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Arrabalde: Parte V_O reencontro 16/05/2022 08:42
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Árvores assim não são raras nesse lugar. É possível encontrá-las a poucos
passos de distância, com seus troncos que seis ou sete homens de mãos
dadas não conseguem enlaçar. Joanísio Mesquita, o antropólogo, fica de
cócoras, espana as folhas e apanha uma lasca no meio da serrapilheira.
“Cerâmica indígena”, diz. Todos param de olhar para cima e passam a
vasculhar o chão. Fragmentos de artefatos humanos se espalham por
toda a área. Estão cobertos por folhas ou ocultos sob a terra – uma terra
mais escura que as outras, coalhada de pequenos sedimentos, granular
ao toque. “Solo estruturado, terra feita por índio.”
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Primeiro ela vai contar sobre a avó dela, que é a mãe da mãe dela; agora
vai começar, anuncia a filha, que se chama Vaneusa Tirtiri Kaxuyana de
Sousa e tem 20 anos. Ela se vira para a mãe e fica em silêncio.
Ela fala por uns minutos e se cala. A filha traduz: Ela disse que no começo,
como os brancos viviam atrás dos indígenas e dos negros, eles se
afugentaram lá na mata, lá no rio. Lá, nesse lugar aqui.
A mãe retoma a história, Vaneusa traduz: Ela disse que esses grupos
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Uma das crianças com quem a avó de Ester havia crescido era um primo
querido. Tendo perdido pai e mãe, coube a ele, filho mais velho, cuidar de
si, do irmão e também da tia. Adolescente ainda, já não tinha ninguém, e a
tia era incapaz de prover o sustento deles. Vaneusa traduz: Ela diz que
como ele tinha que ser o chefe, o primeiro que fez foi tentar fazer a roça.
Nós temos que nos virar, foi o que ele disse. Porque já não tinha o pai pra
ajudar e teve que tentar sozinho. Foi quando ele derrubou uma árvore e
essa árvore caiu em cima da cabeça dele, a árvore caiu, e ele foi junto e
quebrou o pescoço.
grito agudo se espalha pela sala. Sentada num balde de boca para o chão,
as costas apoiadas na parede, Ester golpeia o peito com os punhos
fechados. Impassível, a filha ouve e reconta: Ela diz que ele ficou vivo
debaixo do pau, mas a árvore era pesada e eles não conseguiram tirar de
cima dele, porque o irmão era pequeno, a tia era fraca e os outros não
quiseram ajudar, entendeu? A tia e o irmão ficaram do lado dele, tentaram
puxar o pau, mas não conseguiram. Não tem mais jeito, eles falaram, esse
pau é muito grosso, e então enterraram. Jogaram terra e enterraram ali
mesmo. Com árvore e tudo?, alguém pergunta. Com árvore e tudo,
Vaneusa responde, e continua: Ela disse que a avó dela, quando ficou
sabendo desse acidente, subiu o rio e voltou lá, mas já tinham enterrado,
não tinha mais jeito.
A avó tomou o rio na direção contrária e voltou para sua aldeia trazendo
consigo o primo sobrevivente. Com o tempo ela teria um filho com o novo
marido. Esse homem partia para longas caçadas e pescarias, e os
parentes iam coletar remédios e alimentos na floresta, manipulando a
mata e manejando seus recursos. Volta e meia davam com negros fugidos
de seringais.
A filha conta o que ouve da mãe: Ela disse que foi nesse tempo que a avó
teve o primeiro encontro com um negro, primeiro encontro nesse lugar, o
indígena e o negro. Apareceu por lá um negro com uma bebezinha, vinha
fugido dos brancos e a esposa dele tinha morrido. Eram só eles, esse
negro e a bebê. Como a avó também tinha um filhinho, eles dois foram
acolhidos, e todos viviam bem.
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nada, e como eles tinham relações sexuais ele não desconfiou quando
deu com a mulher grávida um dia que voltou dessas viagens. Só que a
criança nasceu negra, muito, muito escura mesmo. Pra esconder, ela
pegava uma cuia d’água e passava pasta de tapioca na cabeça do bebê
pra não ficar… Era o cabelo, né? E ela bonita, branquinha, de cabelo bem
liso…
Vaneusa traduz: Ela disse que ele entregou o jabuti pra avó dela, mãe da
mãe dela, pedindo assim: Faz essa comida pras crianças – que eram o
filho dele e o filho desse negro – que eu vou pro mato por causa do remo.
Quando ele voltou, parece que o almoço ainda não tinha ficado pronto, e
aí ele não gostou. Ele sabia que a mulher dele continuava de caso com o
negro, porque ele era pessoa sábia, mas nesse dia ele ficou com raiva e
disse: Você tava bem namorando, então você não teve tempo de fazer o
almoço por esse motivo. Um monte de coisas ele falou. Nesse tempo
quem mandava era o homem, então ela fez o almoço fingindo que ia tudo
bem. O marido almoçou e voltou pro mato. Acontece que o namorado
dela, o negro, ficou ouvindo atrás da bananeira, e aí foi ele que ficou com
raiva.
Ester retoma, Vaneusa acompanha: Ela disse que ninguém sabe o que
aconteceu, se teve violência, se não teve. Quando acharam o marido, ele
tava morto, e ninguém sabe se foi o negro ou se foi acidente. Aí, como ele
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já tinha falecido, os dois ficaram juntos. Vivendo juntos, entendeu? Ele era
o único negro entre os parentes. Porque ele casou com a avó, então teve
que morar lá. Os dois viviam de comércio, vendiam castanha em troca de
terçado, essas coisas, né?
Algum tempo depois, a avó engravidou novamente. A filha conta: Ela disse
que naquela época os indígenas faziam rituais e ele, Tiago, decidiu olhar.
É proibido. Os parentes falavam: Não vai. Mas ele desobedeceu, e o que
aconteceu depois ninguém sabe. Ele passou a agredir a esposa grávida e
a errar muito. Os parentes vieram, parentes dele, viram que ele tava
enfeitiçado e levaram ele embora, e foram até um lugar onde não tinha
ninguém. Parece que mataram. Minha mãe disse que não sabe o que
aconteceu, na época foi só isso que falaram pra avó dela: Ele tá morto.
A avó de Ester não sobreviveu ao parto; a bebê, sim. Essa menina de pele
negra viria a ser a mãe de Ester, avó de Vaneusa.
A criança ficou com o irmão, Mirtão Vieira, que já era um menino crescido.
Ao saber da morte do filho, a mãe de Tiago Vieira, matriarca negra que até
então não convivia com os indígenas, foi até o Rio Kaxuru, viu a criancinha
e perguntou ao neto Mirtão: Quem é? É minha irmã, eu tô cuidando. Não
tá mais, ela disse, e ficou no Kaxuru pra cuidar da menina.
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Ela disse que veio a primeira menstruação da mãe dela. Aí, como a mãe
era prima com o próprio pai de criação, os parentes falaram pra esse pai:
Vocês têm que casar. Você criou ela, agora casa e forma outras famílias.
Ele não queria, tinha criado ela, considerava uma irmã, e ela era negra.
Casar era diferente de criar, ele falava que não ia conseguir pentear o
cabelo dela. Então tinha preconceito também, né? Mas casou, ela tinha 12
anos, e os dois tiveram um bebezinho que morreu logo porque eles não
sabiam cortar o cordão umbilical. O pai dela, o meu avô, então foi pro
mato junto com outros anciãos porque ia virar pajé, e ficou lá quase um
ano porque pra se tornar sábio precisa muito tempo, e quando ele voltou,
a minha avó, minha avó negra, mãe dela, tava grávida. O pai chamava
Okoyi e era filho de criação do meu avô. Mas Okoyi cresceu e se
apaixonou pela madrasta dele, e eles tiveram um filho, que foi o primeiro
irmão da minha mãe, o meu tio João Batista. O meu avô viu aquilo e sabia
que o filho não era dele. A princípio ele voltou pro mato deixando claro
que minha avó tinha que se virar. Eu não vou ficar perto de mulher que
tem filho que não é meu, foi o que ele disse, mas lá no mato ele sentiu
falta dela e decidiu retornar. Vamos voltar a ter relação entre marido e
mulher, mas não aqui. E aí mudaram de aldeia.
Vaneusa prossegue: Ela disse que lá ele se apaixonou por uma outra
mulher e decidiu que ia viver com as duas. A minha avó, minha avó negra,
mãe da minha mãe Ester, não podia falar nada porque tinha um filho no
colo que não era dele, né? Então eles passaram a dormir todos juntos.
Quando o meu tio João Batista tinha 5 anos, nasceu minha mãe.
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Era o assunto das missões. Ele falava sobre a Bíblia, essas histórias, né?
Ela disse: Ele ensinava essas coisas todas, e os indígenas não sabiam de
nada, eles acreditavam nos deuses deles. Não queriam saber, mas ele
insistia: Vocês têm que saber mais sobre Deus, vocês não podem mais
ser assim. Ele foi querendo mudar, entendeu? Falava assim: Vocês não
podem mais acreditar nessas coisas que vocês fazem. Então o pai dela
resolveu acompanhar esse padre e foram todos parar na Missão Tiriyó, na
Serra do Tumucumaque, fronteira com o Suriname.
Ela disse que em Tiriyó tinha um grupo de indígenas muito bravos que os
padres vinham tentando catequizar, e é nessa hora que chega o grupo da
minha mãe. A convivência era difícil. O pai dela não pensava em ficar lá,
mas os padres insistiam: Vocês têm que mudar e por isso precisam ficar
aqui.
sua infância.
Eram terras do povo Tiriyó, diz a filha, e os tiriyós eram bravos, então eles
não eram felizes lá, não se sentiam bem. Ela disse que o pai dela sempre
pedia: Quando eu falecer, quero que você volte pra nossa terra porque
aqui a gente não é feliz. Acontece que ele já não podia voltar, ele tinha que
morar na terra da mulher tiriyó, então a minha avó e a minha mãe foram
junto com ele. Ela disse que não tem boas lembranças de lá.
Ester viveu na missão até os 33 anos, quando seu pai morreu por mordida
de cobra. Já tinha quatro filhas, a mais nova com 3 anos. Apesar de
jovem, sentia-se doente e não queria morrer ali. Era uma kaxuyana, e os
tiriyós não a consideravam bem-vinda – na missão, o afluxo de gente do
seu povo era percebido como invasão de território.
Ela disse que pensou assim: Eu vou voltar. O meu pai me disse que eu
tinha que retornar pras minhas terras, que as aldeias ainda existiam. Ela
pensou: Eu prefiro morrer lá onde eu nasci, eu quero morrer do mesmo
jeito que os meus antepassados, eu tenho saudade das minhas terras.
Vaneusa prossegue: E então ela decidiu retornar, só que não sabia como.
Porque lá na missão eles não têm essas coisas de barco. Não tem nada lá,
é isolado, parece que você é um preso, entendeu? Quando ela disse que
ia voltar, teve dois kaxuyanas, Frederico e Madalena, um senhor e uma
senhora, que falaram assim pra ela: Leva a gente contigo. E a minha mãe
disse: Mas como? Eu não tenho dinheiro, não sei como fazer pra sair
daqui. E o Frederico falou que ia conseguir algum dinheiro.
Foi sim, foi dela, não tinha mais nenhum índio kaxuyana aqui, explica a
filha, referindo-se ao lugar onde está e onde nasceu, a Terra Quilombola
Cachoeira Porteira, município de Oriximiná, nas margens do Rio
Trombetas, a floresta onde Ester viveu até os 12 anos.
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Na missão ela foi ficando católica, explica a filha, mas depois que voltou
viu que tinha outras religiões e ficou perturbada. Ela perguntava: Mas
quantas religiões que tem? Porque lá na missão era só padre, então minha
mãe ficou em dúvida. Mas hoje ela é indígena e acredita em tudo o que
vê. Ela acredita em tudo.
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Eles viram que existia aquela chance de retornar pros lugares de origem.
Minha mãe tinha conseguido, eles também podiam voltar, e aí decidiram
que não queriam mais ficar naquele lugar estranho, que era terra de
Tiriyó, né? Então os kaxuyanas começaram a retornar: Ah, é aqui que o
meu avô morava, preciso retornar pra esse lugar. Ah, é aqui que eu nasci,
preciso retornar pra esse lugar. E, pensando na minha mãe, eles
apontavam para a minha avó negra, que ainda estava no Tiriyó. Falavam: A
filha e a neta dela já conseguiram voltar, vamos agora nós também, e
assim eles retornaram às origens onde nasceram.
Ester ainda voltou duas vezes à missão. Tinha saudade das filhas que
deixara lá e tentou recompor a vida com o marido, mas não se acostumou
mais: Porque ela se sentia triste, entendeu? Não eram os rios da infância,
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não era a floresta, não eram os parentes dela. Então ela se sentiu acolhida
de novo onde ela nasceu, perto dos familiares e do tio dela, né? Aí trouxe
de volta as outras filhas, as minhas irmãs, mas a mãe dela, a minha avó, a
avó negra, ela não quis voltar.
Vaneusa vai até uma pilha de papéis e traz uma fotografia. Duas mulheres
sentadas num banco de madeira, uma indígena e uma negra, Ester e a
mãe. Ester, de cabelos escorridos, escuros, veste uma blusa branca e
olha para a lente com um sorriso meio triste e sem jeito; a mãe, de
cabelos muito brancos, olha para fora do quadro com uma expressão
serena e firme. Uma está em casa, a outra não. A fotografia foi tirada na
Missão Tiriyó.
Ela não pretende mais sair daqui, entendeu? Ela pretende morrer aqui,
ficar pra sempre.
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O relato acima foi escrito por Frikel, que àquela altura, 1970, já
abrasileirara o prenome e assinava Protásio. Desde 1957 estava ligado ao
Museu Goeldi, instituição pela qual começaria a publicar importantes
estudos etnográficos. Segundo a nota biográfica escrita pelo colega do
museu, Frikel se deu conta da impossibilidade de conciliar as obrigações
de missionário com a atividade científica. Durante trinta anos foi religioso
e pesquisador, mas por fim escolheu a antropologia e abandonou a ordem
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isto é, índio. Outra era a de se agregar a um dos grupos dos altos rios.”
Um desses grupos vivia às margens do Rio Paru de Oeste, na Serra do
Tumucumaque. Eram os Tiriyó.
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Qualquer leigo que deite os olhos no lugar dirá que está numa
floresta. Não: é uma lavoura. Sakaguchi resolveu fazer a lista “das
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Quando não está na sua propriedade, pode ser encontrado numa venda
modesta à beira de uma estrada estadual que passa por Tomé-Açu. Numa
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Prometeu aos pais que a aventura duraria apenas alguns anos. Adquirida
a experiência, voltaria para o Japão. “Era mentira”, diz Francisco, o filho.
“Ele embarcou no navio já sabendo que nunca mais voltaria.” Ao zarpar do
Porto de Yokohama, não podia ter noção exata do que encontraria do
outro lado do oceano. Seu conhecimento do mundo tropical era
acadêmico. Nada sabia de florestas equatoriais, com suas águas de
dilúvio, seu sol de maçarico, suas pragas, suas moléstias, sua solidão. Era
o que o aguardava ao final da travessia.
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Noboru Sakaguchi chegou ao Pará nessa época. Seu sonho era plantar
seringais e, assim, cumprir com diligência os objetivos de Estado que o
haviam trazido até a Amazônia. “No quintal da casa em que a gente
cresceu ainda tem os cinco primeiros pés de seringueira que ele plantou”,
conta o filho. Noboru destinou 12 hectares à espécie, mas o negócio não
vingou. O retorno financeiro não justificava o esforço e o investimento.
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Tudo caminhava bem até que, mais uma vez, a floresta mandou suas
tropas, que agora não chegaram voando, mas pelo solo. Provocada por
fungos, a fusariose é uma doença que apodrece a raiz das plantas.
Quando encontra uma monocultura pela frente, alastra-se sem piedade.
Foi o que aconteceu no final da década de 1960 com as pimenteiras de
Tomé-Açu. “Dizimou tudo”, relata Francisco Sakaguchi. “Os japoneses
foram trazidos pra instalar no Norte os mesmos sistemas do Sul. Ou seja,
monocultivos. Só que aqui a coisa era diferente.”
Havia ali o início de alguma coisa, mas não ainda a grande intuição. “A
lógica era puramente econômica”, continua Francisco, “meu pai falava em
otimizar a área, ou seja: plantar aquilo que desse um retorno econômico
mais imediato.” Sem receita corrente não havia como financiar a guerra
contra a fusariose. A diversificação servia para isso.
Noboru previu que as lavouras conviveriam com a mata. Ou, por outra,
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A singeleza, afinal, era simplicidade, que nada tem de banal. Pode ser
apenas outro nome da sabedoria, tanto a que sustenta o espírito como a
que põe comida na mesa. No site da biblioteca do Parlamento japonês se
lê: “Em Tomé-Açu, o lucro obtido por uma propriedade com 25 hectares é
equivalente ao lucro obtido com mais de mil hectares de criação de gado.”
Essa é a parte fácil de ser calculada. Mais difícil é a parte da floresta de
pé, com todas as suas criaturas vivas, pois nela não é o preço que conta,
e sim o valor.
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“Doze toneladas de açaí”, continua Sakaguchi. “Era pra ser mais, mas
roubam muito.” Sua falta de pressa ao pingar os nomes só não é maior do
que a naturalidade com que empilha espécie por sobre espécie por sobre
espécie, num acúmulo que, pela desmesura, se torna cômico. “Tem uns
cem pés de pitaia. Uns quinhentos de mangostão.” Minutos depois:
“Vários outros de rambutão, parecido com a lichia, que meu pai trouxe da
Malásia. Pimenta-do-reino. Castanha. Canela-da-china.” Ao cabo de
outros cinquenta passos: “Puxuri. Guaraná. Cupuaçu. Quinina.
Cardamomo, da família do gengibre.” Numa pinguela sobre um igarapé:
“Camu-camu. Acerola. Sapucaia. Graviola. Limão. Tangerina. Langsat.
Cumaru. Pupunha. Abiu. Durião.” Lembra a cena clássica dos irmãos Marx
na qual a pequena cabine de um navio vai se enchendo de gente –
camareiras, mecânicos, assistentes de mecânico, manicures, faxineiras,
visitas, garçons –, num excesso que desafia as leis da física e provoca
gargalhadas de tão absurdo. Sakaguchi conta que um dia resolveu fazer a
lista “das coisas que tem aqui”. Pegou lápis e caderno e começou a
anotar. “Quando chegou em 86 espécies, cansei.”
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Se tiver fungo, a planta vai morrer, é da vida, vem outra no lugar.” Ele abre
os braços: “Isso aqui me serve pro resto da vida. Aqui eu não preciso
fazer nada.”
Nos próximos anos terá de decidir que destino dar ao que ele e o pai
construíram. Sakaguchi tem três filhas. A mais velha é bacharel em direito,
a do meio tem mestrado em geografia e a mais nova, aquela que o ajuda
na venda, está estudando administração. Não acredita que elas queiram
permanecer no campo. “Então, vai chegar a hora em que vou ter que
pensar numa maneira de eternizar isso aqui.” Como? “Na verdade, eu nem
sei por onde começar.” Mas pode já ter a solução: se, como é justo, as
filhas escolhem o próprio rumo e não pensam em levar adiante o legado
dos avós e dos pais, então a obra deve pertencer à comunidade, “onde a
gente vive e sempre gostou de viver”. Se a ideia se concretizar,
futuramente a propriedade será uma benfeitoria para todos.
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