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A ascensão da direita em alguns países com larga tradição democrática nos obriga a pensar na
fragilidade da democracia. A eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, que se orgulham de uma
Constituição de mais de 200 anos, embora a noção de democracia deles tenha admitido o racismo e o
fundamentalismo religioso seja uma componente da alma nacional, foi um ponto fora da curva, agravado por
sua forma de governar, em permanente agressão aos valores civilizatórios. O Brasil não tem grande tradição
democrática, mas três décadas contínuas de estabilidade política, convivendo relativamente bem com a
Constituição de 1988, a eleição de um outsider e a mobilização política ameaçadora em torno dele nos põem
as barbas de molho.
O fundamentalismo americano, que também impregna parte da alma brasileira muito mais fortemente
hoje do que há 50 anos, é essencial para compreender a robustez da direita americana. Intuitivamente, aos 14
anos, nos anos 1970, eu sentia alguma coisa desse fenômeno. Mesmo imerso na propaganda pró-americana da
época, eu nutria algumas desconfianças sobre o modo de vida ianque. Eu me perguntava, baseando-me nas
crenças religiosas que eles exportavam: como é que um povo tão inteligente acredita em tanta bobagem? Eu
conhecia os americanos: menino pobre, conhecia o Programa Aliança para o Progresso e o presidente
Kennedy fazia parte do meu universo infantil.
O fundamentalismo religioso é amigo íntimo das posturas de direita. Ambos não têm muito apreço
pela palavra do outro nem apreço por submeter sua própria palavra a escrutínios críticos. Os ritos evangélicos,
nas suas vertentes pentecostais e neopentecostais, não dão valor nenhum ao discurso lógico. A pregação
religiosa não se rege pela lógica verbal, prefere o discurso emotivo, os gritos, as contorções corporais, as
imprecações, as admoestações, as ordens e saudações repetitivas. Não é um discurso verbal de lógica
declarativa, é fundamentalmente imperativo e visa sobretudo a cristalização do medo do diabo e o
engajamento missionário do crente.
A vitória de Trump nos Estados Unidos, um outsider, e sua atuação rocambolesca na Presidência
ressuscitaram temas que as ciências sociais haviam tratado com vigor no período imediatamente posterior à
Segunda Guerra Mundial. Totalitarismo, corrosão da democracia, manipulação das massas, colaboracionismo,
preconceitos, uso da mentira como política de Estado são alguns desses temas. Enfim, a “banalização do
mal”, na expressão famosa da filósofa Hannah Arendt.
Dois livros recentes tratando desses temas se destacam. Um se chama A morte da Verdade e foi
escrito por uma jornalista de grande experiência, Michiko Kakutani, com mais de 30 anos dedicados à crítica
literária no NYT, detentora de um Pulitzer. Escrito num estilo elegante e fluido, o livro trata do relativismo
epistemológico que invadiu, desde os anos 1980, boa parte das Humanidades, conduzida pelos pós-
modernistas abrigados nas universidades um pouco por todo o mundo ocidental. Com um discurso
delirantemente relativista e anticientífico, os pós-modernistas estavam preparando a cama onde se deitaria a
nova direita mundial.
O segundo livro chama-se Como as democracias morrem. Os autores são dois professores de ciência
política de Harvard, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt. Menos ensaístico do que o primeiro, o livro busca na
história política a demonstração de suas teses. Alguns países da América Latina e os Estados Unidos, com
mais profusão, fornecem os exemplos para análise.
Uma das teses do livro é a de que, para a sobrevivência da democracia, não basta a lei escrita, é
preciso que o espírito da lei esteja embebido nos costumes não escritos. Essa parte não escrita,
consuetudinária, é responsável na Inglaterra e nos Estados Unidos, por exemplo, por boa parte dos avanços
democráticos.
Isso nos diz respeito. A cultura política brasileira é pré-iluminista. Quero dizer com isto que o cidadão
comum brasileiro não tem uma concepção plena da divisão dos poderes e dos limites do poder Executivo, o
mais visível e presente. Sua concepção de poder é absolutista: o mandatário deve poder tudo.
Dou dois exemplos. Primeiro: existiu na cidade de Grossos, nos anos 1980, um prefeito que proibiu
um grupo de estudantes universitários de usar o ônibus escolar para assistir aulas em Mossoró. Motivo: os
estudantes tinham falado mal de sua pessoa.
O segundo é pessoal: minha avó paterna tinha uma vendinha no Mercado Público de nossa cidade e,
num dado momento, foi proibida de negociar no local. Esse tipo de microcomércio chama-se, por lá, “hotel”.
Era uma mesa com um banco de madeira à frente e fogareiros a carvão ao lado, onde no dia da feira vendia-se
bolos, tapioca, doces e café para os camponeses que vinham à cidade fazer suas compras semanais. O motivo
do despejo: chegou aos ouvidos do prefeito que Maria Cândido falara mal dele. Ela não votava, porque
analfabeta, mas tinha opinião política e a expressava.
Em nenhum dos casos houve reação. O prefeito estava certo. Se essas pessoas usavam uma coisa da
prefeitura, por que falar mal do prefeito? “Do prefeito” e “da prefeitura”, “público” e “do prefeito” eram
noções coincidentes. A noção de “público”, para muita gente, é um conceito nebuloso, mesmo 30 anos depois
da Constituição de 1988.
O FUNDEF e depois o SUS provocaram uma pequena revolução cognitiva nos agentes do poder
local. Mais nos políticos do que nos munícipes. Esses programas, com o repasse de verbas carimbadas, com
destino certo, eram uma maneira efetiva de dizer ao mandatário que seu poder tinha limites e estava
submetido a algumas regras. A tradição era o prefeito, além da absoluta autonomia sobre as finanças públicas,
mandar no delegado, mandar na professora, mandar até no padre. Não havia instituições. A única instituição
era o prefeito. Em sua cartilha só havia um mandamento e este dizia: “Eu não quero ser prefeito para não
mandar!”. Mandar sem peias nem cabresto. Os eleitores concordavam. Ainda hoje é muito popular o
pensamento “Triste do poder que não pode”. Esta é uma concepção autoritária. Na democracia, cada poder
pode o que a Constituição permite; cada instituição pública pode o que seu estatuto permite, na forma como o
regimento estabelece.
A noção de contrapesos é basilar na teoria política liberal. Os “contrapesos” são as formas reais de
impor limites ao poder. Bolsonaro, na Presidência, parece ter se surpreendido quando descobriu que o
presidente não pode tudo. A maioria de seus eleitores também. Seu governo, sem programa consistente,
sobrevive da permanente tentativa de anular os contrapesos, de aparelhar as instituições. Para ele, dizer o que
o IBAMA deve ou não fazer, o que e a quem a Polícia Federal deve ou não investigar seria o natural. Mas não
é. Não numa democracia.
As reações do STF, aqui e acolá, recolocam o presidente da República no seu devido lugar. Não é o
Supremo que desejamos, independente, íntegro e acima de qualquer suspeita, mas até agora tem mostrado que
para controlá-lo efetivamente será necessário mais que um soldado e um cabo. Já o Legislativo, tem sido mais
Centrão e muletas ao presidente, que contrapeso.
(Publicado no jornal De Fato ed. 6.111, ano XXI. Mossoró, 10 de julho de 2021, p. 2. Espaço Jornalista Martins de
Vasconcelos)