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03/11/2022 15:59 Quando falham as instituições, surgem homens excepcionais

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ELEIÇÕES E ATAQUES À DEMOCRACIA

Quando falham as
instituições, surgem
homens excepcionais
Acervo Online
| Brasil
por Serge Katz
3 de novembro de 2022

Para o novo governo, trata-se de aproveitar essas pequenas


brechas que se apresentam e recapturar os milhões de
brasileiros que se afastaram de um engajamento
incondicional com os valores republicanos e democráticos

A longo da história, todos os países que passaram por graves crises


políticas que colocaram em risco sua democracia e sua república se
remeteram nas mãos e na coragem de raros homens que acreditavam

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mais que todos os outros. No caso do Brasil da era bolsonarista, podemos


apontar Luiz Inácio Lula da Silva e Alexandre de Moraes como esses
homens especiais.

Depois da Segunda Guerra Mundial, quando a França já havia conseguido


normalizar o clima social e político deteriorado pela ocupação nazista, o
escritor e ministro André Malraux pronunciou um dos melhores
discursos já escritos na história francesa. Malraux, homenageando o
herói da Grande Guerra e chefe da resistência interior Jean Moulin, cujos

restos mortais entrariam no Panteão, lembrou que “o destino da França


esteve suspenso por um fio na coragem desse homem que tudo sabia e
mesmo assim nada falou” após longas horas de tortura. Os grandes
nomes da resistência francesa ao nazismo foram De Gaulle e Jean
Moulin. Os grandes nomes que a história brasileira recordará depois das
eleições de 2022 são Lula e Alexandre de Moraes.

No caso do Brasil da era bolsonarista, podemos apontar Luiz Inácio Lula da Silva e Alexandre de Moraes como esses homens
especiais. (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

Ambos foram alvos de uma verdadeira máquina de mentiras e calúnia. O


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ministro do Supremo e presidente do Tribunal Superior Eleitoral se


tornou alvo da extrema-direita e suas teses conspiracionistas. Ele
também foi alvo de críticas de grande parte de uma esquerda impaciente
e imprudente; mesmo assim, resistiu, se manteve firme e sereno e

contrariou uma após outra todas as jogadas covardes da extrema-direita


que até o último momento, até poucas horas antes do fechamento dos
centros eleitorais, acreditava na possibilidade de adiamento ou anulação
da eleição.

Norberto Bobbio, o grande pensador e filósofo italiano do século XX,


perguntou certa vez se era preferível para um país ter instituições fortes
ou grandes governantes. Na verdade, a história nos revela que em
tempos de paz as instituições sempre foram as melhores garantias da
sobrevivência e continuidade republicana. Porém, em tempos de grandes

crises, todas as grandes nações se abrigaram na coragem de homens e


mulheres excepcionais.  Esse é um grande paradoxo das nossas
democracias. Recorrentemente nos vangloriamos da fortaleza das nossas
instituições e tradições republicanas, entretanto, inúmeros exemplos ao
longo da história mostram que a passagem de um regime democrático
para um ditatorial muitas vezes depende mais da força e firmeza de
alguns raros homens.

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Ministro Alexandre de Moraes como presidente do TSE. (Foto: Isac Nóbrega/PR)

O ministro Alexandre de Moraes revelou-se ser um deles e por sorte não


tem a indecente ambição política de Sérgio Moro; de modo que com ele
o Brasil não corre o risco desse atroz mélange de genres. Moraes, porém,
terá mais trabalho e oportunidade de inscrever ainda mais seu nome na
história do Brasil e já sinalizou que compreende a importância de seu

papel decisivo. Trata-se de uma reforma das leis sobre regulamentação


das plataformas digitais. Durante a coletiva de imprensa posterior ao
anúncio dos resultados das eleições, ele afirmou a necessidade de
responsabilizar as plataformas dando-lhes status de veículos de
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responsabilizar as plataformas
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dando lhes status de veículos de
Quando falham as instituições, surgem homens excepcionais

informação. Justíssimo!

Entretanto, essa missão terá que contar com a participação de toda a


sociedade civil. E mais uma vez o Brasil pode ser pioneiro em sua
legislação sobre mídias digitais e internet. A realidade é que hoje a maior
ameaça para as democracias liberais do Ocidente são os disparos em
massa de fake news.

A extrema-direita e a memória do nazismo


Os quatro anos do governo Bolsonaro deixaram evidente que as
instituições brasileiras são facilmente corrompíveis, porém, o
posicionamento recente da maioria dos líderes das instituições e
lideranças partidárias do bolsonarismo mostraram também que têm em

grande apreço uma vida política institucionalizada. É outro paradoxo


brasileiro. As instituições são frágeis, mas os políticos se fortalecem no
carreirismo.

Outro ponto essencial que deve mobilizar os debates nos próximos dias é
o espaço ocupado por esses mais de 58 milhões de brasileiros que
escolheram Bolsonaro no último domingo. São todos extremistas e
fascistas? Certamente não. Mas muitos deles constituem essa massa
flutuante que navega entre o centro, a direita e a extrema-direita. Um

desafio político e ideológico do próximo governo consistirá em trazer


essas pessoas para o lado da democracia, talvez até por meio de medidas
econômicas e políticas públicas.

O Brasil de Bolsonaro também cristalizou a posição do país longe do


secularismo e da laicidade. A centralidade do debate religioso durante a
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secularismo e da laicidade. AQuando
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centralidade do debate religioso durante a
falham as instituições, surgem homens excepcionais

campanha eleitoral, sobretudo, no segundo turno, e o fortalecimento dos


evangélicos como atores essenciais dos processos políticos são um triste
aviso de que a democracia brasileira perdeu uma característica

fundamental dos Estados modernos que é o “desencantamento do


mundo”, a separação da política com a esfera religiosa. De agora em
diante, a política brasileira será pautada pela temática religiosa. É uma
tendência que afeta também os Estados Unidos.

A vitória de Lula, ou melhor, a vitória do campo democrático por meio de


uma aliança ampla que reuniu vários partidos políticos com fortes raízes
democráticas é uma oportunidade única de marginalizar a extrema-
direita no Brasil. Retomando as comparações com a Europa, vemos desde
a eleição presidencial francesa de 2002 quando Jean-Marie Le Pen

chegou ao segundo turno, que nesse país é comum uma frente ampla ser
formada para barrar a extrema-direita; de tal forma que não se vislumbra
no horizonte seu acesso à presidência da república. É óbvio que a
extrema-direita se tornou uma força política na França, mas ela não é
uma força capaz de chegar à presidência. O motivo dessa
impossibilidade é histórico e cultural no sentido em que a extrema-
direita francesa é intimamente relacionada na memória dos eleitores
com a ocupação nazista e a colaboração durante o regime de Vichy. No
Brasil, essa associação com o nazismo é de frágil demonstração.

No máximo, se pode relacionar a extrema-direita com a ditadura militar.


Contudo, hoje, seus laços parecem ser mais fortes com os grupos
religiosos evangélicos mais radicalizados do que com a memória da
ditadura militar. Por isso, aumenta no Brasil a dificuldade da formação de
uma frente ampla contra a extrema-direita.

Dito isso é preciso tomar alguns cuidados na análise A tese de que o


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Dito isso, é preciso tomar alguns cuidados na análise. A tese de que o
bolsonarismo é forte precisa ser relativizada. E nem o Bolsonaro é tão
forte fora da presidência. Não significa que o conservadorismo (e seus
aspectos religiosos) seja fraco no Brasil. Me refiro à figura de Bolsonaro
como sendo central na articulação desse conservadorismo. É esse ponto

que deve ser relativizado. Muitos dos seus aliados de primeira hora
foram atacados pelos filhos e o “gabinete de ódio”. Os recentes aliados
sabem que é um risco que sempre vai existir com eles. Se vislumbrarem a
possibilidade de tirar os filhos da cena política, não hesitarão. A
presteza, domingo, de vários bolsonaristas em reconhecer sua derrota já
indica essa tendência. Bolsonaro pode se manter importante nos
próximos anos, mas precisará demonstrar muita inteligência política. O
comportamento mais óbvio que se esperaria dele seria continuar sendo
relevante mantendo a postura truculenta que sempre o caracterizou. Ele
aposta na agitação. Isso mantém o engajamento de alguns radicais, mas
não durante quatro anos. Além disso, há um risco político para ele caso
aposte por promover uma agitação desmedida que pode irritar a Justiça.
E sabemos que não é uma boa ideia num país como o Brasil onde o Poder
Judiciário já mostrou que é propenso a intervir nos processos políticos.

Portanto, para o novo governo, trata-se de aproveitar essas pequenas


brechas que se apresentam e recapturar os milhões de brasileiros que se
afastaram de um engajamento incondicional com os valores republicanos

e democráticos. Esse é um dos grandes desafios da sociedade brasileira


nos próximos anos: marginalizar ao máximo o campo da extrema-direita
ampliando a adesão popular à democracia.

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