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A comunidade científica é uma invenção de Descartes

Aécio Cândido
é professor da UERN, aposentado, autor de Tempos do Verbo (poesia)

Descartes sabia que chegara às linhas mestras de um método fecundo, capaz de produzir
conhecimento seguro. Isto, porém, não o livrava de outras preocupações. Ele se preocupava, por
exemplo, com a brevidade da vida e com as limitações intelectuais que afetam todos os
humanos. Esses dois fatos constituíam um sério entrave ao avanço do conhecimento. Muitos
estudos importantes poderiam ser interrompidos pela morte e não terem continuidade ou não
irem além, por limitações do autor. Contra esses perigos, ele imaginou uma saída coletiva: uma
rede de “espíritos bem formados” unida pela divulgação das descobertas. Estas, a rede e a
divulgação, seriam a garantia de prosseguimento de trabalhos iniciados. Suas palavras, no
Discurso sobre o Método, traçam um sonho realista: “(...) julgava que não faria melhor
remédio contra esses dois impedimentos do que comunicar fielmente ao público o pouco que eu
tivesse descoberto, estendendo o convite aos espíritos bem formados a procurar ir mais além,
contribuindo cada um conforme sua própria inclinação e poder, para as experiências que fosse
necessário realizar, dando ciência por sua vez ao público de tudo quanto aprendesse, a fim de
que os últimos iniciassem por onde seus antecessores tivessem terminado e englobando desse
modo as vidas e os trabalhos de muitos, poderíamos todos juntos ir muito mais longe do que
cada um isoladamente”.
Sem dúvida, uma das condições para a evolução do conhecimento é a continuidade. A
contribuição ininterrupta de uns e outros gera o acúmulo necessário para o salto. Muitos
atribuem a história tortuosa e descontínua do conhecimento na China Antiga à falta de um
método e de uma comunidade científica organizada. Lá, muitos conhecimentos ficaram
perdidos, morreram com seus descobridores, porque não havia outros que o entendessem e
porque os meios de divulgação eram muito limitados. Não havia, portanto, continuadores de
obras.
O Ocidente também conheceu essa descontinuidade, se pensarmos que a Grécia Antiga
conviveu com um bom número de pensadores interessados em investigar a natureza, e não
apenas a psicologia do homem, o comportamento moral deles e suas relações com os deuses.
Mais de mil anos se passaram, quase toda a Idade Média, para que a retomada de algumas
ideias, pela reconstituição de seus fragmentos, fosse empreendida. Um hiato muito grande.
Muitas obras se perderam por completo, outras em grande parte.
A obra de Aristóteles salvou-se quase toda. E chegou até nossos dias graças aos árabes,
que a preservaram, quando no Ocidente Aristóteles era acusado de paganismo e recusado por
isso. No entanto, de muitos outros pensadores, importantes, como os pré-socráticos, nenhuma
obra chegou até nós na íntegra. Chegaram-nos fragmentos exíguos e uma ou outra discussão
presente nos escritos de Aristóteles ou de Platão, por exemplo.
A destruição da Biblioteca de Alexandria, consumida por um incêndio, foi sem dúvida
uma das maiores perdas da cultura mundial. Num tempo em que os livros existiam em pequenas
quantidades, muitos deles com apenas uma ou pouquíssimas cópias, desaparecer da face da
Terra sem deixar rastros era uma possibilidade muito real.
Exílio, banimento, condenação à morte, como sucedeu a Sócrates, Sêneca e Giordano
Bruno, além de guerras, saques, perseguição religiosa ou política, queima de livros ou perda das cópias
existentes são assaltos contra o conhecimento e frequentemente implicam em perda e ameaça à
continuidade.
Apesar de tudo, a continuidade do pensamento no Ocidente é um fato e este permitiu a
Newton a constatação entusiasmada e famosa: “Nós somos anões, mas sobre ombros de
gigantes, por isso podemos ver mais longe”.
Descartes morreu em 1650. Talvez sem muita convicção de que em breve sua ideia se
tornaria realidade. De fato, 10 anos depois de sua morte foi criada a primeira sociedade
científica, a Royal Society de Londres, sob a influência do pensamento de Francis Bacon. Seus
objetivos eram claros e modernos (isto é, diferentes da tradição): buscar a verdade, submetendo-
a ao argumento do fato levantado pela pesquisa experimental, e jamais aceitá-la em função
apenas da palavra de uma autoridade. A recusa à autoridade estava expressa no seu lema:
Nullius in Verba, ou seja, Nas palavras de ninguém. Nunca acreditar somente na palavra. Por si
só, a palavra, independentemente de quem a profira, não pode valer como verdade.
Newton foi presidente da Royal Society durante 25 anos, os últimos de sua vida. Cem
anos depois de criada a primeira, ou seja, em finais do século XVIII, já havia cerca de 200
sociedades científicas ou artísticas espalhadas pela Europa e América do Norte.
A associação de pares tem três efeitos poderosos: propicia o diálogo, amplifica as vozes,
prepara a continuidade do aprendizado. As academias de ciência serviram para divulgar a
ciência entre o público em geral, disseminar as ideias do método científico e sensibilizar
patrocinadores. Internamente, elas propiciaram o debate, a crítica e a supervisão rigorosa do
percurso que vai de uma hipótese até sua demonstração.
Se a crítica não garante a verdade, facilita, pelo menos, a eliminação do erro. E de
eliminação em eliminação, nos aproximamos da verdade. É esta a grande conclusão que se
extrai do pensamento de Popper, o maior filósofo da ciência no século XX. Este espírito
perpassa as academias, mesmo que a história tenha registrado alguns casos pouco edificantes
envolvendo grandes nomes da ciência. Newton, por exemplo, foi acusado por muitos de seus
pares de deslealdade, de omissão de autorias e mesmo de invejas rasteiras. Sua convivência com
Robert Hook e com Leibniz, criador do Cálculo Diferencial, nunca foi a mais amistosa. Mas a
obra de todos eles sobreviveu, apesar das divergências pessoais.
Os homens (hoje também as mulheres, felizmente) reunidos nas sociedades científicas
partilham uma linguagem, conhecimentos e procedimentos comuns. Desse modo, a crítica pode
ser exercida de forma profunda. São pares: há uma homogeneidade de conhecimentos, o que
torna o olhar mais agudo para a análise de um dado fato e mais fácil a compreensão das
conclusões.
Reuniões periódicas – os congressos -, a edição de revistas, reguladas por seus
conselhos editoriais e pelo trabalho analítico de referees (pareceristas, avaliadores, árbitros), e
outros mecanismos institucionais promovem o rigor da seleção e a divulgação das descobertas.
Essa comunidade científica desenvolve um ethos institucional que foi estudado pelo
sociólogo americano Robert Merton. Sociólogos contemporâneos que gravitam em torno das
teorias da pós-modernidade, sobretudo aqueles alinhados ao chamado “programa forte” da
sociologia da ciência, certamente não endossariam as conclusões de Merton. Contra eles, resta o
fato de que algumas conclusões de Merton resistem bem à crítica e ao tempo; quanto às teses
pós-modernistas, a maior parte delas, não passam de um modismo que já começa a se despedir.

(Publicado no jornal De Fato, ed. 6.170, ano XXI. Mossoró, 18 de setembro de 2021, p. 2. Espaço Jornalista Martins de
Vasconcelos)

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