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Comentários, Reflexões e Breves

A mãe judia (portuguesa) de Michel de Montaigne


ou o carácter implacável do anti–semitismo francês?
Alfredo Margarido
Professor Universitário,ULHT, Lisboa

Hesitei no título a dar a esta curta reflexão, lhante situação quer dizer que superámos,
que anuncia outra mais vasta, destinada a enfim, a ditadura da história quantitativa –
pôr em evidência a maneira como uma figura que esterilizou tantos bons historiadores dos
mítica da cultura francesa foi obrigada a Annales – assim como a obrigação de
desembaraçar-se da sua origem e educação identificar e definir as “estruturas”. Um
judias, para estar em condições de ocupar, grafito encontrado numa das paredes de
no panteão francês o lugar que lhe cabe: não Sorbona, em Maio de 1968, proclamava de
só como moralista, mas também, -quando não maneira taxativa: “as estruturas não
sobretudo – como autor capaz de reconhecer manifestam na rua !”. Estamos, de certa
e de inventariar as novas formas adquiridas maneira, perante uma mini-polémica interna
pela diferença. Optei por pôr em evidência, ao próprio tecido da história, opondo a longa
no título, a condição antropológica da mãe duração – que Fernando Brudel encontrara
de Michel de Montaigne, inserida na nas ferramentas maltratadas na historiografia
comunidade sefardita de Bordéus, formada alemã -, e a curta duração, ou aquela duração
em grandíssima parte por judeus obrigados que corresponde à vida normal de um
a abandonar a Península Ibérica. É esta homem. Cabe agora à biografia, assim como
“mácula” que nitidamente incomoda, há à auto-biografia, estabelecer o laço unindo
séculos, os intelectuais franceses e que os as duas formas de duração e de memória, o
leva a “ignorar” as condições de origem do que talvez implique um regresso a Bergson,
pensador. Daí a razão do sub-título, sem rejeitar B. Groethuysen ou Em. Levinas,
destinado a integrar tais comportamentos no podendo nós alargar o nosso campo teórico
quadro do anti-semitismo francês, na sua para incluir a psiquiatria da reflexão de E.
variante gascã. Minkowski.
Por outro lado os Essais obrigam a É por essa razão algo surpreendente
repensar a relação existente entre a longa verificar que, na quase totalidade das
duração que, pelo menos a partir de 1956 se biografias de Michel de Montaigne (1533-
tornou um instrumento obrigatório do 1592), se aceitam falsos-autênticos mistérios,
historiador, e a curta duração, limitada à agravados no caso das relações com a mãe,
longevidade média do próprio historiador, à qual de resto o pensador não faz nos seus
servindo aqui de norma aplicável aos Essais (1580) a menor referência. É certo que
homens. Estamos por isso a assistir, nos dias os Essais não são uma auto-biografia ,
de hoje, a uma modificação substancial do embora a sua reflexão esteja baseada na
campo histórico como revela a multiplicação experiência de Montaigne. Esta ocultação,
das biografias e das autobiografias: seme- que responde a um projecto certamente

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meditado, devia intrigar os biógrafos e (Montaigne) se cala, imitemos o seu


analistas da obra de M. Montaigne, mas tal silêncio” (p. X). Não se pode ser mais
não acontece. Não é sem surpresa que deferente, mesmo se a história da vida de
podemos dar-nos conta de que esta rejeição Michel de Montaigne fica amplamente
da mãe não intriga os historiadores fran- comprometida na operação. Não podemos
ceses. esquecer que S. Freud nos mostrou que a
Numa das mais recentes edições dos palavra ou o acto falho, o lapso ou o recalque,
Essais (em Paris na Pochotèque, 2001), aceita- possuem densidades significativas, que
se, sem embaraços, semelhante situação solicitam ou impõem uma descodificação. É
como sendo, por assim dizer, inevitável, ou evidente que Montaigne vive uma relação
seja, estritamente normal. Referindo-se à extremamente violenta com a mãe, que há
passagem de Montaigne por Toulouse, onde séculos espera esclarecimento, tanto mais
terá estado instalado em casa da sua família que esta conflitualidade se exarcebou entre
materna – os Louppes – e matriculado em 1561 e 1567, ou seja seis anos de choques
direito, experiência que não merece uma nos quais participa também Pierre Eyquem,
palavra de um analista tão minucioso, o autor marido e pai. Ora não se trata de um conflito
da introdução não hesita em escrever sem o de adolescência, pois então Montaigne
mínimo titubeio: “mas será legítimo romper contava nada menos de trinta e quatro anos,
um silêncio tão cuidadosamente alimen- idade mais que suficiente para alcançar a
tado?” (p. IX). O historiador suspende a sua sageza.
investigação, intimidado pelo volume Dispomos de algumas hipóteses de
cultural representado pelo próprio Mon- interpretação e de explicação desta conflitual
taigne. Mas não aparece aqui já o propósito idade, na medida em que está em causa a
de dissimular a sua origem judia ? O mudança de estatuto do jovem Michel
candidato ao enobrecimento não pode Eyquem, filho de Pierre Eyquem, membro de
desconhecer as regras que presidem às uma ampla fracção da burguesia comercial
teorias do “sangue puro”, e recusa deixar- francesa que procura transitar para o estatuto
se enredar pela sua própria genealogia e pela da nobreza, tendo-o conseguido; se o pai,
decisão de seu pai, o burguesíssimo Pierre Pierre Eyquem é ainda, e como tal tendo
Eyquem que o instalou em casa da família morrido, um burguês rico de Bordéus, já seu
judia. filho fará o necessário, apoiando-se
É deste quadro que somos forçados a sobretudo no capital reunido por seu pai,
interessar-nos pela figura da mãe que não é para adquirir um lugar na nobreza gascã. Esta
nunca referida nos Essais. É certo que Pierre operação foi amplamente facilitada pela
Eyquem também não é referido senão nove aquisição do castelo e das terras de
vezes, embora assinale alguns passos auto- Montaigne por Pierre Eyquem. A situação é
biográficos fundamentais. Face a este deveras curiosa, pois Michel de Montaigne,
silêncio, a crítica francesa mantém-se fiel ao educado no meio da burguesia comercial,
que podemos designar como sendo a norma que era tanto a de seu pai, como o da sua
erudita, respeitando um silêncio que também família materna, se apresenta como um
não deve ser interrogado; “mas já que ele pensador da nobreza, lugar onde acabou por

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integrá-lo uma crítica francesa nitidamente exclusão da mãe foi alargada, ou precedida
intimidada pela grandeza do moralista. pela exclusão da família materna: são os
É neste quadro que devemos instalar a Louppes, com a sua fidelidade ao judaísmo
figura da mãe, Antoinette Louppes – que traumatizam Michel Eyquem. Por essa
patromínio do qual muitos pretendem ver razão serão eles repelidos, não lhes
uma corruptela do Lopes português – que consentindo o menor espaço nos Essais.
pertencia à comunidade sefardita de Bordéus Quais seriam então as relações existentes
que fora amplamente reforçada pelos judeus entre os Louppes e a comunidade sefardita
peninsulares obrigados, entre 1492 e 1496, a de Bordéus? A expulsão dos judeus da
abandonar a Península Ibérica, marcados Penín-sula Ibérica fizera-se entre 1492 e 1496:
pelo peso de duas expulsões, a primeira quando Michel Eyquem nasce, terceiro filho
ordenada pelos reis católicos, cabendo a de seus pais, a 28 de Fevereiro de 1533, havia
segunda ao rei Dom Manuel I. É por essa apenas 41 anos que estes sefarditas tinham
razão que se hesita em lhe atribuir a começado a abandonar a Península Ibérica,
nacionalidade portuguesa, pois podia muito o que permite afirmar que Antoinette
bem pertencer à sociedade judia de Toledo. Louppes nascerá já em França e prova-
Todavia a grafia Louppes remete mais velmente nesta Gasconha onde se enrai-
certamente para o Lopes português, do que zaram os Montaigne. Estas informações,
para o Lopez castelhano. Estamos, contudo, certamente úteis, ou até indispensáveis, não
absolutamente certos da sua inserção nesta permitem esclarecer um dado fundamental:
comunidade, especializada no comércio de qual a relação existente entre os Louppes e a
importação-exportação a longa distância, comunidade judia ? Mantinham-se fiéis às
ramo no qual também trabalhava Pierre suas tradições sociais e religiosas , ou
Eyquem. As relações entre os Louppes e os possuíam já o estatuto de cristãos-novos
Eyquem parece terem sido suficientemente (que não devemos confundir com os
apertadas não para permitir o casamento, marranos)?
mas também para, estando previsto que E se o conflito entre a mãe e o filho
Michel Eyquem, o futuro Michel de decorresse precisamente do desfasamento
Montaigne seguisse a carreira jurídica, fosse registado no plano religioso, tendo Michel
enviado para Toulouse onde esteve Eyquem sido educado no quadro do
instalado junto da sua família judia materna. catolicismo, que tanto mobilizara a animo-
Os comentadores manifestam alguma sidade da Europa contra os judeus? Deve
surpresa perante o silêncio observado por fazer-se a pergunta , na medida em que, há já
Montaigne no que se refere às condições e séculos, a comunidade culta francesa decidiu
aos acidentes provocados pela sua dissimular, ou calar, a origem judaica de
instalação em Toulouse, havendo ensaístas Michel de Montaigne. Ora a verdade é que
que não hesitam – é o caso de Jean Laccuture não só Michel Eyquem descende de uma
– em a minimizar, talvez por excesso de mãe judia, mas manteve relações íntimas e
temperamento gascão. Ora não é necessário contínuas com o segmento familiar então
recorrer a Sherlock Holmes ou a Hercule instalado em Toulouse. Quantos Louppes
Poirot para nos darmos conta de que a estavam, então, radicados em Toulouse ?

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Que relações se estabeleceram entre o jovem Não podemos deixar de salientar a


aluno de direito e uma família formada maneira como a historiografia francesa,
também por comerciantes ? aceitando o silêncio imposto pelo próprio
Deve acrescentar-se que o conflito com Michel de Montaigne, aceita não só reduzir,
a mãe durará, pelo menos, até à morte do pai: mas sobretudo anular a existência desta
faltam-nos informações respeitantes ao Antoinette Louppes, que remete sempre para
destino desta mãe rejeitada após a sua a parte judia da herança genética e cultural
viuvez, mas tal não nos impede de conhecer de Montaigne. Não estaremos antes perante
a relação triangular estabelecida no seio da uma clara manifestação do clássico anti-
família Eyquem. Com efeito, Pierre Eyquem semitismo francês, eventualmente reforçado
redigiu a 4 de Fevereiro de 1561 o seu pelo eco das operações peninsulares ? E não
primeiro testamento, declarando Michel de encontramos aqui a determinação a que
Montaigne herdeiro e chefe de família , mas recorre o descendente de uma mãe judia para
declarando a mãe – quer dizer sua mulher - eliminar a mácula que torna menos reluzentes
senhora e usufrutuária de todos os bens. as suas armas ? Se o burguês Eyquem pode
Este testamento confirma a boa relação atravessar os umbrais dos Essais, já a mãe é
existente entre os cônjuges, o que deve ter travada no limiar da porta para impedir que
desagradado muito a Michel já de seja posta em dúvida a pureza do sangue
Montaigne. cada vez mais nobre dos de Montaigne.
Este primeiro testamento deve ter sido É certo que Les Essais não são uma auto-
um choque para o já membro da nobreza biografia, e jamais pretenderam ser assim
bordaleza, e esta nova situação, patrimonial classificados. Se a experiência de Michel de
não deve ter contribuído nada para amaciar Montaigne fornece a trama da escrita, o leitor,
as relações entre a mãe e o filho, o qual deve qualquer de nós, é convidado a proceder não
ter organizado uma campanha destinada a apenas ao inventário do dito, ou mesmo do
levar o pai a modificar as suas disposições bem dito, mas sobretudo ao levantamento
testamentárias. Com evidente êxito, pois do que não é dito, ou do que é decididamente
Pierre Eyquem redigiu, a 22 de Fevereiro de rejeitado. Há a distinguir o que pode
1567, um segundo testamento no qual são pertencer ao espaço do esquecimento, e
anuladas as disposições anteriores e aquilo que só pode ser classificado como
fazendo de Michel de Montaigne, o único rejeição, dependente de um projecto e
herdeiro dos seus bens. Não conseguimos visando um determinado objectivo. Michel
encontrar documentos capazes de nos dizer de Montaigne não pode ignorar a existência
quais as condições sociais e financeiras em de sua mãe e de sua família materna. É por
que ficou viúva, que continuava certamente isso, de maneira decidida, que resolve não
a ser protegida pelo seu grupo e pela sua se referir nem a uma, nem aos outros. O que
família. A mãe judia é assim expulsa do mundo deixa latente outra pergunta: e se houvesse
cristão e francês, vítima da mácula racial e já, no quadro da família Eyquem, um debate
religiosa de que era portadora, e que não provocado por esta presença judia, que fazia
podia deixar de comprometer o próprio dos Eyquem, como depois dos Montaigne,
estatuto de Michel de Montaigne. os portadores de 50% de bom sangue judeu?

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Também é certo que a história cultural


francesa adoptou, face a esta situação, o
ponto de vista de Michel de Montaigne,
acabando por considerar natural que um
filho, que escreve sobretudo a partir da sua
experiência pessoal, cale toda e qualquer
referência a sua mãe. Seria certamente
abusivo acusar a globalidade da crítica
francesa de ser anti-semita. Mas já nos
parece possível salientar a sua complacência
perante esta dissimulação da origem judaica
de Michel de Montaigne, o que implica
também que se cale a sua origem peninsular
e eventualmente portuguesa.

Referências Bibliográficas
Montaigne, Essais, Paris, Bibliothèque de la Plêiade,
Gallimard, 1940 (1595).
—-————, Essais, Paris, Le livre de Poche
(Pochothèque), 2001.
Baraz, Michael, L’être et la connaissance selon
Montaigne, Paris, Corti, 1969.
Jeanson, François, Montaigne par lui-même, Paris,
Editions du Seuil, 1994.
Lacouture, Jean, Montaigne à cheval, Paris,
Editions du Seuil, 1998.
Starobinski, Jean, Montaigne en mouvement, Paris,
Gallimard, 1993.
Trinquet, Roger, La jeunesse de Montaigne, Paris,
Nizet, 1972.
Zweig, Stefan, Montaigne , Paris, P.U.F., 1982.

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