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Trabalho por app pode

estar empurrando
pessoas para a direita,
diz antropóloga
Rosana Pinheiro-Machado recebeu um dos
financiamentos mais prestigiosos do mundo
para coordenar pesquisa

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21.mar.2022 às 12h00
Atualizado: 22.mar.2022 às 8h40

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Fernanda Canofre

PORTO ALEGRE Em países emergentes


como Brasil, Índia e Filipinas,
trabalhadores de plataformas como
Uber e vendedores de Instagram
encontraram nas redes sociais um meio
de sobrevivência, mas também um
ambiente fértil da extrema direita,
alinhada à ascensão dos governos atuais
desses países.

Para a antropóloga brasileira Rosana


Pinheiro Machado, a relação entre a
inserção no mercado de trabalho desses
grupos sociais e o posicionamento
político de direita não são coincidência.
É possível que a própria estrutura das
plataformas —seu formato altamente
individualizado e focado no mérito—
esteja exacerbando tendências políticas
hiperliberais, argumenta.

Essa é a hipótese central de um trabalho


de pesquisa que será coordenado por
Pinheiro-Machado, professora da
Universidade de Bath (Reino Unido).

A antropóloga brasileira, Rosana Pinheiro


Machado, laureada com financiamento para
uma pesquisa inédita sobre a relação entre
trabalhadores, redes sociais e a ascensão do
autoritarismo no Brasil, na Índia e nas Filipinas
- Arquivo pessoal

A antropóloga foi laureada com um


financiamento no valor aproximado de
2 milhões de euros (cerca de R$ 11
milhões) pelo European Research
Council (da União Europeia), uma das
bolsas mais prestigiosas do mundo,
anunciado nesta quinta-feira (17). O
trabalho deve começar em maio e tem
previsão de duração de cinco anos.
Com trabalho de anos na periferia
de Porto Alegre, buscando entender a
identificação de trabalhadores do
chamado precariado, que viveram o
incentivo ao consumo dos anos de
governos petistas, com as ideias do
presidente Jair Bolsonaro (PL), a
pesquisadora conversou com
a Folha sobre as questões do novo
mundo do trabalho.

A pesquisa busca entender as


contradições de países com
economias emergentes, com
classes sociais que apresentam
tendência a apoiar autoritários.
Como se chegou a
essa hipótese? Quando a gente olha
para a teoria de populismo, a gente tem
uma deficiência que é tentar entender
pelo ponto de vista do trabalhador
precarizado, [fenômenos como] Donald
Trump e o Brexit. Só que a relação do
mundo do trabalho em países que
tiveram crises depois de 2017 e países
em crescimento é diferente.

É muito diferente ter aquele


trabalhador estereótipo do voto do
Trump, o cara que perdeu emprego na
indústria, perdeu o estado de bem-estar
social, e populações como na Índia,
onde 80% da população rural sempre
esteve na informalidade, ou mesmo no
Brasil. O sentimento político é bastante
diferente.

O que tem em comum entre esses três


países é que todos foram considerados
grandes futuras potências democráticas,
todos fizeram, em cascata, uma virada
autoritária, com algumas coisas em
comum, próprias das contradições
desses modelos.

Você tem milhões de pessoas saindo da


linha da pobreza, que passaram a viver
a plataformização do trabalho —não só
do Uber, mas Facebook, WhatsApp,
Instagram, Telegram. Pessoas que, no
sentido mais amplo possível, usam
alguma plataforma digital para
empreender.

Esse trabalhador precarizado, aspirante


a camada média, se alinha com o
autoritário. A hipótese do projeto é
entender até que ponto as próprias
plataformas não estão exacerbando esse
processo pela própria estrutura,
altamente individualizada, focada no
mérito, hiperliberal por essência.

Isso pode ter profundo impacto na


democracia global, onde tiver
plataformização. São milhões de
pessoas trabalhando 20 horas por dia,
no celular, recebendo conteúdo. E por
ter impacto também no mundo do
trabalho: massas de trabalhadores que
entram num sistema de ilusão,
acreditando que vão se aposentar
com bitcoins.

Tem outro aspecto que é entender quem


são os influencers [influenciadores],
porque entre esse trabalhador
precarizado e o político populista tem
um mundo de mediadores.

Informalidade e aplicativos
1 4 viram única opção para garantir
renda

Laine Brito dos Reis, 27, vende brinquedos


e água minera. Seu marido, também
ambulante, vende armações de óculos em

outra banca. A mulher já  MAIS 

Que evidências existem nessa


direção no Brasil, por
exemplo? Quando Bolsonaro fala
o oposto do "fique em casa", que era
comércio aberto, o que toda a esquerda
pensa? Que ele é um genocida, e fica
sem entender como uma parte da
população segue gostando dele. Mas é
uma parte da população que está
totalmente alinhada a um projeto
hiperindividualista: esse trabalhador se
faz por si próprio, ele não precisa de
política de Estado, ele odeia o que
chama de "coitadismo".

Muitos desses populistas têm uma


mensagem direta focada na produção
do inimigo interno, que é o mau
trabalhador, o vagabundo, e valorizando
a figura do trabalhador que vence por si
próprio, que não precisa do Estado.
Todo pensamento progressista vai em
outra direção, pensando no Estado
como provedor do bem-estar social e de
direitos. Bolsonaro fala para muitos
desses trabalhadores quando promove
comércio aberto, uma autogestão da
pandemia, que é o oposto de uma
gestão coletiva.

Qual o impacto político dessa


plataformização do trabalho? Essa
é a maior pergunta do projeto. Toda a
literatura de plataformização e política
está mais alinhada em entender o
fenômeno de resistência, as
possibilidades de sindicalização, só que
é uma possibilidade muito pequena da
política das plataformas.
Grande parte desses trabalhadores não
necessariamente são bolsonaristas, mas
estão muito vinculados a um grau
individualista e conservador, mais
alinhado ao campo da direita e à
despolitização do que à resistência. Nós
estamos argumentando que, tão
importante quanto olhar para a
mobilização, é entender o que nas
próprias plataformas está
desmobilizando.

A nossa hipótese inicial é que, conforme


vai se plataformizando, uma grande
parte vai caindo na malha da extrema
direita.

Ainda não se sabe o impacto político


disso nessas pessoas que estão
empreendendo do seu celular 20 horas
por dia. A gente tem que lembrar que
elas estão entrando em lugares que não
são só econômicos, mas permeados de
valores políticos. Não se tem noção do
que isso vai resultar daqui alguns anos
em termos de subjetividade política.

A pessoa está horas trabalhando e


recebendo todo tipo de informação em
um lugar onde a extrema direita tem
hegemonia total, a esquerda não passa
nem perto. É muito além do gabinete do
ódio, eles têm um ecossistema político.
Esse trabalhador está muito mais
exposto a essas redes que são super
empreendedoras, "faça você mesmo",
"contra vagabundo".

Influencers, gamers, pastores pops,


caras que ajudam a investir e são
seguidos por milhões de pessoas, é tudo
muito alinhado ao bolsonarismo. Tem
um aspecto também de entender a
renovação do bolsonarismo para além
do Bolsonaro, como esses grupos
conservadores e hiper liberais
continuam recrutando membros das
classes populares.

Tem todo um universo de pessoas


muito mais sofisticado do que aquela
fake news tosca que a gente combatia.
Um ambiente muito mais persuasivo,
sutil e poderoso, que é o sonho de uma
ilusão de um estilo de vida.

Crise e comércio online abrem


1 12
espaço para os entregadores
Weslei Soares, 25 anos, no ponto de
distribuição das mercadorias Zanone
Fraissat/Folhapress

Movimentos como o
dos entregadores
antifascistas estão na contramão?
Como eles se encaixam nesse
cenário? Eles estão na contramão no
sentido positivo. São um movimento
quantitativamente pequeno, mas que
tem papel muito importante se
souberem usar as redes, criar canais de
comunicação, inclusive, internacionais.
Existem movimentos similares nas
Filipinas, de diversos tipos, não só
antifascistas, mas outras formas de
cooperativas.

O mundo da resistência é muito diverso,


mas está na contramão de uma
avalanche dessa fase do neoliberalismo
que é a destruição de tudo. Por
enquanto, estamos sendo engolfados
por essa lógica de profunda
individualização desse trabalhador que
é explorado e ao mesmo tempo quer
explorar.

O apoio a governos autoritários


cresceu em medida proporcional à
parcela da população que passou a
ter acesso à internet em países
emergentes? Há uma coincidência do
acesso à internet e alinhamento com a
extrema direita, mas é porque a
extrema direita, no mundo todo, se
organizou com as redes sociais, não dá
para saber até que ponto isso é uma
conexão direta.

A gente tem, no mundo pós-pandêmico,


um nível de conectividade maior e um
nível de plataformização jamais visto na
história. E a gente precisa responder
qual a consequência política disso,
porque é um movimento que veio para
ficar.

Os camelôs de Porto Alegre, que eu


estudei a vida toda, durante a
pandemia, foram para o Instagram.
Hoje em dia, todo mundo tem celular, é
caro, é difícil fazer uma aula online, mas
todo mundo consegue fazer um perfil
no Instagram. Estamos falando sobre o
trabalhador precarizado, não sobre
extrema pobreza.

Boa parte dessa pesquisa começou com


uma curiosidade que eu tinha, em
grupos públicos bolsonaristas, boa parte
desse cluster era de grupos de vendas
no WhatsApp —grupos de vendas em
geral, que não eram políticos, mas onde
mais circulava material bolsonarista. A
gente vai olhar todas as entradas
possíveis no processo.

Essa classe do chamado


precariado teria força para mudar
a dinâmica do capitalismo, no
sentido de conseguir maior
proteção social e direitos, como os
movimentos de trabalhadores do
século 20? Acredito que sim. O mundo
todo está se precarizando, inclusive,
países desenvolvidos, e não tem saída
política que não seja de transformação
do capitalismo via camadas
precarizadas, que são grande parte da
população.

Ou a gente vai entrar num buraco onde


todo mundo acredita que é cada um por
si, mais ou menos como está, ou a gente
vai ter que ver um processo de
transformação, como a renda básica
universal, em que todo mundo tem o
mínimo de dignidade para sobreviver.
Além de movimentos, que são pequenos
ainda, mas que acredito que por sua
internacionalização podem mostrar que
é possível ter outros modelos de
trabalho.

Você afirma que é importante


também entender as reações
emocionais nesse contexto. As
teorias do populismo sempre estão
tentando entender quem é esse
trabalhador que se fala em termos de
nostalgia, ressentimento, ódio, porque
perdeu emprego, direitos.

Eles não estão só com sentimento de


raiva, também tem que entender como
essas pessoas criam projetos de ilusão,
quais são as aspirações dessas pessoas,
quais os sonhos, como elas se iludem e
o que a extrema direita tenta entregar a
elas.

Estamos num pico, no Brasil, com todo


mundo tentando empreender online, o
que não é sustentável, e vai ter uma
onda de muita desilusão. O que o
campo democrático tem a oferecer para
esse mundo da desilusão? Esse mundo
de pessoas empreendendo online
selvagemente é muito novo.

Como vocês devem conduzir o


trabalho de campo? É um desenho
de pesquisa ambicioso. São três
etnografias de 14 meses cada,
simultâneas, uma em cada país. As
cidades ainda vão ser definidas, por
enquanto está previsto Rio, Manila e
Nova Déli. Meses de imersão,
acompanhando as vidas dessas pessoas
diariamente, um pesquisador em cada
país.

A gente vai criar o banco de dados para


poder acompanhar o processo de
plataformização desse trabalhador, e
ver todas as interações com políticos,
influencers e com esse mundo da
extrema direita. Ao longo de cinco anos,
vamos ver a tendência de como ele
começa a interagir com o material
político. A nossa hipótese é que a
plataformização leva muitos desses
trabalhadores à extrema direita, e que
existem muitos caminhos e razões para
isso.

Vamos criar esse banco de dados a


partir de trabalhadores de quem a gente
tem contexto. A gente vai formar
também um léxico para poder fazer a
captura, ver qual o sentimento, os
sonhos, a revolta deles. A gente quer
ouvir também quem ainda não é
convertido, que fica longe da política.

RAIO-X

Rosana Pinheiro-Machado, 42

Nascida em Porto Alegre, formada em


Ciências Sociais e doutora em
Antropologia pela UFRGS
(Universidade Federal do Rio Grande
do Sul). Atualmente é professora do
Departamento de Ciências Políticas e
Sociais da Universidade de Bath
(Inglaterra). É autora de "Amanhã vai
ser maior" (Planeta, 2019).

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