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Applebaum
veja.abril.com.br/paginas-amarelas/chegou-a-hora-de-regular-as-redes-sociais-diz-anne-applebaum
Por quê? Seria ingênuo subestimar que parte da população vibra quando Trump ou Jair
Bolsonaro conclamam a se ignorar a pandemia e a se rebelar contra as máscaras. A
mensagem é “não ouçam os médicos, é tudo bobagem”. Se você está com medo de ficar
doente e perder o emprego, traz alívio ouvir que é só uma gripe e logo passará. É uma
fuga da realidade.
Por que as teorias conspiratórias e as fake news são tão usadas por políticos
autoritários? As teorias conspiratórias e a desinformação são úteis para os populistas
porque minam a fé das pessoas nas instituições, na imprensa e na sociedade civil. Elas
têm especial apelo para uma parte da população que se sente esmagada pelo turbilhão de
informações despejado pela internet. Vivemos numa era em que as pessoas ouvem, leem e
assistem a muita coisa sem saber como separar fatos de mentiras. Elas buscam
desesperadamente quem simplifique o que não lhes faz sentido, e se tornam presas das
campanhas de ódio.
Em contraponto ao populismo de extrema direita, vemos hoje um
radicalismo dos movimentos identitários ligados à esquerda. Os extremos
ideológicos se atraem? Sem dúvida. Estamos diante de uma espiral de extremismos: o
radicalismo da direita atiça o radicalismo na esquerda, e ambas redobram sua
intolerância. Os radicais fizeram da política um terreno de debates irreconciliáveis, em
vez de focar no essencial, as pautas que unam as pessoas.
Páginas Amarelas
“Nosso estudo no Brasil mostra que problemas educacionais explicam dois terços das
diferenças salariais entre brancos e não brancos nas empresas. Já o terço restante pode ser
racismo mesmo”
O senhor realizou estudos sobre o Brasil. Por que escolheu o país para
realizá-los? O Brasil é interessante para fazer experimentos naturais. No que diz
respeito a mercado de trabalho, minha área de interesse, tem dados muito bons sobre o
setor formal. E é um país incomum, pois tem uma fração muito grande de trabalhadores
não brancos. Foi um dos maiores países a receber escravos no mundo e é um país onde
mais da metade da população não é branca. Então, posso olhar para uma empresa e
verificar nessa empresa em uma determinada categoria de idade e escolaridade de
trabalhadores, ou em uma determinada categoria salarial, quantos dos trabalhadores são
brancos e não brancos. A partir disso, poderíamos ver como seria a evolução das pessoas
na empresa. Essa é a base do trabalho que escrevemos.
Que conclusões tirou desses dados? Algumas dessas descobertas, acredito, são
bastante conhecidas no Brasil. A educação é um fator de extrema relevância no mercado
de trabalho brasileiro, e os trabalhadores não brancos têm uma educação mais baixa.
Muitas pessoas já sabiam disso. Mas, pelos dados, pudemos constatar que as diferenças
salariais entre brancos e não brancos provocadas pelas disparidades em educação se
aplicam a dois terços dos casos. O terço restante pode ser creditado ao racismo puro e
simples. Ainda assim, a questão da raça no Brasil é fascinante.
No Brasil, discute-se sobre o que é mais importante para uma pessoa negra
conseguir um bom emprego. Seus estudos podem realmente medir isso?
Diferenças raciais estão presentes, mas não são enormes, como seriam nos Estados
Unidos nos anos 1950. Nesse momento, tenho dois alunos do Brasil que têm trabalhado
em algo realmente muito interessante. Eles encontraram uma maneira de descobrir a raça
dos donos das empresas no Brasil. Podem dizer se é branco, não branco ou mestiço. Eles
mostraram que há diferenças bastante grandes e que, se você não é branco, é bom ter um
empregador não branco também.
Como vê a economia brasileira hoje? Não tenho acompanhado com atenção, mas eu
usaria como métrica a relação de imigração entre Brasil e Portugal. É algo realmente
interessante, porque esses dois países têm muitas ondas migratórias, de um lado para o
outro. Se o Brasil está indo bem e Portugal está indo mal, então, todos os brasileiros
voltam. Mas se o Brasil está indo mal, e Portugal está indo bem, então todos vão para
Lisboa. Há outros países assim. A Austrália e a Nova Zelândia, por exemplo. Eles estão
conectados; é fácil ir e vir. E isso é ótimo. Há alguns países que têm essa relação com a
Espanha, como o Uruguai. Eu sempre simpatizo com os trabalhadores, para dizer a
verdade. Eu cresci em uma família pobre, pude ir para a faculdade e me mudar para os
Estados Unidos. Portanto, sempre sinto que seria bom se essas pessoas pobres tivessem
algumas oportunidades melhores. Isso é o que os economistas chamam de “votar com os
pés”.
Ou seja, mesmo no futuro, será difícil chegar a tais conclusões? Para medir
isso, seria preciso estar agora em campo, registrando cuidadosamente a aplicação da lei —
e isso não acontece. Em dez anos, não nos lembraremos mais, não teremos registros
disso.
Como muitas crianças cubanas, o sonho de Leonardo Padura, 66 anos, era ser jogador
de beisebol. Aí um vizinho o presenteou com um exemplar da Ilíada, que o empurrou
para a escrita, para o jornalismo e, posteriormente, para a literatura. Citado entre os
principais escritores da atualidade, Padura mora em Havana e fez de sua série de livros
policiais, em que o investigador Mario Conde desvenda crimes pelas ruas da capital, uma
espécie de fresta na cortina do regime comunista por onde os leitores conseguem
enxergar a vida na ilha. Crítico da lentidão do regime em promover mudanças que
atenuem a crise de abastecimento e permitam a liberdade individual, ele acaba de lançar
no Brasil o romance Como Poeira ao Vento (editora Boitempo), em que trata da saída em
massa de cubanos do país. Nesta entrevista, via ligação de WhatsApp, Padura desabafa:
“Lamento que sempre tenha de falar tanto de política e tão pouco de literatura, mas sinto
que tenho uma obrigação cívica de fazê-lo”
Como o governo deveria lidar com esse anseio por mudança? Se eu estivesse no
poder, faria logo as mudanças, porque elas têm de acontecer, de uma forma ou de outra.
Um dia desses acordei cedo, umas 5 da manhã, e escutei vozes na rua. Eram pessoas se
organizando em fila para ver o que haveria para comprar em uma loja na esquina da
minha casa, que abre às 9 horas. Para estar lá naquele horário, tiveram de dormir em
portais, escadas, até em árvores, para escapar do toque de recolher imposto pela Covid-
19. Há filas assim por toda a cidade, gente querendo comprar o que aparecer. Isso já dura
quase dois anos.
Como esse enredo desandou? Um fator da engrenagem que se revelou falho desde o
princípio foi o econômico. A antiga União Soviética se desenvolveu e sobreviveu graças à
exploração de recursos naturais disponíveis em seu imenso território. Criou-se, desse
modo, uma sociedade viável economicamente. Mas no plano social e político ela
demonstrou-se um gigante com pés de barro, de alicerce frágil. É preciso encontrar
alternativas para implantar um projeto que dissolva as desigualdades sem empobrecer
ainda mais as pessoas nem lhes tosar a liberdade. Pode soar utópico, mas à humanidade
cabe sonhar e não se dobrar à realidade dada, que não é boa.
Seu livro trata do exílio dos cubanos. A saída maciça de pessoas do país é
uma ferida aberta? Reflito muito sobre essa diáspora. Trata-se de uma situação que
vem se repetindo ao longo de toda a história cubana. Muita gente deixou a ilha nos
últimos 200 anos e até hoje não havia nada escrito sob a perspectiva da minha geração.
Como homem das letras, portanto, deixo a contribuição sobre esse capítulo que acaba por
afetar a todos. O livro fala do exílio, mas também da permanência e da amizade que se
sobrepõem à distância física, sentimental, e às divergências. É justamente esse elo, que se
mantém firme, acima das discordâncias, o que nos salva de uma ruptura total.
Como é a relação dos que saíram com Cuba? Conheço gente que mora há décadas
em Miami ou na Espanha e fala, come e vive como cubano. Mesmo sabendo que não vão
regressar, essas pessoas preservam a cultura viva, o que me parece característico de
grupos com uma identidade bem definida. Na cidade de Hialeah, no sul da Flórida, a
chegada de cubanos para trabalhar em pequenas indústrias, chamadas factorias, mudou
a paisagem. Eles foram abrindo cafés, restaurantes, salões de cabeleireiro, iguais aos da
terra natal, e criou-se ali uma espécie de Cuba artificial em território americano. O grupo
dos que se foram abarca também, claro, gente que não consegue nem mais ouvir falar da
ilha.
O que, afinal, fez com que tantas pessoas debandassem? O principal fator foi a
crise política e social dos anos 1990, quando a antiga União Soviética se esfacelou e
deixou de dar ajuda financeira a Cuba. Começou a faltar tudo e a esperança também ficou
escassa. Em 1994, aproveitando uma decisão temporária do governo de abrir as
fronteiras, milhares partiram, cruzando o mar em todo tipo de embarcação, na direção
dos Estados Unidos. A crise dos balseiros, como ficou conhecida, foi o pior momento
desse processo, mas o gotejamento populacional prosseguiu, motivado sobretudo por
questões econômicas.
Quem mais recorre ao exílio atualmente? São pessoas que têm recursos para viajar
ao exterior: cientistas, artistas, esportistas. Recentemente, metade de uma equipe de 24
jogadores de beisebol não retornou a Cuba. É um número horripilante, que expõe as
feridas do país.
Existe um paralelo entre a crise atual e a dos anos 1990? Os efeitos são
semelhantes, mas as causas são distintas. Há três décadas fomos afetados pelo
desmoronamento do socialismo no mundo, um fenômeno inevitável. Hoje vivemos uma
pandemia universal, na qual as restrições de mobilidade e a necessidade de isolamento
social se somaram às imensas carências já existentes. A economia cubana é deficiente,
não tem sido capaz de gerar riquezas e ainda sofre os efeitos do embargo econômico dos
Estados Unidos. O momento é de cansaço histórico. E o que vejo é um povo farto de
esperar por uma ação das autoridades.
Fidel Castro morreu e seu irmão Raúl se afastou dos cargos públicos. O
poder mudou verdadeiramente de mãos? Não. As pessoas são outras, mas o
sistema segue igual e Raúl Castro ainda tem a última palavra nas grandes decisões. Este é
um governo da continuidade.
“Tenho obsessão por temas como liberdade e a condição humana, mas não acho que uma
obra deva se converter em um panfleto político. O que gosto mesmo é de falar de beisebol e
cinema”
Sua obra é vista como uma fresta na cortina de ferro, por onde os leitores
entendem um pouco do que ocorre na ilha. Considera escrever um ato
político? Para mim, é antes de tudo uma necessidade espiritual que se desenvolve por
meios estéticos. Tenho obsessão pessoal por temas como liberdade e a condição humana,
mas não acho que a obra deva se converter em uma peça política, um panfleto. O que
gosto mesmo é de falar de beisebol, de literatura e cinema, como Paul Auster, a quem
tanto admiro. Ambos retratamos a realidade de nossa cidade natal: eu, Havana; ele, Nova
York. Mas uma maldição acaba sempre nos obrigando a voltar à política.
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Cuba
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Temos no Brasil uma boa rede de proteção social, mas o problema é que
lidamos com um setor informal muito grande. Com a pandemia, começou-se
a pensar em apoio mais permanente do Estado. A discussão que está
surgindo é sobre se devemos buscar alguma forma de renda básica universal
em vez de programas mais direcionados. Ou se devemos recorrer a ambos.
Qual a sua visão sobre esse assunto? Não sou realmente um fã de renda básica
universal, embora seja a favor de redes de proteção social. Mas a renda básica universal é
algo bem distinto disso. Ela ganhou força porque tanto a direita quanto a esquerda
adoram. O que, aliás, me faz pensar que deve haver algo errado nisso. Mas, na verdade, o
que está errado é que, nos Estados Unidos, esses grupos têm visões muito diferentes do
que seja de fato um programa de renda básica universal. As pessoas da direita querem
adotá-la, mas desde que se acabe com o resto da rede de segurança. Isso empobreceria
muitas pessoas, além de deixar desassistidos os que estão precisando de ajuda urgente.
Do outro lado, a esquerda quer ir além, criar um benefício universal e ampliar a rede de
segurança atual, o que é extraordinariamente caro. Embora os dois lados defendam a
renda básica universal, no fundo eles estão falando sobre coisas muito diferentes.
Uma questão muito interessante em seu trabalho é não apenas olhar para a
falta de igualdade ou de mobilidade, mas manter o foco em buscar a origem
da desigualdade. Pode nos falar sobre sua visão a respeito da origem da
desigualdade? Gosto de comparar as pessoas ricas da América com as da Europa. Aqui
existem pessoas como o criador da Amazon, Jeff Bezos, o da Microsoft, Bill Gates, todos
os nomes do Google, Mark Zuckerberg, e assim por diante. Todos eles fizeram alguma
coisa. Já na Europa, há figuras como oligarcas russos e pessoas desse tipo. Então, há uma
espécie de distinção entre o que você pode chamar de “fazedores” de um lado e
“tomadores” de outro. Se a desigualdade surge porque as pessoas inventam coisas que
ajudam a todos nós, e Bezos seria o exemplo mais óbvio, as pessoas se ressentem muito
menos, pois o que ocorre nesses casos é basicamente um alinhamento de benefícios
sociais com benefícios privados. Mas elas ficam muito infelizes se a desigualdade vem por
práticas desleais ou corrupção, ou de lobbies no Congresso para conseguir privilégios,
como uma licença exclusiva para fazer algo que torna determinados grupos muito, muito
ricos. As pessoas ficam muito infelizes nesses casos. Anne e eu temos olhado, por
exemplo, os dados de mortalidade por Covid e vimos que, para se proteger da doença, um
diploma universitário é quase tão bom quanto a vacina. Na pandemia, o mercado de ações
atingiu níveis incríveis e nossos portfólios estão subindo vertiginosamente. Estamos
sentados em casa, trabalhando com segurança no zoom. Já as pessoas sem diploma
universitário e baixa escolaridade que estão lá fora, trabalhando nas lojas ou nas fábricas
de alimento, estão morrendo. Então, é como se metade da população estivesse morrendo
enquanto a outra metade está enriquecendo. Você começa a pensar que talvez a
desigualdade por si só seja o problema, não importa se as fortunas venham de origens
conhecidas.
Uma outra questão, que tem a ver com organizações como o Instituto
Mobilidade e Desenvolvimento Social, que está trabalhando com políticas
públicas baseadas em evidências, é que se tem dado muita ênfase a
experimentos de controle randomizados, ou seja, que usam grupos de
controle para avaliar as políticas e assim por diante. Lembro-me bem de
quando trabalhávamos no Banco Mundial e você fez uma observação que eu,
então no governo brasileiro, achei que era a chave de tudo. Você dizia que
tudo que fazemos deve ser avaliado permanentemente. Isso foi há vinte anos.
E hoje, estamos indo longe demais na obsessão por esses experimentos? Eu
não desisti da política baseada em evidências. Mas a questão é verificar se os
experimentos de controle randomizados estão de alguma forma sendo supervalorizados.
Se são de fato a única forma de fazer as coisas. Tem-se opiniões extremas. Pessoas que
dizem que, se não teve um experimento de controle randomizado, não deveríamos sequer
prestar atenção no assunto, o que é obviamente um absurdo. Cito um exemplo: nós todos
acreditamos no efeito positivo da educação sem que tenhamos precisado de estudos
randômicos para isso. Tomamos aspirinas quando sentimos uma dor de cabeça, o que
também nunca teve um experimento de controle randomizado. Tais experimentos são
bons em alguns casos, mas você sempre tem de prestar atenção. Entender o que vai
acontecer quando uma coisa que funcionou durante algum tempo sob determinadas
circunstâncias para um grupo de controle for aplicada na totalidade. É preciso integrar os
achados à economia ao longo do caminho. É óbvio que acho uma boa ideia que as vacinas
que recebi no braço tenham sido testadas em um experimento. Mas provavelmente
poderiam ter sido projetadas sem randomização. Há uma “santidade” atribuída à
randomização. Uma obsessão quase religiosa. É uma coisa que devemos usar quando for
útil, mas não é o Santo Graal.
Seu novo livro tem como cenário o golpe militar na Guatemala em 1954, com
apoio dos Estados Unidos, para proteger interesses de uma exportadora de
bananas. A América Latina ainda sofre do complexo da “República
Bananeira”? Não vejo mais essa ameaça. Temos de lembrar que eram tempos da Guerra
Fria, do macarthismo, de temor americano pelo modo como a União Soviética ganhava
aliados em vários continentes. Hoje, os Estados Unidos são mais respeitosos com a
América Latina, e inclusive têm interesse econômico no progresso da região. Os tempos
mudaram.
“No momento, a luta é contra a pandemia. Mas, cedo ou tarde, será preciso investigar qual
papel a China desempenhou nesse contexto. Um dia as pessoas vão saber o que se passou
em Wuhan”
Faz sentido temer que a invasão da Ucrânia pela Rússia se transforme na III
Guerra Mundial? As pessoas deveriam mesmo estar razoavelmente preocupadas com a
situação, porque ela representa um perigo enorme. É uma grande quebra da tendência de
paz dos últimos 75 anos. É, afinal, o primeiro conflito bélico entre países da Europa desde
o fim da II Guerra, tirando a invasão da Hungria, em 1956, pela União Soviética. Se a
Rússia anexar a Ucrânia, seria a primeira vez que um Estado reconhecido globalmente
deixaria de existir por meio de uma conquista desde os anos 1940. Também é primeira
grande guerra entre países fora do Oriente Médio e da África.
A sociedade não deveria criar barreiras para frear o ímpeto de líderes desse
tipo? Nos sistemas políticos bem desenvolvidos, há garantias para impedir que pessoas
com essa personalidade tomem conta do país. Claramente, nem sempre funcionam, e elas
certamente não são usadas na Rússia. O resultado é uma única pessoa tomando decisões
que podem levar a milhares de mortes. O exemplo de Putin mostra como os objetivos de
alguns líderes podem não ser materiais, como território ou recursos. Putin sacrificou tudo
em favor de prestígio.
Deu-se uma guerra, que tirou parte da atenção global da Covid-19. E temos,
agora, dois imensos problemas globais. Como explicar o comportamento
ambíguo da sociedade na pandemia? Alguns dos impedimentos ao pensamento
racional incluem intuições humanas básicas que provavelmente foram úteis ao longo da
evolução mas que acabaram substituídas pela compreensão científica. Veja as vacinas.
Elas consistem na introdução de um patógeno dentro do organismo. Sempre foi algo
contraintuitivo, e sofreu oposição desde que surgiu. Mas as pessoas são vacinadas porque
superam essa barreira intuitiva a partir da confiança na medicina, na ciência e nos
governos.
Já ouvimos frases como “os seres humanos são irracionais”. Afinal, somos
racionais ou irracionais? Somos bastante racionais a respeito das necessidades
práticas de nossa vida cotidiana. A maioria das pessoas consegue manter seus trabalhos,
se alimentar e educar os filhos. Mas, quando se trata de crenças, digamos, cósmicas,
históricas ou políticas, é aí que vemos a irracionalidade entrar em cena. Acreditamos em
coisas não porque elas são verdadeiras ou falsas, mas porque elas são moralmente
edificantes. Além disso, nós não somos tão racionais quanto poderíamos ou deveríamos
ser. A racionalidade tende a se misturar com nosso conhecimento cotidiano, nossos
sensos comuns. Podemos expor áreas da irracionalidade humana se você as desafia com
argumentos vindos de dados governamentais, reportagens sérias e estudos científicos.
Dono de um invejável currículo que junta passagens por templos do conhecimento como
Oxford, Cambridge e Stanford, o historiador escocês Niall Ferguson, 56 anos,
atualmente membro-sênior da Universidade Harvard e professor visitante na
Universidade Tsinghua, em Pequim, é um dos mais requisitados analistas da atualidade.
Para tanto, se vale da profunda erudição de quem escreveu mais de quinze livros sobre
política e economia, entre eles sucessos como A Ascensão do Dinheiro, Império (sobre a
expansão colonial britânica), Colosso (sobre o imperialismo americano) e O Horror da
Guerra (sobre a I Guerra Mundial) para lançar luz sobre os fatos atuais. É o caso da
recente derrota sofrida pelo presidente americano Donald Trump e seu impacto no resto
do mundo. Republicano, conservador e ex-conselheiro do senador e candidato a
presidente John McCain (1936-2018), vencido por Barack Obama no pleito de 2008,
Ferguson discorda da visão de que Trump é um extremista de direita. Da mesma forma,
relativiza o papel do americano em servir de modelo a outros líderes populistas ao redor
do mundo, como Jair Bolsonaro. Para ele, Trump cometeu erros e pagou por eles nas
urnas, mas acertou em alguns pontos como captar os anseios de uma considerável parcela
dos americanos e mudar a visão que outras potências ocidentais têm da China. “Os
europeus estão felizes de ver Trump pelas costas, mas, ironicamente, graças a ele
perceberam que deveria haver uma mudança de abordagem com os chineses”, avalia na
entrevista a seguir.
Por que ele deveria ter esse tipo de preocupação? Joe Biden não foi eleito porque
achavam que ele tinha a melhor chance de vencer, era o mais inteligente ou o mais jovem,
mas porque se mostrou a opção mais segura para os americanos em um momento
desafiador. Trump cometeu uma série de erros que lhe custaram a eleição. Ele se colocou
à frente e ao centro da resposta à pandemia — e desagradou aos eleitores com suas
posições equivocadas. Lançou calúnias sobre o sistema eleitoral americano, alienou
eleitores do sexo feminino e mais jovens. Além disso, não conseguiu obter do Congresso
apoio a sua política fiscal nos meses que antecederam à eleição. Sua performance no
primeiro debate foi um desastre.
A China tem a real capacidade de tomar o posto dos Estados Unidos de maior
potência mundial? Em termos de produto interno bruto, a China está alcançando os
Estados Unidos a cada ano, porque a sua economia cresce mais rápido do que a
americana. Mas é difícil prever onde estaremos daqui a dez anos. Em algum momento,
veremos uma redução na taxa de crescimento chinês. O país tem problemas muito sérios
como o envelhecimento de sua população e a grande dívida do setor privado. Não
sabemos se os chineses conseguem manter uma taxa de crescimento de cerca de 5% por
muito tempo. Minha suspeita é que ficará em torno de 2% a 5% nos próximos anos.
Pessoalmente, acho que as pessoas estão superestimando a sustentabilidade do modelo
chinês e veremos a sua economia crescendo a taxas muito menores na próxima década.
Isso pode significar que a China nunca alcançará os Estados Unidos.
Quer dizer que Hollywood faz o contrário, não leva o espectador a pensar
sozinho? Não só Hollywood, mas o cinema de hoje. Sou um saudosista do cinema do
passado. Foi um período maravilhoso. Meus amigos e eu esperávamos ansiosos pelo
próximo filme francês, sueco, italiano que entraria em cartaz. Hoje, os roteiros apostam
em soluções falsas, reviravoltas estúpidas e finais que não confrontam o espectador.
Claro, ainda existem os cineastas que podem ser chamados de artistas, mas eles estão
passando por um momento difícil.
Difícil em que sentido? Filmes são caros de fazer. Um cineasta não consegue realizar
sua arte sozinho, como um músico que compra um instrumento e começa a tocar por aí.
Ou um escritor que não precisa de muito dinheiro para escrever um livro — apenas o
suficiente para não morrer de fome, claro. Já o cinema demanda uma estrutura, uma
equipe, e milhões e milhões de dólares. Por isso, um filme se tornou um produto. Se a
estimativa de bilheteria não for alta o suficiente, como é o caso dos filmes de arte, é difícil
encontrar quem queira investir no seu projeto.
Essas dificuldades não são tão antigas quanto o cinema de arte? Não, a lógica
não era assim nos anos 1960 ou 1970, quando alguns milhões em bilheteria eram
suficientes para sustentar uma produção. Mas, quando a indústria de Hollywood
descobriu que era possível passar de 1 bilhão de dólares em faturamento, isso mudou
tudo. Afinal, por que gastar tempo e dinheiro em uma produção para poucos
espectadores, se é possível lucrar alto com outros títulos?
Para alguém que há cinco décadas faz um filme por ano é difícil imaginar que
o senhor queira eventualmente se aposentar. Pensa nisso após completar
estes cinquenta filmes no currículo? Sempre achei que faria filmes enquanto eu
vivesse, mas vai saber. Especialmente nesse momento em que o tipo de filme que faço fica
apenas três semanas em cartaz para, em seguida, ir para o streaming. Ou pior: é lançado
na TV e no cinema ao mesmo tempo. Não, eu não quero isso.
Por quê? Sou do tempo em que um filme não era sufocado pelos arrasa-quarteirões e
ficava em cartaz nos cinemas por tempo suficiente para crescer no boca a boca e atrair a
atenção das pessoas. Isso demora, pois são filmes com verbas pequenas, que não gastam
milhões em marketing. É um público que vai ao cinema porque quer, é intencional, não é
uma escolha aleatória na TV.
Mas o senhor é um diretor renomado, uma grife que atrai a atenção. Acha
que seu público diminuiu? O que mudou foi a lógica do mercado. Não importa se
você é o Steven Spielberg, ou o Martin Scorsese, ou o Woody Allen. Tudo agora vai direto
para o streaming. Quando comecei, não era esse o acordo, não era esse o plano. Ficar em
casa de pijama, com a família, alguns amigos e ligar a TV é legal, mas esse é outro tipo de
experiência. No cinema, você sai de casa, se arruma, entra numa sala com desconhecidos
e compartilha emoções, se surpreende, fica até o final. Não pega o controle e interrompe o
filme do nada porque, enfim, quer ir ao banheiro ou fazer pipoca. Você organiza sua
agenda para se adequar à ida ao cinema, e não o contrário. Eu entendo, ver um filme em
plataformas de streaming é mais cômodo e mais barato. Mas, desse jeito, será o fim do
cinema como o conhecemos. Então não tenho certeza se quero continuar trabalhando
nesse esquema.
Por que o senhor vê essas inquietações com ceticismo? Uma pessoa, por
exemplo, pode pensar: morrer vai terminar com os problemas da vida, me dará
tranquilidade. Outras vão dizer: vou sentir tanta falta deste mundo, das coisas boas da
vida, não quero morrer. Há também os que tecem discursos religiosos para falar sobre o
fim da vida e o começo de outra. Mas tudo isso não passa da nossa divagação intelectual.
O ser humano é biologicamente programado para resistir à morte. Podemos tagarelar
quanto for sobre o assunto, mas reagir e manter a espécie viva está no nosso DNA. Então
meu falatório, no fim das contas, não serve de nada. Se alguém chega a um lugar com
uma arma, você imediatamente tenta se proteger, quer reagir ou fugir. É natural resistir à
morte, e eu continuo a fazer isso.