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MÍDIA E PODER NO CONTEXTO DA


CRISE POLÍTICA E SANITÁRIA:
das eleições de 2018 à pandemia de
covid-19 no Brasil

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SUMÁRIO

PARTE I: ELEIÇÕES DE 2018: EMBATE DE NARRATIVAS NAS REDES E POLARIZAÇÃO POLÍTICA

1 | Bolsonaro e Haddad: o uso do Facebook na disputa do 2º turno das eleições


presidenciais de 2018 (Carla Reis Longhi e Ivanilce Santos Oliveira) .................................. 7

2 | Eleições 2018: uma análise da estratégia narrativa de Fernando Haddad (PT) no


Instagram (Deborah Luísa Vieira dos Santos, Mariane Motta de Campos, Mayra Regina
Coimbra e Marina Alvarenga Botelho) ............................................................................... 37

PARTE II: GOVERNO BOLSONARO: UMA ANÁLISE DA CONSTRUÇÃO IMAGÉTICA DOS


PRIMEIROS ANOS DE MANDATO

3 | Bolsonaro, Twitter e dominação: As narrativas do presidente na rede social em seus


primeiros cinco meses de mandato (José Eduardo Cruz Vieira) ....................................... 52

4 | A utilização de imagens do presidente da República nas postagens da SECOM de fim


de ano (Vinícius Pereira dos Santos) .................................................................................. 79

PARTE III: PANDEMIA DA COVID-19 E OS POSICIONAMENTOS E DISCURSOS DO GOVERNO DE


JAIR BOLSONARO

5 | Uma análise das estratégias argumentativas nos pronunciamentos oficiais de


Bolsonaro na pandemia da Covid-19 (Mayra Regina Coimbra e Willian José de Carvalho)
........................................................................................................................................... 99

6 | Redes e discursos sobre a cloroquina no Twitter (Marina Alvarenga Botelho, Bárbara


Belize Moreira Boechat, Mayra Regina Coimbra e Luiz Ademir de Oliveira) .................... 122

7 | Aproximações e distanciamentos do jornalismo tradicional na cobertura do início da


pandemia de Covid-19 por Eliane Brum (Ana Resende Quadros) .................................. 140

8 | Governo Bolsonaro X Crise da Covid-19: uma análise do enquadramento noticioso


no jornal Folha de São Paulo (Deborah Luísa Vieira dos Santos, Mariane Motta de
Campos, Mayra Regina Coimbra e Marina Alvarenga Botelho) ........................................ 160

PARTE IV: MÍDIA E DIVERSIDADE

9 | A falsa diversidade e inclusão dos negros no telejornalismo brasileiro: uma análise


do Jornal Nacional e do Jornal Hoje .............................................................................. 178

SOBRE OS AUTORES ................................................................................................... 192

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APRESENTAÇÃO
Diante das inquietações trazidas à tona ao campo da comunicação e do jornalismo
durante a pandemia de Covid-19, enfrentada pelo Brasil e pelo mundo desde o final de 2019,
nós, pesquisadoras da área, entendemos a necessidade de se produzir conhecimento para
compreender esse momento.
As pandemias anteriores à imprensa moderna, como a peste bubônica, foram
combatidas em um cenário de isolamento informacional. Em 2020, vivemos uma era de
horizontalidade nas relações comunicacionais, o que torna a comunicação central na tomada
de decisões tanto de governos, quanto da própria população.
Na atual crise de saúde pública mundial, a comunicação é agente transformador: ela
informa, fiscaliza, se posiciona e divulga soluções. Se, por um lado, ter essa comunicação tão
presente ajuda a diminuir os impactos da pandemia, por outro, percebeu-se uma maior
circulação de notícias falsas e desinformação, o que dificulta o controle informacional e coloca
em xeque noções de verdade.
Compreender a atual crise é olhar, também, pelo percurso que nos traz até aqui, desde
as eleições de 2018. Isso porque, no Brasil, o presidente corrobora com um discurso anti-
ciência que traz consciências graves à população. Como figura central do país, Jair Bolsonaro
ocupa um espaço de evidência e, a partir de seu discurso e de suas atitudes tanto públicas,
quanto pessoais, reforça determinados comportamentos sociais que vão em direção oposta a
questões de saúde pública mais incisivas no que diz respeito ao enfrentamento à crise de saúde
pública.
Nas redes, circulam, com propósitos políticos e ideológicos, narrativas que prejudicam
o combate à pandemia do novo coronavírus. Ao contrário do que se esperaria, a população tem
se voltado para a mídia tradicional em busca de credibilidade. Nesse contexto histórico e
extraordinário, é de extrema importância olhar e refletir o campo da comunicação, da imprensa
e do jornalismo, sejam eles fenômenos online ou offline.

Mayra Regina Coimbra


Marina Alvarenga Botelho
Organizadoras

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PARTE I:

ELEIÇÕES DE 2018: EMBATE DE


NARRATIVAS NAS REDES E
POLARIZAÇÃO POLÍTICA

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Bolsonaro e Haddad: o uso do Facebook na disputa do 2º turno
das eleições presidenciais de 2018

CARLA REIS LONGHI


Universidade Paulista (UNIP)
E-mail: carlalonghi@uol.com.br

IVANILCE SANTOS OLIVEIRA


Universidade Paulista (UNIP)
E-mail: ivaoliver@gmail.com

1. Introdução

As últimas eleições presidenciais no Brasil ocorreram num cenário comum do ponto de


vista da disputa ideológica e do vaivém dos partidos, mas atípico no que tange aos
acontecimentos políticos e ao uso majoritário de recursos digitais para a comunicação política.
Do ponto de vista dos acontecimentos políticos, vale destacar que os candidatos à eleição para
presidente do Brasil disputaram o pleito em um ambiente polarizado. A partir das jornadas de
junho de 20131; do impeachment da então presidenta Dilma Rousseff, que teve seu mandato
cassado em 31 de agosto de 2017; das denúncias, prisões e delações premiadas da Operação
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Lava Jato que teve seu ápice com a prisão do ex-presidente Lula (PT), a rivalidade entre
esquerda e direita empregou nos ânimos sentimentos de ódio e tensão. Brugnago e Chaia (2014)
esclarecem que “a tensão que normalmente pertencia às torcidas de futebol em jogos clássicos
acalorados passou para a política. A massa passou a discutir política em seu dia-a-dia,
principalmente pela internet” (p. 102). Nesse período, também, a sociedade se moldou a partir
da organização em redes sociais online e off-line, ou seja, da internet para a rua. No caso do
impeachment da então presidente Dilma, por exemplo, se de um lado a internet via redes sociais
serviu como canal de expressão e mobilização dos manifestantes pró e contra impeachment, as

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Série de manifestações que aconteceram no Brasil, com início em São Paulo, e que tinham como foco inicial
protestar contra o aumento das passagens de ônibus, mas logo se transformaram em críticas à então gestão federal
do PT.
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A Operação Lava Jato é uma série de investigações realizadas pela Polícia Federal do Brasil com o objetivo de
desmontar um esquema de lavagem de dinheiro e propina. Teve início em março de 2014 e até 2020 realizou
centenas de mandados de busca e apreensão, prisões temporárias e preventivas.

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ruas como constituição de redes sociais off-line foram o palco para as manifestações dos anseios
e apelos da sociedade em geral, em alguns casos formando uma simbiose ao transmitir o que
acontecia na rua ao vivo pela internet e deixando claro para os homens da política que existia
ali uma nova forma de comunicação com os eleitores, uma nova forma de comunicação
política, fato que no período de mobilizações foi aproveitado por grupos como o Movimento
Brasil Livre (MBL), apoiadores do movimento #foraDilma, e pela Frente Brasil Popular (FBP),
animadores do grupo #GolpesaiDilmafica. Neste ponto, cabe uma digressão para pontuar que,
de acordo com Casimiro (2018), o MBL configurou-se como uma marca da nova direita
brasileira, pois não possuía uma unidade ideológica, mas se focava na “substituição de uma
postura mais contida e técnica por um discurso bem mais agressivo, com uma forte pauta
moralista” (p.5)

Depois do golpe que afastou a ex-presidenta Dilma Rousseff da presidência, o vice


Michel Temer assumiu o governo, provisoriamente, no dia 12 de maio de 2016 e em caráter
definitivo ele foi empossado em 31 de agosto de 2016, logo após a Câmara dos Deputados
votar o afastamento da então Presidente Dilma Rousseff. Em seus primeiros meses de governo,
Michel Temer esteve envolto em aplacar os ânimos de parte da sociedade que o chamava de
golpista e o acusava de arquitetar, juntamente com a imprensa, com o judiciário e com a elite
econômica do país, para que Dilma e o PT fossem afastados do governo. Também pesavam
sobre ele a crítica por pautar medidas controversas como a Reforma Trabalhista e da
Previdência, o congelamento dos gastos públicos – como saúde e educação –, o afrouxamento
nas leis que controlam o trabalho escravo, entre outras medidas controversas. Ainda, o
vazamento de áudios em delações premiadas dentro da nova fase da Operação Lava Jato que
revelou acordos e estratagemas desenvolvidos nos bastidores da crise política e do processo de
impeachment contra a ex-Presidenta Dilma deram origem a primeira crise “oficial” do Governo
Temer, visto que diversos ministros se viram obrigados a pedir demissão por serem
denunciados por delatores.

Nesse cenário de incertezas políticas pós-impeachment e de descontentamento da


sociedade, já que segundo o Datafolha até aquele momento Temer era o presidente mais
impopular da história política brasileira desde o fim da ditadura, a eleição para presidente de
2018 registrou a candidatura de 13 candidatos, número record comparado a outros pleitos. O
presidenciável que liderava as pesquisas de intenção de votos no começo 2018 era o ex-
presidente Lula (PT). Contudo, condenado na Operação Lava Jato ele foi preso em abril de

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2018 e, com base na Lei da Ficha Limpa[3], em setembro o Tribunal Superior Eleitoral (TSE)
fez com que ele abandonasse a corrida eleitoral e a 1 mês da votação fosse substituído pelo
então candidato a vice-presidente pelo PT, Fernando Haddad.

Com a inscrição dos candidatos citados na tabela 1 e em um cenário eleitoral sem a


presença do ex-presidente Lula, numa pesquisa de setembro de 2018, o Instituto Datafolha
apontava Jair Bolsonaro (PSL) com 20% das intenções de voto, fato que foi mudando ao longo
da campanha eleitoral, visto que este candidato alcançou a maioria dos votos válidos no 1º
turno das eleições.

Tabela 1 – candidatos, partidos e percentual de votos no 1º turno das eleições 2018

Nome Partido Número % de votos

Jair Messias Bolsonaro PSL 17 46,03%

Fernando Haddad PT 13 29,28%

Ciro Gomes PDT 12 12,47%

Geraldo Alckmin PSDB 45 4,76%

João Amoêdo Novo 30 2,50%

“Cabo” Daciolo Patriota 51 1,26%

Henrique Meirelles MDB 15 1,20%

Marina Silva Rede 18 1,00%

Álvaro Dias Podemos 19 0,80%

Guilherme Boulos PSOL 50 0,58%

Vera Lúcia Salgado PSTU 16 0,05%

José Maria Eymael DC 27 0,04%

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João Vicente Goulart PPL 57 0,03%

Fonte: elaborado pelas autoras

Após a votação nas eleições de outubro de 2018, o Tribunal Superior Eleitoral divulgou
a porcentagem de votos por candidato e a necessidade da realização de um 2º turno de votação,
visto que nenhum candidato alcançou 50% de votos válidos. Foram para o 2º turno das eleições
2018 Jair Bolsonaro, com 46,03% dos votos, e Fernando Haddad, com 29,28% dos votos
apurados. Bolsonaro ganhou o 2º turno das eleições com 55,13% dos votos válidos, contra
44,87% de Fernando Haddad, numa batalha de conservadores contra progressistas e que pôs
fim ao modelo implantado pelo PT em seus governos (Lula, 2003 a 2010 e Dilma, 2011 até
agosto de 2016) e que havia conseguido criar políticas públicas efetivas para a população das
classes mais baixas do país. Casara (2020) destaca que a articulação para tal mudança reuniu
uma série de interesses políticos e econômicos.

Contra o projeto do partido dos trabalhadores, deu-se a união inusitada de forças


políticas reacionárias, conservadoras, liberais e neoliberais. Para romper com o
projeto político que, com todas as suas contradições, havia sido vitorioso nas urnas,
uniram-se partidos neoliberais (DEM, PSDB etc.), políticos conservadores,
lideranças religiosas neopentecostais, amplos setores do Sistema de Justiça, empresas
de comunicação de massa, militares, corporações internacionais, ideólogos da
extrema-direita norte-americana e grupos econômicos interessados na redução tanto
das garantias trabalhistas quando dos gastos do governo com políticas sociais (p.32).

Nesse quadro de múltiplos atores, a tecnologia também teve seu papel. Como sinalizado
no início deste estudo, além do panorama político que se desenhou anos antes da eleição de
2018 e que favoreceu o candidato que se apresentava com um outsider antissistema, sobretudo
porque a credibilidade das instituições políticas estava na berlinda - visto que à época pesquisas
do Datafolha apontavam que 68% dos brasileiros não confiavam nos partidos políticos, 67%
no Congresso Nacional e 64% na Presidência da República - o uso majoritário de recursos
digitais para a comunicação política foi uma novidade na cena política eleitoral. Em detrimento
da hegemonia ocupada pela televisão desde a redemocratização nos anos de 1980, ancorada
sobretudo no Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral (HGPE), o candidato vencedor elegeu
as mídias digitais como principal ferramenta para comunicação política, sobretudo as redes

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sociais, levando também seu adversário no pleito a marcar presença nesses canais. Nesse tema,
surgiu a urgência de uma regulação e descortinou-se um universo de possibilidades, esbarrando
inclusive em limites éticos. Viu-se canais no Youtube, Twitter, Instagram, WhatsApp e as
fanpages no Facebook servirem como ferramentas de comunicação para as equipes
estabelecerem as formas de comunicação oficial dos presidenciáveis e também serem usados
pelos seguidores mais fanáticos no debate em favor deste ou daquele político. O uso oficial
que se fez desses meios é o foco deste estudo e será detalhado a partir do próximo tópico.

No contexto atual, no qual muito se discute o uso da internet como principal ferramenta
de comunicação em campanhas políticas, este artigo tem como objetivo analisar o uso dos
meios digitais pelos candidatos a pleitos eleitorais no Brasil. Como recorte, optou-se por
analisar o período de 7 a 28 de outubro de 2018, respectivamente o dia de votação em 1º turno
e, portanto, a largada da campanha para o 2º turno das eleições, e o dia da votação nesse turno.
Considerando o estado da arte relacionado às pesquisas já desenvolvidas no tocante ao uso do
Facebook como ferramenta para a comunicação política em 2018, viu-se como válido
direcionar este estudo adotando como corpus de pesquisa as fotos postadas nas fanpages do
Facebook dos candidatos Jair Bolsonaro (PSL) e Fernando Haddad (PT), tendo o cuidado de
enquadrar como fotos todas as publicações de imagens feitas no período analisado e que na
busca manual dentro das fanpages são encontradas na aba “fotos" do Facebook.

A abordagem metodológica que receberá esse estudo está ancorada em Bardin (1977)
nas etapas definidas pela autora como pré-análise, categorização e inferências. Na fase de pré-
análise se fará uma leitura quantitativa das postagens, a partir do levantamento de quantas
imagens foram postadas nas respectivas fanpages dos dois candidatos no período analisado; na
fase de categorização se farão “operações de desmembramentos do texto em unidades, em
categorias segundo reagrupamento analógicos” (p. 153), entendendo-se aqui as fotos como
texto; e por fim, a fase de inferências subsidiará a análise qualitativa do material.

Para respaldar a discussão na qual os achados estão inseridos, a partir do próximo tópico
serão usados como referência para as discussões autores como Casara (2020); Recuero (2019);
Gomes (2009, 2011); Castells (2002, 2015); Lèvy (2002); Lemos (2004); Ugarte (2008); Chauí,
Sylvia e Franco (2007), dentre outros.

2. Desenvolvimento

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1. Internet: nova cultura, novas formas de comunicação e de controle

No que se refere ao uso majoritário de recursos digitais para a comunicação política,


destaca-se que a eleição de 2018 vem sendo apontada historicamente como a primeira no Brasil
na qual a internet teve papel preponderante, visto que o candidato que mais usou a internet foi
o que logrou êxito no pleito e o candidato com mais espaço na televisão, meio tradicional até
então para a prática de campanhas políticas, conseguiu um resultado infinitamente inferior.
Uma análise desse uso, de acordo com o jornal Folha de S.Paulo de 7 de outubro de 2018,
aponta que o candidato do PSDB, Geraldo Alckmin, esteve presente nas principais emissoras
do país num total aproximado de 6 horas de inserção, ao passo que seu adversário político, Jair
Bolsonaro (PSL), teve apenas 10 minutos somando todas as aparições, dado que se inverte
quando se analisam as redes sociais: se nas emissoras o candidato do PSL não tinha espaço, o
mesmo jornal mostra que Bolsonaro era o que detinha o maior número de seguidores nas redes
sociais e subiu de 26% para 36% nas pesquisas de intenção de voto, enquanto Alckmin teve
uma variação entre 6% e 9%. Desse modo, Bolsonaro saiu do 1º turno das eleições com 46,03%
dos votos e Geraldo Alckmin com 4,76%, mesmo com um lastro histórico-político muito
superior ao do candidato vitorioso.

Entretanto, vale destacar que, apesar de os números mostrarem uma participação maior
do candidato Jair Bolsonaro no meio digital, inúmeros estudos apontam também para o uso de
estratégias irregulares na campanha do candidato, como o uso de robôs nas redes sociais
Facebook, Instagram, Twitter e WhatsApp e a contratação de empresas para disparos em massa
de fake news. Nessa temática, Recuero (2019) frisa que mundialmente se vive o momento de
buscar uma adequada conceituação para o termo fake news, uma vez que o conceito está
atrelado à ideia de desinformação que pode ser tanto “rumores e notícias falsas que circulam,
principalmente, na mídia social” (p.32) como também “sátiras, boatos e notícias fabricadas”
(p.32). Isto posto, a autora (2019) traz o conceito das “fake news eleitorais” e destaca que elas
são “as notícias criadas com o objetivo de espalhar desinformação e falsas percepções para
influenciar processos eleitorais” (p.33), conceito que traduz o que aqui se aponta como fake
news e que tem no kit gay 3o maior exemplo de aplicação prática do pleito de 2018, já que esta

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O Kit gay foi uma fake news veiculada durante as eleições de 2018 nas redes sociais, sendo exibida inclusive
durante entrevista do então candidato Jair Bolsonaro para a Rede Globo de Televisão, no dia 28 de agosto de
2018, e que afirmava que durante o governo petista o candidato Fernando Haddad distribuiu nas escolas um livro
chamado aparelho sexual e cia e uma mamadeira cujo bico era em formato de pênis, vulgarmente chamada de
“mamadeira de piroca”, ambos integrantes de um suposto Kit gay para o ensino sexual nas escolas. Após à

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promoveu uma campanha difamatória do candidato Fernando Haddad e que para muitos
pesquisadores foi a responsável por canalizar boa parte dos votos evangélicos para Bolsonaro.
Filho, Coelho e Dias (2018) destacam que

Os eventos que explicitam os debates sobre o “kit gay”, a “ideologia de gênero” e a


campanha de Jair Bolsonaro possuem um elemento em comum: a produção em massa
das chamadas Fake news e a evidenciação de dimensões político-religiosas, utilizadas
para estabelecer sujeitos subversivos que seriam os inimigos da “família tradicional
brasileira” e que intentariam destruí-la por meio da homossexualização de crianças,
da libertinagem sexual e outros elementos. (p.68).

Em meio às denúncias de uso dessas fake news eleitorais nas eleições 2018, o país deu
dois encaminhamentos em âmbito legal: instaurou ainda em 2018 um processo no Supremo
Tribunal Federal (STF) para apurar a criação de fake news contra à corte e a convocação de
atos a favor da ditadura e fechamento do congresso e em setembro de 2019 foi instalada uma
Comissão Mista Parlamentar Inquérito (CPMI). Como ações decorrentes desses processos, em
maio de 2020 a Polícia Federal realizou buscas e apreensões contra-acusados de convocar atos
e disseminar fake news, resultando na prisão da ativista líder do movimento pró Bolsonaro “300
do Brasil”, Sara Winter. No âmbito da CPMI, com orientação contrária do presidente Jair
Bolsonaro, no mês de junho de 2020 foi aprovado no Senado o projeto de lei nº 2.630/2020,
que visa a criar a chamada “Lei das Fake” que mira, entre outros temas, o gabinete do ódio4.
Se aprovado pelos deputados e sancionada por Bolsonaro, o projeto criará a lei brasileira de
Liberdade, responsabilidade e transparência na internet. Recentemente, em um novo ato no
cerco contra os disseminadores de fake news, entrou na briga as próprias mídias sociais, com
destaque para o Facebook que no dia 10 de julho de 2020 tirou do ar várias páginas e perfis
falsos ligados ao PSL, partido que elegeu Bolsonaro, e a gabinetes da família Bolsonaro. A

veiculação, uma determinação do Tribunal Superior Eleitoral exigiu a retirada do vídeo e das peças das redes
sociais de Jair Bolsonaro por ficar provado que se tratava de uma fake news.
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Gabinete do ódio foi o nome dado para o grupo localizado no 3º andar do Palácio do Planalto que produz
relatórios diários para a presidência sobre os acontecimentos do Brasil e do mundo, coordena as redes sociais do
Planalto e todo o planejamento de campanhas digitais do governo federal. Com forte influência sob a opinião do
presidente, o gabinete é liderado pelo vereador do Rio de Janeiro Carlos Bolsonaro (PSC), filho do presidente, e
por um grupo de assessores especiais. Atua de modo independente da Secretaria de Comunicação do governo e
em denúncias da deputada Joice Hasselmann (PSL-SP), ex-líder do governo no Congresso, foi acusado de também
por disseminar notícias falsas, por meio de perfis e contas falsas nas redes sociais como o Whatsapp, Facebook,
Twitter, Instagram entre outras, recebendo inclusive investimento de empresas pró Bolsonaro para tais atos.

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mesma ação foi realizada nos EUA, visto que também foram tiradas do ar contas suspeitas
ligadas ao presidente Donald Trump.

De modo legal ou ilegal, é fato que a internet em forma de mídias digitais esteve
presente na vida política da sociedade no período aqui analisado. Por isso, para entender os
imbricamentos entre internet e sociedade é importante destacar que apesar de não abranger a
totalidade da população, o acesso à internet no Brasil tem se elevado ano a ano. Fatores como
evolução tecnológica, ampliação de locais de acesso gratuito, facilidades na aquisição e uso de
computadores e celulares vêm tornando a internet cada vez mais presente no dia-a-dia dos
brasileiros. Dados da pesquisa TIC Domicílios5 no ano da eleição, 2018, apontam, por
exemplo, que à época 70% dos brasileiros (126,9 milhões de pessoas) usaram a internet nos
meses de julho, agosto e setembro de 2018, período anterior à realização da pesquisa. No
tocante à classe social, o relatório mostrou aumento no percentual de usuários das classes DE,
já que em 2015 era de 30% e passou para 48% em 2018. Também, no que tange à forma de
acesso, a pesquisa mostrou que 85% dos usuários de internet da classe DE navegavam
majoritariamente pelo celular, ao passo que apenas 2% se conectava via computador e para
13% a conexão era feita tanto via celular quanto computador. Explorando ainda mais os dados
sobre o uso da internet no Brasil, uma pesquisa realizada pelo Datafolha em outubro de 2018
apontou que dois em cada três eleitores, o equivalente a 66% dos brasileiros, possuía na época
uma conta nas redes sociais, com variação de porcentagem de acordo com a faixa etária.
Fazendo a ligação entre internet, redes sociais e eleições, tema geral dessa pesquisa, tem-se
claro a consolidação da internet e das redes sociais online como espaço regulador dos debates
políticos na eleição de 2018.

Nessa linha, um estudo realizado pelo IBOPE Inteligência em maio de 2017 com
pessoas a partir dos 16 anos de 142 municípios do país apontou que, para 56% dos eleitores
brasileiros, as mídias sociais teriam algum grau de influência na escolha de seu candidato
presidencial na eleição de 2018, enquanto que para 36% elas teriam muita influência. Para
Penteado et al (2010) a internet mudou as relações sociais e no campo da política essa mudança
segue três tendências:

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A Pesquisa TIC Domicílios é realizada anualmente, desde 2005, pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil
(CGI.br), com o objetivo de mapear os acessos nas zonas rural e urbana do país. Em sua 14ª edição, a TIC
Domicílios realizou entrevistas em mais de 23 mil domicílios em todo o território nacional, entre outubro de 2018
e março de 2019 com o objetivo de medir o uso e apropriação das tecnologias da informação e da comunicação
nos domicílios, o acesso individual a computadores e à internet, atividades desenvolvidas na rede, entre outros
indicadores.

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a) criação e surgimento de novas ferramentas de comunicação, com novos formatos
de interação mediatizada, inclusive com maiores possibilidades de trocas; b) a
formação de um “novo” espaço político, construído no campo virtual em forma de
rede, o ciberespaço; e c) a emergência de novos atores políticos que utilizam o
universo e a arquitetura da rede mundial de computadores para articularem novas
formas de ação política. (p. 30-36)

Ao apontar o surgimento de novas ferramentas de comunicação, os autores (2010) dão


margem para inserir na discussão quais ferramentas usam e quais as atividades, no campo da
política, as pessoas conectadas fazem nas redes sociais. Para mostrar isso, um relatório
produzido pelo Datafolha em outubro de 2018 afirmava que naquela época o WhatsApp era a
rede social mais utilizada pelos eleitores, já que dos 65% que tinham conta 24% o utilizavam
para compartilhar notícias sobre política e eleições e 46% para ler notícias sobre esta temática.
O relatório também apontou o Facebook, objeto de análise nesse estudo, em segundo lugar no
uso para a ação política, com 57% dos eleitores brasileiros usuários desta rede social e com
22% compartilhando notícias sobre política e eleição na rede.

No Instagram e no Twitter, ainda segundo o mesmo relatório, 35% e 13%,


respectivamente, tinham conta e somente 8% no Instagram e 4% no Twitter usavam essas redes
para divulgar notícias sobre eleições. Isto posto, tem-se claro que é desse cenário que emergem
os novos atores políticos (de um lado a sociedade civil e do outro os candidatos a pleitos
políticos), apontados na citação de Penteado et al. (2010) e que usam a internet e as redes
sociais para esse novo tipo de ação na política. Importantes autores - Lemos e Lèvy (2010);
Lemos (2015) e Rüdiger(2016) - classificam essa nova fase como cibercultura. Lemos e Lèvy
(2010), por sua vez, destacam que ela não deve ser confundida com uma subcultura de alguns
grupos, mas como uma nova forma de cultura que prolonga a oralidade e a escrita; e Lemos
(2015) a classifica como um “processo simbiótico” entre o social e o tecnológico.

Gomes (2011) amplia a fala sobre a cibercultura ao apresentar a ideia de que a utilização
de dispositivos, aplicativos e ferramentas de tecnologias digitais de comunicação para
“suplementar, reforçar ou corrigir aspectos das práticas políticas e sociais do Estado e dos
cidadãos, em benefício do teor democrático da comunidade política” (p. 27-28) constitui-se em
uma democracia digital, o que faz crer na existência de uma rede na qual exista liberdade de
uso e de criação. Entretanto, a internet é uma rede baseada também no controle, já que todos e
tudo se tornam visíveis a partir da conexão na web (Silveira, 2011). O lado positivo dessa

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visibilidade é a interatividade que a rede proporciona entre as pessoas e que Ugarte (2008)
analisa ao apresentar uma releitura do diagrama criado por Paul Baran , em 1964, no qual ele
estabelecia os pontos centrais de uma rede de computador. Na ótica de Ugarte (2008), o novo
modelo de rede elimina a tese do computador como foco central e também de uma comunicação
que se estabelece a partir de um único emissor (nó de rede), o que seria a rede centralizada,
para dar lugar a uma rede descentralizada na qual alguns atores sociais (geralmente instituições)
formam várias redes com poder de distribuir a informação. Se por um lado a rede centralizada
e descentralizada parece ter nós (nodos) de autoridades pelos quais é preciso passar para ter
acesso à informação, nas redes distribuídas, característica da Web 2.0 , todos são a autoridade
e “ninguém depende de ninguém para levar a qualquer um sua mensagem” (Ugarte 2008, p
25). Todavia, o autor alerta para o fato de que a ideia de liberdade na rede distribuída pode
esconder os netócratas, atores que buscam otimizar o funcionamento da rede a partir de seus
conhecimentos, capacidade intelectual e interesses.

São grupos especializados em propor ações de conjunto e facilitá-las. Não


costumam estar orientados para fora, mas para o interior [...]. Esses grupos
são os netócratas de cada rede, seus líderes em um certo sentido já que não
podem tomar decisões, no entanto jogam com sua trajetória, prestígio e
identificação com os valores que aglutinam a rede, ou parte dela, na hora de
propor ações comuns. (p.15).

Entendem-se, com isso, que foi por meio dessa conexão de netócratas que as pessoas
foram conduzidas no processo eleitoral de 2018. Como exemplo, um estudo conduzido pelo Le
Monde Diplomatique Brasil e divulgado em maio de 2019, apontou a fanpage do Facebook
como sendo uma das páginas mais compartilhadas pelos adeptos do presidenciável Jair
Bolsonaro, perdendo apenas para o YouTube.

Castells (2015) corrobora para a ideia apresentada até aqui ao alertar que existe na nova
estrutura comunicacional estabelecida a partir das redes de pessoas uma “capacidade de exercer
controle sobre os outros” (p. 91) e que ela depende de duas variáveis: a primeira ligada à
competência de certas pessoas em construir, programar e reprogramar redes de acordo com
objetivos específicos; e a segunda quando essas pessoas se focam em conseguir a adesão de
várias outras redes para a construção parcerias estratégicas. Araújo, Penteado e Santos (2016)
destacam que esses programadores são habilidosos para traçar os objetivos da rede na qual
atuam, bem como para mudar e reprogramar de acordo com o contexto no qual se inserem.

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“Sua performance está associada à sua eficiência comunicacional e persuasiva de gerar e
difundir discursos que vão orientar (e direcionar) a ação dos membros da rede” (p. 11).
Entende-se que, se esses programadores são os que cuidam do tom do discurso, eles agirão em
sintonia – ou serão eles próprios – os comutadores/switchers da rede, já que operarão como
captadores de parcerias para aumentar seu poder de influência.

É nesse contexto que, segundo nosso entendimento, tiveram lugar durante as eleições
de 2018 nas redes sociais as contas automatizadas e a propagação de notícias falsas, por robôs
ou por indivíduos, em redes como Twitter, Facebook e YouTube. No próximo tópico, analisam-
se alguns aspectos sobre voto e campanha eleitoral para, no bojo desses assuntos, trabalhar a
análise de dados.

2. Voto, Redes Sociais e Comunicação Política

Penteado (2012) destaca que as redes sociais estão imbricadas com a estrutura da
sociedade e que é no desenvolvimento da internet que elas adquirem maior dimensão pelo fato
de atrair bilhões de pessoas para comporem as ligações que são o alvo das campanhas eleitorais
na web. É por meio das redes sociais online que os candidatos acessam a população e põem em
prática a comunicação que no passado era feita somente pelo rádio, pela televisão ou, ainda,
por meio de comícios e distribuição de “santinhos”. Historicamente, o uso de ferramentas de
comunicação digital nas campanhas eleitorais ganhou impulso a partir das eleições americanas
para presidente, que elegeu em 2008 e em 2012 o candidato Barack Obama. Em escala mundial,
depois da era Obama na dianteira do uso da internet como um novo ecossistema midiático6,
candidatos de diversas nações fizeram uso das ferramentas da internet para a comunicação
política, inclusive seu substituto, Donald Trump, em 2016, que usou as redes sociais online e
foi acusado de fazer campanha de modo ilícito nessas redes.

No Brasil, os escândalos envolvendo a campanha eleitoral de Donald Trump reverberou


no processo eleitoral da eleição de 2018, sobretudo pela aproximação da equipe do candidato
Jair Bolsonaro com marqueteiros americanos, como Arick Wierson e Steve Bannon, ambos
envolvidos, respectivamente, com as estratégias de marketing eleitoral que deram vitória aos
então candidatos Michael Bloomberg (Prefeitura de NY) e Donald Trump (Presidência dos
EUA), além de reuniões com o Secretário de Segurança dos Estados Unidos, John Bolton, e

6
Um “novo ecossistema midiático” é o nome que Ricardo Rovai atribui ao novo modelo de comunicação de
massa criado a partir da internet.

17
grupos evangélicos americanos. Casara (2020) explica que “a principal força da propaganda
bolsonaristas, bem ao estilo alt-right norte-americana, reside na utilização sem limites éticos
ou jurídicos das redes sociais” (p.46).

Um ano antes das eleições no Brasil, um estudo desenvolvido pela Diretoria de Análise
de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (FGV DAPP) e pelo Conselho Consultivo
sobre Internet e Eleições do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) já alertava para os riscos de
certas ações nas redes sociais online comprometerem a lisura do processo eleitoral, visto o
grande número de brasileiros usuários de internet e redes sociais e a capacidade mobilizadora
dessas redes para a manipulação de informações e impactos na democracia. Em um país com
mais de 116 milhões de usuários de internet, ocupando o 3º lugar entre os países com maior
número de usuários do Facebook e o 6º entre usuários do Twitter no mundo, o relatório
destacava a importância de se criarem meios para combater a desinformação, a manipulação e
as interferências ilegítimas que poderiam comprometer o pleito eleitoral no Brasil.

Nessa linha, foram criadas algumas medidas de combate, tanto pelas próprias redes
sociais – Facebook, Twitter, YouTube, sites de notícias entre outros – quanto pelo Tribunal
Superior Eleitoral (TSE), que por meio da Lei nº 13.488, de 6 de outubro de 2017 modificou
as normas eleitorais para a prática de marketing político na Internet, em especial nas redes
sociais. Contudo, segundo denúncias de vários órgãos de imprensa e de investigação das
estratégias usadas nas redes sociais, as fake news e o impulsionamento irregular de postagens
foram as principais arbitrariedades nas eleições de 2018, cometidas sobretudo por grupos
ligados ao então candidato Jair Bolsonaro, como já mencionado no início deste estudo. A
complexidade dessa abordagem suscita diversas possibilidades de estudo, entretanto nos
ateremos a partir de agora ao objeto de estudo desse artigo: as postagens de imagens feitas nas
fanpages do Facebook pelos candidatos ao 2º turno das eleições presidenciais 2018.
De início, justifica-se a escolha pela análise a partir das imagens, pois o recurso imagético
em postagens digitais constitui-se de modo intrínseco à comunicação nas redes da cibercultura.
Também se usa este recurso pois, de acordo com Silva (2016), as fotos podem e devem ser
olhadas dentro de uma perspectiva de ressignificação, estética e de seu caráter cunhado na
biopolítica.

As imagens não podem ser vistas apenas em termos de seus aspectos visuais [...]
devemos entender essas imagens como parte de um todo maior [...] cujos significados
são ampliados e transformados por estarem em rede e pela forma como são

18
produzidas (em situações de instabilidade, de surpresa, em meio à multidão, como
denúncia, etc.) (p. 97).

3. Levantamento e análise de conteúdo das fanpages dos candidatos no Facebook


Como já pontuado no item 1, é por meio de um programador (programmer), de um
comutador (switcher) ou de um netócrata que uma determinada rede social online executará
seus objetivos estratégicos, sobretudo com relação à formatação dessa rede para capitanear
adesões a seu discurso ideológico. Castells (2015) completa essa afirmação quando diz que “a
capacidade de programação das metas da rede [...] é, obviamente, decisiva, já que, uma vez
programada, a rede terá um desempenho eficiente e irá se reconfigurar em termos de estrutura
e nós para alcançar suas metas” (p. 91). Assim, ao analisar a configuração dessas determinadas
redes, no caso as fanpages oficiais dos presidenciáveis Jair Bolsonaro e Fernando Haddad,
entende-se que toda a construção ali estabelecida dialoga com as verdades e vontades desses
grupos online e que isso só poderá ser captado se observados os inúmeros procedimentos que
ali se estabelecem.
A primeira observação que se faz está relacionada ao número de seguidores que cada um
dos políticos possui no Facebook, pois a partir desse número poderá se pensar na popularidade
que cada um dos concorrentes ao pleito eleitoral adquiriu à época na internet. Pesquisas
apontam que em outubro de 2018 o então candidato à presidência Jair Bolsonaro detinha o
maior número de seguidores no Facebook: um total de 7,38 milhões de pessoas contra um total
de 1,18 milhão de seu adversário do PT, Fernando Haddad. Diante disso, toda a movimentação
que aconteceu nas fanpages dos candidatos está relacionada ao número de postagens que
fizeram e que soavam como convocação à ação esses milhões de seguidores da rede. Ver,
reagir, comentar ou compartilhar o conteúdo postado deram o tom da aderência e de apoio ao
candidato.

Tabela 2 - Comparação quantitativa da performance dos dois candidatos nas fanpages

Candidato – seguidores Postagens Reações Comentários Compartilhamentos

Haddad (PT) - 1,18 milhão 214 4.919.529 1.335,325 2.165,89

19
Bolsonaro (PSL) - 7,38 milhões 33 3.293.600 254.997 975.610

Soma - os dois candidatos 247 8.213.130 1.590.320 3.141.500

Proporção Haddad 87% 60% 84% 69%

Proporção Bolsonaro 13% 40% 16% 31%

Fonte: elaborada pelas autoras

A partir do que foi mencionado no parágrafo anterior, é possível perceber com a tabela 2
que o candidato com mais seguidores teve um esforço muito menor no que tange à quantidade
de postagens se comparado com o candidato Haddad, com menor número de seguidores.
Enquanto Fernando Haddad publicou 214 fotos, o equivalente a 87% do total de postagens
feitas no período analisado, seu adversário divulgou apenas 33 imagens, ou seja, 13% do total.
No entanto, a diferença gritante no número de postagens entre um e outro candidato, não
garantiu ao que detém 87% delas os melhores resultados na interação com o público, pois
mesmo postando quase 7 vezes a mais que seu adversário Haddad não obteve,
proporcionalmente, o mesmo resultado no número de reações, comentários e
compartilhamentos.
Após essa breve análise quantitativa, buscou-se compreender os meandros dessas
publicações e encontrar respostas para questões como: qual foi o conteúdo das fotos postadas
pelos candidatos? Qual desses conteúdos despertou maior reação nos seguidores dos perfis?
Como estes temas contribuíram para a validação dos discursos que se pretendia estabelecer?
Para responder a essas e a outras perguntas que poderiam surgir ao longo da análise, se retomou
à questão metodológica e primeiramente se organizou o conteúdo das 247 fotos em categorias,
como propõe Bardin (1977), e feito isso partiu-se para a análise do conteúdo das imagens no
intento de descobrir as relações ali estabelecidas. Para tal feito, referenciou-se em temas
comuns à vida política e se organizaram as fotos em grupos nomeados de “plano de governo”,
“ataques ao adversário”, “performance” e “corpo a corpo”, cada um com uma característica
específica, conforme explicação no livro de códigos, abaixo.

20
Tabela 3 - Livro de códigos - descrição das categorias

Categoria Descrição

Plano de governo Toda postagem de fotos relacionadas ao plano de governo de cada um


dos candidatos. Em alguns casos, as fotos são capturas de telas de
documentos relacionados aos planos de governo de cada um;

Ataque ao adversário Toda imagem usada para atacar o adversário político e funcionar como
reforço do próprio discurso.

Performance
Na categoria performance entram os dados apontados pelos próprios
candidatos com o intuito de mostrar seu desempenho na campanha

Corpo a corpo Nessa categoria estão reunidas as postagens relacionadas às aparições


públicas dos candidatos, geralmente associadas a comícios, entrevistas
e à interação com os eleitores, sejam eles personalidades políticas,
religiosas, artísticas ou a população em geral.

Fonte: elaborada pelas autoras

A organização do total de postagens nos códigos categoriais citados acima permitiu


descobrir qual categoria recebeu mais investimento, tanto dos presidenciáveis - por meio do
número de postagens - quanto dos eleitores - por meio de suas reações, comentários e
compartilhamentos. A partir de agora se abordará a estratégia categorial usada pelos
presidenciáveis e, entendido isto, se partirá para a análise das categorias que despertaram mais
interação com os seguidores das fanpages.
Ao olhar para as tabelas 4 e 5, que compõem o quadro geral de postagens feitas pelos
dois candidatos no período analisado, é possível verificar que as diferenças na escolha das
categorias feitas pelos candidatos são traduzidas pelo número de postagens que cada um deles
fez nas categorias criadas e também na abordagem que cada um fez para os temas evidenciados.
Assim, enquanto o candidato Haddad priorizou postagens relacionadas a sua interação com os

21
eleitores, já que 131 de suas postagens estão na categoria “corpo a corpo”, Bolsonaro priorizou
as imagens que se enquadram na categoria “plano de governo”, com 11 postagens.
Deste modo, ao se verificar que Haddad priorizou as frentes de discussões com a
sociedade, como o próprio nome da categoria em que mais fez postagens sugere, não se verifica
o mesmo nas postagens de seu opositor, pois este teve uma interação restrita com a população
e as 8 postagens que fez na categoria aqui analisada teve como foco a interação com políticos,
personalidades do meio artístico e empresários que lhe declararam apoio. Salienta-se que a não
interação do candidato do PSL com a sociedade esteve respaldada na justificativa dele de que
após receber uma facada nas ruas durante o início da campanha eleitoral para o 1º turno ele
precisava se recuperar. Na mesma linha, Bolsonaro não só se afastou da população como
também não participou de nenhum dos debates televisivos com seu adversário Haddad,
agendados pelas emissoras Band, Gazeta e Rede TV, mantendo seu foco nas transmissões ao
vivo nas redes sociais, entrevistas à imprensa e gravação de programas eleitorais para o Horário
Gratuito de Propaganda Eleitoral (HGPE).
No outro lado, ao usar sua energia no Facebook para mostrar seu plano de governo,
Bolsonaro trouxe 11 fotos construídas a partir de capturas de tela de um documento em pdf
comparando os dois projetos propostos pelos presidenciáveis nos temas “impostos”,
“imprensa”, “Operação Lava Jato”, “ministérios”, “presídios”, “segurança”, “sindicatos”,
“drogas”, “ditadura socialista” e “agronegócio”, além de textos extraídos de outros discursos.
Embora a escolha feita por Bolsonaro de mostrar um plano de governo não seja a prioridade
nas postagens de Haddad, pois como já citado acima este trouxe mais fotos para falar da sua
interação com o público, vale destacar que pelo fato de possuir um maior número de postagens,
mesmo a categoria “plano de governo” sendo o 2º tema recorrente no discurso de Haddad, ele
fez mais postagens nesse tema do que Bolsonaro: enquanto Bolsonaro publicou 11 imagens,
Haddad apresentou 29 fotos.
Coincidência ou não, as estratégias discursivas dos dois candidatos estão em sintonia
quando se olham para as categorias “ataque ao adversário” e “performance”, já que elas
ocuparam, respectivamente, o 2º e o 4º lugar na fala dos presidenciáveis. Haddad fez 38
publicações na categoria “ataque ao adversário”, enquanto Bolsonaro fez 9. Já na categoria
“performance” as postagens foram distribuídas sendo 16 para o PT e 5 para o PSL.

Tabela 4 – Comparativo - Total de postagens dos candidatos por categorias

22
Categoria Fernando Haddad (PT) Jair Bolsonaro (PSL)

Total de postagens Total de postagens

Plano de governo 29 - 3º 11 - 1º

Ataque ao adversário 38 - 2º 9 - 2º

Performance 16 - 4º 5 - 4º

Corpo a corpo 131 - 1º 8 - 3º

Total 214 33
Fonte: elaborado pelas autoras

Diante do exposto, entende-se que diferentes foram as estratégias usadas pelos


candidatos para atrair e mobilizar seus eleitores. Dito isto, parte-se agora para a análise de como
se deu essa mobilização. Considerando o volume de informações que se podem extrair dos
dados apresentados nas tabelas 3, 4 e 5 e a limitação de espaço que um estudo desse tipo possui,
fez-se a escolha de analisar, a partir do próximo parágrafo, 2 postagens com mais reações,
comentários e compartilhamentos em cada um dos lados do debate, bem como mostrar, por
meio da análise categorial, qual tema foi recorrente nos debates que ocorreram nas fanpages
dos dois candidatos.
No cômputo geral, a análise do desempenho de Haddad na fanpage mostra que a data
com a maior concentração de fotos inseridas na fanpage se deu no dia 26 de outubro, quando
fez 32 postagens, sendo 31 delas categorizadas na categoria “corpo a corpo”. No entanto, a
força dos temas na rede de Haddad vai aparecendo na medida em que dão vistas ao engajamento
dos eleitores por meio das reações, comentários e compartilhamentos que vão sendo atribuídos
a esta ou àquela postagem. Dentro dessa análise, observa-se que mesmo sendo um dia de
recorde de publicações, o dia 26 de outubro não foi a data na qual o presidenciável conseguiu
os melhores números de reações dos seus eleitores.

Tabela 5: Haddad - totais de fotos, reações, comentários e compartilhamentos por dia na Fanpage do candidato.

23
Data Fotos Reações Comentários Compartilhamentos Categoria

07/10/2018 2 199.000 48.000 87.200 corpo a corpo (2)

08/10/2018 4 85.000 8.700 13.700 corpo a corpo (3) e performance


(1)

09/10/2018 7 353.000 89.800 135.300 corpo a corpo (4); plano de


governo (2) e performance(1)

10/10/2018 10 415.000 79.600 173.300 corpo a corpo (5); adversário (3) e


performance (2)

11/10/2018 8 204.000 37.500 75.000 adversário (4); corpo a corpo (2);


performance(1) e plano de
governo (1)

12/10/2018 6 236.000 73.000 75.900 corpo a corpo (3); adversário (1);


performance (1) e plano de
governo (1)

13/10/2018 13 111.596 36.197 40.494 corpo a corpo (8); plano de


governo (5)

14/10/2018 6 165.000 62.000 91.500 plano de governo (3); adversário


(2); e corpo a corpo (1)

15/10/2018 8 189.400 51.000 94.000 plano de governo 4); corpo a


corpo (2) adversário (1) e
performance (1)

16/10/2018 11 162.063 83.500 107.220 corpo-a-corpo (6); adversário (3);


plano de governo (1) e
performance (1)

17/10/2018 6 145.200 35.000 68.100 adversário (3); corpo a corpo (2);


plano de governo (1)

18/10/2018 6 221.000 161.000 110.600 adversário (6)

19/10/2018 4 138.000 39.400 49.400 adversário (2); plano de governo


(1) e corpo a corpo (1)

24
20/10/2018 20 218.000 57.872 87.741 corpo a corpo (17); adversário (2)
e performance (1)

21/10/2018 12 177.500 53.462 70.624 corpo a corpo (8); plano de


governo (2) e adversário (2)

22/10/2018 3 100.000 30.600 62.000 adversário (2) e corpo a corpo (1)

23/10/2018 11 251.611 48.741 125.405 corpo a corpo (9); plano de


governo (1) e performance (1)

24/10/2018 15 257.313 82.952 129.549 corpo a corpo (11); adversário (3)


e performance (1)

25/10/2018 20 298.804 73.751 135.839 corpo a corpo (8); plano de


governo (7); performance (4) e
adversário (1)

26/10/2018 32 220.042 49.350 140.719 corpo a corpo (31) e adversário


(1)

27/10/2018 8 395.000 82.900 142.400 corpo a corpo (5); adversário (2) e


performance (1)

28/10/2018 2 376.000 52.000 44.000 corpo a corpo

214 4.918.529 1.336.325 2.059.991

Fonte: elaborado pelas autoras

O ápice das reações do grupo seguidor do perfil de Haddad se dá no dia 10 de outubro,


quando fez 10 publicações nas categorias “corpo a corpo” (5); “adversário” (3) e
“performance” (2), e conseguiu um total de 415 mil reações. Pormenorizando os números,
constata-se que mesmo tendo nesse dia, e no quadro total de postagens, mais publicações
relacionadas à categoria “corpo a corpo” são as 3 postagens sobre o adversário feitas nesse
dia que concentram os maiores índices de interação com o eleitor no período de 8 a 27 de
outubro, visto que do número máximo de 415 mil interações arrecadadas, 224 mil são dessa
categoria, enquanto 80 mil reações estão na categoria “corpo a corpo” e somente 11 mil em
“performance”. Vale complementar, ainda, que das 224 mil reações a partir das 3 postagens

25
sobre o adversário de Haddad uma única postagem é responsável por reunir a manifestação de
137 mil pessoas: trata-se da foto que abordou um tema nevrálgico da campanha no segundo
turno: a ausência de um candidato à presidência, pela primeira vez na história da democracia
do país, dos debates televisivos.

Foto 1: Haddad - Foto com mais reações na fanpage

Fonte: fanpage de Fernando Haddad no Facebook. Publicada no dia 26/10/2018 e acessada no dia 05/01/2020

O tema da postagem foi de grande interesse da rede online de Haddad, visto que essa
foi a publicação com maior número de compartilhamentos, sendo 82 mil, do total de 173.300,
alcançados pelo candidato do PT no período analisado. Isto posto, ao apresentar a imagem em
análise, vê-se também que além de trazer as datas de debates nos principais veículos televisivos
do país, Haddad posta um texto junto com a foto para convocar o seu adversário “faço o que
ele quiser para ele poder falar o que pensa e debater o país”. Pensa-se que a ideia de Haddad
era mostrar à sociedade que ele estava disposto a debater as ideias e planos de governo e, com
isso, evidenciar o despreparo emocional e político do adversário, fatos comprovados por meio
de sua vida militar, pelos 7 mandatos em que foi deputado federal e pelas declarações
preconceituosas e ditatoriais feitas durante a vida pública e campanha eleitoral.
Ainda, ao analisar a construção dessa e de outras imagens da campanha de Haddad nas
cores da bandeira nacional (azul e branco em primeiro plano e verde e amarelo em segundo
plano), é possível pensar na representação da intenção petista de mostrar à sociedade que
Haddad também era um patriota e não o “bandido”, representante do partido que destruiu a
nação, como se fez crer à época do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, quando tantos
ecoavam “chega de PT”. Tantos esses que, condicionados ao discurso repetido sem lastro de
conhecimento, rapidamente encontraram “o mocinho” outsider a quem destinar o adjetivo
patriota e desenhar os rumos para a eleição que aqui se analisa.

26
Seguindo com a análise das postagens de Haddad, no que tange aos comentários, a
concentração aconteceu no dia 18 de outubro, novamente na categoria “ataques ao adversário”,
quando 161 mil pessoas responderam às 6 postagens feitas por Haddad. Vale o destaque para
o fato de que todas as postagens desse dia estavam relacionadas a críticas a Bolsonaro,
envolvendo temas como fake news, caixa 2 de campanha e novamente a ausência dos debates,
este último tema levantando a maior concentração de comentários na fanpage, já que do total
de 161 mil comentários da data 41 mil foram postados numa única imagem.

Foto 2: Haddad - Foto com mais comentários na fanpage

Fonte: fanpage de Fernando Haddad no Facebook. Publicada no dia 18/10/2018 e acessada no dia 05/01/2020

O cruzamento dos números acima apresentados dá conta de mostrar o ruído existente


entre o que foi priorizado por Haddad e o que verdadeiramente interessou aos seguidores do
seu perfil no Facebook, relembrando que ele concentrou seus esforços em mostrar o seu dia-a-
dia ao lado de políticos parceiros, artistas e do povo em andanças pelo país, fazendo 131 das
suas 214 postagens nesse tema, enquanto os seguidores se mostraram interessados em outras
postagens, ainda que estas aparecessem em quantidade menor, como é o caso da categoria
“adversário” que ocupa o 2º lugar no total de postagens feitas por Haddad, com 38
ocorrências, mas que é a primeira quando se verificam as reações na fanpage. Arrisca-se a
concluir que a escolha de Haddad em priorizar sua interação com o povo está intimamente
ligada à ideologia e à gestão petista de falar às bases, visto que as principais ações dos governos
petistas tinham forte apelo popular. Não obstante, entende-se que a escolha dos seguidores de
Haddad em priorizar as falas sobre o adversário tenha relação direta com o jeito polarizado,
com requintes de rivalidade e ódio, que se impregnou na política brasileira, seja nas redes off-
line ou online, como já mencionado a partir de Brugnago e Chaia (2014, p. 102).
Ao verificar o outro lado do debate, com a análise da fanpage do candidato Bolsonaro,
é possível perceber que ele fez apenas 33 postagens, alternando dias com nenhuma postagem

27
e dias com até 8 postagens, todas seguindo o padrão já visto na fanpage do adversário de
publicar materiais exclusivos para o Facebook ou capturas de tela de outras redes sociais e de
jornais. Aplicou-se à tabela referente às postagens de Jair Bolsonaro o mesmo critério usado
no material coletado na fanpage de Haddad e ao lado da soma de postagens por dia se
apresentou a soma das reações, comentários e compartilhamentos que o presidenciável
alcançou nos dias analisados, bem como as categorias nas quais as postagens foram
enquadradas. Assim, vê-se que o dia 10 de outubro foi a data na qual Bolsonaro fez mais
postagens, sendo publicadas 8 fotos nesse dia, 6 referentes ao “plano de governo” e 2 dentro
da classificação “corpo a corpo”.

Tabela 6: Jair Bolsonaro - Postagens de fotos, reações, comentários e compartilhamentos na fanpage do


candidato.

Datas Fotos Reações Comentários Compartilhamentos Categoria

07/10/2018 0 0 0 0 -

08/10/2018 1 173.000 10.000 78.000 adversário

09/10/2018 2 255.000 29.900 121.000 adversário (1) plano de governo


(1)

10/10/2018 8 232.000 12.275 40.000 plano de governo (6) corpo a


corpo (2)

11/10/2018 2 246.000 13.700 141.000 adversário(1) e plano de


governo (1)

12/10/2018 2 306.000 14.500 98.000 adversário (1) corpo a corpo (1)

13/10/2018 0 0 0 0 -

14/10/2018 1 140.000 6.000 22.000 performance(1)

15/10/2018 2 262.000 33.800 106.000 adversário (1) corpo a corpo (1)

16/10/2018 1 61.000 4.200 15.000 plano de governo (1)

28
17/10/2018 1 63.000 2.800 7.100 corpo a corpo (1)

18/10/2018 1 116.000 5.500 22.000 corpo a corpo (1)

19/10/2018 0 0 0 0 -

20/10/2018 2 226.000 12.200 35.000 performance(1) corpo a corpo


(1)

21/10/2018 0 0 0 0 -

22/10/2018 2 136.000 7.000 20.200 performance(1) corpo a corpo


(1)

23/10/2018 1 59.000 4.800 22.000 adversário (1)

24/10/2018 3 67.600 5.222 10.611 adversário (2) performance (1)

25/10/2018 1 101.000 9.100 57.000 adversário (1)

26/10/2018 0 0 0 0 -

27/10/2018 2 592.000 70.000 146.700 plano de governo (2)

28/10/2018 1 258.000 14.000 34.000 plano de governo

33 3.293.600 254.997 975.611 -

Fonte: elaborado pelas autoras

Todavia, repetindo o mesmo que ocorreu nas postagens de Haddad, os maiores índices
de reações dos seguidores do perfil de Bolsonaro não estão no dia com o maior número de
postagens, já que as 8 fotos postadas no dia 10 de outubro tiveram somente 232 mil reações,
12.275 comentários e 40 mil compartilhamentos, números inferiores a dias em que uma única
postagem teve as reações de 539 mil pessoas, seguida de outra publicação que alcançou 53 mil
reações. Somente essas duas postagens fizeram com que os números de reações do dia 27 de
outubro fossem os maiores do período analisado: 592 mil reações, além de serem as imagens

29
com mais impacto nos comentários e reações: a imagem com mais reações recebeu 67 mil
comentários e 140 mil compartilhamentos e a segunda foto desse dia arrematou 3 mil
comentários e 6.700 compartilhamentos dos seguidores do perfil, fazendo o total do dia ficar
em 70 mil comentários e 146.700 compartilhamentos.
Totalmente em sintonia com a escolha discursiva feita por Bolsonaro, já que ambas
publicações estão inseridas na categoria “plano de governo”, na qual ele optou por fazer mais
postagens, as imagens foram as responsáveis por trazer à tona, ainda que de modo implícito,
alguns dos ideais sob os quais Bolsonaro prometia governar: o ideário de nação, de patriotismo
e a crítica à estrutura político-partidária.

Foto 3 – Foto de Bolsonaro com mais reações comentário e compartilhamento no total de postagens

Fonte: fanpage de Jair Bolsonaro no Facebook. Publicado dia 27/10/2018 e acessada no dia 05/01/2020

No intento de entender o porquê uma única publicação ter sido a responsável por
mobilizar tantas pessoas na rede de Bolsonaro, traçam-se algumas ilações. Primeiramente,
volta-se ao cenário político que se apresentou no início desse estudo para memorar que, à época
das eleições de 2018 existia no país uma construção discursiva que transformou o PT e sua
ideologia nos inimigos a serem combatidos por boa parte da sociedade brasileira. Dentre as
57.797.847 pessoas que votaram em Bolsonaro, o equivalente a 55,13% dos eleitores, estavam
os que consideravam que todas as mazelas que o país vivia naquele momento (corrupção,
desemprego, crise econômica etc.) eram resultados dos 14 anos dos governos do PT e para
resolver isso ecoavam o discurso “chega de PT”, mesmo o PT já não estando mais no poder,
visto que em 2016 o impeachment de Dilma elevou o então vice-presidente, Michel Temer,
filiado ao PMDB/MDB. A bem da verdade, alguns fatos mostram que embora o discurso contra
o PT fosse o que ecoava mais alto, esse grupo de pessoas sinalizava ser contra todos que

30
estavam na política, haja vista que no 1º turno dessas eleições, das 54 vagas em disputa para
senadores 46 foram preenchidas por novos atores políticos. Sem trazer a esta discussão o perfil
ideológico dos mesmos, destaca-se que os eleitores deixaram de lado candidatos tradicionais
da política brasileira.
Assim, é destacando que era “diferente” de todos os outros candidatos e que, portanto,
representava algo novo na cena pública, que Bolsonaro saiu da sombra política em que vivia e
construiu sua lógica discursiva calcada num tom conservador e em ideias antagônicas aos
avanços das pautas de ideologias de esquerda e de outras que acabaram sendo associadas como
progressistas, levantadas como bandeira até então: respeito à diversidade e ao meio ambiente,
promoção de igualdade social, entre outros temas de apelo humanitários com destaque no Brasil
e no mundo.
Visto que teve apenas dois projetos aprovados no período de 28 anos em que foi
deputado federal, que se encontrava em um partido nanico e que não contou com o apoio de
nenhum dos partidos tradicionais na política brasileira, Jair Bolsonaro adotou como slogan
"Brasil Acima de Tudo, Deus Acima de Todos" e fez campanha vendendo a ideia de um
imaculado “homem de bem”7, honesto e que travava uma luta em prol da sociedade,
defendendo-a da “doutrinação ideológica”, da “ideologia de gênero” e de uma suposta “falta
de valores morais e cristãos”, a despeito de suas diversas declarações feitas no passado contra
mulheres, negros e gays e do teor de seus 168 projetos reprovados como parlamentar, muitos
dos quais atingiam esses grupos. Para neoliberais da elite econômica e pessoas adeptas dessas
ideias e que defendiam também a volta da ditadura militar, a liberação do porte de armas e a
redução da maioridade penal, Bolsonaro era o outsider perfeito.
Os valores exaltados pelo então candidato são destacados claramente em uma
publicação feita no dia 16 de outubro que, embora não esteja entre as imagens com mais
reações, comentários e compartilhamentos, optou-se por extrair-lhe o texto pela força que ela
possui dentro da categoria que o presidenciável escolheu para ser destaque nas postagens da
fanpage do Facebook, seu plano de governo.

O brasileiro desta vez terá a opção de escolher um presidente que pegue firme contra
a bandidagem; contra saidinha nas prisões; a favor do livre mercado; contra a

7
No cenário político colocado, “homem de bem” é um termo usado no Brasil que agrega valores de honestidade,
família e orgulho pelo trabalho árduo. Define o sujeito que segue o padrão social oposto ao “vagabundo” e tem,
portanto, um teor moral e meritocrático, alinhado a ideias neoliberais. Cabe lembrar que “The Good Citizen”,
livremente traduzido como “o bom cidadão” era o nome do jornal editado pela Pillar of Fire Church de Zarephath,
New Jersey (EUA), entre 1913 e 1933. O periódico manifestava apoio à Ku Klux Klan, grupo de ódio supremacista
branco.

31
ideologia de gênero e doutrinação nas escolas; contra o desarmamento; livre de
acordões com corruptos para atender aos interesses da nação e não de partidos
políticos; contra o aborto; a favor da redução da maioridade penal. Por fim, o
Brasil poderá ter um presidente que seja honesto, patriota e que tenha Deus no
coração” Vamos juntos mudar o Brasil
Texto em foto postada na fanpage de Jair Bolsonaro (grifos nossos). Publicado dia 16/10/2018
e acessada no dia 05/01/2020.

Para além do radicalismo e reducionismo temático que se vê na mensagem, o discurso


do candidato flerta com os ideais neoliberais, com a truculência dos regimes ditatoriais num
passado recente no Brasil e com o lastro de sua formação militar, calcado na formação rígida e
servil. Em todas as publicações que faz no Facebook para destacar seu plano de governo, seja
na foto 4, que conseguiu todos os destaques dentro da fanpage, ou seja no texto citado acima,
o presidenciável não apresenta um plano de governo com estratégias e táticas para solucionar
problemas econômicos ou sociais. Ao contrário, o discurso é construído basicamente no mote
da retórica nacionalista e conservadora, com forte referência ao passado e com tons de
agressividade e pobreza vocabular, fatos que se comprovam, por exemplo, nas postagens em
que faz - se refere a seu adversário político.

Ao evocar frases como “Meu partido é o Brasil”, “atender aos interesses da nação” ou,
ainda “presidente que seja patriota”, grosso modo ele busca referência em movimentos
políticos de ultradireita, que têm adesão com ideologias autoritárias e teceram discursos
ancorados nas ideias de nacionalismo, anticomunismo e no apelo à fé para mobilizar adeptos.
Chauí, Sylvia e Franco (2007), ao explicarem um desses movimentos de ultradireita, o
movimento integralista8, nos emprestam a chave para encontrar um caminho de resposta ao
questionarem o que muitos perguntaram a partir da adesão que Bolsonaro foi adquirindo com
o passar dos dias na campanha presidencial: “Como um pensamento cuja debilidade teórica é
gritante pode ser contraponteado pela eficácia prática”? (p.31). A resposta que os autores dão
à própria pergunta, e que nos interessa para entendimento do discurso bolsonarista, passa pela
discussão de uma construção textual que se faz panfletária, mas que vai buscar no passado
histórico a força com que cada termo usado no discurso foi se fixando na mente do leitor desse
ou daquele discurso.

8
Inspirado no fascismo criado na Itália por Benito Mussolini, o movimento Integralista foi fundado no Brasil na
década de 1930, por Plínio Salgado. Usando a sigla Ação Integralista Brasileira (AIB) o grupo político defendia
ideias do corporativismo, ultranacionalismo, conservadorismo e tradicionalista católico de extrema-direita

32
Essa maneira de enumerar, estabelecer ordens e sequências temporais, varrer
rapidamente o todo da história de sorte e agrupar por semelhança e separar por
dissemelhança, estabelecendo sempre um percurso de pensamento fundado em
analogias, não só permite economizar a reflexão acerca dos processos históricos, mas
permite sobretudo assegurar ao destinatário um suposto conhecimento que o
convença de que o Integralismo é a “marcha natural da história” (p. 4)

Destarte, se naquele momento o integralismo era a “marcha natural da história”, neste


que se apresentava aos eleitores de 2018 o movimento “criado” por Bolsonaro era a nova
marcha que a sociedade brasileira precisava seguir, ideia confirmada inclusive com a foto
postada no dia 28 de outubro, o 1º dia de Bolsonaro como presidente eleito.

Foto 4 – Foto de Bolsonaro com mais reações, comentários e compartilhamentos no total de postagens.

Fonte: fanpage de Jair Bolsonaro no Facebook. Publicado dia 27/10/2018 e acessada no dia 05/01/2020

Considerações finais

Este artigo teve como objetivo analisar o uso da rede social Facebook pelos candidatos
ao pleito eleitoral de 2018 no Brasil. Nosso intuito foi entender o papel desempenhado por essa
rede numa campanha presidencial polarizada e marcada por denúncias de ilegalidades na
utilização das mídias, sobretudo pela propagação de fake news e uso de robôs (bots) para postar,
reagir e até compartilhar postagens em redes como o Facebook. Nesse sentido, construímos
uma breve contextualização do cenário político no qual a eleição ocorreu e apresentamos os
subsídios teóricos para a discussão sobre voto, campanha eleitoral, controle, redes sociais,
internet, fake news e eleições, além de apresentar e analisar os dados colhidos no campo. Vale

33
ressaltar que ao apresentar a análise das postagens de imagens feitas pelos dois presidenciáveis
não se teve como intenção esgotar o assunto, visto que ele traz em seu bojo diversas
possibilidades de abordagens.

Concluímos que Jair Bolsonaro e Fernando Haddad foram compreendidos de modos


diferentes pelos seus potenciais eleitores: enquanto Haddad fez uma escolha discursiva calcada
na ideologia do seu partido, parece-nos que seus seguidores fizeram outra, já que as maiores
reações dos seus seguidores ocorreram em postagens que não foram a tônica do discurso do
candidato do PT o que pode causar estranheza, se nos fixarmos na ideia de que fanpages no
Facebook são bolhas de grupos com interesse em comum; ou tranquilidade, se entendermos
que já está cristalizada para os seguidores de Haddad que a estrita relação com as massas é o
cerne da ideologia do PT e que, portanto, por ser um discurso conhecido de todos não suscita
mais reações. Por outro lado, há que se considerar uma futura análise qualitativa nos tipos de
reações, comentários e compartilhamentos para se responder a dúvida que fica: será que o teor
do discurso de engajamento na categoria escolhida pelos seguidores da fanpage é o mesmo teor
das mensagens que se apresentam nas postagens relacionadas ao corpo a corpo e que traduz o
mote discursivo de Haddad ou será que o grande número de comentários foi na verdade crítica
a Haddad e exaltação a Bolsonaro?

Na outra ponta, o uníssono discurso entre Bolsonaro e os seus seguidores revela não só
uma sintonia entre o “eu falo o que você quer ouvir”, mas também entre a polarização e o ódio
à esquerda e ao PT, este último ato praticado muitas vezes até por pessoas que foram
beneficiadas pelos diversos programas sociais criados nas gestões do PT. Também, ficamos
tentados a apontar que, se comprovado e quantificado que Bolsonaro usou o método proibido
de automatização de contas nas redes sociais (os robôs) estaríamos diante de um modelo
fraudulento de dar visibilidade para um discurso, mas que infelizmente estava em sintonia com
os desejos de parte das 57.797.847 pessoas que não só votaram no então candidato, mas antes,
em quantidade esmagadora no Facebook, captaram, reagiram, comentaram e, principalmente,
compartilharam as informações veiculadas a ele não importando o seu teor.

34
REFERÊNCIAS

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impeachment de Dilma Rousseff e suas organizações na Internet. José Ricardo Ramalho
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UGARTE, DAVID DE. O poder das redes. Porto Alegre: PUC-RS. 2008.

36
Eleições 2018: uma análise da estratégia narrativa de Fernando
Haddad (PT) no Instagram

DEBORAH LUÍSA VIEIRA DOS SANTOS


Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
E-mail: dlvs1@hotmail.com

MARIANE MOTTA DE CAMPOS


Universidade Paulista (UNIP)
E-mail: mariannemottadecampos@hotmail.com

MAYRA REGINA COIMBRA


Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
E-mail: mayrarcoimbra@gmail.com

MARINA ALVARENGA BOTELHO


Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ)
E-mail: inabotelho@gmail.com

1.INTRODUÇÃO

A eleição presidencial no Brasil, ocorrida em 2018, foi marcada por uma forte
polarização ideológica e uma campanha que se utilizou massivamente das redes sociais. Jair
Bolsonaro, candidato pelo Partido Social Liberal (PSL) saiu vencedor da disputa contra o
candidato Fernando Haddad (PT). Além do partido, considerado pequeno e de pouco destaque,
o candidato Bolsonaro não contava com uma coligação forte e, tampouco, de grandes apoios
de políticos tradicionais. De presença constante nas redes sociais, Bolsonaro apresentou-se
como um candidato mais independente dos padrões conhecidos da política e, através do campo
comunicacional, construiu seu nome em forte oposição ao petismo, mas também às forças
políticas conhecidas do Brasil. Embora fosse deputado federal há mais de 30 anos, o candidato
apresentou-se como um outsider, enaltecendo o discurso anticorrupção, que se valia de grandes
investigações perpetradas no âmbito jurídico brasileiro9.

9
A operação Lava-Jato foi deflagrada em 2014 e ficou conhecida por uma série de investigações sobre corrupção
na estatal Petrobras. As fases do processo investigativo tiveram grande destaque na mídia e propiciou a queda
política de várias lideranças do país.

37
O PT lançou como candidato Fernando Haddad, ex-prefeito de São Paulo e ex-ministro
da educação no governo Lula. Fernando Haddad havia substituído Lula, impedido de ser
candidato pela Lei da Ficha Limpa, já que o mesmo havia sido condenado em segunda instância
no processo do “Triplex do Guarujá”.10 O fato não tirou Lula da disputa simbólica, já que o
nome do ex-presidente foi amplamente usado na campanha petista como vamos observar na
análise.

A campanha do segundo turno acabou revelando um choque narrativo bastante


acentuado e baseado em ataques. Embora a narrativa antissistema fosse o centro do discurso
da campanha vencedora, um partido tradicional foi o epicentro de muitos debates. Dessa forma,
esse trabalho busca compreender como Haddad construiu sua narrativa no Instagram, diante
de um adversário que já tinha um grande destaque nas redes sociais e diante da dificuldade na
construção de sua imagem ainda pouco conhecida no país.

Para isso, o artigo analisa as publicações de Haddad no Instagram, no segundo turno


das eleições de 2018, a fim de responder quais as narrativas foram mais recorrentes nas
postagens do candidato petista. Dessa forma, o recorte da pesquisa refere-se ao período do
segundo turno que vai de 8 a 27 de outubro.

A escolha de se analisar o perfil de Haddad no Instagram nesse momento se dá pelo


fato da rede está em crescimento no país e ter ganhado destaque na eleição. Em 2018, o
Instagram bateu a marca de 1 bilhão de usuários ativos no mundo, sendo uma das redes sociais
mais populares da atualidade. Em outubro do mesmo ano, aproximadamente 64 milhões de
pessoas usaram a rede social no Brasil11.

Diante disso, a pesquisa se dá por meio da Análise de Conteúdo (BARDIN, 2011) que,
através de estratégias interpretativas, busca compreender a construção narrativa nas redes
sociais.

2. MIDIATIZAÇÃO E POLÍTICA: NOVOS CIRCUITOS INFORMATIVOS

10
O ex-presidente foi condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, acusado de receber benefício da
construtora OAS para compra e reforma do edifício no litoral paulista.
11
Dados presentes na matéria “Instagram tem 1 bilhão de usuários, mas não oferece sistema de denúncia de Fake
News”, publicada em 14 de janeiro de 2019, pelo portal da Revista Época. Dispnível em:
https://epoca.globo.com/instagram-tem-1-bilhao-de-usuarios-mas-nao-oferece-sistema-de-denuncia-de-fake-
news-23370668. acesso em 28 ago. 2020.

38
A sociedade contemporânea é marcada não só pela centralidade dos media, como se
acreditava, mas pelo atravessamento dos diversos campos sociais pelo campo midiático. A esse
atravessamento dá-se o nome de midiatização (BRAGA, 2012) ou, como outros autores
colocam, hiper-midiatização (CARLÓN, 2016; VERÓN, 1997). Nesse contexto, as eleições de
2018 tornaram-se um rico momento de análise dos circuitos comunicacionais e informacionais,
em especial, ao observar-se o fenômeno e movimentação das redes sociais.

A internet e suas redes sociais, diferente das mídias tradicionais, como rádio e a TV,
possibilitam que os atores sociais, antes distantes dos centros de produção de conteúdo, também
se tornem produtores, disseminadores e críticos de informação (BRAGA, 2012). Uma espécie
de prossumers ou prossumidores, termo que une as palavras produtor e consumidor (SAAD;
RAPOSO, 2017). Com as redes sociais digitais, as interações sociais passam a se expandir,
rompendo ainda mais as barreiras de espaço e tempo. Nesse sentido, a internet acelera e deixa
mais evidente o processo de midiatização ou hiper-miditaização.

O conceito de (hiper)midiatização é objeto de pesquisa em diversas partes do globo,


como Europa e América Latina, tendo como expoentes das pesquisas países como Argentina e
Brasil (FAUSTO NETO, 2018). Mesmo sendo um conceito ainda em desenvolvimento
(BRAGA, 2012), pode-se destacar que o mesmo indica o processo no qual os meios de
comunicação e seu desenvolvimento aceleram ou transformam os processos sociais.

Para Hjarvard (2012), os meios de comunicação moldam novos processos de interação


e, com a midiatização, o próprio campo midiático se confunde com os processos sociais, desse
modo existe certa virtualização da interação social. “A sociedade contemporânea está
permeada pela mídia de tal maneira que ela não pode mais ser considerada como algo separado
das instituições culturais e sociais” (HJARVARD, 2012, p. 54). Assim, a presença da mídia
torna-se tão intrínseca na sociedade que não se pode considerar o campo midiático em
separado. O processo de midiatização, portanto, compreende essa influência dos meios de
comunicação nos processos sociais, no qual a mídia assume funções antes oferecidas pelas
instituições tradicionais.

Outros autores, como Mario Carlón (2016) e Eliseo Verón (1997), acreditam que a
sociedade contemporânea já ultrapassou o contexto de midiatização, encontrando-se em uma
era de hiper-midiatização. Esse momento é marcado pelo amplo acesso à internet, a qual
confere à midiatização um caráter global. Para Véron (1997), a hiper-midiatização se dá pela

39
ascensão dos multimeios e a troca acelerada de informações. O autor ainda coloca o processo
de hiper-midiatização como análogo à globalização. Carlón (2016), por sua vez, coloca o
surgimento da web 2.0 e a popularização do acesso à internet como atributos de uma
comunicação “horizontal”, marcos da hiper-midiatização. Ideia esta que contribui para uma
visão otimista acerca das plataformas digitais, na qual os meios tradicionais são vistos como
“assimétricos” e “verticais”, com assimetria de poder entre emissor e receptor. Essa visão
corrobora para colocar-se os meios tradicionais de uma forma “negativa” frente à internet. O
que deve ser observado de forma crítica e com certa cautela. A nova ambiência permite uma
relação inter-sistêmica entre a mídia e seus diferentes suportes, que geram tensões entre as
mesmas e as diferentes formas de circulação da informação.

No entanto, Fauto Neto (2018) assim como Braga (2012), alertam que esse não é um
processo determinado apenas pela tecnologia e os novos suportes, mas também pelo
desenvolvimento e apropriação dessa tecnologia pela própria sociedade. Ou seja, a
midiatização não pode ser desvinculada da dinâmica social.

Nesse sentido torna-se pertinente trazer o conceito de circulação, nuclear para se


pensar em midiatização. Se em uma sociedade midiatizada os receptores são ativos no processo
comunicacional, a circulação passa a ser espaço de reconhecimento e apropriação da mensagem
(BRAGA, 2012). Essa circulação se dá em circuitos complexos, nos quais já não se é tão
simples diferenciar de onde se parte a mensagem e qual o seu ponto de chegada (BRAGA,
2012; CARLÓN, 2016). E, o produto midiático, não é o ponto de partida de uma mensagem,
mas de chegada de um fluxo. Na midiatização, não é o “produto” que circula, uma vez que esse
“produto” pode permanecer, continuar a circular e repercutir em outros espaços, em diferentes
mídias e até fora delas - nas interações sociais, por exemplo (BRAGA, 2012). Nesse ambiente,
o “produto” – ou a mensagem – se molda e busca moldar os ambientes nos quais ela circula. E
esses circuitos informacionais, com seus fluxos contínuos, se desenvolvem dentro da
sociedade, seus campos, estruturas e instituições.

Com a midiatização crescente, os campos sociais, que antes podiam interagir


com outros campos segundo processos marcados por suas próprias lógicas e
por negociações mais ou menos específicas de fronteiras, são crescentemente
atravessados por circuitos diversos. (BRAGA, 2012, p. 44)

40
Ainda, Braga (2012) destaca que, mesmo quando os processos de circulação
encontram barreiras dos campos sociais, há uma modificação das relações e forças internas dos
campos. Com a midiatização, o perfil dos demais campos sociais é modificado, bem como os
sentidos e modos de ação, interação e desenvolvimento desses campos. Ao mesmo tempo, esse
fenômeno afeta a esfera de legitimidade dos campos sociais, fazendo com que os mesmos a
reelaborem constantemente (BRAGA, 2012).

O campo político também é afetado por esse fenômeno e, ao longo dos anos, busca
incorporar a lógica midiática e dos novos meios, como ferramenta de comunicação entre os
agentes políticos e seu eleitorado, e como forma de angariar e manter o capital social e político.
Utilizando, inclusive, as redes sociais digitais para driblar a lacuna comunicacional deixada
pelas mídias tradicionais, como a televisão.

A primeira campanha eleitoral, na qual houve o uso da internet, ocorreu no início dos
anos 1990, nos Estados Unidos. No entanto, a comunicação baseava-se a lei da “oferta e
procura”, além das limitações da própria rede e sua interface. Apenas no século XXI, as
estratégias de campanha passaram a incorporar outros fatores, como a interação em tempo real
e a convergência midiática (MAIA et al, 2011). Alcançando seu ápice, nas eleições
presidenciais estadunidenses, em 2016, na qual Donald Trump fora eleito.

No Brasil, a primeira campanha na qual houve o uso da internet ocorreu em 1998.


Contudo, naquele período, apenas 3% da população tinha acesso à rede (SOUSA; MARQUES,
2017). Sendo, a campanha nas redes, oficialmente permitida, apenas em 2010 (AGGIO, 2015).
No entanto, as plataformas digitais tinham certas limitações. As plataformas mais utilizadas
para campanha era os websites e blogs e, neles, havia um certo controle de como a comunicação
se estabeleceria. Com a popularização do acesso à internet e suas redes sociais digitais, como
o Instagram, não há como se delimitar a comunicação, havendo uma maior chance dos próprios
internautas levantarem pautas sensíveis aos candidatos. Os partidos e políticos tiveram, então,
que se adaptar a essa nova ambiência, nos quais os próprios usuários criam as regras e denotam
os sentidos.

Se, por um lado, a era digital possibilita novas formas de interação e participação
política, por outro, vale destacar os investimentos cada vez maiores nas ferramentas de
comunicação, como as redes sociais, nas disputas eleitorais. Todavia, aqui é válido fazer um

41
parêntese: as iniciativas em direção à democracia digital não significam necessariamente
participação (MAIA et al, 2011).

Estudos continuam a demonstrar que, genericamente tomados, os usuários de


internet não são lá grandemente interessados em participação política. Mais
que isso: confirmam ainda que nem sequer estão particularmente interessados
em política, em bases normais. [...]. Isso quer dizer que apenas que uma parte
menor da ação ou da participação política se dá mediante iniciativas digitais,
embora estas sejam as formas mais densas e fecundas de empowerment civil,
já que para tanto foram projetadas. (MAIA et al., 2011, p. 39-40).

Isso indica que a participação política e o envolvimento dos cidadãos encontram-se


concentrados apenas em momentos específicos, como as eleições, por exemplo. Além disso, a
maior parte das pessoas buscam informação, mas ainda há pouco engajamento e participação
efetiva (MAIA et al, 2011). Para Maia et al (2011), ler e acompanhar notícias sobre política,
via internet, não pode ser considerada uma ação e, por isso, não constitui uma forma de
participação política do cidadão. Entretanto, se o indivíduo escreve para um blog de política,
cria petições online, manifesta-se em fóruns, já representa diferentes formas de participação.

Esse cenário traz consigo novos desafios quanto ao planejamento das estratégias de
campanha e construção da imagem dos candidatos, sendo parte “da estratégia dos núcleos de
comunicação das campanhas a tentativa de atrair a militância espontânea, a fim de ampliar a
visibilidade da agenda defendida pelo candidato” (MIOLA; MARQUES, 2018, p. 3-4). Assim,
mesmo em tempos fora das disputas, os atores políticos apresentam-se aos usuários dessas
redes, tanto em termos políticos quanto pessoais (SOUSA; MARQUES, 2017). A disputa
online diminui o distanciamento entre a esfera civil e a política e, quanto a representatividade,
essa participação online pode ser mais rica se comparada às iniciativas presenciais (AGGIO,
2015).

3. METODOLOGIA E CORPUS DE ANÁLISE

A pesquisa documental foi feita a partir da coleta do material referente às postagens no


Instagram do candidato à presidência da República, Fernando Haddad (PT). Dessa forma, o

42
recorte determinado foi de 12 a 27 de outubro de 2018, período determinado pelo Supremo
Tribunal Eleitoral (STE) para propaganda dos candidatos no segundo turno.

Para a pesquisa, será utilizada a metodologia de Análise de Conteúdo (BARDIN, 2011).


Dessa forma, pretende-se trabalhar com as seguintes categorias de análise: I – Imagem do
candidato; II – Apoiadores; III – Ataques; e IV – Plano de governo; V – Mobilização de
eleitores.

3.1 Análise das postagens de Fernando Haddad (PT) no Instagram durante o segundo
turno das eleições presidenciais de 2018

Diante do recorte, foram coletadas um total de 182 postagens no Instagram do candidato


Fernando Haddad. Como pode-se observar no gráfico abaixo (Gráfico 1), a categoria referente
à mobilização de eleitores foi à estratégia mais recorrente no Instagram de Fernando Haddad,
ela atinge cerca de 32% das postagens analisadas do segundo turno. A segunda que categoria
que mais é acionada pelo petista é a categoria que se refere aos ataques, que são postagens
referentes ao marketing de oposição (NOGUERA, 2001), quando o político tenta desqualificar
o opositor. Essa categoria corresponde a cerca de 29% do total das postagens de Haddad no
segundo turno. Outra categoria também muito utilizada pelo petista e que aparece em cerca de
20% do total das postagens refere-se à utilização de apoiadores, sejam figuras políticas,
personalidades artísticas, ou seja, figuras populares que aparece ao lado de Haddad nas
imagens. Por fim, as categorias menos acionadas pelo candidato foram: plano de governo
(cerca de 14%) e imagem do candidato (cerca de 5%). A primeira categoria refere-se às
propostas apresentadas pelo candidato, sejam elas referentes à educação, saúde, políticas
sociais ou outras temáticas. A segunda refere-se às atribuições pessoais e políticas do
candidato, bem como as atribuições dos governos Lula e Dilma Rousseff, companheiros de
partido de Haddad. O Gráfico 1 facilita a visualização dos dados mencionados.

43
Fonte: autoria própria

Após a elaboração das categorias, observou-se que seria importante agregar à análise
subcategorias como forma de tornar mais específica e trazer menos generalizações, conforme
visto no quadro abaixo.

Quadro 1 – Categorização das postagens de Fernando Haddad (PT) no


Instagram
IMAGEM DO ATRIBUIÇÕES PESSOAIS 6
CANDIDATO

ATRIBUIÇÕES POLÍTICAS (PREFEITURA DE SP) 2

ATRIBUIÇÕES OS GOVERNOS PETISTAS 1

APOIADORES LIDERANÇAS POLÍTICAS 3

ARTISTAS E FIGURAS PÚBLICAS 11

APOIO POPULAR 22

ATAQUES ATAQUE AO ADVERSÁRIO 52

ATAQUE AO PARTIDO

44
ATAQUE À FIGURA LIGADA AO CANDIDATO 1

ATAQUES À IMPRENSA

ATAQUES A GRUPOS SOCIAIS

PLANO DE SAÚDE
GOVERNO

EDUCAÇÃO 1

ECONOMIA 5

CULTURA 1

SEGURANÇA PÚBLICA

HABITAÇÃO 1

MINISTÉRIOS 1

PROGRAMAS SOCIAIS 6

COMPARAÇÃO DE PROPOSTAS 4

OUTROS/CARDÁPIO 6

MOBILIZAÇÃO DE PESQUISA ELEITORAL 4


ELEITORES

DADOS DE PERFIS EM REDES SOCIAIS

AGENDA DE CAMPANHA 4

COBERTURA DE ATIVIDADES DE CAMPANHA 16


(ENTREVISTAS, ASSINATURA DE COMPROMISSOS,
ENCONTRO COM ENTIDADES, ENCONTROS EM
UNIVERSIDADES)

PEDIDO DE DOAÇÃO PARA CAMPANHA 1

45
APELO (VAMOS JUNTOS!; APELO AOS PROFESSORES; 34
CHAMADA PARA MANIFESTAÇÕES; CAMPANHA DE VIRAR
VOTO)

TOTAL DE 182
PUBLICAÇÕES

Fonte: autoria própria

Diante dos dados coletados pode-se observar que as publicações no Instagram do


candidato Haddad foram, em sua maioria, voltadas à categoria da Mobilização. Pode-se
pressupor que a recorrência dessa narrativa que busca mobilizar eleitores seja motivada pelas
pesquisas de intenção de votos, que apontaram para Bolsonaro à frente do candidato petista.
Dessa forma, era preciso mobilizar o eleitorado para conquistar votos indecisos. É importante
ressaltar que, apesar da categoria de Mobilização aparecer à frente, a categoria que se refere ao
Ataque também é muito acionada, tendo quase o mesmo número de postagens.

A campanha de Fernando Haddad utiliza-se de um ataque voltado à figura de Jair


Bolsonaro e não ao partido político, diferenciando-se da estratégia de seu oponente que em
muitas vezes fez o ataque direcionado ao PT. Na perspectiva de Leal (2012), a perda de
referenciais ideológicos dos partidos contribui para centrar as discussões nas supostas
qualidades dos candidatos e para fatores de curto prazo. Competência, integridade, capacidade
de decisão, carisma e atributos pessoais (aparência, idade, religião, saúde etc.) preenchem o
espaço deixado vago pela discussão política, sobretudo, em disputas com ideologias não muito
distintas. Apesar da disputa entre Bolsonaro e Haddad ter ideologias distintas e claras, pelo fato
da carreira política de Bolsonaro contar com muitas mudanças de partidos políticos, o ataque à
figura de Bolsonaro e não ao partido foi mais estratégico, tendo em vista principalmente as
polêmicas em torno da sua imagem.

A análise possibilitou perceber que o tom de ataques, com o uso de palavras mais duras,
foi aumentando no decorrer da campanha do segundo turno. Discursos como: “soldadinho de
araque”, ou mesmo falas menos diretas que afirmavam que um candidato que não debate ideias
e não apresenta propostas não poderia ser um bom presidente. Dessa forma, a polarização fica
em evidência: o candidato que não tem propostas, um candidato autoritário versus um governo

46
que seria a continuação dos governos petistas, retratados como os governos de investimento
em programas sociais, alta na economia brasileira, um novo governo “Lula”.

Haddad usa de forma estratégica as falas polêmicas construídas durante a carreira


política de Bolsonaro. Por outro lado, Haddad coloca-se como o candidato capaz de tirar o país
da crise, resgatando dados e políticas públicas dos últimos governos petistas, sobretudo do
governo Lula. Dessa forma, Haddad busca retratar Bolsonaro como sendo uma figura
autoritária, polêmica, incompetente enquanto político, tendo em vista os poucos projetos
apresentados durante os 27 anos que atuou como deputado federal. Já a imagem de Haddad é
construída como uma continuidade dos governos petistas.

Como já foi observado, as categorias de ataque e mobilização são as que mais aparecem.
Porém, as outras também são acionadas de forma a reforçar a polarização e o acirramento dos
ataques entre os candidatos.

Grande parte dos apoiadores apresentados durante a campanha são figuras populares,
que criticam as posturas do outro candidato e relembram os bons momentos que o país vivia
nos governos petistas; ações de eleitores, como no caso do movimento “vira votos”, em que
eleitores se propuseram a conversar com as pessoas nas ruas a fim de convencê-las; e outra
porcentagem de apoiadores são artistas e figuras populares.

A Mobilização apresenta as atividades de campanha, manifestações e atos


convocatórios que demonstravam apoio a Haddad e o receio de uma possível eleição de
Bolsonaro, que motivou muitas manifestações. A manifestação de “Mulheres contra
Bolsonaro” ganhou certo destaque durante a campanha. Mais uma vez, a intenção foi reforçar
a polarização política naquele momento.

O Plano de Governo tem pouco destaque durante a campanha. As poucas postagens


referentes a essa temática aparecem de forma muito genérica. Além disso, algumas vezes a
campanha buscou comparar planos de governo de ambos os candidatos, colocando Bolsonaro
em posição negativa, representando o retrocesso e autoritarismo, além de perdas de direitos e
investimentos na educação, saúde e políticas sociais.

Tendo em vista a polarização das campanhas, Haddad não demonstra preocupação em


apresentar propostas, e sim em derrotar o candidato opositor, conforme Santos (2020) apontou
como consequência de disputas muito polarizadas. A campanha de Haddad, em alguns

47
momentos, até teve certa preocupação em apresentar o plano de governo, dando destaque à
educação, saúde e programas sociais que apareciam muitas vezes no formato de cardápio, em
que as propostas para os diferentes ministérios eram apresentadas em conjunto. No entanto,
tais propostas tinham um tempo menor face ao investimento na desconstrução da imagem do
adversário. Observa-se que a preocupação maior era atacar a figura de Bolsonaro e relembrar
os feitos de Haddad enquanto prefeito, bem como as realizações do governo petista, reforçando
a ideia de que teriam dois lados e o eleitor devia escolher um.

A Imagem do Candidato é construída da seguinte forma: o professor. É muito explorada


a figura do professor Haddad, sobretudo pela empatia que a profissão desperta. Essa imagem
foi reforçada a todo tempo, tanto que os eleitores foram convocados a votar com um livro na
mão. Para reforçar essa imagem, a campanha recorre a sua carreira política, enquanto era
Ministro da Educação do governo Lula e quando foi prefeito da cidade de São Paulo.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

As redes sociais ocuparam um papel de destaque na disputa das narrativas durante a


campanha eleitoral de 2018. O aumento da polarização política orientada, sobretudo, pelo
acirramento ideológico entre direita e esquerda, além do surgimento de novas regras eleitorais
e a redução do tempo da propaganda eleitoral no rádio e televisão, permitiu a ascensão de
múltiplas plataformas digitais, entre as quais o Instagram.

No contexto eleitoral, as redes sociais operaram com um espaço de diálogo e


convencimento entre os políticos em campanha e os eleitores, diante da capacidade de driblar
os mecanismos da intermediação das mídias tradicionais. Nesse contexto, foi possível observar
que o Instagram foi utilizado pelos candidatos para mobilizar temas recorrentes das campanhas
eleitorais, mas de maneira bastante estratégica.

Fernando Haddad (PT) buscou apoiar-se na categoria ataque para alertar o


eleitor sobre os riscos do seu adversário. Evocou o discurso homofônico e racista de Bolsonaro
e buscou a retórica do despreparo político do adversário para convencer o eleitor que seria a
melhor opção para o país. Durante a campanha, Haddad precisou enfrentar a dubiedade de
contar com a presença de Lula como seu mentor. Na medida em que Haddad utilizava a figura
do ex-presidente Lula, ganhava a simpatia dos eleitores e dos adeptos ao Lulismo, mas
impulsionava a pelo maniqueísmo que se estabeleceu na figura do antilulismo e do antipetismo,

48
já que a polarização política encontrou, nas redes sociais, um espaço de construção e
propagação de tais narrativas.

A disputa online diminui o distanciamento entre a esfera civil e a política e, quanto à


representatividade, essa participação online pode ser mais rica se comparada às iniciativas
presenciais (AGGIO, 2015). Diante disso, é possível observar que Haddad busca uma
aproximação com os usuários ao destacar seu papel enquanto professor, sua vida familiar, mas
ao mesmo tempo sua narrativa acaba por destacar o adversário diante de tantos ataques.

A pesquisa é apenas o início de um estudo que ainda está em construção, mas pode
ajudar a compreender o processo político de 2018 e seu contexto, que trouxe consequências,
fortalecendo, de certa forma, o Bolsonarismo e aumentando a polarização política.

REFERÊNCIAS

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Horizontal e Eleições Brasileiras. Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-
Graduação em Comunicação. E-Compós, Brasília, v. 18, n. 1, jan./abr. 2015.

BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.

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In: VIZER, E; VIDALES, C. (Coords). Comunicación, campo(s) teorias y problemas – Una
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49
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Cultural da Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora: Ed. da UFJF, 2012.

MAIA, R. C. M.; GOMES, W; MARQUES, F. P. J. A. (Orgs.). Internet e participação


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MIOLA, Edna; MARQUES, Francisco Paulo Jamil. RAZÃO E EMOÇÃO NAS


ESTRATÉGIAS ELEITORAIS: A campanha à prefeitura de Curitiba em 2016 no Facebook.
XXVII Encontro Anual da COMPÓS, Pontíficia Universidade Católica de Minas Gerais,
Belo Horizonte-MG, 05 a 08 de jun. de 2018.

SAAD, Elizabeth; RAPOSO, João Francisco. Prosumers: colaboradores, cocriadores e


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SOUSA, I. J.; MARQUES, F. P. J. Campanha negativa e formas de uso do Facebook nas


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289.

VERÓN, Eliseo. Esquema para el análisis de la mediatización. Revista Diálogos de la


comunicación, n. 48 p 9-17, 1997.

50
PARTE II:

GOVERNO BOLSONARO: UMA ANÁLISE DA


CONSTRUÇÃO IMAGÉTICA DOS PRIMEIROS
ANOS DE MANDATO

51
Bolsonaro, Twitter e dominação: As narrativas do presidente na
rede social em seus primeiros cinco meses de mandato

JOSÉ EDUARDO CRUZ VIEIRA


Universidade Paulista (UNIP)
E-mail: joseduduvieira@gmail.com

1. INTRODUÇÃO

As eleições de 2018 trouxeram inovações técnicas, retóricas e discursivas pouco ou não


vistas anteriormente. O grande uso de mídias sociais, tais como Twitter, Facebook e Whatsapp
e a propaganda virtual online levaram ao poder um candidato fora da cena política corriqueira
no Brasil. Antes principal agente de persuasão e fonte de informação, a televisão, por meio de
propagandas pagas e do Horário Gratuito de Propaganda Gratuita (HGPE), ganhou a
companhia da internet de forma maciça.

A partir de 2014 e, fundamentalmente em 2018, se destacaram as contas pessoais de


candidatos no Twitter e o aplicativo de comunicações e mensagens diretas, Whatsapp, além do
Facebook, utilizado já nas eleições de 2010. Por meio de correntes contendo notícias
verdadeiras e falsas e ataques diretos a adversários, as propostas e campanhas eleitorais
tomaram um rumo diferente do que se via anteriormente.

O Twitter é uma rede social que visa o dinamismo das comunicações limitando o
número de caracteres por publicação (tuíte). O número máximo de caracteres por tuíte é de 240
caracteres e a ferramenta segue como a rede social com menor limite de caracteres dentre as
mais utilizadas.

Por ser membro de um partido com poucos congressistas até o pleito eleitoral de 2018
(Partido Social Liberal – PSL), Bolsonaro não contou com vasto tempo de Horário Gratuito de

52
Propaganda Gratuita (HGPE), O uso de redes sociais, como Twitter e, principalmente,
Facebook e vídeos no Youtube foram alternativa para o candidato, utilizando diferentes
linguagens a fim de atrair públicos diversos do espectador de televisão.

Nos anos seguintes, Bolsonaro iniciou um processo de amplificação de seu discurso.


Críticas à homossexualidade, justificações para disparidade entre soldos a homens e mulheres
e manifestações racistas passaram a fazer parte mais frequentemente de sua agendam, bem
como sua adesão a exposições religiosas.

Aproveitando a lacuna deixada pela direita após escândalos envolvendo Aécio Neves e
o ex-presidente Michel Temer, Bolsonaro pós-2016 se aproximou da direita burguesa nacional.
Em outubro de 2018, Jair Bolsonaro foi eleito Presidente da República em segundo turno, com
55,13% dos votos válidos, contra 44,87% de Fernando Haddad, candidato do Partido dos
Trabalhadores (PT), principal alvo de ataques de Bolsonaro em sua campanha eleitoral.

Este trabalho analisa todos os tuítes produzidos pela conta de Jair Bolsonaro
(@jairbolsonaro) durante os cinco primeiros meses de mandato do presidente eleito e de que
forma ele a utiliza para perpetuar sua narrativa de herói nacional, patriota, conservador,
religioso, bem como produz e o antagonismo de forma a dominar seus adversários e garantir a
perpetuação de sua ideologia.

Tendo como princípio a narratologia, proposta por Gonzaga Motta (2005), é necessário
compreender e analisar os episódios que se sucedem para desvelar a estória. Para tanto, serão
observados e analisados a linguagem e o conjunto léxico das narrativas, seu ambiente ético,
entendido como o meio social em que se inserem se produzem os tuítes bem como a estória
por si só.

2. ASCENSÃO DE BOLSONARO

Jair Bolsonaro é o expoente máximo da vertente reacionária. Capitão do Exército


reformado, deputado federal por sete mandatos seguidos, entre 1990 e 2018, Bolsonaro possuía
pouca visibilidade na arena política nacional. Congressista de poucos projetos, ele concentrava
pequena atenção em noticiários, senão por discursos esporádicos extremados, saudosos da
ditadura militar e críticas à segurança pública contemporânea.

53
Seu discurso conservador evoluiu ao longo do tempo. Durante seus primeiros anos como
deputado, muitas foram suas declarações em que glorificavam violência, tortura e preconceitos
diversos.

Em entrevista12 à TV Bandeirantes, em 1999, o então congressista afirmara: "Só vai


mudar (o Brasil), infelizmente, quando nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro. E
fazendo um trabalho que o regime militar não fez, matando uns 30 mil! Começando com FHC
(Fernando Henrique Cardoso)! Não deixa ele de fora não!". Nesta mesma entrevista, elogiava
o regime ditatorial vivido no Brasil e elogiava o trabalho do Exército no período.

Ao longo das duas décadas seguintes, Bolsonaro iniciou um processo de amplificação


de seu discurso. Críticas à homossexualidade, justificações para disparidade entre salários a
homens e mulheres e manifestações racistas passaram a fazer parte mais mais frequentemente
de sua agendam, bem como sua adesão a exposições religiosas 13.

Semelhante aos casos internacionais, logo, o conservadorismo bolsonarista criou sua


base de apoio tanto nas críticas ao poder corrente no Brasil - fundamentalmente relacionado ao
Partido dos Trabalhadores (PT), dos ex-presidentes Lula e Dilma - como na busca da
idealização de uma época gloriosa da nação; neste caso, a ditadura militar.

Em reportagem publicada no portal BBC Brasil14, em 7 de dezembro de 2017, o


jornalista André Shalders analisou: “Um outro conjunto de 16 termos, com palavras como
"direitos humanos", "PT", "tortura", "Cuba", "esquerda" e "gays" tiveram um pico no mandato
passado (2011 a 2014). Aparecem 297 vezes nesse período, mas só foram citados 41 vezes no
primeiro mandato de Bolsonaro (1991-1994)”.

A mencionada aproximação à direita burguesa despertou uma ideologia econômica


inédita em Bolsonaro. Diferentemente da política econômica nacional à época do regime

12
BRAGON, Ranier. Nos anos 90, Bolsonaro defendeu novo golpe militar e guerra. Folha De S. Paulo. São
Paulo, 03 de junho de 2018. Disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/06/nos-anos-90-
bolsonaro-defendeu-novo-golpe-militar-e-guerra.shtml >. Acesso em 06 de janeiro de 2021.
13
TREZE FRASES DE BOLSONARO DE NATUREZA SEXUAL E MACHISTA. Congresso em Foco. 2019.
Disponível em <https://congressoemfoco.uol.com.br/governo/treze-frases-de-bolsonaro-de-natureza-sexual-e-
machista/ >. Acesso em 06 de janeiro de 2021.
14
SHALDERS, André. Como o discurso de Bolsonaro mudou ao longo de 27 anos na Câmara? BBC BRASIL,
2017. Disponível em < https://www.bbc.com/portuguese/brasil-42231485 >, 2017. Acesso em 07 de janeiro de
2021.

54
militar, alinhada à dos Estados Unidos ainda que capitalista, que se baseava por forte empresas,
construções e instituições estatais, o cenário neoliberal do capital contemporâneo demandava
o oposto: privatizações, contenções de gastos. Desta forma, o discurso de Bolsonaro, antes
protetivo às instituições estatais, moldou-se para se aliar ao capital. Ao fazê-lo, Bolsonaro
conseguia compreender diversos estratos sociais nacionais: a conservadora, a religiosa, a
militar e a capitalista.

Sua predileção pelo livre mercado e pelas ações econômicas ultraliberais, de


minimização da participação do Estado e crítica à intervenção estatal no mercado financeiro,
atacando medidas protetivas e garantidoras de direitos a pequenos empresários e autônomos é
acompanhada da promoção do conservadorismo e contínua persecução moral a grupos
minoritários, sob a justificativa de estes demandarem do Estado o combate a desigualdades.

Em Anarquia, Estado e Utopia (1974), Robert Nozick, figura notória da vertente


ultraliberal, elabora o conceito de Estado ultramínimo (p. 43-68) ao defender a não intervenção
estatal no âmbito social e de segurança. Para ele, o próprio mercado, dispondo “da mão
invisível”, termo utilizado por ele, autorregularia a segurança nacional por meio de incentivos
à contratação privada de segurança em uma troca mútua de interesses. Em suma, e assim
fazendo a conexão com a ideologia bolsonarista, não cabe ao Estado interferir nas esferas
privadas dos indivíduos, obrigando-os a determinados deveres, uma vez que isto constrangê-
los-ia a ceder seus direitos a outros sujeitos sem uma troca equilibrada.

Mantendo seu discurso saudoso aos tempos gloriosos, em que o Brasil era governado
por militares (1964-1985), recorrendo à luta contra os desvios morais conservadores e se
aliando ao capital, Bolsonaro conseguiu se alinhar tanto com os representantes da política
internacional, como conseguiu aglutinar diferentes indignações em sua figura. As formas com
que Bolsonaro recorre a períodos distantes e personalíssimos não é única, tampouco inovadora.
Piovezani (2009, p.218) sintetiza: “As novas formas do discurso político manifestam-se na
memória de curta duração, nas breves formulações sincréticas, com seus efeitos dialógicos e
desierarquizantes, nas modalidades enunciativas personalizadas e nos ritmos de sua
circulação”.

Tendo essas referências como pano de fundo, é necessário entender, pois, o conceito de
“dominação”. A começar por Weber, a dominação é definida como “a probabilidade de
encontrar obediência a uma ordem de determinado conteúdo, entre determinadas pessoas

55
indicáveis” (1922, p.33, apud MIGUEL, 2018, p.17). Para aprofundar um pouco mais e
atravessar a neblina do conceito abrangente de Weber, há questões institucionais e
institucionalizadas que podem legitimar e exercer a dominação. Para tanto, no âmbito
democrático, o conceito de Weber ajudaria a justificar uma dominação do líder carismático,
portanto, produzindo e reproduzindo costumes, ações e idealizações características de
dominação.

Seguindo um pouco mais, a forma menos errática de definir dominação, adotada para
esta obra, envolve justamente condições estruturais e institucionais da sociedade. Iris Marion
Young, em Justice and the Politics of Difference, entende dominação como:

Consiste em condições institucionais que inibem ou previnem as pessoas de participar


na determinação de suas ações ou das condições de suas ações. As pessoas vivem
dentro de estruturas de dominação se outras pessoas ou outros grupos podem
determinar, sem reciprocidade, as condições de sua ação, seja diretamente, seja em
virtude das consequências estruturais de suas ações. (YOUNG, 1990 apud MIGUEL,
2018, p. 37)

Esta conceituação compreende tanto a visão Weberiana de desequilíbrio entre os polos


dominante e dominado quanto da necessidade de um sujeito agir sobre outro. Em sintonia com
a percepção weberiana, Pierre Bourdieu constituiu o conceito de dominação simbólica como o
poder de uma crença nas senhas que podem ocultar uma ausência de autoridade ou saber, ou
podem apresentar-se como uma forma de força que não precisa ser utilizada, mas se reconhece
por meio das formas que se transformam em um repertório simbólico. Para o autor:
O efeito da dominação simbólica (seja ela de etnia, de gênero, de cultura, de língua
etc.) se exerce não na lógica pura das consciências cognoscentes, mas através de
esquemas de percepções, de avaliação e de ação que são constitutivos dos habitus e
que fundamentam, aquém das decisões da consciência e dos controles da vontade,
uma relação de conhecimento profundamente obscura a ela mesma. (BOURDIEU,
2002, p. 46)

Luís Felipe Miguel sintetiza o conceito como “o exercício assimétrico da autoridade


ensejado pelo controle de recursos materiais e simbólicos, compelindo aqueles que estão
submetidos a comportamentos que beneficiam os que detêm poder”. (2018, p. 15)

Trocando em miúdos, há de se perceber uma dualidade de polos opostos, o que domina


e o que é dominado. Havendo desequilíbrio entre um dos pólos, seja por poder político ou
econômico, ou mesmo por influência, as decisões do sujeito desfavorável nesta balança podem

56
se tornar constrangidas ou incentivadas; voto, decisões e anseios pessoais e profissionais
podem estar inclinados a eleger determinado candidato por uma série de fatores que não os
naturais ao eleitor senão uma projeção das expectativas criadas pela classe dominante.

3. COLETA DE DADOS

Para a realização deste trabalho, foram coletados todos os tuítes produzidos na conta por meio
da plataforma Twython, que os armazena ainda que posteriormente apagados, tanto pelo
usuário quanto pelo Twitter por possível violação dos termos de uso. Ao todo, foram coletados
1183 tuítes da conta @JairBolsonaro, de propriedade do presidente Jair Bolsonaro entre os dias
primeiro de janeiro a 25 de maio de 2019. Dentre eles, (66,16%) foram publicados pela própria
conta do presidente, enquanto 401 (33,84%) foram retuítes.

Quanto ao conteúdo, o Presidente publicou 327 (27,64%) propagandas institucionais,


sejam elas por meio de vídeo, texto, imagens ou reportagens em mídias, tais como jornal e
televisão, cujo objetivo é divulgar tanto o dia-a-dia presidencial quanto promover ações e dados
do Governo. Além destas, Bolsonaro interagiu com outros usuários da plataforma em 163
(13,78%) publicações. As 693 publicações restantes (58.58%) são pronunciamentos do
Presidente feitos tanto pelo próprio Twitter ou outras redes sociais, como por veículos oficiais
e mídias tradicionais. Seu conteúdo é, em suma, de caráter pessoal de Jair Bolsonaro.

Dentre os pronunciamentos, temos os seguintes assuntos:

● Ataques e críticas (181 publicações);


● Declarações caráter econômico (177 publicações);
● Segurança pública e valores militares (104 publicações);
● Política Internacional (79 publicações);
● Promoção de mídias e jornalistas favoráveis ao Governo (61 publicações);
● Outras publicações (91 publicações).

Gráfico 1: Categorização de pronunciamentos de acordo com seu conteúdo

57
Fonte: elaboração própria (2021)

3. DISCUSSÃO

3.1 Propagandas Institucionais

As Propagandas Institucionais, postagens mais corriqueiras de Bolsonaro, são


compostas primordialmente por conteúdos referentes ao dia-a-dia do Presidente. Imagens com
o número de seguidores e curtidas nas redes sociais de Jair Bolsonaro, fotografias da equipe
presidencial embarcando ou desembarcando em alguma viagem, textos curtos e genéricos e
emojis – figurinhas virtuais, como a bandeira do Brasil, rostos e gestos. Além destes, dados e
números positivos - na visão de Bolsonaro – de seu Governo também são compartilhados.

Imagens 1 e 2 - Tuítes do Presidente Jair Bolsonaro na categoria Propaganda Institucional

58
Fonte: Twitter

Há também a divulgação de dados e notícias produzidas pelas próprias agências e


equipes do Presidente e da Presidência. Esta subcategoria é de extrema importância para
perceber como Jair Bolsonaro utiliza do dinamismo desta ferramenta para tratar informações
de forma a construir narrativas a seu favor.

No tuíte abaixo, Bolsonaro divulga uma campanha de “inserção social indígena”


chamada Projeto Tribos, seguida de um vídeo promocional sobre o projeto:

Imagem 3 – Propaganda de Bolsonaro ao Projeto Tribos

59
Fonte: Twitter

Elaborado pela companhia privada cafeeira Três Corações, o Projeto Tribos conta com
parceria de entidades públicas do estado de Rondônia, da Embrapa e da Funai. Conforme o
texto promocional15, o projeto visa qualificar o café produzido por comunidades indígenas no
Estado de Rondônia. Antes de tomar posse, Bolsonaro declarou que retiraria todas as
demarcações de terras para indígenas. Segundo ele, as terras indígenas são pouco produtivas e
os índios16 em reservas e áreas demarcadas são como animais em zoológico. Esta narrativa é
sustentada em seu tuíte. De acordo com essa visão, os indígenas devem ser “socializados”, ou
seja, introduzidos e adequados à sociedade branca, capitalista brasileira e, para tanto, o
incentivo à agricultura extensiva é necessário. O presidente segue, alegando que as
demarcações funcionariam como jaulas, grades que impedem a saída dos indígenas de suas
terras.

15
Disponível em <https://projetotribos.com.br/sobre/ >. Acesso em: 6 de jan. de 2021.
16
Índios em reservas são como animais em zoológicos, diz Bolsonaro. G1. Brasília e Vale do Paraíba, 2018.
Disponível em <https://g1.globo.com/sp/vale-do-paraiba-regiao/noticia/2018/11/30/indios-em-reservas-sao-
como-animais-em-zoologicos-diz-bolsonaro.ghtml >. Acesso em: 6 de jan. de 2021.

60
No primeiro dia de seu governo, Bolsonaro passou a incumbência de demarcações de
terras para o Ministério da Agricultura17. A decisão reforça seu discurso, uma vez que os
interesses da agricultura e dos indígenas são contraditórios. A agricultura extensiva visa
aumentar suas terras, para gerar maiores produções e, portanto, maior lucro, enquanto os
indígenas consideram suas terras sagradas e não abdicam de sua posse 18.

A escolha léxica em seu discurso também chama atenção. O termo “Chega”, como
cessação de atos anteriores, com inferência conotativa de que o que havia antes de seu governo
era reprovável.

Este método de deturpação de fatos e contradição entre seus dizeres e suas ações é visto
corriqueiramente, como veremos ao longo do texto. É notório que, mesmo em propagandas de
atividades que a rigor seriam positivos e inclusivos, caso houvesse apenas o vídeo promocional
do projeto, Bolsonaro exerce seu discurso agressivo tanto a opositores quanto a minorias, com
escolhas léxicas e ideológicas fortes e nítidas.

3.2 Pronunciamentos

3.2.1 Ataques e críticas

A categoria ataques e críticas contém o maior número dentre os pronunciamentos,


totalizando 15,3% das publicações totais. O caráter agressivo de sua linguagem está presente
em tuítes de todas os grupos. Entretanto, neste tópico específico, o assunto principal é o ataque
e a crítica direta e ativa a opositores à sua narrativa.

A ofensividade de Bolsonaro contra opositores faz parte da estratégia de criação


de inimigos da nação, agentes que se apoderaram do poder público para, deliberadamente, agir
contra o cidadão. Assim como Collor utilizou os Marajás como bodes expiatórios (Sargentini,
2017), Bolsonaro incita a revolta contra a esquerda, representada pelo Partido dos
Trabalhadores e pela Venezuela. Esta postura eleva sua imagem a salvador da moralidade e
do futuro da nação, a ponto de ele usar de artifícios excepcionais, se necessário, para livrar-se

17
VALENTE, Rubens. Bolsonaro retira da Funai a demarcação de terras indígenas. Folha de São Paulo. Brasília,
2019. Disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/01/bolsonaro-retira-da-funai-a-demarcacao-
de-terras-indigenas.shtml >. Acesso em 06 de janeiro de 2021.
18
BRAYNER, Thais Nogueira. É terra indígena porque é sagrada: Santuário dos Pajés – Brasília/DF.
Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Departamento de Antropologia, Universidade de Brasília. Brasília,
2013.

61
do inimigo. A construção da narrativa contra a esquerda se expande ao deliberado ataque contra
seus adeptos de forma que o Presidente busca inibir presença e ações desta população.

As publicações deste gênero estão divididas em dois subgrupos: os ataques a opositores,


ou a ideologias opostas à sua – a que ele denomina simplesmente como “ideologia”,
determinando que seu pensamento é livre de posicionamentos, senão apenas o certo; e ataques
a jornalistas e mídias que produzem material controverso ao crivo do presidente. Ao todo,
foram 111 ataques e críticas às ideologias contrárias à de Bolsonaro, enquanto ataques a
jornalistas e mídias somam 70 publicações.

3.2.1.1 Críticas a opositores

As críticas a opositores se referem, fundamentalmente, contra ideologias de esquerda,


ou que possam ser compreendidas nela, sendo elas os partidos políticos PT e PSOL,
movimentos sociais, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e
sindicatos, o governo venezuelano de Nicolás Maduro, o ativista italiano procurado pela
Interpol Cesare Battisti, deportado do Brasil após anos de asilo no país, e professores e
institutos de educação que possam lecionar assuntos relacionados à esquerda.

O termo mais utilizado refere-se à sigla “PT”, mencionada 15 vezes. Venezuela foi
citada outras dezesseis vezes. Educação e professores, juntos, totalizam oito publicações.
Socialismo (cinco) ditador e ditadura (cinco, somados) e Cuba (três) fecham a lista com
principais termos utilizados por Bolsonaro.

O tuíte a seguir apresenta um ataque de Bolsonaro a seu adversário derrotado nas


eleições, Fernando Haddad.

Imagem 4: Ataque de Bolsonaro a Fernando Haddad

62
Fonte: Twitter

O uso léxico apresenta extensiva ofensividade e enseja o desenvolvimento do


imaginário de inimigo. O uso de “fantoche” implica a falta de senso crítico, individualidade e
liberdade intelectual de Fernando Haddad. Ao conectá-lo a Lula, Bolsonaro utiliza o termo
“presidiário” e, deste modo, intensifica a generalização e o descrédito do ideológico petista,
relacionando-o ao corrupto.

As ofensas seguem intensas no discurso com a denominação de Haddad como


“marmita”, apelido que conota Haddad como um instrumento usado por Lula, ou ainda, uma
refeição. Bolsonaro prossegue: “como todo petista”. A generalização, neste caso, é explícita.
Segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o Partido dos Trabalhadores conta com 1,5
milhão de filiados e Fernando Haddad recebeu mais de 47 milhões de votos nas eleições
presidenciais.

A batalha entre o “nós” de Bolsonaro e o “eles” segue durante toda sua linha de
publicações. Em 11 de março de 2019, o presidente escreveu: “e que impeçamos para sempre
que o mal que esteve tão perto de destruir nosso país volte com força. Defeitos, todos temos,
mas a maldade formada para destruir é nata e organizada apenas por um lado”19. A valoração
dada por ele aos governos anteriores como “mal”, sustenta o imaginário de que seus adversários
ideológicos representam, deliberadamente, ameaças à nação.

19
BOLSONARO, Jair. “e que impeçamos para sempre que o mal que esteve tão perto de destruir nosso país volte
com força. Defeitos, todos temos, mas a maldade formada para destruir é nata e organizada apenas por um lado.
Vamos trabalhar juntos para resgatar nosso amado Brasil!” Brasília, 11 de março de 2019. Twitter:
@jairbolsonaro. Disponível em: <https://twitter.com/jairbolsonaro/status/1105065879555985409> . Acesso em:
6 de jan. de 2021.

63
Por fim, os ataques a professores e à academia também são notados. Ao todo, foram 12
publicações em que o alvo são os educadores sob a justificativa de que o ambiente acadêmico
no país “vem sendo massacrado pela ideologia de esquerda” 20. Após a posse do Ministro da
Educação, Abraham Weintraub, esta agenda se intensificou. Ao assumir o posto, Weintraub
realizou cortes na verba destinada a universidades federais sob alegação de “balbúrdia” em
seus campi. Após a decisão tomada, nove das 12 publicações foram feitas no período de uma
semana, referente aos dias 10 e 17 de maio, data que coincidente com uma série de protestos
no país contra os cortes na educação.

3.2.1.2 Ataques a Jornalistas

Outro alvo de Bolsonaro, cujo foco é, novamente, desacreditar e projetar a noção de


inimigo da pátria, é o jornalismo. Munido do mesmo arsenal dialético, o Presidente ataca
jornalistas e grupos jornalísticos que publicam ou discutem pautas interpretadas como negativa
para o governo. Os insultos, rivalidade e divisão prosseguem aqui como forma de constranger
o jornalista, desacreditar informações trazidas ao ponto de incitar a população a refutar
qualquer notícia contrária ao Presidente, como segue a imagem a seguir:

Imagem 5: Bolsonaro ataca jornalista

20
Universidades são 'massacradas por ideologia de esquerda', diz Bolsonaro. Correio Braziliense, Brasília, 11 de
março de 2019. Disponível em:
<https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2019/03/11/interna_politica,742130/ambiente-
academico-tem-sido-massacrado-por-ideologia-de-esquerda.shtml >. Acesso em: 6 de jan. de 2021.

64
Fonte: Twitter

Na publicação acima, Guga Noblat, jornalista, critica o posicionamento de Bolsonaro


acerca de sua crítica a artistas que captavam recursos através da Lei Rouanet, que visava
fomentar a cultura do país. Na crítica, Noblat aborda a forma do Presidente de ameaçar
jornalistas e artistas que se posicionem criticamente ao governo. A resposta de Bolsonaro é
precisa: “Errado, cérebro mofado!”. Nesta resposta, o Presidente endossa e verifica a
autenticidade da crítica de Noblat ao rebater, com agressividade e xingamento, Bolsonaro não
discute tampouco conversa, ele apenas ataca. A forma de calar a imprensa funciona de maneira
a coibir produções de informações por parte do jornalismo contra seu governo. Entendida como
quarto poder, cabe à imprensa o papel de tornar públicas informações de caráter relevante à
população.

Outra forma que Bolsonaro utiliza para manipular a realidade jornalística é a de


classificar como falsas as notícias que denunciem atividades, falas e ações suas mal recebidas
pela população. O fenômeno das “fake news” é reconhecido na modernidade tecnológica pela
produção e compartilhamento de notícias falsas a fim de criar certa realidade, ideia ou ponto
de vista. Sem discussões e provas, Bolsonaro utilizou 14 vezes o termo nas publicações de
Twitter, comentando em portais de notícias.

Imagem 6: Bolsonaro contesta publicação jornalística

Fonte: Twitter

65
Um dos motivos da adoção do Twitter por Bolsonaro é entendida na imagem acima pela
ausência de discussões na rede. Limitando seus caracteres, esta ferramenta enseja o uso de
poucas palavras. Desta forma, Bolsonaro contesta notícias de modo a não apresentar provas,
tampouco iniciar uma discussão

3.2.2 Promoção de Mídias

De forma complementar à desqualificação de mídias, jornalistas e notícias contrárias à


opinião e à imagem do Presidente, Bolsonaro promove mídias cujo conteúdo opinativo ou
jornalístico seja favorável a si, designadas como “chapa-branca”. Assim como a
desqualificação de jornalistas e mídias, a recomendação de outros contribui para exercer a
divisão entre os cidadãos brasileiros.

Estes agentes servem como assessoria de imprensa para o Presidente, fabricadas sob a
alcunha de apartidárias, enquanto a grande imprensa se caracteriza como

“ideológica”, por este grupo. Os grupos destacados neste por Bolsonaro são @odiodobem, com
oito referências, @lsentoes com cinco, o jornalista Alexandre Garcia, com cinco,
@republica_ctba, com cinco e Rede Record de Televisão.

De forma própria, ou por meio de retuítes, Bolsonaro sugere a seus seguidores em que
plataformas, veículos ou mídias obter informações.

Imagem 7: Jair Bolsonaro promove mídia “chapa-branca”

66
Fonte: Twitter

Alexandre Garcia, jornalista referido por Bolsonaro, foi porta-voz do presidente João
Figueiredo, último da ditadura militar. Em 2019, segue comentando o cenário político nacional
e internacional por meio do Twitter e do Youtube e, assim como na ditadura, mantém sua
postura conservadora. Segundo o Presidente, entretanto, o jornalista não possui ideologia, ao
contrário do restante da mídia.

3.2.3 Segurança e Valores Militares

Os anos de parlamentar do agora Presidente foram marcados por discursos em que


apresenta um combate entre o “cidadão de bem”21, juntamente com a polícia e as Forças
Armadas contra o bandido, o delinquente. Desta forma, aproxima seu eleitor a seus ideais
enquanto marginaliza seus adversários e incita sua eliminação.

Seus projetos e engajamentos quanto à segurança visavam a redução da maioridade


penal, endurecimento de penas, combate ao uso e tráfico de drogas e inimigos da pátria,
valendo-se inclusive de elogios a torturadores e à tortura e à violência coercitiva do Estado.

21
LIMA, Isabelly Cristiany Chaves, LIMA, Elizabeth Christina de Andrade. A Retórica do “cidadão de bem”,
no discurso de Jair Bolsonaro-um presidenciável em construção. Revista Periódicus – UFBA. 1.12: 404-428.
Salvador, 2019.

67
Em suma, Bolsonaro aproveitou de uma lacuna crítica na sociedade, a violência urbana,
para construir a base para que o cidadão não se enxergasse como criminoso e, ainda,
reconhecesse como distante o vilão. A partir desta dualidade, propôs a solução para vencer a
eleição. Alegando liberdade de expressão, Bolsonaro usou – e usa, como visto - de preconceitos
para delimitar o vilão, o inimigo. Ora é o petista, ora é o imigrante, ora é o homossexual, ora o
ateu.

O presidente compartilhou 58 tuítes exaltando o militarismo e militares, além de 25


projetos de segurança pública, como propagandas sobre liberação de posse de armas para civis,
somando oito menções, e a Lei Anticrime, totalizando sete.

Novamente, o uso de palavras ofensivas, que conotam um imaginário de má índole do


outro e seu necessário combate e eliminação está presente. Os termos “terroristas”,
“delinquentes”, “meliantes”, “criminoso”, “marginais” foram utilizados pelo Presidente. Desta
forma, Bolsonaro reforça o imaginário de que o criminoso é um inimigo por má-índole é a
sugestão de que as pessoas que sofrem algum tipo de repressão, condenação, ou ainda
dominação seja vitimista, ou seja, que o indivíduo utilize seus direitos de forma exacerbada
para ludibriar a lei, a justiça e, portanto, a nação.

Imagem 8: Bolsonaro critica criminosos

68
Fonte: Twitter

Outros 21 compartilhamentos tratam especificamente da narrativa do atentado sofrido


por Bolsonaro. No dia 6 de setembro de 2018, Bolsonaro participava de um ato nas ruas de Juiz
de Fora quando foi esfaqueado por Adélio Bispo. Adélio foi considerado inimputável por
doença mental e a Polícia Federal concluiu que ele agiu sozinho no momento da facada.

A narrativa do presidente sobre o atentado funciona tanto como pretexto para endurecer
as políticas de segurança pública como para atacar à esquerda. Isso porque Adélio foi filiado
ao PSOL de 2007 a 201422, partido que concentra grandes esforços na defesa dos direitos
humanos. Mesmo após as conclusões da Polícia Federal e da Justiça, o Presidente ainda
correlaciona o partido ao autor da facada.

22
PRAZERES, Leandro. PSOL confirma que suspeito de esfaquear Bolsonaro foi filiado ao partido. UOL.
Brasília, 2019. Disponível em <https://noticias.uol.com.br/politica/eleicoes/2018/noticias/2018/09/06/psol-
confirma-que-suspeito-de-esfaquear-bolsonaro-foi-filiado-ao-partido.htm >. Acesso em 07 de janeiro de 2021.

69
Bolsonaro alcunha Adélio como “ex-integrante do PSOL” nas três vezes em que cita o
agressor. Nas 19 publicações restantes, o Presidente apela ao emocional, seja por fotografias e
vídeos em visitas ao hospital, seja por relatos do seu dia-a-dia durante a recuperação. Em
fevereiro, Bolsonaro realizou uma cirurgia para tratar das consequências do atentado. Durante
as duas semanas entre a operação, foram 19 publicações somente sobre o assunto. Os recursos
visuais estão presentes em 16 delas.

Imagens 9 e 10: Bolsonaro se recuperando no hospital

Fonte: Twitter

A imagem 9 apresenta Bolsonaro no hospital, com rosto abatido e tristonho ao passo


que a legenda mantém a retórica do atentado efetuado por um “ex-integrante do PSOL”. A
narrativa de vítima da esquerda e do inimigo se mantém. A imagem 10 apresenta o presidente
trabalhando enquanto está em recuperação no hospital. A legenda “O Brasil precisa de nosso

70
total empenho” eleva o presidente à função de salvador da pátria. Bolsonaro utiliza a narrativa
do atentado a seu favor. Compartilha momentos íntimos, em um hospital para passar suas
mensagens e ideologias. Debilitado, constrange e generaliza o adversário político como
inimigo.

3.2.4 Economia

Durante seus anos como deputado federal, a política econômica de Bolsonaro seguiu o
protecionismo nacionalista das instituições brasileiras. O ex-capitão enxergava nas empresas
estatais uma forma de manter a soberania nacional frente ao mercado internacional. Em
entrevista em 2014, o à época parlamentar justificava sua fala anos antes sobre fuzilar o então
presidente Fernando Henrique Cardoso exatamente por ele privatizar diversas empresas
estatais23.

Ao longo dos últimos anos, a escalada da direita contra os projetos do PT e a favor de


políticas neoliberais atraiu o projeto de Bolsonaro, de forma a unir seu conservadorismo ao
neoliberalismo24. Como aborda Pinto (2019), em plenário, ainda como deputado, diversas
foram as manifestações contrárias ao “socialismo” em que o Brasil se encontrava, ainda que as
políticas econômicas petistas diferissem desta vertente25.

As contradições de Bolsonaro iniciam desde sua campanha à Presidência. Após a vitória


de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos, o então deputado alinhou-se quase
automaticamente ao país26, inclusive prestando continência à bandeira americana27. Tecendo

23
BOLSONARO, Carlos. Jair Bolsonaro (Programa do Jô) - PARTE 3. 2007. (9min21s) Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=HfPDOB7MpxY&ab_channel=CarlosBolsonaro>. Acesso em 06 de
janeiro de 2021.
24
PINTO, Eduardo Costa. Bolsonaro e os Quartéis: a loucura com método. Texto para Discussão do IE/UFRJ,
nº 06. Rio de Janeiro, 2019.
25
MÉLO, Jéssica Maria de Souza. Fim de ciclo de desenvolvimento no Brasil: Perda de hegemonia dos
governos Lula-Dilma e inflexão Neoliberal frente aos direitos do trabalho. Dissertação (Mestrado em Serviço
Social) – Departamento de Serviço Social, Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2016.
26
SARAIVA, Miriam Gomes; SILVA, Álvaro Vicente Costa. Ideologia e pragmatismo na política externa de
Jair Bolsonaro. Relações Internacionais (R: I), n. 64, p. 117-137. Rio de Janeiro, 2019.
27
FELITTE, Almir. Bolsonaro bate continência à bandeira dos EUA em sinal de subserviência. 2017.
Disponível em <https://www.pragmatismopolitico.com.br/2017/10/bolsonaro-bate-continencia-a-bandeira-dos-
eua-subserviencia.html >. Acesso em 06 de janeiro de 2021.

71
elogios à política conservadora e xenófoba de Trump, Bolsonaro se entregava ao
neoliberalismo.

A escolha por Paulo Guedes como seu guru econômico foi bem recebida tanto pelo
mercado como para seus eleitores. Durante sua campanha, Bolsonaro alegou não entender de
economia e, quando perguntado sobre o tema, sugeria que interrogassem a Guedes. Sua entrega
ao projeto neoliberal era total.

Após eleito, o Governo seguiu as promessas de campanha e iniciou o desmonte estatal.


Ao todo, foram 178 publicações no Twitter sobre economia, seguindo a cartilha neoliberal,
anunciando concessões de rodovias, aeroportos e ferrovias, e leilões de portos e abertura,
inclusive, para empresas de produção de armas de fogo. Sua maior bandeira era o combate à
corrupção. Segundo a narrativa do Presidente, o estatismo nos governos do PT foi uma forma
de obter lucros pessoais em que não há projetos sociais senão ideológicos para produção de
massas de manobra28.

Os tuítes sobre economia de Bolsonaro são feitos de três formas: vídeos do ministro
Paulo Guedes explicando projetos; imagens contendo textos explicativos e tuítes escritos pelo
presidente. Nestes, as explicações são vagas e se relacionam tanto à corrupção dos governos
anteriores quanto à necessidade das privatizações e reformas (trabalhistas, da previdência e
fiscais).

Imagem 11: Bolsonaro comenta sobre economia

Fonte: Twitter

28
ALMEIDA, Ronaldo de. Bolsonaro presidente: conservadorismo, evangelismo e a crise brasileira. Novos
estudos CEBRAP, v. 38, n. 1, p. 185-213. São Paulo, 2019.

72
3.2.5 Política Internacional

As publicações de política internacional de Bolsonaro são diferentemente do histórico


de relações exteriores do Brasil, extremados. Apesar de o Brasil ser reconhecido
internacionalmente como uma nação que preza pela neutralidade e recepção de imigrantes, o
Presidente adota o alinhamento subordinado aos Estados Unidos e a Israel.

O governo estadunidense de Donald Trump foca sua política externa em acabar com a
imigração ilegal, fiscalização de migrantes no país e batalhas econômicas, especialmente com
megablocos como a União Europeia e com a China. O discurso contra a imigração também se
faz presente em Bolsonaro.

Imagem 12: Bolsonaro comenta imigração

Fonte: Twitter

Escrito no dia 9 de janeiro, nono dia após sua posse, Bolsonaro manifesta que fiscalizará
as imigrações, mesmo que não tenha havido, em seu governo que há pouco iniciara, motivos
para tal alarme. O contexto sul-americano contemporâneo indica um forte movimento
emigratório da população venezuelana por todo o continente. Pela proximidade física, o Brasil
é um dos destinos preferidos.

73
O temor xenofóbico pelos imigrantes é antigo em Bolsonaro. Em 2015, o então
deputado se referiu aos imigrantes como “a escória da humanidade”29, frente à recepção
brasileira aos refugiados sírios, haitianos e africanos.

5. 2.6 Outros Pronunciamentos

Bolsonaro também utiliza de formas populistas para se aproximar de seu público, se


comunicando diretamente com o povo e rejeitar diálogos e aproximações com os outros
poderes e intuições. Opostamente a Lula, que suavizou sua fala, perdeu peso, se vestiu com
ternos e trajes formais para se aproximar do eleitor à direita30, o Presidente opta por uma
estética oposta: simples, caseira inclusive para se aproximar do eleitor popular e introduzir
reformas trabalhistas e previdenciárias neoliberais para o proletariado.

Sua estratégia não é nova, entretanto. Semelhante a Jânio Quadros, que com estratégias
populares, como o uso da vassoura em suas propagandas políticas e a campanha do “tostão
contra o milhão”, Bolsonaro não só utiliza roupas comuns, casuais, como inclusive faz
promoção de si por usar tais elementos31.

Imagem 13: Bolsonaro e a estética simples

29
AZEVEDO, Rita. Setembro de 2015: Bolsonaro chama refugiados de “escória do mundo”. EXAME, 2015.
Disponível em:<https://exame.com/brasil/bolsonaro-chama-refugiados-de-escoria-do-mundo>. Acesso em: 6 de
janeiro de 2021.
30
-SARGENTINI, V. Mutações do discurso político: segmentação, docilização e estetização. In:
SARGENTINI, V. (Org.). Mutações do discurso político no Brasil: espetáculo, poder e tecnologias de
comunicação. Campinas, Mercado de Letras, 2017, p. 85-106.
31
QUELER, Jefferson Jose. Entre o mito e a propaganda politica: Janio Quadros e sua imagem publica
(1959-1961). Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
Campinas, 2008. Disponível em: <http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/281044>. Acesso em: 07
de janeiro de 2021.

74
Fonte: Twitter

As imagens acima representam tal estética. Na primeira imagem, Bolsonaro, sem


legenda, compartilha uma fotografia de um portal de notícias em que utiliza uma camisa de
futebol falsificada, de valor monetário irrisório. O mesmo artifício é visto na segunda, quando
o Presidente assinou seu termo de posse com uma caneta nacional comum, sem adornos
tampouco especialidades, a custo de 90 centavos. O ato se torna evidentemente político uma
vez que o próprio presidente as compartilha em sua rede social, a fim de garantir maior
visualização de seu ato popular. Ao se incluir como membro do povo, Bolsonaro mantém seu
status de presidente, porém se aproxima dos seus dominados para garantir ao dominado a ideia
de se assemelhar ao dominante.

Como outra forma de se aproximar do eleitor, Bolsonaro, por vezes, responde a usuários
que mandam mensagem a ele, bem como produz memes. Com linguagem jovem, cheia de
emojis - figurinhas virtuais – e gírias, o Presidente estabelece um laço de interação entre seus
seguidores.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

75
As narrativas de Jair Bolsonaro, criadas ainda como deputado federal, se mantém
enquanto presidente. Sua imagem de “Mito”, Messias, patriota, cristão, defensor dos direitos
da propriedade, adversário da imoralidade, da esquerda, dos comunistas e dos valores que
regem o cidadão de bem são plenamente utilizados mesmo quando este agora governa toda a
nação, sejam seus governados apoiadores ou detratores.

A estratégia é governar de forma hegemônica, calando adversários e a imprensa e


ensejar comportamentos e valores que lhe convenham. A hegemonia, de acordo com Gramsci
(apud Miguel, 2018, p. 72), visa “a obtenção de consentimento ativo dos dominados”. Ativo
porque produz e reforça valores através de métodos de recompensa e punição. Deste modo,
Bolsonaro privilegia aqueles cujas atitudes sejam similares às que ele propaga e pune, ameaça,
difama os que agem diferentemente.

Segundo Miguel, à luz das reflexões de Bourdieu, o dominado passa a enxergar sua
realidade conforme as lentes dadas, da forma descrita acima, pelo dominador. Aqueles buscam
o reconhecimento e a aprovação destes ou, apenas, buscam não ser punidos. Outro ponto tocado
nesta passagem é o fato de os valores propagados pelos dominantes e classes de elite não serem,
necessariamente, os valores adotados por eles. Ou seja, aquilo que é dito, mostrado e
recompensado não é, necessariamente, o comportamento dos dominantes.

Nos tuítes abordados nesta obra, é possível enxergar este fenômeno. Bolsonaro enseja
o comportamento dos indígenas para se adequar ao branco, propõe regras e limitações aos
imigrantes ou mesmo declama patriotismo enquanto mostra-se subserviente aos Estados
Unidos.

Sua política em criar inimigos e manter animosidades tem por objetivo fidelizar sua
base eleitoral, assim como consolidar a si e a sua família no cenário político, mantendo um
filho como Senador da República, um como Deputado Federal e um como Vereador do Rio de
Janeiro.

A estética popular e o uso léxico agressivo e nada rebuscado buscam fazê-lo um


populista, que não dialoga com as instituições, segundo ele, corruptas e corruptíveis e que,
portanto, roga a si o poder autocrático da nação.

Suas ameaças a jornalistas, educadores e instituições de ensino também vislumbram o


consenso dominante quanto a sua ideologia una e contra as diversas opiniões opositoras e

76
garante que ele molde a realidade à sua percepção. Desta forma, ele cala o contraditório e
garante sua narração como a única possível, mantendo seu objetivo de manter a nação dividida
para que as minorias se curvem às maiorias32, como dito enquanto era deputado.

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Wolf, M. Teorias da Comunicação. Lisboa, Editorial Presença, 1995.

WRIGHT, Erik Olin.Classes. Londres, Verso, 1985.

78
A utilização de imagens do presidente da República nas postagens
da SECOM de fim de ano

VINÍCIUS PEREIRA DOS SANTOS


Universidade Federal de Juiz de Fora
E-mail:vinicius.santos@estudante.ufjf.br

1.INTRODUÇÃO

A interface entre mídia e política suscita uma série de debates e tem sido bastante
explorada a partir dos estudos direcionados para as estratégias de campanha, da propaganda
política e também da utilização das mesmas estratégias para campanha permanente, que ocorre
fora do período eleitoral. A utilização das instituições públicas para promover personalidades
que estão no poder é feita de forma velada, através das ações e campanhas dos órgãos públicos.
Com as redes sociais e os processos cada vez mais avançados de midiatização, as instituições
públicas tem a necessidade de alimentar suas páginas com conteúdo, o que também pode ser
considerado como propaganda já que o objetivo é informar e atingir o maior número de pessoas
da mesma forma como são feitas em veículos tradicionais como rádio e televisão.

Hoje as redes sociais assumem papel cada vez mais importante na vida e na comunicação
em sociedade. A acessibilidade depende apenas de um smartphone e um ponto de acesso à
internet, wifi ou dados móveis fornecidos pelas operadoras de telecomunicações. A facilidade
de acesso unida a velocidade de tráfego de informações, que a cada dia aumenta mais devido
aos avanços tecnológicos, faz com que a internet e mais especificamente as redes sociais sejam
a principal fonte de informações de grande parte da população do país. Por mais que existam
localizações que o acesso ainda é muito difícil ou não há nenhum acesso, é questão de tempo
até que a cobertura de internet esteja em todos os lugares do planeta.

A pandemia do novo coronavírus trouxe ainda mais importância para o uso das redes,
com mais pessoas em casa, mais comunicação, mais compras e mais trabalho foram feitos pela
internet, obrigando até pequenas empresas que não tinham presença nas redes a providenciá-
la. A importância de se posicionar frente ao receptor nas redes, tanto para empresas, políticos

79
ou formadores de opinião, quanto mais lugares suas imagens aparecem, mais pessoas verão,
seja na própria página seja em outras páginas.

2. INTERFACE MÍDIA E POLÍTICA: PODER E VISIBILIDADE

Antes de entrar na discussão sobre os campos sociais, mais especificamente os campos


da mídia e da política, é importante fazer uma breve reflexão sobre o conceito de "poder", pois
as disputas que ocorrem dentro e entre estes campos perpassam pela busca incessante de poder.
Por isso é preciso refletir sobre o que se trata, as formas de disputa, as relações estruturais,
origem e sustentação, suas bases e a posse de tal, como reconhecê-lo ou medi-lo.

A palavra poder contempla muitos significados, como pode-se observar no Dicionário


de Sociologia escrito por Allan G. Johnson (1991). O conceito mais comum é de autoria de
Max Weber que entende o poder como uma capacidade de controle dentro do campo, seja sobre
outros indivíduos, acontecimentos, bens e recursos; "fazer com que aconteça aquilo que a
pessoa quer, a despeito de obstáculos, resistência ou oposição" (JOHNSON, 1991, p.177). O
poder pode ser utilizado de forma direta e indireta, um exemplo de uso indireto é colocado
como a "capacidade de não agir" que pode também ser entendido como a coação de outros
indivíduos.

Pierre Bourdieu (1989) considera que é um instrumento simbólico e invisível. Este


“poder simbólico” estabelece ordem e dá sentido aos campos sociais, ou seja, é uma espécie de
construtor da realidade. Porém a efetividade deste poder depende diretamente da aceitação dos
indivíduos subordinados a ele.

O poder simbólico como poder de construir o dado pela enunciação, de fazer ver e
fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação
sobre mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente
daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito específico de
mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário.
Isto significa que o poder simbólico não reside nos 'sistemas simbólicos' em forma de
uma 'illocutionary force' mas que se define numa relação determinada - e por meio
desta - entre os que exercem o poder e os que lhe estão sujeitos, quer dizer, isto é, na
própria estrutura do campo em que se produz e se reproduz crença. O que faz o poder
das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a
crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção
não é da competência das palavras (BOURDIEU, 1989, p. 14-15).

O poder simbólico é naturalizado e por isso a “violência simbólica”, resultado de


processos históricos e sociais que originaram as estruturas e formas de dominação vigentes, é

80
ocultada. Para Bourdieu (1989), a arte, a linguagem e a religião são estruturas sólidas presentes
no cotidiano das sociedades e são utilizadas como instrumentos simbólicos atuando nos campos
sociais impondo costumes e padrões.

Já Thompson (1998) conceitua poder como “a capacidade de agir para alcançar os


próprios objetivos ou interesses, a capacidade de intervir no curso dos acontecimentos e em
suas consequências” (THOMPSON, 1998, p. 21). Para o autor existem quatro formas distintas
de poder: econômico, político, coercitivo e simbólico; para ele o poder se manifesta em esferas
e circunstâncias que não necessariamente estão associadas ao Estado e à política. O poder
econômico é exercido pela posse de bens e dinheiro; o político pela capacidade de mobilização
na sociedade e dentro dos partidos; o coercitivo é exercido pela coerção, ameaça de força física,
ou bélica, para a dominação; e o poder simbólico por sua vez é responsável pela criação do
sentido sobre algo, é ele que induz crenças e descrenças atuando de forma invisível e simbólica
nos campos. O Poder coercitivo e o simbólico, para Thompson (1998), são fundamentais para
o exercício da autoridade estatal.

Com esta reflexão sobre poder, é necessário também entender a relação indivíduo e
sociedade. Na dialética entre indivíduo e sociedade é onde Bourdieu (1989) busca a
compreensão do mundo social com o conceito de campo, espaço sistematizado e conflituoso
com constante disputa de poder refletido nas posições dentro da estrutura do campo. Para ele
este poder é uma espécie de capital que pode ser material, simbólico ou social. Cada espaço
social contém um campo social específico com mecanismos e particularidades. A permanente
busca por poder, dentro dos campos, no caso o poder simbólico, é também a busca por
autoridade. As estruturas de um campo, para o autor, são como as estruturas de um jogo, os
participantes, sujeitos às regras e particularidades, jogam em busca da vitória, o que no caso é
a aquisição de poder, em busca de capital. O capital adquirido em um campo pode ou não se
transferir para outro campo, existem capitais específicos para cada campo, os conflitos
existentes nos campos são pelo reconhecimento deste capital. Bourdieu (1989) cita que o que
coloca um indivíduo ou uma instituição em uma posição de destaque perante os outros dentro
de um campo é o acúmulo de “capital simbólico”.

No campo da política e no campo da mídia, esferas de sentidos distintos em que há


interferência uma sobre a outra, há a presença do capital simbólico, então precisam ser
compreendidos para que se tenha a noção do processo a ser analisado neste trabalho. Miguel
(2003) considera a luta por capital simbólico, dentro do campo político, como a luta por capital

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político, pois em sua essência, para ele, o capital político é uma forma de capital simbólico. O
capital político, como outros capitais, é pertencente a uma minoria na sociedade. Assim essa
minoria, que detém a grande parte do capital, assim pode-se chamar, simbólico exerce violência
simbólica na grande maioria sem capital. A mídia, entende-se por um conjunto de instituições
que utilizam tecnologias específicas para realizar a comunicação humana (LIMA, 2004). Para
Lima (2004), a organização em rede, que possibilitou a transmissão de informações em âmbito
nacional, foi o ponto de partida para que a mídia se instituísse como potência política no país.
Para ele, não há política sem mídia, devido ao papel de conceituação do que é público dado à
mídia (Só é público a partir do momento que está disponível o acesso). Thompson (1998), ao
discutir mídia e contexto social, estabelece relações entre comunicação e poder “por meio da
produção e transmissão de formas simbólicas” (THOMPSON, 1998, p 24). O poder é exercido
por indivíduos em múltiplos contextos, desde o micro até o macro. Para ele, o receptor das
“formas simbólicas” realiza um processo hermenêutico onde são envolvidos em um processo
de interpretação e através deste processo os produtos comunicacionais adquirem sentido. Dessa
forma ocorre o que o autor chama de apropriação: a interpretação das formas simbólicas
incorporada à autocompreensão dos indivíduos.

É assimilar a mensagem e incorporá-la à própria vida – um processo que algumas


vezes acontece sem muito esforço, e outras vezes requer deliberada aplicação. É
adaptar a mensagem à nossa própria vida e aos contextos e circunstâncias em que
vivemos; contextos e circunstâncias que normalmente são bem diferentes daqueles
em que a mensagem foi produzida. (THOMPSON, 1998, p.45)

Para Rodrigues (2001) o corpo social de um campo pode ser entendido como um
conjunto onde se concentram os donos da legitimidade e sua característica principal é o que ele
chama de visibilidade. A forma com que cada campo se organiza e cresce está diretamente
ligada à visibilidade. Hoje, a visibilidade pode dar ou também tirar poder das pessoas. Tudo
depende da forma como ela é administrada. A internet alterou a forma como a visibilidade é
tratada, segundo Thompson (2008). A dificuldade em controlar o fluxo de conteúdo simbólico
e a independência de criação de conteúdo nos meios virtuais, são fatores da natureza da internet
mas que impactaram diretamente no processo. Ao mesmo tempo em que há maior dificuldade
em controlar a visibilidade, há também maior disputa por ela. Para Thompson (2008) o impacto
causado é parte inseparável do decurso dos eventos pois está diretamente relacionado ao que a
sociedade está consumindo e que está moldando os indivíduos através da interpretação e
absorção dos eventos.

82
3. MÍDIAS SOCIAIS: ESFERA PÚBLICA DE DISCUSSÃO POLÍTICA

Para compreender melhor as redes sociais e as mídias digitais é preciso trazer à luz o
conceito de “esfera pública”. Para Habermas (1984/1997) as esferas públicas são espaços que
pressupõem a possibilidade de debate político e construção de uma opinião pública sem
obrigatoriamente necessitar de um espaço físico para se desenvolver. Hannah Arendt (2007)
discute sobre a importância da esfera pública sobre a percepção dos indivíduos sobre a
realidade, que só pode ser constituída se está exposta para que o público tenha acesso. Arendt
(2007) considera o tempo “público” com significado de mundo “na medida do que é comum a
todos nós e diferente do lugar que nos cabe dentro dele” (ARENDT, 2007, p.62). Seguindo a
linha de raciocínio, para a autora, da percepção mútua dos espectadores sobre o que é exposto
surge a manifestação fiel da realidade e forma-se a opinião pública sobre aquilo.

Na atualidade seria equivocado pensar a esfera pública sem a incorporação das mídias
digitais. A evolução dos meios encurtou as fronteiras: “O distanciamento espacial foi
aumentado enquanto a demora temporal foi sendo virtualmente eliminada” (THOMPSON,
1998, p 36). A construção do debate de ideias nas redes sociais, porém, abre a possibilidade de
criação de bolhas informacionais, onde as vozes, que deveriam debater sobre os assuntos de
interesse público tratados nesses espaços, são consonantes. A homogeneidade da opinião
pública dentro das bolhas informacionais prejudica o debate, que tem como fundamento a
dialógica de ideias.

Essas bolhas tendem a isolar os atores dentro de grupos onde apenas alguns tipos de
informação circulam, criando uma percepção falsa de EP (onde "todos" falam) e de
opinião pública (onde a "maioria" concorda). Ao mesmo tempo, pesquisas têm
demonstrado que a mídia social é hoje um dos principais canais informativos do
grande público. (RECUERO, ZAGO & SOARES, 2017, p.02)

Com as redes sociais e os processos cada vez mais avançados tecnologicamente,


alteraram a forma de consumo midiático. Instituições públicas e empresas têm a necessidade
de alimentar suas páginas com conteúdo, o que também pode ser considerado como propaganda
já que o objetivo é se posicionar e atingir o maior número de pessoas da mesma forma como
são feitas em veículos tradicionais como rádio e televisão. A utilização massiva das redes para
se informar, comunicar ou até interagir com outros meios configura o que na comunicação se
chama convergência das mídias, “que permite modos de audiência comunitários, em vez de
individualistas” (JENKINS, 2009, p.55).

83
Esse novo modelo de consumo midiático pode ser chamado de midiatização. Para
Hjavard (2012) o processo de midiatização pode ocorrer de duas formas: direta e indireta. Para
o autor a forma direta é quando atividades que antes não eram mediadas e passam a ser
mediadas, por exemplo um jogo de xadrez que hoje pode ser jogado através de um computador
sem precisar inclusive de mais de uma pessoa, ou seja a máquina pode simular um jogador. Já
a forma indireta ocorre quando mecanismos midiáticos exercem influências na organização e
formato de algo, por exemplo em redes de fast food onde você encontra uma série de
referências a filmes ou personagens fictícios. Já Braga (2012) enxerga o processo de
midiatização como uma ruptura das fronteiras dos campos sociais estabelecidos, produzindo
circunstâncias indeterminadas e experimentações correlatas. O autor reflete sobre as
consequências significativas que o processo crescente de midiatização apresenta na sociedade
contemporânea, como o surgimento de novos circuitos informativos e comunicacionais,
responsáveis pela fragilização do poder dos campos sociais estabelecidos.

Os diferentes campos sociais, no seu trabalho de articulação com o todo social,


desenvolvem táticas e usos para as tecnologias disponíveis, moldando-as a seus
objetivos. Ao experimentarem práticas mediáticas, ao se inscreverem, para seus
objetivos interacionais próprios, em circuitos midiatizados, ao darem sentidos
específicos ao que recebem e transformam e repõem em circulação – os campos
sociais agem sobre os processos, inventam, redirecionam ou participam da
estabilização de procedimentos da midiatização. Essa processualidade
interacional inevitavelmente repercute sobre o próprio perfil do campo – por
exemplo, incidindo sobre o equilíbrio das forças que o desenham em dado momento,
abrindo possibilidades para determinadas linhas de ação e fechando outras,
exigindo diferentes tipos de ajuste ao contexto. Mas isso também requer invenção
social. (BRAGA, 2012, p. 45)

Para Fausto Neto e Valdettaro (2010) “o limiar das transformações da sociedade dos
meios para uma sociedade em vias de midiatização gera novas estruturas e dinâmicos feixes de
relações entre produtores e receptores de discursos.”(FAUSTO NETO; VALDETTARO, 2010,
p. 6). Para os autores a sociedade está se transformando seguindo lógicas comunicacionais e
tecnológicas, assim na sociedade em vias de midiatização o receptor é re-situado em outros
papéis na própria arquitetura comunicacional emergente.

As redes sociais representam a modernização do espaço público/privado, da discussão


política e da mediação da mesma, uma vez que os hábitos da sociedade vão se transformando
com a utilização das novas tecnologias e com a mudança das relações sociais. “Este poder da
tecnologia em criar seu próprio mercado de procura não pode ser desvinculado do fato de a
tecnologia ser, antes de mais nada, uma extensão de nossos corpos e de nossos sentidos
(MCLUHAN, 1969, p.88).

84
A relação entre mídia e política suscita uma série de debates e tem sido bastante
explorada a partir dos estudos direcionados para as estratégias de campanha, da propaganda
política e também da utilização das mesmas estratégias para campanha permanente, que ocorre
fora do período eleitoral. A utilização das instituições públicas para promover personalidades
que estão no poder é feita de forma velada através das ações e campanhas dos órgãos públicos.

A proposta do artigo tem como objetivo estudar a utilização da imagem do Presidente


da República, Jair Messias Bolsonaro (sem partido), nas imagens publicadas pelas páginas da
Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom) do Governo Federal nas redes sociais em
suas postagens de fim de ano (entre 24 de dezembro, período natalino, e 31 de dezembro, último
dia do ano). Vale ressaltar que a promoção pessoal, nesse caso também política, é vetada em
propagandas nos veículos públicos, como diz o primeiro parágrafo do artigo 37 da Carta
Magna:

“A publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos
deverá ter caráter educativo, informativo ou de orientação social, dela não podendo
constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de
autoridades ou servidores públicos.” (BRASIL, 1990).

Com vista nos parâmetros citados no parágrafo, o objetivo é analisar as imagens das
publicações, que contém a imagem do presidente, se elas contém caráter educativo, informativo
ou de orientação social e se o encaixe da imagem do presidente nestas postagens caracteriza ou
não promoção pessoal.

4. ESTUDO DE CASO: ANÁLISE DOS PERFIS DE JAIR E CARLOS BOLSONARO

4.1. METODOLOGIA E CORPUS DE ANÁLISE

Como metodologia tem-se:

1) Pesquisa Bibliográfica: Para a presente pesquisa, foram definidos os seguintes eixos


temáticos: (a) Interface Mídia e Política: Poder e Visibilidade; (b) Mídias sociais: esfera
pública de discussão política.

2) Pesquisa Documental e corpus de análise: A pesquisa documental será realizada no período


que abrange os meses de dezembro, janeiro e fevereiro. As publicações foram retiradas do
Facebook e Twitter da página oficial da Secom: SecomVc e @secomvc.

85
3) Análise de Conteúdo: Bardin (2011) explica que a Análise de Conteúdo é feita em três
etapas: (a) fase de pré-análise – quando se faz uma leitura do material coletado; (b) fase de
categorização – quando se definem as categorias de análise; (c) fase de inferências – é o
momento em que se articulam as evidências empíricas com os argumentos teóricos e
conceituais. Serão adotadas como categorias de análise quanto ao conteúdo postado: (1) caráter
educativo (2) caráter informativo; (3) caráter de orientação social.

4.2. CONTEXTUALIZAÇÃO DO CENÁRIO ATUAL.

A Secretaria Especial de Comunicação Social, hoje incorporada ao Ministério das


Comunicações33, é comandada por Fábio Wajngarten desde 2019. Tem como missão a
promoção da comunicação Governo Federal com a sociedade, além da ampliação do acesso às
informações de interesse público. Dentro da SECOM existem outras duas secretarias e uma
subsecretaria: Secretaria de Comunicação Institucional, Secretaria de Publicidade e Promoção
e Subsecretaria de Imprensa.

Desde o início do Governo de Jair Bolsonaro a SECOM tem sido alvo de críticas e
investigações com relação à distribuição de verbas publicitárias, seja o favorecimento de canais
de comunicação ligados à igrejas evangélicas, seja a presença de publicidade em sites que
disseminam “fake news”. As mudanças promovidas pelo Governo neste setor foram vendidas
aos apoiadores de Bolsonaro como um ataque ao grupo Globo, desafeto do presidente. Portais
bolsonaristas espalham pelas redes que a perda de quadros e contratos exclusivos da empresa
é causada pelo “fim da mamata” que ocorria nos governos anteriores relacionado às verbas
publicitárias que o grupo recebia. Dessa forma, sempre que sai alguma reportagem sobre
investigações de corrupção envolvendo o presidente ou sua família na Rede Globo, Jair
Bolsonaro diz ser perseguido por ter acabado com a “mamata” da emissora.

A relação do presidente com a SECOM vai muito além da distribuição das verbas
publicitárias. Em postagens nas redes sociais da Secretaria a imagem de Bolsonaro tem muitas
das vezes sua presença de forma questionável se é ou não constitucional a forma como é
utilizada. Um relatório datado de 30 de dezembro, feito pela área técnica do Tribunal de Contas

33
Em 10 de junho de 2020, a Secretaria Especial de Comunicação Social da Secretaria de Governo da Presidência
da República foi extinta pela Medida Provisória nº 980, tendo suas atividades incorporadas pelo recriado
Ministério das Comunicações.

86
da União (TCU) identificou a promoção pessoal do chefe do executivo em diversas postagens
das contas oficiais da SECOM nas redes sociais, ao longo de três meses de 2020, o parecer da
área técnica evoca o não cumprimento do artigo 37 da Constituição Federal, já citado neste
trabalho.

4.3. ANÁLISE DE CONTEÚDO

Para análise do conteúdo extraído das redes sociais da SECOM serão levadas em
consideração as seguintes categorias, de acordo com o artigo 37 da CF: (1) caráter educativo;
(2) caráter informativo; e (3) caráter de orientação social.

Entre os dias comemorativos de natal e ano novo (24 de dezembro e 31 de dezembro)


foram ao todo encontradas 8 imagens postadas contendo a imagem do Presidente da República,
sendo que uma das postagens foi apagada.

Começaremos pela postagem do dia 24:

Imagem 1 - Fonte: Facebook SecomVc

Texto:

“Um Governo deve ser FRATERNO, com a responsabilidade de levar bem-estar, qualidade de vida e
desenvolvimento para todos os brasileiros, de todas as regiões.

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A pobreza e o atraso já foram tratados como negócios no Brasil. Manter o povo na ignorância e na
miséria era garantia de poder, de lucros, de votos. Por muitos anos, os brasileiros foram mantidos em
um cativeiro construído com mentiras, com promessas tão grandiosas quanto enganosas.

Completamos dois anos de trabalho para acabar com esses vícios. Trabalhamos para oferecer assistência
aos mais vulneráveis e atenção especial às regiões mais necessitadas, priorizando a vida, a dignidade e
a liberdade dos brasileiros.”

A imagem mostra Jair Bolsonaro abraçando a sua esposa, os dois com um dos praços
levantados e sorrindo, no dia da posse presidencial. Ainda há destaque ao discurso inédito em
Libras feito pela Primeira-Dama. Tanto o texto da imagem quanto o texto de apoio da postagem
não apresentam dados ou fontes de checagem sobre e que confirmam o que está sendo dito. A
publicação não é de caráter nem educativo e nem de orientação social, o caráter informativo
fica a desejar pois as informações dadas estão ou pela metade ou sem precisão ou dadas de
forma sensacionalista e eleitoreira como se observa no trecho do texto: “Manter o povo na
ignorância e na miséria era garantia de poder, de lucros, de votos.” o que pode ser entendido
como um ataque ao que foi feito por governos anteriores e que este faz diferente. A presença
da primeira dama e o destaque ao discurso feito em Libras também foram colocados
propositalmente para representar um Governo inclusivo ilustrando o título da imagem “DOIS
ANOS DE TRABALHO POR QUEM MAIS PRECISA”.

A próxima imagem já mostra a promoção de um programa que estava no plano de


governo na campanha presidencial de 2018: as escolas cívico-militares. A postagem é do dia
28 de dezembro e nela mostra Bolsonaro cumprimentando alunos de uma escola desse modelo
enfileirados e uniformizados. Os textos, tanto da imagem quanto de apoio, ressaltam que essas
escolas são um dos modelos mais eficazes por ter além de qualidade de ensino, maior segurança
e ensino da disciplina e da ordem.

Imagem 2 -Fonte: Facebook SecomVc

88
Texto:

“Figurando sempre entre as mais bem colocadas nas averiguações de qualidade de ensino, as escolas
militares são referência em todo o Brasil. Por isso, nesses dois anos, o Governo Federal tem trabalhado
para expandir esse modelo por todo o território nacional.
Além da qualidade, as escolas cívico-militares levam consigo um ambiente ordeiro, disciplinado e
focado nos estudos, o que significa segurança e paz para os professores.
Ademais, a presença militar oferece segurança também a pais, alunos e toda a comunidade no entorno
das instituições.
Fonte: Ministério da Educação - MEC Jair Messias Bolsonaro Ministério da Defesa”

O presidente e as crianças aparecem sorridentes, todos os alunos em posição de sentido,


representando a disciplina, exceto o que dá o aperto de mão no presidente, o sorriso das crianças
dá o ar de que apesar de estarem em um ambiente regrado e com ordem são felizes. Novamente
não há caráter educativo e de orientação social, além disso as informações deixam a desejar
não apresentando dados sobre a eficácia desse modelo em comparação com outros e nem o
número de escolas desse modelo implantadas, nem aponta também a melhora nos índices de
segurança no entorno das escolas devido a presença de militares que é citado no texto.

No dia 29 de dezembro foram duas imagens contendo a imagem de Bolsonaro relativas


à política internacional adotada pelo governo. Em uma delas, aparece em destaque ao lado do
Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, apagado junto ao fundo azul da imagem,
durante um evento do G20, enfatizado pela bandeirinha à frente dele. Na outra, uma foto de
seu encontro com o príncipe herdeiro da Arábia Saudita Mohammed Bin Salman.

89
Na primeira imagem Bolsonaro está de óculos e olhando atento para um documento
que está nas mãos de seu ministro, com o objetivo de se passar a imagem de seriedade, nos
textos da imagem e de apoio ressalta-se a defesa da soberania brasileira para se tratar da
pandemia de covid-19 e a preservação dos empregos. O caráter informativo foi um pouco mais
contemplado nesta postagem, considerando a presença das falas do Chanceler uma forma de
tornar pública essa informação, mesmo assim algumas informações ainda se mostraram
imprecisas ou apenas opiniões.

Imagem 3 - Fonte: Facebook SecomVc

Texto:
“(Emoji sinal de aviso) "A Covid não pode ser pretexto para controle social totalitário, violando
inclusive os princípios das Nações Unidas. AS LIBERDADES FUNDAMENTAIS NÃO PODEM SER
VÍTIMAS DA COVID. Liberdade não é ideologia. Nada de 'Great Reset'!" Ministro Ernesto Araújo
Continua (Emoji seta para baixo) 02. O Brasil tem sustentado no plano internacional a necessidade de,
sim, agir no campo sanitário tanto quanto seja necessário, mas com SOLUÇÕES NACIONAIS,
respeitando as soberanias e preservando empregos, liberdades e o desenvolvimento. 03. Em debates
sobre o assunto no âmbito da ONU, do G20, do PROSUL e nos diálogos regionais com a União
Europeia, o Brasil tem defendido que o combate à pandemia não pode servir de escusa para o
cerceamento da soberania e das liberdades fundamentais. 04. O ministro Ernesto Araújo tem se
posicionado firmemente contra planos e ações de controle dos indivíduos, de cerceamento das
liberdades e enfraquecimento das soberanias nacionais. 05. "Aqueles que não gostam da liberdade
sempre tentam se beneficiar dos momentos de crise [...]. O controle social totalitário não é remédio para
nenhuma crise!", disse o chanceler brasileiro a respeito da fala que gravou para a sessão da Assembleia
Geral da ONU sobre Covid-19. 06. O recado é para quem pretende centralizar o máximo de poder na
mão de poucos, sob o pretexto de solucionar supostos problemas. O Brasil não sucumbirá. 07. A posição
do chanceler, e do Governo do Brasil, é de respeito máximo à soberania nacional: "Não devemos
transferir responsabilidade do nível nacional para o internacional."

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Fonte: Ministério das Relações Exteriores
Jair Messias Bolsonaro
Ministério das Relações Exteriores”

Já na segunda postagem do dia 29, busca ressaltar a relação com outros países. A foto
de um encontro com um “aliado” mostra o glamour das relações entre líderes mundiais, os
homens na foto estão sorridentes o que mostra uma relação harmoniosa entre as duas nações.
Já os textos buscam ressaltar que o Governo colocou o país no “caminho da prosperidade”
mesmo após crise econômica e a pandemia. Nas duas postagens desse dia não houveram
ocorrências de caráter educativo nem de orientação social. A segunda, em relação ao caráter
informativo, apresenta dados inconclusivos e sem fontes claras aos dados apresentados como
links com direcionamento aos dados apresentados.

Imagem 4 - Fonte: Facebook SecomVc

Texto:

“Em 2019, o Brasil começou a voltar ao caminho da prosperidade. A nova política externa foi
fundamental, priorizando relações estratégicas com blocos e nações livres, democráticas e prósperas.
O mundo todo percebeu as mudanças e voltou a negociar com o Brasil. E mesmo após a crise mundial
do coronavírus, enquanto grandes economias do mundo registraram desaceleração, o Brasil dá sinais de
uma surpreendente retomada. Fonte: OCDE e Governo Federal Jair Messias Bolsonaro Ministério das
Relações Exteriores OECD”

Imagem 5 - Fonte: Facebook SecomVc

91
No dia 30, a imagem de Bolsonaro aparece como capa de um panfleto junto a outros 4
panfletos. A postagem segue a linha de outras 13 postagens iguais da página, porém apenas
essa contendo a imagem do presidente. O chefe do executivo aparece sorrindo à frente da
bandeira brasileira com um olhar de confiança para frente e um pouco inclinado para cima. Em
destaque “O BRASIL VAI EM FRENTE” lema da campanha de postagens da SECOM. Em
seu panfleto é ressaltado o alinhamento do país com a OCDE. A postagem informa que o país
adotou parte dos instrumentos jurídicos exigidos pela OCDE mas não como e porque isso foi
feito e quais os benefícios disso para o país.

92
Imagem 6 - Fonte: Facebook SecomVc

Texto:
“O Presidente Jair Messias Bolsonaro sancionou lei que prevê repasse de R$ 58 bilhões a estados e
municípios até 2037, como forma de compensar as perdas causadas pela Lei Kandir (1996), que isentou
o pagamento de ICMS sobre exportações de produtos agrícolas, carnes, madeira e minérios.
Com a sanção, o Governo Federal põe fim a um impasse que já dura mais de 20 anos, encerrando
disputas judiciais sobre o tema. Nos últimos dois anos, com ações, projetos e os recursos emergenciais
destinados ao combate à Covid-19, os repasses aos entes federados já bateram recorde.
Pela nova norma, entre 2020 e 2030 serão entregues R$ 4 bilhões ao ano. De 2031 a 2037, o repasse
será reduzido progressivamente em R$ 500 milhões ao ano. O texto prevê que estados receberão 75%
dos repasses totais, enquanto os municípios ficarão com 25%.
Fontes: Secretaria Geral da Presidência e Ministério da Economia”

No último dia do ano foram duas postagens, na imagem acima vemos o presidente em
sua mesa dando a famosa canetada com sua “Bic” que simboliza a humildade, a postura
demonstra seriedade e contrasta com o teor da postagem: o repasse de dinheiro para Estados e
Municípios simbolizados pelo mapa do país no fundo da imagem. Até o momento foi a
postagem que mais cumpriu o caráter informativo, apesar de atribuir a Bolsonaro o peso de
uma decisão sobre uma lei que já havia sido discutida e aprovada nas casas legislativas, a
postagem apresenta a forma como os repasses serão feitos, porém falta a presença de links para
averiguar a informação. Já abaixo, Bolsonaro posa ao lado de três ministros do seu governo
Paulo Guedes (Economia) à esquerda, Braga Neto (Casa Civil) e Tereza Cristina (Agricultura,
Pecuária e Abastecimento) à direita.

Imagem 7 - Fonte: Facebook SecomVc

93
Texto:

“01. Depois da crise mundial, o Brasil se destaca entre os emergentes com seus sinais de RETOMADA.
Isso porque reagimos de modo exemplar às contingências geradas pelo coronavírus. Mas também
porque em 2019, ANTES do vírus, vínhamos muito bem.
02. No Brasil dos últimos anos, tínhamos massacre de inocentes e tolerância com criminosos; os maiores
escândalos de corrupção da História; recessão, desemprego e A PIOR DÉCADA para a economia em
120 ANOS.
03. Em 2019, porém, o Brasil entrou no caminho da prosperidade e da liberdade: redução dos principais
índices de violência; sucessivos recordes de apreensão de drogas, sufocando o tráfico e libertando os
brasileiros de bem.
04. Mais: defesa da vida desde a concepção; defesa da inocência dos pequenos e da dignidade dos idosos
e das mulheres; cuidado a quem mais precisa: pensão vitalícia para famílias com crianças vítimas do
Zika / isenção de impostos para medic. da AIDS, do câncer, da Covid e outros.
05. Foi assim que em 2019, primeiro ano do Governo do Presidente Bolsonaro, foram criadas as
condições para que no contexto do CORONAVÍRUS o Brasil fosse um dos países que mais recupera
infectados, UM DOS QUE MAIS INVESTIU NA DEFESA DA VIDA.
06. Em 2019, entramos no caminho de prosperidade, que em 2020 permitiria ao Brasil decolar
definitivamente, não fosse a crise sanitária, humanitária e econômica que assolou o mundo.
07. Duas foram as determinações desde sempre: DEFENDER A VIDA e PRESERVAR OS
EMPREGOS, A DIGNIDADE DOS BRASILEIROS.
Milhões de vidas foram salvas, famílias foram alimentadas e a esperança sobreviveu com ações como
o AUXÍLIO EMERGENCIAL e o socorro às empresas.
08. Tudo foi feito para que o Brasil pudesse SEGUIR EM FRENTE, para um novo recomeço.
Com fé, amor e esperança, vamos retomar a confiança. O Brasil que começou a decolar em 2019 já está
retomando seu caminho. Jair Messias Bolsonaro”

A mão ao peito, no que parece ser o momento de execução do hino nacional, levanta a
idéia do patriotismo, o casamento imagem e texto tem o objetivo de passar seriedade ao que
está sendo dito e às atitudes que o governo está tomando, porém é um discurso próximo de um
discurso eleitoreiro com palavras chave maiúsculas, distorção de fatos como: “No Brasil dos

94
últimos anos, tínhamos massacre de inocentes e tolerância com criminosos.” e informações
imprecisas. Não educa, orienta ou informa.

Por último a publicação que foi apagada uma mensagem de ano novo.

Imagem 8 - Fonte: Facebook SecomVc

Texto:

“Um feliz e abençoado 2021 para todos os brasileiros. (emojis: bandeira do brasil, coração e
brinde de taças)”

A imagem mostra Bolsonaro com uma luz como se fosse uma aura e com um sorriso
de orelha a orelha segurando uma criança no colo, luzes brilham no fundo azul. A postagem
foi apagada justamente por desrespeitar claramente o artigo 37 e promover descaradamente a
imagem do presidente em uma mensagem de ano novo.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que foi apresentado neste trabalho é apenas uma análise de um período curto de
tempo mas que consegue exemplificar com clareza a forma como o Governo Federal tem
utilizado da Secretaria Especial de Comunicação Social também para interesses particulares,
como no caso a promoção da imagem do Presidente da República Jair Bolsonaro (sem partido).
A utilização dos meios de comunicação de forma indevida por governos ou governantes faz
lembrar de governos autoritários , não só no Brasil como no mundo. A comunicação sempre
foi tratada com muita importância por governos com tendência autoritária pois ela tem o poder
da persuasão. Isso remete a discussão sobre poder abordada neste artigo do fazer acontecer
mesmo com obstáculos, que no caso é a Constituição Federal. O fato de Bolsonaro utilizar

95
disso mesmo que a lei não permita e até o momento não ter sido punido mostra bem a questão
do poder e a relação política e comunicação.

A escolha da análise ser feita com base no artigo 37 foi justamente para buscar entender
melhor esta relação poder, política e comunicação. É claro que há a promoção pessoal,
independente se as publicações respeitam os critérios de análise do caráter educativo,
informativo ou de orientação social, porque o próprio artigo da CF já indica que não pode haver
nomes, símbolos ou imagens que indicam a promoção pessoal, o que de fato contém nas
publicações. A vista grossa feita pelas instituições competentes mostra que esse poder invisível
e simbólico o qual Bolsonaro concentra neste momento poderia constranger as instituições que
decidissem interferir. O fato de não ser paga não muda que as postagens são publicidade das
ações e programas do governo.

A imagem do presidente presente nas imagens publicadas demonstra claramente a


forma como ele quer ser promovido no momento. O aperto de mão nos estudantes das escolas
cívico-militares sorrindo mostra a simpatia e popularidade; a mão no peito durante o hino
nacional demonstra patriotismo e respeito; a pose com a caneta na mão remete a trabalho e
seriedade; a foto ao lado da esposa com os braços levantados representa a família que acolhe
quem necessita. A intenção se mostra clara e perceptiva.

O artigo é apenas um recorte que contribui para o melhor entendimento da forma como
vem sendo utilizada a rede social da SECOM para promover o presidente Jair Bolsonaro. Para
melhor entendimento de como é feita a comunicação da SECOM e do Governo Federal nas
redes sociais, seria preciso uma análise mais aprofundada e ampla.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10º ed. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária,
2007;

BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011, p. 229

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro : Bertrand Brasil, 1989.

HABERMAS, J. Mudança estrutural da Esfera Pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,


1984.__________. Direito e democracia, volume II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

96
JENKINS, Henry. Cultura da convergência: A colisão entre os velhos e novos meios de
comunicação. São Paulo: Aleph, 2009.

MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensão do homem: Understanding


Media. São Paulo, Editora Cultrix. 1969, p.407.

MIGUEL, Luís Felipe. Capital político e carreira eleitoral: algumas variáveis na eleição do
Congresso brasileiro. Rev. Sociol. Polit. [online]. 2003, n,20, pp.115- 134. ISSN 1678-9873.
Disponível em < http://dx.doi.org/10.1590/S0104-44782003000100010> Acesso em 20 de
novembro de 2018.

RECUERO, Raquel; ZAGO, Gabriela; SOARES, Felipe Bonow. Mídia social e filtros-bolha
nas conversações políticas no Twitter. In Compós 2017. Anais, São Paulo, 2017.

THOMPSON, J. B. A mídia e a modernidade. Petrópolis: Vozes, 1998. _________________


A Nova Visibilidade. Revista Matrizes, nº2, São Paulo. 2008.

Documentos acessados:

Formulário de exame de admissibilidade de denúncia. Disponível em:


https://download.uol.com.br/files/2021/01/2983651741_exame-tecnico-secexadmin.pdf

97
PARTE III:

A PANDEMIA DA COVID-19 E OS
POSICIONAMENTOS E DISCURSOS DO
GOVERNO DE JAIR BOLSONARO

98
Uma análise das estratégias argumentativas nos pronunciamentos
oficiais de Bolsonaro na pandemia da Covid-19

MAYRA REGINA COIMBRA


Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
E-mail: mayrarcoimbra@gmail.com

WILLIAN JOSÉ DE CARVALHO


Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
E-mail:wjcjornalismo@gmail.com

1. INTRODUÇÃO

Até o momento atual, a história da humanidade havia sido marcada por duas grandes
pandemias: a peste bulbônica, no século XIV e a gripe espanhola no início do século XX. As
duas juntas foram responsáveis pela morte de milhões de pessoas. Em dezembro de 2019, uma
nova pandemia assustou o mundo todo e colocou países e governantes em alerta. Um vírus da
família coronaviridae (coronavírus), que se iniciou na China, provocou uma crise política,
econômica e sanitária de grandes proporções. Até o último levantamento, realizado no dia 08
de outubro de 2020, mais de 36 milhões de pessoas já haviam sido infectadas no mundo e
dessas cinco milhões apenas no Brasil. E mais de um milhão já haviam morrido em decorrência
do vírus no mundo e quase 150 mil, só no Brasil.
No entanto, diferentemente das outras crises sanitárias, nesta há a presença ativa das
instâncias midiáticas que não demandou da sociedade um isolamento informacional. Por meio
de dispositivos, os indivíduos recebem informações o tempo todo sobre o que está acontecendo
ao seu lado e no mundo todo. Neste cenário, o jornalismo se mostrou um suporte importante
para a divulgação da ciência e, ainda, na relação da sociedade com essas informações. Por outro
lado, verificou-se também um efeito adverso do desenvolvimento informacional: o
espalhamento de informações falsas ou enganosas de forma massiva na mídia social. O evento
que já havia gerado efeitos negativos em eventos e discussões políticas por todo o mundo,

99
tomou proporções tão grandes durante o combate ao coronavírus que passou a ser descrito pela
Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma “infodemia34”.
Diante desse quadro também foi pertinente notar que os líderes políticos reagiram de
modos distintos ao enfrentamento da doença. De maneira geral, a maioria dos líderes têm se
mobilizado para combater o avanço da Covid-19 através de ações que vão desde a
recomendação do isolamento social até práticas como o lockdown. No entanto, no Brasil, o
presidente Jair Bolsonaro adotou uma postura contrária às recomendações dadas pelos médicos
e pelas autoridades internacionais de saúde.
Uma negação que se deu tanto no espaço discursivo quanto no campo das ações. Foi
notório o posicionamento abertamente contrário ao isolamento social amplo. A defesa da
abertura de serviços não essenciais como igrejas, academias e salões de cabeleireiro e a adoção
de um isolamento vertical (apenas para indivíduos que façam parte do grupo de risco), como
forma de manter a economia em atividade. Adjacente a essa postura, há que se destacar para a
defesa insistente do uso de cloroquina e hidroxicloroquina no combate à doença, mesmo depois
de constantes alertas da comunidade científica sobre a ausência de provas de eficácia dos
medicamentos nesses casos. Todos esses discursos reforçam a posição de minimização e
descrédito da doença que se deu tanto em publicações em suas redes sociais, quanto em
pronunciamentos oficiais e conversas com seus apoiadores.
Diante desse cenário, não é absurdo considerarmos que Jair Bolsonaro é um importante
influenciador em conversações políticas. Isso se dá pelo poder que tem de convencer outros
usuários a mudarem sua opinião pela representatividade e força de seus discursos, ou pelo fato
de que ele simplesmente pode afetar a estrutura de decisão política ao dar visibilidade a
determinadas mensagens e ocultar outras tantas possíveis (RECUERO; SOARES, 2020).
Partindo do princípio de que palavras desencadeiam ações e que o discurso político, em
especial o presidencialista tem caráter de persuasão, este artigo objetiva analisar as estratégias
argumentativas empregadas por Jair Bolsonaro em referência à Covid-19, nos pronunciamentos
realizados em Cadeia Nacional de Rádio e Televisão.

2. DA SOCIEDADE DE MASSA À MIDIATIZAÇÃO SOCIAL: A POLÍTICA


MIDIATIZADA
O desenvolvimento tecnológico e o crescente avanço dos meios de comunicação, nas
distintas esferas sociais, modificaram os modos de interagir de indivíduos e instituições, a
política não seria suficiente para esse processo. Ao compreender os processos comunicacionais,

34
Coronavírus: como evitar a desinformacao em meio à infodemia sobre covid-1
https://www.bbc.com/portuguese/geral-52413570 Último acesso em 28 de setembro de 2020.

100
a relação dos media na sociedade pode ser vista da seguinte forma: mídia e mediações são
processos inerentes aos processos comunicacionais, assim, funcionam de forma interligada. A
mídia possui como principal característica a mediação técnica, já a midiatização vai além das
características tecnológicas dos meios de comunicação. Este processo engendra novas formas
de organização de processos sociais e novos modos de relacionar-se com as tecnologias.
A comunicação e seus suportes de mediação passaram a compor a construção social da
realidade, ao inserir-se na transmissão de valores e formas de interpretar o mundo (BERGER
& LUCKMANN, 2007; BOURDIEU, 1989). Para Thompson (2008), os meios e comunicação
foram alterando as relações interpessoais e modificando a sociedade. Saímos de uma sociedade
marcada pela co-presença, das interações face a face e da tradição oral; para, a partir do
surgimento dos primeiros suportes de comunicação (carta, telégrafo,telefone etc.) a uma
sociedade na qual a comunicação passa a ser mediada; até chegar ao surgimento dos meios de
comunicação em massa (rádio, TV e, nas últimas décadas, pode ser incluída a internet).
Entretanto,a mídia não pode ser vista numa ótica simplista de canais de transmissão de
informação. Vai além, ela pode ser vista como um entorno social cimentado por informação,
que afeta os modos de vida. Ou seja, elas são entidades onipresentes que se inserem cada vez
mais no cotidiano das pessoas, relacionando assim, de forma direta, com o funcionamento da
sociedade, e, por consequência, penetrando nas instituições e campos sociais, criando um novo
modo de ser no mundo e participando da vivência social (GOMES, 2005).
Essa compreensão nos permite relacionar com o processo de midiatização. Tal processo
acontece de forma contínua e acompanha a atividade humana, a evolução da sociedade
moderna e o desenvolvimento dos media (THOMPSON, 1998). Portanto, uma sociedade em
vias de midiatização (VERÒN, 1992) ou midiatizada (HJARVARD, 2012) às mídias
perpassam para uma situação em que não há apenas de sentido único – emissor e receptor, ou
seja, a própria mídia confunde-se com os outros processos sociais e há uma virtualização da
interação social (HJARVARD, 2012). Nesse sentido, passamos de uma sociedade centrada nos
meios de comunicação (sociedade mediada), para uma sociedade permeada pela mídia, na qual
não se pode considerar o campo midiático como separado das instituições e processos sociais
(HJARVARD, 2012).
Assim, com o avanço célere das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), a
midiatização crescente nos processos sociais, existe uma aceleração e diversificação de modos
pelos quais a sociedade interage consigo mesma. Tanto os inter-relacionamentos
comunicacionais, quanto os processos midiáticos, ocorrem no “cadinho cultural da
midiatização” (GOMES, 2016, p.17). Como resultado, a realidade da sociedade em
midiatização supera e engloba dinâmicas específicas que modificam o meio social. E, como

101
tela de fundo da interação das dinâmicas sociais, temos a promoção da realidade digital.
Conforme aponta Gomes, a sociedade em midiatização constitui nos diversos processos sociais,
uma nova ambiência, um novo modo de ser de mundo, o que caracteriza a sociedade atual.
Essa lógica muito se faz presente no campo político. Se antes existia uma relação
simbiótica entre mídia e política em um nível muito intenso, com o processo de midiatização
instaurado na contemporaneidade, o campo político também perpassa pela midiatização. Como
aponta Martino (2019), os vários regimes políticos possuem necessidade de se tornarem
visíveis. Essa visibilidade se dá tanto para o povo quanto para outros regimes. Com o advento
da comunicação mediada, a visualidade da política ganha uma nova dimensão, sem abandonar
as anteriores, em termos de uma visibilidade mediada das questões políticas (THOMPSON,
1998; MARTINO, 2019).
Lima (2004) coloca que não existe política sem mídia, pois, por meio da centralidade
que ela desenvolve – é somente ela – que define o que é público no mundo contemporâneo.
Até um certo ponto, o autor tem razão, especialmente pela configuração de evento público que
após o advento da mídia um evento para ser “evento público” não está limitado à partilha de
um lugar comum. Claro que Lima não havia experimentado as potencialidades da Internet,
entretanto, a mídia ainda sim tem um papel central na sociedade.
Porém, torna-se possível ampliar essa visão. Aqui se vale a contribuição de Gomes
(2016) o qual aponta que na sociedade em midiatização, uma nova ambiência se instaura,
lapidando um novo modo de ser de mundo por meio dos diversos processos sociais que
caracteriza a sociedade atual. E Martino complementa no sentido de que após um maior uso da
potencialidade da internet a noção passa a se referir a um ambiente, no qual a comunicação
política encontra outras formas de circulação. Hoje temos diversas redes sociais e aplicativos,
além de sites e blogs que permitem um diálogo mais direto entre o político e o eleitor, o que
antes era necessário passar pela instância midiática tradicional.
Martino coloca que a política, cada vez mais, vem aprendendo a falar a linguagem do
entretenimento para se comunicar com um público que nasceu e cresceu no ambiente das mídia.
Os novos eleitores e até mesmo os tradicionais, hoje são midiatizados por essa nova ambiência
política. Conforme aponta Leal (2012), há nesse processo uma crescente identificação
partidária a figura do candidato se torna mais importante do que a identificação partidária, ou
seja, no momento das escolhas eleitorais, valoriza-se a figura do candidato e não só as suas
propostas e o seu partido e espectro político.

102
Por meio dessa nova ambiência e dos processos de midiatização, em que as novas
Tecnologias de Informação e Comunicação também integram a sociedade, o ator político
necessita manter constantemente certa fidelidade ao seu eleitorado. Há assim uma outra
conjuntura política. A todo o momento o político (eleito ou não) está em campanha permanente.
O que isso quer dizer? Com a ampliação do espaço público imbricado no processo de
midiatização, as novas mídias e também as tradicionais que se atravessa a todo o momento,
utilizam desses espaços de forma estratégica a fim de construir e manter o apoio popular.

3. DESINFORMAÇÃO E FAKE NEWS EM TEMPOS DE PANDEMIA

A crise do coronavírus fez ressurgir várias discussões que já haviam sido iniciadas no
campo da comunicação: o processo de desinformação, o uso de tecnologias para criação e
disseminação de imagens e textos, a disseminação de fake news, a emergência do negacionismo
científico, as teorias conspiratórias, a pós-verdade e entre outros temas. Assim como todo surto,
a Covid-19 veio acompanhada por uma enxurrada de informações, dentre elas as informações
falsas e desencontradas, os rumores, os questionamentos. As primeiras manifestações desta
desinformação surgiram com as notícias de remédios e tratamentos domésticos para a cura e
combate da doença. A diferença deste surto para os anteriores se deu pela presença da internet,
que amplificou o fenômeno de compartilhamento da desinformação e a forma como as pessoas
estão interagindo com esse novo espaço.

Kakutani (2018) argumenta que, as fakes news não são uma novidade, no entanto a
internet e as redes sociais permitiram com que boatos, especulações e mentiras se espalhassem
pelo mundo em questão de segundos. Na disseminação de notícias falsas, a tecnologia se
provou um combustível altamente inflamável. Mais do que democratizar informações, a
possibilidade do anonimato evidenciou uma ausência de responsabilidade e facilitou a atuação
de produtores de desinformação.

Para o autor, existem problemas sistêmicos em relação ao modo como as pessoas obtêm
informações e como elas passaram a pensar de modo cada vez mais polarizado. Esse cenário
se acentua exponencialmente pelas redes sociais, que conectam os indivíduos que pensam da
mesma forma e excluem aqueles que pensam diferente. No grupo de usuários uniforme há um
abastecimento de notícias personalizadas, de acordo com aquilo que eles acreditam, reforçando
suas ideias preconcebidas e permitindo que eles vivam em bolhas, sem comunicação ou contato

103
com o mundo exterior. O enorme volume de dados na web permite que as pessoas selecionem
cuidadosamente fatos, factoides ou não fatos que apoiem seu ponto de vista, encorajando tanto
acadêmicos como amadores a encontrar material para apoiar suas teorias, em vez de examinar
evidências empíricas para chegar a conclusões racionais (KAKUTANI, 2018, p.151).

Esse cenário é chamado por pesquisadores atualmente de pós-verdade. Kakutani (2018)


utiliza o termo “declínio da verdade” para se referir a era da pós-verdade, que inclui também
expressões corriqueiras como “fake news” e desinformação. Os ataques à verdade estão visíveis
pelo mundo todo. Ondas de populismo e fundamentalismo tem feito com que as pessoas
recorram mais ao medo e à raiva do que ao debate honesto e sensato. Essa prevalência das
emoções tem corroído instituições democráticas e tem feito com que pessoas troquem
frequentemente as opiniões dos especialistas pela sabedoria das multidões.

D`ancona (2018) explica que a palavra pós-verdade (post truth), foi eleita em 2016 pelo
Dicionário de Oxford (Oxford Dictionaries) como palavra do ano. A definição de forma
abreviada significa “circunstâncias em que os fatos objetivos são menos influentes em formar
a opinião pública do que os apelos à emoção e à crença pessoal”. Ele explica ainda que a
mentira sempre foi parte integrante da política desde que os primeiros seres humanos se
organizaram em tribos. A novidade não está na desonestidade dos políticos, mas na resposta
que o público dá a isso. Nota-se que a indignação dá lugar a indiferença e até a conivência das
pessoas. “Não esperamos mais que nossos políticos eleitos falem a verdade: isso, por enquanto,
foi eliminado do perfil do cargo ou, no mínimo, relegado de forma significativa da lista de
atributos requeridos” (D’ANCONA, 2018, p.35).

Para D’ancona (2018) a razão pela qual estamos vivendo a era da pós-verdade se dá
pela erosão da confiança. Nos últimos anos, vivemos um período de intensos escândalos
políticos que tiveram como consequências a perda de credibilidade na política partidária e na
imprensa. Esse cenário “deu margem à disseminação de um ceticismo neurótico em relação ao
jornalismo institucionalizado e à esfera política” ( SOUZA JUNIOR, p.281, 2020).
Fortalecidos pela descrença generalizada surgiram as manifestações de populismo que, diante
de uma realidade complexa e instável, se apresentou na forma de sistemas hipersimplificados,
com uma linguagem maniqueísta, polarizada e com forte apelo emocional.

Kakutani (2018) argumenta que existem várias teorias que tentam explicar o porquê as
pessoas tendem a acreditar rapidamente em informações que sustentem suas crenças e rejeitam

104
aquelas que as contestam. Segundo ele, há um instinto primitivo de defender o próprio
território. As pessoas ao serem questionadas sobre algo são resistentes em examinar as
evidências e tendem a produzir respostas emocionais em vez de intelectuais. Para o autor, a
internet está fazendo com que a “sabedoria das multidões” tome o lugar do conhecimento
científico, nublando perigosamente os limites entre fato e opinião, entre argumentação
embasada e especulação.

Perosa (2017) acrescenta que, além da queda de confiança nas instituições tradicionais,
outros dois fatores corrobora para a presença da pós-verdade nos dias atuais: a alta polarização
que aciona o debate menos racional e mais emocional e o apreço pelo consenso que leva as
pessoas à colocar os nervos à flor da pele e a descentralizar a informação, possível com a
expansão da internet e a possibilidade de canais de comunicação alternativos e independentes.

Kakutani (2018) explica que, assim como observou Orwell, a partir do momento que a
verdade se torna tão fragmentada abre-se um caminho para que algum líder ou grupo dominante
dite em que ou em quem se deve acreditar. “Se o líder diz que determinado evento ‘nunca
aconteceu’ – bem, aquilo nunca aconteceu” (KAKUTANI, 2018, p. 64 e 65). Nesse contexto,
Recuero e Soares (2020) trabalham com o conceito de influenciadores em conversações
políticas – são usuários que de alguma forma podem convencer outros usuários a mudarem sua
opinião ou afetar a estrutura de decisão política dando visibilidade a certas mensagens e
ocultando outras.

Este fato é visível no comportamento do governo no enfrentamento da pandemia no


Brasil. Dada a velocidade da doença e a ausência de medidas eficientes e comprovadas, o
acesso às informações corretas se torna bastante difuso. Quando Bolsonaro utiliza seu espaço
de fala de líder político para desacreditar da pandemia e minimizá-la, ele dá força para que tal
pensamento seja compartilhado pela maioria, nessa guerra de produção de verdades e
influencia as pessoas na tomada de ações.

4. ESTUDO DE CASO: PRONUNCIAMENTOS OFICIAIS EM CADEIA NACIONAL


DE RÁDIO E TELEVISÃO (CNRT)
A Cadeia Nacional de Rádio e Televisão (CNRT) é o instrumento pelo qual os chefes
dos três poderes da República, ministros de Estado e presidentes de Tribunais Superiores, como
o STF (Supremo Tribunal Federal) e o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) realizam
pronunciamentos à nação brasileira. Ela é regulada pelo decreto nº 84.181 de 12 de agosto de

105
1979, do ex-presidente João Figueiredo. As emissoras de sinal aberto de rádio e televisão são
obrigadas a retransmitir ao vivo gratuitamente esses pronunciamentos, interrompendo a
programação temporariamente. O artigo em questão utiliza como objeto de análise os
pronunciamento oficiais realizados em CNRT sobre a crise do coronavírus. Como forma de
apreender esse objeto optou-se pela análise de conteúdo (BARDIN, 2011).
Há que se destacar, portanto, que, Bolsonaro é o presidente que mais fez
pronunciamentos em 21 meses de governo 35, desde a redemocratização do Brasil, em 1985.
Desde que chegou ao poder se dirigiu à nação por meio desse instrumento 12 vezes. Atrás dele
estão os ex-presidentes Dilma Rousseff (8), Fernando Henrique Cardoso (6), Michel Temer (6)
e Lula (4). Somente em 2020, Bolsonaro fez 7 pronunciamentos, onde 6 desses eram
relacionados à crise do coronavírus - quatro em março e dois em abril.

4.1 A CONJUNTURA POLÍTICA E A PANDEMIA DA COVID-19


Não é possível separar a dinâmica da pandemia as especificidades de cada país, bem
como as questões sociais e políticas vividas por eles anteriormente à crise. O Brasil, por
exemplo, já enfrentava um período extremamente conturbado tanto no cenário social quanto
político. Se pudermos apontar um acontecimento marcante que deu início a essa desordem,
sem dúvida seriam as grandes manifestações de rua, em 2013, que reuniu milhares de pessoas
sob pautas diversas, mas com um ponto em comum: a insatisfação popular.
Essa tensão política foi crescendo progressivamente e se intensificou nas eleições de
2014. Após uma disputa acirrada entre Dilma Rousseff (Partido dos Trabalhadores - PT) e
Aécio Neves (Partido da Social Democracia Brasileira - PSDB), que culminou na vitória da
petista com 51,64% contra 48,36%, o país ficou dividido e essa divisão se desdobrou no
impeachment da presidente em 2016, substituída pelo seu vice, Michel Temer (Movimento
Democrático Brasileiro - MDB).
O cenário econômico se deteriorou na mesma proporção que o cenário político.
Recessão econômica, alta no desemprego, agendamento e espetacularização de esquemas de
corrupção, em especial a Operação Lava Jato, por meio dos meios de comunicação, fizeram
parte desse cenário de crise.

35
Bolsonaro é o presidente que mais fez pronunciamentos em 21 meses de governo
https://www.poder360.com.br/midia/bolsonaro-e-o-presidente-que-mais-fez-pronunciamentos-em-21-meses-de-
governo/ Último acesso em 31 de setembro de 2020.

106
Em 2018, o quadro político brasileiro ficou ainda pior. A polarização iniciada nas
eleições de 2014, se intensificou com a eleição de Jair Bolsonaro (sem partido) e pode ser
percebida atualmente. Esse cenário é fundamental para compreendermos como o Brasil, na
figura do presidente, tem reagido e enfrentado a crise da pandemia de Covid-19. Visto que, a
polarização não fica restrita ao debate público, como também recai nas ações do poder público
e na forma como a sociedade enxerga e age diante da doença.
A primeira medida de enfrentamento do governo brasileiro ao coronavírus aconteceu
no dia 05 de fevereiro, quando enviou aviões36 para trazer pessoas que desejavam voltar e
estavam impedidas pelas restrições aos voos comerciais. O governo montou uma estrutura de
quarentena em uma base das Forças Armadas, em Anápolis (GO), para receber os viajantes e
pessoas envolvidas, enquanto ainda houvesse possibilidade de transmissão da doença.
Ainda não constatado a transmissão comunitária no país, só eram considerados
suspeitas e testadas, as pessoas que tivessem chegado de países com transmissão da doença ou
que tivessem tido contato com pessoas que vieram desses lugares, dado a escassez dos insumos
para diagnóstico.
A declaração de pandemia no mundo aconteceu apenas em 11 de março. Nesta data, o
Brasil contava com 52 casos confirmados e 907 suspeitos. Enquanto o Sistema Único de Saúde
(SUS) já se preparava para a doença, Jair Messias Bolsonaro, no dia 26 de janeiro37,
minimizava o problema, a exemplo do presidente estadunidense, Donald Trump, dizendo estar
preocupado com a doença, mas sem ver motivo para alarme. As ações recomendadas pela OMS
e por pesquisadores e descumpridas pelo presidente tinham o objetivo de “achatar a curva” da
epidemia, de forma que não ultrapassasse a capacidade dos serviços hospitalares para atender
os casos graves, que demandam internação.
Diante da negação do presidente, os governadores passaram a agir isoladamente e
buscar seus próprios meios para fechar fronteiras, montar hospitais de campanha, aumentar os
leitos de UTI, adquirir equipamentos de saúde, o que causou irritação de Bolsonaro. Ele
afirmou insistentemente ao longo de seus discursos, entrevistas e lives que “é uma pequena
crise”, “não há motivo para pânico”, “outras gripes já mataram mais”, “isso está sendo

36
Coronavírus: aviões da FAB decolam de Brasília para buscar brasileiros na China -
https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/02/05/coronavirus-avioes-da-fab-decolam-em-viagem-para-buscar-
brasileiros-na-china.ghtml Último acesso em 31 de setembro de 2020.
37
“Temos que nos preocupar, mas por enquanto nada de alarme”, diz Bolsonaro sobre coronavírus -
https://oglobo.globo.com/sociedade/saude/temos-que-nos-preocupar-mas-por-enquanto-nada-de-alarme-diz-
bolsonaro-sobre-coronavirus-1-24212131 Último acesso em 31 de setembro de 2020.

107
propalado pela mídia”, “isso é uma fantasia”. A atitude do governo diante do enfrentamento da
crise se caracterizou pela negação e pela minimização da pandemia. Ele foi reconhecido como
um dos quatro líderes a rejeitar o campo científico sobre a gravidade da doença (LIMA ET.
ALL., 2020).
O desrespeito à pandemia não se deu apenas no âmbito discursivo, mas também nas
ações do presidente que descumpriu as ordens até do próprio ministro, Henrique Mandetta, e
participou de manifestações, passeios a locais públicos, sem uso de máscara. Tal
comportamento refletiu na demissão do mesmo e sua substituição por Nelson Teich, que
também deixou o cargo38 em meio a uma polêmica com o presidente sobre a adoção da
hidroxicloroquina como protocolo de tratamento para a doença. E foi substituído por Eduardo
Pazuello, general que ocupava a Secretaria Executiva.
Concomitantemente, evidenciou no país um aumento vertiginoso de casos e óbitos por
Covid-19, o que levou o MS a suspender a divulgação diária dos números acumulados,
dificultando o monitoramento da crise no país. Tal ação fez com que veículos de comunicação
que habitualmente concorrem no mercado, consorciaram-se para manter a divulgação diária de
dados e manter a população informada. Lima et. all. (2020) argumentam que uma pessoa
desinformada tem potencial para se tornar um desinformador, mesmo que de forma
involuntária, mas movido pelo compartilhamento e propagação de um ideal parecido com o
seu.

4.2 ANÁLISE DE CONTEÚDO: PRONUNCIAMENTOS EM CADEIA NACIONAL DE


RÁDIO E TELEVISÃO (CNRT)

Como já citado, o presidente dirigiu-se a população com a temática da Covid-19 em


seis momentos distintos. Há por parte do presidente uma maior concentração de
pronunciamentos entre o período de março a abril39. Os seis pronunciamentos relacionados à
pandemia correspondem a um total de 59 minutos e 48 segundos.
Tabela 01 - Pronunciamentos de Jair Bolsonaro em CNRT

38
Após ultimato sobre cloroquina, Teich pede demissão do Ministério da Saúde -
https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/05/apos-ultimato-sobre-cloroquina-teich-pede-demissao-
do-ministerio-da-saude.shtml Último acesso em 31 de setembro de 2020.
39
A ausência de discursos nos meses seguintes em que a crise se intensificou também diz muito sobre a estratégia
de comunicação governamental do presidente. Tendo em vista o fato de que Bolsonaro falou declaradamente que
o Brasil não passaria pelo o que os outros países, como a Itália, estavam passando e a situação ficou ainda pior no
país. Quando Bolsonaro se ausenta dos pronunciamentos em momentos que a crise atinge altos níveis, ele também
deixa uma mensagem.

108
Data do pronunciamento: Tempo de duração:

Pronunciamento em CNRT - 06 de março de 2020 2min.04seg.

Pronunciamento em CNRT -12 de março de 2020 2min.

Pronunciamento em CNRT -24 de março de 2020 4min.58seg.

Pronunciamento em CNRT - 31 de março de 2020 7min.56s.

Pronunciamento em CNRT - 04 de abril de 2020 5min.11seg.

Pronunciamento em CNRT - 16 de abril de 2020 15min.30seg.

Fonte: Elaborado pelos autores (2020)

Para analisar os pronunciamentos do presidente, em um primeiro momento, após a análise


preliminar foi feito um levantamento das temáticas acionadas por Bolsonaro como estratégia
de articulação com a população, conforme se observa na tabela abaixo:

Tabela 02 - Temas acionados nos pronunciamentos em CNRT

Tema: Descrição:

Medidas de Diz respeito a falas em que o presidente apresenta as medidas que estão sendo
enfrentamento a Covid- tomadas pelo seu governo no enfrentamento da crise nas diversas áreas - economia,
19 saúde, educação etc.

Minimização da Covid- Relaciona a falas do presidente que indicam um comportamento de descaso e pouca
19 preocupação com a pandemia

Covid-19 x Economia Refere-se a discussão sobre os desdobramentos da crise econômica e os impactos


na economia do país

Embate com a Diz respeito a falas do presidente atacando a imprensa e seus profissionais gerando
imprensa um embate

Críticas a governadores Falas em que existe opinião de julgamento a ações de enfrentamento por parte dos
e prefeitos governadores e prefeitos

109
Críticas ao isolamento Tratam de falas do presidente contrárias a medidas de isolamento social horizontal
social e que defendem o fim de tal procedimento

Defesa da Abarca falas em que Bolsonaro defende o uso da Cloroquina/hidroxicloroquina


Hidroxicloroquina como medicamento no tratamento da Covid-19 em pacientes

Apoio aos profissionais Compreende falas em que o presidente destaca e/ou parabeniza a atuação dos
de saúde profissionais da saúde que atuam na linha de frente contra a Covid-19

Mensagens religiosas Refere-se a falas em que o presidente aciona a figura divina ou cita alguma
passagem bíblica.

Fonte: Elaborado pelos autores (2020)

Pronunciamento do dia 06 de março de 2020

O primeiro depoimento de Bolsonaro a nação brasileira traz como temática principal o


surgimento do coronavírus. O presidente informa o surgimento dos casos no mundo e a
velocidade de propagação da doença. Destaca que o país foi precursor dentro da América do
Sul a lidar com a enfermidade. Destaca a transparência do Ministério da Saúde em informar
diariamente os números e ações no combate ao vírus. E coloca o Executivo Nacional como um
grande articulador junto dos estados e municípios.

Bolsonaro, no fim do seu pronunciamento, coloca que não é necessário criar pânico
mesmo que o problema possa se agravar. E pede que a população siga as recomendações dos
especialistas da área, pois, é a melhor medida de prevenção.

Em seu primeiro comunicado em tempos de coronavírus, ainda não havia sido decretada
pela OMS o estado de pandemia. Os casos da doença se concentravam de forma mais intensa
na Europa e na China. O status de pandemia foi oficializado em 11 de março.

Há nesse primeiro pronunciamento, por parte do presidente, uma postura mais


tranquila. Algo que possa ser justificado por não haver um número alto de casos no Brasil.
Bolsonaro pede por parte da população uma postura de tranquilidade. Orienta que as
recomendações dos especialistas fossem aplicadas. Ainda neste tempo eram o uso de máscaras,
uso de álcool gel e álcool 70%. O país continuava numa normalidade sem nenhuma medida
mais rigorosa de isolamento social.

110
Pronunciamento do dia 12 de março de 2020

O segundo pronunciamento se deu um dia após a deflagração da pandemia pela OMS.


Bolsonaro coloca tal atitude como responsável “Diante do avanço do coronavírus em muitos
países, a Organização Mundial da Saúde, de forma responsável, classificou a situação atual
como pandemia” (PRONUNCIAMENTO…, 2020).

O presidente continuou falando sobre os limites do Sistema de Saúde o país, mas


novamente pede calma por parte da população. Ele destacou que os idosos são o grupo de risco
que devem ter mais atenção. Incentiva que se evite grande concentrações, especialmente por
haver atos públicos marcados para o dia 15 de março em prol do seu mandato por parte dos
apoiadores. “Queremos um povo atuante e zeloso com a coisa pública, mas jamais podemos
colocar em risco a saúde da nossa gente” (PRONUNCIAMENTO… 2020b).

Como pode ser observado, mesmo com status de pandemia, Bolsonaro ainda manteve
uma postura tranquila. Países da Europa sofreram com a queda de bolsas de valores, entretanto,
o Brasil contava com poucos casos. Em relação aos atos pró-Governo, o presidente indica que
apoia as manifestações, finalizando o seu pronunciamento com a seguinte frase: “por isso, as
motivações da vontade popular continuam vivas e inabaláveis”(PRONUNCIAMENTO…
2020b).

Pronunciamento do dia 24 de março de 2020

Após 12 dias do seu segundo pronunciamento, o presidente utiliza a cadeia nacional de


rádio e televisão para se dirigir aos brasileiros. Neste dia os números da Covid no Brasil eram
de 2.271 casos e 47 mortes pelo vírus. A Europa, era um dos epicentros da pandemia na época
e a Itália apresentava um alto número de infectados e mortes oriundas do novo vírus.
Bolsonaro inicia seu discurso parabenizando a atuação do seu ministro Henrique
Mandetta junto aos estados e municípios e afirmou que o Sistema Único de Saúde (SUS) está
sendo preparado para um possível aumento da doença. Apesar de demonstrar clara preocupação
com a disseminação do vírus no país, o presidente muda o tom logo em seguida. Ele culpa a
imprensa brasileira por causar pânico e histeria à população brasileira, quando esta notícia os
casos de infectados e mortos na Itália.

111
Espalharam exatamente a sensação de pavor, tendo como carro-chefe o anúncio do
grande número de vítimas na Itália. Um país com grande número de idosos e com um
clima totalmente diferente do nosso. O cenário perfeito, potencializado pela mídia,
para que uma verdadeira histeria se espalhasse pelo nosso País
(PRONUNCIAMENTO EM CNRT, JAIR BOLSONARO, 24 de março de 2020).

Os ataques não se restringiram apenas à imprensa, mas também ao posicionamento de


alguns prefeitos e governadores que tomaram medidas protocolares mais firmes em direção ao
isolamento social como: a proibição do uso de transportes públicos, o fechamento do comércio
e escolas e o confinamento em massa. A justificativa da crítica se deu sob a alegação de que
era preciso manter os empregos e garantir o funcionamento da economia. “O que se passa no
mundo têm mostrado que o grupo de risco é o das pessoas acima dos 60 anos. Então porque
fechar escolas? Raros são os casos fatais de pessoas com menos de 40 anos de idade”
(PRONUNCIAMENTO EM CNRT, JAIR BOLSONARO, 24 de março de 2020). Em outro
momento ele minimiza a pandemia e afirma que em breve tudo passará e as coisas precisam
voltar ao normal. “Nossa vida tem que continuar. Os empregos devem ser mantidos. O sustento
da família deve ser preservado. Devemos sim, voltar a normalidade” (PRONUNCIAMENTO
EM CNRT, JAIR BOLSONARO, 24 de março de 2020).
O presidente defendeu o isolamento vertical como solução para o enfrentamento da
pandemia. Afirmou que 90% da população não teria qualquer sintoma caso se contaminasse e
que a preocupação deveria se concentrar nos mais velhos. Além dessa postura, Bolsonaro
minimizou a doença. “No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse
contaminado pelo vírus não precisaria me preocupar, nada sentiria ou seria, quando muito,
acometido de uma gripezinha e ou resfriadinho” (PRONUNCIAMENTO EM CNRT, JAIR
BOLSONARO, 24 de março de 2020).
Bolsonaro finaliza o pronunciamento apresentando a cloroquina como um medicamento
promissor para o tratamento do vírus e parabenizando os profissionais da saúde que atuam na
linha de frente. Por fim, reafirma sua crença em Deus, acreditando que este capacitará cientistas
e pesquisadores para a cura da doença e reforça que não existe motivos para pânico e histeria.

Pronunciamento do dia 31 de março de 2020

O pronunciamento deste dia foi marcado por 5.812 infectados em todos os estados e
202 mortos. Bolsonaro ao se dirigir a nação, inicia falando dos esforços do Governo Federal
para o combate à Covid-19. O presidente continua e introduz a crítica ao isolamento e

112
defendendo a normalidade das atividades econômicas. Ele, para sustentar a sua fala, se justifica
a partir de uma declaração do diretor-general da OMS, Tedros Adhanom que fala sobre a
preocupação com o desemprego e alimentação de famílias mais vulneráveis. O presidente
chamou a atenção para os empreendedores e trabalhadores informais que seriam os mais
atingidos com as medidas de isolamento social mais rígidas como a quarentena.

Bolsonaro também colocou a questão da aprovação do Auxílio Emergencial no valor


de R$ 600,00 para milhões de brasileiros. Enfatizou também a suspensão de pagamentos dos
estados e municípios para com a União. E o congelamento de preços de medicamentos por 60
dias. O presidente novamente retomou a questão da Economia do país afirmando que, devido
a medidas mais rigorosas de quarentena o desemprego no país vem crescendo e citou o
compromisso assumido na reunião do G-20 em que a proteção de vidas e preservação dos
empregos era um compromisso necessário e que atuaria para atender o prometimento.

Fizemos isso através de ajuda financeira aos estados e municípios, linhas de crédito
para empresas, auxílio mensal de R$ 600 aos trabalhadores informais e vulneráveis,
entrada de mais 1 milhão e 200 mil famílias no programa Bolsa Família, adiamos
também o pagamento de dívidas dos estados e municípios, só para citar algumas das
medidas adotadas. (PRONUNCIAMENTO…,2020c).

Bolsonaro coloca como prioridade da política econômica a manutenção dos empregos


e diz que em conjunto irá trabalhar para cuidar da saúde das pessoas. “Repito: o efeito colateral
das medidas de combate ao coronavírus não pode ser pior do que a própria doença”
(PRONUNCIAMENTO…,2020c).

Novamente o presidente traz à tona a questão da cloroquina como medicamento no


combate à doença apesar de não ter tido nenhuma comprovação de eficácia por estudos
médicos. O chefe do Executivo relata que colocou em força total os Laboratórios Químico-
Farmacêuticos Militares para produzirem um milhão de comprimidos de Cloroquina e álcool
gel para serem distribuídos à rede de saúde.

Para finalizar, Bolsonaro diz que seu compromisso como presidente não é apenas
durante a pandemia e que precisa preparar o país para a retomada, reorganizando a economia
fortalecendo assim o Brasil para estar mais forte após o período pandêmico.

Pronunciamento do dia 08 de abril de 2020

113
Ao se dirigir a nação no dia 08 de abril, o presidente novamente traz ao debate público
temas que estiveram presentes em seus pronunciamentos anteriores. Bolsonaro novamente
coloca-se em uma posição de retomada das atividades econômicas e defesa do uso da
Cloroquina como medicamento no tratamento de casos da Covid-19.

Ao começar seu discurso, o presidente diz que ser o chefe de uma nação é governar em
um todo e não apenas as partes, relacionando a questão dos empregos paralisados e as medidas
de combate ao coronavírus. Não só apenas em seus pronunciamentos, mas em muitos outros
momentos, Bolsonaro enfatizou que o isolamento social horizontal causaria danos na questão
da empregabilidade do país e que milhares de pessoas seriam prejudicadas por tais ações que
segundo ele eram muito radicais.

Em continuidade, Bolsonaro se solidariza às famílias dos vitimados falecidos pela


doença e diz que o seu compromisso em salvar vidas e que por isso, era necessário um
alinhamento dos seus ministros junto dele. Esta fala do presidente está ligada a divergência
crescente entre ele e o então ministro Mandetta que defendia o isolamento horizontal e não
incentivava o uso da Cloroquina como tratamento da Covid-19.

Novamente o presidente traz a tona a questão do emprego e busca pela segunda vez na
fala do diretor da OMS, uma base para defender o seu discurso de retomadas das atividades,
colocando o isolamento vertical como uma alternativa, em que deveria permanecer em
quarentena apenas os grupos de risco que mais são acometidos pelos sintomas da doença.

Como afirmou o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, cada país tem suas
particularidades, ou seja, a solução não é a mesma para todos. Os mais humildes não
podem deixar de se locomover para buscar o seu pão de cada dia. As consequências do
tratamento não podem ser mais danosas que a própria doença. O desemprego também
leva à pobreza, à fome, à miséria, enfim, à própria morte.
(PRONUNCIAMENTO…,2020d).

Há por parte do presidente a necessidade de equilibrar as duas situações que estavam


mais em voga: o combate a Covid-19 e manutenção do desemprego. Para sustentar o que
defende, Bolsonaro coloca a questão do uso da hidroxicloroquina e cita como um exemplo de
cura devido ao uso do medicamento um caso de um médico que utilizou em si próprio o
medicamento e que receitou para diversos pacientes. Entretanto, não havia por parte da
comunidade científica mundial indícios que comprovassem a eficácia do mesmo.

114
Por último, o chefe do executivo nacional relembrou as medidas econômicas que foram
adotadas para ajudar milhões de brasileiros e empregadores de todo o país que devido a
quarentena assumida por decisões de prefeitos e governadores, interromperam o
funcionamento de muitas atividades como transporte, comércio, escola, entre outras. E
defendeu a retomada das atividades laborais dizendo que este desejo era comum a milhares de
brasileiros. “Tenho certeza de que a grande maioria dos brasileiros quer voltar a trabalhar”
(PRONUNCIAMENTO…,2020d

Pronunciamento do dia 16 de abril de 2020

O contexto em que o presidente se dirigiu à nação no dia 16 de abril teve como destaque
o anúncio da saída do então Ministro da Saúde, Henrique Mandetta. Como já citado houve por
parte do ex-ministro uma postura que diferia do discurso de Bolsonaro em relação a pandemia.
Bolsonaro criticou os estados e municípios que adotaram medidas bem rígidas de isolamento
interrompendo o funcionamento do comércio e escolas e fechando fronteiras de transporte em
seus territórios. Além disso, o mesmo defendia o uso da cloroquina.

Já Mandetta defendia na sua administração da pasta da saúde o isolamento horizontal e


não apoiava o uso do medicamento, especialmente por não existir estudos científicos que
comprovassem a sua eficácia. O que foi comprovado posteriormente em estudos
acompanhados pela OMS. Em uma de suas falas, Mandetta disse que iria se valer da ciência
para combater o vírus.

Diante de tal têmpero, outro fator que colaborou para apimentar o clima se dava pela
aprovação de Henrique junto à opinião popular. Os números mostravam que 64% dos
entrevistados enxergavam como positivo o trabalho do chefe da pasta e 76% rejeitavam sua
demissão. A mesma pesquisa também revelou que o desempenho pessoal do presidente como
chefe do Executivo era desaprovado por 58,2% dos entrevistados, ao passo que 37,6%
aprovavam sua postura.

A sua fala começou por citar uma reunião que havia ocorrido no mesmo dia com o
ainda Ministro. Bolsonaro disse que Mandetta assumiu um compromisso de colaborar para uma
transição mais tranquila possível e rica em dados e detalhes sobre a pasta. E que a exoneração

115
que ocorreria em poucas horas foi em comum acordo. Que ambos pensaram acima de tudo na
saúde do povo brasileiro.

Em pleno ápice da pandemia no país e com a troca no Ministério da Saúde, novamente


Bolsonaro trouxe a temática do emprego em seu pronunciamento. Para ele, o Brasil estava
tratando de duas doenças ao mesmo tempo, a Covid-19 e o desemprego. “É como um paciente
que tem duas doenças, a gente não pode abandonar uma e tratar exclusivamente outra, porque,
no final da linha, esse paciente pode perder a vida” (PRONUNCIAMENTO…, 2020e).

Em continuidade, o presidente atacou de forma moderada a imprensa e responsabilizou


a grande mídia por levar ao cidadão uma compreensão errônea das informações especialmente
no que tange a questão da manutenção dos empregos relacionados com a manutenção da vida
e do combate ao coronavírus. Para o presidente, o clima de histeria que se instalou na sociedade
agravaria mais a situação enfrentada. Novamente trouxe à tona a questão do auxílio
emergencial como ação importante para garantir o funcionamento da economia. E disse que a
ação de cada ministério naquele momento deveria ser realizada não de acordo com o que o
responsável pela pasta acreditaria e que a questão do emprego deveria também ser uma
prioridade de todo o governo. “E a questão de entender também a questão do emprego não foi
da forma que eu achava, como chefe do Executivo, que deveria ser tratada”
(PRONUNCIAMENTO…, 2020e).

Sobre a relação com os poderes Legislativo e Judiciário, o presidente disse que os Três
Poderes deveriam ser tomadas de forma consciente. Já em relação aos prefeitos e governadores,
Bolsonaro disse que eles cometeram excessos em relação ao isolamento social e que o Governo
Federal não é uma de socorro eterna. Que estes deveriam ser responsabilizados pelos problemas
decorrentes de tais medidas.

Para finalizar, o presidente continuou atacando algumas decisões de prefeitos e


governadores que utilizaram de suas forças policiais e civis para impedir que cidadãos saírem
de suas casas.

Os excessos que alguns cometeram, que se responsabilizem por eles. Jamais eu


mandaria as minhas Forças Armadas prender quem quer que seja que estivesse nas
ruas. Jamais eu, como chefe do Executivo, vou retirar o direito constitucional de ir e
vir, seja qual for o cidadão (PRONUNCIAMENTO…,2020e).

116
A seguir apresentamos uma tabela com os acionamentos temáticos feitos pelo
presidente durante o período de análise.

Tabela 03 - Temas acionados nos Pronunciamentos em CNRT

Tema: 06/03 12/03 24/03 31/03 08/04 16/04

Medidas de enfrentamento a Covid-19 X X X X

Minimização da Covid-19 X X X X X

Covid-19 x Economia X X X X

Embate com a imprensa X X

Críticas a governadores X X

Críticas ao isolamento social X X X X

Defesa da Hidroxicloroquina X X X

Apoio aos profissionais de saúde X X

Mensagens religiosas X X X X

Fonte: Elaborado pelos autores (2020).

O tema mais acionado ao longo dos seis pronunciamentos foi Minimização da Covid-
19 - esteve presente em cinco do total analisado. Para minimizar a pandemia, o presidente usou
termos como “histeria”, “pânico”, “gripezinha”, “resfriado”, “brevemente passará”. Tal
evidência deixa claro a postura negacionista do presidente e o discurso que ele estrategicamente
destinou a população brasileira. Kakutani (2018) argumenta que a verdade está em declínio na
sociedade atual. Há uma prevalência da opinião em detrimento do conhecimento científico e
especializado, das emoções acima dos fatos. Quando Bolsonaro ignora os posicionamentos
científicos e cria um discurso paralelo contrário a ciência ele passa a gerar informação na
direção da confirmação de suas crenças, enviesando uma discussão eficiente de combate a
pandemia.
O segundo tema acionado foi “Medidas de Enfrentamento a Covid-19”, “Covid-19x
Economia”, “Críticas ao isolamento social” e “Mensagens religiosas”. Ambos apareceram em

117
quatro dos seis discursos. Tais temas contribuem para refletirmos em quais pilares Bolsonaro
se apoiou para construir sua imagem diante da população, nos pronunciamentos políticos. A
prevalência da categoria “Medidas de Enfrentamento a Covid-19” aponta que ainda que o
presidente minimize a pandemia, ele sente necessidade, enquanto comunicador governamental,
de divulgar as medidas tomadas pelo governo, como uma espécie de propaganda política diante
do olhar do público. Entre as medidas destacadas estão: reforços e investimentos na área da
saúde - (respiradores, equipamentos de proteção, novos leitos), implementação do Auxílio
Emergencial.
No entanto, ao apontar as medidas de enfrentamento tomadas pelo governo, nota-se a
evidente preocupação com a economia do país, até mais do que as próprias questões sociais e
sanitárias da doença. Logo, a categoria “Covid-19 x Economia” também aparece como segundo
tema mais acionado. O presidente ressalta nos discursos a importância de salvar a economia e
de salvar empregos como elementos mais importantes do que a própria crise.
“Críticas ao isolamento social” também foi acionada quatro vezes. É evidente que
Bolsonaro é um personagem fundamental no fluxo de comunicação sobre a Covid-19, dada sua
reputação social, o papel que ocupa e o lugar de fala que está. Ao criticar o isolamento social
e apoiar a abertura do comércio para retomada da economia, o presidente contraria à concepção
científica em detrimento das questões ideológicas e contribui para o processo de desinformação
e na forma como as pessoas vão apreender a realidade. Ao minimizar a importância de algumas
medidas, o presidente condiciona os indivíduos a minimizá-las também.
Ao defender o fim do isolamento social por acreditar que não exista comprovação de
que tal medida seja eficiente, Bolsonaro está conspirando contra a ciência. Para Lima et al.
(2020), as teorias conspiratórias interferem e traz consequências no processo de adoção e
aderência às medidas de contenção e tratamento da doença por parte da população.
“Mensagens religiosas” também apareceu quatro de um total de seis discursos e
demonstra uma estratégia já utilizada durante o período de campanha - de usar o nome de Deus
como forma de sustentar seus discursos. Tal estratégia de narrativa evidencia a pós-verdade -
um tempo em que os fatos estão desvalorizados e são menos importantes do que as crenças e
as emoções dos indivíduos (D’ANCONA, 2018; SANTAELLA, 2019).
“A defesa da hidroxicloroquina” apareceu na metade dos pronunciamentos analisados.
Nota-se que o medicamento se tornou uma “arma política” nas mãos de Bolsonaro, que, apesar
de minimizar a doença, confia fielmente na eficácia do remédio. Essa postura de defesa a

118
cloroquina reforça a sua tese de que o isolamento social tal como está posto pela ciência é
exagerado, e cria um conflito entre ciência e política.
As temáticas menos acionadas foram “Embate com a imprensa”, “Críticas a
governadores” e “Apoio aos profissionais de saúde”. Nota-se portanto que durante os
pronunciamentos em Cadeia Nacional, Bolsonaro evitou utilizar o conflito que tanto alimentou
nas redes, envolvendo a imprensa e os governadores. Visto que, nas redes, ele está falando para
seu público fiel, logo é interessante que ele alimente o conflito para ganhar apoio. Já nos
pronunciamentos, ele se direciona a população em geral, o que lhe exige um posicionamento
mais contido e menos combativo. O “apoio aos profissionais de saúde” - menos acionada nos
discursos - corrobora com importância que o presidente dá a pandemia e os desdobramentos
dela na sociedade.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A administração das estratégias de comunicação governamental são cruciais para
projetar os projetos políticos e garantir a adesão e o apoio popular. Elas funcionam como um
caminho de interlocução entre o governante e a sociedade. No momento de crise em questão,
notamos que, Jair Bolsonaro intensificou os usos de um dos elementos construtores de suas
estratégias comunicacionais - os pronunciamentos em Cadeia Nacional de Rádio e Televisão
(CNRT). O presidente acionou essa estratégia sete vezes apenas no ano de 2020, e seis delas
relacionavam-se com a crise do coronavírus.
No entanto, há que se destacar que a utilização dessa ferramenta comunicacional se
mostrou estratégica. Visto que, dos seis pronunciamentos realizados, quatro aconteceram em
março e dois em abril - nos meses iniciais da crise. Conforme a crise vai aumentando no país e
consequentemente o medo, a insegurança das pessoas, o presidente passa a não fazer mais uso
do espaço de fala anteriormente utilizado e deixa a população ausente de explicação e
posicionamento do governo. Ou seja, em momentos onde a crise se intensifica o presidente
desaparece. As mensagens ocorrem somente no espaço reservado de suas redes sociais,
destinada mais especificamente para seus seguidores.
Em relação ao discurso feito nos pronunciamentos, observamos que, o presidente
recorre principalmente à estratégia de minimização da doença, associando-a a gripes e
resfriados. Ele utiliza-se de simplificações para reduzir a gravidade do problema, uma
consequência da ausência ou intenção de ignorar e negar conhecimentos científicos e priorizar
crenças e fatos que corroboram com seus posicionamentos políticos - característica da pós-
verdade.

119
Há exemplo de seu comportamento político durante todos os anos em que esteve
envolvido com a política, na crise da Covid-19, Bolsonaro utilizou-se dos confrontos. Ao invés
de gerir, ele alimentou e ampliou a crise, pois é no confronto que ele aparece e se reconhece.
A própria pandemia foi discursivamente construída como mais um inimigo a ser combatido
pelo governo na disputa política. O presidente deixa claro em seus discursos os embates
envolvendo governadores e prefeitos e até mesmo a imprensa. Indo mais além, estes não são
os únicos inimigos do governo, mas o vírus personifica problemas pelos quais o governo
precisa lutar: o desemprego, a fome, a economia.
Se considerarmos o fato de que ele aciona a pandemia como um inimigo político a ser
combatido, a hidroxicloroquina e a cloroquina funcionam como ferramenta de luta e a solução
para o problema. A defesa insistente do remédio emite a mensagem de que a Covid-19 é uma
enfermidade conhecida e para as quais já existem protocolos, logo as pessoas podem retomar
sua vida normalmente e em caso de infecção ao novo vírus, basta ingerir a medicação. Dessa
forma, Bolsonaro constrói uma realidade distorcida sobre a Covid-19 como forma de
legitimação do seu poder diante da população e atua de modo influente na forma como as
pessoas vão apreender a crise e organizar seus pensamentos e comportamentos.

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

D’ANCONA, Matthew. Pós-Verdade: A nova guerra contra os fatos em tempos de Fake


News. São Paulo, Faro Editorial: 2018.

KAKUTANI, M. A morte da verdade: notas sobre a mentira na era Trump. Rio de Janeiro:
Intrínseca; 2018.

LIMA, C.; SANCHEZ-TARRAGÓ, N.; MORAES, D.; MAIA, M. Emergência de saúde


pública global por pandemia de COVID-19: desinformação, assimetria de informações e
validação discursiva. São Paulo. 2020. Disponível em:
https://www.researchgate.net/publication/341278832_Emergencia_de_saude_publica_global
_por_pandemia_de_COVID-
19_desinformacao_assimetria_de_informacoes_e_validacao_discursiva

PEROSA, T. O império da pós-verdade. Em


https://epoca.globo.com/mundo/noticia/2017/04/o-imperio-da-pos-verdade.html .Acesso em
09/09/2020.

120
RECUERO, R.; SOARES, F.; (2020). O Discurso Desinformativo sobre a Cura do COVID-
19 no Twitter: Estudo de caso. 10.1590/SciELOPreprints.84.

SANTAELLA, Lucia. A Pós-Verdade é verdadeira ou falsa? Barueri, SP: Estação das Letras
e Cores, 2019.

SOUSA JÚNIOR J.H.; RAASCH, M.; SOARES, J.C.; DE SOUZA L.V.; Da desinformação
ao caos: uma análise das fake news frente à pandemia do coronavírus (COVID-19) no
Brasil. Cadernos de Prospecção. 2020;13(2 Covid-19):331-46.

121
Redes e discursos sobre a cloroquina no Twitter

MARINA ALVARENGA BOTELHO


Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ)
E-mail: inabotelho@gmail.com

BÁRBARA BELIZE MOREIRA BOECHAT


Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ)
E-mail: barbs.boechat@gmail.com

MAYRA REGINA COIMBRA


Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
E-mail: mayrarcoimbra@gmail.com

LUIZ ADEMIR DE OLIVEIRA


Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
E-mail:luizoli@ufsj.edu.br

1. Introdução

Desde o final de 2019 o mundo e o Brasil enfrentam uma pandemia causada pela Covid-
19, ou o novo coronavírus. Em janeiro de 2021, já são mais de dois milhões de óbitos causados
pela doença no mundo e mais de 95 milhões de casos confirmados40. Só no Brasil, de acordo
com o Governo Federal41, o total de mortes até o momento é de quase 213 mil, com cerca de 9
milhões de casos confirmados e contabilizados.
Já no início da pandemia, a Organização Mundial da Saúde (OMS), inúmeros países e
a comunidade científica mundial se concentraram na produção de vacinas ou tratamentos mais
eficazes para a Covid-19. Um artigo escrito por Negri et al.42 aborda o número de ensaios
clínicos sobre a doença em andamento em vários países. Segundo os autores, a maior parte dos
ensaios registrados na OMS (aproximadamente 50% deles) analisa os efeitos de várias drogas
sobre os pacientes infectados com o coronavírus. Enquanto 476 estudos buscam avaliar a
eficácia de tratamentos não farmacológicos, mais de 160 se voltam à prevenção da doença.

40
Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), retirados de
https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019. Acesso em 21 jan 2021.
41
Dados do Painel Coronavírus https://covid.saude.gov.br/. Acesso em: 21 de jan. de 2021
42
Artigo publicado pelo Centro de Pesquisa em Ciência, Tecnologia e Sociedade, em 28/05/2020. Disponível em:
<https://www.ipea.gov.br/cts/pt/central-de-conteudo/artigos/artigos/198-quais-sao-as-pesquisas-em-andamento-
para-prevencao-e-tratamento-da-covid-20>. Acesso em: 20 de jun. de 2020.

122
Diante disso, é perceptível que os estudos relacionados à Covid-19 ainda são incipientes e não
existe um consenso científico sobre drogas eficazes no tratamento da doença.
O ambiente de dificuldade que o vírus impõe à área científica se soma ao cenário de
desinformação que circula em torno do tema. Caixões enterrados vazios; água com limão para
prevenir o vírus; grandes farmacêuticas transnacionais responsáveis pela criação e propagação
do vírus com a finalidade de vender vacina; cloroquina como cura para a doença causada pelo
novo coronavírus; famílias recebendo dinheiro para colocar Covid-19 como causa de óbito de
parentes; são algumas das notícias falsas que circularam por redes sociais e sites de notícia de
veículos alternativos.
A pandemia do coronavírus já originou uma torrente de conteúdos falsos espalhados
pelas redes sociais, que acabam por gerar uma teia de desinformação, com riscos de
comprometimento do combate à doença. Uma pesquisa realizada pela Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz), entre 17 de março e 10 de abril revelou um alto índice de disseminação de
informações incorretas do Coronavírus nas redes sociais, sendo que 65% envolviam curas
milagrosas e não comprovadas pela ciência, 5,7% se relacionavam a golpes bancários, 5%
tratavam de projetos falsos para arrecadar recursos voltados para instituições de pesquisa e
4,3% desqualificavam e tratavam a doença como uma manobra política43.
Nesse ambiente infodêmico, Paganotti (2020) identificou que grande parte das notícias
falsas identificadas por uma conta de varredura automática de fake news no Twitter, utilizavam
duas principais estratégias de minimizar a ameaça do vírus: acusar responsáveis pela
propagação das doenças como seus beneficiários (teorias da conspiração); e apresentação de
tratamentos sem comprovação científica.
No que se refere a tratamentos sem comprovação, alguns estudos investigaram a
propagação e a circulação de desinformação, no Twitter, sobre a pandemia de Covid-19, com
ênfase no uso da hidroxicloroquina como promessa de cura ou de medicação eficiente no
tratamento precoce da doença. Recuero et. al (2020) mapearam, entre março e julho de 2020,
159.560 links sobre o tema. Para os autores, grande parte desse conteúdo é considerado
desinformativo, já que não há evidências científicas que comprovem a eficácia do
medicamento, e já foram desmentidos por agências de fact-checking do Brasil e do mundo.
No entanto, como ressalta Paganotti (2020), na grande maioria das vezes, o conteúdo
publicado pelas agências não circula nas mesmas redes que compartilham desinformação,

43
Disponível em: http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/informe/site/materia/detalhe/48662. Acesso em: 10 de
jan. de 2021.

123
ressaltando-se, ainda, que “parte do público impactado por conteúdos falsos em redes sociais
podem nem saber da existência de plataformas de verificação” (p. 5). Nesse cenário, reforça-
se, portanto, como apontam Recuero et. al (2020), a importância de se compreender os
ambientes de propagação e circulação de desinformação. Os autores caracterizam os conceitos
de desinformação como informações que são “distorcidas, manipuladas ou inteiramente falsas
que são criadas intencionalmente com a função de enganar para gerar algum tipo de ganho
político” (p.3). Entende-se esse fenômeno como, em grande parte, associado à dinâmica das
redes e suas consequências para a esfera pública.
Recuero et. al (2020) também discutem polarização política, ideológica (grupos
possuem opiniões divergentes) e afetiva (quando há aversão entre os grupos), como
características de grupos sociais tanto online, quanto offline. Normalmente, nas redes, esses
grupos são caracterizados por possuir muitas conexões internas e poucas conexões externas,
reforçando o caráter homofílico das redes (RECUERO et al, 2018; SANTAELLA, 2018) e, por
vezes, a radicalização de indivíduos.
Outro conceito importante trazido pelos autores é o de “câmaras de eco”, relativo ao
isolamento de indivíduos de grupos polarizados, com posicionamentos semelhantes, que
possuem acesso e se alimentam apenas de opiniões e informações que já reforçam as crenças
do grupo. Vale ressaltar que, nesse cenário, os indivíduos mais radicalizados são os mais
participativos, e que a circulação de informação nas redes depende dos usuários e dos
algoritmos dos sites de redes sociais.
As bolhas interativas, a imensa disponibilidade de informação, a horizontalização e a
descentralização da produção de conteúdo são mudanças de paradigma que impulsionam a
circulação de informação duvidosa e impõem novos desafios para o campo da comunicação
social. Menezes (2018) contribui para a conceituação do fenômeno das fake news. Ele
diferencia as false news das fake news no sentido de que as últimas são produzidas com o
objetivo de provocar a desinformação e as primeiras pode ser fruto do descuido e da
manipulação equivocada ou enviesada de dados. As false news sempre existiram no jornalismo
e na política. Mas as fake news são definidas como algo novo, com cerca de 20 anos, que teve
início com a popularização da internet.
Esse cenário é considerado ideal para proliferação de narrativas “alternativas” e teorias
da conspiração, assim como é o caso da hidroxicloroquina, medicamento cuja eficácia para o
combate e a cura da Covid-19 não é comprovada pela ciência. Sobre isso, Araújo e Oliveira
(2020) reforçam a argumentação a partir do estudo de Souza (2020) e do posicionamento da
Academia Brasileira de Ciências (ABC) e Academia Nacional de Medicina (ANM), que

124
afirmam a não eficácia da hidroxicloroquina para cura e tratamento da Covid-19. Não obstante,
acredita-se que a defesa do medicamento mantém alta taxa de adesão no ambiente das redes
sociais.
Nesse sentido, o presente artigo tem como objetivo investigar e compreender os
discursos sobre a cloroquina e a hidroxicloroquina que circularam na rede social Twitter e quais
são os principais atores que compõe as redes de divulgação do medicamento, no período de
março a dezembro de 2020, com o intuito de responder como se estruturaram os principais
grupos de conversação (clusters) em torno do tema.
A pesquisa se apoiará na Análise das Redes Sociais (ARS) que, segundo Recuero et al.
(2018) possibilita estudar as conexões, ações e interações entre os atores de uma determinada
rede, associada à etnografia digital, que leva em considerações fatores culturais e conjunturais.
Para isso, utiliza-se de metodologias de ARS, por meio de coleta de dados no Twitter, via API,
e com a utilização do software Gephi será realizada a análise da rede, com o intuito de mapear
os perfis que se apresentarem mais influentes na seleção das narrativas, sendo considerados os
microlog com maior número de conexões recebidas (maior grau de entrada), menções e
compartilhamento (retweets).

1. Preparando o terreno: internet, redes sociais e ampliação da esfera pública

A chegada do acesso à internet em escala global, junto a dispositivos pessoais,


reconfigurou as relações sociais, as formas de aprendizado, a produção, o consumo e a
circulação de notícias e objetos culturais, bem como a própria esfera pública. Essas
transformações passam a acontecer no ciberespaço, esse novo espaço ubíquo onde circulam
informações e formam-se redes. Propositor do termo no meio acadêmico, Levy (2010) indica,
ainda, a emergência da cibercultura: o conjunto de técnicas, materiais e intelectuais que ali
circulam.
Como aponta Castells (2003) “a rede é a mensagem”. Em outras palavras, é nessa
galáxia do ciberespaço e da cibercultura que se reconfiguram os valores, os comportamentos e
a comunicação. Isso permite uma cultura de aproximação entre figuras públicas e privadas,
marcas e consumidores, figuras políticas e eleitores, principalmente a partir do novo paradigma
comunicacional, como apontado por Lévy (2010) e Jenkins (2009), no qual todos passam a
ocupar o papel simultâneo de emissores, receptores e consumidores em potencial. Essa nova
capacidade comunicacional, cuja função era, antes, designada à mídia tradicional e grandes
empresas e grupos, dá voz a qualquer pessoa que possua um dispositivo e acesso à internet.

125
Nesse contexto, discute-se que o ciberespaço e, principalmente as redes sociais, passam
a ter um potencial deliberativo e a propor debates públicos. Gomes (2005) aponta diferentes
graus de participação política e possibilidades de uma democracia digital, e uma consequente
ampliação da esfera pública. Nesse sentido, para Lemos e Levy (2010), as redes sociais podem
ser consideradas como “novas ágoras on-line” e, portanto, são um importante espaço de
formação de opinião.
Esse cenário de redes infinitas e de dilúvio informacional, somado a uma conjuntura
internacional do mundo contemporâneo, passa a influenciar a percepção da população quanto
ao que é verdade ou não. O final da segunda década dos anos 2000 viu surgir o termo pós-
verdade. Apesar da já existente postura cética e da impossibilidade de se alcançar a verdade
como algo totalizante, a ideia da pós-verdade põe em xeque os principais mediadores de
conhecimento e informação da sociedade de comunicação de massa: a mídia e a ciência.
Ciente da amplitude filosófica que envolve o conceito, a nova preposição está alinhada
à explosão de conteúdos falsos, em inglês, fake news, que são disseminados em ambientes
digitais e que provocam profundos impactos nas dinâmicas políticas e sociais contemporâneas.
Para Santaella (2019), a negação da ciência tem se mostrado como o caráter mais nefasto da
era da desinformação. Na mesma corrente, Sergio Amadeu (2019) parte da premissa de que os
discursos que inventam, distorcem ou negam fatos e acontecimentos estão a serviço de
interesses econômicos, religiosos e políticos. Muitas dessas práticas discursivas que carregam
conteúdos falsos visam reconstruir a história, buscam alterar o passado para reconstruir o
futuro.
Para Afonso e Quinan (2019) a crise democrática de escala global se traduz em uma
crise epistemológica que resulta na descrença das instituições fundamentais, dentre as quais a
ciência. De acordo com Silverinha (2018) se antes refletia-se a ideia de uma verdade mais
próxima da ciência ou do fato, tem-se uma sociedade inundada por informações e que
descredibiliza a mídia e o método científico, que passa a apelar ao afeto e ao reforço de crenças
pessoais. A dinâmica das redes reitera esse fenômeno por diversos fatores, dentre os quais por
ser pautada em algoritmos homofílicos – as pessoas passam a se relacionar com outras ou com
conteúdos que vão de encontro a seus posicionamentos.
van Zoonen (2012) nomeou de I-pistemologia o processo segundo o qual os indivíduos
rejeitam a epistemologia científica como tal e tentam substituí-la pelo bom senso das pessoas,
suas experiências pessoais e sentimentos emocionais. O autor explica o fenômeno a partir da
dicotomia entre a epistemologia que se preocupa com a natureza, métodos e fontes de
conhecimento e a I-pistemologia que responde às perguntas com base no self (eu mesmo), no

126
julgamento subjetivo, na memória individual e tem a internet como grande facilitador do
processo.
Para Santaella (2019), esse fenômeno conhecido como as “câmaras de eco” se propaga
com mais intensidade nas redes, já que o ambiente se constitui a partir de um “ecossistema
individual e coletivo de informação viciada na repetição de crenças inamovíveis” (2019, p. 10).
Sobre isso, Santaella (2019) reflete a ideia de “bolhas” nas redes sociais como “molduras
ideológicas”, ou seja, há uma unilateralidade de visões dentro de espectros políticos – lados
diferentes não dialogam – o que acaba por contribuir para que crenças já existentes se tornem
fixas. Para a autora, isso pode levar pessoas mais vulneráveis a estarem constantemente sujeitos
a manipulação, desinformação e notícias falsas. Isso porque, sob o viés da psicologia cognitiva,
ainda de acordo com a autora, as relações passam a operar na centralidade do “viés de
confirmação”: as chances de um sujeito, ao ser confrontado com informações que contrariem
sua visão de mundo, aceitar esse novo dado, mudar sua opinião ou confrontar suas crenças, são
baixas.

2.1 Fake news e desinformação


A partir de 2015, dois acontecimentos mundiais, pautados na disseminação de notícias
falsas, manipuladas ou fora de contexto, e a ideia de fake news e desinformação se tornaram
centrais para compreender a comunicação no contexto contemporâneo. A campanha para o
Brexit, no Reino Unido, e a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos foram os dois
momentos sinalizadores para uma nova configuração na maneira de se produzir e difundir
conteúdo.
No Brasil, com a eleição de Jair Bolsonaro, não foi diferente. Diversos estudos44,
reportagens45 e checagem de agências comprovaram que a campanha política do presidente foi,
em grande parte, constituída por esse tipo de conteúdo, a partir de falas46 tanto do próprio

44
MARANHÃO FILHO, E. M. A. et al. “Fake News acima de tudo, fake news acima de todos”: Bolsonaro
e o “kit gay”, “ideologia de gênero” e o fim da “família tradicional”. Revista Eletrônica Correlatto v. 17, n. 1.
Dez 2018.
FERREIRA, R. Rede de mentiras: a propagação de fake News na pré-campanha presidencial brasileira.
Observatório (OBS*) SpecialIssue, p. 139-162. 2108.
45
Disponível em: http://www.cpop.ufpr.br/portal/eleicoes-2018-a-relacao-entre-fake-news-e-os-candidatos-jair-
bolsonaro-e-fernando-haddad/ Acesso em: 5 fev 2021;
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/18/actualidad/1539847547_146583.html Acesso em: 5 fev 2021;
https://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2020-05-05/fake-news-e-ferramenta-politica-de-bolsonaro-diz-
cientista-politica.html Acesso em: 5 fev 2021.
46
Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2018/10/28/tudo-sobre-bolsonaro/ Acesso em: 5 de fev.
2021.

127
presidente, quanto a partir de disparo em massa47 em redes sociais. Pode-se afirmar48, ainda,
que a reação do presidente a crises, principalmente à crise causada pela pandemia de Covid-
19, mantém esse padrão de comportamento, somado a discursos de negação da ciência.
Embora ainda seja contraditório o conceito de fake news na academia, Gomes e
Dourado (2019) apontam o fenômeno como sendo necessariamente uma questão política. Para
os autores, para compreendê-lo na sociedade contemporânea, deve-se olhar para as redes
sociais e às discussões do que é real e factual em relação ao jornalismo e à ciência,
principalmente. Para ele, a produção e a disseminação de fake news não é, necessariamente,
algo relativo à área do jornalismo, mas é uma prática política, uma vez que visa atacar as
instituições que possuem credibilidade informativa, e, consequentemente, desestabilizar a
democracia.
Os atores apontam em estudo feito a partir da campanha presidencial de 2018, quatro
os elementos necessários para se avaliar fake news: “o contexto da guerrilha informativa, os
meios e modos de propagação, a mimetização jornalística e o teor político da história”.
(GOMES e DOURADO, 2019, p.38). Ainda nesse estudo, os autores refletem o esforço das
agências de checagem, que, por não circular nas mesmas redes que disseminam as notícias
falsas, acabam não sendo eficientes no combate à desinformação.
Recuero e Gruzd (2019) reforçam a existência das fake news antes mesmo da existência
das redes sociais, no entanto, reconhecem sua maior disseminação a partir da sociedade de
redes. Seu conceito pode ser baseado a partir da falta de autenticidade de uma notícia e o
propósito de enganar, somados ao uso da narrativa jornalística em sua forma: “uma informação
falsa intencionalmente divulgada, para atingir interesses de indivíduos ou grupos” (p.32), o que
vai de encontro à ideia de Gomes e Dourado (2019) de que é um fenômeno político antes de
ser um fenômeno jornalístico.
Para os autores, a ideia de notícias falsas está ligada também a um porvir: cria-se a
narrativa de que algo irá acontecer. Podemos citar como um exemplo nada sutil a ideia
conspiratória de que as vacinas chinesas contra a Covid-19 possuirão microchips que
permitirão o controle dos sujeitos por meio de antenas com a tecnologia 5G49. Para os autores,
existem três elementos principais que complementam a definição de fake news, como o uso da

47
Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/06/18/politica/1560864965_530788.html Acesso em: 5 de
fev. 2021.
48
Ricard, J., Medeiros, J., (2020). Using misinformation as a political weapon: COVID-19 and Bolsonaro in
Brazil, The Harvard Kennedy School (HKS) Misinformation Review, Volume 1, Issue 2. Acesso em 5 fev 2021.
49
Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2020/08/04/verificamos-vacina-5g-microchip/ Acesso em:
2 de fev 2021.

128
narrativa jornalística em sua forma, a falsidade total ou parcial dessa narrativa e a
intencionalidade de se enganar ou criar falsas percepções no público, com ênfase na difusão
desse conteúdo pelas redes sociais. (RECUERO e GRUZD, 2019).
Nesse ambiente é consensual que a ampliação do fenômeno da desinformação encontra-
se imbricada com o crescimento exacerbado das fake news50 que, amparadas pelas redes
sociais, tais como Facebook, Twitter e WhatsApp, contribuem significativamente para que
conteúdos falsos se espalhem com rapidez e tenham longo alcance. Apesar de se tratar de um
fenômeno antigo, a desinformação alcançou acentuada proporção em função do surgimento
das redes sociais. No intuito de tipificar o conceito, inúmeros pesquisadores revisitaram
definições sobre o termo. Wardle e Derakhshan (2017) apresentaram um quadro conceitual
nomeado de “Information Disorder”, com o intuito de estabelecer uma distinção sobre o que
eles nomearam de conteúdos de desinformação.
Baseados nas dimensões dano e falsidade, os autores contextualizaram as diferenças
em três categorias: “mis-information”, ou informação incorreta, mensagem falsa que comporta
conteúdo enganoso, mas sem intenção de causar dano; “mal-information”, ou má informação,
constituída com a matéria-prima da realidade, mas fruto de vazamento, assédios e discursos de
ódio, usadas com a finalidade de prejudicar e, por fim, “dis-information” ou desinformação,
informações falsas produzidas com vistas a causar dano seja para um indivíduo, grupo social,
seja organização ou país.
Pinheiro e Brito (2014), ao descreverem o conceito de desinformação, determinam três
distinções, a saber: ausência de informação, informação manipulada e engano proposital. A
ausência de informação está associada ao estágio de carência de cultura, de total ignorância e
precariedade informacional devido ao total desconhecimento de determinado tema. Já a
manipulação da informação, segundo os autores, traz “uma relação com o fornecimento de
produtos informacionais de baixo nível cultural, cuja consequência direta seria a imbecilização
de setores sociais” (PINHEIRO e BRITO, 2014, p. 5).
Nesse caso, a desinformação teria como propósito a alienação da população, com o
intuito de manter projetos de dominação política, ideológica ou cultural. O engano proposital,
por sua vez, assume o mesmo sentido já apresentado por Wardle e Derakhshan (2017), no qual
as informações circulam com o propósito de enganar alguém, ou seja, trata-se de um ato
deliberado para induzir ao erro. Devido às relações perigosas da desinformação na esfera da

50
Diante da complexidade e imprecisão que circunscrevem os termos fakenews e desinformação, será realizada
durante a fase de desenvolvimento da pesquisa uma rigorosa delimitação conceitual dos termos.

129
saúde pública causada pela propagação de notícias falsas, torna-se necessário ampliar o
conhecimento sobre os mecanismos que fazem recrudescer esse tipo de fenômeno, que tem o
potencial de causar danos significativos para a população.

2. Procedimentos metodológicos

A presente investigação é de abordagem qualitativa e caráter descritivo-analítico-


interpretativo. Como método de coleta de dados, foi utilizado o Snscrape, um projeto open
source para recolhimento de dados do Twitter. Como parâmetros de busca foram utilizados os
marcadores “cloroquina” e “hidroxicloroquina” entre os meses de março/2020 a
dezembro/2020. Foram coletados 1.500 tweets por mês, sendo a amostra total composta de 15
mil tweets.
Para análise de dados, o estudo se ancora na ARS, uma “abordagem de cunho
estruturalista das relações entre os atores e sua função na constituição da sociedade”
(RECUERO et al, 2018, p.39), no caso, das redes online.
Nesse sentido, a fim de trabalhar os dados recolhidos no programa Gephi (análise de
redes e clusters) e no programa Iramuteq (análise automatizada de conteúdo), criou-se um
script em Python. Cada grafo formado contém menções e retweets. Para compreender as
menções, sua modelagem se deu de forma que cada usuário é um nó, e cada pessoa citada pelo
dono deste tweet também é um nó, e, por sua vez, as arestas eram direcionadas da pessoa que
citou para a pessoa citada. Para se pensar os retweets nos grafos, o script tomou como nó todo
usuário que fez um retweet e todo usuário que foi retweetado, formando assim dois nós ligados
de forma direcionada da pessoa que retweetou para a pessoa retweetada.
Os grafos são as representações visuais das matrizes e métricas de uma rede, ou seja, o
conjunto de inter-relações entre seus elementos. Neles, são observadas as relações entre os nós
(atores sociais, representados por seus nicknames ou @) e as arestas (conexões). É possível
estabelecer relações de peso e força para os nós e os clusters (definido como um agregado
denso de nós) formados em suas conexões, sendo que quanto maior o número de interação
entre duas ou mais contas, maior o peso dessas conexões. Cada grafo pode ter um ou mais
clusters, que podem ser mais ou menos densos (RECUERO et al, 2018).
Em relação à métrica de nós, os grafos podem ser mais ou menos centralizados, de
acordo com o grau do nó e outros fatores. Quanto mais conexões um nó possuir, mais central
ele será para a rede. Esse grau pode ser medida pela quantidade de conexões que um nó recebe
(grau de entrada ou indegree) ou pela quantidade de conexões feitas por um nó (grau de saída

130
ou outdegree) (RECUERO et al, 2018). No presente artigo, analisa-se o grau de entrada dos
nós nos clusters por meio de menções e retweets. Utilizou-se o parâmetro Force Atlas 2, que é
baseado em relações de força, no Gephi, para representar essas relações.
Vale ressaltar ainda que os grafos gerados são um recorte espacial e temporal da rede
de conexões investigada, e portanto, são limitados, embora os dados sejam generalizáveis. A
escolha do Twitter deu-se por compreender que é uma das principais redes utilizadas no Brasil,
sendo que somos o quinto51 país mais presente na rede, bem como é uma das redes que ainda
mantém a API aberta.

3. Resultados e análise dos dados

Em relação às métricas da rede formada pelos 15 mil tweets coletados, obteve-se alguns
resultados. A rede possui diâmetro 2, valor considerado baixo e que indica alto grau de
proximidade entre as conexões. Em outras palavras, para se tomar um caminho mais curto para
ir de um ponto a outro na rede, percorre-se, em média, dois nós.
A modularidade da rede, que varia de 0 a 1, é relativa à força de sua divisão em clusters
ou comunidades. Obteve-se o valor de 0.947, o que indica alta modularidade, ou seja, as
comunidades divididas são bem visíveis na rede, e pouco aleatórias. Quanto mais alta a
modularidade, maior é a densidade entre os nós da própria comunidade, com baixa conexão
entre nós de diferentes comunidades. Na rede em questão, portanto, há pouco diálogo entre as
comunidades “vizinhas”.
Como característica geral da rede, pode-se perceber que há muitas pessoas diferentes
falando de assuntos diferentes ou que poucas pessoas falaram das mesmas coisas. Temos
propagadores, centros e grupos, mas não necessariamente estão interconectados entre si. Esse
resultado pode ter influência da forma como é feita a coleta de dados, uma vez que não é
possível controlar a ordem de coleta dos tweets.
Para a análise dos grafos optamos por olhar, separadamente, para cada cluster, como
pode ser observado na Imagem 2, identificando os principais atores e conteúdos que ali
circulam. Para isso, identificamos por cor cada cluster, sendo um total de seis principais
agrupamentos. Além disso, para verificar o conteúdo veiculado nessas redes, utilizamos o
software Iramuteq para identificar categorias e gerar nuvens de palavras, que serão analisadas
junto a cada grafo. Para esse tipo de análise, que contribui para gerar hipóteses, leva-se em

51
https://www.statista.com/statistics/242606/number-of-active-twitter-users-in-selected-countries/ Acesso em 11
fev 2020.

131
conta os termos mais replicados, hierarquicamente representados por seus tamanhos na
representação visual. Ou seja, os termos mais replicados aparecem maiores.
Imagem 2. Principais clusteres – cloroquina/hidroxicloroquina

Fonte: produzido pelos autores

4.1 Análise dos grafos


O grafo geral (Imagem 2) é caracterizado por uma rede com um núcleo denso, onde se
concentram vários clusters, com distintos perfis que estabelecem uma posição diversificada em
relação a cloroquina/hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19. A reunião por cores
aproxima os perfis que mais se relacionam, tanto em termos de conexões, quanto,
consequentemente, de discursos.
O “Cluster 1”, que está na cor rosa, representa 6,26% da rede total. Tem como perfil
principal a conta do usuário @jairbolsonaro, principal defensor da utilização da cloroquina no
tratamento de pacientes com Covid-19. A nuvem de palavras (Imagem 3) produzida pelo
software Iramuteq indica os principais termos recorrentes no tweets, com amplo destaque para

132
Hidroxicloroquina, Laboratório, Covid, farmacêutico, Brasil e Presidente. Fundamentalmente,
os tweets compartilhados no cluster se dividem em duas vertentes: narrativas que usam dados
de pesquisas e reportagens com especialistas que atestam a eficácia do fármaco, como também
apontam os investimentos do Governo Federal na produção do medicamento. Como exemplo,
parte dos tweets retratam pesquisas divulgadas no exterior, como a publicação realizada pelo
influente perfil de @carlazambelli52 que tuitou que teste com cloroquina na Itália dá resultado
positivo. Os tweets da conta de Bolsonaro relatam as ações do Governo Federal no combate à
pandemia, dentre as quais os esforços da Forças Armadas para ampliar a produção de
cloroquina ao lado do Laboratório Químico Farmacêutico do Exército Oficial e do Laboratório
Químico Farmacêutico da Força Aérea Brasileira (FAB) oficial.
O fato do cluster se formar com forte participação de Bolsonaro e os seus apoiadores
demonstra que a rede se transformou em um espaço polarizado: por um lado, as narrativas de
médicos, profissionais da saúde e pesquisadores sobre ausência de pesquisas que comprovem
o efeito do medicamento nos pacientes infectados pelo coronavírus e, por outro, as ações de
Bolsonaro e aliados para tentar legitimar a prescrição da Cloroquina/Hidroxicloroquina.

Imagem 3. Nuvem de palavras do Cluster 1

Fonte: produzido pelos autores

O “Cluster 2”, na cor verde escuro, ocupou um espaço de 3,56% no grafo. Tem como
perfil principal a conta @BolsonaroSP, que pertence ao Deputado Estadual por São Paulo,
Eduardo Bolsonaro, filho do Presidente Jair Bolsonaro. Semelhante ao cluster anterior, a
nuvem de palavra (Imagem 4) evoca termos como Covid, Cloroquina, Hidroxicloroquina,
estudos, medidas etc. Entre os outros perfis mais influentes, se destacam @conexaopolitica53,
@heliobeltrao54 e outros agentes do mercado financeiro. Em defesa à utilização do
medicamento, os tweets trazem relatos de médicos, pacientes e pesquisas internacionais que

52
Deputada Federal por São Paulo (PSL), Carla Zambelli
53
Site de notícias “alternativo”.
54
Presidente do Instituto Mises Brasil

133
comprovariam o efeito positivo do produto em pacientes infectados pelo coronavírus. O
polêmico estudo do médico francês Didier Raoult em defesa da cloroquina em tratamentos
contra Covid-19 foi amplamente retuitado no cluster, ainda que erros na condução do método
fossem expostos por distintos pesquisadores na mídia.
O cluster também antagoniza como as narrativas dos profissionais da saúde e
pesquisadores, amplamente divulgadas pela imprensa sobre os riscos da utilização da
cloroquina/hidroxicloroquina sem um protocolo devidamente recomendado.

Imagem 4. Nuvem de palavras do cluster verde escuro

Fonte: produzido pelos autores

O “Cluster 3”, na cor azul, ocupou um espaço de 2,06% no grafo. Os perfis mais
influentes foram de @Rconstantino55, @monicabergamo e @GrupoJovemPan. Interessante
destacar que esse cluster se move em torno da defesa da Cloroquina/Hidroxiclorocquina e a
nuvem de palavras (Imagem 5) traz termos semelhantes aos anteriores, sendo que as palavras
mais mencionadas foram: medicamentos, Bolsonaro, FDA, forças etc. O tweet do jornalista
Rcontastantino “Vamos celebrar as notícias boas! Xí, urubus! Parem de torcer pelo pior para
fins políticos. A FDA (Food and Drug Administration) acaba de liberar o uso emergência para
a cloroquina e hidroxicloroquina no tratamento de pacientes hospitalizados com Covid-19” foi
amplamente retuitado. A aprovação do medicamento pela Agência Federal do Departamento
de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos recebeu menções de inúmeros perfis no
cluster. Pesquisas e dados comparativos entre a eficácia da cloroquina e do uso da maconha
medicinal mobilizou os tweets em defesa do fármaco.
Esse cluster se move em torno de menções de personagens públicos que apóiam as
ações do presidente no enfrentamento da pandemia, como o tweet de @Rconstatino, que aponta

55
Rodrigo Constantino, jornalista e blogueiro.

134
que Bolsonaro estava certo e o tratamento com hidroxicloroquina reduz em sete vezes
internações por Covid-19.

Imagem 5. Nuvem de palavras do cluster azul

Fonte: produzido pelos autores

O “Cluster 4”, que está na cor amarela, representa 1,92% da rede total. Os perfis mais
influentes pertencem aos jornais de notícias on-line @UOL e @UOLNotícias. A nuvem de
palavras (Imagem 6) se estruturou em torno dos termos Bolsonaro, Cloroquina, Covid, não,
jornalistas, Brasil, Zambelli etc. Trata-se de um cluster em que circulam fundamentalmente
tweets com conteúdos informativos sobre o impacto da Covid-19 no Brasil. Ressalta-se
conteúdo que alerta sobre os riscos do uso da cloroquina, como o texto que traz informações
sobre as medidas judiciais em que Procuradores pedem suspensão de norma que ampliou o uso
da cloroquina.
No cluster também circularam tweets com críticas aos apoiadores de Bolsonaro, com
destaque para Carla Zambelli, que dizia ter contraído covid-19 e se curado da doença em função
do uso precoce da cloroquina. O resultado negativo divulgado pelo hospital e publicado pelo
jornal com a chamada “Deputada Carla Zambelli não teve covid-19, diz hospital em boletim”,
foi amplamente retuitada no cluster. É um cluster que polariza com os defensores da
cloroquina/hidroxicloroquina, a partir de conteúdos de notícias dos jornais vinculados ao
Grupo Folha de S. Paulo, veículo de comunicação que se posiciona de maneira crítica ao
governo e que desde o início da pandemia questiona a condução do presidente Bolsonaro no
enfrentamento da doença.

Imagem 6. Nuvem de palavras do cluster azul

135
Fonte: produzido pelos autores

O “Cluster 5”, na cor vermelha, ocupou um espaço de 1,65% no grafo. Os perfis mais
influentes pertencem aos jornais @OEstadão, @veramagalhaes e @estadaopolitica. A nuvem
de palavras (imagem 7) se estruturou em torno dos termos Coronavírus, Covid, Bolsonaro,
gripezinha, países etc. É um cluster em que conteúdos informativos sobre o impacto da Covid-
19 no Brasil e as ações de Bolsonaro para conter a crise tiveram maior destaque. No cluster, o
tweet de maior circulação menciona que países que não seguiram as recomendações da
Organização Mundial da Saúde (OMS) acerca da hidroxicloroquina tiveram mais êxito do que
aqueles que as seguiram. A tratativa de tratar a covid-19 como uma gripezinha foi altamente
retuitado no cluster que se estruturou em torno das narrativas jornalísticas sobre a pandemia,
em polarização com os perfis de apoiadores as ações de Bolsonaro na condução da pandemia.

Imagem 7. Nuvem de palavras do cluster vermelho

Fonte: produzido pelos autores

O “Cluster 6”, na cor verde claro ocupou o espaço de 1,65% no grafo. Os perfis mais
influentes pertencem ao ex-Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, conta do perfil
@lhmandetta e a uma conta humorística que utiliza a figura de Fernando Haddad (PT), em
perfil nomeado de @HaddadDebochado. A nuvem de palavras (Imagem 8) se formou a partir
dos termos recorrentes em clusters anteriores, como Bolsonaro e cloroquina, além das palavras

136
curar, vacina e não. É um cluster que se movimenta em oposição aos perfis de apoiadores do
medicamento, com menções aos riscos da cloroquina/hidroxicloroquina por não tem eficácia
comprovada.
O estudo do médico francês divulgado no perfil de apoiadores de Bolsonaro também
foi rebatido nos tweets, que apontam que pesquisadores explicam os erros metodológicos
graves do estudo em questão. Trata-se de um cluster que se divide entre menções humorísticas
sobre a defesa do medicamento e conteúdos críticos sobre as ações do Bolsonaro na pandemia
da Covid-19 no país.

Imagem 8. Nuvem de palavras do cluster verde claro

Fonte: produzido pelos autores

4. Considerações Finais

O presente estudo teve como objetivo identificar quais são as redes de conversação no
Twitter sobre a hidroxicloroquina, reconhecendo o potencial dessa rede como parte de uma
nova e ampliada esfera pública, e, portanto, central nos debates sociais e políticos da sociedade
contemporânea. Além disso, visou analisar quais são, efetivamente, os debates propostos pelos
atores mais influentes dessas redes. Para isso, debruçou-se sobre um corpus de 15mil tweets
que, embora ainda se constitua como uma amostragem pequena e limitada, lança luz às
questões iniciais.
Como resultados, observou-se que, de toda a rede analisada, foram seis os perfis mais
influentes (com maior grau de entrada nas redes), que foram: 1º Jair Bolsonaro, 2º Eduardo
Bolsonaro, 3º Rodrigo Constantino, 4º UOL, 5º Estadão e 6º Luiz Henrique Mandetta.
Nesses clusters, foi possível identificar, a partir dos tweets mais populares e das nuvens
de palavras, que há polarização da discussão em torno da cloroquina: por um lado, há a
disseminação de sua eficácia junto a estudos que corroborem esse ponto de vista (mesmo que
esses estudos já sejam contestados). De outro lado, há apenas uma rede opositora, e os

137
conteúdos contrastantes são relativos a notícias que denunciam o posicionamento, em sua
enorme maioria, governamental, nas figuras dos Bolsonaros (com o apoio da mídia
“alternativa”).
Esse cenário vai de encontro à análise realizada da rede, que identificou baixa densidade
nos clusters em si, ou seja, não há muita conversação, mas mais “difusão” de conteúdo.
Portanto, entende-se que há um projeto do governo federal em promover a disseminação do
uso da hidroxicloroquina nas redes e também fora delas, uma vez que o discurso e o
acontecimento ultrapassam as telas.

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139
Aproximações e distanciamentos do jornalismo tradicional na
cobertura do início da pandemia de Covid-19 por Eliane Brum

ANA RESENDE QUADROS


Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
E-mail: anarquadros@gmail.com

1. INTRODUÇÃO
2020 foi um ano histórico. A pandemia de Covid-19 que assolou o mundo, matando
cerca de 2 milhões de pessoas, foi a pauta central para veículos noticiosos do mundo inteiro.
No Brasil a situação foi ainda mais atípica. Em meio a uma crise política que se mantém desde
2014, o país se tornou a segunda nação com maior número de mortes totais e a quarta em mortes
per capita56. Durante o período, o Ministério da Saúde teve a gestão alterada duas vezes e hoje
é gerido por um general da ativa do Exército que não tem formação na área da saúde, Eduardo
Pazuello. Os dados fornecidos pelo Governo Federal foram considerados pouco elucidativos
por veículos da imprensa nacional, que decidiram criar um consórcio para averiguar o número
de casos e mortes por Covid-19 no Brasil junto às secretarias de saúde estaduais57.
Não há dúvidas de que a pandemia causada pelo vírus Sars-CoV-2 é um dos maiores
acontecimentos da segunda década do século XXI. Contudo, ela também serviu de pauta
durante todo ano de 2020 para a jornalista do desacontecimento, Eliane Brum. Mas seria
possível tratar de um tema tão ligado ao acontecimento quanto a chegada do coronavírus no
Brasil de maneira diferente da cobertura feita pelo restante da imprensa? E se sim, como Eliane
Brum trouxe o jornalismo focado no cotidiano de pessoas comuns para o texto? É isso que este
artigo busca responder por meio de uma análise de conteúdo feita aos moldes de Bardin (2011).

2. DA CENTRALIDADE DA MÍDIA AOS PROCESSOS DE MIDIATIZAÇÃO


A mídia desempenha um papel central na nossa sociedade, permeando os diferentes
campos simbólicos. Rodrigues (1990) afirma que a instância comunicativa midiática passa a

56
Em gráfico, os 10 países do mundo com mais mortes per capita por covid-19. Disponível em:
<https://www.bbc.com/portuguese/geral-54390838> Acesso em 23 de janeiro de 2021.
57
Veículos de comunicação formam parceria para dar transparência a dados de Covid-19. Disponível em:
https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/06/08/veiculos-de-comunicacao-formam-parceria-para-dar-
transparencia-a-dados-de-covid-19.ghtml> Acesso em 23 de janeiro de 2021.

140
ser mediadora da vida social. Intermediando os outros campos sociais, o discurso midiático
assume uma natureza exotérica, que constrói um discurso de fácil compreensão dos repertórios
dos demais campos simbólicos.

[...] todos os dispositivos, formal ou informalmente organizados, que têm como


função compor os valores legítimos divergentes das instituições que adquiriram nas
sociedades modernas o direito a mobilizarem autonomamente o espaço público, em
ordem à prossecução dos seus objectivos e ao respeito dos seus interesses
(RODRIGUES, 1990, p.152).

De todas as áreas que fazem uso da mediação para transmitir seus discursos, talvez a
política seja a que mais dependa da mídia para atingir seus objetivos. Thompson (2013) explica
que o surgimento da mídia eletrônica nos possibilitou um maior acesso à imagem de líderes
políticos e celebridades do que se tinha antes. Muitas vezes somos capazes de nos sentirmos
íntimos de pessoas que nunca encontraremos em nossas vidas cotidianas. Essa evolução
tecnológica modificou as formas de poder e, também, a maneira como distinguimos o público
e o privado.
Os políticos sempre controlaram sua visibilidade. Porém, essa antiga prática se tornou
mais difícil nos tempos modernos. Antes, suas interações eram basicamente com os membros
da corte, salvo grandes eventos como coroações, marchas de vitórias e funerais. Nesses eventos
maiores, onde interagiam com o público, conseguiam se colocar metafórica e literalmente
acima e distante de todos, mantendo o caráter sagrado do poder. Com os jornais, os governantes
podiam divulgar a própria imagem para aqueles que antes não teriam acesso a ela, por outro
lado, seus opositores poderiam fazer circular imagens dos governantes que não condiziam com
o que estes diziam deles mesmos.
Com a televisão, o público receptor das imagens dos governantes (tanto boas quanto
ruins) se tornou muito maior e mais disperso. Além disso, o público pode realmente ver seus
líderes, causando o aumento da importância da aparência (vestimenta, apresentação, modo
como se portar). Ademais, com as sociedades democráticas e, conseguintemente, a escolha de
novos líderes de tempos em tempos, os governantes não têm escolha “senão a de se submeterem
à lei da visibilidade compulsória” (THOMPSON, 2013, p.124).
Meyrowitz (1985) observa que essa nova realidade afetou a forma como percebemos as
nossas lideranças. Antes das mídias eletrônicas, quando público e privado eram esferas
totalmente distintas, os políticos conseguiam manter uma imagem que beirava a de um deus.
Tal fato não foi mais possível com a evolução tecnológica, sobretudo com a chegada da
televisão. Entre as décadas 1960 e 1980 houve a percepção de que não haviam bons líderes no

141
cenário político estadunidense, mas o autor levanta a hipótese de que, nesse período, o que
ocorreu não foi a total ausência de lideranças e sim a incapacidade de adaptação dos políticos
da época à ausência de bastidores. De acordo com Meyrowitz, as barreiras entre público e
privado se tornaram tão tênues que beiravam a inexistência. Tudo estava sujeito a ser exposto
pela mídia. A obrigatoriedade de exposição midiática também é percebida por Rodrigues
(1990), que afirma que a realidade é determinada pela mídia, ou seja, tudo que não é abordado
por ela não tem existência reconhecida pela sociedade.
Braga (2006, 2011) acredita que alguns pesquisadores atribuem aos produtos midiáticos
muito mais poder do que de fato possuem. Isso porque não apenas a relação da mídia com os
demais campos sociais se alterou, mas também houve mudanças na própria mediação.
Atualmente, as práticas interacionais não estão restritas à mídia de massas. Entende-se, agora,
o receptor como um sujeito que também é ativo no processo comunicacional. Braga (2012)
ressalta que “o surgimento das novas tecnologias crescentemente disponibiliza possibilidades
de midiatização para setores ‘não-midiáticos’” (p.36). Cria-se, assim, um fluxo contínuo de
comunicação, no qual as mensagens são criadas com o foco nas respostas esperadas ou
pretendidas. Pode-se dizer que a midiatização nada mais é do que tornar algo parte do discurso
midiático. Braga descreve esse processo como:

[...] uma criação e recriação contínua de circuitos, nos quais, articulados com
processos de oralidade e processos do mundo da escrita, os processos que exigem ou
exercem intermediação tecnológica se tornam particularmente caracterizadores da
interação (BRAGA, 2012, p.50).

Hjarvard (2012) lembra que o termo midiatização foi aplicado primeiramente ao


impacto dos meios de comunicação na comunicação política. Uma forma dessa adaptação da
política à lógica da mídia, para ele, é quando os políticos formulam suas declarações públicas
em termos que personalizam e polarizam as questões, para que as mensagens tenham mais
chances de serem veiculadas pela mídia.
Fausto Neto (2012) exemplifica uma estratégia de midiatização por meio de uma análise
da atuação do Instituto Lula no período da descoberta e tratamento do câncer do ex-presidente.
Conforme explica, as duas operações feitas pelo Instituto Lula – antecipar a existência da
doença e os efeitos sobre o corpo de Lula do tratamento quimioterápico – foram uma
importante estratégia de midiatização ao se antecipar e evitar que o campo jornalístico
autorizado fosse o enunciador e principal mediador da enfermidade do ex-presidente. O
Instituto Lula apresentou os fatos a partir dos enquadramentos que considerava mais

142
importantes para Lula, sem poder de interferência das mídias noticiosas. Braga afirma que, ao
criar novos circuitos informativos e comunicacionais, o processo de midiatização coloca em
xeque, de certa forma, o poder dos campos simbólicos instituídos. Quebram a sua hierarquia e
ignoram suas formas de funcionamento. Como se trata de um processo que se intensificou nos
últimos anos, o autor é cauteloso em afirmar até que ponto isso, de fato, coloca em risco o
poder de tais campos, ressaltando que é um período de transição, de mudanças na lógica
também de como os sujeitos atuam na esfera pública.

3. O FUNCIONAMENTO DO JORNALISMO E SUA IMPORTÂNCIA NA


CONSTRUÇÃO DA OPINIÃO PÚBLICA
Dentre as áreas mais impactadas por essas transformações está o jornalismo. Desde o
século XX que pesquisadores percebem a influência da imprensa na sociedade. Teóricos como
McCombs e Shaw acreditavam num agendamento feito pela mídia sobre os temas que seriam
tratados na sociedade (BARROS FILHO e PRAÇA, 2014).
Para Noelle-Neumann (apud (BARROS FILHO e PRAÇA, 2014), os temas não
abordados cairiam no que ela chama de espiral do silêncio. Isso aconteceria porque, para a
autora, as pessoas evitam agir e se expressar de forma contrária ao padrão dominante na
sociedade para que não sejam isoladas. Assim, quanto mais uma opinião foi considerada
ilegítima, menos ela será pronunciada. Isso se agrava tendo em vista a consonância entre os
meios de comunicação.
Esse fenômeno pode ser explicado de várias formas. Teóricos da perspectiva
construcionista nos fazem lembrar, como escreve Traquina (2001), que esses processos são
intrinsicamente ligados à nossa sociedade. O autor explica que são duas as vertentes dessa
teoria: a estruturalista e a etnoconstrucionista. Ambas acreditam que as notícias são construídas
pelos processos entre agentes sociais. Além disso, diferente da teoria organizacional, não
descarta a influência do mundo externo nas empresas noticiosas sobre os jornalistas.
Traquina explica que, para Stuart Hall e outros dos grandes teóricos da vertente
estruturalista, os media não apenas relatam o que está acontecendo, como também oferecem
maneiras de interpretar esses fatos. Porém, ao contrário do que alegam outras teorias, a mídia
não se limitaria aos definidores primários da notícia. Esse papel caberia às fontes oficiais, as
acreditadas, ou seja, a mídia apenas reproduz posições daqueles que estão no comando da
sociedade. Esse determinismo de que os definidores primários estão no comando das ações é
um dos pontos criticados dessa vertente.

143
Ainda que seja muito influenciada por poderes externos, a imprensa tenta parecer ser
imparcial e objetiva, como explica Tuchman (1996). Dentre os pontos citados por ela estão a
apresentação da possibilidade de conflito, que acontece quando o jornalista entrevista várias
pessoas sobre um determinado assunto. Quando os entrevistados têm visões coincidentes sobre
o tema, é gerada uma ideia de verdade sobre o que foi dito. Pode-se ainda somar provas
auxiliares, ou seja, documentos e dados que possam ratificar o que foi dito pelos entrevistados.
Mesmo citações podem ser usadas de forma judiciosa, como explica Tuchman (1996).
Para não fazer uma afirmação, o jornalista pode usar em seu texto a fala de outra pessoa. Mesmo
que outros elementos do texto possam questionar o que foi dito, uma outra estratégia pode ser
empregada para que o leitor tenha a impressão de que uma opinião é mais relevante que a outra:
a organização do texto. A escrita jornalista, como lembra a autora, é feita no formato de
pirâmide invertida, no qual as informações mais relevantes são dadas primeiro e as menos
importantes são deixadas para o fim do texto.
É devido à credibilidade mantida pela imprensa que os políticos tentam se enquadrar
em seus critérios de noticiabilidade para se introduzir na mídia. Sabendo da preferência do
jornalismo pelo extraordinário, a política arranja para que seus fatos sejam impactantes e
atrativos, um verdadeiro show, um espetáculo. Essas estratégias fazem com que, segundo o
autor, existam cada vez menos notícias espontâneas do mundo da política, fatos que não tenham
sido pré-fabricados para atrair o olhar dos noticiários.
Contudo, a web, como explica Fausto Neto (2013), tornou a circulação de informações
muito mais fácil e reduziu a distância entre emissores e receptores, intensificando o processo
de midiatização. Isso porque, em teoria, um político, por exemplo, não precisa mais da
imprensa para se comunicar com seus eleitores. Com a internet, o emissor pode enviar uma
mensagem em tempo real para um grande número de pessoas, sendo tanto mídia quanto público
para mensagens, processo chamado por Castells (2017) de autocomunicação em massa.
Para o autor, a autocomunicação em massa surge dessas mudanças dos meios
tradicionais de comunicação somadas às novas possibilidades da comunicação interpessoal
trazidas pela Web 2.0 e 3.0. Os produtos nativos da internet, como escreve Castells (2017),
tendem a ser multimodais e a oferecer incontáveis possibilidades, formando redes horizontais
de comunicação.
Porém, como afirma Recuero (2014), nem todas as pessoas ou grupos têm a mesma
influência na internet e a qualidade das conexões varia conforme o capital social dos autores.
Recuero (2014) entende capital social como um conjunto de recursos definidos pelo conteúdo
da comunicação que estão presentes nas relações sociais que podem ser usados individualmente

144
ou em grupo. Pode-se dizer, portanto, que aqueles que se comunicam por interações reativas
têm mais capital social e são mais ouvidos, uma vez que sua comunicação é centralizada e suas
conexões não perdem força com o tempo.
Castells (2017) não descarta que alguns têm mais poder que outros na internet. O autor
registra que as grandes empresas de comunicação também estão migrando para o meio online.
Assim, redes verticais e horizontais se encontram na web. Uma das razões para isso é o caráter
comercial da mídia e sua dependência da publicidade. Além de ser impossível ignorar que a
infraestrutura da rede pertence a corporações. Os sites mais acessados como o Google, o
YouTube e o Facebook pertencem a empresas privadas.

A difusão da internet e da comunicação sem fio descentralizou a rede de


comunicação, dando oportunidade para pontos de entrada múltiplos na rede de redes.
Embora o surgimento dessa forma de autocomunicação de massa amplie a autonomia
e a liberdade dos atores comunicantes, essa autonomia cultural e tecnológica não leva
necessariamente à autonomia comercial da mídia. Na verdade, ela cria novos
mercados e novas oportunidades de negócios. Os grupos de mídia se integraram em
redes globais multimídia, e um dos objetivos dessas redes é a privatização e a
comercialização da internet para expandir e explorar esses novos mercados
(CASTELLS, 2017, p.121).

De acordo com Moraes (2013), a capacidade de apropriação de diferentes lexos é uma


das principais características do sistema midiático atual, juntamente com habilidade de influir
na opinião pública, podendo endossar ideologias, sendo uma delas a sustentação de modelos
consumistas e individualistas na sociedade. Essas características foram acentuadas com a mídia
digital. Uma estratégia usada pela mídia para influenciar na opinião pública é o enquadramento
noticioso. Porto (2002) explica que alguns caracterizam essa teoria como um complemento à
do agendamento ou agenda setting. Se os teóricos do agenda setting, McCombs e Shaw, diziam
que a mídia determinava sobre o que o público deveria pensar, o enquadramento funcionaria
como um segundo nível disso, ao dizer que a mídia poderia influenciar na forma como as
pessoas pensam.
Contudo, não existe um consenso quanto à definição de enquadramento. Porto cita a
perspectiva de Goffman, na qual “enquadramentos são entendidos como marcos interpretativos
mais gerais construídos socialmente que permitem as pessoas fazer sentido dos eventos e das
situações sociais” (PORTO, 2002, p.4). Porém, segundo ele, a definição mais utilizada é a de
Gitlin, na qual “enquadramentos são entendidos como recursos que organizam o discurso
através de práticas específicas (seleção, ênfase, exclusão etc.) e que acabam por construir uma
determinada interpretação dos fatos” (PORTO, 2002, p.6). Ambas deixam claro uma coisa:

145
enquadramentos são ferramentas de poder. Mesmo que dois textos tratem de fatos idênticos, a
maneira de abordar pode mudar a forma como as pessoas o compreendem.
É muito comum falarmos dos enquadramentos noticiosos, ou seja, da forma como os
jornalistas apresentam, organizam e destacam os fatos sobre os quais escrevem, porém, o
enquadramento está presente também nas nossas vidas cotidianas. Todos nós fazemos
enquadramentos interpretativos, sendo “padrões de interpretação que promovem uma avaliação
particular de temas e/ou eventos políticos, incluindo definições de problemas, avaliações sobre
causas e responsabilidades, recomendações de tratamento etc.” (PORTO, 2002, p.15). Ainda
que os façamos, Porto (2002) não nos deixa esquecer que a mídia desempenha papel importante
na definição dos nossos enquadramentos, mesmo que de maneira discreta.
Por essa razão, existem várias formas de se estudar os enquadramentos no jornalismo.
Essas delimitações vão variar conforme o tipo de texto analisado e o contexto em que se
inserem. Nesse artigo, determinamos duas categorias de enquadramento: a segundo à lógica do
acontecimento e à lógica do desacontecimento.

4. ACONTECIMENTO vs DESACONTECIMENTO
O jornalismo tradicional tem como componente mais relevante o acontecimento.
Rodrigues (1990) explica que o acontecimento seria um ponto inicial da significação. Visto
como o real, ele existe de forma independente de opiniões, por isso é usado no discurso
jornalístico. Na concepção de Rodrigues (1990), o acontecimento interrompe o cotidiano.
Quanto mais improvável e distante da vida ordinária, maiores as chances de ir parar nos jornais.
O autor explica que alguns fatores que podem fazer com que um fato se distancie dos
outros e se torne um acontecimento jornalístico. O mais comum deles é o excesso, uma
afloração de um desvio à norma feita ou por indivíduos ou por instituições. Outro fator
apontado é a falha, caracterizada pela insuficiência ou defeito dos corpos. O terceiro elemento
é a inversão, quando a rotina é invertida.
A busca do jornalista pelo distanciamento da realidade pode ter influenciado num
fenômeno observado por Boorstin (s/d). Segundo o autor, ao ler notícias desinteressantes as
pessoas já não dizem: “como o mundo está chato”, dizem “como o jornal” está chato. Para
Boorstin, comentários como esse demonstram que no século XX o jornalista não é mais
entendido apenas como aquele responsável por contar aquilo que aconteceu. Pois, se o
jornalista apenas reporta, o que ele poderia fazer se os acontecimentos estão ou não
entediantes?

146
De acordo com Boorstin, essa busca incessante pelo extraordinário faz com que apenas
os fatos não sejam suficientes para atender às excitativas do receptor pela quebra de sua rotina.
Tem-se então a ideia de fabricar-se fatos, chamados por ele de “pseudo-events”, ou pseudo-
acontecimentos, em uma tradução nossa. Se nada novo acontece pode-se inaugurar um lustre
em um hotel e inventar um motivo qualquer para que isso se torne relevante.
Uma lógica contrária é usada por Eliane Brum no cunho do termo desacontecimento. A
palavra é empregada pela jornalista para descrever a temática de seus trabalhos. Para ela, buscá-
lo é descobrir o extraordinário no comum. São situações que acontecem todos os dias, que não
vão parar nos jornais, mas que não deixam de ser importantes.
O olhar que enxerga o “invisível” é, segundo Brum (2008), mediado por amor e
compaixão pelo outro. Sendo assim, escrever sobre o desacontecimento torna necessário o uso
de novas estratégias. Preocupada em mostrar o máximo da realidade, o texto de Eliane Brum é
rico em detalhes, para que os leitores possam tomar suas próprias conclusões e fazer suas
próprias escolhas. Ela busca pelo complicado, pois, segundo Brum (2008), o fácil é óbvio e,
por essa razão, já foi contado antes.
Ainda que Elaine Brum faça um trabalho rigoroso de apuração, detalhando tudo que viu
e ouviu, e ainda reproduza a fala de seus personagens da mesma maneira como foram ditas, a
jornalista reconhece que não é imparcial. Para ela, ideais de objetividade e isenção jamais
poderão ser atingidos, e essa incapacidade deve ficar clara.
Para Vivar e Abib (2018), Brum criou um novo gênero jornalístico: o Jornalismo do
Desacontecimento, caracterizado por uma visão complexa, que não busca respostas fáceis e
sim o aprofundamento de todas as questões tratadas no texto. Esse pensamento complexo,
segundo os autores, faz com que a jornalista leve seus debates para outras áreas, diferenciando-
se dos demais ao problematizar questões e ampliar horizontes. Os autores afirmam que esse
estilo pode estar presente tanto nas reportagens quanto nas colunas de opinião, que passam a
ser espaços de experimentação, misturando diversos estilos e trazendo humanidade aos relatos.

5. A TRADIÇÃO LITERÁRIA DO JORNALISMO


Contudo, a humanização dos relatos não é uma característica exclusiva do Jornalismo
do Desacontecimento. Na verdade, este é um dos principais atributos do Jornalismo Literário,
como escreve Lima (2009). Embora, a princípio, jornalismo e literatura pareçam ser áreas
distantes, em suas origens, o jornalismo era considerado um ramo literário.
Habermas (1984) chamou de “imprensa político-literária” o jornalismo que foi feito
durante os séculos XVIII e XIX. Isso porque, como explica Bulhões (2007), na França do

147
século XIX, a imprensa era fortemente ligada ao debate político, privilegiando-se a doutrinação
e a opinião. Ademais, essa também foi a época em que os folhetins estavam no auge de sua
popularidade, representando um fenômeno das massas.
No entanto, tais características alteraram-se com a chegada, no fim do século XIX e
início do século XX, do modelo norte-americano, para o qual o jornalismo deve pautar-se pela
objetividade e pela lógica do mercado, assumindo o discurso do jornalismo como o retrato da
realidade tal qual ela é. Para atingir esses objetivos, os jornalistas passaram a usar uma
metodologia padronizada que envolvia ouvir e citar fontes, dispor informações por ordem de
importância e responder no primeiro parágrafo seis perguntas sobre o fato: O quê? Quem?
Quando? Onde? Como? Por quê? (BULHÕES, 2007, p. 23).
Habermas (1984), ao discutir as transformações da esfera pública burguesa frente ao
poder do capitalismo e da indústria cultural, afirma que a imprensa passou por três fases,
partindo da imprensa artesanal (no século XIX quando os jornais eram artesanais e restritos a
um pequeno público), chegando à imprensa político-literária (quando a burguesia trava o poder
com a aristocracia e os veículos noticiosos funcionam como canais de divulgações dos ideais
políticos, resultado de discussões públicas nos cafés e salões do século XVIII), até culminar na
grande imprensa capitalista no século XX, quando se adota o modelo norte-americano e o jornal
se torna uma mera mercadoria a serviço do capitalismo tardio.
Ainda assim, a literatura nunca esteve totalmente apartada dos jornais. Martinez (2017)
aponta que são muitos os nomes dados ao gênero que une jornalismo e literatura, mas talvez o
mais preciso, devido à sua característica narrativa, seja Jornalismo Literário. Para a autora,
mais do que englobar técnicas do jornalismo e da literatura, essa modalidade exige que o
profissional tenha conhecimentos de outros campos, como a História, a Sociologia, a Psicologia
e a Antropologia. Por essa razão e pelo fato de exigir uma sensibilidade apurada, que estabeleça
uma relação emocional entre leitor e texto, a autora acredita que o Jornalismo Literário seja
uma modalidade para poucos
Segundo Pena (2013), o Jornalismo Literário volta às raízes do jornalismo diário, utiliza
de seus saberes e técnicas para criar um jornalismo mais profundo. Ainda é crucial a apuração
rigorosa dos fatos, somada à observação atenta. Para Lima (2009), além de precisão e exatidão,
o Jornalismo Literário precisa seguir um estilo próprio e autoral, fazendo uso da criatividade e
do simbolismo para contar uma história humanizada e universal. Para isso é preciso ter
responsabilidade ética e ter uma visão compreensiva da realidade.
Pena (2013) explica que os relatos presentes nos textos devem transcender o cotidiano.
O jornalismo incorpora a perenidade da literatura. O fato não precisa ser uma novidade. No

148
Jornalismo Literário importa que o texto proporcione ao leitor uma visão ampla da realidade.
Para isso, a contextualização deve ser o mais abrangente possível. O autor deve relacionar as
informações, compará-las, mostrá-las sobre outras perspectivas. Entre os critérios de
noticiabilidade do Jornalismo Literário está, em primeiro lugar, a cidadania. Os temas
escolhidos devem contribuir para a formação do leitor como um cidadão e trabalhar para o bem
comum.
Por essas razões, o Jornalismo Literário é mais comum em reportagens que, como
explica Lima (2009), contrapõem-se às notícias por conseguirem contextualizar os
acontecimentos e estabelecer relações entre eles. A reportagem inaugura um novo tipo de
jornalismo, o interpretativo, que “busca não deixar a audiência desprovida de meios para
compreender o seu tempo, as causas e as origens dos fenômenos que presencia e as
consequências para o futuro” (LIMA, 2009, p.19).
Aron (2012) concorda que as reportagens são espaços importantes para o
desenvolvimento de um jornalismo com características literárias. Para ele, como também
apontado por Pena (2013), esse tipo de jornalismo está ligado às causas sociais. Por esta razão,
Aron classifica esse gênero como reportagem social. Além das características literárias, esse
tipo de reportagem, que se popularizou na França no período entreguerras, diferencia-se por
não ser escrita nem por estudiosos nem por literatos, e sim por jornalistas, chamados por ele de
repórteres sociais.

Comme le grand reporter, le reporter social organise la mise en scêne d'une


découverte dont il est le témoin privilégié. San récit est généralement écrit à la
premiêre personne du singulier. II traduit les réactions sensibles d'un sujet découvrant
avec des émotions qu'il veut partager une situation méconnue ou occultée. […] A
l'instar du reportage en général, le reportage social se caractérise aussi par le lien
complexe qu'il construit entre sa vocation documentaire et l'usage conscient des
moyens de la littérature (ARON, 2012, p.10)58.

No caso do Brasil, a primeira experiência com a maneira “moderna” de se fazer


jornalismo é creditada pelo historiador Brito Broca a João do Rio, pseudônimo de Paulo
Barreto. Para o historiador, João do Rio foi o primeiro cronista a sair do ambiente da redação
para apurar os fatos na rua, transformando a crônica em reportagem.
Os textos de João do Rio eram marcados pelo seu olhar humanizado. No início do século
XX, a cidade do Rio de Janeiro passava por muitas transformações. A modernização fez com

58
“Como o grande repórter, o repórter social organiza a exibição de uma descoberta da qual é testemunha
privilegiada. A narrativa é geralmente escrita na primeira pessoa do singular. Traduz as reações sensíveis de um
sujeito descobridor com emoções que ele deseja compartilhar em uma situação desconhecida ou oculta. [...] Como
o jornalismo em geral, o jornalismo social também se caracteriza pelo vínculo complexo que constrói entre sua
vocação documental e o uso consciente dos recursos literários.”. Tradução nossa.

149
que os pobres fossem “empurrados” para os morros, que se tonaram as favelas atuais. Rozendo
e Mega (2014) contam que João do Rio via os excluídos de maneira diferenciada, expondo seus
sentimentos e pontos de vista, bem à maneira que Gay Talese faria décadas mais tarde.
Bulhões (2007), porém, aponta que João do Rio não era um repórter, mas sim um
jornalista-flâneur, ou seja, um curioso que caminha pelas ruas querendo ser íntimo do fato, sem
ter compromisso com o tempo. “Um repórter de uma época de ajustes e adaptações, sem que a
atitude do profissional do jornalismo conviva com o diletantismo e a indeterminação”
(BULHÕES, 2007, p.110).
Bulhões (2007) também afirma que os folhetins, nesse período, começaram a perder
sua força. Agora, eram os fait-divers que ganhavam espaço. Os fait-divers são o tipo de
reportagem que abordam a vida de forma extravagante e extraordinária. No início do século
XX, essa maneira de se fazer jornalismo ganhou espaço e consolidou a imagem do repórter
como um aventureiro. A verdade é que a ficcionalidade não deixava de estar presente.

Assim compreende-se, naquele contexto de início do século XX, a opção da


reportagem por formatos narrativos dinâmicos que apelam para dramatização dos
acontecimentos. Nesse sentido, pode-se dizer que o factual se impregna de aspectos
consagrados da ficção (BULHÕES, 2007, p.113).

Contudo, os fait-divers não eram a única forma de intercepção entre a reportagem e a


literatura. Exemplo disso é o livro “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, apontado por Menezes
(2017) como central para o desenvolvimento do Jornalismo Literário no Brasil. Lançado como
livro em 1903, a obra inicialmente foi divulgada como uma série de reportagens sobre a última
expedição da Guerra de Canudos, ocorrida no fim do século XIX. O autor usou de artifícios
literários associados à apuração jornalística para retratar a terra, a pessoa do sertanejo e a luta.
O livro, originário dos jornais, se tornou um clássico da literatura pré-modernista.
Contudo, como explica Bulhões (2007), os anos 1950 foram marcados por um
jornalismo distante das letras. Essa mudança derivou do crescimento dos meios de
comunicação como empresas de produção industrializada. Foi nesse mesmo período que
jornais e revistas sofreram uma ampla mudança na diagramação e passaram a abrigar
fotografias em suas páginas. Tudo para atrair a publicidade internacional.
Mesmo durante esse período, a literatura não esteve totalmente ausente do jornalismo,
mas ela foi restrita a figurões como Nelson Rodrigues. As reportagens, geralmente, tidas como
espaço de mais liberdade, eram tolhidas pela padronização jornalística. A resistência não
chegou a ser efetiva até a chegada da revista Realidade em 1966.

150
Em plena época de censura imposta pela Ditadura Militar, a Realidade foi capaz, em
extensas e bem escritas reportagens, de abordar temas considerados tabus de forma inovadora,
influenciando muito o comportamento atual, como o divórcio e a liberdade sexual.
Outro diferencial da Realidade era seu público leitor, que congregava homens, mulheres
e jovens, que precisavam reservar a revista na banca, pois os primeiros exemplares sempre se
esgotavam logo. Nos primeiros quatro meses, a venda nas bancas subiu de 250 mil exemplares
para 450 mil (MARÃO, 2010).

7. A TRAJETÓRIA DE ELIANE BRUM


Eliane Brum é uma das mais reconhecidas jornalistas brasileiras, com textos seus
publicados em veículos nacionais e internacionais. Por 11 anos, trabalhou no jornal gaúcho
Zero Hora, para o qual escreveu os textos que deram origem, mais tarde, ao livro A Vida Que
Ninguém Vê.
Durante 10 anos, Eliane foi repórter da Revista Época, em São Paulo. A partir de 2010,
ela passou a atuar como freelancer e, desde 2013, assina uma coluna quinzenal no site do jornal
El País. Ao longo de sua carreira, escreveu seis livros, sendo cinco deles de não ficção. Como
jornalista, recebeu mais de 40 prêmios.
Com um olhar que enxerga o invisível aos olhos comuns, Brum fez reportagens que dão
lugar de notícia a temas que seriam ignorados pelos noticiários, chamados por ela de
desacontecimentos.

O que esse olhar desvela é que o ordinário da vida é o extraordinário. E o que a rotina
faz com a gente é encobrir a verdade, fazendo com que o milagre do que cada vida é
se torne banal. [...] cada Zé é um Ulisses. E cada vida uma Odisseia (BRUM, 2006,
p. 187).

Rozendo e Mega (2014) comparam o olhar da jornalista ao de João do Rio. Para os


autores, os dois funcionariam de maneira complementar. Ele fazendo um “diagnóstico” da
miséria e ela trazendo a esperança de que um dia todos serão vistos como iguais. Ambos com
o olhar voltado àqueles que não têm espaço nos noticiários e reportando suas realidades de
maneira distinta da que é vista nos jornais diários.

Eles não se prendem à objetividade e à imparcialidade jornalística, tanto que muitas


de suas narrativas são escritas em primeira pessoa. Além disso, possuem formas de
relato que humanizam os personagens ao expor seus sentimentos, medos e aflições;
enxergando-os como protagonistas e não como “coisas”. (ROZENDO e MEGA,
2014, p. 14).

151
Mais inovador ainda é falar do outro usando o eu. Fonseca (2013) explica que Eliane
Brum, em suas reportagens, quebrou as barreiras impostas pelo Positivismo ao jornalismo.
Eliane Brum não esconde sua parcialidade. A autora observa que a jornalista, muitas vezes,
utiliza a primeira pessoa, dando voz ao outro por meio de seu olhar. Ela é apenas uma
testemunha que dá o depoimento do que aconteceu com o outro.
Contudo, Brum não trabalha mais com o estilo que a tornou reconhecida. Tendo
migrado para a internet, onde reina o imediatismo (BREADSHAW, 2014) e onde há pouco
espaço para detalhamento e contextualização dos fatos, de que forma a jornalista emprega suas
estratégias de destaque ao desacontecimento (ou seja, de acontecimentos cotidianos) e aos
cidadãos comuns? Seria possível para ela, dentro de um tema tipicamente noticioso, como é a
cobertura da pandemia, introduzir a lógica do desacontecimento? E se sim, como?
Para responder às perguntas propostas, foi feita uma análise de conteúdo segundo
Bardin (2011). Essa metodologia envolve uma pesquisa quantitativa e/ou qualitativa na qual
são determinadas categorias de análise. Foi selecionado como objeto a coluna "O vírus somos
nós (ou uma parte de nós)” (25/03/2020), publicada por Eliane Brum no site do jornal global
El País. Para analisá-la, foram determinadas as seguintes categorias: (1) as fontes escolhidas
pela jornalista; (2) a relação entre acontecimento e desacontecimento presente no texto; (3) o
enquadramento escolhido por Brum. Neste trabalho optou-se por priorizar o caráter qualitativo
da análise de conteúdo proposta por Bardin (2011).

8. O VÍRUS SOMOS NÓS


Antes de partirmos para a análise de conteúdo do texto, é importante ressaltar que o
primeiro caso confirmado de coronavírus no Brasil aconteceu em 26 de fevereiro de 2020, um
mês antes da publicação da coluna de Eliane Brum no El País sobre o tema. Além disso, Brum
publicou outras duas colunas neste período entre a confirmação do primeiro caso e a divulgação
de seu texto “O vírus somos nós (ou uma parte de nós)” (23/03/2020). Nos textos “O golpe de
Bolsonaro está em curso” (26/02/2020) e “Por que Bolsonaro tem problemas com furos”
(11/03/2020) Brum não faz nenhuma referência ao coronavírus, mesmo que ele já estivesse
ativo no Brasil.
Esse vácuo temporal que se deu até a publicação da coluna “O vírus somos nós (ou uma
parte de nós)” pode explicar o porquê de a notícia destacada por Brum no primeiro parágrafo
não ser a chegada do vírus no país, mas as mudanças que ele proporcionou. A jornalista relata

152
que coisas extraordinárias aconteceram: como o fechamento dos comércios, a exposição de
“presidentes maníacos”, os pedidos de intervenção estadual pelos neoliberais e de
fortalecimento do SUS pelos planos privados de saúde. Apesar de ressaltar esses
acontecimentos fora do normal, o texto não se aproxima do formato de lead, na verdade, até
mesmo faz uma referência literária à Bíblia ao dizer: “No princípio era o vírus. Coronavírus”
(BRUM, 2020).
A frase bíblica do livro do Gênesis marca o começo de tudo. Já Brum não acredita que
as coisas vão ser assim tão diferentes do que eram antes. Segundo a jornalista, o mundo mudará
conforme as escolhas que serão feitas durante este período e, mais do que a nossa
sobrevivência, estaria em jogo “em que mundo viveremos e que humanos seremos depois da
pandemia” (BRUM, 2020). E essas escolhas, para Brum, são mais difíceis e mais importantes
agora do que em temos normais, uma vez que, para ela, estamos vivendo a “guerra global de
nosso tempo”.
A analogia entre a pandemia e a guerra foi amplamente usada pela imprensa, porém,
Eliane Brum tenta subverter a lógica de uma guerra ao vírus, indicando, em seu texto, que o
inimigo a ser enfrentado nesta guerra somos nós, uma vez que:

[...] o vírus não tem consciência, não tem moral, não tem escolha. Vamos precisar
derrotá-lo em nossos corpos, neutralizá-lo para reiniciar isso que chamamos de outro
mundo que virá. Tudo indica, porém, que outras pandemias acontecerão, outras
mutações. A forma como vivemos neste planeta nos tornou vítimas de pandemias. O
inimigo somos nós. Não exatamente nós, mas o capitalismo que nos submete a um
modo mortífero de viver. E, se nos submete, é porque com maior ou menor
resistência, o aceitamos. Escapar do vírus da vez poderá não nos salvar do próximo.
O modo de viver precisa mudar. Nossa sociedade precisa se tornar outra (BRUM,
2020).

É interessante notar que Brum destaca um fato extraordinário, portanto, contrário à


lógica do desacontecimento, porém, há uma tentativa de diferenciar sua abordagem daquela
feita tradicionalmente. A notícia não é, para Brum, a chegada do vírus, mas que nosso modo
de vida é inadequado. E Brum acrescenta outra perspectiva inusitada: nosso modo de vida não
foi percebido como inadequado por causa da chegada do vírus, mas já o era desde que “os
cientistas – e mais recentemente os adolescentes – repetem e gritam que é preciso mudar
urgentemente o jeito de viver ou estaremos condenados ao desaparecimento de parte da
população” (BRUM, 2020).
A preocupação de Eliane Brum com as causas ambientais é reforçada na escolha de sua
primeira fonte. Brum cita a ativista climática adolescente, Greta Thunberg, no oitavo parágrafo,
para a sueca, “estão cagando no nosso futuro”. Essa é uma visão com a qual a jornalista parece

153
concordar. Para Brum, a ameaça climática é ainda mais grave do que aquela do coronavírus,
tendo em vista que “chegamos a um estágio de transformação do clima e, por consequência do
planeta, para o qual não há volta, não há vacina, não há antídoto. O planeta será outro” (Ibid).
Mas, as pessoas fingem que não veem a ameaça climática e “o vírus não permite
fingimentos”, uma vez que “o povo não brinca com saúde. Quando o assunto é saúde, até a
Terra Plana dá voltas” (BRUM, 2020). Ainda com essa diferença, para Eliane Brum, a
comparação entre coronavírus e crise climática “faz todo sentido”. Uma prova disso é que
ambas mostram como “não existe um genérico chamado ‘humano’”, tendo em vista que essas
crises vão afetar de forma diversa pessoas de diferentes classes sociais, gêneros, sexos e raças.
Se a aproximação entre a pandemia e a emergência climática é uma tentativa de se
diferenciar da cobertura tradicional, focada somente no coronavírus e as consequências trágicas
trazidas por ele, Eliane Brum também busca se diferenciar trazendo o que seria um aspecto
positivo da doença: a aproximação das pessoas que passaram a “enxergar umas as [...] outras,
reconhecer umas as [sic] outras, cuidar umas das outras” (BRUM, 2020). Esse fator faria com
que não estivéssemos vivendo um isolamento social e sim físico. Para endossar seu ponto de
vista, Brum traz como referência um comentário no Twitter do sociólogo Ben Carrington.
Além disso, segundo Brum, a pandemia serviu para mostrar que:

[...] a rebelião continua viva. O Brasil das elites boçais, aliado à nova boçalidade
representada pelos mercadores da fé alheia, não conseguiu matar a insurreição. [...]
Dezenas de “vaquinhas” estão em curso, grande parte delas organizadas a partir das
favelas e das periferias, para garantir a alimentação e produtos de limpeza para a
parcela da população a quem o direito ao isolamento é sequestrado pela desigualdade
brasileira. [...] Não me parece que, desta vez, as pessoas aceitarão morrer como gado.
Em especial as mesmas pessoas de sempre (BRUM, 2020).
Apesar de acreditar em uma rebelião liderada por aqueles que sempre foram excluídos
pelas elites, essas pessoas não servem de fontes para Eliane Brum. Ela prefere citar pessoas
reconhecidas mundialmente e estrangeiras. Brum comprova suas opiniões com citações de
Greta Thunberg (sueca), Ben Carrington (britânico), e debate o que acontecerá no mundo pós-
pandemia expondo as visões de Slavjoj Zizek (filósofo esloveno), Byung-Chul Han (filósofo
sul-coreano), Giorgio Agamben (filósofo italiano). A presença do que os teóricos
construcionistas chamariam de fontes oficiais reforça a ligação do texto de Brum com o
jornalismo tradicional. Também ligado ao jornalismo tradicional estão as estratégias de
objetividade (TUCHMAN, 1996) empregadas por Brum. Pode-se observar o uso judicioso de
aspas na comprovação de opiniões da jornalista pelas vozes de pessoas reconhecidas, bem
como a possibilidade de conflito representada pelo grande número de fontes com pensamentos

154
similares. Neste caso há, de fato, uma divergência entre os pensadores Zizek e Han, o que
também ajuda na criação do efeito de objetividade.
A literatura, por sua vez, característica do jornalismo do desacontecimento, está distante
do texto apresentado por Eliane Brum. Embora ela não obedeça a lógica do lead e existam
algumas frases mais próximas da literatura, como acontece no princípio do texto, a maior parte
da coluna é escrita em uma linguagem que se aproxima do jornalismo tradicional. A
parcialidade está presente, ainda que mesclada a tentativas de objetividade. É possível, por
exemplo, perceber que a jornalista é contrária ao presidente brasileiro Jair Bolsonaro, a quem
chama de “maníaco”, e a Paulo Guedes, a quem chama de “Posto Ipiranga”, mas, além disso,
Brum se posiciona como contrária à visão de um Mercado que se autorregula. Na verdade, é
possível ver uma posição clara da jornalista contra o capitalismo e ao modo de vida que
vivemos, uma vez que, já no princípio do texto, ela os responsabiliza pelas mazelas trazidas
pela pandemia.

9. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dos temas ligados ao acontecimento, o coronavírus é um dos mais propícios a uma
aproximação com a lógica do jornalismo do desacontecimento desenvolvido por Brum. Isso
porque a pandemia causada pelo Sars-CoV-2 influenciou diretamente o cotidiano de todas as
pessoas. Contudo, Brum opta por não falar diretamente com aqueles que são excluídos pela
sociedade, chamados por ela de invisíveis. Essa escolha é uma das principais razões pelas quais
não é possível dizer que a coluna “O vírus somos nós (ou parte de nós)” se enquadra no gênero
criado pela jornalista.
Como observado, todas as fontes usadas por Brum ao longo do texto estão ligadas ao
jornalismo tradicionais, podendo ser consideradas fontes primárias, por terem grande
respeitabilidade em suas áreas em um nível global. Apesar de não citar pessoas das camadas
vulneráveis da sociedade, Brum demonstra se preocupar com eles ao indicar que as
consequências do vírus serão mais graves para negros, indígenas, pobres e mulheres, assim
como acontecerá com as mudanças trazidas pela emergência climática.
A aproximação entre as mudanças climáticas e a pandemia de Covid-19 é um dos pontos
de inspeção entre o jornalismo do acontecimento e do desacontecimento. Isso porque Eliane
Brum busca dar uma perspectiva original para a cobertura da pandemia, configurando um novo
enquadramento e, ao mesmo tempo, uma tentativa de agendar uma outra temática que Brum
considera relevante: o meio ambiente. Nesse sentido, acredita-se que houve uma tentativa de
quebra das barreiras do jornalismo tradicional, mas elas não foram incisivas o suficiente para

155
que Eliane Brum se ligasse mais ao jornalismo do desacontecimento do que ao jornalismo do
acontecimento, que seguiu sendo mais forte nesta coluna.

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THOMPSON, John. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. – Petrópolis, RJ:
Vozes, 2013.

158
TRAQUINA, Nelson. O estudo do jornalismo no século XX. Unisinos: São Leopoldo, RS,
2001.

TUCHMAN, Gaye. A objectividade como ritual estratégico: uma análise das noções de
objectividade dos jornalistas. 1972. In: TRAQUINA, Nelson (Org.). Jornalismo: Questões,
Teorias e “Estórias”. Lisboa: Vega Editora, 1996.

VIVAR, Jesús Miguel Flores e ABIB, Tayane Aidar. O expediente da argumentação no


jornalismo de Eliane Brum: análise de suas colunas ao El País Brasil. Comunicação &
Inovação, revista online, v. 19, nº40, 2018. Disponível em:
<https://seer.uscs.edu.br/index.php/revista_comunicacao_inovacao/article/view/5175/2471>
Acesso em 24 de junho de 2020.

WOLFE, Tom. Radical Chique e o Novo Jornalismo. Tradução de José Rubens Siqueira. São
Paulo: Companhia das Letras, 2005. 245p.

159
Governo Bolsonaro X Crise da Covid-19: uma análise do
enquadramento noticioso no jornal Folha de São Paulo

DEBORAH LUÍSA VIEIRA DOS SANTOS


Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
E-mail: dlvs1@hotmail.com

MARIANE MOTTA DE CAMPOS


Universidade Paulista (UNIP)
E-mail: mariannemottadecampos@hotmail.com

MAYRA REGINA COIMBRA


Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
E-mail: mayrarcoimbra@gmail.com

MARINA ALVARENGA BOTELHO


Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ)
E-mail: inabotelho@gmail.com

1. Introdução

A pandemia do coronavírus, também chamada de Covid-19, do inglês Coronavírus


Disease 2019, tornou-se motivo de preocupação para a população mundial. A doença foi
identificada pela primeira vez em Wuhan, na província de Hubei, República Popular da China,
em 1º de dezembro de 2019, mas o primeiro caso foi reportado em 31 de dezembro do mesmo
ano. Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou o surto como
uma pandemia – a disseminação mundial de uma nova doença. O coronavírus causa várias
infecções respiratórias em seres humanos, desde simples resfriados até doenças mais graves
como a Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS).
No Brasil, as primeiras ações ligadas à pandemia do Covid-19 começaram em fevereiro
de 2020, com a repatriação dos brasileiros que viviam em Wuhan, cidade chinesa epicentro da
infecção. No dia 26 de fevereiro, foi confirmado o primeiro caso de coronavírus no Brasil.
Dados do Portal Uol de 30 de junho de 2020 apontam que o país registra 2.613.789 e atinge

160
91.377 mortes.59 No mundo, esses números também são alarmantes, porque já chegam a quase
15 milhões de casos confirmados e mais de 500 mil mortos.
A pandemia trouxe mudanças profundas nas questões de saúde, trabalho, lazer,
educação, convívio social. De algum modo ou de outro, todas as esferas da vida social foram
modificadas e processarão à sua maneira os efeitos da pandemia. A crise sanitária causada pela
COVID-19 tem fortes impactos na economia mundial e de todos os países, na política, na
religião e nos diversos setores sociais, como a área do entretenimento, turismo, lazer, entre
outros. No caso da comunicação, ocorre a mesma coisa. Os noticiários passaram a ter uma
programação quase que exclusivamente voltada para a pandemia desde março. Em se tratando
da grande imprensa brasileira, além das estatísticas sobre infectados e mortos, há uma extensa
cobertura com notícias sobre tentativas de criação de vacinas, impacto na vida e no cotidiano
dos brasileiros, seja no âmbito econômico ou da própria mobilidade, tendo em vista que até o
momento a forma mais eficaz de controle da doença, devido ao forte contágio, é o isolamento
social. A Rede Globo, por exemplo, suspendeu desde março a produção de telenovelas e de
seus programas de entretenimento, passando a fazer reprises, algo que não acontecia desde a
criação da emissora.
Segundo Castro (2020), um dos efeitos sociais produzidos pela atual pandemia nos
parece ser um processo de tecnologização da vida social ainda sem precedentes e com efeitos
importantes sobre as formas de comunicação que incluem a cultura das mídias, o jornalismo, a
desinformação, a sociabilidade, a comunicação interpessoal e até mesmo os padrões
informacionais.
O autor aponta que, diferentemente do que aconteceu no passado, durante a explosão
de pandemias, para grande parte das pessoas, a quarentena não demanda um isolamento
informacional. Isso tem a ver com o processo de midiatização. Conforme explica Braga (2012),
hoje há múltiplos canais de informação e comunicação que funcionam, garantindo que notícias
e mensagens circulem 24 horas para os usuários das mídias digitais. Nesse sentido, por meio
dos dispositivos informacionais, os indivíduos recebem informações o tempo todo sobre o que
está acontecendo ao seu lado e no mundo inteiro. Logo, este cenário nos parece instigante e
fundamental refletir sobre a dimensão comunicativa presente nessa nova experiência social.
Podemos observar transformações na prática jornalística e na forma como o jornalismo tem

59
https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/07/30/coronavirus-covid-19-casos-mortos-30-
julho.htm. Acesso em 31 de julho de 2020.

161
sido um suporte importante para divulgação da ciência e, ainda, na relação das sociedades com
essas informações.
Segundo pesquisa60 divulgada pelo Datafolha, em 23 de março de 2020, os brasileiros
veem TVs e jornais como as fontes mais confiáveis na divulgação de informações sobre a
pandemia de coronavírus. Em uma ação inédita no país, jornais brasileiros unificaram suas
capas61 no dia 23 de março, como forma de apoio ao combate ao coronavírus e principalmente,
a desinformação. Cabe aqui ressaltar que, nesse mesmo viés, percebemos os efeitos nocivos
das práticas de desinformação, fundamentais para compreensão do contexto. No entanto,
apesar do reconhecimento do fato, esta não é a questão principal aqui abordada e aparecerá
apenas como pano de fundo.
Do outro lado, temos como objeto o governo Bolsonaro diante do enfrentamento dessa
crise. Desde o início, o presidente preferiu negar a pandemia e minimizar seus efeitos,
participou de aglomerações, nem sempre usou máscara e ainda se referiu a doença como uma
“gripezinha”. O negacionismo científico de Bolsonaro ganhou repercussão mundial, sendo
considerado um dos chefes de estado com menor sensibilidade para a crise sanitária gerada
pela COVID-19. Ele chegou a afirmar que a imprensa estava superdimensionando o
coronavírus e que a cloroquina resolve todos os problemas. Diferentemente de outros países e
chefes de nação que deixaram de lado suas divergências políticas, Bolsonaro travou discussões
com governadores e prefeitos a respeito das medidas a serem tomadas no enfrentamento da
doença. O discurso de que a economia não pode parar e o país precisa voltar a andar é uma
tônica das falas do presidente. Mesmo depois de ser infectado, manteve o discurso contra o
isolamento social e diz que há um “superdimensionamento da doença”.
Este trabalho tem por objetivo sistematizar reflexões a respeito do campo da
comunicação, indagar a centralidade do papel deste campo neste momento de intensa crise
social e de forma específica, compreender quais enquadramentos o jornal Folha de S. Paulo
construiu o cenário de pandemia em articulação ao governo Bolsonaro. Para tanto, utilizou-se
como metodologia a Análise de Conteúdo (BARDIN, 2011) em associação com
enquadramento noticioso (ENTMAN, 1993; PORTO, 2002).

60
Datafolha: Brasileiros veem TVs e jornais como os mais confiáveis para se informar sobre coronavírus
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,datafolha-brasileiros-veem-tvs-e-jornais-como-os-mais-confiaveis-
para-se-informar-sobre-coronavirus,70003244554 Último acesso em 08 de julho de 2020.
61
Jornais unificam capas e destacam papel do jornalismo contra Covid-19
https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/03/22/jornais-unificam-capas-e-destacam-papel-
do-jornalismo-contra-covid-19.htm Último acesso em 09 de julho de 2020.

162
2. A centralidade midiática como organizadora social e a midiatização dos processos
sociais

A comunicação no espaço social torna-se uma dimensão estruturante e organizadora da


vida. Partindo da premissa construtivista apontada por Berger e Luckmann (1996) de que a
vida social é construída pela linguagem compartilhada coletivamente, entende-se que o homem
é produto e produtor da sociedade. Ele encontra um mundo estruturado e institucionalizado,
mas é capaz de transformar o tecido social. Nesse sentido, conforme aponta Rodrigues (2001),
o campo exerce o papel de mediador social, onde os indivíduos interagem e podem alterar o
mundo. Entre as suas funções está o seu caráter referencial, que consiste em dar conta de todos
os acontecimentos que ocorrem no mundo, organizar e localizar o sujeito humano dentro do
caos social. Ou seja, a comunicação atua como grande mediador entre o homem e o mundo. É
através dos relatos jornalísticos que tomamos conhecimento dos fatos – guerras, doenças,
conflitos, dramas, calamidades. É papel da imprensa produzir significação dos acontecimentos
para a sociedade. Gomes (2004) explica que a mídia atende esta demanda cognitiva sobre o
atual estado do mundo. Cabe aos meios de comunicação – massivos ou digitais – informar a
respeito do que acontece, assumindo este papel referencial que Rodrigues atribui.
Nesse aspecto, Thompson (1998) explica que, com o desenvolvimento da comunicação,
houve uma reorganização do espaço e do tempo. Os indivíduos passaram a compreender as
coisas além de seus contextos sociais imediatos e a distância pareceu diminuir. As mídias
dilataram os horizontes do indivíduo e a compreensão de mundo também foi modelada pelos
produtos que esta produzia. Mais do que expor os acontecimentos e refletir sobre os mesmos,
as notícias participam da construção de uma realidade possível, visto que eles interferem no
comportamento da sociedade e no desenvolvimento de outros acontecimentos.
Rodrigues (2001) ressalta que o campo midiático confere visibilidade a todos os outros
campos sociais, seja ele a política, a religião, a ciência, a arte etc., e também a um grande
universo de indivíduos. E mais do que dar visibilidade, ele contribui no processo de nortear a
sociedade e dar sentido ao mundo por meio de sua prática. Ferraz e Lerner (2012) endossam
tal posição e afirmam que os meios de comunicação alcançaram na sociedade uma posição
institucional de “porta voz” oficial dos acontecimentos. Eles atuam como instrumentos capazes
de elevar esses acontecimentos à condição de verdade e também de produzir enunciados sobre
a realidade.
Se a comunicação, em si mesma, já é estruturante no processo de socialização dos
indivíduos em seu cotidiano, num cenário marcado pelo isolamento social nota-se como a

163
estrutura midiática passa a ser mais do que fundamental para compreensão do fenômeno. Do
ponto de vista jornalístico, ao se considerar os critérios de noticiabilidade de um fato
(TRAQUINA, 2004), as enfermidades, por si só, já têm um forte apelo no agendamento
midiático em razão da singularidade, do peso social e da grandiosidade do fato. Além do mais,
conforme aponta Rodrigues (2001), é acontecimento aquilo que vem da ordem do imprevisível
ou, como aponta Gomes (2004), o que gera uma ruptura das regularidades. Assim, uma
pandemia que atinge os vários continentes de forma avassaladora tem um alto grau de
noticiabilidade, tanto pelo grau de imprevisibilidade e por se tratar de um fato negativo que
coloca em risco a vida dos indivíduos.
Segundo apontam Ferraz e Lerner (2012), as doenças atraem o interesse da mídia há
décadas e, sobretudo, durante a ocorrência de epidemias – acontecimentos singulares que por
si só já altera a estrutura social e a forma como as pessoas atuam e interagem. O próprio
contexto de calamidade que a pandemia suscita atrai a atenção do campo jornalístico de precisar
compreender o fato e retratá-lo a sociedade. Ou seja, é a partir do acontecimento que os meios
de comunicação vão construindo sentidos e tornando as experiências da pandemia mais comum
para as pessoas.
Todo esse cenário trouxe mudanças para o campo da comunicação como espaço de
centralidade social. Castro (2020) explica que a obrigatoriedade e recomendação de manter um
distanciamento social físico teve como efeito a ampliação e intensificação do uso das
tecnologias digitais em rede em todo o planeta. Segundo relatório62 apresentado pelo IAB
Brasil, sobre os impactos e transformações da pandemia do Covid-19, em abril de 2020, notou-
se um aumento no consumo de mídia dos canais, especialmente em TV e Digital. Em casa, as
pessoas sentem a necessidade de ficar mais informadas, entretidas e conectadas entre si, uma
vez que a presença física é impossibilitada.
A pesquisa revelou um aumento médio de 15% no consumo de televisão. Ao receberem
informações sobre a doença, os produtores de conteúdo tradicionais apareceram como os de
maior confiança da população. O nível de confiabilidade da televisão, segundo relatório
apresentado pelo Datafolha, em março de 2020, ficou em torno de 61%, 56% dos jornais
impressos, 50% dos programas jornalísticos de rádios e 38% de sites de notícias. Por sua vez,
o índice de confiança nas informações compartilhadas nas plataformas digitais - WhatsApp e
o Facebook - foi de 12%.

62
Inteligência e insights (relatório - 2020). WPP. Brasil Covid-19. https://iabbrasil.com.br/wp-
content/uploads/2020/04/WPPi_Covid19_Report_20200327.pdf Último acesso em 08 de julho de 2020.

164
O relatório IAB Brasil aponta ainda que as notícias são o principal conteúdo consumido
tanto no espaço tradicional quanto no digital – em especial os portais dos grandes veículos
noticiosos. O medo do contágio e a incerteza com relação a questões econômicas, educacionais,
sociais provocaram um consumo exagerado de notícias. E, inicialmente, ainda havia um desejo
de as pessoas quererem saber como se preparar e se proteger. Assim, tal situação referenda o
caráter estruturante do campo da comunicação no processo de organização social.

3. A Pós-verdade em tempos de pandemia

Num contexto de incertezas e de multiplicidades de circuitos informativos e


comunicacionais, além de posicionamentos que negam a validade da ciência, surge o conceito
de pós-verdade. D’ancona (2018) explica que anualmente no Brasil existe a tradição anual do
“hit do verão” - música que dominará festas, praias, programas de TV, durante a estação
praieira. Nesse mesmo caminho, não seria absurdo afirmar que, com o advento das mídias
sociais, também surge de tempos em tempos, o “hit das ideias”. E um desses hits que tomou o
cenário do campo da comunicação política é o da “pós-verdade”, mais evidente a partir da
segunda metade de 2016, sobretudo depois do chamado “Brexit” e da vitória de Donald Trump
nas eleições presidenciais norte-americanas.
Santaella (2019) também se atém para a discussão do termo de pós-verdade nas
discussões de comunicação política. Conforme aponta a autora, em 2016, o termo “post-truth”
foi escolhido como palavra internacional daquele ano pelo Dicionário Oxford (Oxford
Dictionaries). O uso da palavra cresceu 2000% em 2019, em relação ao ano de 2015. A autora
explica que, segundo o Oxford Dictionaries, o conceito de pós-verdade não era novo. Já havia
sido utilizado por Steve Tsich na revista The Nation (1992). Em 2004, Ralph Keyes publicou
um livro sob o título de The post-truth era. No entanto, o presidente do Dicionário Oxford,
Casper Grathwohl, explica que a munição para o advento do termo é dada pelas mídias sociais
e o seu papel de nova fonte de notícias e da desconfiança crescente nos fatos veiculados.
Para Harari (apud SANTAELLA, 2018), a anterioridade do fenômeno se apresenta
desde os períodos remotos da humanidade. O homem sempre viveu em uma era da pós-verdade,
visto que ele sempre dependeu da criação e da crença em ficções. O Homo Sapiens conquistou
o planeta, sobretudo, a partir da habilidade humana de criar e disseminar ficções. Somos os
únicos a cooperar com estranhos pela capacidade de inventar histórias fictícias, espalhá-las e
convencer outras pessoas a acreditar nelas. Na medida que todos acreditam, obedecem às
mesmas leis e se vive em coletividade.

165
D’ancona (2018) endossa esse pensamento ao afirmar que, na maior parte da história
da humanidade, as mitologias compartilhadas sempre fizeram parte do cotidiano das pessoas.
Todas as sociedades possuem suas lendas fundadores que as unem, moldam seus
comportamentos e habitam suas ambições. Com a Revolução Científica e o Iluminismo, essas
narrativas passaram a competir com a racionalidade, o pluralismo e a verdade como base de
uma organização social. O que é novo nesse cenário da pós-verdade é que, com a digitalização
e interconexão global, a emoção está recuperando a sua primazia e a verdade está entrando em
cheque.
Para Santaella (2019), a discussão da anterioridade do termo precisa ser colocada em
posta, mas o que esses autores não refletiram no passado e que torna a discussão atual é a
disseminação da mentira a partir do surgimento das redes na internet, nas quais mentiras são
repetidas, compartilhadas, comentadas por milhões de pessoas a fronteiras antes não vistas.
Logo, Santaella (2019) já adianta a necessidade de se tratar a expressão “pós-“verdade” com
todo cuidado e prudência. Para a autora, pós-verdade denota assim as circunstâncias nas quais
os fatos objetivos se tornam menos influentes na formação da opinião pessoal do que os apelos
à emoção e às crenças pessoais. O que há de novo na política é que a verdade já não é falseada
ou contestada, mas se tornou secundária.
D’ancona (2018) reafirma que é preciso ser prudente na compreensão do termo, de
modo que se evite as polêmicas e seja possível entender de fato o que ele significa e como pode
contribuir para mensurar dos fenômenos atuais. A começar, pós-verdade não é a mesma coisa
que mentira. Conforme aponta Oliveira (2004), nas disputas políticas, os atores políticos criam
mundos de natureza ficcional. Ao fazerem promessas, constroem versões da realidade
superdimensionadas, o que tem sido encarado como discurso pautado por “mentiras”.
Prometem criar milhões de empregos, construir milhares de casas, entre outras dimensões do
discurso ficcional da política. O que a pós-verdade traz de novidade não é a desonestidade
desses personagens, mas a resposta que o público dá a isso. O que antes era motivo de
indignação, agora dá lugar à indiferença e por fim, à convivência. A mentira é considerada
regra e não mais exceção, mesmo em sistemas democráticos.

Massacrados por informações inverossímeis e contraditórias, o cidadão desiste de


tentar discernir a agulha da verdade no palheiro da mentira e passa a aceitar, ainda
que sem consciência plena disso, que tudo o que resta é escolher, entre as versões e
narrativas, aquela que lhe traz segurança emocional. A verdade, assim, perde a
primazia epistemológica nas discussões públicas e passa a ser apenas um valor entre
outros, relativo e negociável, ao passo que as emoções por outro lado, assumem
renovada importância (D`ANCONA, 2018, p. 10).

166
O que importa não é mais a racionalidade dos argumentos, mas a convicção que vem
arraigada nestes. Funciona mais ou menos como descreve o cientista político Alexander
Dungir, apud D’ancona (2018) “a verdade é uma questão de crença. [...] Essa coisa de fatos
não existe”. Ou seja, as pessoas tendem a compartilhar a crença de que a verdade é aquilo que
você entende dela.
D`ancona (2018) argumenta que a base do fenômeno da pós-verdade está
principalmente no colapso da confiança das instituições tradicionais – imprensa, judiciário,
ciência, pois é desta base que flui todo o corpo social. Ou seja, todas as sociedades organizadas
e bem-sucedidas precisam de um grau de honestidade alto para que se preserve a ordem,
defenda-se as leis, puna os infratores e gere prosperidade. A confiança é fundamentalmente um
elemento de sobrevivência humana, a base que permite a coexistência de qualquer
relacionamento humano, desde um casamento até a organização de uma sociedade complexa.
Perosa (2017) também aponta fatores que acreditam corroborar com a evidência da pós-
verdade na atualidade. Além do ceticismo generalizado da população em relação às instituições
políticas e democráticas, os partidos e a mídia tradicional, ela ainda aponta dois fatores
adjacentes: a alta polarização política que aciona o debate menos racional e o apreço pelo
consenso a ponto de colocar os nervos à flor da pele e a descentralização da informação, que
com a internet foi possível obter diferentes canais de comunicação alternativos e
independentes.

4. Enquadramento noticioso: construção de quadros de sentido na pandemia

Além da influência da mídia na sociedade, outra abordagem que também precisa ser
compreendida no processo de produção social é a atividade jornalística. A teoria da
comunicação mais recente para compreender esse fenômeno é a teoria do enquadramento
(framing). Apesar de novo, o desenvolvimento desse enfoque tem mobilizado os estudos no
campo da comunicação política. Esta teoria surge como uma nova perspectiva para
compreendermos o papel da mídia na atualidade. Segundo as teorias iniciais do jornalismo, o
papel da mídia era compreendido como o de informar os cidadãos e servir a democracia, de
forma objetiva e imparcial. No entanto, Porto (2004) argumenta que esse paradigma encontra-
se em declínio, pois não é suficiente para compreendermos a relação da comunicação com o
mundo exterior. O enquadramento é percebido como um novo enfoque teórico possível para
superar as limitações do "paradigma da objetividade".

167
O conceito foi desenvolvido inicialmente pelo sociólogo Erving Goffman, em sua obra
Frame Analysis. Para Goffman (1986), enquadramentos são princípios de organização que
governam os eventos sociais e nosso envolvimento nestes eventos. Para o autor, tendemos a
perceber os acontecimentos a nossa volta de acordo com os enquadramentos que nos permitem
responder à pergunta: "O que está ocorrendo aqui"?. Logo, o conceito pode ser entendido como
marco interpretativo mais geral construído socialmente, permitindo com que as pessoas
enxerguem sentido nos eventos e nas situações sociais.
Segundo Porto (2002), a primeira aplicação do conceito de enquadramento nos estudos
de comunicação surgiu no livro Making News da socióloga Gaye Tuchman (1978), baseado no
enfoque dado pelo também sociólogo Goffman. Tuchman argumenta que as notícias impõe um
enquadramento, que por sua vez define e constrói a realidade social. "As notícias são um
recurso social cuja construção limita um entendimento analítico da vida contemporânea"
(TUCHMAN, 1978, p.215, apud PORTO, 2004, p.5).
Porto (2002) afirma ainda que os enquadramentos foram compreendidos como recursos
responsáveis por organizar o discurso através de práticas de seleção, ênfase, exclusão, etc), que
tem como consequência a construção de uma, dentre várias de interpretações possíveis.

Os enquadramentos da mídia (...) organizam o mundo tanto para os jornalistas que


escrevem relatos sobre ele, como também em um grau importante, para nós que
recorremos às suas notícias. Enquadramento da mídia são padrões persistentes de
cognição, interpretação e apresentação, de seleção, ênfase e exclusão, através dos
quais os manipuladores de símbolos organizam o discurso, seja verbal ou visual, de
forma rotineira. (GITLIN, 1980, p.7, apud, PORTO, 2002, p.6)
Segundo Porto (2002), outro autor que também faz uma revisão sobre os estudos de
enquadramento de mídia é Entman (1993). Ele apresenta uma definição do conceito que resume
de forma sistemática os principais aspectos desta teoria. Para ele, enquadramento envolve
essencialmente dois fatores: seleção e saliência. Enquadrar um fato significa selecionar alguns
aspectos de uma realidade dada e percebida e fazê-las mais salientes no texto comunicativo, de
forma a apresentar uma definição e interpretação particular do problema.

5. Metodologia e Corpus de Análise

Como procedimentos metodológicos, foram utilizadas, inicialmente, a pesquisa


bibliográfica e a pesquisa documental. Para a pesquisa documental, foi feito um recorte
considerando cinco momentos chaves que ajudaram a desenhar a crise pandêmica no Brasil no
governo Bolsonaro: (a) a realização de atos pró-Bolsonaro em várias cidades do Brasil (15 de
março); (b) Panelaços contra Bolsonaro (31 de março); (c) a demissão do Ministro da Saúde,

168
Luiz Henrique Mandetta (16 de abril); (d) o pedido de demissão do Ministro da Saúde, Nelson
Teich (15 de maio); e (e) o dia em que o Brasil completou a marca de 50 mil mortes pelo
coronavírus (20 de junho). A fim de que se observasse os desdobramentos do fato no jornal,
optou-se por escolher as matérias publicadas no dia seguinte de cada uma dessas datas.
Depois de coletado o material, optou-se por trabalhar com a Análise de Conteúdo
(BARDIN, 2011) em associação com enquadramento noticioso (ENTMAN, 1993; PORTO,
2002), utilizando o método de pacotes interpretativos (GAMSON; MODIGLIANI, 1987). Isso
significa que a partir da análise do material, foram elencados os eixos interpretativos que
estiveram mais salientes nas notícias publicadas.

6. Análise: os enquadramentos noticiosos do governo Bolsonaro durante a crise do


coronavírus pelo jornal Folha de S. Paulo

A partir do mapeamento, encontrou-se um total de 83 notícias ou artigos publicados no


jornal Folha de S. Paulo, sobre a crise do coronavírus e suas confluências com o governo
Bolsonaro. Com base no conteúdo das notícias coletadas, foram definidos os seguintes pacotes
interpretativos: (1) Crítica ao negacionismo científico e atos considerados irresponsáveis do
presidente; (2) Apoio às medidas de enfrentamento do governo; (3) Bolsonaro: descaso com a
pandemia da Covid-19; (4) Covid-19: Membros do governo e presidente se infectaram?; (5)
Coronavírus: desgaste entre o Planalto e o Congresso; (6) Coronavírus: embate entre governo
e estados; (7) Coronavírus e a economia; (8) Coronavírus e a educação; (9) Coronavírus e a
Hidroxicloroquina; (10) Embate: Mandetta X Bolsonaro; e (11) Reação Popular: Panelaços,
conforme se observa no quadro 1.

Quadro 1 – Pacotes Interpretativos do Enquadramento da Folha de S. Paulo sobre o governo Bolsonaro


na pandemia do coronavírus
Pacote Interpretativo Descrição: N. de incidência: Percentual:
1.Crítica ao negacionismo Refere-se a notícias que criticam o 35 35%
científico e atos considerados comportamento do presidente Jair
irresponsáveis do presidente Bolsonaro diante das medidas tomadas no
enfrentamento da crise do coronavírus.
2. Apoio às medidas de Notícias que relatam apoio de aliados ao 3 2,85%
enfrentamento do governo presidente Bolsonaro e ao seu
comportamento, diante da crise na saúde.
3. Bolsonaro: descaso com a Relaciona-se a notícias que relatam um 11 10,47%
pandemia da Covid-19 comportamento de descaso e falta de
preocupação com a crise no sistema de
saúde, incluindo presença em
manifestações e aglomerações do
presidente e de seus aliados.
4. Covid-19: Membros do governo Diz respeito a notícias que tratam os 3 2,85%
e presidente se infectaram? desdobramentos dos resultados de exames

169
de membros do governo e do presidente,
após visita aos Estados Unidos.
5. Coronavírus: desgaste entre o Refere-se a notícias que trazem o conflito 12 11,42%
Planalto e o Congresso entre Planalto e Congresso diante das
medidas tomadas no campo da saúde.
6. Coronavírus: embate entre Notícias que focam no conflito entre os 8 7,61%
governo e estados governos federal e estaduais diante da crise
da Covid-19.
7. Coronavírus e a economia Tratam de notícias que apresentam 13 12,38%
discussão sobre os desdobramentos da crise
e os impactos na economia.
8. Coronavírus e a educação Relaciona-se a notícias que envolvem os 4 3,80%
impactos da Covid-19 no campo da
educação.
9. Coronavírus e a Notícias que apresentam discussões sobre 10 9,52%
Hidroxicloroquina o uso da Hidroxicloroquina no tratamento
do coronavírus.
10. Embate: Mandetta X Refere-se ao embate entre o Ministro da 12 11,42%
Bolsonaro Saúde, Henrique Mandetta e o presidente
Bolsonaro diante das medidas de
enfrentamento da crise.
11. Reação Popular: Panelaços Trata-se de matérias que relatam a 4 3,80%
insatisfação popular diante das medidas
tomadas pelo presidente na pandemia.
*Uma mesma notícia pode apresentar mais de um pacote interpretativo.
Fonte: elaboração própria das autoras (2020).

O enquadramento mais evidente na análise das matérias jornalísticas foi crítica ao


negacionismo científico e aos atos considerados irresponsáveis do presidente (35%). As críticas
se deram no sentido de apontar a falta de liderança e planejamento político de Jair Bolsonaro
no momento de crise, em que o país mais precisava de controle e gerenciamento. A sua postura
de tentar minimizar a doença e ignorar as medidas básicas para estancar a escalada da pandemia
no país estão no centro desse enquadramento.
Na matéria “O dever de desobedecer ao presidente”, publicada no dia 01 de abril de
2020, fica evidente o tom de crítica as ações tomadas pelo presidente.

Bolsonaro não hesita em colocar seu futuro político acima da vida de milhares de
brasileiros. (...) A desonestidade de Bolsonaro atinge o ápice da crueldade. Solicita
que a população se sacrifique em nome de uma fantasia. (...) Quer se vestir de herói
maiúsculo, mas segue sendo do tamanho de Jair. Para convencer o trabalhador
brasileiro, ele mente. Não tem números, não tem estudos, não tem evidências. Tem
apenas seu instinto de autossobrevivência (FOLHA DE S. PAULO, 01 DE ABRIL
DE 2020).

Ao trazer esse recorte da pandemia e do governo Bolsonaro, o jornal apropria-se do


discurso científico. Para justificar a crítica de que o presidente não está agindo de forma correta
para a resolução do problema, as matérias sempre apontam as diretrizes defendidas pela
Organização Mundial da Saúde (OMS). Nota-se, portanto, uma aproximação dos campos
midiático e científico, ambos fortemente ameaçados na atualidade, inclusive pelo próprio

170
governo, que, desde eleito, assumiu uma posição claramente negacionista. O campo midiático
coloca-se como guardião da ciência. O seu discurso desloca-se a favor do discurso científico,
contrariando a pós-verdade.
O segundo enquadramento mais evidente foi Coronavíus e a economia (12,38%). Entre
as matérias deste enquadramento estão aquelas que tratam dos desdobramentos econômicos da
crise no país, bem como as medidas e ações articuladas para o enfrentamento da pandemia. O
programa emergencial de atendimento a famílias de baixa renda, que conferiu R$600 como
amparo a vulneráveis, manteve-se no topo de recorte feito pelo jornal. As projeções econômicas
do governo, bem como os retrocessos, encolhimento e volatilidade na Bolsa, diante da crise
também foram destaque nesse enquadramento.
Em terceiro estão os pacotes interpretativos “Coronavírus: desgaste entre o Planalto e
o Congresso” e “Embate: Mandetta e Bolsonaro” (11,42%). Ambos os enquadramentos
reforçam a figura de um presidente que gosta e precisa de confronto para se manter no poder.
Em vez de focar na gestão da crise sanitária e econômica, observa-se que o presidente acaba
por alimentar e ampliar a crise. Tal afirmação se faz contundente visto que, ao invés do jornal
tratar especificamente da doença e dos seus desdobramentos sociais, precisa noticiar conflitos
políticos que se exacerbam com a crise, tendo em vista a postura irredutível do presidente.
A postura negacionista de Bolsonaro diante da crise, ignorando as recomendações da
saúde, junto da falta de planejamento para livrar o país da pandemia irritou os presidentes da
Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP) e foi destaque
nas matérias publicadas pelo jornal. A participação do presidente em manifestações em Brasília
durante a pandemia norteou esse desgaste entre Planalto e Congresso. As matérias “Bolsonaro
abre guerra aos Poderes com irresponsabilidade sanitária” e “Bolsonaro desafia Maia e
Alcolumbre e vê histeria no combate ao coronavírus”, de 16 de março, são exemplos desse
embate. O jornal Folha de S. Paulo ainda dá destaque para as acusações do presidente de ter
recebido um dossiê com informações de inteligência de que Rodrigo Maia, o governador João
Dória (PSDB-SP) e um setor do STF estariam tramando um plano para dar um golpe e tirá-lo
do poder.
A briga entre o presidente e seu Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, evidencia
a postura do governo de ignorar a ciência em detrimento das convicções pessoais e emocionais,
reforçando a discussão de pós-verdade. D`ancona (2018) argumenta que a noção de ciência
como conspiração, ao invés de um campo de investigação capaz de alterar e mover o mundo,
costumava se limitar aos excêntricos. No entanto, atualmente o que se observa não é mais
assim. Neste caso, temos um presidente da República que ignora os argumentos científicos e,

171
apesar de ter à frente um ministro que conduzia a crise com base em sua experiência e estudo
científico, o demitiu por não concordar com sua postura.
Em matérias como “Orientação para aglomeração é ‘não’ a todos, diz ministro da Saúde
sobre Bolsonaro” fica evidente a postura do ministro de rechaçar o comportamento do
presidente de negar as recomendações científicas. Nesse mesmo enquadramento, nota-se que
o jornal reforça seu papel no apoio a ciência ao afirmar que Mandetta conduzia bem seu
trabalho a frente da pasta, tinha o dobro da aprovação do próprio presidente segundo o
Datafolha.
Em seguida estão os pacotes “Bolsonaro: descaso com a pandemia da Covid-19”
(10,47%) e “Coronavírus e Hidroxicloroquina” (9,52%). Ambos os pacotes interpretativos
corroboram para a discussão de pós-verdade, em que o desprezo pela ciência é a marca desta
nova era. Entre as ações de descaso com o coronavírus estão as quebras de protocolos de
combate à doença, a aparição frequente em frente ao Palácio do Alvorada, tocando as mãos de
seus apoiadores, deixando se apalpar e tirando selfies com celulares das pessoas. O jornal relata
a atitude do presidente de passar por cima das recomendações feitas pela ciência, em nome do
confronto.
Na matéria “Coragem ou irresponsabilidade”, do dia 16 de março, o jornal ressalta que
sua atitude gera um péssimo exemplo. “Para desespero das autoridades sanitárias, inclusive as
de seu governo, ele deu sinal verde para que ninguém tome as precauções para evitar contágio”
(FOLHA DE S. PAULO, 16 de março de 2020). Esse reforço sistemático de desobedecer às
diretrizes científicas gera para o seu público aliado o sentimento de que a doença é mesmo uma
gripe, em que elas não precisam seguir as orientações de órgãos da saúde. Santaella (2019)
explica que se trata da lógica de fixação da ficção falsa, que opera semelhante ao marketing e
a publicidade. Assim como a confiabilidade de uma marca depende da repetição incansável da
mesma história ficcional, o mesmo acontece com os discursos no ambiente da pós-verdade, em
que são repetidos exaustivamente até levar as pessoas a se convencerem de que eles são
verdadeiros.
Apesar de não possuir comprovação de que a hidroxicloroquina tenha efeitos positivos
no combate a doença, o presidente insiste no discurso e dá força para que outras pessoas
insistam também. O jornal pontua seu comportamento e de seus aliados na defesa do remédio
no combate ao vírus, mesmo após diversos órgãos pontuar na ineficiência do mesmo. Santaella
(2019) explica que isso revela a sobredeterminação que a emoção exerce na racionalidade
humana. É mais fácil para o presidente se apegar a ideia de que existe um salvador da pátria e
que os problemas do país se resolverão, do que aceitar que o problema existe, medidas

172
precisarão ser tomadas, não se tem solução prática com base na ciência, e que os efeitos
mexerão com toda a sociedade.
O quinto pacote interpretativo evidente foi “Coronavírus: embate entre governo e
estados (7,61%)”. O jornal Folha de S. Paulo apresenta os conflitos entre governadores dos
estados, principalmente de São Paulo e Rio de Janeiro – João Dória e Wilson Witzel, que,
durante a campanha presidencial, colocaram-se ao lado de Jair Bolsonaro e na crise do
coronavírus deslocaram suas imagens da do presidente, inclusive criticando a postura do
mesmo e indo contra seus posicionamentos.
O jornal aponta junto deste pacote o enfraquecimento político do governo diante de sua
postura negacionista. Com matérias como “Bolsonaro sentiu o baque”, de 01 de abril e
“Isolado, Bolsonaro chora e busca apoio entre militares contra a crise”, também de mesma data,
a Folha de S. Paulo pontua o conflito e aponta a vulnerabilidade do governo Bolsonaro, visto
que ele não tem apoio nessa insistência de discurso de pós-verdade. Tanto os governadores,
que em determinado momento foram seus aliados, quanto a mídia estão atuando em defesa da
ciência e seguindo os protocolos por ela ditados.
Os pacotes “Coronavírus e a educação” e “Reação Popular: Panelaços” (3,80%)
apareceram em sexto lugar. O primeiro se destacou por apresentar as discussões e propostas de
realização do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). O jornal recortou o conflito entre o
adiamento ou não do exame, visto que muitos alunos tiveram suas atividades escolares
paralisadas e sairiam em desvantagem. O pacote interpretativo “Reação Popular: Panelaços”
demonstra a reação popular diante da atuação do presidente na crise do coronavírus, que em
grande medida foi possível diante da tarefa midiática de noticiar os fatos e apontar a falta de
comprometimento do governo com o fato.
Castro (2020) salienta que a cobertura dada à epidemia pelas televisões e jornais
impressos foi reconhecida como de extrema importância para proteção social, o que conferiu
reconhecimento à atividade jornalística, que recuperou parte do prestígio num mundo em que
vinha sendo confrontada.
Por fim, os pacotes menos evidentes foram “Apoio às medidas de enfrentamento do
governo” e “Covid-19: membros do governo e presidente se infectaram?” (2,85%).

Considerações Finais

O presente artigo buscou mapear alguns dos efeitos relacionados da pandemia no


contexto do campo comunicacional e político. Logo, observou-se que a comunicação no espaço

173
social, por si só, é uma dimensão estruturante e organizadora da vida. Em situações de longo
risco de saúde pública, como a vivenciada pela Covid-19, esse fato se torna ainda mais
explícito. A centralidade da comunicação, já observada em tempos normais, mostrou-se
exacerbada numa experiência pandêmica.
Os desafios do jornalismo diante da pandemia, obrigado a se desenvolver diante de um
conjunto de indagações, descrédito e suspeição já observado em curso no mundo, revelaram
um fato inegável: a relação íntima do jornalismo com a ciência e sua propagação, também na
tentativa de combate às fake news e as estratégias de averiguação dos fatos e discursos
contrários no meio da pandemia.
Na situação de risco social, como a produzida pelo coronavírus, os diversos sistemas
sociais precisaram se reorganizar para atender às novas necessidades. Com isso, o campo da
comunicação, por sua vez, precisou recorrer ao sistema que melhor permite a circulação do
fluxo de informações: o de apoio e fortalecimento ao campo científico. Ambos os campos –
comunicação e ciência, em ataques, principalmente por parte do governo Bolsonaro, na crise
se uniram e se fortaleceram.
Do ponto de vista político, observou-se que o jornal, através de seus enquadramentos,
recortou a falta de comprometimento e o descaso do presidente Jair Bolsonaro com o vírus e
todas as medidas sanitárias, recomendadas por órgãos de saúde. Reforçando sua postura
negacionista, no cenário da pós-verdade, em que o ideal de veracidade ficou enfraquecido a
ponto de concorrer com o emocionalismo contemporâneo. Santaella (2019) argumenta que os
ambientes cognitivos tornam-se de tal maneira confusos que fica difícil lidar e controlar a
disseminação de pós-verdade, que se vê ainda mais eficiente em um cenário de situação
ultrapardiária, quando a veracidade ou a falsidade da informação é o que menos importa.
Sendo assim, é importante destacar que a concepção do artigo segue, considerando
nosso estado de imersão numa realidade em crise, portanto a ideia é que este trabalho possa
servir como ponto de partida e não como um resultado fechado em si mesmo. A ideia foi de
apresentar uma perspectiva inicial, a fim de que possa abrir visões mais claras do papel da
comunicação, bem como suas mudanças, nesse momento de crise social.
Poucas são as certezas a respeito dos desdobramentos de todos esses processos, no
entanto o que nos parece evidente é que a comunicação, com todos os problemas que a cercam
nos últimos tempos, apresenta-se como central na vida social, principalmente em contextos de
pandemia e pós-pandemia.

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176
PARTE IV:

Mídia e diversidade

177
A falsa diversidade e inclusão dos negros no telejornalismo
brasileiro: uma análise do Jornal Nacional e do Jornal Hoje

LUIZ ADEMIR DE OLIVEIRA


Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
E-mail:luizoli@ufsj.edu.br

LEONARDO EMERSON DE SOUZA SILVA


Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ)
E-mail: leoemersom@gmail.com

1. Introdução

No Brasil, a população negra é subrepresentada nas esferas de poder, mas


superrepresentada nos espaços e contextos de pobreza e violência. Esta segregação clara entre
negros e brancos é reflexo do racismo estrutural presente na sociedade brasileira desde o
período escravocrata. De tal forma que esta realidade ainda influencia nos diversos campos
sociais, inclusive no telejornalismo nos dias de hoje, em que a maioria dos jornalistas e fontes
é branca. Segundo o censo realizado em 2020 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), 54% da população brasileira é autodeclarada negra ou parda. No entanto,
este número é desproporcional à inserção e representação em diversos setores, sentir-se e ver-
se integrado, ainda que o país seja considerado miscigenado e não racista, é um desafio para os
negros.
Esta parcela da população aparece menos na televisão, sobretudo no telejornalismo
ocupando as bancadas e noticiando os fatos. Ou seja, esta etnia não é, de forma alguma,
satisfatoriamente representada neste meio de comunicação para que ele reflita a diversidade
racial brasileira. Não obstante, os poucos negros a frente do telejornalismo brasileiro são vistos
como símbolos de uma falsa e superficial inclusão para eliminar as evidências de um espaço
racista e segregado. A partir dessa constatação sobre a condição de subrepresentação dos negros
no telejornalismo, surge a necessidade de darmos atenção à problematização em torno desse
meio de comunicação. Sobretudo os mais assistidos e de maior visibilidade da maior emissora
brasileira. Com que frequência os jornalistas negros aparecem na bancada do Jornal Nacional
e do Jornal Hoje?

178
O objetivo deste artigo é, portanto, investigar sobre a representação dos negros no
Jornal Nacional e do Jornal Hoje, veiculado pela Rede Globo. Vamos constatar que,
comparada à presença do branco, a do negro, nos referidos telejornais, é menor, praticamente
inexistente e desqualificadora em seu discurso como um espaço democrático e diverso, e que,
quando acontece, é de forma pontual. Para chegarmos a este resultado, realizamos uma
pesquisa quantitativa, na qual foram analisadas 18 edições do JN e do JH veiculadas em janeiro
de 2021. A subrepresentação do negro e a sua invisibilidade nesses programas jornalísticos foi
constatada: apenas 9% dos jornalistas eram negros.
Além de elaborar uma sustentação teórica para fundamentar a nossa análise sobre o
telejornalismo, incluímos uma breve análise social da representatividade do negro no Brasil,
visando contextualizar a opressão e a violência que perseguem esse povo.

2. Breve análise sobre o preconceito contra os negros na mídia

É histórica a luta que os negros travam na sociedade brasileira para conseguir se inserir
no mercado de trabalho e ter o mesmo reconhecimento que os brancos. A pouca representação
na política, no mercado de trabalho e na mídia limitam o espaço de debate e reparação das
desigualdades étnico-raciais causadas pela escravidão.
Uma pesquisa realizada pelas jornalistas Claudia Acevedo e Luiz Trindade em 2011,
com base em 27 jornais de canal aberto e 65 apresentadores revelou que os jornalistas negros
representam apenas 6,15% dos profissionais que atuam na televisão, enquanto a participação
dos brancos chega a 93,85%. A predominância das pessoas de pele clara no telejornalismo é
tida como referências do padrão, criando, assim, uma resistência contra os não brancos nesses
espaços. Araújo (apud ACEVEDO & TRINDADE; 2011) reitera que esse processo constitui
uma “hiperrepresentação racial”.
Sodré (2015) discorre sobre como um dos fatores do racismo midiático é a indiferença
profissional. Segundo o autor, a mídia não se preocupa em abordar e discutir a discriminação
racial, devido à falta de sensibilidade dos jornalistas em relação ao tema. Ao se debruçar sobre
o assunto, Sodré também constata que a presença de jornalistas negros é menor nos meios de
comunicação e, quando conseguem um emprego, são colocados em funções com pouca
visibilidade.
Em contrapartida, segundo os dados levantados pelo Questionário de Avaliação
Econômica da Fuvest (Fundação Universitária para o Vestibular) em 2008, a participação dos

179
negros cresceu no curso de jornalismo em São Paulo. Em 2000, o número de alunos negros
matriculados no curso de jornalismo da Fuvest era de 10,5%, mas em 2008 chegou a 21,2%.
Vale ressaltar que esses dados não representam a realidade de todas as universidades
brasileiras, embora ilustrem como as políticas de cotas raciais têm permitido uma maior
diversidade na área acadêmica.
Em todo caso, ainda que os números não sejam o ideal, é nítido o aumento desses
estudantes se graduando na área de comunicação, mas ainda sem um acompanhamento do
aumento na participação deles na televisão. Zilda Martins (2011) analisa como a população
negra ainda não está incluída nos esquemas de poder no Brasil, seja nas esferas política,
midiática ou acadêmica. Ademais, a autora também discute a importância da indagação sobre
o tempo que os negros deverão esperar para, de fato, obter o direito a uma participação plena
na vida nacional.
Para além da participação ativa na construção das notícias enquanto jornalistas, os
negros também são privados de uma visibilidade que os tire de um contexto de pobreza ou
violência. As mulheres negras enfrentam barreiras ainda maiores devido à cor e ao gênero em
uma sociedade machista e racista. Sara Portal (2016) realizou um estudo sobre a representação
da mulher negra no telejornalismo e analisou como os espectadores afirmaram preferir as
mulheres brancas com cabelo liso na apresentação das notícias. Ao questionar as jornalistas
brancas, a autora notou como o mito da democracia racial impede o reconhecimento da
existência do racismo. Tal como afirma Sodré (2015), ao dizer que a mídia tende a negar a
existência do racismo.
Kátia da Costa (2015) reitera como o processo de seleção do que será mostrado na
televisão prefere a cor branca, incluindo as pessoas negras na falácia de uma minoria racial.
Segundo a autora, tornou-se natural transferir os negros para uma classificação de grupo
minoritário, não no sentido quantitativo, mas qualitativo. Para Sodré (2005), a atual noção de
minoria está relacionada à possibilidade de terem voz ativa ou intervenção nas instâncias de
poder. Ademais, o autor pontua que as mulheres, os negros e os homossexuais se encaixam
nesse conceito. As minorias representam lugares de ação humana “onde se animam os fluxos
de transformação de uma identidade ou de uma relação de poder” (SODRÉ: 2005; 12) em um
contexto contra hegemônico.
De acordo com os autores citados, os negros possuem maiores dificuldades para ocupar
um papel de visibilidade nos telejornais, seja como jornalistas ou fontes fora de um contexto
de vulnerabilidade econômica e social, que permanecem até os dias de hoje. Mesmo com uma
maior participação nas universidades, esse número não é refletido nas bancadas dos telejornais

180
que continuam privilegiando os homens brancos. Não obstante, essa dificuldade afeta ainda
mais as mulheres negras, que precisam vencer o racismo e o machismo presente nas redações.

3. Representatividade, visibilidade e tokenismo

Segundo Berger e Luckmann (2004), embora todas as instituições sociais e


comunidades comuniquem sentido, a mídia é a grande difusora de informações, mensagens e
comportamentos na atualidade. Uma vez que tudo o que as demais instituições produzem em
matéria de valores, sentidos e interpretações da realidade, os meios de comunicação
selecionam, transformam, reorganizam e decidem sobre como será a divulgação e até mesmo
como tais conteúdos devem ser entendidos.
O filósofo norte-americano Douglas Kellner (2001) afirma que a identidade na
sociedade contemporânea é cada vez mais mediada pela mídia, que por meio de suas imagens
fornece moldes e ideais para a formação da identidade pessoal. Segundo o autor, para se discutir
as questões identitárias na atualidade é necessário levar em conta os conteúdos midiáticos,
principalmente do cinema, da música e da televisão. Neste sentido, a cultura da mídia, por meio
das suas imagens e figuras, cria ferramentas de identificação e reprodução de comportamentos.

Na verdade, a cultura da mídia reproduz as lutas e os discursos sociais existentes,


expressando os meios e os sofrimentos da gente comum, ao mesmo tempo que
fornece material para a formação de identidades e dá sentido ao mundo. Quando os
membros dos grupos oprimidos têm acesso à cultura da mídia, suas representações
muitas vezes articulam visões outras da sociedade e dão voz a percepções mais
radicais. No entanto, a crítica diagnóstica também se interessa pelas limitações dessas
obras na defesa dos interesses dos oprimidos (KELLNER, 2001, p.203).

Não obstante, Kellner (2001) ressalta a maneira como as imagens estão presentes nos
veículos de massa, sendo capazes de influenciar a sociedade e levando a crer que a identidade
cultural é constituída, em parte, pelas imagens icônicas de heróis étnicos, emblemas de
identidade e forças de divisão entre as raças. A partir da análise do filme “Faça a Coisa Certa”,
de Spike Lee, o autor diz que a cultura da mídia é um espaço de luta, onde os indivíduos
escolhem seus próprios significados culturais e estilos, em um sistema que inevitavelmente
envolve a afirmação de alguns emblemas identitários e a rejeição de outros.
As instituições sociais individualizam as pessoas com números: da seguridade social,
do título de eleitor, das relações de consumidores, dos bancos de dados, da polícia, dos registros
acadêmicos etc., mas criar identidade própria significa recusar-se a ser definido por essas

181
determinações e optar por outras formas de identificação. Cada vez mais, a cultura da mídia
fornece recursos apropriados à produção de significados pelo público, à criação de identidades.
De acordo com Bauman (2008), na contemporaneidade todos os princípios, valores, costumes
e sentidos tradicionais perderam sua solidez, tornando-se voláteis e líquidos. Nesse contexto,
diante da fragilidade dos pontos de referência, as identidades apresentam-se, na verdade,
enquanto afirmações identitárias, construídas e reconstruídas dentro do discurso e sendo
adotadas ou descartadas como uma espécie de roupa social.
O autor afirma que a combinação das pressões globalizantes e individualizadoras e das
suas consequentes tensões geram, como efeito colateral, uma busca constante e frenética por
identidade. Nesse contexto, Bauman propõe que ao invés de se falar em identidades herdadas
ou adquiridas, seria mais coerente o uso do termo identificação, o qual denota uma atividade
sempre incompleta, que nunca termina e na qual todos, por escolha ou necessidade, estariam
engajados (BAUMAN, 2008).
Frutos desse contexto líquido e globalizado, a ausência de âncoras sociais e fronteiras
culturais e a crise nas instituições e identidades tradicionais levam a uma carência subjetiva, a
uma busca por algo para se identificar, uma referência para se apegar, se espelhar. Nessa
conjuntura, a mídia aparece como grande difusora de valores, práticas, costumes e estéticas.
Seus conteúdos, repletos de arquétipos e estereótipos, despontam como modelos atraentes e
sedutores para serem seguidos, incorporados e ressignificados. A cultura da mídia proporciona
alegorias sociais que expressam receios, aspirações e esperanças de muitos grupos sociais. Seus
conteúdos populares inspiram-se em sentimentos e experiências de seu público-alvo,
retratando-os e difundindo efeitos materiais que modelam pensamentos e comportamentos.
A cultura da mídia põe à disposição imagens e figuras com as quais seu público possa
identificar-se, imitando-as. Portanto, ela exerce importantes efeitos socializantes e
culturais por meio de seus modelos de papéis, sexo e por meio das várias posições de
sujeito que valorizam certas formas de comportamento e modos de ser enquanto
desvalorizam e denigrem outros tipos (KELLNER, 2001, p. 307).

De acordo com Stuart Hall (2009), as identidades são posições impostas aos sujeitos,
construídas por representações e a partir de pontos de “saturação” moldados pelas práticas
políticas e discursivas. Dessa forma, as identidades surgem das relações de poder e se tornam
um produto de marcação da diferença e exclusão dos signos, não uma unidade idêntica
naturalmente constituída. Assim como Silva (2009), Hall defende que a identidade não é
construída a partir das semelhanças, mas, sim, através das diferenças: “isso implica o
reconhecimento radicalmente perturbador de que é apenas por meio da relação com o Outro,
da relação com aquilo que não é, com precisamente aquilo que lhe falta”. Para ele, “toda

182
identidade tem necessidade daquilo que lhe falta – mesmo que esse outro que lhe falta seja um
outro silenciado e inarticulado'' (p. 110).

O resultado de uma bem sucedida articulação ou “fixação” do sujeito ao fluxo do


discurso. [...]. As identidades são as posições que o sujeito é obrigado a assumir
embora “sabendo”, sempre, que elas são representações, que a representação é sempre
construída ao longo de uma “falta”, ao longo de uma divisão, a partir do lugar do
Outro e que, assim, elas não podem, nunca, ser ajustadas idênticas – aos processos de
sujeito que são nela investidos. (HALL, 2009, p. 112).

Não obstante, a identidade também é formada a partir das relações com o outro, as
experiências e ensinamentos adquiridos ao longo da vida. De tal forma, como afirma Hall
(2006, p. 11), “a identidade é formada na ‘interação’ entre o eu e a sociedade. O sujeito ainda
tem um núcleo ou essência interior que é o ‘eu real’, mas este é formado e modificado num
diálogo contínuo com os mundos culturais ‘exteriores’ e as identidades que esse mundo
oferecem”.
Gomes (2002), também lança um olhar sobre o processo de construção identitária,
sobretudo a negra:
Como uma construção social, histórica e cultural repleta de densidade, de conflitos e
de diálogos. Ela implica a construção do olhar de um grupo étnico/racial ou de
sujeitos que pertencem a um mesmo grupo étnico/ racial, sobre si mesmos, a partir da
relação com o outro. Um olhar que, quando confrontado com o do outro, volta-se
sobre si mesmo, pois só o outro interpela a nossa própria identidade (GOMES, 2002,
p. 39).

Para Collins (2000), é preciso levar em consideração que gênero, raça e classe social
são sistemas distintos de opressão subjacentes à uma única estrutura de dominação. Ademais,
uma simples comparação entre os sistemas de opressão é prejudicial, devido ao risco de
hierarquizar as formas de opressão que são, em último caso, completamente interligadas umas
às outras. Neste sentido, a jurista afro-americana Kimberlé Crenshaw (2002) discute o conceito
de interseccionalidade:

A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as


consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da
subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o
patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam
desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias,
classes e outras. (CRENSHAW, 2002: 177).

Segundo Cristiano Rodrigues (2013), o conceito de interseccionalidade, tal como foi


originalmente formulado, permite a visibilidade de múltiplas formas de pertencer a um grupo
sem cair no reducionismo de um denominador comum e, consequentemente, em um
relativismo que transforme as diversas formas de opressão em apenas um objeto de disputa
discursiva. Dessa forma, Collins (1998:201) estimula a não perder de vista que “o

183
posicionamento de um grupo em meio a relações de poder hierárquicas produz um desafio
compartilhado pelos indivíduos destes grupos”. Ou seja, as estratégias individuais precisam ser
compreendidas para que não se perca de vista como a opressão afeta a coletividade.

A interseccionalidade remete a uma teoria transdisciplinar que visa apreender a


complexidade das identidades e das desigualdades sociais por intermédio de um
enfoque integrado. Ela refuta o enclausuramento e a hierarquização dos grandes eixos
da diferenciação social que são as categorias de sexo/gênero, classe, raça, etnicidade,
idade, deficiência e orientação sexual. O enfoque interseccional vai além do simples
reconhecimento da multiplicidade dos sistemas de opressão que opera a partir dessas
categorias e postula sua interação na produção e na reprodução das desigualdades
sociais (Bilge, 2009, p. 70).

Para Hirata (2014), a interseccionalidade é um instrumento de luta política, pois é uma


das formas de combater as múltiplas e imbricadas opressões. Não obstante, Collins (2014)
reitera que a interseccionalidade é, ao mesmo tempo, “projeto de conhecimento” e uma arma
política. Assim, enquanto as representações na mídia buscarem homogeneizar os grupos sociais
desconsiderando as especificidades presentes em cada indivíduo, a crise de identificação e a
manutenção dos estereótipos e preconceitos permanecerão sendo considerados como expressão
do real.
No entanto, como forma de se posicionar como um ambiente diverso e democrático os
telejornais adotam “tokens” — uma inclusão simbólica e superficial de determinados grupos
minoritários — para eliminar as evidências de um espaço racista e segregado. Martin Luther
King (1962) salienta que esse processo não consiste em um esforço real para incluir as minorias
e dar-lhes os mesmos direitos e poderes do grupo dominante.

Estritamente falando, tokenismo é uma prática recorrente nos meios onde as


opressões estruturais, de raça e gênero, são alvo de um trabalho crítico de
conscientização e reivindicação para que grupos minoritários consigam acessar
direitos que lhes são negados, concentrando nas mãos de poucos o que chamamos de
privilégio social (Joice Berth, 2018).

Para os pesquisadores Michael Hogg e Graham Vaughan (2008), a definição de


tokenismo é a de outra forma de discriminação, já que torna pública pequenas ações de aparente
valorização de determinado grupo minoritário. Esses atos relativamente pequenos ou triviais
normalmente aparecem como resposta a acusações de preconceito e se tratam de justificativas
para evitar atos mais positivos e significativos.

Ao invés de políticas públicas universalistas que efetivassem direitos sociais para as


camadas vulneráveis da população, propunha-se “um lugar na mesa” (“a seat at the
table”) para uma parcela minúscula de seus representantes. Assim, o “tokenismo”
político – como prática de recrutamento de um pequeno número de indivíduos
pertencentes a comunidades sub-representadas em esferas de poder – visava dar a

184
aparência de ascensão social de grupos inteiros e de incorporação de suas demandas
pelo establishment (Joana El-Jaick Andrade, 2020, p. 85).

4. Telejornalismo, Jornal Nacional e Jornal Hoje

Para Arlindo Machado (2003), é incontestável o papel que a televisão tomou como um
dos mais importantes veículos de massa com influência na sociedade moderna. Não obstante,
é por meio dela que a civilização pode expressar os seus próprios anseios, dúvidas, crenças,
descrenças e etc. Entretanto, para Muniz Sodré (2010), a televisão não cumpre o seu papel
como um meio tão democrático quanto se propõe, pois a ideologia transmitida por ela dialoga,
sobretudo, com as classes dominantes que exercem controle do Estado.
Atualmente, a TV já não é tão dominante, pois os formatos e conteúdos presentes nas
mídias virtuais agora têm influência nas narrativas televisivas. No Brasil, por exemplo, uma
pesquisa realizada pelo Senado e pela Câmara dos Deputados em 2019, revela que a televisão
é a principal fonte de informação apenas de 67% dos brasileiros com mais de 60 anos, contra
40% na faixa entre 16 a 29 anos. Esses dados, no entanto, não indicam o fim da televisão, já
que as mídias tradicionais e novas têm coexistido e reinventado a comunicação ao longo dos
anos.
Com a ruptura da crença de que o público era passivo frente às notícias veiculadas, hoje
já existe uma nova perspectiva sobre os estudos de recepção do conteúdo a partir de quem
assiste. Para Becker (2005), as interpretações sobre o como o receptor vai reagir a determinado
noticiário vão depender das ideologias, valores e cognição dele, ou seja, variam de acordo com
o contexto sociocultural e cognitivo. Dessa forma, uma notícia pode ser interpretada de
diferentes formas pelos diferentes públicos de um telejornal.
Segundo Orozco (2012), a tela transmite uma produção da realidade e não uma
reprodução, pois a construção de uma notícia é arbitrária e, portanto, ela não deve ser vista
como um reflexo dos eventos, mas como uma mediação. Ademais, para Albuquerque (2016),
é preciso salientar como os telejornais não formam um discurso hegemônico, pois eles apenas
fornecem informações para o telespectador, embora elas não cheguem completamente
ordenadas e elaboradas ao público. “É no espaço simbólico dos noticiários que [...]
acompanhamos, julgamos e construímos o cotidiano da nação, sob e sobre o olhar dos âncoras,
repórteres e editores” (BECKER, 2005, p.48).
Tal construção é incompleta, uma vez que a participação dos jornalistas negros nas
emissoras de televisão com canal aberto continua mínima, enquanto os brancos permanecem

185
sendo maioria na construção do discurso. Dessa forma, a falta de diversidade étnico-racial no
telejornalismo representa um impasse na construção e representação de uma sociedade
democrática, já que os afrodescendentes (54% da população) não se veem nesse espaço e não
se sentem representados. A autora Zilda Martins (2011) acrescenta que o apagamento dos
negros na mídia acontece também no impresso, não apenas na televisão.
No Brasil, o Jornal Nacional, produzido e exibido pela Rede Globo há 51 anos, é o
telejornal com maior audiência da televisão aberta. A programação do JN é transmitida de
segunda a sábado e seus âncoras são William Bonner e Renata Vasconcellos. Sua duração é de
aproximadamente uma hora, exceto às quartas-feiras, quando ocorrem os jogos de futebol, e a
programação dura, em média, 35 minutos. O JN possui um caráter mais sério do que os demais
telejornais da manhã e da tarde, veiculando principalmente matérias relacionadas a economia,
política e internacional.
Devido à grande audiência e qualidade técnica, o Jornal Nacional é tido como um
demonstrativo do jornalismo televisivo brasileiro e da influência que ele exerce na sociedade.
Não obstante, ele produziu um conceito de jornalismo com um padrão definido, geralmente
seguido por telejornais de outras emissoras. O Jornal Hoje, também exibido pela Rede Globo
há 49 anos, e possui um grande destaque na grade noticiosa da emissora com bons desempenhos
de audiência. A sua programação é transmitida de segunda a sexta-feira, de 13h25 às 15h, e no
sábado, de 13h25 às 14h10. O JH apresenta as notícias do dia a dia de interesse geral no Brasil
e no mundo, além de reportagens e séries especiais. Atualmente, a bancada é ocupada
principalmente pela jornalista negra Maria Júlia Coutinho, com eventuais substituições por
outros apresentadores.
Valente (1987, p. 27) diz que “não existe; é irreal a igualdade de raças no Brasil [...]. O
mito da democracia racial tem como objetivo esconder os conflitos raciais existentes e diminuir
sua importância, passando uma ideia mais ‘bonitinha’ para a sociedade”. Essa falsa ideia de
democracia racial é pautada, também, pelos meios de comunicação, sobretudo pelo
telejornalismo brasileiro. Atualmente, dentre os meios de comunicação, a mídia televisiva é
um dos maiores transmissores de conteúdo e informação, considerando que seu alcance é maior
do que o da internet. É, portanto, uma importante produtora de sentido.

4. Análise das edições do JN e JH


Foram analisadas 06 edições do JN e do JH, transmitidas pela Rede Globo, entre os dias
18/01/2020 e 23/01/2020. Para este artigo, foram considerados todos os jornalistas que
apresentaram os telejornais e os repórteres que apareceram nas matérias. Nas 06 edições de

186
cada telejornal, foram registradas a presença de dois no Jornal Hoje – Maria Júlia Coutinho e
César Tralli - e quatro no Jornal Nacional – Willian Bonner e Renata Vasconcelos de segunda
a sexta-feira e no sábado Ana Paula Araújo e Hélter Duarte. Foram descartadas desta soma as
aparições repetidas dos jornalistas.
Dos dois apresentadores que conduziram o JH no período, um era uma mulher negra, a
jornalista Maria Júlia Coutinho que apareceu em 05 das 06 edições. Já dos quatro jornalistas
que apresentaram o Jornal Nacional durante o período, nenhum era negro. Quanto aos
repórteres, apenas um repórter que apareceu no Jornal Hoje – Jefferson Carvalho – em Porto
Velho – era negro – no universo de – o que mostra como não há nenhuma representatividade
dos negros no telejornalismo brasileiro.

Quadro 1: Participação dos jornalistas negros no Jornal Hoje

Jornal Hoje Nomes

Apresentador (a) Maria Júlia Coutinho (Negra) e César Tralli

Repórter 1 – Alessandro Torres


2 - Andréia Sadi
3 – Carlos Eduardo Alvim
4 – César Meneses
5 – Daniela Branches
6 - Danilo Vieira
7 – Delis Ortiz
8 – Eliana Novaes (O Tempo)
9 – Emmily Virgilio
10 – Erick Fianelli
11 – Fábio Castro
12 – Fabiano Andrade
13 – Felipe Santa (Correspondente)
14 – Flávia Alvarenga
15 – Ilze Scamparini (Correspondente)
16 – Jalília Messias
17 – Jefferson Carvalho (Negro)
18 – Lane Gusmão
19 – Luna Markman
20 – Manoela Borges
21 – Marcelo Lages
22 – Michele Barros
23 – Pedro Figueiredo
24 – Philipe Guedes
25 – Raquel Honorato
26 – Rodrigo Carvalho (Correspondente)
27 – Sandra Coutinho (Correspondente)
28 – Wedson Castro
29 – Willlian Kury

187
30 – Vladimir Netto

Fonte: Dados coletados pelos autores

Na semana analisada, a participação dos negros na apresentação dos telejornais em


ambos os telejornais se resumiu à participação da jornalista Maria Júlia Coutinho — como um
“token” da diversidade e igualdade da emissora. O baixo índice de representação dos
profissionais negros evidencia para a sociedade que essa parcela da população não teve o
espaço equivalente aos mesmos profissionais brancos. Vale salientar que esse apagamento dos
negros nas bancadas de ambos os telejornais, até o início do século XXI, era completa. O JN
só passou a contar com a apresentação de um jornalista negro em 2002, com a participação de
Heraldo Pereira. Já o Jornal Hoje, só passou a integrar os negros nas bancadas em 2007, com
a participação da jornalista Zileide Silva, e posteriormente, em 2019, com a entrada de Maria
Júlia Coutinho.
Quanto ao quadro de reportagem, a situação é bem pior. No caso do Jornal Hoje, para
30 jornalistas, apenas 1 é negro – Jefferson Carvalho, sendo que a sua aparição se deu apenas
numa edição, por ser num caso bem específico em relação à cobertura da pandemia em Porto
Velho. Portanto, não é uma aparição rotineira do telejornal, como é o caso de boa parte dos
jornalistas da Globo, que são mais ou menos fixos. Dos 30 jornalistas/repórteres, Andréia Sadi,
Carlos Eduardo Alvim, César Meneses, Danilo Vieira, Delis Ortiz, Eliana Novaes (que
apresenta a previsão do Tempo), Flavia Alvarenga, Pedro Figueiredo, Raquel Honorato,
Vladimir Netto e o time de correspondentes (Felipe Santana, Ilze Scamparini, Rodrigo
Carvalho e Sandra Coutinho) pertencem a uma posição nobre no telejornalismo global. A
presença de 1 jornalista num universo de 30 revela uma triste realidade até porque o jornalista
Jefferson Carvalho é novo, aparece apenas em uma edição, de uma filial da Globo do Norte, o
que não garante que terá uma carreira consolidada na emissora, já que a região só está tendo
visibilidade em decorrência da gravidade da pandemia de Covid-19. No Jornal Nacional, a
situação é ainda pior, sem nenhum jornalista negro, como veremos no Quadro 2.
Quadro 2: Participação dos jornalistas negros no Jornal Nacional

Jornal Nacional Nomes

Apresentador (a) Renata Vasconcellos, Willian Bonner, Ana Paula Araújo e


Hélter Duarte

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Repórter 1 – Alan Severiano
2 – Anne Lottermann (O Tempo)
3 – Bianca Rotier (Correspondente)
4 – Bruno Tavares
5 – Carlos Gil (Correspondente)
6 – Carol Barcelos
7 – Cláudia Bomtempo
8 – Daniela Brances
9 – Débora Rodrigues
10 - Delis Ortiz
11 – Diego Haidar
12 – Fábio Turci
13 – Geiza Duarte
14 – Graziela Azevedo
15 – Ismar Madeira (Correspondente)
16 – Jalília Messias
17 – Paulo Renato Soares
18 – Pedro Bassan
19 – Pedro Vedova (Correspondente)
20 – Raquel Krahenbühl (Correspondente)
21 – Tiago Eltz (Correspondente)
22 – Viviane Possato
23 – Vladimir Netto
24 – Walace Lara

Fonte: Dados coletados pelos autores

A desigualdade de oportunidades presente no Jornal Nacional é ainda mais evidente do


que no Jornal Hoje. Ao longo da semana analisada, não houve aparição de nenhum jornalista
negro. Nenhum apresentador e sequer nenhum jornalista. Esta invisibilidade demonstra o
racismo estrutural. Essa exclusão que não necessariamente segue a proporcionalidade perpetua
as desigualdades raciais e de gênero, pela falsa representatividade nos espaços de poder de
decisão, perpetuando a marginalização dos grupos minoritários. No caso da adoção de
“tokens”, como no caso da jornalista Maria Júlia Coutinho, pode levar as pessoas a acreditarem
que a diversidade está presente e que o racismo não precisa mais ser combatido. A televisão é
tida como um dos maiores meios de produção de sentido, sobretudo pelo papel exercido pelo
telejornalismo. Dessa forma, é necessário que se compreenda e se questione o que é exibido a
partir da perspectiva de quem é representado nela.

5. Conclusão
O desenvolvimento do presente estudo possibilitou uma análise de como a participação
dos negros no JN e no JH, que este ano completam 51 anos e 49 anos, respectivamente, não é

189
significativa ao ponto da Rede Globo se posicionar como emissora antirracista, quando não
segue tal postura. Levamos em consideração a baixa reportagem de jornalistas negros em
contraste com a hiperrepresentação de pessoas brancas. Concluímos que a falta de diversidade
não pode ser reparada apenas com a participação de apenas uma jornalista negra durante as 06
edições de cada um dos telejornais, que estão presentes diariamente nas casas de milhares de
brasileiros que não se veem na mídia.
Essa subrepresentação dos negros legitima a cresça de uma minoria demográfica e a
realidade de um racismo constitucional praticado pela sociedade e compactuado pelos meios
de comunicação. No caso do Jornal Hoje, identificamos a presença da apresentadora Maria
Júlia Coutinho com a ideia de token sugerindo uma certa ideia de diversidade, mas que oculta
uma face de preconceito e falta de diversidade, tendo em vista que nos espaços tanto
jornalísticos quanto de entretenimento da Globo os negros estão ausentes ou ocupando espaços
menores. No caso de repórteres, verificamos que dos 30 jornalistas que apareceram apenas 1
era negros e mesmo assim em apenas uma edição numa emissora do Norte numa cobertura que
é atípica no caso da pandemia. Não se trata de um repórter que pertence à cadeia nacional de
telejornalismo. No caso do Jornal Nacional, não há nenhum apresentador e nenhum dos 24
repórteres é negro, o que revela total descaso com a diversidade.

6. Referências

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Janeiro: Zahar, 2008.

BECKER, Beatriz. A linguagem do telejornal: um estudo da cobertura dos 500 anos do


descobrimento do Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: E-papers Serviços Editoriais, 2005.

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HOGG, M. A.; VAUGHAN, G. M. Social psychology: 5. ed. Londres: Prentice Hall, 2008.

KELLNER, D. A cultura da mídia – estudos culturais: identidade e política entre o moderno


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MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério. 3.ed. São Paulo: Editora Senac, 2003.

MARTINS, Zilda. Ações afirmativas e cotas na mídia: a construção de fronteiras simbólicas.


Rio de Janeiro, 2011, Dissertação (Mestrado em Comunicação Social/Jornalismo). Programa
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SODRÉ, Muniz. Claros e escuros: Identidade, povo, mídia e cotas no Brasil. 3.ed. Petrópolis:
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VALENTE, Ana Lúcia E. F. Ser negro no Brasil hoje. 8ª ed. – São Paulo: Moderna, 1987.

191
SOBRE OS AUTORES

ANA RESENDE QUADROS

Jornalista formada pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) e mestra em
Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de
Juiz de Fora (PPGCOM - UFJF). Em suas pesquisas, Ana aborda as relações do jornalismo
com outras áreas, como a política e literatura. Em sua dissertação, tratou das características da
literatura que Eliane Brum trouxe para suas colunas políticas. Hoje, em sua pesquisa de
doutorado, trabalha com temas como midiatização, política e jornalismo internacional.

BÁRBARA BELIZE MOREIRA BOECHAT

Mestranda em Otimização e Inteligência Computacional pelo Programa de Pós-Graduação em


Ciência da Computação (PPGCC) da Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ).
Graduada em Ciência da Computação pela UFSJ.
E-mail: barbs.beochat@gmail.com.

CARLA REIS LONGHI

Possui graduação em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1988),
Licenciatura Plena pela mesma instituição (1988); Mestrado (1994) e Doutorado (2005) em
História Social pela Universidade de São Paulo. Fez Pós-Doutorado em Comunicação na
Facultad de Ciências de la Información de la Universidad Complutense de Madrid. É professora
concursada no Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e
atualmente é Vice- Coordenadora do Programa Pós-Graduação em História da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). E-mail: carlalonghi@uol.com.br.

DEBORAH LUÍSA VIEIRA DOS SANTOS

Doutoranda em Comunicação Social pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação


Social (PPGCOM) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), bolsista CAPES. Mestre
em Comunicação pelo PPGCOM/UFJF e graduada em Comunicação Social – Jornalismo pela
Universidade Federal de São João del
Rei (UFSJ). E-mail: dlvs1@hotmail.com.

IVANILCE SANTOS OLIVEIRA

Possui graduação em Jornalismo e em Relações Públicas pela Universidade Católica de Santos,


Mestrado (2018) pela Universidade Paulista (UNIP) e é Doutoranda em Comunicação e cultura
midiática pela mesma instituição. E-mail: ivaoliver@gmail.com.

JOSÉ EDUARDO CRUZ VIEIRA

192
Graduado em Comunicação Social na habilitação Jornalismo, pela Universidade de Brasília, e
atualmente, cursa mestrado em Comunicação na Universidade Paulista - UNIP.
E-mail: joseduduvieira@gmail.com.

LEONARDO EMERSON DE SOUZA SILVA

Estudante de Comunicação Social - Jornalismo, na Universidade Federal de São João del-Rei


(UFSJ). Tem interesse por temas relativos à Comunicação, especialmente nas interfaces entre
mídia, raça, classe e gênero presentes na sociedade brasileira. E-mail:
leoemersom@gmail.com.

LUIZ ADEMIR DE OLIVEIRA


Mestre e doutor em Ciência Política pelo IUPERJ. Mestre em Comunicação Social pela
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor do Curso de Comunicação Social –
Jornalismo da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) e do Programa de Pós-
Graduação em Comunicação Social (PPGCOM) da Universidade Federal de Juiz de Fora
(UFJF). E-mail: luizoli@ufsj.edu.br.

MARIANE MOTTA DE CAMPOS

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Paulista


(UNIP). Mestre em Comunicação pelo programa de Pós-Graduação em Comunicação pela
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e graduada em Comunicação Social/Jornalismo
pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). E-mail:
mariannemottadecampos@hotmail.com.

MARINA ALVARENGA BOTELHO

Docente substituta do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de São João del
Rei (UFSJ). Mestre em Educação pela Universidade Federal de Lavras (UFLA). Especialista
em Cinema e Linguagem Audiovisual (Estácio). Graduada em Comunicação Social pela
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Graduanda em Letras pela UFLA. Membro do
Núcleo Leitura e Escrita em contextos discursivos e semiológicos diversos (LEDISC) e do
Grupo de Estudos Discursivos sobre o Círculo de Bakhtin (GEDISC), da UFLA.
E-mail: inabotelho@gmail.com.

MAYRA REGINA COIMBRA

Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de


Juiz de Fora (PPGCOM-UFJF), bolsista CAPES. Mestre em Comunicação pelo
PPGCOM/UFJF e graduada em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal de
São João del-Rei (UFSJ). E-mail: mayrarcoimbra@gmail.com.

VINÍCIUS PEREIRA DOS SANTOS

193
Jornalista, possui graduação em Comunicação Social Jornalismo, pela Universidade Federal
de São João Del Rei (UFSJ), possui formação técnica em Contabilidade pelo Programa de
Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC), na Escola Estadual Napoleão Reis, foi
monitor de fotografia no Centro de Aprendizagem Integral de Santa Cruz de Minas e
presidente do Diretório Central dos Estudantes da UFSJ. Atuou na Assessoria de
Comunicação Social (ASCOM) da UFSJ como estagiário. Atualmente, é mestrando em
Comunicação e Sociedade pelo Programa de PósGraduação em Comunicação da
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). E-mail: vinivicinin@gmail.com.

WILLIAN JOSÉ CARVALHO

Doutorando em Comunicação pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação da


Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Mestre em Comunicação pelo PPGCOM/UFJF
e graduado em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal de São João del-Rei
(UFSJ). E-mail: wjcjornalismo@gmail.com.

CAPA

Paula Alvarenga Botelho - Ilustradora


E-mail: paulaabotelho@hotmail.com

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