticas distributivas. Apesar das muitas e decisivas concessões
programáticas, o líder petista conseguiu popularidade por que driblou
os aspectos mais absurdos da proposta neoliberal em algumas
dimensões das políticas públicas (Bolsa Família, FIES, recomposição
do salário-mínimo etc.). Foi suficiente para garantir a adesão dos
trabalhadores e, em consequência, legitimar o sistema político. Os
governos Dilma enfrentaram a piora da conjuntura econômica
mundial – resultado da crise de 2008 – as contraditórias
consequências das políticas já implantadas e o acúmulo de
ressentimentos nos adversários provocado pela sucessão de governos
do mesmo partido.

A popularidade levou à construção, pelos governos petistas, de visão


rósea da realidade nacional, baseada na hipótese de que o Brasil se
tornara país de classe média (Marilena Chauí rechaçou a tese
implausível). Na prática, a maioria da população, exceto no semiárido
nordestino, onde a melhoria das condições de vida fora enorme para
os padrões regionais, já havia se naturalizado a recomposição do
salário-mínimo, a ampliação do crédito e o aumento de 30% na renda.
No entanto, convivia com a piora dos transportes públicos
(oligopolizados), o aumento da violência urbana, as filas no sistema
de saúde, a precária assistência estudantil, o aumento dos aluguéis, o
desemprego dos jovens formados via FIES, as dívidas bancárias, entre
vários outros problemas.

A classe média, composta majoritariamente por assalariados com alta


qualificação, carregava os próprios desgostos: o desemprego causado
pela reestruturação produtiva, os aumentos no preço dos planos de
saúde, os altos juros bancários, as pesadas mensalidades de
faculdades particulares (só os pobres tinham acesso ao FIES), os
elevados custos de moradia e de transporte, os gastos com celulares e
computadores etc. No período de 2003 a 2013, na Região
Metropolitana de São Paulo, diminuiu em 31,57% o número de chefes
de família ganhando mais de 5 salários-mínimos, enquanto o número
de chefes de família com a renda abaixo deste patamar subiu 57,6%
(PNAD/IBGE).

As Jornadas de Junho de 2013 foram causadas pelo alheamento do


governo Dilma em relação à maioria das demandas populares, não
contempladas pelas políticas existentes, principalmente nos grandes
centros urbanos. As mobilizações, iniciadas por grupos à esquerda
mais preocupados com as necessidades imediatas dos trabalhadores,
como o Movimento Passe Livre (MPL), abriram, dialeticamente,
espaço para a direita já inserida nos setores médios lutar pela
hegemonia e a direção política das manifestações. A derrota dos
grupos à esquerda, praticamente expulsos das passeatas, e a tímida
resposta do governo federal – arranhando, em São Paulo, a imagem
do prefeito Fernando Haddad, algo negativo para a candidatura do PT
na eleição presidencial de 2018 – em termos de acolhimento das
demandas econômicas, como a tarifa zero, deixou o campo livre para
a direita começar, impulsionada pelo conhecimento de marketing e
informática da classe média, a liderar mobilizações nas ruas e redes
sociais contra o petismo e a esquerda em geral. Esta foi a gênese dos
movimentos que participarão da campanha de Aécio Neves e vão
preparar, a maioria de maneira involuntária, o ambiente para a
ascensão do bolsonarismo, que representou um trânsito do
imaginário liberal para o ideário propriamente neofascista. Uma
metamorfose na qual o coxinha tucano transformou-se no tio
bolsonarista do WhatsApp.

Aninhamento político do neofascismo brasileiro

O capital e a grande imprensa perceberam a oportunidade de


enfraquecer o petismo. Trombeteada pela Globo, a operação Lava
Jato destruiu as imagens do PT e de outros partidos. No processo de
impeachment, um golpe institucional tão bem articulado que não
necessitou colocar os tanques na rua, Bolsonaro foi quem apostou
mais forte em um discurso de extrema direita, como aprendera com
Olavo de Carvalho e os grupos norte-americanos liderados por figuras
como Steve Bannon. Devido às crueldades típicas do imaginário
ultraconservador, já então espalhado entre os movimentos de direita
do país, a declaração de voto infame exaltando a tortura contra Dilma
parece ter sido o momento no qual Bolsonaro ganhou a liderança do
processo de transição da direita brasileira ao neofascismo.

Ao contrário do imaginado pelos principais donos do PIB e a grande


imprensa, a tentativa de destruição do petismo, que passou pela
prisão ilegal do ex-presidente Lula, não elevou um político liberal
conservador à presidência. Tão logo assume, Bolsonaro aumenta a
carga contra a Globo, a Folha de São Paulo, o Estadão e as próprias
instituições republicanas, a começar pelo Supremo Tribunal Federal
(STF), tão solícito no acolhimento dos disparates jurídicos do juiz
Sérgio Moro. A fragilização do sistema político criada pela atitude do
governo Dilma diante das Jornadas de 2013, os desmandos da Lava
Jato e as reformas neoliberais do governo Temer deixaram as
instituições formais indefesas diante do bolsonarismo. Então, a partir
do final de 2019, diante do risco de serem esmagados pela própria
criatura, os principais sujeitos do tradicional status quo político
promovem e legitimam a anulação dos processos ilegais contra Lula,
deixando espaço para o petismo reabilitar-se, como forma de
compensar a força do bolsonarismo. Sem o estigma de condenado
pela Justiça, o ex-presidente rapidamente volta a liderar as pesquisas
de opinião e ter protagonismo na articulação de diversas forças
políticas.

Os resultados do primeiro turno das eleições de 2022, marcados por


um excelente desempenho do bolsonarismo, parecem explicáveis por
este complexo contexto histórico. Como não veio junto de uma
negação do neoliberalismo, o aludido remendo proposto pelos status
quo e aplicado no rombo criado no casco do sistema de
representação, ou seja, o abandono do antipetismo, não está
funcionando de modo efetivo na diminuição da força do
bolsonarismo e não o afasta definitivamente como ameaça à
democracia formal.

Para compreender e esmagar a serpente neofascista

O neofascismo é, portanto, uma das expressões ideológicas e políticas


de situação histórica particular. Tornou-se possível e influente
quando mudanças econômicas (crise nas taxas de lucro mundiais a
partir dos anos 1970) e políticas (fim da URSS) profundas levaram o
grande capital a negar o pacto fordista e impor o neoliberalismo aos
partidos liberais e socialdemocratas. Junto com a abrupta fragilização
dos partidos comunistas nos anos 1990, aqueles fatos criaram uma
situação na qual os trabalhadores e as classes médias não mais
encontraram programas de acordo com suas aspirações. O
neofascismo surgiu, então, como sucedâneo deste programa político
inexistente. Como não se dispõe a colocar-se contra as linhas
neoliberais (por convicção e oportunismo), oferece pauta de
costumes fundada em explicações absurdas para as inquietações,
recalques e medos dos indivíduos. Contra o desemprego, propõe o
nacionalismo xenófobo em relação aos países periféricos e a
subserviência diante dos interesses econômicos dos EUA; diante da
complexidade das questões morais destacadas pelos movimentos
feminista, negro e LGBTQIA+, prescreve o conservadorismo “religioso”
hipócrita; afirma combater a ignorância e adula as piores dimensões
do senso comum. Entre outras bizarrices que estimulam o pior das
pessoas.

Já que o mundo contemporâneo “desmancha no ar”, o bolsonarismo


convida o indivíduo a defender as permanências, os valores
pretensamente vigentes no passado, a eternidade da ordem
capitalista, mas sem o corolário de instituições modernas, como a
democracia, a ciência, os partidos e os direitos trabalhistas. Diferente
do fascismo clássico, não tem qualquer retórica anticapitalista ou de
defesa da intervenção do Estado na economia. O
neofascismo/bolsonarismo é uma apologia direta e antimoderna do
capitalismo. Um capitalismo utópico, formado idealmente por
pequenos empreendedores prósperos e grandes empresários
defensores do interesse público e dos valores cristãos. Esta apologia
encontra eco na percepção do senso comum de que este sistema seria
o mais justo e a esquerda trabalharia, via intervenção estatal, para
destruir esta justiça. A nuvem de ideias e propostas grotescas não
poderia manter uma aparente unidade em cada bolsonarista sem o
discurso do líder como instância unificadora, algo existente no
fascismo clássico. Então, a argumentação de Bolsonaro não precisa e
nem pode ter coerência interna ou plausibilidade, a função dela é
oferecer unidade. As repetidas afirmações anticientíficas valem para
confirmar a função “gnosiológica” do líder e não pelo próprio
conteúdo, mesmo que vários bolsonaristas possam ter morrido na
pandemia por segui-las como ritual de submissão à causa.

Dessa maneira, a superação do bolsonarismo pressupõe a vitória do


ex-presidente Lula no segundo turno, o que retiraria a máquina
pública federal das mãos dos neofascistas. Exige também amplo
movimento de massas para derrotar definitivamente as políticas e
ideias neoliberais, pois estas são as efetivas construtoras das
condições econômicas e sociais que possibilitaram o surgimento e a
ascensão da variante contemporânea da serpente fascista.

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