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INTERESSE

NACION AL
ano 16 • número 61 • abril – junho 2023
www.interessenacional.com.br e www.interessenacional.com

A nossa extrema-direita – e as deles


Demétrio Magnoli

O que esperar do terceiro mandato de Lula?


Bolívar Lamounier

A falta que faz uma tradição liberal-democrática


Fernando L. Schüler

Populismo em Marcha?
Anthony W. Pereira

Um novo papel para as forças armadas


Edmar Bacha
Simon Schwartzman

Relações entre o Estado e o Soldado:


um desafio para o País
Otávio do Rêgo Barros

Desafios da política externa do terceiro mandato de Lula


Guilherme Casarões

O bastidor da crise das urnas eletrônicas


Rubens Barbosa
INTERESSE
NACION AL
INTERESSE
NACION AL
Ano 16 • Número 61 • Abril–Junho de 2023

Editora
Marili Ribeiro

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Rubens Antonio Barbosa

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Sumário
ANO 16 • NÚMERO 61 • ABRIL–JUNHO DE 2023

Apresentação

ARTIGOS

1 A
 nossa extrema-direita – e as deles
O sociólogo Demétrio Magnoli lembra em seu artigo que o triunfo eleitoral de
Donald Trump ativou alarmes globais ao sinalizar que “as democracias
ocidentais enfrentavam o desafio da ascensão do populismo de direita”. A
vitória de Jair Bolsonaro significou a inserção do Brasil nessa tendência.
Embora o bolsonarismo articule-se politicamente com correntes internacionais
da extrema-direita, suas raízes ideológicas não são similares às correntes
internacionais: “O bolsonarismo não é mera expressão nacional das ideias que
movem o populismo de direita nos EUA ou na Europa”, pondera.

2 E conomia brasileira pós-pandemia: o que esperar


Já o cientista político Bolívar Lamounier analisa em seu texto o papel do
partido político na democracia representativa, o qual deveria ser dinâmico,
balizador das ações públicas e elo entre o Estado e a Sociedade. “Dá-se que
não temos partidos políticos ou, se preferem, ter 20 ou 30 e não ter nenhum dá
mais ou menos na mesma coisa”, escreve. Para ele, se o conceito fosse levado
sério, o partido seria capaz de atuar no processo legislativo com personalidade
ideológica flexível, mas definida o suficiente para que diferentes parcelas da
sociedade pudessem se orientar conforme seus desejos e valores. E mais, seria
ainda capaz de impedir o retalhamento do Estado por “corpúsculos
corporativistas”.

3 A
 falta que faz uma tradição liberal-democrática
O processo de impeachment de Dilma Rousseff deixou marcas profundas para
o filósofo Fernando L. Schüler. O fato de o PT ser bem estruturado tornou
previsível a reação que veio: “Acertou a revista The Economist, que à época

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prognosticou que o processo de impeachment iria “envenenar” a política
brasileira por muito tempo”, aponta. A partir da vitória de Bolsonaro,
começou um estranho jogo. De um lado, a recusa permanente da legitimidade
de quem venceu, tido como o “fascista”, o “inominável”, o “gado”. De outro,
a tensão, o duplo sentido com o “nosso exército”, a “fraude nas urnas
eletrônicas”, o “Artigo 142”. Tudo como avant premier do 08 de janeiro,
acontecimento que manchou a direita e a democracia.

4 P
 opulismo em Marcha?
Traçar cenário do populismo numa perspectiva histórica e global foi o
caminho escolhido pelo articulista Anthony W. Pereira para contextualizar o
momento. “Podemos abordar o populismo como uma forma de política de
massas caracterizada por desempenhos políticos transgressivos que se opõem
às "elites" em nome de um "povo autêntico” e dependem, pelo menos em parte,
da comunicação não mediada entre um líder e seguidores”, diz ele. Mesmo que
essas características sejam comuns, há outras formas de política de massas,
como movimentos e partidos não populistas. Dada a amplitude da definição, o
conteúdo ideológico e o impacto político do populismo podem variar.

5 U
 m novo papel para as forças armadas
O economista Edmar Bacha e o cientista político Simon Schwartzman
avaliam a militarização do governo estimulada por Jair Bolsonaro. Esse
fato, mais a tentativa de envolver as forças armadas em um golpe militar e a
passividade, senão conivência, de muitos de seus setores com estes
movimentos, trouxeram para a ordem do dia a necessidade de se discutir o
papel das forças armadas na sociedade brasileira: “Não se trata somente da
questão mais imediata da ameaça que houve à democracia, mas dos temas
mais amplos, de médio e longo prazos, do relacionamento entre o setor
militar e a sociedade civil e do papel das forças armadas brasileiras no
mundo atual para um país como o Brasil”.

6 R
 elações entre o Estado e o Soldado: um desafio para o País
O general Otávio do Rêgo Barros cita em seu artigo o pensador italiano
Norberto Bobbio em suas ponderações sobre o futuro da democracia.
Depreende dali que “somente o respeito ao ser difuso conhecido como
democracia fará a sociedade avançar na autoproteção e consequente
sobrevivência da tribo da qual cada indivíduo livre é parte”. Para ele, a
estrutura política e social do Brasil foi abalada por um presumido

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enfrentamento dos estamentos militar e civil, cuja causa tangencia a origem
militar do ex-presidente. Mas, acrescenta que, com o novo governo, “abre-se
a possibilidade de retorno das águas ao curso normal do rio nas relações
entre civis e militares”.

7 D
 esafios da política externa do terceiro mandato de Lula
Ao mesmo tempo em que vê o presidente Lula diante do desafio de recolocar o
Brasil no cenário internacional, após quatro anos de isolamento e de perda de
liderança em temas essenciais para a agenda interna – de mudanças climáticas à
saúde global, passando por direitos humanos –, o cientista político Guilherme
Casarões, considera potenciais obstáculos: “Penso que a revitalização da nossa
política externa pode ser um dos pontos de partida para que o novo governo
cumpra sua promessa de reconciliação nacional. Afinal, não faltam exemplos
mostrando que é possível que um presidente construa legitimidade política de
fora para dentro – usando a diplomacia, em suas múltiplas manifestações, para
viabilizar a consecução de seu programa governamental.”

8 O
 bastidor da crise das urnas eletrônicasl
As urnas eletrônicas foram objeto de grande controvérsia, antes das eleições de
outubro de 2022, a partir de contestação pelo presidente Jair Bolsonaro. O
diplomata Rubens Barbosa faz aqui um registro de seu envolvimento pessoal a
chamado do presidente do Tribunal Superior Eleitoral, em uma crise que, pela
sua sensibilidade, não foi conhecida à época. Havia a possibilidade da falta de
urnas em função da falta de semicondutores para a produção dos equipamentos
nos prazos requeridos. A ação do TSE foi decisiva para que o problema fosse
contornado. Barbosa fez gestões junto aos fornecedores, contribuindo para que a
crise fosse superada e evitado potencial problema político diante do risco da não
realização das eleições na data prevista.

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Apresentação

O debate sobre a presença da extrema-direita, assim como o avanço do populismo de


direita no cenário político nacional a exemplo do que ocorre em vários outros países
no mundo, e como esse fato impacta e reflete no terceiro mandato do presidente Luís
Inácio Lula da Silva, se faz presente na atual edição da Revista Interesse Nacional.
Os articulistas convidados pelo Conselho Editorial da publicação refletem sobre
diferentes prismas e merecem leitura. Como apontam, o alerta global foi ativado
com o triunfo eleitoral de Donald Trump e a posterior vitória do ex-presidente Jair
Bolsonaro no Brasil.

Há quem considere que o papel do partido político deveria ser o balizador das
ações públicas e o elo entre o Estado e a sociedade. Porém, no caso brasileiro,
está bem descaracterizado. A abundância de partidos e a incapacidade de atuar no
processo legislativo com personalidade, para que a sociedade se oriente conforme
valores e políticas públicas em prol da maioria, inexistem. Eles funcionam como
um balcão de interesses privados incapazes de impedir o retalhamento do Estado
em favor de causas corporativistas.

Outro ponto relevante no momento é o papel das forças armadas, após a militarização
de funções públicas e civis, estimulada pelo governo anterior e que trouxe para a
ordem do dia a necessidade de se discutir as relações entre Estado e atuação do
setor militar. Como menciona um dos autores das análises, “somente o respeito ao
ser difuso conhecido como democracia fará a sociedade avançar na autoproteção e
consequente sobrevivência da tribo da qual cada indivíduo livre é parte”.

Os desafios da política externa para recolocar o Brasil no cenário internacional,


após quatro anos de isolamento e de perda de liderança em temas essenciais para
a agenda interna – de mudanças climáticas aos direitos humanos – está na pauta
de temas abordados nesta edição. Afinal, cientistas políticos consideram que não
faltam exemplos mostrando ser possível um presidente construir legitimidade
política de fora para dentro, usando a diplomacia para viabilizar a consecução de
seu programa governamental.

Boa leitura!
os editores

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A nossa extrema-direita – e as deles

■D
 emétrio Magnoli é sociólogo, conselheiro do Centro Brasileiro
de Relações Internacionais, colunista dos jornais Folha de S.Paulo e
O Globo, comentarista internacional na GloboNews

O triunfo eleitoral de Donald Trump, em 2016, ativou os alarmes: as democracias


ocidentais enfrentavam o desafio da ascensão do populismo de direita. Na Europa,
partidos populistas de direita obtiveram, em 2018, perto de 15% dos votos totais,
contra menos de 5% em 1998 – e alguns deles tinham forte presença nos gabinetes
de governo. Por isso, naquele ano, a vitória do extremista Jair Bolsonaro parecia
significar a inserção do Brasil numa tendência mais geral.

Sem surpresa, fixou-se uma narrativa predominante que inscreve a extrema-


direita bolsonarista no panorama internacional do avanço da direita populista. O
argumento deve ser divido em duas teses distintas: 1) o bolsonarismo articula-
se politicamente com correntes internacionais da extrema-direita; 2) as raízes
ideológicas do bolsonarismo são similares às das principais correntes internacionais
da extrema-direita.

A primeira tese é factualmente comprovável – mas tende a superestimar a


relevância dessas articulações. A segunda tese é basicamente equivocada: o
bolsonarismo não é mera expressão nacional das ideias que movem o populismo de
direita nos EUA ou na Europa.

■ Deus e Pátria

“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. A invocação da fé religiosa pontilhou


os discursos oficiais do governo Bolsonaro, do presidente à ministra dos Direitos
Humanos, passando por Ernesto Araújo, seu primeiro ministro das Relações
Exteriores. Paralelamente, o governo insistiu nos ícones da nacionalidade. Como
esquecer a frustrada iniciativa do ministro da Educação de solicitar às escolas
vídeos de professores e alunos entoando o hino nacional, durante o hasteamento
do auriverde pendão da esperança? Ou a conclamação do porta-voz presidencial,
general Otávio Rêgo Barros, para “toda a sociedade prostrar-se diante da bandeira
ao menos uma vez por semana”?

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É um equívoco transferir a ladainha carola e “nacionalisteira” para o arquivo
morto dos anacronismos. Há um sentido mais profundo no recurso exaustivo a
tais referências: nos EUA, primeiro, e no Brasil, depois, o populismo de direita
encontrou uma refutação eficaz do multiculturalismo.

Há décadas, as elites políticas liberais e de esquerda substituíram o discurso


universalista (cidadãos) pelo discurso multiculturalista (minorias). A diferença
converteu-se em valor supremo, enquanto dissolvia-se a aspiração à igualdade (de
direitos, de oportunidades). A nação deu lugar a uma miríade de grupos singulares
(negros, mulheres, gays). A ideia de direitos universais (educação, saúde,
previdência, transportes) deu lugar à chamada discriminação positiva (leis e regras
específicas, cotas de gênero ou de “raça”). Deus e a pátria fazem seu caminho no
espaço aberto por essa abdicação histórica.

A estratégia manipula poderosos signos de igualdade. O “Brasil acima de tudo”


cumpre dupla função. Na sua face oculta, tenta identificar a pátria ao governo, um
expediente autoritário clássico. Mas, na sua face pública, veicula uma mensagem
inclusiva: todos – ricos e pobres, homens e mulheres, “brancos” e “negros” –
pertencem igualmente à comunidade nacional. O nacionalismo da direita populista
carrega as sementes da xenofobia (diante do imigrante) e da intolerância política
(diante das oposições). Ao mesmo tempo, oferece um abrangente manto comum –
e, com ele, a promessa de resgate dos fracos e humilhados.

As religiões monoteístas deitaram raízes pois ofereciam uma base pétrea de


legitimidade aos governantes (um Deus no céu, um imperador na Terra) e,
simultaneamente, a esperança de justiça aos desamparados (todos são filhos do mesmo
Deus). O “Deus acima de todos” também desempenha dois papeis. Numa ponta, corrói
a laicidade estatal e propicia o acesso das igrejas à mesa do poder. Na outra, apela ao
sentido popular de igualdade: nenhuma ovelha do rebanho será deixada para trás.

Deus, a bandeira e o hino são chaves narrativas compartilhas por Trump, nos EUA,
Vladimir Putin, na Rússia, Recep Erdogan, na Turquia, Viktor Orbán, na Hungria,
e a coalizão Meloni/Salvini, na Itália. Nesse plano mais genérico, Bolsonaro
participa do movimento geral da direita populista.

Num artigo de ressonâncias místicas, publicado em novembro de 2018,


Ernesto Araújo encontrou no “Deus de Trump” o motor da história.1 O “pan-
nacionalismo”, a identidade cristã, Spengler e a xenofobia unem-se como escudos
contra o “cosmopolitismo” e o “liberalismo”. Três meses depois, Eduardo
Bolsonaro tornou-se o “representante na América Latina” do movimento de

1. “ Trump e o Ocidente”. Cadernos de Política Exterior, v. 3, n. 6, IPRI/FUNAG, Brasília, 2018.

6 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . interesse nacional – abril – junho de 2023 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .


partidos populistas de direita articulado por Steve Bannon. Era o ensaio de uma
“Internacional dos nacionalistas”, uma contradição em termos fadada ao insucesso.
A geringoça andou um pouco. Na visita presidencial aos EUA, em março de 2019,
a comitiva brasileira ofereceu um jantar que teve Bannon como convidado especial.
Depois, em abril, Eduardo Bolsonaro fez um giro europeu de encontros com líderes
da direita nacionalista, iniciado por uma visita ao então co-primeiro-ministro
italiano Matteo Salvini. Mas o Movimento de Bannon logo desandou, esbarrando
nas divergências entre os líderes da direita europeus e na resistência de vários deles
a se submeterem ao ideólogo americano.

Sob o patrocínio de Trump e de Orbán, no lugar da “Internacional dos nacionalistas”,


nasceu uma “Internacional cristã”: a International Religious Freedom (Belief
Alliance).2 Sob o manto da liberdade de crença, a aliança reuniu, além das
lideranças políticas cristãs que a conceberam, correntes religiosas conservadoras
hindus, muçulmanas e judaicas. Araújo participou de sua estruturação, em 2020.3
Entretanto, suas atividades só deslancharam após a demissão do ministro, no início
do ano seguinte. A articulação contou com a entusiasmada adesão do Brasil – mas
basicamente a cargo de Damares Alves, do Ministério dos Direitos Humanos e
Cidadania, com discreta participação do Itamaraty.4

O “Deus de Trump” produziu escassos frutos, do ponto de vista dos alinhamentos


geopolíticos internacionais. A política externa bolsonarista, enunciada aos brados por
Araújo, praticamente limitou-se a visitas, encontros e conferências sectárias, além de
frequentes votos antiliberais em fóruns internacionais. Muita fumaça, pouco fogo.

■ Ideia fora de lugar

O bolsonarismo foi descrito como expressão brasileira da onda nacionalista e


populista que varre o Ocidente. No fundo, porém, o bolsonarismo é uma exceção.

A poesia épica do populismo de direita nasce na gramática do medo. Nos EUA e na


Europa, a angústia, a insegurança diante do futuro alimentou a onda populista em
curso, que ainda não dá sinais consistentes de retrocesso. Nesse sentido genérico,
o Brasil acompanhou a tendência internacional. Bolsonaro foi catapultado ao
Planalto por eleitores temerosos, inseguros, indignados. Mas, por aqui, os eleitores
não foram seduzidos pela narrativa ideológica do bolsonarismo. O voto negativo,
não a adesão política, definiu o triunfo de um líder carente de bases sociais sólidas.
Aí reside nossa excepcionalidade.

2. https://bit.ly/3xMH3Hk

3. https://bit.ly/3ZdmdMZ

4. https://bit.ly/3ZcVbFD

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . a nossa extrema-direita – e a deles . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7


O grande tropeço da globalização, iniciado em 2008, deflagrou a ascensão do
populismo nacionalista. Trump venceu no Colégio Eleitoral apoiando-se na baixa
classe média branca submetida à corrosão da indústria tradicional. A crise do
euro, seguida por longos programas de austeridade econômica, inflou o balão
dos partidos da nova direita europeia. Dos megafones de Trump, Salvini, Le
Pen, Farage, Orbán e tantos outros emanaram as conclamações antiliberais do
nativismo, da xenofobia e do protecionismo.

No Brasil, Bolsonaro também emergiu do caos: a depressão econômica armada


pelas estratégias fiscais do lulo-dilmismo. A campanha bolsonarista apertou as
teclas sensíveis da corrupção e da criminalidade, mas o triunfo eleitoral derivou do
colapso catastrófico do sistema político. Lá fora, uma corrente histórica profunda
impulsiona a nova direita nacionalista. Aqui, um cruzamento de circunstâncias
fortuitas colocou um político obscuro na cadeira presidencial.

A extrema-direita brasileira é uma ideia fora de lugar: a imitação sem disfarce de


um discurso elaborado nos EUA ao longo de mais de dois séculos. Lá, a noção
de liberdade foi moldada em oposição aos conceitos de democracia e igualdade
perante a lei. A “liberdade dos estados” funcionou como oposição à existência
de uma Constituição nacional, depois como alicerce do sistema escravista e,
finalmente, como moldura das leis de segregação racial. Hoje, reciclada, a
reivindicação fundamenta as legislações destinadas a restringir o acesso às urnas
em estados controlados pelos republicanos.

No Brasil, uma semana antes do 7 de setembro de 2021, a Federação das Indústrias


do Estado de Minas Gerais (Fiemg) publicou o manifesto do bolsonarismo.5
A Fiesp e a Febraban haviam ensaiado discurso da democracia, curiosamente
definida como “harmonia entre os Poderes”. Em contraponto, a Fiemg intitulou sua
declaração com a senha de combate da extrema-direita: Manifesto pela Liberdade.

Um centro de comando único, uma espécie de Comitê Central, esculpiu os


discursos do bolsonarismo. Assim como o texto da Fiemg, as bandeiras dos atos
bolsonaristas daquele 7 de setembro sofreram uma padronização, organizando-
se em torno da senha principal. Tudo – os ataques ao STF, as injúrias contra
governadores e parlamentares, a contestação das urnas eletrônicas – foi recoberto
por uma mão de tinta fresca que exibia a palavra liberdade.

“Assistimos a uma sequência de posicionamentos do Poder Judiciário que acabam


por tangenciar, de forma perigosa, o cerceamento à liberdade de expressão no
país”, escreveram os industriais mineiros para condenar o inquérito das fake

5. Manifesto pela Liberdade, FIEMG. https://bit.ly/3KEK3NI

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news – e, de passagem, oferecer um apoio implícito ao pedido de impeachment do
juiz Alexandre de Moraes. Liberdade, desdobrada em “liberdade de expressão” e
“liberdades individuais”, era esta a mensagem.

A senha emergiu, igualmente, em textos assinados pelo ministro da Defesa, Braga


Netto, um expoente da agitação bolsonarista entre os militares. Na nota de repúdio
às declarações do senador Omar Aziz (7 de julho), o general proclamou que “as
Forças Armadas não aceitarão qualquer ataque leviano às instituições que defendem
a democracia e a liberdade do povo brasileiro".6 Duas semanas depois, em nota de
desmentido de ameaças de golpe (22 de julho), expressou o compromisso das Forças
Armadas com “a manutenção da democracia e da liberdade do povo brasileiro”.7

A Constituição atribui às Forças Armadas as missões de “defesa da Pátria”, “garantia


dos poderes constitucionais” e, por iniciativa de um deles, proteção “da lei e da ordem”.
A “liberdade do povo brasileiro” era uma invenção (in)constitucional de Braga Netto
– ou melhor, dos mestres ideológicos que o controlavam. Mas, aqui, o que importa é
registrar a consistência do discurso bolsonarista.

Liberdade – não democracia. A opção tem significado e implicações. O conteúdo


da liberdade depende do ponto de vista do sujeito do discurso. Democracia, porém,
tem conteúdo objetivo: o sistema de governo baseado na vontade da maioria
filtrada por leis e instituições que limitam o poder dos governantes, asseguram
os interesses permanentes da sociedade e protegem os direitos da minoria. Fora
da democracia, liberdade é privilégio de uma minoria que tem poder. Os arautos
bolsonaristas da “liberdade” são os saudosistas da ditadura militar que acalentaram
o sonho de um golpe contra as liberdades democráticas.

■ Aliança profana

Paulo Guedes, o superministro da Economia, definiu o governo Bolsonaro como


uma aliança entre conservadores e liberais.8 Era, claro, um álibi destinado a justificar
sua própria adesão ao presidente extremista – mas também um duplo equívoco
conceitual. A extrema-direita bolsonarista não é conservadora, mas reacionária:
defende uma ruptura com a democracia e um retrocesso à “idade de ouro” da ditadura
militar. Já o liberalismo econômico do governo resumia-se a uma fantasia destinada
a recobrir políticas fiscais populistas que desmoralizaram o teto de gastos e tentativas
de subordinar a Petrobras às necessidades reeleitorais do presidente.

6. Nota Oficial – Ministério da Defesa, 7/7/2021. https://bit.ly/3Z2TQRW

7. Nota Oficial – Ministério da Defesa, 22/7/2021. https://bit.ly/3ZnzYci

8. O Estado de S. Paulo, 22/2/2022. https://bit.ly/3SroO3T

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A “santa aliança” de Guedes deflagrou um debate público sobre as relações entre
liberalismo e democracia. “É natural que a Fiesp assine um manifesto em defesa
da democracia, já que não existe liberalismo, economia de mercado ou propriedade
privada, valores tão caros à entidade e ao setor industrial, sem que exista segurança
jurídica, cujo pilar essencial é a democracia e o Estado de Direito”, declarou Josué
Gomes da Silva, presidente da entidade empresarial paulista no início da campanha
eleitoral de 2022.9

O manifesto cumpria um papel positivo, mas a justificativa continha uma


imprecisão conceitual: o liberalismo não precisa, necessariamente, da democracia.

O liberalismo tomou de assalto o Ocidente no século XIX, antes do advento


das democracias contemporâneas. Os princípios liberais clássicos – os direitos
individuais, as liberdades civis e políticas, o secularismo, o livre mercado –
estabeleceram-se em regimes políticos aristocráticos ou oligárquicos. A democracia
chegou depois.

Democracia supõe o direito universal de voto, algo que só se difundiu ao


longo do século XX. Os sistemas pioneiros de governo liberais baseavam-se
no consentimento de uma minoria que gozava do privilégio de plenos direitos
políticos. Durante um longo período, massas de pobres eram excluídas do voto por
muralhas ligadas à propriedade ou à renda e as mulheres simplesmente não tinham
direito de voto.

O rótulo democracia liberal indica uma ruptura. O liberalismo sofreu uma


revolução interna para adaptar-se ao advento da democracia de massas. Nesse
passo, tornou-se menos “puro” na esfera econômica, pois teve que admitir
as intervenções estatais destinadas a combater a pobreza extrema e as mais
clamorosas desigualdades sociais.

Nem todos curvaram-se aos novos tempos. Uma corrente de economistas liberais,
aferrada ao dogma da absoluta liberdade de mercado, enxergou na democracia liberal
um malévolo disfarce do socialismo. Dessa crença nasceu uma atração por regimes
autoritários dispostos a conduzir programas de radical liberalização econômica.

No ponto de partida, o pensamento liberal enxergava as liberdades políticas e


econômicas como partes indissociáveis de uma mesma doutrina. Milton Friedman, pai-
fundador da Escola de Chicago, desafiou essa tradição ao operar como conselheiro do
ditador chileno Augusto Pinochet e do regime totalitário chinês. A liberdade, imaginava
Friedman, floresce na esfera econômica, alastrando-se mais tarde pela esfera política.

9. Folha de S. Paulo, 4/8/2022. https://bit.ly/3ZmKJeU

10 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . interesse nacional – abril – junho de 2023 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .


A dissociação teórica entre as duas esferas propiciou um álibi político à corrente
de liberais que enxergam a democracia como valor secundário ou mesmo como
obstáculo à promoção irrestrita da liberdade de mercado. A adesão de significativa
parcela do empresariado brasileiro à candidatura de Bolsonaro em 2018 encontra aí
uma base ideológica.

Guedes falou em “democracia responsável”, conectando-se a uma extensa


tradição autoritária de adjetivação da democracia.10 Nesse passo, reuniu-se
com personagens como Oliveira Salazar (“democracia orgânica”), Erdogan
(“democracia conservadora”) e Putin (“democracia soberana”). Os falsos liberais
brasileiros, sempre dispostos a conciliar com o populismo econômico, aliaram-se
aos reacionários saudosistas da ditadura militar. A aliança profana entre Bolsonaro
e Guedes ilumina a singularidade brasileira: nos EUA e na Europa, a direita
nacionalista e a extrema-direita abominam o liberalismo.

A atual direita republicana nos EUA, ainda liderada por Trump, deita raízes no
nativismo, na xenofobia e no isolacionismo. Contudo, no plano econômico, prega o
protecionismo comercial e aponta a globalização (às vezes, nas formas da China e
do México) como responsável pelas agruras que afligem o “americano esquecido”.

Os partidos da direita populista europeia que ascenderam recentemente deitam


raízes em correntes profundas das histórias nacionais. A Reunião Nacional
francesa deriva tanto da nostalgia do regime colaboracionista de Vichy quanto
do neocolonialismo poujadista. O Vox, na Espanha, nutre-se da memória do
franquismo. O Irmãos da Itália, de Giorgia Meloni, engaja-se na atualização do
mussolinismo. Todos eles, porém, encontram-se no pátio da “democracia iliberal”
pregada por Orbán.

Aliança entre liberais de araque e reacionários saudistas. A extrema-direita


bolsonarista é, em parte, uma imitação. Mas, no fundo, é uma colcha de retalhos
incongruentes e um fenômeno singular. ■

10. Valor, 26/11/2019. http://glo.bo/41ugLaH

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O que esperar do terceiro
mandato de Lula?

■B
 olívar Lamounier é doutor em Ciência Política pela
Universidade da Califórnia. Membro da Comissão Afonso
Arinos da Presidência da República para elaboração de projeto
constitucional. Assessor acadêmico do Clube de Madrid, entidade
internacional de apoio à democracia

A palavra do momento é incerteza. Impossível começar uma sentença sem recorrer


ao sempre incômodo “se”. O que vem depois dele depende da personalidade ou
do estado de humor de quem escreve. Uns descrevem o Jardim do Éden, outros
alertam para a iminente chegada do apocalipse.

Penso que a virtude está no meio. Muito vai depender do desempenho de Lula em
seus primeiros seis ou oito meses em duas áreas. Na economia, evidentemente. Na
desradicalização política que temos vivido desde os tempos de Dilma Rousseff,
agravada pela emergência do bolsonarismo na eleição presidencial de 2018.

É preciso dar a César o que é de César, quero dizer, dar a cada um a quota de
desatino que impôs ao país. Sobre Bolsonaro, não há muito a dizer, basta lembrar
que ele sequer reconheceu a vitória eleitoral de Lula. Foi por uma margem estreita?
Foi, e daí? Foi para isso que inventaram o segundo turno. Se o primeiro turno não
produz uma maioria política folgada, o segundo o fará pelo caminho da aritmética.
Cinquenta por cento mais um dos votos válidos é a maioria. Do ponto de vista
aritmético, vale o que está escrito, um voto é suficiente para definir quem venceu.
Do ponto de vista econômico e nas demais áreas substantivas, a legitimidade
depende das opções e do desempenho. As simple as that.

Durante a última campanha presidencial, o Brasil presenciou um fato insólito. Um


Lula comedido, sensato, diria mesmo lúcido. Se ele mantiver aquela postura nos
próximos meses, poderemos ter um cenário razoável. A estrada está coalhada de
pedras pontiagudas, mas com Lula nessa nova postura, a oposição bolsonarista
enfraquecida e nossa imagem internacional em processo de recuperação, há
margem para alguma esperança. Mas não nos iludamos. O Lula dos últimos
três ou quatro meses não dissipa inteiramente a imagem que ele e seu Partido
dos Trabalhadores esculpiram desde a fundação do partido, já lá se vão quatro
décadas. Eles contribuíram, e muito, para a divisão do Brasil em “nós” e “eles”.

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Desarmar os espíritos que ora permeiam nossa atmosfera num horizonte de seis a
oito meses requer o desarmamento dos dois lados.

■ Urgência para resultados na Economia

E quanto à economia, que projeção realista podemos fazer? O cadáver


precisará mostrar que não está de todo morto. Se não o fizer, é alta a chance de
permanecermos na “apagada e vil tristeza” em que temos nos arrastado. Sabemos
todos que a economia brasileira ainda está ruminando o estado de decrepitude
iniciado desde que a Dilma Rousseff foi alçada à presidência. Longe de mim
afirmar que estamos a dois passos de alguma ribanceira – o Brasil é grande demais
para isso –, mas atrevo-me a conjecturar que algum resultado palpável Lula
terá que mostrar nos próximos seis ou oito meses. A realidade é que o Estado se
contorce diariamente para evitar o vermelho no fim do ano.

Quais são, então, as alternativas? Ora, é lógico que é preciso crescer, e crescimento se
faz com investimento. Conhecemos bem a mania brasileira de que crescimento tem que
ser com investimento estatal: o chamado nacional-estatismo. Dá-se que não há recursos
públicos disponíveis para investimento. Segunda alternativa: aumentar o intercâmbio
com o exterior e trazer capitais para o setor privado, mas é uma mágica que Lula pareça
disposto a tirar do bolso do colete. “Privado”, para ele, continua sendo nome feio.
A terceira alternativa, então, é não crescer, ou seja, permanecer deitado eternamente
em berço esplêndido ou, se preferem, permanecer aprisionado na armadilha do baixo
crescimento e pastar uns 20 ou mais para dobrar nossa pífia renda anual per capita.

Acadêmico irremissível, não consigo martelar o teclado sem evocar alguns dos
fatores que nos jogaram nesse buraco. Apontem um país que tenha incluído a
classe trabalhadora no processo político sem que ela criasse e sofresse solavancos
consideráveis. A Inglaterra? Não por acaso, o ícone mundial desse processo
surgiu bem aqui perto, banhado pelo rio da Prata: foi o comandante-general Juan
Domingo Perón. Ele conseguiu integrar a classe operária, mas destruiu o país, e
ela é que se tornou a malta dirigente, impedindo-o de crescer e se democratizar.

Segundo, no plano da ideologia, somos um país incorrigível. Não tememos ser tragados
nas águas fétidas do proverbial “poço”, contanto que possamos dar murros no peito e
berrar que o “petróleo é nosso”. Acreditamos piamente que bom governo é “governo
forte”, entendendo por tal um sujeito com certa relação carnal com ditaduras, ou seja,
aquele que aceita qualquer coisa, menos uma América Latina institucionalmente
civilizada. Temos uma Constituição boa para ser lida em voz alta, mas sua qualidade
literária não a isenta de sandices sem conta (como o “trânsito em julgado” após
quatro instâncias). Nem em voz alta e nem à boca pequena, haja vista que nem certos
parlamentares enrubesceram com o invento do “orçamento secreto”. Neste ponto, o

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leitor talvez tivesse apetite para uma digressão sobre os partidos políticos, mas não
posso atendê-lo, pois quero estar certo de que me acompanhará até o fim.

■ Como edificar um Estado digno do nome?

Meu veio acadêmico leva-me a uma outra digressão, que o leitor com certeza
achará estapafúrdia. O fato é que não enxergamos o Brasil. Insistimos em tentar
compreendê-lo pelos olhos de uma geração brilhante – a primeira que nos
proporcionou um diagnóstico consistente – mas manifestamente desatualizada.
Refiro-me a gigantes como Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e
Raymundo Faoro. Outros houve, dei minori, como Alberto Torres e Oliveira
Vianna, que também exerceram (creio que exercem até hoje) uma enorme
influência em nossa oftalmologia coletiva.

Todos eles, grandes e pequenos, aferraram-se à tese (não de todo fora da curva,
para as condições da época) que eram mínimas as nossas chances de um dia
construir um Estado digno do nome e promover o crescimento da economia.
Mesmo o maior deles, com admirável cuidado, sem nunca descuidar dos
indispensáveis matizes, o próprio Sérgio Buarque nunca se desvestiu da crença de
que a raiz última de nossas mazelas eram os “grilhões” do passado – vale dizer,
a colonização portuguesa, escravista e monocultora. Partindo dessa premissa,
pelo menos uma dúzia de colegas letrados respaldou-o, afirmando que o perverso
elemento que nos brecava era a “família patriarcal”, ou seja, a família extensa,
autoritária, assentada nos latifúndios, dispersa pelos cafundós, tudo absorvendo
em seus domínios. Sobre tal base, como edificar um Estado digno do nome?
“Não é justo afiançar-se, sem apelo, nossa incompatibilidade absoluta com os
ideais democráticos [...]. (Mas) a ideia de uma espécie de entidade imaterial
e impessoal, pairando sobre os indivíduos e presidindo os seus destinos, é
dificilmente inteligível para os povos da América Latina” (Raízes do Brasil, 6ª
edição, pág. 138). Imbuído da sociologia romântica, notadamente da alemã, Sérgio
Buarque situou-se vigorosamente como o contraposto do calvinismo dissecado por
Max Weber, mas o fez postulando uma ordem normativa (cultural) praticamente
imutável, cuja dissolução teria que ser obra de séculos1.

1. Cobrar de Sérgio Buarque um entendimento mais exato do Estado como uma “ordem impessoal pairando
sobre os indivíduos” não é razoável, pois só a literatura recente nos propicia elementos seguros sobre a formação
do Estado desde suas raízes medievais. Tal processo remonta, na verdade, à crise generalizada do século XII,
posterior ao feudalismo sensu strictu, e se estende ao século XVII, quando o Estado renascentista e em seguida
o absolutista se apresentam plenamente configurados. Veja a respeito: SKINNER, Quentin. The Foundations
of Modern Political Thought, Vol. 1 (Cambridge, UK: Cambridge University Press1978); BISSON N, Thomas
-The Crisis of the Twelfth Century – Power, Lordship, and the Origins of European Government. Princeton, NJ:
Princeton University Press, 2009; STRAYER, Joseph R. – On the Medieval Origins of the Modern State (Prin-
ceton, NJ: Princeton University Press, 1970); REYNOLDS, Susan – Fiefs and Vassals – The Medieval Evidence
Reinterpreted. Oxford, UK: Oxford University Press, 1994;

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Para bem compreender o equívoco a que essa esplêndida erudição nos levou,
no período entre as duas Grandes Guerras e tanto influenciou o nosso modo
de ver o Brasil, é mister pescar uma parte do que ele tem de plausível, e - o
melhor de fazê-lo - recorrer a um dos escritores de menor estatura, no caso
Oliveira Vianna. O virtual impedimento à emergência de um Estado impessoal
teria sido, como vimos, a família patriarcal ou o poder de fato que ela exercia
em seus domínios. Daí as catilinárias de Oliveira Vianna contra a implantação
do Estado Constitucional e da posterior República, uma vez que essas
implicavam a implantação de processos eleitorais, agravando o caráter de clã
e a hostilidade à (sem dúvida débil) máquina estatal da época. Nas pequenas
comunidades interioranas, o senhoriato da terra conhecia pelo nome cada
eleitor, acentuando o poder que sobre ele exercia. Oliveira Vianna expôs essa
tese (à época banal) em 1922 e sustentou-a sem modificações até 1950, o ano
de sua morte.

Admitida a tese de que o pater famílias, o senhoriato detinha total controle


sobre os “seus” roceiros, e até os aliciava para suas pequenas guerras, o
corolário só poderia ser o de que o latifúndio funcionava como uma muralha,
impedindo a entrada dos funcionários incumbidos de aplicar as normas estatais
e eleitorais.

Aqui encontramos outra vez o culturalismo estático do qual nem Sérgio Buarque
conseguiu se livrar por completo. Contrariamente ao que sustentaria Marx, a
“superestrutura” subjugava a “infraestrutura”. Viesse a industrialização, viesse a
urbanização, “a ideia de uma entidade material e impessoal haveria de pairar para
sempre sobre os indivíduos, moldando seus destinos”. E, no entanto, a máquina se
moveu. Em 1930, somente 5% da população total comparecia às urnas nas eleições
presidenciais; em 1945, 16%; em 2022, 72%, como em qualquer democracia
avançada, equivalendo a 156 milhões de almas.

Não obstante essa gigantesca mudança estrutural, a tese dos “grilhões”


portugueses mantém-se viva e forte, como se os laços de deferência e servidão
rural fossem ainda grandes bolas de ferro atadas aos pés de criminosos, como
vemos em presídios. Ora, até quando precisará aquele antigo paradigma
suplicar seu digno sepultamento? Quando, finalmente, daremos por remida a
nossa dívida com a brilhante geração dos anos 30 e nos lançaremos à busca de
outras hipóteses, explorando as engrenagens infinitamente mais complexas de
oligarquias estaduais que hoje pouco têm a ver com a lavoura, diversificada como
está em todos os ramos de negócio, eviscerando os intestinos de um gasto público
incompatível com a redução das desigualdades sociais e mostrando a verdadeira
face de uma classe política, que, lá do serrado, não se peja de embolsar algum
através de orçamentos secretos?

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O leitor com certeza se lembra de Jano, o Deus romano do tempo e das
transições, aquele de duas faces, uma voltada para o passado e a outra para
o futuro. Por essa capacidade de descortinar as duas dimensões do tempo,
Jano pode relembrar tanto os nossos passados acertos e imprudências quanto
as alternativas e horizontes que nos aguardam. Tivessem nossos atuais
governantes dedicado alguns minutos à compreensão do passado, teriam
entendido que a teoria do nacional-estatismo, duvidosa já em sua época,
perdeu todo o sentido a partir do momento em que os recursos públicos
para investimento deixaram de existir. Fixando os olhos no futuro, o Jano
prospectivo nos alertaria para o fato de que nossos recursos em ciência e
tecnologia não nos permitem sequer compreender para onde o mundo caminha,
nesta era de novas revoluções tecnológicas.

■ A política vem em primeiro lugar

Por uma interessante coincidência, as três “industrializações tardias” (Alemanha,


Estados Unidos e Japão) ocorreram precisamente no mesmo momento histórico:
as três últimas décadas do século XIX. Nós, quando começaremos a nossa?
Penso que não é propriamente no campo da ciência e da tecnologia que a resposta
se encontra. Encontra-se, como sentenciou o Marechal De Gaulle, num domínio
à primeira vista mais corriqueiro: na política. D’abord la politique: a política
vem em primeiro lugar. Ouvindo o Marechal, quem sabe começamos a entender
por que parecemos condenados a patinar num eterno marasmo. Na democracia
representativa, o fator dinâmico, o balizador das ações públicas, o elo entre o
Estado e a Sociedade deveria ser o partido político. Dá-se que não temos partidos
políticos ou, se preferem, ter 20 ou 30 e não ter nenhum dá mais ou menos na
mesma coisa. Partido – se levarmos o conceito a sério – é uma organização que
tenha número suficiente para atuar no processo legislativo, uma personalidade
ideológica flexível, mas definida o suficiente para que diferentes parcelas da
sociedade possam se orientar nas eleições conforme seus desejos e valores e, de
suma importância no caso brasileiro, capaz de impedir o retalhamento do Estado
por corpúsculos corporativistas.

Basilar a opinião pública em um número razoável de alternativas, conferindo


substância ao pensar e ao sentir dos eleitores. Ora, isso é bem o oposto do que
presenciamos na última eleição presidencial. O que vivemos foi o paradoxo de
nos havermos dividido numa infinidade de estilhaços ao mesmo tempo em que
nos reunimos em uma notável unanimidade. Nos dividimos porque ninguém
propôs ou ouviu falar em alguma plataforma programática relevante, como tem
sido a norma desde tempos pretéritos. E, ao mesmo tempo, nos reunimos com
o mesmo denodo num todo indiferenciado, engajados numa guerra de todos
contra todos, bolsonaristas contra petistas e vice-versa, sabendo todos que tal

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processo só poderia levar a uma grande trapalhada. Bandeira, se fosse possível
falar em alguma, seria a bandeira do rancor. Elite e massa, do Oiapoque ao Chuí,
sabemos todos (e a maioria até confessa) que o apoio a Lula não passava de
rejeição a Bolsonaro, assim como o apoio a Bolsonaro era apenas um destilado
de antipetismo. É lógico que trapalhada dessa dimensão dependia de algum
fator antecedente, um ou mais fatores que lhe proporcionasse a indispensável
condutibilidade atmosférica, e esse, sim, lá estava: era a tradição do “nós contra
eles”, a herança da presidente Dilma Rousseff, a recessão, o desemprego e, como
consolo para não nos culparmos de tudo, a pandemia da Covid-19. ■

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A falta que faz uma tradição
liberal-democrática

■F
 ernando L. Schüler é filósofo, articulista e consultor de empresas
e organizações civis nas áreas de Cultura e Ciências Políticas. Foi
secretário de Estado da Justiça e do Desenvolvimento Social do Rio
Grande do Sul e é professor do Insper

O ano era 1984, sopravam os ventos da redemocratização, muita gente da


minha geração não compreendia bem o significado de tudo aquilo, e havia um
intenso debate sobre a natureza da transição. À esquerda, ensaiava-se a crítica
da “transição por cima”, cujo desfecho viria logo em seguida, com o colégio
eleitoral e a eleição de Tancredo. O resto do mundo político apostava na visão
pragmática, de que era aquela a via possível e menos traumática de consolidar a
abertura e preparar o processo Constituinte. No mundo em que eu vivia, na Porto
Alegre dos debates estudantis, duas lembranças me vêm à cabeça. Uma delas foi o
livro de Francisco Weffort, “Por que Democracia?”, que era, em última instância,
um desafio à esquerda, que ainda gostava muito de falar em revolução, para que
entendesse que “diante de nossa longa tradição autoritária, a democracia era, ela
mesma, revolucionária, no Brasil”. O argumento de Weffort foi premonitório. O
Brasil de fato construiu, à duras penas, naqueles anos 80, um certo consenso em
torno da questão democrática. Os militares retomaram suas funções institucionais,
nosso modelo eleitoral e de votação eletrônica passou a ser visto como modelo,
internacionalmente, e mesmo em meio a momentos de tensão (o impeachment de
Collor, os julgamentos do mensalão), o tema democrático permaneceu intocado.

Em algum momento, isto tudo mudou. Um primeiro sinal talvez tenha vindo
das grandes manifestações de rua de 2013, que pareciam seguir a tendência dos
flash mob democráticos, tão bem diagnosticados por Manuel Castells, como
um novo ator nas democracias, na era digital. Algo que por vezes chamei de o
“quinto poder”, feito da multidão que se reúne sem uma liderança claramente
identificada, de modo efêmero e sem uma agenda objetiva, mas com um enorme
poder de questionar o sistema de poder como um todo. No Chile, seis anos depois,
manifestações deste tipo tiveram um impacto muito mais profundo. Além da
violência e das dezenas de mortos, a provocação de um processo constituinte,
que mesmo derrotado, ao final, mudou a geografia do poder, no País. No Brasil,
seguiríamos em frente. As eleições de 2014 apresentaram, pela primeira vez,
um novo tipo de polarização, dividindo o mapa brasileiro em uma clivagem

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esquerda/direita, centro/sul x norte/nordeste, uma clivagem social e uma lógica de
radicalização nunca vista desde a abertura. E com um detalhe: o questionamento,
ainda que tímido, feito pelo PSDB, dos resultados eleitorais. Foi este, quem
sabe, nosso primeiro cartão amarelo ao “sistema”. A partir daí, o País assiste a
um rápido processo de radicalização. Organizam-se movimentos de rua, como o
“Vem pra Rua”, e menos de três meses da posse de Dilma, em 2015, realiza-se na
Avenida Paulista o maior comício feito no País, desde as diretas, pedindo, entre
outras coisas, a sua saída do poder. A rua havia sido um espaço da esquerda, mas
os ventos agora mudavam de direção.

■ Processo de impeachment “envenenou” a política brasileira

O processo de impeachment seria o ponto de mutação. Produto da


irresponsabilidade fiscal, no contexto da enorme crise econômica que levaria a
uma queda do PIB de mais de 7%, em 2015/16, o processo deixaria suas marcas,
na vida brasileira. Diferentemente de Collor, o PT é o mais bem estruturado
partido brasileiro, com sólidas ramificações na academia, mídia e sociedade civil.
Era mais do que previsível uma reação, que veio na forma da “narrativa do golpe”.
Com ela, o PT seguiu a trilha perigosa, dos anos recentes da vida brasileira, de
colocar em xeque as instituições. Neste caso, o Congresso, a Suprema Corte.
Acertou a revista The Economist, que à época prognosticou que o processo de
impeachment iria “envenenar” a política brasileira por muito tempo.

Em 2018, Bolsonaro vence, e a partir daí começa um estranho jogo. De um lado,


a recusa permanente da legitimidade de quem venceu. O “coiso”, o “fascista”,
o “inominável”, o “gado”; de outro, a tensão, o duplo sentido levado ao estado
da arte. O “nosso exército”, as eleições na condicional, a frase infeliz, no 7 de
setembro. E finalmente os temas tóxicos, a “fraude nas urnas eletrônicas”, o
“Artigo 142”. Tudo isso como avant premier daquele domingo vexaminoso,
no último dia 08 de janeiro, que por muito tempo irá manchar não apenas certa
“direita”, mas nossa democracia, no seu dia talvez mais constrangedor.

O fato é que ao longo de mais de duas décadas, que vão do final dos anos 80 até
quem sabe os movimentos de rua de 2013, o tema da democracia virtualmente
desapareceu do nosso cotidiano político. Disse isso em um debate, tempos atrás, e
uma pergunta surgiu na plateia: em que momento a “questão democrática” havia
retornado ao centro do debate brasileiro? Algo na linha: quando nos perdemos?
Em que momento, temas que já considerávamos superados, a conversa sobre “gol-
pe”, o “cala-boca” a deputados e jornalistas, e o medo de falar, haviam voltado à
tona? Respondi que era difícil precisar. É possível que tudo venha da polarização
tóxica da última década e meia. O “nós contra eles”, o “nunca-antes-neste-País”.
E logo a reação conservadora. A ideia da “salvação nacional”, da “nossa bandeira

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jamais será vermelha”. O pano de fundo está na migração do nervo da política
para o universo tribal da internet e das redes sociais. Universo de baixa empatia,
pouco afeito ao diálogo e à reflexão. Terreno fértil para novas formas de populis-
mo eletrônico e radicalização vazia, fenômenos dos quais o Brasil está longe de
ser um caso isolado.

A resposta a isso tudo poderia ter sido, desde o início, uma reação altiva das
instituições, mas o que vimos foi o contrário. Ao invés de fincar pé nos preceitos
da Constituição, criamos uma difusa lógica de exceção. Criamos o crime
inexistente de fake news, atribuímos ao Estado a prerrogativa, inexistente em
nosso ordenamento institucional, de legislar sobre a “verdade”, retomamos a
censura prévia em larga escala, cancelamos passaportes e bloqueamos contas
de jornalistas, fizemos terra arrasada da inviolabilidade parlamentar, do direito
ao contraditório, do simples acesso da defesa aos autos de processos. Criamos
inclusive um procedimento novo: a prerrogativa do Estado para “apagar” do
mundo digital quem se interpretar como “risco à democracia”. Tudo sob o signo
do autoengano, do argumento ad hoc da “democracia militante”, que inclui
achar que um tuíte do PCO, uma indagação, do professor Marcos Cintra, sobre
as urnas eletrônicas ou um diálogo sem pé nem cabeça, em um grupo privado de
WhatsApp, representam graves riscos à democracia.

■ Vivemos ainda sob o signo das “ideias fora do lugar”

De todos, talvez a destruição da inviolabilidade parlamentar seja o mais sombrio.


A Constituição, em seu Art. 53º, diz que os parlamentares são invioláveis por
quaisquer “opiniões, palavras e votos”. Não obstante, ao menos sete parlamentares
foram devidamente “apagados”, do mundo digital. Ainda agora, foi aceito um
processo contra o deputado Eduardo Bolsonaro, entre outras coisas, pelo delito
de proferir “inverdades” em um bate-boca digital com uma colega parlamentar. A
tudo isto, o País sonâmbulo faz de conta que não enxerga. Uma parte vibra, outra
dá de ombros, ou sente medo, e uma outra fala e escreve sobre o que vê, mas suas
palavras se perdem no redemoinho dos afetos políticos. Parecemos viver ainda
sob o signo das “ideias fora do lugar”. Fixamos princípios liberais, generosos,
num claro contraste com a realidade atrasada, a permissividade da interpretação
subjetiva da lei, ao gosto de quem detém o poder. Tudo ao gosto da multidão em
transe, em um País onde o vezo autoritário não vem só do Estado, mas finca raízes
na sociedade. No jornalismo, na academia, na algazarra digital, em tudo que é
tocado pela polarização obsessiva.

É este, então, meu primeiro diagnóstico: soubemos construir uma democracia, ao


longo de todos estes anos, mas não uma democracia liberal. E muito menos uma
cultura liberal, enraizada na sociedade civil. Algo que me fez lembrar do traço

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que Sérgio Buarque, em Raízes do Brasil, identifica em nossa formação cultural,
e que nos leva continuamente a pessoalizar nossa relação com o espaço público.
E, a partir daí, nossa dificuldade com a “abstração da regra”, base do liberalismo
democrático. “Todo afeto entre homens funda-se em preferências”, escreve
Buarque. “Amar alguém é amá-lo mais que os outros. Uma unilateralidade que
entra em franca oposição com o ponto de vista jurídico e neutro em que se baseia
o liberalismo”.

O personalismo também diz respeito a nossos juízos e opiniões. A depender de


nossos vínculos afetivos, com este ou aquele lado político, ajustamos sem muita
cerimônia nossos julgamentos sobre o que é verídico ou inverídico, legal ou
ilegal, democrático ou nem tanto. Liberdade de expressão? Ok, mas para quem
mesmo? Censura prévia? Não pode, mas e em circunstâncias excepcionais?
Meio século depois de Sérgio Buarque, foi a vez do professor Edson Nunes
diagnosticar o problema em seu já clássico “A Gramática Política no Brasil”, fruto
de sua tese de doutoramento em Berkeley, nos anos 80. “A igualdade perante a
lei é o fundamento natural do universalismo de procedimentos e da democracia
capitalista contemporânea”, diz Nunes, e conclui: “certamente não se pode dizer
que o Brasil tenha conseguido institucionalizar um espaço público verdadeiro,
no qual todos sejamos iguais perante as leis”. O desafio brasileiro, no plano das
instituições, pode ser pensado não apenas como a consolidação do universalismo
de procedimentos, ou da “abstração da regra”, mas sua afirmação no universo
das normas sociais. Isto é, da cultura política no espaço da sociedade civil, da
academia, da mídia, da cultura e mesmo da justiça. Os anos recentes de nosso
embate político nos mostraram que ainda estamos longe disso.

■ Estado grande, burocrático e avesso à ideia de mérito

Edson Nunes situa a gramática do “universalismo de procedimentos” como


um traço do “capitalismo racional”, típico das economias avançadas. E
também aí estabelecemos uma relação ambígua, que vem desde o processo
de redemocratização. O processo constituinte modelou um Estado grande,
burocrático e avesso à ideia de mérito, no setor público; os anos 90 assistiram a
um processo de reformas, em especial do Plano Real, passando pelos processos
de privatização e da reforma do Estado, até a Lei de Responsabilidade Fiscal; na
transição para o governo Lula, se imaginou que o País havia produzido algum
consenso no tema das reformas e da responsabilidade fiscal, mas rapidamente
retomamos um padrão desenvolvimentista, cujo ápice ocorre no Governo Dilma e
leva à grande crise de 2015/16.

Após o impeachment, o País novamente ingressa em um ciclo de reformas de


caráter modernizador. Teto de gastos, Lei das Estatais, reformas previdenciária

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e trabalhista, modernização dos marcos regulatórios, nas áreas de saneamento,
ferrovias, cabotagem, Banco Central e agências reguladoras. Com as eleições de
2022, há claras indicações de que retomamos um padrão expansionista, pautado
pela crença no “Estado indutor” e avesso a reformas liberalizantes. Foi esta a
“pauta oculta” do último embate eleitoral: se o País iria andar para um lado ou
para outro de nossa tradição recente. Prosseguir com as reformas liberalizantes
ou retornar ao padrão do Estado indutor. Tratou-se de uma pauta oculta, em boa
medida, porque criou-se a imagem, por estranho que possa hoje parecer, de que
nada realmente importante, no terreno econômico e estrutural, estava em jogo, nas
eleições. De um modo mais amplo, tratou-se de uma escolha da sociedade, como é
próprio nas democracias.

Uma democracia ultrapolarizada. Já nos anos 50, Anthony Downs acentuava os


traços definidores de uma democracia deste tipo: “a mudança de partidos causa
uma alteração radical na política [...] metade do eleitorado sente que a outra
metade está impondo políticas fortemente repugnantes”, diz ele, parecendo falar
diretamente ao contexto brasileiro. Isso “considerando que se os dois partidos
se alternam no poder, emerge o caos, porque a política continua mudando de
um extremo ao outro. A democracia não leva a um governo eficaz e estável
quando o eleitorado está polarizado” (Downs, p. 143, 1957). Em que distantes do
elemento caótico, é certo que nossa atual polarização política tem levado a um
quadro de permanente instabilidade. E diria mais: de experimentalismo e crônica
insegurança jurídica e institucional.

A regra do teto de gastos, votada como uma emenda à Constituição, em 2016,


foi programada como uma norma de longo prazo, com validade para 20 anos e
uma revisão no meio do caminho. Pouco mais de seis anos, o País decide mudar.
O mesmo vale para a Lei das Estatais. Na esteira da crise, em 2016, nossas
estatais tiveram um resultado negativo de mais R$ 30 bilhões. Havia um rastro de
corrupção, e o País resolveu fazer uma lei dura, impondo 36 meses de quarentena
para quem comandou campanhas ou partidos políticos. Apontada como modelo
pela OCDE, a lei ajudou o País a melhorar não apenas no aspecto ético, como
também na performance das empresas, que atingiram seu melhor resultado no
ano passado. Diante disso, ainda na transição para o novo governo, aprova-se a
redução da quarentena de 36 para apenas um mês. Sinaliza-se a volta a um padrão
que há pouco mais de seis anos julgávamos superado.

A lógica se repete na atual tensão entre a presidência da república e o Banco


Central. A autonomia do BC foi aprovada com folga no Congresso e depois
chancelada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O ministro Barroso fez um voto
exemplar, à época, dizendo que instituições como o Banco Central não deveriam
ser “submetidas a vontades políticas, mas a compromissos com a Constituição e

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o Estado brasileiro”. A aprovação foi saudada como um avanço institucional, na
linha do que fazem as grandes economias globais. Pois bem, eleito, Lula diz que a
autonomia do BC é uma “bobagem” e que “não haveria nenhuma explicação para
a atual taxa básica de juros”. Resultado de alguma avaliação técnica? Não. Mas
um indicador bastante claro: aceitamos um Banco Central independente, desde
que os juros fiquem no patamar desejado pelo Governo.

O tema é o mesmo com as privatizações. Em 2021, a Câmara dos Deputados


aprovou a privatização dos Correios. O processo ficou parado no Senado, e o atual
governo terminou por engavetar. A privatização do Porto de Santos foi aprovada
pela ANTAC, recebeu parecer positivo da área técnica do TCU, e o leilão está
virtualmente pronto para acontecer. Provavelmente não irá. São anos de estudos,
tramitação, a um custo difícil de estimar. E mais: de expectativas de investimentos
geradas na região da baixada santista. No ziguezague brasileiro, nada disso
importa muito. Ainda agora lemos que o governo mandou a AGU tentar a reversão
da privatização da Eletrobrás. É provável que não dê em nada, mas não será
pequeno o rastro de insegurança institucional deixado pelo caminho.

■ O País onde “até o passado é incerto”

O aspecto crucial aqui é o experimentalismo. O País onde “até o passado é


incerto”, na conhecida frase de Pedro Malan. O prêmio Nobel Douglass North
escreveu longamente sobre a importância das instituições para “reduzir as
incertezas próprias da interação humana fornecendo os incentivos para que haja
cooperação e desenvolvimento”. Isso é perfeitamente lógico. Por que alguém
investiria uma enorme quantidade de tempo e dinheiro desconfiando seriamente
que as regras do jogo vão mudar daqui a dois ou três anos? Há uma extensa
literatura sobre este tema. O próprio North vai longe, na história moderna,
mostrando como boa parte do sucesso econômico inglês, à época da revolução
industrial, deve-se ao redesenho institucional e à redução da instabilidade
produzida pela Revolução Gloriosa, que fixou alguns parâmetros na política
inglesa: limites claros às prerrogativas reais, sob a common law; soberania do
Parlamento, na tributação; judiciário independente e segurança quanto aos direitos
de propriedade.

A série de reformas que o País fez, nos últimos anos, foram precisamente
na direção de uma maior estabilidade institucional. Foi este o sentido da Lei
Geral das agências reguladoras, aprovada em 2019; do Marco do Saneamento
Básico, que abriu o setor para a competição e vem atraindo uma montanha de
investimentos. Ou ainda da reforma trabalhista. Estudo feito por pesquisadores
da Universidade de São Paulo (USP) e do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper)
mostrou como a regra inibindo a litigância de má fé resultou em um aumento de

. . . . . . . . . . . . . . . . a falta que faz uma tradição liberal-democrática . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23


1,7 milhão de vagas do País, entre 2017 e 2021. Daria para ir longe nisso. São
reformas que não deveriam ser vistas como deste ou daquele governo, mas como
nosso patrimônio comum.

O problema é que estamos perdendo tempo. Um País pode sempre mudar de


direção, mas ser jovem apenas por um tempo muito limitado. E o nosso está
passando. Como alerta o economista Paulo Tafner, há quatro décadas, tínhamos
45,3 milhões de pessoas com 14 anos ou menos e 7,2 milhões de idosos, com 60
anos ou mais. Em 2060, teremos 73,6 milhões de idosos e apenas 28,3 milhões
de jovens até 14 anos. Estamos diante de um maremoto. O detalhe é que há
basicamente um caminho para a prosperidade: aumentar a produtividade, a
abertura de mercado, a boa regulação, a segurança jurídica, uma educação de
qualidade. Era sobre isto que Mário Covas falava, em nossa primeira eleição
presidencial, quando dizia que precisávamos de um “choque de capitalismo”.
Coisa que, 30 e tantos anos depois, parecemos ainda não compreender. ■

24 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . interesse nacional – abril – junho de 2023 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .


Populismo em Marcha?

■A
 nthony W. Pereira é diretor do Centro Kimberly Green para a
América Latina e Caribe da Universidade Internacional da Flórida. É
editor do livro Right-Wing Populism Within and Beyond Latin America
e foi diretor-fundador do Instituto Brasil no King's College London de
2010 a 2020

A era atual tem sido chamada de era do populismo. Muitos desses movimentos,
partidos, líderes e governos populistas – embora não todos – corroem a
democracia. Debates sobre as causas e consequências do populismo, bem como
sobre quais são as alternativas mais razoáveis a ele, são abundantes na literatura
popular e acadêmica, e também são altamente carregados. Este artigo examina o
tema, com foco especial em uma forma relativamente nova de populismo
transnacionalista de direita, que teve um grande impacto no Brasil.

■ Populismos Antigos e Novos

É importante ver o populismo numa perspectiva histórica e global. Uma abordagem


do populismo é defini-lo como uma forma de política de massas caracterizada por
desempenhos políticos transgressivos que se opõem às “elites” em nome de um
“povo autêntico” e dependem, pelo menos em parte, da comunicação não mediada
entre um líder e seguidores. Por muito comuns que sejam estas características,
muitas outras formas de política de massas, tais como movimentos e partidos
baseados na classe e tecnocráticos, bem como uma variedade de partidos liberais,
não são populistas. Dada a amplitude desta definição, o conteúdo ideológico e o
impacto político do populismo podem variar muito.

O populismo de meados do século 20, o chamado populismo “clássico”, foi em


grande parte uma invenção latino-americana, embora movimentos semelhantes
pudessem ser encontrados no Oriente Médio, África Subsaariana e Ásia. Ao
contrário de seus antecessores nos Estados Unidos e na Rússia, era urbano e uma
resposta, pelo menos em parte, às demandas das crescentes classes média e
trabalhadora. Os governos do presidente Juan Domingo Perón (1946-55; 1973-74),
na Argentina, do presidente Getúlio Vargas (1951-54), no Brasil, e do presidente
José María Velasco Ibarra (1944-47; 1952-56), no Equador, foram tentativas de
apresentar um modelo alternativo à revolução bolchevique de 1917 e ao

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . populismo em marcha? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25
comunismo soviético, bem como ao liberalismo, socialismo e fascismo. Esses
governos foram inclusivos na medida em que concederam direitos aos
trabalhadores recém-urbanizados e aos profissionais de classe média. Eles
incorporaram sindicatos e basearam-se em uma franquia expandida após períodos
em que os sindicatos foram marginalizados e reprimidos e o voto foi estritamente
limitado e controlado.

Estes governos combinaram elementos de ideologia tanto de esquerda como de


direita. Condenaram “elites”, como inimigos do povo, e promoveram a
reverência por um líder forte que supostamente encarnou e falou em nome da
nação. No Brasil, por exemplo, Vargas foi retratado nas eleições de 1950 como o
“pai dos pobres”, porque o seu governo anterior tinha promulgado a consolidação
das leis do trabalho, em 1943, garantindo direitos aos trabalhadores. Finchelstein
descreve estes governos de meados do século XX como “antiliberais (contra os
modelos existentes de democracia constitucional)”, mas não “ditatoriais e
racistas”. E acrescenta: “Por mais autoritários que os primeiros populistas fossem
– no sentido de que se não estivesse com eles era considerado um inimigo do
povo (do antipopular, não do povo) –, a sua definição de povo estava enraizada
na noção que demos. Se quisesse apoiar o regime, podia rapidamente passar do
antipovo para o povo... [O antipovo] sob o populismo são inimigos do povo que
carecem de legitimidade, mas ainda lhes é permitido existir e perder eleições.
Não são totalmente perseguidos ou proibidos, mesmo que sejam meramente
tolerados”.

Uma segunda onda de populismo começou na América Latina nos anos 90,
representada por presidentes como Carlos Menem (1989-1999), na Argentina,
Alberto Fujimori (1990-2000), no Peru, Fernando Collor de Mello (1990-1992),
no Brasil, e Abdala Bucaram (1996-97), no Equador. Ao contrário dos seus
homólogos populistas clássicos, estes líderes não eram inclusivos, mas, sim,
implementaram políticas neoliberais que expandiram o alcance dos mercados e
enfraqueceram os sindicatos. Embora alguns analistas não os reconheçam como
populistas, devido às suas diferenças com os seus antecessores clássicos, o seu uso
de comunicação não mediada com os seus apoiadores e a sua (pelo menos
retórica) oposição às “elites” e à autorrepresentação como outsiders qualificam-
nos como populistas dentro da definição aqui oferecida.

Uma terceira onda de populismo tem vindo a ocorrer globalmente nas últimas
décadas e foi acelerada pelo colapso financeiro de 2008-2009 e pela crescente ou
persistente desigualdade de rendimentos em muitos países. Esta onda consiste em
populismos que têm elementos ideológicos tanto de esquerda como de direita, ou
mesmo uma misturas dos dois. (O seu conteúdo ideológico preciso pode ser
menos importante do que o fato de serem populistas).

26 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . interesse nacional – abril – junho de 2023 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .


Embora seja difícil generalizar sobre estes movimentos políticos, uma vez que têm
características nacionais distintas, a maioria deles partilha pelo menos cinco
semelhanças importantes. Primeiro, eles têm uma abordagem gnóstica do
conhecimento. Rejeitam as interpretações convencionais da política, seja da mídia
tradicional ou de especialistas acadêmicos, e insistem nas suas próprias fontes de
informação e interpretações dos acontecimentos. Estas fontes e interpretações são
partilhadas nos meios de comunicação social em “bolhas” de informação distintas.
A segunda característica é que apenas a parte autêntica da população conta como
“o povo”. As elites são antipopulares e antinacionais e devem ser rejeitadas, pelo
menos retoricamente. Terceiro, “o povo” não é uma agregação pluralista e
heterogênea para ser representada de uma forma complexa: é uma unidade.
Quarto, sendo uma unidade, “o povo” é encarnado por um líder forte e carismático
que é ao mesmo tempo excepcionalmente dotado e vítima do estabelecimento e é
geralmente um homem (com exceções como Giorgia Meloni, primeira-ministra de
Itália e Marine Le Pen, antiga presidente do partido National Rally em França).
Finalmente, a política é vista como uma guerra existencial entre amigos contra
inimigos, em vez de uma competição pública em que os rivais tentam persuadir-se
mutuamente da justeza das suas posições.

■ Populismo de esquerda

Populismos de esquerda e de direita concordam que há algo de fundamentalmente


errado com a ordem global e ambos têm uma antipatia para com as elites
metropolitanas transnacionais altamente instruídas. Mas não estão de acordo
quanto às soluções. Para os populistas de esquerda, o capitalismo deve ser
refreado pelo Estado em defesa dos pobres; a globalização capitalista aumentou a
desigualdade de rendimentos para níveis inaceitáveis e esvaziou os meios de
subsistência e a segurança dos trabalhadores comuns. O populismo de esquerda
está em grande parte a “dar murros para cima”, atacando tanto as elites
socioeconômicas como as políticas.

Embora alguns elementos identitários da ideologia de esquerda (tais como a


chamada agenda “acordada” ou woke em inglês) sejam novos, a maioria das suas
soluções – tais como o aumento dos impostos sobre a riqueza e o rendimento, a fim
de melhorar a rede de segurança social e o fornecimento de bens públicos – são
familiares. O perigo para a democracia do populismo de esquerda é quando os seus
líderes ultrapassam os limites da socialdemocracia e criam um regime autoritário
(como os da Venezuela e Nicarágua), ou parecem ameaçar tal desenvolvimento
(como o do presidente Andrés Manuel López Obrador, no México).

O populismo contemporâneo de direita é mais recente do que o seu homólogo de


esquerda. É, pelo menos em parte, uma reação à globalização pós-Guerra Fria que

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . populismo em marcha? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27
atingiu o seu auge nos anos 90 e 2000. É, principalmente, um “murro descendente”,
atacando os forasteiros culturais ou étnicos, bem como as elites do establishment.
Ao contrário do conservadorismo tradicional, defende um ataque radical às
principais instituições, que se diz estarem imbuídas de um ethos coletivista de
“marxismo cultural”. Recorrendo a pensadores tradicionalistas como Olavo de
Carvalho e Steve Bannon, algumas vertentes do populismo de direita condenam a
ciência e todo o projeto do Iluminismo, remontando a uma era pré-moderna de uma
sociedade rigidamente hierárquica, rejeitando a ideia de progresso e colocando os
valores espirituais e culturais acima dos valores materiais.

Elementos desta ideologia podem ser encontrados na “democracia iliberal”, de


Viktor Orbán, na Hungria (2010-2023); na administração da Lei e da Justiça de
Mateusz Morawiecki, na Polônia (2017-2023); no período de poder de Recep
Tayyir Erdogan (2003-atual), na Turquia; no governo nacionalista hindu de
Narendra Modi, na Índia (2014-2023); e na administração de Donald J. Trump
(2017-2021), nos Estados Unidos. Mais perto de casa, estão ou estiveram
presentes na administração de Jair Bolsonaro no Brasil (2019-2022), bem como os
governos de Nayib Bukele (2019-2023), em El Salvador, e Rodrigo Chaves (2022-
2023), na Costa Rica, bem como nas candidaturas presidenciais de Jose Antonio
Kast, no Chile em 2021, e Rodolfo Hernandez, na Colômbia em 2022.

■ Para onde vai o populismo de direita?

Um consenso sobre as causas do populismo ainda não foi forjado, e muitas


explicações diferentes coexistem. Uma perspectiva enfatiza as consequências
perturbadoras da globalização, incluindo o aumento das desigualdades na riqueza
e no rendimento e a perda de segurança econômica por parte de grandes camadas
da população. Outra abordagem enfatiza a mudança cultural e as identidades
inseguras, levando ao apelo de identidades nacionalistas, religiosas, étnicas e
outras formas tradicionais de “nós” contra “eles”. Explicações mais específicas
para encaixar as provas de experiências nacionais particulares empregam
variações sobre os temas acima ou argumentos completamente diferentes,
refletindo a complexidade do fenômeno.

Ao contrário do populismo clássico, o populismo contemporâneo de direita é


frequentemente autoritário e excludente, às vezes racista, xenófobo, misógino e
homofóbico. Por vezes, vê os rivais como inimigos que devem ser expulsos do
país ou, pelo menos, intimidados para o silêncio. Também rejeita políticas
públicas baseadas em provas, bem como muitas das convenções da democracia
liberal, incluindo a separação de poderes. Isto pode ser visto na resposta
desastrosa à epidemia de Covid-19 pela administração de Jair Bolsonaro no Brasil,
no desmantelamento pela mesma administração da política anterior em áreas

28 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . interesse nacional – abril – junho de 2023 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .


como o meio ambiente, educação, política externa e segurança pública, bem como
na recusa de Bolsonaro em aceitar o resultado das eleições de 2022.

Um exemplo do poder transnacional do populismo de direita pode ser visto em


movimentos simultâneos contra a chamada “ideologia do gênero” no Brasil e nos
Estados Unidos. No Brasil, legisladores de vários níveis de governo introduziram
mais de 200 leis, desde 2014, que proíbem a “ideologia do gênero” ou
“doutrinação” nas escolas públicas. Pelo menos 21 leis (uma no nível estatal, 20
no nível municipal) que proíbem a educação sexual e de gênero no Brasil estão em
vigor. Legislação semelhante foi aprovada nos Estados Unidos a liderar o
caminho. Na Flórida, o projeto de lei 999, atualmente em análise na assembleia
legislativa, propõe a eliminação, entre outras coisas, de cursos sobre gênero nas
universidades estaduais e o ensino da “teoria crítica da raça” (não definida no
projeto). Estas iniciativas refletem o poder do autoritarismo de direita para invocar
a “liberdade” como justificativa para proibir a livre investigação na educação e
para descaracterizar a igualdade de gênero e de raça como uma ideologia que
subverte a ordem moral da sociedade.

■ Conclusão

Num clima global de crescente polarização geopolítica e insegurança econômica,


o populismo de direita – com a sua ênfase nas identidades raciais, étnicas,
religiosas, nacionais e de gênero tradicionais – continuará a ter apelo em muitos
países. Por se basear numa leitura errada da política mundial (a “civilização
ocidental” não está ameaçada pelo “marxismo cultural”), continuará a fomentar
conflitos divisionistas que não abordam os problemas reais com que se confrontam
as sociedades contemporâneas.

As alternativas a tais abordagens radicais e destrutivas da política são várias mas


não facilmente alcançáveis. O economista francês Thomas Piketty escreve sobre a
necessidade de transformar o sistema econômico de modo a torná-lo “menos
desigual, mais equitativo e mais sustentável”. Os teóricos políticos norte-
americanos Andrew Arato e Jean Cohen defendem “uma nova versão do estado de
bem-estar que pode ser criada em nível nacional e internacional”. O cientista
político norte-americano Francis Fukuyama quer a promoção de “identidades
nacionais credíveis construídas em torno das ideias fundamentais da democracia
liberal moderna” com o uso de “políticas públicas para assimilar deliberadamente
os recém-chegados a essas identidades”.

A administração Lula no Brasil está lutando para cumprir tanto os elementos


econômicos como identitários destas prescrições. No seu discurso após ser
declarado presidente eleito em 30 de outubro de 2022, Lula defendeu mais

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . populismo em marcha? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29
inclusão social e oportunidades para todos, menos desigualdade e a erradicação
da fome e da pobreza extrema. As políticas sociais, fiscais e habitacionais da
sua administração irão tentar reduzir tanto a pobreza como a desigualdade,
embora num ambiente muito menos favorável do que o que prevaleceu nos dois
primeiros mandatos da presidência dele entre 2003 a 2010. Em termos de
identidade, Lula defendeu o respeito pelas diferenças, a melhoria das divisões e
a “normalidade democrática”.

Jair Bolsonaro não quer que o governo de Lula tenha sucesso em nenhum destes
esforços. Como indicou no seu discurso na Conferência de Ação Política
Conservadora (CAPAC) em National Harbor, Maryland, nos EUA. Em 4 de março
de 2023, a sua missão “ainda não terminou” e parece sentir que, se Donald Trump
(ou alguém como ele) conseguir retomar a Casa Branca em 2024, as suas hipóteses
de reconquistar a presidência no Brasil também serão boas. O conflito sobre o
destino do populismo de direita no Brasil – e no mundo – não vai acabar logo. ■

1. D
 avid Collier and Ruth Berins Collier, Shaping the Political Arena (Princeton: Princeton University Press), p.
22.

2. F
 rederico Finchelstein, From Fascism to Populism in History (Oakland: University of California Press), p. xv.

3. F
 rederico Finchelstein, From Fascism to Populism in History (Oakland: University of California Press), pp.
xvi-xvii.

4. O
 s gnósticos eram grupos heréticos nos primeiros anos de cristianismo que rejeitavam os ensinamentos
ortodoxos e a sabedoria convencional e acreditavam na busca do conhecimento espiritual pessoal (gnose). Da
Encyclopedia Britannica, “Gnosticism summary” at: https://www.britannica.com/summary/
gnosticism#:~:text=In%20general%2C%20Gnostics%20taught%20cosmological,the%20divine%20spark%20
in%20humans acessado no dia 5 de março de 2023.

5. As últimas quatro características da lógica populista são listados por Andrew Arato e Jean Cohen, “Civil
society, populism and religion” in Carlos de la Torre, ed. Routledge Handbook of Global Populism (London:
Routledge, 2019), pp. 98-112; a referência pode ser encontrado na página 103.

6. F
 rancisco Panizza e Yannis Stavrakakis, “The Political Construction of `The People’ in Pierre Ostiguy,
Francisco Panizza, and Benjamin Mofffitt, eds. Populism in Global Perspective (New York: Routledge, 2021),
pp. 21-46; a referência pode ser encontrada na página 28.

7. F
 rancisco Panizza e Yannis Stavrakakis, “The Political Construction of `The People’” in Pierre Ostiguy,
Francisco Panizza, and Benjamin Mofffitt, eds. Populism in Global Perspective (New York: Routledge, 2021),
pp. 21-46; a referência pode ser encontrado na página 28.

8. B
 enjamin R. Teitelbaum, War for Eternity: The Return of Traditionalism and the Rise of the Populist Right
(London: Allen Lane, 2020) pp. 8-14.
9. P
 ara um exemplo da explicação econômica, veja Barry Eichengreen, The Populist Temptation (Oxford: Oxford
University Press, 2018). Para um exemplo da explicação cultural, veja Pippa Norris e Ronald Inglehart,
Cultural Backlash (Cambridge: Cambridge University Press, 2019).
10. H uman Rights Watch, “Brazil: Attacks on Gender and Sexuality Education”, 12 May 2022: https://www.hrw.

30 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . interesse nacional – abril – junho de 2023 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .


org/sites/default/files/media_2022/05/brazil_lgbt0522_web.pdf acessado no dia 5 de março de 2023.

11. Josh Moody, “De Santis Higher Ed Bill Heads for the Legislature” no History News Network, 27 February
2023, at: https://historynewsnetwork.org/article/185110 acessado no dia 5 de março de 2023.

12. Thomas Piketty, Capital and Ideology (Cambridge: Harvard University Press, 2020), p. 2.

13. Andrew Arato e Jean Cohen, “Civil society, populism and religion” in Carlos de la Torre, ed. Routledge
Handbook of Global Populism (London: Routledge, 2019), pp. 98-112; a referência pode ser encontrada na
página 110.

14. Frances Fukuyama, Identity (London: Profile Books, 2019), p. 166.

15. “ Leia e veja a íntegra dos discursos de Lula após vitória nas eleições” na G1: https://g1.globo.com/politica/
eleicoes/2022/noticia/2022/10/31/leia-e-veja-a-integra-dos-discursos-de-lula-apos-vitoria-nas-eleicoes.ghtml
acessado no dia 6 de Março de 2023.

16. M
 ariana Sanches, “Missão na Presidência ainda não acabou, diz Bolsonaro em evento conservador nos EUA”
no BBC Brasil, 5 de março de 2023: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cprv0l45gn7o acessado no dia
6 de março de 2023.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . populismo em marcha? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31
Um novo papel para as forças armadas

■E
 dmar Bacha é diretor do Instituto de Estudos de Política Econômica/
Casa das Garças e membro das Academias Brasileiras de Ciências e de
Letras. Participou do Plano Real, foi presidente do BNDES e do IBGE,
professor em universidades no Brasil e nos EUA. É economista e Ph.D
em Economia pela Universidade de Yale

■S
 imon Schwartzman é pesquisador visitante do Departamento
de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da
Universidade de Campinas e pesquisador associado ao Instituto de
Estudo de Política Econômica/Casa das Garças. É doutor em Ciências
Políticas pela Universidade da Califórnia, Berkeley

A militarização do governo federal estimulada por Jair Bolsonaro, a tentativa de


envolver as forças armadas em um golpe militar e a passividade, senão conivência,
de muitos de seus setores com estes movimentos, trouxeram novamente, para a
ordem do dia, a necessidade de discutir em mais profundidade o papel das forças
armadas na sociedade brasileira. Não se trata somente da questão mais imediata da
ameaça que houve à democracia, mas dos temas mais amplos, de médio e longo
prazos, do relacionamento entre o setor militar e a sociedade civil e do papel das
forças armadas brasileiras no mundo atual para um país como o Brasil. Este texto
resume alguns temas e propostas que têm sido discutidos recentemente.

A criação do Ministério da Defesa em 1999 foi um passo importante para


estabelecer o predomínio do poder civil sobre as forças armadas, mas não basta,
para isto, que o Ministro da Defesa seja um civil. A doutrina militar vigente
está consubstanciada em dois documentos encaminhados periodicamente pelo
Ministério da Defesa ao Congresso Nacional, a Política Nacional de Defesa e a
Estratégia Nacional de Defesa, os últimos de 2020, que deveriam ser elaborados
com a participação de técnicos civis e militares especializados em temas de
defesa nacional e discutidos amplamente no Congresso e na opinião pública pela
importância que têm.

Ao invés disto, no entanto, eles têm sido elaborados internamente pelas forças
armadas e aprovados pelo Congresso sem maior discussão. O outro lado da
inexistência de uma comunidade civil especializada e capacitada para examinar

32 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . interesse nacional – abril – junho de 2023 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .


e propor caminhos para os temas de defesa nacional é o predomínio da formação
isolada das lideranças militares dentro de suas próprias instituições, sem se
expor à formação de alto nível proporcionada pelas instituições civis de ensino
e pesquisa e maior capacitação em temas organizacionais, institucionais e
tecnológicos de interesse para a atividade militar.

Além das questões de definição da doutrina e política de defesa nacional, está o


fato de que as forças armadas, como os demais setores da administração pública
brasileira, são uma corporação com interesses próprios, com fortes demandas
orçamentárias. O país consome cerca de 1,6% do PIB com as forças armadas,
cerca de R$115 bilhões em 2022, 80% dos quais para pagamento de pessoal.
A proporção dos gastos do Brasil com as forças armadas, em relação ao PIB,
não é diferente daquela dos países que estão fora de zonas de conflito. E a alta
proporção de recursos destinados a salários e aposentadorias, para um contingente
de cerca de 350 mil pessoas na ativa, e cerca de um milhão de aposentados e
pensionistas, é semelhante à que ocorre em outros setores governamentais, como o
das universidades públicas, por exemplo, em que as despesas de pessoal impedem
que haja recursos para investimentos e atividades operacionais.

Talvez seja difícil alterar este perfil de gastos no curto prazo, mas é importante
que haja uma política de ajuste voltada para a criação de um contingente menor e
mais qualificado, conforme necessidades operacionais bem definidas e com níveis
salariais e de benefícios previdenciários equivalentes ao da população civil com
características semelhantes. Uma nova política de recursos humanos requer rever
o serviço militar obrigatório, que há muito se tornou inviável, e a redistribuição
dos efetivos militares conforme sua necessidade estratégica, e não mais nos
grandes centros urbanos do Sudeste, como atualmente.

Uma questão central sobre os papéis das forças armadas é o entendimento correto
da noção de que sua principal função é a defesa do país de ameaças externas, e a
questão correlata de quanto o Brasil, enquanto potência regional de renda média,
precisa e tem condições de manter uma força armada convencional. Parece claro
que não faz sentido manter indefinidamente um contingente militar de grande
porte, com equipamento ultrapassado e pouca capacidade de mobilização. É
preciso pensar a questão das ameaças externas em pelo menos três níveis: global,
regional e local.

O nível global é o do confronto entre grandes potências, como ocorreu entre o


bloco ocidental e os países do Pacto de Varsóvia durante a Guerra Fria, e como
está se configurando hoje com a competição crescente entre Estados Unidos e
China, e o movimento da Rússia de retomar seu protagonismo militar. Por nossa
posição geopolítica no continente sul-americano, o Brasil não tem interesse nem

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . um novo papel para as forças armadas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33


condições de participar dessas disputas em termos militares. Não parece fazer
sentido que ingressemos ativamente em alianças militares fixas, mas, ao mesmo
tempo, precisamos participar de instituições que contribuam para a defesa dos
regimes democráticos, da estabilidade política e da cooperação internacional, nas
esferas econômicas, ambientais e de manutenção da paz.

■ Modernização de instituições inclui forças armadas

Além de seus benefícios econômicos, a participação do país na OCDE e os


acordos comerciais com a União Europeia e a Associação Europeia de Livre
Comércio fortalecem nosso relacionamento com os regimes democráticos
no mundo e estimulam a modernização de nossas instituições. Um acordo de
cooperação com a North Atlantic Treaty Organization (NATO), como parte da
rede de Partners across the globe, poderia contribuir para modernizar as forças
armadas brasileiras, sem aumento significativo de custos para o país. Devemos
fortalecer nossos laços internacionais para atualizar nossos sistemas de defesa e
colaborar em missões de interesse coletivo, conforme a carta das Nações Unidas e
as redes de cooperação internacional das quais somos signatários.

Não existem ameaças previsíveis de conflitos armados na região sul-americana,


mas o país precisa de uma força militar com credibilidade suficiente para intervir
e enfrentar eventuais perturbações mais graves no relacionamento com seus
vizinhos. Além do mais, existem questões relacionadas ao controle de fronteiras,
proteção das costas, tráfico de drogas, tráfico de armas, contrabando e questões
migratórias que podem preocupar. A Região Amazônica, por suas dimensões,
dificuldade de acesso e necessidade de preservar a natureza e proteger as
populações originárias, necessita de uma atenção especial.

Todas estas questões têm desdobramentos internos, e, em princípio, seriam


de responsabilidade de instituições especializadas. Mas, dada a existência de
um contingente militar disponível, faz todo o sentido que ele seja capacitado e
destinado a lidar com essas questões, seja na forma de missões delimitadas, seja
na forma de atividade permanente, o que exigiria um trabalho de preparação e
qualificação de seu pessoal.

Em vez de uma separação formal entre “ameaças externas”, que seriam de


atribuição das forças armadas, e temas internos, onde as forças armadas só
interviriam em situações de emergência, é possível pensar em modelo híbrido
que possa lidar com situações em que os limites entre o que é interno e externo
se turvam, o que pode requerer inclusive repensar a divisão tradicional das forças
militares nas três “armas” separadas do Exército, Marinha e Aeronáutica.

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Uma outra questão é o papel das forças armadas como promotoras de atividades
de pesquisa e desenvolvimento que, além de sua importância militar, possam
ter impacto no desenvolvimento da ciência, tecnologia e indústria nacionais. É
conhecido, no passado como no presente dos países mais desenvolvidos, o forte
relacionamento entre a pesquisa militar e as tecnologias civis, muitas das quais
foram desenvolvidas inicialmente para fins bélicos. O primeiro movimento do
governo Lula, para tentar superar as dificuldades de seu relacionamento com o
setor militar, foi oferecer mais recursos para os diferentes projetos tecnológicos
das respectivas armas e acenar para a duvidosa proposta de desenvolver um
complexo industrial-militar no país, com uma indústria nacional de armamentos
semelhante à tentada nos anos 1970 pelos governos militares.

A única experiência bem-sucedida no Brasil neste sentido foi a do Centro


Tecnológico da Aeronáutica de São José dos Campos, que se desenvolveu a
partir de uma escola de engenharia cívico-militar, o Instituto Tecnológico da
Aeronáutica, e que resultou em uma empresa comercial internacionalizada que é
a Embraer. Não é claro que esta experiência possa ser replicada em outros setores,
dado o fechamento da economia brasileira e o distanciamento das instituições
brasileiras de ciência e tecnologia com relação aos avanços tecnológicos
nas potências mais desenvolvidas. As forças armadas brasileiras precisam,
sim, ter acesso às novas tecnologias de interesse militar, sobretudo na área
computacional e cibernética, pela importância que têm e os riscos potenciais que
podem representar à segurança nacional. Mas, sobretudo, através de parcerias e
formação técnica de seu pessoal, e não pela pretensão de atuar como indutoras do
desenvolvimento econômico do país.

■ Definição constitucional do lugar das forças armadas

Há, finalmente, a questão da definição constitucional do lugar das forças armadas,


que, tal como está atualmente, pode ser interpretada como atribuindo a elas um
papel de poder moderador indesejável em um regime democrático pleno. O artigo
142 da Constituição de 1988, ao estabelecer que “as Forças Armadas... destinam-
se... à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes,
da lei e da ordem”, retém a noção de que elas podem exercer um papel de “poder
moderador”, sobrepondo-se às instituições em determinadas circunstâncias. Diz
o artigo que as forças armadas (FF.AA.) podem ser chamadas a garantir a lei e a
ordem por iniciativa de qualquer dos poderes. Mas, estando as FF.AA. submetidas
à “autoridade suprema do Presidente da República”, como reza anteriormente
o artigo, é à iniciativa do chefe do Executivo que elas devem mesmo obedecer.
Então, dependendo dos instintos autoritários do presidente, qualquer coisa pode
acontecer com nossa indefesa democracia. Assim, uma providência de natureza

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . um novo papel para as forças armadas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35


legal seria uma revisão do Artigo 142 da Constituição Federal, para deixar clara a
subordinação das FF.AA. ao poder civil.

Esta providência é necessária para estabelecer o que as forças armadas não são,
mas insuficiente para estabelecer o que elas devem ser, o que só pode ser feito por
uma doutrina militar atualizada, compatível com as possibilidades e necessidades
internas e o envolvimento do país na ordem internacional, aprovada pelo
Congresso e reconhecida como válida pela sociedade brasileira como um todo,
incluindo as próprias forças armadas. ■

36 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . interesse nacional – abril – junho de 2023 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .


Relações entre o Estado e o Soldado:
um desafio para o país

■O
 távio do Rêgo Barros é general de Divisão da Reserva,
graduado em Ciências Militares e Administração pela Academia
Militar das Agulhas Negras, pós-graduado pela Escola Superior de
Guerra e doutor pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército.
Foi chefe do Centro de Comunicação do Exército e porta-voz da
Presidência da República

“A democracia não goza no mundo de ótima saúde,


mas não está à beira do túmulo.” (Norberto Bobbio)

Com otimismo contido, Bobbio afirmou que o fim da democracia era apenas uma
conjectura e que o respeito às normas e às instituições democráticas era o primeiro
e mais importante passo para a renovação progressiva da sociedade (Bobbio 2020).

Quando se traz à discussão o relacionamento entre civis e militares no mundo


contemporâneo é sobre democracia que estamos falando.

Da leitura de “O futuro da democracia”, um resumo de palestras do filósofo


italiano, depreende-se que somente o respeito ao ser difuso conhecido como
democracia fará a sociedade avançar na autoproteção e consequente sobrevivência
da tribo da qual cada indivíduo livre é parte.

Recentemente, a estrutura política e social do Brasil foi abalada por um presumido


enfrentamento dos estamentos militar e civil, cuja causa tangencia a origem
militar do ex-Presidente da República na última quadra (2019-2022).

Os movimentos do incumbente no sentido de fazer prevalecer sua visão de mundo


e de país com suposto apoio “incondicional” das Forças Armadas brasileiras
assustou e dividiu a sociedade, incluam-se militares, no apoio ou rechaço ao
projeto de poder.

Com a assunção do novo governo, abre-se a possibilidade de retorno das águas ao


curso normal do rio nas relações entre civis e militares. Todavia, é preciso manter
atenção sobre eventuais desvios, em ambos os lados, que possam, ao revés de
trazer equilíbrio e paz sociais, trazer mais desavenças e instabilidades.

. . . . . . . . . . . . relações entre o estado e o soldado: um desafio para o país . . . . . . . . . . . . . . 37


Procurando contribuir com as discussões sobre o tema, aceitei o convite do
embaixador Rubens Barbosa, editor responsável pela Revista Interesse Nacional,
na esperança de fortalecer o atributo da serenidade que deve imperar na
interlocução entre o Soldado e o Estado.

■ As relações entre civis e militares no mundo moderno

Há uma tendência de nossos analistas de política, quando tratam das relações entre
civis e militares, de nos compararem com os Estados Unidos da América. É bom
parâmetro, mas é transparente reconhecer as diferenças entre as Forças Armadas
brasileiras e as americanas.

O general da Reserva Maynard Marques de Santa Rosa, ex-Secretário de Assuntos


Estratégicos da Presidência da República, assim confrontou os dois perfis:

– As Forças Armadas americanas são aristotélicas e belicistas. As Forças


Armadas brasileiras são idealistas e humanistas.

No tema relações entre militares e agentes políticos, as diferenças entre nós e os


americanos diminuem e, em muitos casos, os problemas se assemelham como
se conclui da análise do artigo Guardians of the republic, dos articulistas Joseph
F. Dunford, Graham Allison e Jonah Glick-Unterman, publicado no site Foreign
Affairs (Joseph F. Dunford 2023).

– The central institutions of American democracy are under assault, as deepening


divisions and poisonous politics paralyze Washington and tug at the seams of
society. The U.S. military is not immune to this threat. The nonpartisan ethic of
the armed forces is at greater risk today than it has been in our lifetimes, and
maintaining it is essential for the survival of American democracy.

As Forças Armadas mais poderosas do mundo, que desde os pais fundadores


se submetem ao controle civil e fogem da política e do partidarismo, foram
envenenadas pelo ambiente político?

Em artigo publicado no site War on the Rocks com o título Don’t drag the
militarys into politics, Kori Schake confirma esse envolvimento e aponta o dedo
para os responsáveis: os políticos (Schake 2022).

– Presidents Barack Obama and Donald Trump both nominated record numbers
of high-ranking veterans into senior civilian appointments. Like his predecessor,
President Joe Biden nominated a recently retired veteran to be secretary of defense.
More recently, Biden placed uniformed marines beside him as he gave a highly

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political speech about the threat to democracy in the country. All of these actions
are shaping public perceptions of the military as a partisan political force.

Na Europa, a onda de contestação e envolvimento de militares na política não é


menos gritante. Em seu livro Command, Laurence Freedman aborda as relações
entre o nível político e as operações de guerra, e quando estuda as operações
francesas da Indochina e da Argélia revela a contemporânea indisciplina de velhos
comandantes franceses contra o Presidente Macron (Freedman 2022).

– This did not completely eliminate the idea that there could be circumstances
in which members of the armed forces could and should defy the civilian
authorities. On 21 April 2021, 60 years after the attempted putsch against de
Gaulle, a letter published in Valeurs Actuelles, a right-wing journal, signed
by current and former officers, complained about the failure of the authorities
to take action to stop the spread of radical Islamist ideas and warned of the
possible need for our ‘active comrades’ to intervene ‘in a perilous mission of
protecting our civilisational values’.

■ O controle civil se enfraqueceu nos últimos anos?

O conceito do controle civil sobre o estamento militar não é novidade, tendo sido
formulado há mais de 60 anos pelo professor Samuel P. Huntington e apresentado
no livro O Soldado e o Estado (Huntington 2016). À medida que ganhava força
nas democracias ocidentais de primeiro mundo era contestado pelos fatos.

A crise dos mísseis de Cuba, a guerra do Vietnam, Somália, Beirute, Bósnia,


Iraque, Afeganistão são eventos que mostraram divergências entre o decisor
político e o executor militar, revelando atritos perigosos na manutenção da
subordinação dos fardados ao poder civil.

Criar bolhas desconectadas entre esses dois atores, onde cada um acredita-se
detentor da verdade inquestionável, é caminho para a fragilização da sociedade e
reforço da fuga das regras consuetudinárias da democracia.

A meu juízo, e em uma visão atual, o que Huntington defendeu é uma relação
mais fluida e equilibrada.

Dos políticos, o reconhecimento dos militares como assessores que apresentam


suas demandas e oferecem soluções aos desafios da política de segurança e defesa
de uma nação.

Dos militares, atores cidadãos, o acatamento da decisão da maioria quando da

. . . . . . . . . . . . relações entre o estado e o soldado: um desafio para o país . . . . . . . . . . . . . . 39


escolha de quem os governará e assumirá o cargo de Comandante em Chefe,
subordinando-se à essa autoridade, agindo como gestor da ação militar do Estado
para promover segurança lato sensu.

■ Os militares e a sociedade brasileira

A República nasceu do cansaço de um Império que perdeu prestígio junto à


sociedade, à igreja e aos militares, estes chacoalhados pelos ideais positivistas
defendidos por Benjamin Constant.

O 15 de novembro de 1889 foi um marco nas relações entre paisanos e fardados,


dominadas na época pelos militares, mas em uma República sem identidade clara
e propósito definido para o país.

Referenda essa assertiva o professor Edmundo Campos Coelho, em seu livro


Em busca de identidade, alegando que faltava aos militares qualquer concepção
clara, seja do papel do Exército na sociedade pós-monárquica, seja do regime que
haveria de substituir a monarquia (Coelho 2000).

Essa ausência de identidade se deveu à fraqueza dos civis em conduzir a política


de governo e de Estado, o que perdurou ao longo do século XX. À medida que
essa debilidade se mostrava presente, os fatos históricos foram se sucedendo com
maior ou menor influência da espada sobre as pelejas políticas.

Veem-se esses envolvimentos em 1922, com o tenentismo, em 1924, com repúdio


a Bernardes, em 1930, com a ascensão de Vargas, em 1932, com a revolução
constitucionalista, em 1935, com a intentona comunista, em 1937, com o Estado
Novo, em 1946, com a eleição de Dutra, em 1954, com a morte de Vargas, em
1961, com a queda de Jânio e a impostura do parlamentarismo, e em 1964, com a
revolução militar.

Paradoxalmente, foi o governo militar, mesmo com ranger de dentes, que


conduziu a renovação democrática, ao transferir de forma controlada o poder ao
estamento civil, com o nascimento da Nova República.

Nessa nova fase, somos presenteados com a Constituição de 1988 e eleições


livres e democráticas por mais de 35 anos, com alternância saudável de poder e de
ideologia em um Estado adolescente em suas convicções.

Desde então, as Forças Armadas afastaram-se do cenário político, aumentando


suas capacidades técnicas e operacionais, reformulando ensino e pesquisa,
adaptando o material militar aos desafios do novo milênio, aproximando-se da

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população mais carente por meio das operações subsidiárias, além de projetar-se
internacionalmente nas operações de paz da ONU e em intercâmbios com outros
países por meio da diplomacia militar.

Destaco: nesse interregno, pouco se discutiu o Artigo 142 da Constituição Federal


que trata das missões atribuídas às Forças Armadas.

– Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela
Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas
com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente
da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes
constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

Em uma estratégia comunicacional conhecida como “O Grande Mudo”, os


militares foram ganhando confiança da população, alçando-se ao patamar de
instituição das mais respeitadas junto à opinião pública.

Os governos que se sucederam à Assembleia Constituinte se preocuparam em


enfrentar as crises mundiais e nacionais, assegurando estabilidade econômica e
social, além de construir madureza política para governabilidade sensata do país.

Apesar de o processo construído pelo ex-Presidente Ernesto Geisel, caracterizado


por uma transição lenta e segura, ter culminado com anistia ampla, geral e
irrestrita, alguns atores ligados à esquerda e que estiveram envolvidos na luta
armada do período militar exigiam punição aos agentes do Estado que atuaram
contra esses grupos.

No governo da ex-presidente Dilma Rousseff, instalou-se a Comissão Nacional


da Verdade, cujo relatório final ofereceu uma denúncia protocolar contra algumas
pessoas, em particular militares na reserva ou até falecidos, que abriu feridas em
um processo quase cicatrizado.

Nesse mesmo tempo, viu-se os anos 2010 como a década das contestações
sociais, um contraponto às dificuldades que o governo da ex-Presidente teve com
a economia e o seu partido com o envolvimento em denúncias de corrupção nas
relações entre governos e empresas.

O resultado desse período foi o impeachment da mandatária, assunção do vice-


Presidente Michel Temer e, como saldo dos sentimentos que vicejavam na
sociedade, a eleição de um chefe do Executivo, com tendências ao populismo de
direita, surfando a onda mundial dos governantes de viés autoritário.

. . . . . . . . . . . . relações entre o estado e o soldado: um desafio para o país . . . . . . . . . . . . . . 41


À medida que os problemas de governabilidade se avolumaram, o mandatário
envolveu mais e mais militares na administração. Governos enfraquecidos, por
vezes, escoram-se na farda para sobreviver, enquanto respiram entre um mergulho
e outro das instabilidades institucionais.

Encerrada a mais dura eleição dos últimos anos, a vitória apertada da oposição
gerou uma onda de protestos dos derrotados, alguns em dissonância com a
legalidade, e fez emergir, do lado vencedor, críticas acerbas ao militares.

As arruaças no dia da diplomação, a tentativa de explosão de um caminhão tanque


no aeroporto de Brasília e a invasão no dia 08 de janeiro de 2023 da sede dos três
Poderes, em afronta aos princípios mais saudáveis de uma democracia, acendeu
um rastilho de pólvora.

Ele pode levar a um confronto irracional entre civis e militares e desarranjar a


instável balança em que se acomodaram responsavelmente as lideranças sensatas.

■ Um futuro de estabilidade

Vivemos um mundo com características distintas do século passado. Fim da


Guerra Fria, novos polos de poder, questões climáticas e ambientais a definir a
geopolítica mundial, migração impactando o equilíbrio social dos grandes países e
guerras westfalianas.

No Brasil, não sendo pouco enfrentar esses desafios, ainda olhamos o retrovisor da
história acreditando no fantasma de um intervencionismo militar.

Chefes militares nos últimos dias, sob extrema pressão de interesses pessoais e
políticos, deram provas incontestáveis da compreensão do papel de Estado das
Forças Armadas e da sua subordinação à Constituição ao agirem alinhados com os
preceitos legais vigentes em nosso país.

O professor Denis Rosenfield em recente artigo destacou:

– Se não houve golpe no Brasil, é porque os militares não quiseram embarcar
numa aventura inconstitucional. Golpes são atos de violência que requerem o
uso da força, sem a qual suas chances de sucesso, se existentes, são mínimas
(Rosenfield 2023).

Todavia, a luta contra o partidarismo dentro das Forças Armadas se torna objetivo
principal das lideranças fardadas.

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As Forças Armadas não são parteiras de nova ordem social. Não são o tal Poder
Moderador tão propalado. Nem a sociedade dela deverá servir-se para soluções
temporárias de seus problemas perenes.

O fato de que todos os grupos interessados na atuação política dos militares


tenham utilizado o conceito de Poder Moderador para instigar, justificar ou
reprimir intervenções indica que o conceito se presta a interpretações as mais
contraditórias em função de interesses, dos mais diversos (Coelho 2000).

A ação política, quando necessária, deverá ser liderada pelos Ministros da Defesa
e os Comandos de cada uma das Forças Armadas, com foco nas missões impostas
à Instituição pela Constituição e outros dispositivos legais.

Como salientou José Murilo de Carvalho em sua obra “Forças armadas e a política
no Brasil” (Carvalho 2019):

– Se a sociedade brasileira aspira a transição da categoria dos “desordeiros”


para o seleto membro do clube dos desenvolvidos e se ela precisará para tal
conviver com as Forças Armadas, a receita não é a do controle civil objetivo em
totalidade, tampouco da subordinação militar. Possivelmente, a de um diálogo
responsável e generoso que integre o soldado na sociedade e ponha um fim à
sua secular orfandade.

Nesse diálogo, a esquerda, em sua visão do mundo, precisa aprender a debater


as questões militares e evitar discursar contra o militarismo em termos utópicos,
aproveitando-se de momentos confusos para inserir suas proposituras.

A direita em sua sanha de acreditar-se infalível precisa deixar de se assumir como


protetora da ética e da moral do povo e, portanto, única patrocinadora dos bons
valores a vigorarem na sociedade.

O Comandante em Chefe das Forças Armadas, o Presidente da República,


precisa ser claro em seu papel de definidor da política militar consoante com as
necessidades do Estado brasileiro.

Os políticos nas casas legislativas federais precisam tratar com seriedade os


assuntos que envolvam defesa e segurança nacionais, pois o controle externo lhes
pertence.

Os militares não almejam o papel de alternativa a um governo legítimo e eleito


democraticamente. Reafirmo, demonstraram isso há pouco. Eles vêm dedicando
esforços significativos para dar curso à estabilidade, legalidade e legitimidade.

. . . . . . . . . . . . relações entre o estado e o soldado: um desafio para o país . . . . . . . . . . . . . . 43


Reconhecem que o Artigo 142 da Constituição Federal de 1988 é trilha a ser
perseguida pelas lideranças nas Forças Armadas, tanto quanto pelas lideranças
civis, considerando o espírito do tempo no qual estão acorrentadas.

Respeitando aqueles que defendem a interpretação de que o Artigo 142 traz em sua
redação o conceito de Poder Moderador por parte das Forças Armadas. Não traz!

Respeitando aqueles que acreditam que mudar a redação do Artigo 142 trará
quietude e transparência nas relações entre civis e militares. Não trará!

A vontade do povo, fortalecida pelo voto livre, soberano e incontestável, é o


verdadeiro Poder Moderador. E, para isso, não se precisa reinterpretar nem
reescrever a Constituição. Basta, honestamente, servi-la. É sobre democracia que
estamos falando. ■

■ Bibliografia

BOBBIO, Norberto. 2020. O futuro da democracia. Sao Paulo: PAZ & TERRA.

CARVALHO, José Murilo de. 2019. Forças armadas e política no Brasil. Sao Paulo: TODAVIA.

COELHO, Edmundo Campos. 2000. Em busca de identidade. Rio de Janeiro: RECORD.

FREEDMAN, Laurence. 2022. Command, the politics of military operations from Korea to Ukraine. New York:
OXFORD.

HUNTINGTON, Samuel P. 2016. O soldado e o estado. Rio de Janeiro: BIBLIEX.

JOSEPH F. Dunford, Graham Allison e Jonah Glick-Unterman. 2023. “Foreign Affairs.” Foreign Affairs. 5
de Janeiro. Acesso em 27 de Fevereiro de 2023. https://www.foreignaffairs.com/united-states/guardians-
republic.

ROSENFIELD, Denis. 2023. “Os militares e a Constituição.” Estado de São Paulo.

SCHAKE, Kori. 2022. “Don’t drag the militarys into politics.” War on the rocks. 13 de Dezembro. Acesso em 27
de Fevereiro de 2023. https://warontherocks.com/2022/12/dont-drag-the-military-into-politics/.

STEPAN, Alfred. 1975. Os militares na política. Rio de Janeiro: ARTENOVA.

STEPAN, Juan J. Linz & Alfred. 1996. A transiçao e consolidaçao da democracia. Rio de Janeiro: PAZ E
TERRA.

44 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . interesse nacional – abril – junho de 2023 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .


Desafios da política externa do terceiro
mandato de Lula

■G
 uilherme Casarões é professor da Fundação Getúlio Vargas, doutor
e mestre em Ciência Política pela Universidade de São Paulo e mestre
em Relações Internacionais pela Universidade Estadual de Campinas.
Coordena o Observatório da Extrema Direita

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva assume seu terceiro mandato presidencial
diante de um país dividido. Sua vitória nas eleições de 2022 contra o incumbente
Jair Bolsonaro foi a mais apertada de toda a história da democracia brasileira.
Uma de suas tarefas, portanto, será a pacificação do Brasil, seja por meio
do combate à fome e à desigualdade, da reconstrução das políticas públicas
que foram desmanteladas pelo governo anterior e até mesmo de medidas de
enfrentamento ao discurso de ódio e ao extremismo. São tarefas tão necessárias
quanto difíceis, que certamente não surtirão o efeito necessário no tempo de um
mandato presidencial. Isso não significa, claro, que o atual governo não deva dar
passos decisivos rumo a uma reconciliação ampla.

Ao mesmo tempo, Lula se vê diante do desafio de recolocar o Brasil no cenário


internacional, após quatro anos de isolamento, de confrontações desnecessárias
e de perda de liderança em temas essenciais para nossa agenda interna – de
mudanças climáticas à saúde global, passando por direitos humanos e cooperação
para o desenvolvimento sustentável. A despeito de potenciais obstáculos, penso
que a revitalização da nossa política externa pode ser um dos pontos de partida
para que o novo governo cumpra sua promessa de reconciliação nacional. Afinal,
não faltam exemplos mostrando que é possível que um presidente construa
legitimidade política de fora para dentro – usando a diplomacia, em suas múltiplas
manifestações, para viabilizar a consecução de seu programa governamental.

Lula sabe disso e já vem se movimentando, com sua desenvoltura costumeira,


no tabuleiro internacional. Trouxe para o governo figuras experimentadas, como
Celso Amorim na assessoria internacional, Mauro Vieira nas Relações Exteriores
e Marina Silva no Meio Ambiente. Nesse processo, ainda conta com inédita boa
vontade de lideranças e chancelarias estrangeiras, que naturalmente aguardavam a
saída do antigo presidente e de seu conspiracionismo predatório e autoritário para
reativar contatos políticos mais sistemáticos com o Brasil. Além disso, graças à
rápida e decisiva resposta governamental, os atentados de 8 de janeiro em Brasília

. . . . . . . . . . . . relações entre o estado e o soldado: um desafio para o país . . . . . . . . . . . . . . 45


acabaram reforçando o papel do novo presidente como uma espécie de guardião
da democracia contra a extrema direita em ascensão. Se a fortuna não falta ao
novo governo, sua virtù ainda está por ser testada.

■ O papel da política externa no terceiro mandato

O emprego da política externa como esteio da legitimidade política vem atender


um duplo objetivo. Resgatar a agenda pública em áreas sensíveis é o primeiro
deles. A viagem de uma comitiva da nova administração à COP-27 no Egito, antes
mesmo da posse, foi sinal claro do renovado compromisso brasileiro com questões
ambientais. Escolher a Argentina como o primeiro destino de Lula deixou claro
o interesse de retomar o Mercosul como plataforma para o desenvolvimento
econômico e ampliação do interesse comercial pela vizinhança. O encontro com
o presidente Joe Biden em Washington, um mês mais tarde, reforçou o interesse
mútuo em temas como combate ao racismo e ao extremismo, além da preocupação
comum com as mudanças climáticas. E a próxima viagem do roteiro, rumo à
China, reitera a relevância econômica (e, em muitos sentidos, política) do nosso
principal parceiro comercial.

O segundo objetivo diz respeito à própria trajetória política de Lula. Ao concluir


seu longo mandato, em 2010, o presidente contava com nada menos que 83%
de aprovação pessoal. Por trás da popularidade, havia, claro, grandes feitos
domésticos, entre os quais o Bolsa Família, responsável pela histórica redução
da pobreza e da desigualdade no país, além de outras políticas estruturantes em
áreas como educação, infraestrutura e habitação. Mas a equação também incluía
um inédito protagonismo global que, a certa altura, seria uma das marcas da
autoestima de uma nação emergente. Ao colocar-se como presidente-diplomata,
amparado por um Itamaraty fortalecido e pelas redes históricas de atuação
internacional do PT, Lula conquistou o respeito e a admiração de lideranças
estrangeiras, que até hoje o veem como construtor e porta-voz de um Brasil altivo
e integrado ao mundo.

Se o desejo de Lula é deixar um grande legado político ao final de um ciclo de 12


anos no poder, tudo indica que ele virá na forma da diplomacia. Em circunstâncias
normais, o tempo da política externa costuma ser mais lento que o da política
doméstica. Pelas próprias vicissitudes do relacionamento entre nações soberanas,
grandes feitos internacionais não costumam se materializar no período de um
mandato. Nesse caso, parece ser o contrário. Diante de um quadro econômico
adverso, de uma sociedade profundamente dividida e de uma governabilidade
frágil, Lula dificilmente repetirá o feito de 15 anos atrás. Se há algum caminho
para redimir a biografia do atual presidente – que foi acusado de corrupção, preso
e impedido de disputar as eleições de 2018, abrindo caminho para a chegada

46 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . interesse nacional – abril – junho de 2023 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .


do bolsonarismo ao poder –, ele se dará por meio de uma grande contribuição à
ordem internacional.

■ O grande desafio: qual o lugar do Brasil na nova ordem?

Qualquer impacto significativo que o Brasil deseje produzir no mundo dependerá


de sua capacidade de navegar numa ordem internacional fundamentalmente
distinta daquela do início dos anos 2000. Se durante a primeira passagem de
Lula pela presidência o país alçou voos importantes, assumindo a condição de
potência emergente, os anos seguintes testemunharam um movimento de declínio,
introspecção e isolamento do Brasil. Éramos a sétima economia do mundo em
2010, hoje somos a décima segunda. De liderança em temas de meio ambiente,
direitos humanos e saúde global, fomos alçados à condição de pária, a reboque da
trágica posição de segundo país com maior número de mortos por Covid-19, de
queimadas recorde na Amazônia e de inúmeros retrocessos em temas que vão de
liberdade religiosa a direitos indígenas. A Lula, não basta manifestar o desejo de
resgatar a política externa “ativa e altiva” de outrora, mas liderar o país diante de
um contexto global menos cooperativo e mais hostil.

A atual ordem mundial é caracterizada, por um lado, por um movimento amplo


de desmonte da globalização em suas dimensões econômica, política e cultural.
Apresenta, por outro lado, novos contornos de bipolaridade, desta vez entre
Washington e Beijing. Não se trata de uma disputa propriamente militar, ainda
que os gastos em defesa chineses estejam cada vez mais vultosos, mas de uma
corrida que combina comércio, investimentos e tecnologia. Ao passo que a China
tem buscado assumir, muitas vezes de forma agressiva, a primazia comercial com
diversos países do mundo, notadamente no Sul Global, a postura dos Estados
Unidos tende a ser mais reativa, pressionando parceiros a recusar a entrada
de empresas chinesas na provisão de bens públicos, sobretudo no campo da
comunicação digital.

Ainda assim, os impactos militares e geopolíticos também se fazem sentir nessa


nova configuração da competição global. Tensões recentes envolvendo Taiwan, a
reorganização da disputa naval no Mar do Sul da China (por meio da recém-criada
aliança trilateral entre Austrália, Reino Unido e EUA, AUKUS) e a derrubada
de balões que supostamente serviam para espionagem chinesa colocaram as
duas potências em rota de confrontação direta. Outra dimensão dessa rivalidade
escancarou-se no contexto da invasão russa da Ucrânia em fevereiro de 2022,
com Xi Jinping alinhando-se a Vladimir Putin por meio de uma “parceria sem
limites” celebrada logo antes da guerra, enquanto o governo Biden vem investindo
pesadamente no armamento das tropas ucranianas, ao lado dos aliados da
Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).

. . . . . . . . . . . . . desafios da política externa do terceiro mandato de lula . . . . . . . . . . . . . . 47


A nova ordem mundial coloca um desafio imediato à política externa do novo
governo Lula. Ainda não está claro se o Brasil conseguirá manter uma postura
de “equidistância pragmática”, para usar expressão consagrada pelo historiador
Gerson Moura, diante da disputa cada vez mais acirrada entre as superpotências.
Ao Brasil, naturalmente, interessa manter boas relações com ambos os lados: a
China é nosso maior parceiro comercial e um crescente fiador da infraestrutura
nacional e os Estados Unidos, ao menos sob a atual gestão, possuem
significativas convergências políticas com o governo Lula, seja no combate às
redes transnacionais da extrema direita, na defesa de pautas progressistas e na
preocupação com mudanças climáticas e preservação da Amazônia.

Num primeiro momento, é bem possível que o Brasil não seja instado a tomar
lados nessa disputa bipolar. Contudo, um eventual acirramento da guerra na
Ucrânia ou um entrevero político-militar mais grave entre Washington e Beijing
exigirá de Lula uma postura cautelosa para preservar os interesses nacionais.
Além disso, a eleição de um republicano à presidência norte-americana em
2024, impondo uma visão de soma zero aos parceiros na relação com a China,
certamente dificultará a capacidade brasileira de navegar entre os dois polos de
poder. Até agora, contudo, o equilíbrio entre as superpotências tem funcionado.

■ Integração regional e cooperação multilateral

Existem duas potenciais contribuições que o governo Lula poderá prestar à ordem
internacional no curto tempo de um mandato. Ambas envolvem a reconstrução
de plataformas de cooperação nas quais o Brasil foi protagonista – ou até mesmo
liderança – ao longo das últimas décadas. A primeira delas diz respeito às relações
continentais. Nos últimos anos, a política externa brasileira abandonou os
mecanismos de integração regional que nos colocavam como centro de gravidade
político da América do Sul. O Mercosul, ainda resiliente no papel, perdeu sua
capacidade de organização política, comercial e financeira na vizinhança imediata.
Diante do acirramento da crise venezuelana e da polarização ideológica das
relações sul-americanas, incentivada pelo bolsonarismo, o Brasil retirou-se na
Unasul e da Celac, organizações criadas por ele próprio alguns anos atrás.

A boa notícia é que o vácuo de poder deixado pelo desinteresse brasileiro ainda
não foi totalmente preenchido, a despeito de ensaios de protagonismo regional
por parte de Chile, Colômbia e México. O Brasil poderá resgatar seu espaço,
beneficiado por uma nova “onda rosa” de partidos de esquerda ascendendo ao
poder na região. Mas não se trata de tarefa simples. Do ponto de vista econômico,
a presença chinesa na região cresceu nada menos que 26 vezes entre 2000 e
2020, reduzindo significativamente as possibilidades de expansão de comércio e
investimentos brasileiros nas áreas em que o país ainda possuía alguma entrada na

48 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . interesse nacional – abril – junho de 2023 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .


América do Sul: infraestrutura e manufaturas. Em termos políticos, a combinação
de caos social e regimes cada vez mais autoritários na Venezuela e na Nicarágua
é um obstáculo para a reconstrução da integração regional – e um teste para o
posicionamento do novo presidente e seu partido, que nunca esconderam sua
simpatia por Nicolás Maduro e Daniel Ortega.

Por isso mesmo, um dos legados diplomáticos possíveis ao presidente Lula é a


pacificação dos autoritarismos de esquerda na América Latina – notadamente a
Venezuela, parceiro estratégico importante graças ao seu potencial energético e
comercial, e cuja crise humanitária vem causando fluxos migratórios por toda
a região. Ainda não está claro se uma reconciliação nacional venezuelana, que
fatalmente envolveria a saída de Maduro do poder, é viável e até mesmo desejável
do ponto de vista do governo brasileiro. Não obstante, caso Lula realmente queira
reconstruir as bases da integração regional sul-americana, é imprescindível que
contribua construtivamente para superar a crise no vizinho setentrional.

O multilateralismo é a segunda área de potencial influência brasileira. Ao


longo das últimas décadas, a capacidade de atuação multilateral do Brasil foi
seu maior ativo reputacional, permitindo-lhe participar, como potência média,
da criação de regras internacionais em temas como biodiversidade, mudanças
climáticas, desarmamento nuclear, comércio de armas, saúde global e direitos
humanos. A condição de potência emergente fez, inclusive, com que a política
externa brasileira reivindicasse maior protagonismo normativo em temas
outrora distantes do alcance do país, como segurança e finanças internacionais.
O desengajamento dos últimos anos, iniciado em meados do governo Dilma
Rousseff, enfraqueceu o posicionamento brasileiro nos temas de “alta política”,
mas não impediu que o Brasil seguisse na vanguarda dos assuntos em que já
exercia alguma ascendência.

Quatro anos de governo Bolsonaro, contudo, foram capazes de minar a liderança


brasileira mesmo naqueles temas em que o país é protagonista inconteste. Teorias
conspiratórias como o “globalismo”, difundidas pela cúpula bolsonarista como
elemento norteador de sua política externa, serviram de justificativa para a retirada
do Brasil dos debates ambientais e de saúde global, um contrassenso diante das
crescentes preocupações com emergências climáticas e pandemias, ou para a
reversão de posicionamentos históricos sobre direitos reprodutivos, migrações e
até mesmo o conflito israelo-palestino.

A tarefa de Lula diante de um sistema multilateral fragilizado será organizada


em três dimensões. A primeira delas envolve reocupar os vazios deixados
pela o Brasil nos últimos anos. O chanceler Mauro Vieira tem adotado uma
postura bastante assertiva quanto ao desejo do novo governo em assumir

. . . . . . . . . . . . . desafios da política externa do terceiro mandato de lula . . . . . . . . . . . . . . 49


responsabilidades e compromissos multilaterais nas mais diversas áreas – o que
não somente é correto, da perspectiva tradicional da diplomacia, como também
essencial para que o governo legitime sua complexa agenda interna. A ministra
do Meio Ambiente, Marina Silva, é uma das mais ativas nesse processo, tendo
participado da COP-27, do Fórum Econômico Mundial e da delegação brasileira
na visita aos Estados Unidos.

Em segundo lugar, o governo Lula vem demonstrando interesse em oferecer


abordagens inovadoras a crises contemporâneas. Sob a liderança do ministro
Silvio Almeida, a agenda brasileira de direitos humanos no plano multilateral
incorporará, de maneira mais assertiva, temas como direitos indígenas (à luz da
recente crise humanitária do povo Yanomami), trabalho escravo e racismo, além
do combate à proliferação de discursos de ódio, sobretudo nos espaços digitais.
O próprio presidente Lula propôs, por ocasião da visita do chanceler alemão Olaf
Scholz, a realização de uma “cúpula da paz” que reunisse esforços globais para a
mediação do fim da guerra entre Rússia e Ucrânia. Mesmo que improvável e longe
de ser consensual entre as partes envolvidas, a solução de Lula colocou o Brasil
sob os holofotes e sinalizou um caminho possível de participação de países não
alinhados à Rússia ou à OTAN no processo de paz.

Finalmente, a terceira dimensão da política multilateral de Lula deverá reativar


a noção de cooperação sul-sul, incorporando parceiros relevantes em termos
políticos e econômicos, como Índia, África do Sul, Nigéria e Egito às estratégias
externas do novo governo. Para além das relações bilaterais estratégicas com
tais nações emergentes, que compreendem uma agenda comercial promissora
e possibilidades de contatos políticos amplos, é fundamental que o governo
brasileiro enfatize o papel desses países no fortalecimento do combate à pobreza
e à desigualdade, do desenvolvimento sustentável e do intercâmbio técnico e
tecnológico. Para tanto, a articulação minilateral, por meio de fóruns, como o
IBAS, e a plataforma multidimensional das Nações Unidas colocam-se como
elementos fundamentais rumo ao resgate do valor do multilateralismo em nossa
política externa.

■ Considerações finais

Este ensaio buscou apresentar um panorama geral dos desafios e das


potencialidades do novo governo diante de uma ordem internacional menos aberta
aos interesses e à atuação diplomática brasileira. Contando com a simpatia e o
otimismo de diversos parceiros relevantes, bem como com a expectativa de um
Brasil mais ativo e construtivo nos planos regional e multilateral, acredito que
o Brasil tentará reunir condições favoráveis de curto prazo com o ímpeto de um
governo que não somente percebe a importância da legitimidade internacional

50 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . interesse nacional – abril – junho de 2023 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .


para a reconstrução de uma agenda positiva doméstica, como também buscará
contribuir ativamente com esta ordem internacional por meio da política externa.

Se é verdade que neste terceiro mandato a busca por um legado diplomático guiará
as ações do Brasil no mundo, é também verdade que esse processo envolverá uma
complexa articulação de diferentes atores governamentais, econômicos e sociais.
Tampouco, pode-se perder de vista a importância de se pavimentar o caminho para
estratégias duradouras, que extrapolem o tempo de um presidente ou partido no
poder. A julgar pelas movimentações dos últimos três meses, ainda que não seja
uma caminhada fácil, tudo indica que o governo está disposto a fazer bom uso da
política externa. ■

. . . . . . . . . . . . . desafios da política externa do terceiro mandato de lula . . . . . . . . . . . . . . 51


O bastidor da crise das
urnas eletrônicas

■R
 ubens Barbosa é diplomata, presidente do Instituto de Relações
Internacionais e Comércio Exterior (Irice) e foi embaixador em Londres
e Washington

Em junho de 2021, estava em meu escritório quando um telefonema me tornou


participante de um episódio que poderia ter influenciado e mudado a história
política brasileira, em vista da polarização e da crescente contestação do
funcionamento do sistema eleitoral por parte do então presidente Jair Bolsonaro.

Jose Luis Sandiucci, diplomata e assessor do Supremo Tribunal Federal (STF),


ligou-me dizendo que o ministro Luís Roberto Barroso, então presidente do
Tribunal Superior Eleitoral (TSE), queria falar comigo. Na conversa, o ministro
comentou que a empresa Positiva, que havia ganho a licitação para o fornecimento
das urnas eletrônicas para as eleições de outubro de 2022, informara que estava
havendo um problema com o fornecimento de componentes das urnas. Alguém
havia sugerido meu nome, talvez em função de eu ter sido embaixador em
Washington e manter bons contatos comerciais com empresas norte-americanas e
com a consultoria Albright Stonebridge, de Washington, para tentar resolver essa
questão. Pediu-me que conversasse com a Positiva para conhecer os detalhes e
saber se eu poderia ajudar com minha consultoria.

Qual era o contexto global em que a questão estava inserida? Em virtude da


pandemia e da mudança de hábitos de consumo, houve superaquecimento da
demanda por semicondutores e as empresas fornecedoras estavam atrasando as
entregas. Semicondutores estão presentes em produtos eletrônicos de grande
consumo como smartphones, videogames, computadores e indústria automotriz.

Conversei com a direção da companhia que me informou o problema que havia


surgido recentemente. Havia contrato com duas empresas, a americana Texas
Instruments e a taiwanesa Nuvoton, para fornecimento regular, até o final de
dezembro de 2021, dos componentes para a fabricação das urnas eletrônicas
destinadas à eleição presidencial de 2022. As entregas mensais, segundo os
contratos vigentes entre a Positiva e as empresas americana e taiwanesa,
permitiriam a fabricação das urnas que deveriam ser entregues ao TSE em

52 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . interesse nacional – abril – junho de 2023 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .


dezembro e em abril. Caso os contratos não fossem respeitados, a Positiva não
tinha como entregar as urnas nos prazos acertados com o TSE, colocando em risco
a realização da eleição de outubro de 2022. As quantidades entregues estavam
muito abaixo do que havia sido contratado e as perspectivas, segundo as conversas
entre as empresas, não eram nada favoráveis. Pedi tempo para pensar sobre a
possibilidade de ser contratado como consultor para ajudar a superar a dificuldade.

■ A polêmica do voto impresso

Naquele momento, em agosto, o conflito entre o presidente Bolsonaro e o


presidente do TSE ganhara dimensões que poderiam desembocar em uma crise
política nacional. O questionamento das urnas eletrônicas por parte de Bolsonaro
foi num crescendo desde janeiro, logo após o aniversário da tentativa de invasão
do Congresso norte-americano, com a declaração presidencial de que “se não
tivermos o voto impresso em 2022, uma maneira de auditar o voto, nós vamos ter
problema pior que o dos EUA”.

Nos meses seguintes, as declarações foram se tornando cada vez mais fortes. Em
agosto, a proposta do governo de voto impresso foi recusada pelo Congresso,
apesar da pressão sobre o legislativo com o desfile de veículos militares na
Esplanada dos ministérios, em meio ao crescente envolvimento do Ministério
da Defesa, convidado a participar de comissão para examinar a transparência e a
segurança das urnas eletrônicas. O TSE reagiu, abrindo inquérito para apurar as
acusações sem comprovação feitas pelo presidente sobre fraudes nas urnas e enviou
ao STF notícia crime pelo vazamento de informações de um inquérito sigiloso da
Polícia Federal sobre o ataque hacker sofrido pela corte eleitoral em 2018.

O ambiente, cada vez mais tóxico, ganhou contornos dramáticos no 7 de


setembro de 2021, com acusações e xingamentos aos ministros do STF e do TSE
e ameaças às instituições por parte de Bolsonaro. O questionamento das urnas
eletrônicas pelo presidente coincidiu com o momento mais delicado das gestões
que estávamos levando à frente, justamente para viabilizar a utilização delas nas
eleições de 2022.

Logo me dei conta do desafio que iria enfrentar e da responsabilidade de poder


ajudar a superar uma questão comercial com profundas repercussões políticas
no Brasil. Decidi, mais uma vez, enfrentá-lo, lembrando que nem tudo o que
enfrentamos pode ser mudado; mas nada pode ser mudado, se não for enfrentado.

Liguei para a Positivo, respondi afirmativamente o convite e combinei a forma de


nosso trabalho conjunto. A partir daí, começou uma ação de equipe com o TSE
e com a Positiva. Recebi todas as informações relevantes para poder traçar um

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . o bastidor da crise das urnas eletrôncas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53


plano que começaria imediatamente e seria desenvolvido com muita rapidez, em
vista dos prazos exíguos para a apresentação de resultados.

■ Os contatos e o empenho redobrado

Antes de fazer os primeiros contatos no exterior, decidi conversar com o então


ministro do Exterior, Carlos França, com quem tinha intimidade por ter sido ele
um colaborador próximo durante meu período como embaixador em Washington.
Resolvi contatá-lo para que soubesse por meu intermédio das gestões que iria
empreender no exterior e tentar buscar o apoio do Itamaraty para os contatos com
Taiwan. Em segundo lugar, para que ele soubesse da delicada questão das urnas, no
momento dos maiores ataques do presidente Bolsonaro ao TSE e às urnas eletrônicas,
e permitir que ele tomasse conhecimento das ações externas que eu iria deslanchar,
caso Bolsonaro o questionasse. Sabia das dificuldades que iria enfrentar no Itamaraty
não só pela atitude agressiva do presidente, como também pela cautelosa posição da
diplomacia, tendo em vistas as sensibilidades da China em relação a Taiwan.

Minha ideia era a de que eu buscaria identificar os interlocutores nos EUA e


em Taiwan para que o ministro Barroso, como a autoridade máxima na Justiça
Eleitoral, conversasse com as empresas para restabelecer o cronograma original de
entrega previsto nos contratos e para mostrar os problemas políticos que o atraso
poderia acarretar para o cumprimento dos prazos, a fim de dispor das urnas para a
eleição de outubro.

Ainda em junho, iniciei o trabalho contatando os ex-embaixadores dos EUA no


Brasil, Anthony Harrington e Tom Shannon, para pedir o apoio deles nos contatos
iniciais com a Texas Instruments. Feitos os contatos iniciais, identificamos
os possíveis interlocutores na companhia norte-americana. Procurei o então
embaixador dos EUA, muito próximo de Bolsonaro, indicado por Trump, Todd
Chapman, que, muito reticentemente, decidiu não se envolver diretamente, talvez
para não prejudicar seu acesso fluído ao presidente Bolsonaro.

No tocante a Taiwan, a situação era mais complexa. Como havia antecipado, a


máquina do Itamaraty preferiu não se envolver temendo reação da China. Meus
contatos com o responsável pelo Escritório Comercial do Brasil em Taipé, capital
de Taiwan, Miguel Magalhães, apesar de frequentes, não resultavam em avanços
concretos. O tempo passava e não conseguíamos identificar o interlocutor para
a conversa do ministro Barroso. Sandiuchi coordenado comigo, falava com o
represente comercial de Taiwan em Brasília.

Certo dia, já em agosto, Sandiucci me disse que o melhor era centralizar os


contatos com o Itamaraty por seu intermédio. Entendi imediatamente o recado:

54 . . . . . . . . . . . . . . . . . interesse nacional – outubro – dezembro de 2021 . . . . . . . . . . . . . . . . . . .


meus contados com a máquina burocrática do Itamaraty começavam a preocupar.
A partir daí, todas as iniciativas, por mim sugeridas, seriam tratadas por Sandiucci
junto ao Itamaraty e junto ao representante comercial de Taiwan. O representante
comercial taiwanês aproveitou para negociar a edição de carteiras de motorista
para seus funcionários, o que até então não tinha sido possível. A tática funcionou
e, finalmente em setembro, identificamos o vice-ministro das relações exteriores
de Taiwan, como a pessoa a ser contatada.

■ O acerto da ação coordenada

Depois de três meses de trabalho quase diário, de coordenação entre os contatos


da Positiva, das ações junto às empresas norte-americana e taiwanesa, tínhamos o
nome e o telefone das pessoas certas para serem contatadas.

O trabalho de negociação final foi feito pelo ministro Barroso, que conversou
com os interlocutores e obteve a promessa de que seria feito o melhor possível
para atender à pretensão brasileira. Restava aguardar a informação da ponta da
linha com a Positiva para ver se a indicação recebida por Barroso se efetivaria.
Enquanto isso, continuavam as gestões em Brasília.

Em setembro, começaram a surgir indicações de que todo o meu empenho


começava a frutificar. A Positiva recebia sinalização de que as quantidades
contratadas seriam retomadas, permitindo que, até dezembro, a quantidade de
urnas negociada com o STE pudesse ser entregue. Mesmo assim, o suspense
continuava até a materialização do fornecimento. A empresa dos EUA passou a
responder mais rapidamente e a aumentar o fornecimento. A empresa de Taiwan
demorou um pouco mais, mas também cumpriu o prometido e restabeleceu
as quantidades contratadas. Em outubro, foram cumpridos os prazos e as
quantidades. Com isso, a Positiva pôde entregar as urnas licitadas em dezembro
e em março, como negociado com o STE, assegurando a realização das
eleições.

Com a situação normalizada, em dezembro, dei por encerrado meu trabalho junto
à Positiva. Agradeci ao Sandiuchi e ao ministro Barroso a confiança e continuei a
acompanhar a crescente crítica do governo às urnas, inclusive com a participação
do Ministério da Defesa, envolvido pelo presidente no questionamento das urnas.

Apesar da sensibilidade dessas questões e do grande interesse do debate público


sobre as urnas, não houve vazamento para a grande mídia das dificuldades da
Positiva e do TSE. Uma única vez, jornalista da Folha de São Paulo enviou
pergunta à Positiva sobre o assunto e recebeu resposta minimizando a matéria.
Não insistiu.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . o bastidor da crise das urnas eletrôncas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55


Em fevereiro de 2022, recebi telefonema de amigo dizendo que acabara de escutar
o discurso de despedida do ministro Barroso da presidência do STE, em que ele
me citava nominalmente. Fui buscar o texto do discurso e, surpreso, verifiquei que
havia uma referência generosa ao meu trabalho. No contexto dos preparativos para
as eleições, o ministro Barroso mencionou os meses de tensão em que buscávamos
superar a escassez de semicondutores, em verdadeira competição internacional, para,
sem sobressaltos, conseguir a entrega pela Positiva de 225.000 urnas eletrônicas.
Fazendo referência ao trabalho diplomático para esse objetivo, agradeceu minha
“valiosa ajuda”. Em contato posterior, Barroso acrescentou que “o registro foi justo e
merecido. Sua atuação foi decisiva e somos muito gratos por isso”.

Nunca mencionei essa questão a ninguém. Havendo o ministro Barroso tratado


publicamente da possível falta das urnas eletrônicas em função de questões
globais, pareceu-me que seria importante registrar a forma como vários atores
trataram de um tema de grande sensibilidade e possível repercussão política.
O profissionalismo, a discrição e uma ação coordenada resultaram no desfecho
favorável do que poderia ter desaguado em crise política sem precedente.

Fico imaginando o que teria acontecido, se o trabalho que me foi atribuído não
resultasse efetivo. O assunto se transformaria em questão de segurança nacional.
A ausência do fornecimento das 225.000 para substituir urnas antigas poderia
criar problemas para a realização das eleições, talvez seu adiamento. O presidente
Bolsonaro poderia usar esse fato para aumentar suas críticas às urnas eletrônicas e
estimular uma crise institucional mais ampla.

Vários amigos me estimularam a fazer o registro de um fato isolado de nossa


história. Faço esse relato tendo presente, como ensinou Gabriel Garcia Marquez,
que a vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda e como recorda
para contá-la.

É assim que me recordo desse marcante episódio na minha já longa trajetória. ■

56 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . interesse nacional – abril – junho de 2023 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .


II N
N TT EE R E S S E
NACION
NACION AL
anoano16 14
• número
• número 6053
• janeiro
• abril –– junho
março2021
2023
www.interessenacional.com.br
www.interessenacional.com.breewww.interessenacional.com
www.interessenacional.com

Balanço da atuaçãoBolsonaro
do Brasil enoo Conselho
Centrão:
de Segurança
Novas Alianças, da ONU
Velhos Problemas
Carlos AlbertoHelena
FrancoChagas
França

A necessidade de um governo de
Bolsonaro: reconstrução
Armas, Ideologianacional
e Poder Cláudio Couto
Augusto de Arruda Botelho
Armadilhas ideológicas
Do America First para America IsRosenfield
Denis Lerrer Back:
Primeiros Dias da Diplomacia de Biden
Brasil tem pressa na pauta de meioRubensambiente
Ricupero
e mudança do clima
e Realpolitik
Biden Equilibra RetóricaEverton Vieira Vargas
na Política Externa
Desafios urgentes para o Ministério daIgor Defesa
Gielow
Eugenio Diniz
Governança Tecnológica é Central
2022: últimapara
chance de eleição
as Relações presidencial
Internacionais
sem candidato evangélico
Ronaldo Lemos
Juliano Spyer
Itaipu e o Desafio da Continuidade
Vinicius do Valle
José Luiz Alquéres
A política externa e o novo governo Altino Ventura Filho
Rubens Barbosa
Após 30 anos, Mercosul Requer
Reverso da fortuna: a volta
Freioda
deboa imagem
Arrumação
do Brasil Rubens
no mundo
Barbosa
Daniel Buarque
Fabiana Gondim Mariutti

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . titulo do capitulo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59
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