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Apavorante

Rosana Pinheiro-Machado, no The Intercept Brasil

É estarrecedor constatar que as eleições municipais não estão no centro


do debate e da mobilização da esquerda atualmente. É mais frustrante ainda
pensar essa postura é um mero reflexo de um processo que vem ocorrendo há
muitos anos: o afastamento das lideranças políticas partidárias das camadas
populares, esquecendo o trabalho de base, enquanto a extrema-direita ocupa
esse vazio sem concorrentes.

Recentemente, a deputada Áurea Carolina fez um apelo importante para


direcionarmos nossa atenção às eleições municipais. O pleito de 2020 está se
aproximando, e a extrema-direita tentará eleger um exército de vereadores e
prefeitos no Brasil todo. Se os extremistas conseguirem o que planejam,
haverá a capilarização do bolsonarismo. Uma vez entranhados na micropolítica
local, teremos anos e até décadas de avanço conservador e autoritário. Pode
ser a pá de cal sobre nossas esperanças.

Não se trata de alarmismo. O fenômeno está se armando, uma vez


mais, debaixo de nossos olhos. Mirando as eleições municipais, a campanha
de filiação do PSL realizada em agosto conseguiu associar 188 mil pessoas em
apenas um mês. As lideranças do partido deixam claro que o objetivo é atingir
1 milhão de filiados rapidamente, tornando-se um dos maiores partidos do
Brasil junto com MDB, PT e PSDB. A campanha foca em dois objetivos: filiar
pessoas no Nordeste e sair com candidaturas próprias em todas cidades com
mais de 100 mil habitantes.
O MBL não fica para trás. Inicialmente, eles se valeram de uma estética
moderna para falar de liberalismo e corrupção para a juventude. Mas suas
lideranças não demoraram a abraçar o capeta. Apoiaram as pautas de
conservadorismo moral e o próprio Bolsonaro. Assim elegeram quatro
deputados federais e dois senadores na última eleição. Agora,
oportunisticamente, tentam se reposicionar, distanciando-se do radicalismo
bolsonarista. Aproximando-se no partido Novo, disputando grêmios estudantis
e formando novas lideranças, almejam eleger centenas de vereadores.

Uma válvula de escape de parte da oposição neste momento tem sido


se entreter com os barracos promovidos pelas lideranças do PSL, caindo no
auto-engano de que a crise interna seria o germe da autodestruição do partido.
O bolsonarismo, então, seria naturalmente enfraquecido enquanto a
incompetência desse governo é escancarada. Como criticou recentemente o
antropólogo Orlando Calheiros, há também a crença de que bastaria trocar de
presidente nas eleições nacionais e viraríamos a página.

Penso que essa fé na autodestruição do bolsonarismo é arriscada de


diversas maneiras. Em primeiro lugar, estamos falando de uma força política
que nasceu da crise e que governa sobre o caos, mantendo-se no centro das
notícias. Como já escrevi aqui, a lógica que elegeu Bolsonaro é a da emoção,
do entretenimento e do show business. Seguindo a máxima do marqueteiro de
Trump Roger Stone de que é melhor ser infame que não famoso, é ótimo que
essas brigas se mantenham no centro do debate público, transferindo
seguidores, afetos e desafetos de uma pessoa para outra.

Em segundo lugar, o bolsonarismo é maior que o PSL. A legenda, hoje


em racha público, pode ser mera transição de consolidação da ordem
conservadora. Como recentemente salientou a antropóloga Isabela Kalil, com
base em evidências de pesquisa, é possível que, a médio e curto prazo, forme-
se um novo partido a partir do núcleo conservador bolsonarista. O que importa
aqui é que a extrema-direita ainda avança e procura formas de consolidar sua
identidade.

Em terceiro lugar – e este é o ponto mais preocupante de todos – o


bolsonarismo é maior do que Bolsonaro, como venho defendendo. Essa é uma
tese compartilhada por muitas intelectuais que estão na ponta do sistema,
como as já citadas Isabela Kalil e Áurea Carolina.

Não cabe aqui explorar as antigas raízes do autoritarismo e


conservadorismo do Brasil. Tampouco afirmaria que o conservadorismo pode
definir o Brasil e as classes populares. Entre um e outro, existe um mundo de
complexidade de pessoas que se aliam a diferentes pautas em diversos
momentos da vida. Cabe apenas lembrar que é na comunidade e no olho no
olho que se pode disputar a escolha política de muitas pessoas que não podem
ser definidas por uma única identidade: de evangélica, conservadora,
punitivista ou empreendedora neoliberal.

É um erro de diagnóstico da esquerda acreditar que tudo na eleição de


2018 se passou no WhatsApp, ainda que reconheçamos que as fake news
tiveram um papel decisivo. Como muitos pesquisadores do ambiente digital
vêm avisando há muitos anos (como Daniel Miller e Juliano Spyer, por
exemplo), existe uma relação de mútuo abastecimento entre o mundo online e
offline. É no segundo, ou seja, nas relações de condomínio, igreja, vizinhança e
trabalho que as notícias são comentadas ou contestadas.

Bolsonarismo incluiu quem estava fora da política. Durante dez anos


pesquisei política e consumo em uma comunidade periférica de Porto Alegre
com minha colega Lúcia Scalco, que segue trabalhando na região. Nesse
tempo, vimos o PT retrair, e Bolsonaro avançar. É claro que a prisão de Lula é
uma variável que poderia ter mudado o resultado eleitoral. Mas o fato é que
Bolsonaro surfou sozinho em um espaço comunitário.

Observando os últimos dias da campanha – as pessoas falando do


candidato no boteco, no muro da casa da vizinha ou na nova pizzaria do
bairro–, vimos uma onda emocional de contágio crescer e se transformar em
um tsunami. O bolsonarismo chegava via internet, igreja e escola. Por mais
triste que isso soe, essa foi a forma como muitos se sentiram incluídos na
política.

Disputar a comunidade contra um suposto “globalismo” é um princípio


fundante do pensamento da extrema-direita global há pelo menos cem anos.
Aquilo que eles chamam de “meta política” é a luta por valores morais que
giram em torno da educação, da fé e da família. Eles sabem que isso tem que
ser feito via micro-política.

Existem dois exemplos práticos de como essa lógica se remodela no


Brasil. O primeiro é o que Kalil e seu time de pesquisadores constataram sobre
a quantidade enorme de municípios brasileiros que aprovam a lei da Escola
Sem Partido e a proibição do ensino de “ideologia de gênero” nas escolas.
Muito do que se passa na política local nessa área nem sequer pode ser
mensurado, pois é um fenômeno que avança silenciosamente.

O segundo exemplo são os conselhos tutelares. Eles são uma forma de


comunicação direta com as famílias e as comunidades. A esquerda se saiu
melhor nessas últimas eleições. Mas isso só ocorreu porque tomou o susto de
algo que era simplesmente “dado”, conseguindo reagir a tempo.
A lição dos conselhos tutelares ao campo da esquerda é muito clara: é
preciso lembrar que a política não é circunscrita a Brasília ou ao Twitter. Somos
corpos localizados em muitas comunidades, e é nessas comunidades onde o
diálogo tem de acontecer. A melhor das lições é a de que, quando mobilizados,
temos muitas chances de vencer.

Outra reação importante atualmente tem vindo das universidades que


mobilizam seus membros e resistem ao Future-se e aos interventores.
Também existem milhares de coletivos de periferias, de mulheres, de mães, de
pessoas negras e transgêneras tentando segurar as pontas em suas
comunidades. Talvez falte à esquerda partidária se conectar com esses
espaços e ceder espaço a novas lideranças, deixando que elas assumam
protagonismo.

O bolsonarismo não é um desvio de rota da nossa história, que podemos


colocar para debaixo do tapete enquanto esperamos sentados as próximas
eleições presidenciais. Está na hora de a esquerda deixar um pouco de lado a
preocupação com seus pequenos desafetos, lamber as feridas das eleições e,
como diria o mestre Paulo Freire, sair do revanchismo vingativo que nos leva a
ser reativos. Não precisamos ser consumidos pelo sentimento de impotência
de agir grande, quando o necessário é atuar no nível microscópico, pois é lá
que a extrema-direita está ganhando adeptos.

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