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Junho de 2013 iniciou crise que ainda não terminou - 03/06/2023 - Ilustríssima - Folha 14/06/2023 08:51

Junho de 2013 iniciou crise que


ainda não terminou
Núcleo do sentido dos protestos está na
desestabilização radical das instituições e no
redesenho das ideologias em disputa no país
3.jun.2023 às 23h00

[RESUMO] Junho de 2013, dez anos depois, confirma-se como uma


ruptura na experiência brasileira, tendo inaugurado um período de
desestabilização radical das instituições que acarretou um redesenho dos
grupos ideológicos, conservadores e progressistas, e das relações de
força entre eles. Instabilidade da relação entre Executivo e Legislativo e
sobrevivência da ideologia extremista, entre outros fatores, indicam que
os efeitos dos protestos ainda marcam o país, avalia autor.

Em meio a indagações que até hoje não encontraram respostas


inequívocas, de uma coisa nunca se teve dúvidas quanto a Junho de
2013: tratava-se de um marco na experiência brasileira.

Um marco, em historiografia, é um ponto de ruptura, transformação,


inflexão ou irradiação. O reconhecimento de que Junho tinha essa
natureza confirmou-se pela série de abordagens que desde então
mobilizaram o sintagma "não acabou", ou variações. Eu mesmo codirigi
um documentário chamado "O Mês que Não Terminou".

Junho foi, portanto, uma abertura. Não no sentido musical, em que se


anunciam temas por vir, logo já previstos nesse início, mas sim no sentido
filosófico de acontecimento. Como define Alain Badiou, em sua "Ética":
um acontecimento é o que nos obriga a um novo modo de ser. Esse novo
modo é imprevisível, porquanto, justamente, novo.

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Há cinco anos, a Folha me convidou a fazer um balanço de Junho. A


situação geral do país ainda manifestava impactos intensos do
acontecimento, embora em sentido contrário à sua intenção
democratizante originária.

A impressão era de desconcerto: greve de caminhoneiros, cambalhotas


ideológicas, um presidente ostentando um recorde de impopularidade,
uma anomia galopante que preparava o terreno para que Jair Bolsonaro
chegasse à Presidência.

Cinco anos depois, a sensação é outra. A reeleição de Lula representou a


resistência do regime democrático aos ataques bolsonaristas e trouxe
consigo uma expectativa de normalização institucional e o declarado
compromisso de arrefecer os conflitos ideológicos na vida social ("União
e Reconstrução").

Jair Bolsonaro, expressão máxima da espiral de degradação a que a


desestabilização acabou conduzindo, está prestes a se tornar inelegível.
As centenas de golpistas do Capitólio verde e amarelo estão sob a alça de
mira da justiça. O Congresso nacional voltou para as mãos dos
profissionais. A Lava Jato está morta e enterrada.

Será então que Junho finalmente acabou? Farei um breve balanço da


experiência brasileira nestes últimos dez anos, examinando três
dimensões —institucional, ideológica e social— diretamente ligadas a
Junho e a seus desdobramentos; ao cabo do exame, estaremos em
melhor posição para retomar a pergunta.

Junho inaugurou um período de crise do modelo de funcionamento das


instituições da Nova República. A afirmação não sugere que as
instituições funcionavam bem, mas que uma certa forma de
funcionamento foi rompida.

O sentido originário de Junho terá sido o de um choque em uma

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democracia liberal mais liberal do que democrática. Na tomada das ruas e


das sedes dos Poderes, estavam em jogo a afirmação da cidadania, o
direito à cidade, a ampliação do comum, a exigência de espírito público
republicano.

Esse clamor, como se sabe, não foi reconhecido pelo sistema político. No
vácuo dos protestos um tanto indeterminados, outros atores, com outras
perspectivas, se juntaram ao movimento e, com o apoio da repressão
policial e de setores conservadores, acabaram prevalecendo nas ruas. A
partir daí, o destino de Junho mudou de mãos.

A Lava Jato canalizou o clamor anti-institucional e disparou uma espiral


de comportamento frenético e imoderado, da parte das próprias
instituições. A começar pelo paradoxo da operação, que pretendeu
purificar a política conspurcando a justiça.

A partir dela, todos os cavalos-de-pau institucionais estão de algum


modo interligados: protogolpismo de Aécio Neves, impeachment, prisão
de Lula, eleição de Bolsonaro, desgoverno sistemático bolsonarista, idas e
vindas do STF, ameaças de golpe e passagem ao ato do golpismo com
apoio de diversas instituições.

Com a eleição de Lula e superado o solavanco inicial, a pergunta se


impõe: as instituições estão se reorganizando de forma mais estável? A
resistência da democracia ao golpismo, a volta das Forças Armadas para
dentro da lâmpada, a barragem institucional ao bolsonarismo, o
estabelecimento de um governo com projeto de país (ainda que um
pouco confuso e anacrônico) apontam nessa direção.

Por outro lado, o Executivo encontra-se fraco; o Congresso está forte; a


oposição antidemocrática ainda vive; há percepção de excessos e
arbitrariedades do Judiciário; a Lava Jato está morta e enterrada, mas seu
cadáver segue se revirando no caixão.

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No conjunto, o país se encontra hoje mais ingovernável do que antes de


2013. O então presidente Fernando Henrique Cardoso registrou em seu
diário que só havia duas alternativas ao Brasil: governar o atraso ou o
próprio atraso governar o país.

O caminho percorrido desde a instalação das emendas impositivas, ainda


no governo Temer, ao "orçamento secreto" de Arthur Lira e sua restrição
insuficiente pelo STF (pois a que cabia a seu escopo) tornou mais difícil,
quase impossível, ao Executivo governar o país sob uma visão coerente e
orquestrada de políticas públicas.

Essa ingovernabilidade aposentou as formas antigas da famigerada


"governabilidade" e talvez seja a mais maldita entre as heranças, essas
sim, malditas de Bolsonaro. O debate sobre a eficiência do
presidencialismo de coalizão deu lugar, como observou o próprio Sérgio
Abranches, que cunhou o termo, a uma impossibilidade de coalizão. Em
vez da aliança do progresso social com o atraso, temos agora uma queda
de braço entre um e outro.

No rastro da Lava Jato e do abalo sofrido pelo PT, novas direitas puderam
se declarar no Brasil, após o longo inverno no armário por conta da
associação à ditadura e da hegemonia cultural esquerdista.

Os anos de 2015 a 2018 foram de grande transformação da paisagem


ideológica brasileira. O colapso do nacional-desenvolvimentismo,
articulado ao escândalo do petrolão, propiciou a emergência de um
movimento liberal, defendendo "menos Marx, mais Mises".

Os movimentos sociais liberais foram decisivos para a arregimentação de


multidões às ruas reivindicando o impeachment de Dilma Rousseff. Desde
o início, esse novo liberalismo revelou ter um pé no conservadorismo,
envolvendo-se nas guerras culturais como verdadeiros cruzados da
heteronormatividade.

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O movimento conservador, por sua vez, fermentava nos porões da


internet havia cerca de uma década, em torno da figura incontornável de
Olavo de Carvalho. Articulando regiões mais rurais do Brasil, grupos
sociais envolvidos com conflitos de terras, a imensa população cristã
(especialmente evangélica) e todas as pessoas assustadas com o passo
rápido dos avanços progressistas, o movimento conservador se afirmou
como a maior ideologia popular do país e convergiu para Jair Bolsonaro.

Os liberais, em sua maioria, não resistiram a montar no cavalo selado


alheio, mesmo sabendo que o bicho não era confiável. Acabaram
escanteados e escoiceados. A cumplicidade com Bolsonaro custou caro à
imagem do liberalismo.

Do outro lado, assim como o conservadorismo se estabeleceu como


grande vencedor no campo da direita, o progressismo se tornou a
perspectiva hegemônica na esquerda. A nouvelle vague feminista emergiu
no Brasil ainda em 2014, seguindo um movimento internacional. As redes
digitais propiciavam um novo palco de disputas, propenso às lutas por
reconhecimento, que se tornaram desde então a agenda principal dos
movimentos de minorias.

A coexistência da hegemonia conservadora na direita com a hegemonia


progressista na esquerda tem produzido aquele que é, talvez, o conflito
central do nosso tempo, e não só no Brasil. O desastre que se revelou o
conservadorismo bolsonarista no governo permitiu a volta da esquerda ao
poder; mas diversos indícios, em diversos países, apontam para um
iminente fracasso eleitoral da esquerda, caso prossiga em uma postura
tribalista.

Nesse sentido, parece claro que o próprio Lula só venceu as eleições por
ser uma figura carismática, capaz de produzir identificações com as
camadas populares, e intuitivamente universalista. O Lula 3.0, entretanto,
tem infletido mais na direção do progressismo. Seja como for, o conflito
entre conservadores e progressistas está armado de modo a ensejar uma
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dinâmica de retroalimentação centrífuga que tende a favorecer os


conservadores.

No campo da esquerda, a corrente progressista-identitária vem sofrendo


crescente onda de crítica. Autores como Ato Sekyi-Otu, Susan Neiman
ou, no Brasil, Wilson Gomes, entre muitos outros, têm saído em defesa da
retomada de uma perspectiva universalista, que incorpore as conquistas
teóricas e políticas dos movimentos de minorias.

De um modo geral, o sociólogo Paolo Gerbaudo define o ambiente


ideológico global como um Grande Recuo: "uma mudança subjetiva, da
exopolítica centrífuga do neoliberalismo, voltada para o externo, para a
endopolítica centrípeta da era pós-neoliberal presente, com atenção 'para
dentro', para a redefinição das noções de interioridade e estabilidade".

Nesse recuo, que pode se dar à direita ou à esquerda, o maior perdedor


ideológico é o centro liberal.

Os atos de 2013 ocorreram dentro de um contexto de insurgências


globais, diretamente ligadas às novas tecnologias de comunicação. Nesse
ponto, as perspectivas da época envelheceram muito mal.

Da Primavera Árabe às Jornadas de Junho, passando pelos indignados de


Madri e o Occupy Wall Street, as revoltas ocorreram em interface entre as
ruas e os espaços digitais.

As redes não foram apenas o meio pelo qual os manifestantes se


organizavam, mas formaram um novo espaço público, a princípio mais
democrático, que viera abalar a lógica das mídias de massa e sua
capacidade de controlar as narrativas políticas e dirigir o jogo eleitoral.

Junho foi o momento em que as mídias de massa tiveram sua narrativa


disputada por uma massa de mídias, que contavam histórias diferentes da
versão central. Essa nova realidade foi percebida como um enorme

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potencial democratizante. Manuel Castells definiu as novas mídias como


ferramentas de "autocomunicação", em livro tão emblemático do
momento quanto da distância que agora nos separa dele.

O desenvolvimento das grandes plataformas de comunicação digital


ocorreu no sentido de tornar falso o conceito de autocomunicação.
Visando aumentar o tempo de uso e, logo, as receitas publicitárias, essas
empresas desenvolveram ferramentas de machine learning que
funcionam como um editor invisível do uso das redes.

Esse editor identifica tendências psicoafetivas humanas e funciona no


sentido de explorá-las cada vez mais intensamente. Essas tendências
psicoafetivas são o forte apelo que a identificação grupal exerce sobre
nós; o vício produzido por estímulos sensoriais associados a
recompensas imaginárias; a resposta mais imediata e intensa que
desperta em nós uma linguagem dotada de marcadores emotivos,
notadamente os associados a afetos de raiva e indignação.

À medida em que o comportamento dos usuários das redes era


submetido à dieta algorítmica, a vida social se tornava mais conflituosa,
indivíduos sofriam linchamentos concretos ou simbólicos, motivados por
dinâmicas de informações falsas, conflitos étnicos se tornavam mais
propensos a descambarem para genocídios (como ocorreu em Mianmar,
com o genocídio da minoria rohingyas) e a realidade social ficava
profundamente propensa a manipulações.

Quem melhor narra essa história, com abundância de detalhes, é Max


Fisher , em seu "A Máquina do Caos". Segundo Fisher, quem fez a ponte,
conscientemente, entre o "modus operandi" do algoritmo e o mundo
político foi Steve Bannon. Essa articulação inverteria desde então o
sentido das redes digitais para as democracias em todo o mundo.

A versão brasileira do Breitbart News foi em boa medida a cabeça


psicotizada de Carlos Bolsonaro. O modo como a extrema direita operou a

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lógica do digital não apenas catapultou Bolsonaro à Presidência do Brasil.


Cavou um verdadeiro fosso epistêmico e conduziu boa parte da
sociedade brasileira àquele estágio de seita da ideologia, no qual, no
embate entre a crença e a realidade, perde a realidade.

Às vésperas do pleito de 2022, a sociedade brasileira se encontrava tão


radicalmente dividida que não era de todo exagerado falar em alguma
forma latente de guerra civil. Com efeito, Barbara Walter, em "Como as
Guerras Civis Começam - e Como Impedi-las", dedica algumas páginas à
nossa derrocada democrática. Embora essas páginas contenham
imprecisões, a argumentação geral do livro, aplicada ao Brasil, revelava-
se pertinente.

—esses fatores não nos permitem cravar que o país entrou em um período
de rearranjo mais estável, na linha do velho modo "crise sem rupturas" do
pré-Junho.

Todavia é possível que, estabilizado o governo, feita uma transição


democrática e sem sustos, esvaziada a extrema direita, dando lugar a um
conservadorismo democrático, e reguladas as plataformas, limitando sua
capacidade de degradação democrática —enfim, é possível que
possamos olhar retrospectivamente e constatar que o retorno de um
governo democrata finalmente baixou nossa poeira.

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