Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Hesitei no título a dar a esta curta reflexão, lhante situação quer dizer que superámos,
que anuncia outra mais vasta, destinada a enfim, a ditadura da história quantitativa –
pôr em evidência a maneira como uma figura que esterilizou tantos bons historiadores dos
mítica da cultura francesa foi obrigada a Annales – assim como a obrigação de
desembaraçar-se da sua origem e educação identificar e definir as “estruturas”. Um
judias, para estar em condições de ocupar, grafito encontrado numa das paredes de
no panteão francês o lugar que lhe cabe: não Sorbona, em Maio de 1968, proclamava de
só como moralista, mas também, -quando não maneira taxativa: “as estruturas não
sobretudo – como autor capaz de reconhecer manifestam na rua !”. Estamos, de certa
e de inventariar as novas formas adquiridas maneira, perante uma mini-polémica interna
pela diferença. Optei por pôr em evidência, ao próprio tecido da história, opondo a longa
no título, a condição antropológica da mãe duração – que Fernando Brudel encontrara
de Michel de Montaigne, inserida na nas ferramentas maltratadas na historiografia
comunidade sefardita de Bordéus, formada alemã -, e a curta duração, ou aquela duração
em grandíssima parte por judeus obrigados que corresponde à vida normal de um
a abandonar a Península Ibérica. É esta homem. Cabe agora à biografia, assim como
“mácula” que nitidamente incomoda, há à auto-biografia, estabelecer o laço unindo
séculos, os intelectuais franceses e que os as duas formas de duração e de memória, o
leva a “ignorar” as condições de origem do que talvez implique um regresso a Bergson,
pensador. Daí a razão do sub-título, sem rejeitar B. Groethuysen ou Em. Levinas,
destinado a integrar tais comportamentos no podendo nós alargar o nosso campo teórico
quadro do anti-semitismo francês, na sua para incluir a psiquiatria da reflexão de E.
variante gascã. Minkowski.
Por outro lado os Essais obrigam a É por essa razão algo surpreendente
repensar a relação existente entre a longa verificar que, na quase totalidade das
duração que, pelo menos a partir de 1956 se biografias de Michel de Montaigne (1533-
tornou um instrumento obrigatório do 1592), se aceitam falsos-autênticos mistérios,
historiador, e a curta duração, limitada à agravados no caso das relações com a mãe,
longevidade média do próprio historiador, à qual de resto o pensador não faz nos seus
servindo aqui de norma aplicável aos Essais (1580) a menor referência. É certo que
homens. Estamos por isso a assistir, nos dias os Essais não são uma auto-biografia ,
de hoje, a uma modificação substancial do embora a sua reflexão esteja baseada na
campo histórico como revela a multiplicação experiência de Montaigne. Esta ocultação,
das biografias e das autobiografias: seme- que responde a um projecto certamente
133
Comentários, Reflexões e Breves
134
Comentários, Reflexões e Breves
integrá-lo uma crítica francesa nitidamente exclusão da mãe foi alargada, ou precedida
intimidada pela grandeza do moralista. pela exclusão da família materna: são os
É neste quadro que devemos instalar a Louppes, com a sua fidelidade ao judaísmo
figura da mãe, Antoinette Louppes – que traumatizam Michel Eyquem. Por essa
patromínio do qual muitos pretendem ver razão serão eles repelidos, não lhes
uma corruptela do Lopes português – que consentindo o menor espaço nos Essais.
pertencia à comunidade sefardita de Bordéus Quais seriam então as relações existentes
que fora amplamente reforçada pelos judeus entre os Louppes e a comunidade sefardita
peninsulares obrigados, entre 1492 e 1496, a de Bordéus? A expulsão dos judeus da
abandonar a Península Ibérica, marcados Penín-sula Ibérica fizera-se entre 1492 e 1496:
pelo peso de duas expulsões, a primeira quando Michel Eyquem nasce, terceiro filho
ordenada pelos reis católicos, cabendo a de seus pais, a 28 de Fevereiro de 1533, havia
segunda ao rei Dom Manuel I. É por essa apenas 41 anos que estes sefarditas tinham
razão que se hesita em lhe atribuir a começado a abandonar a Península Ibérica,
nacionalidade portuguesa, pois podia muito o que permite afirmar que Antoinette
bem pertencer à sociedade judia de Toledo. Louppes nascerá já em França e prova-
Todavia a grafia Louppes remete mais velmente nesta Gasconha onde se enrai-
certamente para o Lopes português, do que zaram os Montaigne. Estas informações,
para o Lopez castelhano. Estamos, contudo, certamente úteis, ou até indispensáveis, não
absolutamente certos da sua inserção nesta permitem esclarecer um dado fundamental:
comunidade, especializada no comércio de qual a relação existente entre os Louppes e a
importação-exportação a longa distância, comunidade judia ? Mantinham-se fiéis às
ramo no qual também trabalhava Pierre suas tradições sociais e religiosas , ou
Eyquem. As relações entre os Louppes e os possuíam já o estatuto de cristãos-novos
Eyquem parece terem sido suficientemente (que não devemos confundir com os
apertadas não para permitir o casamento, marranos)?
mas também para, estando previsto que E se o conflito entre a mãe e o filho
Michel Eyquem, o futuro Michel de decorresse precisamente do desfasamento
Montaigne seguisse a carreira jurídica, fosse registado no plano religioso, tendo Michel
enviado para Toulouse onde esteve Eyquem sido educado no quadro do
instalado junto da sua família judia materna. catolicismo, que tanto mobilizara a animo-
Os comentadores manifestam alguma sidade da Europa contra os judeus? Deve
surpresa perante o silêncio observado por fazer-se a pergunta , na medida em que, há já
Montaigne no que se refere às condições e séculos, a comunidade culta francesa decidiu
aos acidentes provocados pela sua dissimular, ou calar, a origem judaica de
instalação em Toulouse, havendo ensaístas Michel de Montaigne. Ora a verdade é que
que não hesitam – é o caso de Jean Laccuture não só Michel Eyquem descende de uma
– em a minimizar, talvez por excesso de mãe judia, mas manteve relações íntimas e
temperamento gascão. Ora não é necessário contínuas com o segmento familiar então
recorrer a Sherlock Holmes ou a Hercule instalado em Toulouse. Quantos Louppes
Poirot para nos darmos conta de que a estavam, então, radicados em Toulouse ?
135
Comentários, Reflexões e Breves
136
Comentários, Reflexões e Breves
Referências Bibliográficas
Montaigne, Essais, Paris, Bibliothèque de la Plêiade,
Gallimard, 1940 (1595).
—-————, Essais, Paris, Le livre de Poche
(Pochothèque), 2001.
Baraz, Michael, L’être et la connaissance selon
Montaigne, Paris, Corti, 1969.
Jeanson, François, Montaigne par lui-même, Paris,
Editions du Seuil, 1994.
Lacouture, Jean, Montaigne à cheval, Paris,
Editions du Seuil, 1998.
Starobinski, Jean, Montaigne en mouvement, Paris,
Gallimard, 1993.
Trinquet, Roger, La jeunesse de Montaigne, Paris,
Nizet, 1972.
Zweig, Stefan, Montaigne , Paris, P.U.F., 1982.
137