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‘Chegou a hora de regular as redes sociais’, diz Anne

Applebaum
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ANNE APPLEBAUM - Massimiliano Donati/Getty Images

A americana Anne Applebaum, de 56 anos, é estrela indisputável da intelectualidade


conservadora. Como jornalista, foi editora de dois tradicionais baluartes, as revistas The
Economist e The Spectator. Mas foi como historiadora que consolidou seu prestígio. Seus
estudos sobre os gulags, as temidas prisões soviéticas, e a fome da Ucrânia nos anos 30
renderam-lhe prêmios e expuseram os horrores do stalinismo. Em seu novo livro, O
Crepúsculo da Democracia (Record), narra em tom pessoal um novo fenômeno: a adesão
de muitos intelectuais às ideias autoritárias de governos populistas, dos Estados Unidos à
Polônia — seu marido, Radoslaw Sikorski, é um político e ex-ministro do país europeu.
Nesta entrevista a VEJA, ela fala sobre temas como as consequências da queda de Donald
Trump, a sobrevivência dos líderes populistas na pandemia e a chamada cultura do
cancelamento.

Em O Crepúsculo da Democracia, a senhora alerta sobre a escalada do


populismo e do autoritarismo no mundo. A derrota de Donald Trump não
sinaliza justamente o declínio dessa onda? É cedo para comemorar. A eleição de
Trump, em 2016, refletiu uma insatisfação latente com muitas coisas, inclusive com a
democracia e o sistema político. Apesar de sua derrota em 2020, o desapontamento com a
democracia ainda está vivo nos Estados Unidos, na Europa e em muitos outros países
com eleições livres, até mesmo no Brasil. As ideias autoritárias se alimentam de uma
insatisfação profunda de muitas pessoas com os rumos da vida moderna e as dramáticas
mudanças sociais e demográficas das últimas décadas. Esse mal-estar não sumirá com a
queda de Trump.

Por que a democracia liberal, que trouxe tanto progresso ao Ocidente,


passou a ser questionada? Por diversos motivos. Nos Estados Unidos, existe a
frustração de parte da população com as complicações para aprovar novas leis, e isso dá a
sensação de que o Congresso é inoperante. A polarização de nosso sistema político
também amplia a percepção de que o Estado não tem força. Se tudo se encontra
paralisado, por que não cogitar que uma liderança centralizada e autoritária possa fazer o
que os políticos não conseguem? Na maioria das democracias liberais, as pessoas também
passaram a achar que seus líderes, de quem esperam atitudes de mudança, não detêm o
controle do governo.

A invasão do Capitólio por apoiadores de Trump representou um risco real à


democracia americana? A invasão do Capitólio foi uma consequência palpável, e
perigosa, da polarização política. Aquela gente falava a sério ao proclamar que desejava
matar integrantes do Congresso. Eles não obtiveram êxito, felizmente, mas restaram
cinco mortos ao fim do caos. Não se tratava de republicanos atacando democratas, mas de
uma horda de loucos antissistema que tinham as instituições como alvo. Foi uma
explosão de toda a raiva insuflada ao longo de anos de polarização nas redes sociais.

Como restaurar os velhos dias de debate civilizado e racional? Não há caminho


de volta ao passado. Os países democráticos terão de reinventar o modo como se faz
política. Mas é interessante notar que essa chaga da polarização causa estragos não
apenas nos Estados Unidos, mas também no Brasil, na Polônia e nas Filipinas. Como
todos esses países não comungam a mesma cultura, fica claro que o fenômeno que une a
todos nas divisões radicais são as mudanças no ecossistema da informação — mais
especificamente, a influência das redes sociais.

Como lidar com os extremismos nas redes? Já chegou a hora de encarar a


necessidade de uma regulação pública das redes. Não se trata de remover ou censurar
conteúdos, mas de apoiar um crescente movimento pela adequação dos algoritmos das
plataformas ao interesse público. Hoje, a lógica das redes é dar relevância a qualquer
conteúdo que traga engajamento, e por isso viraram o paraíso das fake news e dos
discursos irracionais. Os algoritmos estimulam os usuários a fazer coisas deprimentes que
vemos hoje na internet. É preciso inverter a lógica, dando mais relevância àquilo que nos
une e à informação confiável.

Não há risco de um controle indesejado sobre a circulação de ideias? É claro


que essa regulação teria de ser feita por órgãos independentes, evitando o risco de
manipulação política, como fazem governos autoritários na Rússia e na China. Talvez seja
o momento, aliás, de pensar: por que, ao lado das redes que já existem, não pode haver
serviços públicos do gênero? Taiwan criou fóruns públicos de debate sobre problemas que
galvanizam a população, e a resposta das pessoas tem sido excelente.

Após a invasão do Congresso americano, o Twitter baniu o ex-presidente


Trump. Foi censura? É uma questão dificílima. O Twitter tem regras claras sobre as
condutas na plataforma. Já fazia tempo que Trump quebrava sistematicamente as regras.
Trump, porém, redobrou suas violações e chegou a um ponto inaceitável na invasão do
Capitólio. Um modo de auferir como prevaleceram o bom senso e a justiça é verificar o
que ocorreu depois que Trump foi banido: a veiculação de fake news sobre fraude nas
eleições americanas baixou dramaticamente. A democracia saiu ganhando.

Como a pandemia afeta o projeto de poder dos líderes populistas? A resposta


depende do grau de aceitação da sociedade à aposta do governante. Nos Estados Unidos,
Trump investiu no caos e no negacionismo, e errou feio. Em outros lugares, a pandemia
serviu de desculpa para ampliar as políticas autoritárias — foi o que fez Viktor Orbán na
Hungria. Agora, os líderes passaram a ser cobrados por sua capacidade de responder ao
clamor por vacinas. Alguns populistas, no entanto, tiram proveito do fato de que nem
todas as pessoas pensam assim — e isso se aplica ao Brasil.

Por quê? Seria ingênuo subestimar que parte da população vibra quando Trump ou Jair
Bolsonaro conclamam a se ignorar a pandemia e a se rebelar contra as máscaras. A
mensagem é “não ouçam os médicos, é tudo bobagem”. Se você está com medo de ficar
doente e perder o emprego, traz alívio ouvir que é só uma gripe e logo passará. É uma
fuga da realidade.

O negacionismo, então, não é uma escolha impensada? Longe disso. O


negacionismo pode ser popular. Ninguém quer ouvir que pode morrer, ou que terá de
passar meses trancado em casa e cancelar a festa de casamento. Instintivamente, Trump
captou o apelo disso. Como a maioria dos eleitores americanos pensava diferente, ele
acabou derrotado na eleição. Mas os negacionistas continuam sendo uma parcela ruidosa
da população. É trágico ver a insistência de Trump e Bolsonaro no uso da cloroquina. No
meio do horror das mortes, tudo o que ofereciam às pessoas era a crendice em uma droga
milagrosa. Não é à toa que o estrago do vírus tenha sido tão forte nos Estados Unidos e no
Brasil.

Por que as teorias conspiratórias e as fake news são tão usadas por políticos
autoritários? As teorias conspiratórias e a desinformação são úteis para os populistas
porque minam a fé das pessoas nas instituições, na imprensa e na sociedade civil. Elas
têm especial apelo para uma parte da população que se sente esmagada pelo turbilhão de
informações despejado pela internet. Vivemos numa era em que as pessoas ouvem, leem e
assistem a muita coisa sem saber como separar fatos de mentiras. Elas buscam
desesperadamente quem simplifique o que não lhes faz sentido, e se tornam presas das
campanhas de ódio.
Em contraponto ao populismo de extrema direita, vemos hoje um
radicalismo dos movimentos identitários ligados à esquerda. Os extremos
ideológicos se atraem? Sem dúvida. Estamos diante de uma espiral de extremismos: o
radicalismo da direita atiça o radicalismo na esquerda, e ambas redobram sua
intolerância. Os radicais fizeram da política um terreno de debates irreconciliáveis, em
vez de focar no essencial, as pautas que unam as pessoas.

Seus amigos intelectuais, políticos e jornalistas na Polônia foram da euforia


pós-comunista, nos anos 1990, à radicalização odiosa em questão de vinte
anos. O que provocou a mudança? Assim como os Estados Unidos e o Brasil, a
Polônia passou por tumultuadas mudanças econômicas, sociológicas e nas formas de
comunicação. E lá o caldo da polarização ganhou um veneno extra: o ressentimento de
intelectuais, pensadores e jornalistas que não se sentiam aquinhoados na democracia.
Muitos deixaram sua respeitável carreira para se tornar ideólogos do governo de extrema
direita do partido Lei e Justiça. É como se os perdedores tivessem de repente sua
vingança. O que os tornava ressentidos era a ausência de reconhecimento pelo status quo
acadêmico, e o fato de estarem à margem do poder. Deixei de ser amiga de muitos.

Pessoalmente, foi difícil enfrentar essa radicalização? Eu me desapontei com


muitos intelectuais que eram perfeitamente razoáveis e se converteram em estridentes
ideólogos do fundamentalismo católico que hoje domina a Polônia — o partido Lei e
Justiça praticamente eliminou qualquer chance de as mulheres fazerem aborto
legalmente e ataca a população LGBT. Há uma ex-conhecida acadêmica que tem um filho
gay e hoje, na condição de pensadora do regime, abraça a homofobia. É melancólico ver
uma mãe lutando por ideias que farão o próprio filho ser cada vez mais discriminado na
Polônia. Não consigo entender.

A senhora foi signatária da carta aberta dos intelectuais americanos


condenando a chamada cultura do cancelamento. Por que se engajou nisso?
Porque é muito feio o comportamento das gangues que perseguem as pessoas na internet.
É comum se apontar o cancelamento como um fenômeno da esquerda, que ataca quem
sai da linha politicamente correta, mas o fato é que ele existe também, de forma até mais
deletéria, na direita. E é assustador constatar que a violência on-line pode descambar
para agressões reais. Nos Estados Unidos, as ameaças radicais pró-Trump levaram um
congressista crítico do ex-presidente, Adam Kinzinger, a andar armado por temer pela
própria vida.

A senhora já foi cancelada? Na Polônia, fui alvo de campanhas muito ativas de


difamação. A TV estatal volta e meia propaga ataques contra mim e meu marido.
Espalharam até a falácia de que eu faria lobby contra os interesses do país no exterior. Já
me incomodei, mas aprendi a viver assim. Parei de me importar.

Publicado em VEJA de 3 de março de 2021, edição nº 2727


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Páginas Amarelas

“A política atrapalha”, diz David Card, vencedor do


Nobel de Economia
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David Card - Noah Berger/AP/Image Plus

Nascido em uma família humilde de pequenos fazendeiros, o economista canadense


David Card, 65 anos, se transformou em um improvável ganhador da maior honraria
acadêmica de sua especialidade: o Prêmio Nobel de Economia. Normalmente afeita à
consagração de grandes arcabouços teóricos, a Academia Real de Ciências da Suécia, em
2021, acabou optando por fugir a essa regra ao reconhecer o trabalho de Card, focado em
experimentos naturais, que são pesquisas a partir de situações do mundo real,
principalmente no que diz respeito aos impactos do salário mínimo, da migração e da
educação no mercado de trabalho. Professor da Universidade da Califórnia, em Berkeley,
Card dividiu o prêmio de cerca de 1,1 milhão de dólares com os colegas Joshua D. Angrist
e Guido W. Imbens, respectivamente do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT)
e da Universidade Stanford, que criaram metodologias para avaliar as relações de causa e
efeito na economia. Com mais de três décadas de carreira, Card tem peculiar interesse no
Brasil, alvo de um estudo de 2018 em que analisou a determinante racial dos salários nas
empresas. Um mês e meio depois de anunciado vencedor do Nobel, Card falou a VEJA,
por meio de conferência virtual, sobre o prêmio, suas pesquisas, o racismo no Brasil e
como vê as perspectivas econômicas do país.
Suas pesquisas sobre mercado de trabalho são muito influentes e ajudaram a
desenvolver as chamadas metodologias de experimentos naturais. O senhor
tinha a expectativa de ganhar um Nobel com elas? Não. O Prêmio Nobel de
Economia é sempre concedido às pessoas que fazem o que chamamos de pesquisa
metodológica, como criar um modelo teórico ou estatístico. Meus covencedores, Joshua
Angrist e Guido Imbens, tiveram o prêmio concedido por sua metodologia. Portanto, acho
que sou a primeira pessoa a ganhar um apenas por fazer estudos. Daí eu não ter jamais
imaginado que isso poderia acontecer.

Os estudos sobre mercado de trabalho são muito interessantes e importantes


para governos fazerem políticas de geração de empregos, mas nem sempre
têm o reconhecimento acadêmico, não? Nunca. Esse não é um campo muito
respeitado.

O senhor não vê a perspectiva de isso mudar? Um pouco, talvez, lentamente. Acho


que, no entanto, ainda prevalece a ideia de que a economia é em grande parte um assunto
teórico. Se você ler Adam Smith (1723-1790) ou John Maynard Keynes (1883-1946), tudo
é teoria. Há algumas provas casuais. Alguém pensa: “Isto deve ser verdade”. Essa tradição
ainda vive fortemente na economia. Os economistas mais respeitados estão trabalhando
em modelos bastante abstratos de coisas. Do meu ponto de vista, isso sempre foi um
problema, pois há muitos modelos e não há provas suficientes de quais estão certos ou
qual parte de cada um deles está certa. Mas, de qualquer forma, é mais estimulante
intelectualmente para a maioria das pessoas falar sobre o teórico. Por exemplo, as pessoas
gostam de falar sobre filosofia e religião.

Se eles se baseassem mais em dados e conseguissem demonstrar com mais


precisão o que é causa e consequência, como é o caso dos experimentos
naturais, os economistas poderiam mudar a sociedade? Na realidade, em
economia, um estudo não costuma mudar muito a opinião de ninguém. Na verdade, nem
mesmo dez estudos costumam mudar ninguém. Ou mais verdade ainda, a maioria das
pessoas nunca muda sua opinião. Em vez disso, o que acontece é que, com o tempo, talvez
os mais jovens tenham a mente um pouco mais aberta do que os mais velhos, então, eles
começam a procurar respostas para novos problemas.

“Nosso estudo no Brasil mostra que problemas educacionais explicam dois terços das
diferenças salariais entre brancos e não brancos nas empresas. Já o terço restante pode ser
racismo mesmo”

O senhor realizou estudos sobre o Brasil. Por que escolheu o país para
realizá-los? O Brasil é interessante para fazer experimentos naturais. No que diz
respeito a mercado de trabalho, minha área de interesse, tem dados muito bons sobre o
setor formal. E é um país incomum, pois tem uma fração muito grande de trabalhadores
não brancos. Foi um dos maiores países a receber escravos no mundo e é um país onde
mais da metade da população não é branca. Então, posso olhar para uma empresa e
verificar nessa empresa em uma determinada categoria de idade e escolaridade de
trabalhadores, ou em uma determinada categoria salarial, quantos dos trabalhadores são
brancos e não brancos. A partir disso, poderíamos ver como seria a evolução das pessoas
na empresa. Essa é a base do trabalho que escrevemos.

Que conclusões tirou desses dados? Algumas dessas descobertas, acredito, são
bastante conhecidas no Brasil. A educação é um fator de extrema relevância no mercado
de trabalho brasileiro, e os trabalhadores não brancos têm uma educação mais baixa.
Muitas pessoas já sabiam disso. Mas, pelos dados, pudemos constatar que as diferenças
salariais entre brancos e não brancos provocadas pelas disparidades em educação se
aplicam a dois terços dos casos. O terço restante pode ser creditado ao racismo puro e
simples. Ainda assim, a questão da raça no Brasil é fascinante.

Fascinante em que sentido? Há uma longa história de estudos sobre o assunto. O


primeiro sobre esse tema foi realizado nos anos 1970, mas, durante a ditadura, foi
suprimido. Era um estudo muito bonito, mas que não foi analisado por quatro anos. De
qualquer forma, existe uma longa tradição de estudos raciais no Brasil, que vem desde um
famoso sociólogo dos anos 1930 (Gilberto Freyre). A percepção brasileira sobre a
mestiçagem era de que todas as pessoas vão ficando mais brancas. Essa é uma maneira de
colocar as coisas. É o ponto de vista oposto ao dos americanos. Eles têm uma visão
estranha — eu não sou americano, nasci no Canadá — de que, se você é um oitavo negro,
você é negro. A raça branca, para eles, é uma coisa muito fraca e frágil, e uma pequena
dose de raça negra faz de você um negro. Enquanto a visão oposta foi mais exposta no
Brasil desde a primeira metade do século XX. Numa família negra, se a filha se casasse
com um homem branco, ou vice e versa, talvez os descendentes fossem considerados
brancos. De certa forma, é uma visão mais otimista, por se esperar que sofrerão menos
racismo.

No Brasil, discute-se sobre o que é mais importante para uma pessoa negra
conseguir um bom emprego. Seus estudos podem realmente medir isso?
Diferenças raciais estão presentes, mas não são enormes, como seriam nos Estados
Unidos nos anos 1950. Nesse momento, tenho dois alunos do Brasil que têm trabalhado
em algo realmente muito interessante. Eles encontraram uma maneira de descobrir a raça
dos donos das empresas no Brasil. Podem dizer se é branco, não branco ou mestiço. Eles
mostraram que há diferenças bastante grandes e que, se você não é branco, é bom ter um
empregador não branco também.

Como vê a economia brasileira hoje? Não tenho acompanhado com atenção, mas eu
usaria como métrica a relação de imigração entre Brasil e Portugal. É algo realmente
interessante, porque esses dois países têm muitas ondas migratórias, de um lado para o
outro. Se o Brasil está indo bem e Portugal está indo mal, então, todos os brasileiros
voltam. Mas se o Brasil está indo mal, e Portugal está indo bem, então todos vão para
Lisboa. Há outros países assim. A Austrália e a Nova Zelândia, por exemplo. Eles estão
conectados; é fácil ir e vir. E isso é ótimo. Há alguns países que têm essa relação com a
Espanha, como o Uruguai. Eu sempre simpatizo com os trabalhadores, para dizer a
verdade. Eu cresci em uma família pobre, pude ir para a faculdade e me mudar para os
Estados Unidos. Portanto, sempre sinto que seria bom se essas pessoas pobres tivessem
algumas oportunidades melhores. Isso é o que os economistas chamam de “votar com os
pés”.

Então, a quantidade de brasileiros morando em Lisboa hoje indica que as


coisas não estão boas? Eu realmente não sei o suficiente para fazer um comentário
inteligente. Eu só sei que as coisas não estão indo tão bem neste momento. O Brasil é um
país muito rico; há muita gente talentosa no país. Mas a Argentina também e a Argentina
sempre consegue estragar tudo. O Brasil nem sempre faz asneiras. Ele sobe e desce.
Tenho confiança em que eventualmente o país voltará ao bom caminho. A política no
Brasil é meio confusa e difícil. E talvez isso seja um obstáculo ao progresso. Também é um
obstáculo nos Estados Unidos.

No passado recente, a esperança no Brasil era de ficarmos mais parecidos


com os Estados Unidos, em que a política influenciasse menos a economia e
a vida das pessoas, mas parece que o contrário está acontecendo. Na verdade,
isso se passa em muitos países. Na Grã-Bretanha, é a mesma coisa. A política está se
tornando mais invasiva e provavelmente menos útil. Ela está atrapalhando. Não creio que
os economistas tenham feito muito progresso na compreensão disso.

Outro campo de estudo que parece promissor são os impactos da pandemia


nas economias. Acredita que os experimentos naturais estão sendo
utilizados para trazer respostas às perguntas mais importantes que
surgiram? Tenho certeza de que alguns estudos são muito bons e alguns são
problemáticos. A dificuldade é que todos os setores foram afetados, em alguma medida.
Portanto, não há um grupo de controle realmente bom para usar como referência para
comparações. A Covid é mais como um choque macro. Houve realmente um efeito
recessivo agregado, que às vezes afeta algumas indústrias, comunidades e tipos de
trabalhadores mais do que outros, mas todos foram afetados.

Então será muito difícil concluir que países adotaram as melhores


estratégias? Eu acho que sim. Por exemplo, para saber os reais impactos dos lockdowns
na economia, alguém dirá que tal cidade esteve em lockdown e isso a prejudicou ou não
em comparação a outra que não esteve. Muitas vezes o governo declara um lockdown,
mas é difícil provar o que aconteceu ali. Onde vivo, dizem que tivemos uma resposta
rigorosa contra a Covid. Na realidade, não foi bem assim.

Ou seja, mesmo no futuro, será difícil chegar a tais conclusões? Para medir
isso, seria preciso estar agora em campo, registrando cuidadosamente a aplicação da lei —
e isso não acontece. Em dez anos, não nos lembraremos mais, não teremos registros
disso.

Publicado em VEJA de 17 de novembro de 2021, edição nº 2764

Como muitas crianças cubanas, o sonho de Leonardo Padura, 66 anos, era ser jogador
de beisebol. Aí um vizinho o presenteou com um exemplar da Ilíada, que o empurrou
para a escrita, para o jornalismo e, posteriormente, para a literatura. Citado entre os
principais escritores da atualidade, Padura mora em Havana e fez de sua série de livros
policiais, em que o investigador Mario Conde desvenda crimes pelas ruas da capital, uma
espécie de fresta na cortina do regime comunista por onde os leitores conseguem
enxergar a vida na ilha. Crítico da lentidão do regime em promover mudanças que
atenuem a crise de abastecimento e permitam a liberdade individual, ele acaba de lançar
no Brasil o romance Como Poeira ao Vento (editora Boitempo), em que trata da saída em
massa de cubanos do país. Nesta entrevista, via ligação de WhatsApp, Padura desabafa:
“Lamento que sempre tenha de falar tanto de política e tão pouco de literatura, mas sinto
que tenho uma obrigação cívica de fazê-lo”

Em julho, os cubanos foram às ruas se manifestar, fato sem precedentes


desde o fim da injeção de dinheiro soviético nos anos 1990. O que precipitou
o histórico levante? Foi um grito alto da sociedade contra a crise social. Os
manifestantes se rebelaram em prol de mudanças econômicas, comida, melhores
perspectivas e, sobretudo, liberdade, que é item escasso. Surpreendeu todo mundo, já que
não havia uma liderança evidente. A indústria do controle sempre funcionou muito bem
no país e esse movimento espontâneo foi algo que as autoridades não esperavam. Agora,
costumam fazer uma leitura muito caricata do que se passa na ilha. Na verdade, os que
foram às ruas não eram nem mercenários nem jovens idealistas, mas pessoas brigando
por uma sobrevivência mais digna.

Como o governo deveria lidar com esse anseio por mudança? Se eu estivesse no
poder, faria logo as mudanças, porque elas têm de acontecer, de uma forma ou de outra.
Um dia desses acordei cedo, umas 5 da manhã, e escutei vozes na rua. Eram pessoas se
organizando em fila para ver o que haveria para comprar em uma loja na esquina da
minha casa, que abre às 9 horas. Para estar lá naquele horário, tiveram de dormir em
portais, escadas, até em árvores, para escapar do toque de recolher imposto pela Covid-
19. Há filas assim por toda a cidade, gente querendo comprar o que aparecer. Isso já dura
quase dois anos.

O senhor acha que o regime perdeu o rumo? A revolução é um processo histórico


que transformou a sociedade cubana, reformando o conceito de propriedade, as relações
sociais e as estruturas políticas. Mas o tempo passou, o mundo girou e o discurso
simplesmente não mudou. Durante muitos anos se pediu sacrifício, entrega e trabalho em
prol de um futuro melhor. Só que esse momento foi sendo adiado, adiado, e não chegou
para quase ninguém. Hoje em dia esse tipo de falatório não diz nada às pessoas,
principalmente aos jovens. Ele perdeu o sentido.

O socialismo foi incapaz de encarar os desafios do século XXI? Qualquer pessoa


com um espírito humanista apoia um projeto social que garanta o máximo de liberdade,
de democracia e de igualdade para todos. O socialismo prometia isso, mas não soube pôr
em prática. Como dizia um diretor de cinema cubano, “o roteiro é bom, o problema é
colocá-lo em cena”.

Como esse enredo desandou? Um fator da engrenagem que se revelou falho desde o
princípio foi o econômico. A antiga União Soviética se desenvolveu e sobreviveu graças à
exploração de recursos naturais disponíveis em seu imenso território. Criou-se, desse
modo, uma sociedade viável economicamente. Mas no plano social e político ela
demonstrou-se um gigante com pés de barro, de alicerce frágil. É preciso encontrar
alternativas para implantar um projeto que dissolva as desigualdades sem empobrecer
ainda mais as pessoas nem lhes tosar a liberdade. Pode soar utópico, mas à humanidade
cabe sonhar e não se dobrar à realidade dada, que não é boa.

Seu livro trata do exílio dos cubanos. A saída maciça de pessoas do país é
uma ferida aberta? Reflito muito sobre essa diáspora. Trata-se de uma situação que
vem se repetindo ao longo de toda a história cubana. Muita gente deixou a ilha nos
últimos 200 anos e até hoje não havia nada escrito sob a perspectiva da minha geração.
Como homem das letras, portanto, deixo a contribuição sobre esse capítulo que acaba por
afetar a todos. O livro fala do exílio, mas também da permanência e da amizade que se
sobrepõem à distância física, sentimental, e às divergências. É justamente esse elo, que se
mantém firme, acima das discordâncias, o que nos salva de uma ruptura total.

Como é a relação dos que saíram com Cuba? Conheço gente que mora há décadas
em Miami ou na Espanha e fala, come e vive como cubano. Mesmo sabendo que não vão
regressar, essas pessoas preservam a cultura viva, o que me parece característico de
grupos com uma identidade bem definida. Na cidade de Hialeah, no sul da Flórida, a
chegada de cubanos para trabalhar em pequenas indústrias, chamadas factorias, mudou
a paisagem. Eles foram abrindo cafés, restaurantes, salões de cabeleireiro, iguais aos da
terra natal, e criou-se ali uma espécie de Cuba artificial em território americano. O grupo
dos que se foram abarca também, claro, gente que não consegue nem mais ouvir falar da
ilha.

O que, afinal, fez com que tantas pessoas debandassem? O principal fator foi a
crise política e social dos anos 1990, quando a antiga União Soviética se esfacelou e
deixou de dar ajuda financeira a Cuba. Começou a faltar tudo e a esperança também ficou
escassa. Em 1994, aproveitando uma decisão temporária do governo de abrir as
fronteiras, milhares partiram, cruzando o mar em todo tipo de embarcação, na direção
dos Estados Unidos. A crise dos balseiros, como ficou conhecida, foi o pior momento
desse processo, mas o gotejamento populacional prosseguiu, motivado sobretudo por
questões econômicas.

Quem mais recorre ao exílio atualmente? São pessoas que têm recursos para viajar
ao exterior: cientistas, artistas, esportistas. Recentemente, metade de uma equipe de 24
jogadores de beisebol não retornou a Cuba. É um número horripilante, que expõe as
feridas do país.
Existe um paralelo entre a crise atual e a dos anos 1990? Os efeitos são
semelhantes, mas as causas são distintas. Há três décadas fomos afetados pelo
desmoronamento do socialismo no mundo, um fenômeno inevitável. Hoje vivemos uma
pandemia universal, na qual as restrições de mobilidade e a necessidade de isolamento
social se somaram às imensas carências já existentes. A economia cubana é deficiente,
não tem sido capaz de gerar riquezas e ainda sofre os efeitos do embargo econômico dos
Estados Unidos. O momento é de cansaço histórico. E o que vejo é um povo farto de
esperar por uma ação das autoridades.

O governo anunciou medidas para modernizar o país. Elas surtiram algum


efeito? Estamos apenas engatinhando, lentamente. O objetivo das medidas é tentar
adequar o país a esta realidade. Antes, precisávamos de autorização para viajar ao
exterior. Agora qualquer um pode ter passaporte, desde que apresente visto de entrada no
país de destino. Também foi liberada a abertura de pequenos negócios. Tivemos um
reordenamento monetário no início do ano que corrigiu distorções, mas trouxe inflação e
o empobrecimento da população. Ainda que a sociedade tenha se transformado, o modelo
político e econômico segue essencialmente o mesmo.

Fidel Castro morreu e seu irmão Raúl se afastou dos cargos públicos. O
poder mudou verdadeiramente de mãos? Não. As pessoas são outras, mas o
sistema segue igual e Raúl Castro ainda tem a última palavra nas grandes decisões. Este é
um governo da continuidade.

As redes sociais transformaram o mundo. Foi assim em Cuba também?


Durante muito tempo, a internet daqui foi controlada e limitada. Mas as conexões se
tornaram mais estáveis e mais rápidas, o que permite agora manter perfis no Facebook e
passar mensagens por WhatsApp. O comportamento dos jovens cubanos é parecido com
o dos demais, inclusive a necessidade de tornar pública a vida privada. Minha geração
lutou muito pelo direito à privacidade em um país onde os níveis de vigilância eram
altíssimos. Tentávamos preservar ao máximo o que se conversava com os amigos e o que
se pensava sobre determinados assuntos. Hoje em dia, para o bem ou para o mal, as
pessoas divulgam tudo o que acontece na vida delas. Como não entendo o fenômeno,
prefiro não criticar.

“Tenho obsessão por temas como liberdade e a condição humana, mas não acho que uma
obra deva se converter em um panfleto político. O que gosto mesmo é de falar de beisebol e
cinema”

Barack Obama visitou a ilha, suspendeu restrições e deixou no ar a


possibilidade de fim do embargo econômico. Donald Trump revogou tudo
isso. O que se espera de Joe Biden? Junto com Obama vieram os Rolling Stones, um
desfile da Chanel e um dos episódios da franquia Velozes e Furiosos, filmado em Cuba. A
economia se moveu, negócios foram abertos e as pessoas se prepararam para receber
turistas. Foi um período de efervescência, que acabou na era Trump. A embaixada
americana foi praticamente fechada e Cuba regressou à lista dos países que promovem o
terrorismo, prejudicando uma gama de relações internacionais. O governo Biden
reacendeu uma leve esperança, mas nada aconteceu. Esperamos, pelo menos, a retomada
das relações diplomáticas, para os cubanos não serem mais obrigados a viajar ao México
ou à Guiana para solicitar um visto americano.

Sua obra é vista como uma fresta na cortina de ferro, por onde os leitores
entendem um pouco do que ocorre na ilha. Considera escrever um ato
político? Para mim, é antes de tudo uma necessidade espiritual que se desenvolve por
meios estéticos. Tenho obsessão pessoal por temas como liberdade e a condição humana,
mas não acho que a obra deva se converter em uma peça política, um panfleto. O que
gosto mesmo é de falar de beisebol, de literatura e cinema, como Paul Auster, a quem
tanto admiro. Ambos retratamos a realidade de nossa cidade natal: eu, Havana; ele, Nova
York. Mas uma maldição acaba sempre nos obrigando a voltar à política.

O senhor tem cidadania espanhola. Cogita ir embora de Cuba? Tenho dupla


cidadania, mas uma nacionalidade. Sou um escritor cubano que escolheu livremente viver
e trabalhar no país. Talvez algum dia tenha de ir embora, mas espero que isso não
aconteça, porque este é o meu lugar. Me alimento da realidade cubana para escrever.

Publicado em VEJA de 15 de dezembro de 2021, edição nº 2768

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Cuba
Literatura
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Armínio Fraga entrevista Angus Deaton, Nobel de


Economia em 2015
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OPORTUNIDADE -  Deaton: exemplo dos benefícios da meritocracia - Anette Nantell/dn/tt news


agency/AFP

O economista Angus Deaton, 75 anos, conquistou o Prêmio Nobel de Economia em


2015 por seus estudos sobre consumo, pobreza e bem-estar. Nascido em Edimburgo, na
Escócia, ele se tornou uma das principais vozes no debate envolvendo todos os aspectos
do desenvolvimento econômico, com uma visão ampla sobre qualidade de vida, saúde,
mobilidade social, igualdade e crescimento econômico. Professor da Universidade
Princeton desde 1983, ocupa a cátedra Dwight D. Eisenhower de Relações Internacionais
e é professor de economia e assuntos internacionais na Escola Woodrow Wilson. A
entrevista publicada a seguir foi concedida ao economista e ex-presidente do Banco
Central Armínio Fraga, cofundador e presidente do Conselho de Administração do
Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (IMDS), organização que tem o objetivo
de delinear, testar, propor, divulgar e acompanhar a execução de políticas públicas de
impacto em mobilidade social. Fraga conheceu Deaton em 1983, quando fazia seu
doutorado em Princeton. Posteriormente, os dois se reencontraram no Banco Mundial,
onde atuaram no grupo de conselheiros do economista-chefe e vice-presidente sênior
Nicholas Stern entre 2000 e 2003. Confira os principais trechos da conversa entre os dois
economistas.
DRAMA BRASILEIRO -  Fraga: plataforma para estudos da desigualdade – Nelson Sá/.

No Brasil, conhecemos de perto o drama da desigualdade e de sua


persistência no tempo, que se traduz na falta de mobilidade social. Como
você vê essa relação? Eu sou um exemplo de mobilidade social e me beneficiei da
existência de meritocracia. Há economistas, por exemplo, que se dedicam a estudar
desigualdade e derivam daí a baixa mobilidade. Mas minha opinião é que lidar com
desigualdade e mobilidade social é caminhar na mesma direção. Não há conflitos de
escolha, trade-­offs, entre eles. Tendemos a pensar em mobilidade social e desigualdade
como coisas ligeiramente diferentes, mas é óbvio que elas estão intimamente ligadas. Meu
colega Alan Krueger (1960-2019), que foi professor em Princeton e conselheiro do
presidente Barack Obama, desenvolveu a famosa Curva de Gatsby que mostrava que, em
países onde há muita desigualdade, tende a haver muito pouca mobilidade social entre
pais e filhos, por exemplo. Mas o contrário também é verdadeiro. Ou seja, se você tem
baixa mobilidade social, isso vai fazer com que haja uma desigualdade de renda muito
alta.

O problema da desigualdade está crescendo no Brasil. O Bolsa Família, um


ótimo programa, só nos leva até certo limite, pois faz a maioria das pessoas
simplesmente ultrapassar a linha da pobreza, o que não é suficiente para que
haja de fato mobilidade social. O que temos de fazer para ir mais longe? São
necessários outros instrumentos, como por exemplo o seguro-desemprego, que é uma
maneira importante de evitar que um revés temporário se torne permanente. Outra
ferramenta essencial é a cobertura de saúde, que nos Estados Unidos é um desastre. Ela é
fundamental pois pode evitar que as pessoas percam seus rendimentos quando ficam
doentes. Ou que percam a saúde quando estiverem sem renda. Essas são partes muito
importantes da rede de segurança social, que vão além de programas como o Bolsa
Família.

Temos no Brasil uma boa rede de proteção social, mas o problema é que
lidamos com um setor informal muito grande. Com a pandemia, começou-se
a pensar em apoio mais permanente do Estado. A discussão que está
surgindo é sobre se devemos buscar alguma forma de renda básica universal
em vez de programas mais direcionados. Ou se devemos recorrer a ambos.
Qual a sua visão sobre esse assunto? Não sou realmente um fã de renda básica
universal, embora seja a favor de redes de proteção social. Mas a renda básica universal é
algo bem distinto disso. Ela ganhou força porque tanto a direita quanto a esquerda
adoram. O que, aliás, me faz pensar que deve haver algo errado nisso. Mas, na verdade, o
que está errado é que, nos Estados Unidos, esses grupos têm visões muito diferentes do
que seja de fato um programa de renda básica universal. As pessoas da direita querem
adotá-la, mas desde que se acabe com o resto da rede de segurança. Isso empobreceria
muitas pessoas, além de deixar desassistidos os que estão precisando de ajuda urgente.
Do outro lado, a esquerda quer ir além, criar um benefício universal e ampliar a rede de
segurança atual, o que é extraordinariamente caro. Embora os dois lados defendam a
renda básica universal, no fundo eles estão falando sobre coisas muito diferentes.

O que torna o capitalismo incapaz de resolver os problemas sociais que ainda


existem mesmo em sociedades tão avançadas como as dos países ricos? No
trabalho que fiz com minha esposa, Anne Case, batizado de Deaths of Despair and the
Future of Capitalism, em que analisamos o impacto das imperfeições do capitalismo sobre
o aumento do número de mortes decorrentes de alcoolismo, overdose e suicídio,
identificamos que a verdadeira angústia que está afetando a classe trabalhadora
americana, por exemplo, é a perda do emprego. Os radicais do Vale do Silício acreditam
que todos os empregos vão acabar, e eu posso até concordar que um dia estaremos apenas
dividindo o dinheiro que os robôs estarão produzindo, mas esse não é o mundo em que
vivemos hoje. Mais produtivo seria pensar sobre como podemos ajudar a incentivar a
criação de empregos para todos — e não apenas para pessoas com alto nível de educação.
Isso requer pensar sobre que tipo de automação queremos encorajar e o que não
queremos. O que ocorre é que colocamos em um pedestal as pessoas que vão para a
faculdade. E dessa forma criamos uma sociedade dividida. Um terço das pessoas pertence
à elite educada e os outros dois terços se tornaram uma espécie de classe ignorada, sem
influência política, sem perspectivas, com escolas ruins para seus filhos, e daí por diante.
Na verdade, precisamos de empregos. Especialmente no caso do Brasil, ou de países como
o Brasil, temos de encontrar uma variedade de empregos que preservem o respeito e a
autoestima, ainda que não levem necessariamente as pessoas a se tornarem matemáticos,
economistas ou programadores de TI. Há uma grande variedade de empregos
intermediários, que costumavam ser bons e deveriam continuar sendo. Acho que o
problema é que estamos acelerando o fim desses empregos. Nos Estados Unidos existe
um enorme incentivo fiscal para que os empregadores instalem robôs nas empresas, o
que é uma loucura. É necessário que se adote um mecanismo que requalifique as pessoas
ao longo do caminho, para que elas não fiquem sem trabalho daqui a vinte anos. Você tem
de gastar muito dinheiro com isso. Mas vale a pena.

Pensando no que ocorre no Brasil, preocupa-me o fato de sermos presas


fáceis do populismo. Isso reforça a importância de buscarmos reduzir a
desigualdade e ampliar as possibilidades de mobilidade. Parece que estamos
presos em uma espécie de pesadelo populista por aqui. A ameaça da
tecnologia, como você disse, para nós é realmente assustadora. E algumas
pessoas simplesmente não sabem exatamente o que isso significa, mas
sabem que seu emprego está em risco.  Existem muitas formas diferentes de
desigualdade em curso. Você acabou de mencionar a desigualdade educacional. O simples
fato de haver um grupo de pessoas muito bem-educadas e outro com baixa escolarização
já é uma forma de desigualdade, e não importa quais sejam as consequências disso. Mas
há ainda a desigualdade de representação política, que é extremamente importante
também. Nós costumávamos nos preocupar com vocês, brasileiros, sendo reféns do
populismo e agora nós nos tornamos igualmente reféns do populismo, assim como
aconteceu com muitos países europeus. Nos países ricos, os partidos de esquerda, que
tinham suas bases nos sindicatos ou nos trabalhadores, se tornaram intelectualizados e se
juntaram à elite educada. E a direita continuou representando o dinheiro que rende juros.
Então não sobrou nada para o povo que costumava ser representado pelos partidos de
esquerda. Nos Estados Unidos, isso foi feito mais ou menos deliberadamente pelo
governo no início dos anos 1970, e o Partido Democrata se tornou um partido de elite
educada e de minorias, e deixou todas as pessoas brancas menos educadas de fora e com
pouquíssima voz política. É extremamente importante atentarmos a esse tipo de
desigualdade de participação política na sociedade.

Uma questão muito interessante em seu trabalho é não apenas olhar para a
falta de igualdade ou de mobilidade, mas manter o foco em buscar a origem
da desigualdade. Pode nos falar sobre sua visão a respeito da origem da
desigualdade? Gosto de comparar as pessoas ricas da América com as da Europa. Aqui
existem pessoas como o criador da Amazon, Jeff Bezos, o da Microsoft, Bill Gates, todos
os nomes do Google, Mark Zuckerberg, e assim por diante. Todos eles fizeram alguma
coisa. Já na Europa, há figuras como oligarcas russos e pessoas desse tipo. Então, há uma
espécie de distinção entre o que você pode chamar de “fazedores” de um lado e
“tomadores” de outro. Se a desigualdade surge porque as pessoas inventam coisas que
ajudam a todos nós, e Bezos seria o exemplo mais óbvio, as pessoas se ressentem muito
menos, pois o que ocorre nesses casos é basicamente um alinhamento de benefícios
sociais com benefícios privados. Mas elas ficam muito infelizes se a desigualdade vem por
práticas desleais ou corrupção, ou de lobbies no Congresso para conseguir privilégios,
como uma licença exclusiva para fazer algo que torna determinados grupos muito, muito
ricos. As pessoas ficam muito infelizes nesses casos. Anne e eu temos olhado, por
exemplo, os dados de mortalidade por Covid e vimos que, para se proteger da doença, um
diploma universitário é quase tão bom quanto a vacina. Na pandemia, o mercado de ações
atingiu níveis incríveis e nossos portfólios estão subindo vertiginosamente. Estamos
sentados em casa, trabalhando com segurança no zoom. Já as pessoas sem diploma
universitário e baixa escolaridade que estão lá fora, trabalhando nas lojas ou nas fábricas
de alimento, estão morrendo. Então, é como se metade da população estivesse morrendo
enquanto a outra metade está enriquecendo. Você começa a pensar que talvez a
desigualdade por si só seja o problema, não importa se as fortunas venham de origens
conhecidas.

Uma outra questão, que tem a ver com organizações como o Instituto
Mobilidade e Desenvolvimento Social, que está trabalhando com políticas
públicas baseadas em evidências, é que se tem dado muita ênfase a
experimentos de controle randomizados, ou seja, que usam grupos de
controle para avaliar as políticas e assim por diante. Lembro-me bem de
quando trabalhávamos no Banco Mundial e você fez uma observação que eu,
então no governo brasileiro, achei que era a chave de tudo. Você dizia que
tudo que fazemos deve ser avaliado permanentemente. Isso foi há vinte anos.
E hoje, estamos indo longe demais na obsessão por esses experimentos? Eu
não desisti da política baseada em evidências. Mas a questão é verificar se os
experimentos de controle randomizados estão de alguma forma sendo supervalorizados.
Se são de fato a única forma de fazer as coisas. Tem-se opiniões extremas. Pessoas que
dizem que, se não teve um experimento de controle randomizado, não deveríamos sequer
prestar atenção no assunto, o que é obviamente um absurdo. Cito um exemplo: nós todos
acreditamos no efeito positivo da educação sem que tenhamos precisado de estudos
randômicos para isso. Tomamos aspirinas quando sentimos uma dor de cabeça, o que
também nunca teve um experimento de controle randomizado. Tais experimentos são
bons em alguns casos, mas você sempre tem de prestar atenção. Entender o que vai
acontecer quando uma coisa que funcionou durante algum tempo sob determinadas
circunstâncias para um grupo de controle for aplicada na totalidade. É preciso integrar os
achados à economia ao longo do caminho. É óbvio que acho uma boa ideia que as vacinas
que recebi no braço tenham sido testadas em um experimento. Mas provavelmente
poderiam ter sido projetadas sem randomização. Há uma “santidade” atribuída à
randomização. Uma obsessão quase religiosa. É uma coisa que devemos usar quando for
útil, mas não é o Santo Graal.

Gostaria de abordar agora a questão da meritocracia versus oportunidade e


desesperança no contexto brasileiro. Uma coisa que estamos sempre
procurando, quando pensamos em tecnologia e oportunidades, é o potencial
para pular etapas, para não repetir o erro de outros países ou outras
pessoas. No caso do Brasil, onde estamos bem abaixo na curva de
aprendizado, é possível pular etapas com o uso da tecnologia? Quando falamos
sobre os tipos de emprego e o uso de tecnologia, há, sim, a possibilidade de pular etapas.
Você precisa de mais oportunidades para que crianças talentosas em todo o Brasil entrem
nas escolas e descubram suas habilidades. A meritocracia em seus primeiros estágios é
ótima, porque você pode ter pessoas talentosas fazendo trabalhos importantes. Por outro
lado, você deve ter cuidado com o segundo estágio, quando a primeira geração de
meritocratas pode recolher as pontes depois que passam, para bloquear a passagem da
segunda geração — e com isso se torna uma aristocracia. É preciso alcançar uma situação
em que esse grupo ajude a próxima geração. Quando era criança, passei muito tempo em
uma cidade pequena da Escócia. Era um lugar com pessoas talentosas e que, apesar de
não terem uma educação formal, realmente enriqueceram a vida da cidade. Mas a geração
seguinte optou por morar em Londres ou em qualquer outro lugar e a cidade, hoje, está
desprovida daquele tipo de talento. Eu me considero uma pessoa que se beneficiou
enormemente da meritocracia e da mobilidade social. Uma das coisas que me preocupam
é que as mesmas oportunidades podem não estar lá para as crianças inteligentes que são
sessenta anos mais novas do que eu, e que ainda estão procurando seu caminho no
mundo.

Publicado em VEJA de 14 de julho de 2021, edição nº 2746

Mario Vargas Llosa, sobre a pandemia: “O mundo sairá


melhor”
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 David Levenson/Getty Images

O peruano Mario Vargas Llosa contabiliza dias produtivos de confinamento em Madri.


Em sua residência na capital espanhola, o maior escritor latino-americano vivo e
ganhador do Nobel de literatura em 2010 passa o dia devorando livros, trabalhando e
refletindo sobre os rumos da humanidade. Aos 84 anos, Llosa acaba de lançar no Brasil a
novela Tempos Ásperos (Companhia das Letras), na qual revive o golpe de Estado que
derrubou um governo democraticamente eleito na Guatemala em 1954, com apoio dos
Estados Unidos, para resguardar os interesses da exportadora de bananas United Fruit.
Na entrevista a seguir, feita por videoconferência, o autor comenta por que o episódio
deixou marcas profundas na América Latina. Um falante Llosa dá ainda suas opiniões
sempre agudas sobre os excessos autoritários cometidos em nome do combate à
pandemia em vários países, a ascensão da nova direita, as fake news e os males da arte
contemporânea — além de fazer um elogio enfático à Operação Lava-Jato.

Seu novo livro tem como cenário o golpe militar na Guatemala em 1954, com
apoio dos Estados Unidos, para proteger interesses de uma exportadora de
bananas. A América Latina ainda sofre do complexo da “República
Bananeira”? Não vejo mais essa ameaça. Temos de lembrar que eram tempos da Guerra
Fria, do macarthismo, de temor americano pelo modo como a União Soviética ganhava
aliados em vários continentes. Hoje, os Estados Unidos são mais respeitosos com a
América Latina, e inclusive têm interesse econômico no progresso da região. Os tempos
mudaram.

Por que então desenterrar um episódio que pertence ao passado de um país


pequeno? O golpe na Guatemala teve efeitos cataclísmicos na América Latina, que nos
anos seguintes viu uma sucessão de derrubadas de governos eleitos. E ajudou a
radicalizar a Revolução Cubana. É também um episódio precursor do efeito desastroso
das fake news na política. Muito antes da internet, a United Fruit moveu uma campanha
na imprensa americana, ironicamente por meio de veículos liberais, que fez com que a
opinião pública acreditasse, ingenuamente, em mentiras sobre a suposta influência
comunista na Guatemala.

Se no passado havia o fantasma comunista, hoje a preocupação é com a


direita radical. Do Brasil à Hungria, o mundo assiste ao domínio de líderes
populistas com rasgos autoritários. A que se deve essa escalada? Isso é reflexo
da frustração com governos de esquerda que promoveram gestões populistas e corruptas.
Essa realidade desanimou o eleitorado, que se viu forçado a votar no extremo oposto. O
caso do Brasil é exemplar, porque os governos de Lula e do PT tiveram muita corrupção, o
que desencantou os brasileiros e os fez eleger um governo bastante autoritário e confuso.
Jair Bolsonaro nunca teria chegado ao poder se esse desencanto não tivesse acontecido.

O fenômeno se estende a outros países? Isso tem acontecido em muitas nações da


América Latina, ainda que por razões diversas. É o caso da Argentina: Macri gerou
esperanças, mas, do ponto de vista econômico, seu governo foi um desastre. Os
argentinos foram levados então a uma operação suicida: votaram de novo no peronismo,
que vem causando um verdadeiro estrago por lá.

Recentemente, o Peru viveu escândalos políticos em série por causa de


desdobramentos da Operação Lava-Jato brasileira. Como analisa a crise em
seu país? Essa empresa brasileira, a Odebrecht, merece um monumento na América
Latina, de tantos governos que corrompeu e ajudou a derrubar. Cinco ex-presidentes do
Peru foram presos ou atingidos, graças ao Brasil e à Operação Lava-Jato. E há reflexos na
Colômbia, no México… É um sistema de corrupção generalizado. Jamais teremos
democracia e políticos representativos se não combatermos a corrupção. O juiz Sergio
Moro foi formidável, muito valente.

“No momento, a luta é contra a pandemia. Mas, cedo ou tarde, será preciso investigar qual
papel a China desempenhou nesse contexto. Um dia as pessoas vão saber o que se passou
em Wuhan”

No Brasil, o ex-juiz Moro enfrenta oposição à esquerda, com o PT, e à direita,


dos bolsonaristas. O que pensa disso? Quero dizer que Moro é um homem
verdadeiramente independente. Deveríamos ter muitos juízes como ele na América
Latina.
Por que o senhor desistiu da política após concorrer à Presidência do Peru
em 1990 e perder para Alberto Fujimori? Porque nunca tive aspiração política. Eu
me vi empurrado a ser candidato por ter presidido um movimento contra a
nacionalização dos bancos e companhias financeiras. Isso me empurrou a aceitar a
candidatura, mas nunca quis ser nada mais que um escritor. Com os problemas que
existem na América Latina, os escritores estão moralmente obrigados a intervir e a tratar
de encontrar soluções. Mas os que não têm vocação não devem participar da política.

Tanto políticos de esquerda quanto os de direita tiveram enormes


dificuldades nas políticas públicas para lidar com a Covid-19. A pandemia do
coronavírus veio para melhorar ou piorar os rumos da humanidade? A
pandemia vai nos tornar menos arrogantes. Acreditávamos que havíamos dominado a
natureza, e isso não é verdade. A natureza nos guardou uma grande surpresa: há mais de
1 milhão de mortos no mundo por causa de um vírus. Quando esse terrível capítulo se
finalizar, vamos estar mais dispostos a investir em pesquisa científica e sistemas de saúde
à altura, já que nenhum deles estava, em nenhum país.

Então o senhor é um otimista? Ora, pessimistas já estamos bastante, diante da


montanha de mortos. A Espanha é um dos países em que o número de vítimas e de
contágios é muito alto, e é um exemplo trágico do que não fazer para barrar a pandemia.
Os países que souberam lidar melhor com o vírus são raros, e a princípio pareciam
equivocados: é o caso da Suécia e da Suíça, que conduziram o combate ao coronavírus de
forma mais sensata.

Em artigo publicado em março, o senhor alertava contra o risco de o mundo


retornar à Idade Média. Não era um exagero? Não é possível acertar nas medidas
para conter a pandemia, mas sacrificar as liberdades públicas em nome delas. Vimos a
adoção de um autoritarismo quase medieval por parte de alguns governantes, sob o
pretexto de combater a doença. Transformar governos democráticos em autoritários não
é o modo correto de lutar contra o vírus. Dentro da União Europeia, dois países que estão
atuando assim em nível extremo são a Polônia e a Hungria. Pode ser que seus líderes
tenham apoio popular, não nego, mas em ambos há excessos inaceitáveis.

O senhor sempre foi um entusiasta da globalização. A pandemia vai provocar


um retrocesso nela? É provável que sim, mas precisamos lutar para que isso não
ocorra. A globalização tem sido muito importante, sobretudo para os países em
desenvolvimento, como os da América Latina. Ela permite que se reduza o tempo do
processo de sair da pobreza. Interrompê-la e voltar aos nacionalismos que ao longo da
história somente trouxeram danos seria uma tragédia. Devemos combinar as políticas de
contenção à pandemia com as de globalização, de forma a criar uma frente mundial
contra o coronavírus na saúde e economia.

O senhor já acusou o governo chinês de ser responsável pela explosão da


pandemia. Mantém essa opinião? Um dia as pessoas vão saber o que se passou de
verdade em Wuhan. Até agora, não se esclareceu como nasceu a doença. Tem algo de
misterioso aí. A China não informou ao mundo e provavelmente essas informações
reduziriam o impacto da doença. No momento, a luta é contra a pandemia. Mas, cedo ou
tarde, será preciso investigar qual papel a China desempenhou nesse contexto.

Para um novelista, a pandemia seria uma boa inspiração? Há muitos romances


excelentes sobre pestes. Tem uma famosa obra italiana do século XIX de que gosto muito,
Os Noivos, que descreve uma terrível peste em Milão. A literatura sobre epidemias é rica,
e seguramente a experiência dos últimos meses dará origem a novas obras que serão
testemunhos valiosos do que estamos vivendo.

Andam circulando uma série de fake news a respeito da pandemia. Como


jornalista, de que forma o senhor analisa a explosão das mentiras nas redes e
a influência delas na política? Sempre existiram mentiras no mundo da política, mas
as redes sociais fizeram com que pela primeira vez elas pudessem ser uma ameaça real. É
muito importante que haja liberdade de imprensa genuína, na qual jornais, revistas e
programas de televisão responsáveis saiam na frente e denunciem as fake news. Se não
reagirmos com vigor e rapidez, correremos o risco de as fake news vencerem a guerra
contra os fatos.

Outro fenômeno típico das redes sociais é o advento do cancelamento. Qual o


perigo dessa onda? É um fenômeno que pode durar por muito tempo, caso nós não o
enfrentemos a sério e a Justiça não atue com rigor. É através de um Judiciário
independente que é possível denunciar e castigar os que destroem reputações e distorcem
os fatos. O cancelamento, tal e qual as fake news, tem impacto nocivo na vida política das
nações.

Os ficcionistas podem auxiliar de alguma forma no combate a esses males? A


literatura tem um papel crucial a cumprir. As mentiras que se apresentam como mentiras,
as mentiras da literatura, não são perigosas, porque ninguém acredita que uma ficção seja
verdade. Mas as mentiras da literatura podem trazer à luz grandes verdades reais. Pestes,
pragas, guerras, violências políticas e ditaduras: a literatura já expôs tudo isso e também
nos abrirá os olhos para esse mundo que, por meio da tecnologia, progride muito. Mas
que, também por causa da tecnologia, apresenta novos perigos.

Se por um lado o senhor elogia o papel da literatura da atualidade, por outro


tornou-se um crítico ácido da arte contemporânea — já atacou, por exemplo,
a famosa obra do inglês Damien Hirst do tubarão num tanque de formol. O
que o incomoda tanto?  Damien Hirst já disse que não é um pintor: contrata
carpinteiros e pedreiros que fabricam as ideias que lhe ocorrem. O caso dele é o mais
representativo da tragédia que vive a arte contemporânea. É impossível, hoje em dia,
saber se algo é belo ou não, porque a arte justifica tudo. Pessoas como Damien Hirst são
as grandes responsáveis pelo fato de gente sem destreza artística alcançar fama e riqueza.
É triste ver exposições de pintura contemporânea, porque não há maneira de saber se um
pintor é genuíno ou somente um delinquente que se vale de truques para vender gato por
lebre.
Aos 84 anos, o senhor continua ativo. Qual é o segredo? Gosto de viver. Sigo
trabalhando e lendo muito. Estou aproveitando o isolamento para trabalhar. Quero viver
até os 100 anos e morrer com a pena na mão.

Publicado em VEJA de 11 de novembro de 2020, edição nº 2712

Radicalismo político é ‘ameaça à racionalidade’, diz


Steven Pinker
veja.abril.com.br/paginas-amarelas/radicalismo-politico-e-ameaca-a-racionalidade-diz-steven-pinker

STEVEN PINKER - Geoffroy Van Der Hasselt/AF/.

Um dos mais influentes divulgadores científicos da atualidade, o psicólogo e teórico


evolucionista Steven Pinker, de 67 anos, se debruçou sobre um dilema que afeta a vida
de todos nós. A humanidade, ao mesmo tempo que é capaz de feitos incríveis, como o
desenvolvimento da vacina contra a Covid-19 em menos de um ano, parece regredir no
tempo ao acreditar em falsas curas, espalhar mentiras nas redes sociais e voltar à guerra
após décadas de paz. Como isso é possível? O resultado de sua análise está em
Racionalidade — O que é, por que Parece Estar em Falta e por que é Importante
(Intrínseca), que acaba de chegar ao Brasil. Segundo Pinker, as pessoas naturalmente
acreditam naquilo que as faz se sentir melhor, nem que para isso tenham de negar a
pandemia ou os efeitos nefastos das mudanças climáticas. Na entrevista a seguir, o
pesquisador canadense analisa os perigos da irracionalidade para a sobrevivência da
própria espécie humana, fala sobre a terrível contribuição das redes sociais na
disseminação de notícias falsas e aponta o dedo para os riscos que o radicalismo político,
tanto à esquerda quanto à direita, pode trazer para o debate racional.

Faz sentido temer que a invasão da Ucrânia pela Rússia se transforme na III
Guerra Mundial? As pessoas deveriam mesmo estar razoavelmente preocupadas com a
situação, porque ela representa um perigo enorme. É uma grande quebra da tendência de
paz dos últimos 75 anos. É, afinal, o primeiro conflito bélico entre países da Europa desde
o fim da II Guerra, tirando a invasão da Hungria, em 1956, pela União Soviética. Se a
Rússia anexar a Ucrânia, seria a primeira vez que um Estado reconhecido globalmente
deixaria de existir por meio de uma conquista desde os anos 1940. Também é primeira
grande guerra entre países fora do Oriente Médio e da África.

É possível explicar a invasão de forma racional, como tentam fazer alguns


analistas? Eu não acho que se trata de um conflito relacionado à segurança. A Rússia
não tem realmente medo de ser invadida pela Ucrânia ou por países-membros da Otan.
Isso nos leva a Vladimir Putin, que claramente é o responsável. Se fosse outra pessoa
comandando a Rússia, provavelmente essa guerra não teria acontecido. Mas há um
padrão, e podemos identificá-lo a partir de uma perspectiva histórica, de líderes
narcisistas, sem empatia, que têm o desejo de poder ilimitado, glória, influência e
prestígio.

A sociedade não deveria criar barreiras para frear o ímpeto de líderes desse
tipo? Nos sistemas políticos bem desenvolvidos, há garantias para impedir que pessoas
com essa personalidade tomem conta do país. Claramente, nem sempre funcionam, e elas
certamente não são usadas na Rússia. O resultado é uma única pessoa tomando decisões
que podem levar a milhares de mortes. O exemplo de Putin mostra como os objetivos de
alguns líderes podem não ser materiais, como território ou recursos. Putin sacrificou tudo
em favor de prestígio.

O que poderia evitar esse tipo de situação? Idealmente, teríamos um sistema


internacional, com a participação da ONU e de outras organizações globais, com leis e
normas criadas para impedir que o desejo por poder ou prestígio se transforme em
guerra. Obviamente, não foi o que aconteceu. A prioridade, agora, é fazer com que a
matança pare, e isso pode exigir um exame de nosso senso de honra em aceitar derrotas
para impedir que mais pessoas continuem morrendo.

Deu-se uma guerra, que tirou parte da atenção global da Covid-19. E temos,
agora, dois imensos problemas globais. Como explicar o comportamento
ambíguo da sociedade na pandemia? Alguns dos impedimentos ao pensamento
racional incluem intuições humanas básicas que provavelmente foram úteis ao longo da
evolução mas que acabaram substituídas pela compreensão científica. Veja as vacinas.
Elas consistem na introdução de um patógeno dentro do organismo. Sempre foi algo
contraintuitivo, e sofreu oposição desde que surgiu. Mas as pessoas são vacinadas porque
superam essa barreira intuitiva a partir da confiança na medicina, na ciência e nos
governos.

O que causou essa mudança de comportamento? Vemos as pessoas voltarem a


confiar em suas intuições básicas, resistindo às vacinas, porque há uma falta de confiança
nas instituições. A confiança precisa ser construída principalmente por agentes que não
ajam como oráculos ou sacerdotes, ditando a verdade, mas se esforçando para mostrar
porque aquilo é benéfico. Isso pode ser feito compartilhando dados e resultados para
garantir que as instituições não polarizem a população ao propagandear uma inclinação,
por exemplo, à esquerda, algo que os pesquisadores fazem com frequência, alienando as
pessoas à direita do espectro político. Nos Estados Unidos, pelo menos, foram as pessoas
alinhadas à direita que resistiram às máscaras e às vacinas.

Até que ponto podemos culpar as redes sociais pela disseminação de


informações falsas? As redes sociais merecem parte da culpa pela desinformação.
Uma maneira de conquistar grandes feitos de racionalidade é criar dispositivos,
organizações e instituições comprometidas com a verdade. Assim, grupos de pessoas
podem conquistar realizações muito maiores do que teriam capacidade sozinhas. A
ciência, as universidades, as democracias e a imprensa livre são exemplos. Nas redes
sociais, no entanto, as ideias mais populares não são aquelas comprometidas com a
verdade, mas as mais emocionalmente excitantes.

É possível criar mecanismos para impedir a disseminação das notícias falsas


nas redes? Não se trata apenas de redes sociais. O rádio também tem um papel
relevante, assim como alguns canais de TV a cabo. Nos Estados Unidos, há emissoras tão
politicamente polarizadas que se tornam promotoras, com um alcance enorme, de uma
percepção ruim: só é possível acreditar naquilo que beneficia a sua coalizão política. Mas
temos de combater as notícias falsas. As próprias redes sociais começaram a olhar para a
questão. Deveríamos ajudar as pessoas, e isso começa nas escolas, a ser consumidoras de
notícias mais conscientes e experientes.

Tem-se a impressão de que vivemos em uma guerra digital de


desinformação. Mas o senhor afirma que informações falsas sempre foram
usadas como ferramenta política. Certamente, não é algo novo na história da
humanidade. Podemos pensar que as fake news e teorias da conspiração são uma nova
invenção tecnológica que está criando todas essas mentiras. Mas é o padrão. Sempre foi
assim. Basta olhar para as religiões, que são, basicamente, notícias falsas sobre
fenômenos paranormais, com seus mitos e milagres. Conspirações existem desde o
surgimento da linguagem. É sempre uma batalha, mas precisamos desenvolver
ferramentas que nos resgatem de nossa propensão natural a acreditar em teorias falsas
que nos fazem nos sentir bem.

Nesse contexto, como os espectros políticos contribuem para a disseminação


de notícias falsas? Vemos comportamentos extremos dos dois lados do espectro
político. Na direita, temos a disseminação de notícias falsas e teorias da conspiração feita
por líderes políticos. Nos Estados Unidos, principalmente pelo ex-presidente Donald
Trump, e deixo os leitores de VEJA fazerem suas próprias comparações com a situação
brasileira. Da esquerda, temos a cultura de cancelamento, que pune quem expressa
opiniões contrárias.

Como esses comportamentos prejudicam a busca pelo pensamento racional?


Ambos os espectros são ameaças à racionalidade porque nós, como humanos, não somos
deuses, nem oráculos. Só temos uma maneira de tentar alcançar a verdade: apresentar
hipóteses e ideias, e depois avaliá-las, refutando aquelas que se mostram erradas. Se
algumas ideias não podem nem mesmo ser expressadas, e outras não podem ser
questionadas, então estamos desabilitando nosso mecanismo principal de chegar à
verdade.

Há um limite para a liberdade de expressão e o discurso livre? Mesmo nos


Estados Unidos, onde estamos na vanguarda da liberdade de expressão, devem existir
limites. Alguns crimes são definidos por discursos e, se todo discurso for permitido, esses
crimes deixarão de ser ilegais. Existem pequenas brechas que podem fornecer motivos
para impor algum tipo de restrição ao discurso livre. Isso não significa que o conceito de
discurso livre não é primordial, apenas que é possível identificar algumas exceções.

Como o senhor define racionalidade? É o uso de conhecimento para conquistar um


objetivo.

Racionalidade e inteligência não são a mesma coisa? Não, embora sejam


relacionadas. Pessoas mais inteligentes tendem a ser mais racionais, mas não de modo
perfeito. Elas também podem ser vítimas de falácias e vieses, especialmente quando se
trata de defender crenças morais de seu grupo.

Já ouvimos frases como “os seres humanos são irracionais”. Afinal, somos
racionais ou irracionais? Somos bastante racionais a respeito das necessidades
práticas de nossa vida cotidiana. A maioria das pessoas consegue manter seus trabalhos,
se alimentar e educar os filhos. Mas, quando se trata de crenças, digamos, cósmicas,
históricas ou políticas, é aí que vemos a irracionalidade entrar em cena. Acreditamos em
coisas não porque elas são verdadeiras ou falsas, mas porque elas são moralmente
edificantes. Além disso, nós não somos tão racionais quanto poderíamos ou deveríamos
ser. A racionalidade tende a se misturar com nosso conhecimento cotidiano, nossos
sensos comuns. Podemos expor áreas da irracionalidade humana se você as desafia com
argumentos vindos de dados governamentais, reportagens sérias e estudos científicos.

Como fomentar o pensamento racional na sociedade? Podemos fazer isso de


várias formas. Uma delas é por meio da educação, apresentando ferramentas que não são
tão intuitivas para a maioria das pessoas, como lógica, probabilidade e estatística, temas
que considero muito mais importantes do que parte do currículo atual, como
trigonometria. As normas da racionalidade deveriam fazer parte de nosso entendimento
comum, como adultos, de que a mente humana é vulnerável a vieses. Isso nos levaria a
trocar de opinião quando mudam as evidências e questionar as “verdades imutáveis” de
nossos grupos políticos.

Publicado em VEJA de 30 de março de 2022, edição nº 2782

Trump mudou a maneira como o mundo lida com a


China, diz Ferguson
veja.abril.com.br/paginas-amarelas/trump-mudou-a-maneira-como-o-mundo-lida-com-a-china-diz-ferguson

 Italy Photo/ZUMA Press/Fotoarena

Dono de um invejável currículo que junta passagens por templos do conhecimento como
Oxford, Cambridge e Stanford, o historiador escocês Niall Ferguson, 56 anos,
atualmente membro-sênior da Universidade Harvard e professor visitante na
Universidade Tsinghua, em Pequim, é um dos mais requisitados analistas da atualidade.
Para tanto, se vale da profunda erudição de quem escreveu mais de quinze livros sobre
política e economia, entre eles sucessos como A Ascensão do Dinheiro, Império (sobre a
expansão colonial britânica), Colosso (sobre o imperialismo americano) e O Horror da
Guerra (sobre a I Guerra Mundial) para lançar luz sobre os fatos atuais. É o caso da
recente derrota sofrida pelo presidente americano Donald Trump e seu impacto no resto
do mundo. Republicano, conservador e ex-conselheiro do senador e candidato a
presidente John McCain (1936-2018), vencido por Barack Obama no pleito de 2008,
Ferguson discorda da visão de que Trump é um extremista de direita. Da mesma forma,
relativiza o papel do americano em servir de modelo a outros líderes populistas ao redor
do mundo, como Jair Bolsonaro. Para ele, Trump cometeu erros e pagou por eles nas
urnas, mas acertou em alguns pontos como captar os anseios de uma considerável parcela
dos americanos e mudar a visão que outras potências ocidentais têm da China. “Os
europeus estão felizes de ver Trump pelas costas, mas, ironicamente, graças a ele
perceberam que deveria haver uma mudança de abordagem com os chineses”, avalia na
entrevista a seguir.

A derrota do presidente Donald Trump para o democrata Joe Biden significa


o início do fim da era dos populistas de extrema direita? Não acho que Trump
era um político de extrema direita, como também, em algumas questões, não era da
direita tradicional. A política fiscal sob o seu governo gerou um enorme déficit antes
mesmo de a Covid-19 chegar. Trump defendeu o dinheiro fácil e pressionou o Federal
Reserve a reduzir as taxas de juros, isso não é um comportamento de um político de
direita em questões econômicas. Em assuntos como imigração, ele certamente tinha um
posicionamento de direita. Mas não acho que defender o combate à imigração ilegal nos
Estados Unidos seja um posicionamento extremista. Acho que essa é uma interpretação
equivocada do que ele realmente representou. Trump representa uma espécie de
populista americano tradicional do século XIX, não um fascista saído da Europa dos anos
1930.

De qualquer forma, para essa direita populista espalhada pelo mundo, a


saída de Trump significa uma perda importante, não? Políticos populistas e
conservadores não precisam de liderança ou alinhamento internacional, justamente
porque o nacionalismo é um pilar de seu modelo de governo. Portanto, não acho que isso
seja relevante. Alguns deles já deixaram claro que vão se dar bem mesmo com Joe Biden
no poder. Narendra Modi, o primeiro-ministro indiano, por exemplo, parabenizou muito
rapidamente o novo presidente. Ajudou o fato de que sua vice, Kamala Harris, é filha de
mãe indiana. A derrota de Trump não será muito importante para os países que não
dependem muito dos Estados Unidos para apoio econômico ou militar, como é o caso do
Brasil. Seria um erro exagerar as consequências internacionais da derrota de Trump.

Ainda assim, no Brasil, especula-se sobre os riscos de o presidente Jair


Bolsonaro vir a enfrentar problemas com a vitória de Joe Biden. Como o
senhor avalia esse impacto? O relacionamento entre Jair Bolsonaro e Joe Biden de
fato vai ser difícil. A reputação de Bolsonaro na mídia progressista americana é terrível. E
é pouco provável que Biden queira iniciar um relacionamento mais amistoso com alguém
que se alinhou tão fortemente a Trump e outro dia endossou a ideia de a eleição ter sido
roubada. Mas minha sensação é que, apesar de eventuais atritos e provocações, Bolsonaro
não sofrerá especialmente com a derrota de Trump. O Brasil nos dias de hoje não é tão
dependente dos Estados Unidos e em última análise é um país tão autossuficiente que se
torna um mundo em si. Mas eu acredito que a derrota de Donald Trump deve levar
Bolsonaro a pensar muito sobre como evitar o mesmo destino quando for candidato à
reeleição.

Por que ele deveria ter esse tipo de preocupação? Joe Biden não foi eleito porque
achavam que ele tinha a melhor chance de vencer, era o mais inteligente ou o mais jovem,
mas porque se mostrou a opção mais segura para os americanos em um momento
desafiador. Trump cometeu uma série de erros que lhe custaram a eleição. Ele se colocou
à frente e ao centro da resposta à pandemia — e desagradou aos eleitores com suas
posições equivocadas. Lançou calúnias sobre o sistema eleitoral americano, alienou
eleitores do sexo feminino e mais jovens. Além disso, não conseguiu obter do Congresso
apoio a sua política fiscal nos meses que antecederam à eleição. Sua performance no
primeiro debate foi um desastre.

O senhor acredita que uma transição para um posicionamento político mais


ao centro e menos confrontador possa ser vantajosa para o presidente
brasileiro? Acho que a lição desta eleição é que você não pode vencer apenas com sua
base de seguidores fiéis. Você precisa atrair e aglutinar apoios e seguidores ao centro
(veja reportagem na pág. 36). Biden venceu porque disputou como o Sr. Moderação (Mr.
Middle Ground)e transformou Trump em uma bola de demolição. Funcionou.

Como Biden conseguirá cumprir suas promessas para a recuperação


econômica americana com a dívida pública já em patamares elevados? O
problema não é o tamanho da dívida pública, mas sim o fato de os democratas
provavelmente não terem conseguido bom desempenho no Senado. Se os republicanos
mantiverem o controle, eles poderão obstruir a maioria dos planos de Biden, bem como
as nomeações que ele queira fazer. O importante é saber que esta é a primeira vez desde
1884 que um candidato democrata vence a Presidência, mas não faz maioria no Senado.
Então, estamos entrando em um período de governo muito incomum, dividido. Não será
fácil para Biden fazer as políticas fiscais de grande escala que tinha em mente — ou seja,
gastos em grande escala com saúde pública, educação, infraestrutura. Ele vai precisar que
os republicanos concordem com essas propostas. E isso não vai ser fácil, dado seu
histórico como líder do Senado.

Como o senhor avalia o conflito comercial entre os Estados Unidos e a China


a partir de agora? Biden será um presidente muito mais simpático à Pequim do que
Trump. Ele começou sua campanha no ano passado dizendo que a China não era
realmente uma ameaça. Mas será difícil para Biden retornar completamente à política dos
Estados Unidos de 2016, que era essencialmente aceitar a ascensão da China como algo
irrefreável e tentar ter boas relações com Pequim. Se ele tentar, poderá enfrentar críticas
consideráveis ​de seus próprios apoiadores, bem como dos republicanos. Não vamos viver
mais aquilo que há alguns anos chamei de Chimérica, com a China e os Estados Unidos
praticamente formando um bloco coeso e afinado. A atmosfera só será um pouco menos
tóxica do que era sob Trump.

É possível para Biden pressionar a China dentro de instituições


multilaterais, como a Organização Mundial do Comércio (OMC) e a
Organização Mundial da Saúde (OMS) sem partir para rupturas? Sim. Os
europeus recentemente passaram a ver a China de forma mais crítica, perceberam que o
país pode representar uma ameaça para as sociedades livres, tanto econômica quanto
politicamente. E a eleição de Biden cria um contexto mais favorável para definir uma
estratégia conjunta. Os europeus estão felizes de ver Trump pelas costas, mas,
ironicamente, graças a ele perceberam que deveria haver uma mudança de abordagem
com os chineses. Biden é muito mais amigo do sistema de alianças tradicional e também
das instituições multilaterais. Trump sentiu que poderia enfrentar a China sem aliados, o
que sempre me pareceu um tanto desvairado. E esse foi de fato o seu erro, porque não se
pode vencer uma Guerra Fria unilateralmente. Você precisa de alianças e de organizações
internacionais, como foi contra a União Soviética.

A China tem a real capacidade de tomar o posto dos Estados Unidos de maior
potência mundial? Em termos de produto interno bruto, a China está alcançando os
Estados Unidos a cada ano, porque a sua economia cresce mais rápido do que a
americana. Mas é difícil prever onde estaremos daqui a dez anos. Em algum momento,
veremos uma redução na taxa de crescimento chinês. O país tem problemas muito sérios
como o envelhecimento de sua população e a grande dívida do setor privado. Não
sabemos se os chineses conseguem manter uma taxa de crescimento de cerca de 5% por
muito tempo. Minha suspeita é que ficará em torno de 2% a 5% nos próximos anos.
Pessoalmente, acho que as pessoas estão superestimando a sustentabilidade do modelo
chinês e veremos a sua economia crescendo a taxas muito menores na próxima década.
Isso pode significar que a China nunca alcançará os Estados Unidos.

Com a China e o avanço do dinheiro digital, a hegemonia do dólar está


ameaçada? O dólar é a moeda dominante do planeta, não só em termos de reservas dos
bancos centrais, mas também em transações internacionais. A maior parte do comércio é
feita em dólares e não há uma moeda rival óbvia agora. Vou citar meu velho amigo
Lawrence Summers, ex-se­cretário do Tesouro americano: “Você não pode substituir algo
por nada”. Não há nada para substituir o dólar quando o Japão é um lar para idosos, a
Europa é um museu e a China é uma prisão. E o bitcoin ainda é um experimento.

O Brexit está se aproximando. Ele será um rompimento brusco com a


Europa? Ao deixar o mercado único europeu, o Reino Unido terá a partir de 2021 uma
relação com a União Europeia semelhante à que existe entre o Canadá e a Europa. Será
uma grande mudança e marca o fim de décadas de integração. Eu era contra o Brexit,
achei que era um erro, e que será um divórcio que vai custar mais caro do que o esperado.
Mas a vontade política dos eleitores ingleses certamente foi muito clara, e não parece ser
possível mudar isso. A Grã-Bretanha pediu o divórcio. Como qualquer pessoa que se
separa sabe, é raro reverter tal processo. E, para piorar, Biden não é fã do Brexit. Ele vai
priorizar as relações com Berlim, Paris e Bruxelas, ainda que os laços entre Washington e
Londres sigam fortes em áreas específicas como inteligência e cooperação militar.

Publicado em VEJA de 9 de dezembro de 2020, edição nº 2716

Woody Allen: ‘A cultura do cancelamento é estúpida e


risível’
veja.abril.com.br/paginas-amarelas/woody-allen-a-cultura-do-cancelamento-e-estupida-e-risivel

Woody Allen - Gravier Production/Collection Christophel/AFP

São muitos os fantasmas que rondam Woody Allen. Hipocondríaco, o cineasta de 86


anos ficou aterrorizado com a pandemia. Além das perdas humanas, a Covid-19 agravou a
situação dos cinemas, que já vinham perdendo espaço para o streaming — o que também
tira o sono do diretor. Essas preocupações, claro, são ínfimas perto da avalanche advinda
do movimento #MeToo, que ressuscitou uma antiga acusação feita por sua ex-mulher Mia
Farrow, em 1992, de que o diretor teria abusado da filha adotiva do casal, então com 7
anos. Na época, o cineasta estava se divorciando de Mia, a quem acusa de plantar falsas
memórias na criança. Julgado e sentenciado pelo tribunal do cancelamento, Allen, um
avesso a entrevistas, notou que precisava falar. Lançou em 2020 um livro de memórias no
qual destrincha os pormenores das investigações — todas elas descartaram a acusação.
Mesmo assim, Hollywood optou por boicotar Allen. Mas, resiliente, ele não parou de
trabalhar. Acaba de chegar aos cinemas seu 49º filme, O Festival do Amor, que celebra os
grandes mestres do cinema, mas não tem celebridades no elenco. A VEJA, por telefone,
Allen criticou o entretenimento atual, refletiu sobre a morte e atacou a cultura do
cancelamento.
O Festival do Amor faz uma viagem pela história do cinema europeu, além
de alfinetar produções óbvias embaladas para o Oscar. Por que tal crítica
agora? Eu cresci assistindo a filmes de Hollywood. Adorava ir ao cinema e ver na tela
atores como Humphrey Bogart, por exemplo. Depois da II Guerra, eu tinha uns 18 anos,
as barreiras entre Estados Unidos e Europa diminuíram e um novo mundo cultural se
abriu com produções europeias chegando aos cinemas americanos. De repente, as opções
não eram apenas filmes de mafiosos, faroestes ou musicais desmiolados: eram filmes que
tratavam o espectador como adulto, como alguém capaz de pensar.

Quer dizer que Hollywood faz o contrário, não leva o espectador a pensar
sozinho? Não só Hollywood, mas o cinema de hoje. Sou um saudosista do cinema do
passado. Foi um período maravilhoso. Meus amigos e eu esperávamos ansiosos pelo
próximo filme francês, sueco, italiano que entraria em cartaz. Hoje, os roteiros apostam
em soluções falsas, reviravoltas estúpidas e finais que não confrontam o espectador.
Claro, ainda existem os cineastas que podem ser chamados de artistas, mas eles estão
passando por um momento difícil.

Difícil em que sentido? Filmes são caros de fazer. Um cineasta não consegue realizar
sua arte sozinho, como um músico que compra um instrumento e começa a tocar por aí.
Ou um escritor que não precisa de muito dinheiro para escrever um livro — apenas o
suficiente para não morrer de fome, claro. Já o cinema demanda uma estrutura, uma
equipe, e milhões e milhões de dólares. Por isso, um filme se tornou um produto. Se a
estimativa de bilheteria não for alta o suficiente, como é o caso dos filmes de arte, é difícil
encontrar quem queira investir no seu projeto.

Essas dificuldades não são tão antigas quanto o cinema de arte? Não, a lógica
não era assim nos anos 1960 ou 1970, quando alguns milhões em bilheteria eram
suficientes para sustentar uma produção. Mas, quando a indústria de Hollywood
descobriu que era possível passar de 1 bilhão de dólares em faturamento, isso mudou
tudo. Afinal, por que gastar tempo e dinheiro em uma produção para poucos
espectadores, se é possível lucrar alto com outros títulos?

A indústria cinematográfica com bilheterias bilionárias é alimentada por


filmes de super-heróis. O senhor aceitaria dirigir um filme desse tipo? Eu não
assisto a filmes de super-heróis. Por que dirigiria um? Não me interessam. E, mesmo que
eu quisesse dirigir um, faria um péssimo trabalho. Não saberia nem por onde começar. Só
sei fazer os meus filmes, que são completamente outra coisa.

Entre as críticas aos longas de heróis está a infantilização do público.


Concorda com essa visão pessimista? Sim, as tramas para adultos migraram do
cinema para a televisão, ficando sob a responsabilidade de séries e minisséries. Em Nova
York, as salas que exibem filmes de arte e estrangeiros estão fechando. Mais de 75% dos
cinemas da cidade fecharam. Antes, eu podia atravessar a rua e ser transportado para a
Itália, ou para o Brasil, através de um filme. Mas isso hoje é difícil de encontrar, pois não
são filmes rentáveis.
Nos últimos anos, impulsionada pelo movimento #MeToo, voltou à tona a
suposta acusação de abuso de sua filha Dylan Farrow contra o senhor.
Mesmo se tratando de alegações descartadas por investigações, o senhor caiu
na malha fina do cancelamento. O que pensa desse momento? A cultura do
cancelamento é estúpida e até risível. Um dia ela vai passar e quem a alimentou vai olhar
para trás e ficará envergonhado. Assim como aconteceu com o macarthismo, movimento
dos anos 1950 que acusava pessoas de subversão e comunismo. Hoje nos envergonhamos
ao olhar para o passado sem entender como uma cultura perversa como aquela ganhou
tanta força e atingiu milhares de americanos. Um dia, muitas pessoas terão vergonha de
terem endossado a era do cancelamento.

Atores famosos que trabalharam em seus filmes disseram estar


arrependidos e chegaram a doar seus cachês. Como avalia essa reação e o
boicote a seu nome que se instaurou em Hollywood após a acusação de
abuso? Penso que eles estejam cometendo um erro. É difícil. Bem difícil. Não sei nem
como responder a essa pergunta. Mas acho que eles estão cometendo um erro. Quando
entrei em contato com alguns atores para atuarem em O Festival do Amor e eles disseram
que não queriam trabalhar comigo, eu contratei outros artistas que toparam. E isso é tudo
o que posso fazer agora: dar continuidade ao meu trabalho. Existem diversos atores que
aderiram ao boicote, e muitos outros que ainda querem atuar nos meus filmes e é com
esses que vou ficar.

Com tantos dedos apontados para o senhor, chegou a pensar em parar de


fazer filmes? Venho pensando em muitas coisas. Sei que posso continuar fazendo
filmes, pois existem ótimos profissionais como figurinistas, diretores de fotografia,
produtores e muitos atores talentosíssimos que não me condenaram e não veem
problema em trabalhar ao meu lado. Mas não sei quantos filmes mais ainda vou fazer.
Meu próximo filme será o quinquagésimo. É um número bastante alto. Será que
cinquenta são suficientes? Quem sabe?

Para alguém que há cinco décadas faz um filme por ano é difícil imaginar que
o senhor queira eventualmente se aposentar. Pensa nisso após completar
estes cinquenta filmes no currículo? Sempre achei que faria filmes enquanto eu
vivesse, mas vai saber. Especialmente nesse momento em que o tipo de filme que faço fica
apenas três semanas em cartaz para, em seguida, ir para o streaming. Ou pior: é lançado
na TV e no cinema ao mesmo tempo. Não, eu não quero isso.

Por quê? Sou do tempo em que um filme não era sufocado pelos arrasa-quarteirões e
ficava em cartaz nos cinemas por tempo suficiente para crescer no boca a boca e atrair a
atenção das pessoas. Isso demora, pois são filmes com verbas pequenas, que não gastam
milhões em marketing. É um público que vai ao cinema porque quer, é intencional, não é
uma escolha aleatória na TV.
Mas o senhor é um diretor renomado, uma grife que atrai a atenção. Acha
que seu público diminuiu? O que mudou foi a lógica do mercado. Não importa se
você é o Steven Spielberg, ou o Martin Scorsese, ou o Woody Allen. Tudo agora vai direto
para o streaming. Quando comecei, não era esse o acordo, não era esse o plano. Ficar em
casa de pijama, com a família, alguns amigos e ligar a TV é legal, mas esse é outro tipo de
experiência. No cinema, você sai de casa, se arruma, entra numa sala com desconhecidos
e compartilha emoções, se surpreende, fica até o final. Não pega o controle e interrompe o
filme do nada porque, enfim, quer ir ao banheiro ou fazer pipoca. Você organiza sua
agenda para se adequar à ida ao cinema, e não o contrário. Eu entendo, ver um filme em
plataformas de streaming é mais cômodo e mais barato. Mas, desse jeito, será o fim do
cinema como o conhecemos. Então não tenho certeza se quero continuar trabalhando
nesse esquema.

Se parar de dirigir filmes, o senhor pensa em fazer o quê? Talvez eu queira, em


algum momento, migrar para o teatro. Posso usar minhas habilidades para fazer uma
peça ou, quem sabe, escrever livros. Se bem que as pessoas mal leem livros atualmente
também. Até os livros estão em extinção, as pessoas agora querem ouvir livros. Dá para
acreditar? Duvido que haja algo mais irritante do que ouvir um audiobook em vez de ler
um livro de verdade. Por essas e outras razões, é mais provável que eu faça algo para o
teatro, onde ainda é possível reunir uma plateia com centenas de pessoas para assistir à
mesma história, ao mesmo tempo. É o tipo de experiência que me interessa, que me atrai.

Um dos pontos altos de O Festival do Amor é uma sátira da famosa cena de O


Sétimo Selo, de Ingmar Bergman, em que o protagonista joga xadrez com a
Morte. No seu filme, a entidade de preto aconselha o homem a se cuidar
mais, comer melhor e a parar de fumar, para adiar aquele encontro no
futuro. Seu pavor em relação à morte é bem conhecido. Como está sua visão
sobre o tema? Não mudou muito, para dizer a verdade. Obviamente, conforme a gente
envelhece, em especial durante uma pandemia, a morte se torna mais presente na mente
de todos. Só nos Estados Unidos, a Covid-19 matou quase 1 milhão de pessoas. Mas cada
um tem sua perspectiva sobre como lidar com a morte. E achamos que é possível ser
racional e intelectual sobre esse assunto.

Por que o senhor vê essas inquietações com ceticismo? Uma pessoa, por
exemplo, pode pensar: morrer vai terminar com os problemas da vida, me dará
tranquilidade. Outras vão dizer: vou sentir tanta falta deste mundo, das coisas boas da
vida, não quero morrer. Há também os que tecem discursos religiosos para falar sobre o
fim da vida e o começo de outra. Mas tudo isso não passa da nossa divagação intelectual.
O ser humano é biologicamente programado para resistir à morte. Podemos tagarelar
quanto for sobre o assunto, mas reagir e manter a espécie viva está no nosso DNA. Então
meu falatório, no fim das contas, não serve de nada. Se alguém chega a um lugar com
uma arma, você imediatamente tenta se proteger, quer reagir ou fugir. É natural resistir à
morte, e eu continuo a fazer isso.

Publicado em VEJA de 12 de janeiro de 2022, edição nº 2771


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