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A defesa alucinada da mentira

Aécio Cândido
é professor da UERN, aposentado, autor de Tempos do Verbo (poesia)

Eu ri quando meu amigo mexicano, jovem de 19 anos, rico, bancado pelo pai para estudar línguas
numa universidade canadense, me contou o que seu pai lhe contara: Fidel Castro, em pessoa, açoitava os
presos políticos, opositores do regime cubano. Rindo, pelo que a história tinha de humor absurdo, questionei
sua veracidade. Ele sustentou: “É verdade, sim”. Parei de rir quando vi que ele acreditava sinceramente
naquele enredo estapafúrdio. Era provavelmente uma das histórias espalhadas pela oposição castrista
radicada em Miami. Eu sabia da existência dos cubanos de Miami, sabia do ódio que nutriam pelo regime
político da Ilha, mas não tinha a dimensão exata de seus delírios até conhecer a direita bolsonarista. É
verdade que nos anos 1950 e 1960 havia no Brasil gente que acreditava piamente na natureza antropofágica
dos comunistas: eles comiam criancinhas. Como se acreditou, nos séculos seguintes ao século IV de Nossa
Era, que os judeus e todos os seus descendentes, em castigo pela morte de Jesus Cristo, mereciam ser
expulsos de todos os territórios cristãos; e, nas décadas finais do século XIX e nas iniciais do século XX, em
razão do pacto que firmaram para dominar o mundo, submetendo a economia e a política à sua sanha de
dominação, como acreditava Hitler e a maioria do povo alemão, deviam ser exterminados.
A mentira é a matéria-prima dos fanatismos. O fanático está psicologicamente impedido de duvidar,
ainda que muito brevemente, de suas crenças. Daí aceitar passivamente a mentira. O fanático desconhece o
ceticismo como fonte de aprimoramento do conhecimento. “Será que é isso mesmo?”, “Isso é mesmo
verdade?”, “Eu não estou sendo muito ingênuo em acreditar nisso?” Essas perguntas cuidadosas e honestas
não passam pela cabeça do fanático.
Curiosamente, a maior parte da base eleitoral do bolsonarismo é constituída por evangélicos, boa
parte deles fundamentalistas zelosos do sentido literal da palavra bíblica. Mas não se sentem constrangidos
em avalizar as mentiras de Bolsonaro e do Gabinete do Ódio. Também curiosamente, a matéria mais
combatida pela tropa de choque bolsonarista no Congresso Nacional é a que trata da criminalização das fake
news. Reivindica-se a liberdade e o direito de mentir, portanto, a impunidade para a mentira, mesmo que isso
implique em falso testemunho. Com isso, dá-se com os pés no 8º mandamento: não levantar falso
testemunho.
No universo mental da cultura rural nordestina, de forte inspiração católico-popular, a noção de falso
testemunho era muito presente e de conotação bastante negativa. A pessoa capaz de prestar falso testemunho
era também mentirosa, disposta a inventar acusações sem provas. Um doente moral, enfim.
O poeta Crispiniano Neto conta uma história, paradoxal e hiperbólica, bastante ilustrativa da
importância cultural dessa questão: alguém, preocupado com o risco que um amigo corria, lhe faz o alerta:
“Tenha cuidado com Fulano. Ele é do tipo que levanta falso... e prova”.
A aceitação passiva da mentira como regra é talvez a evidência mais forte de que o fundamentalismo
dessa gente não passa de uma forma de hipocrisia. São os “sepulcros caiados”, incapazes de um exame de
consciência.
Quem acusa com convicção não pode deixar de lado o senso de justiça. Quem acusa buscando
reparar algo errado deve considerar, sempre, as seguintes interrogações: e se eu estiver enganado? E se eu
estiver acusando injustamente? E se o político que eu acuso de ladrão não for ladrão? E se eu estiver
defendendo castigo para um inocente? Do mesmo modo, vale também o questionamento em sentido
contrário: e se o Mito que tanto admiro for de fato um mito? O bolsonarista puro-sangue não tem esse tipo de
preocupação.
É surpreendente ver cristãos sem nenhuma preocupação com a Justiça. Eles não estão à procura de
fatos que justifiquem punições. Os fatos não interessam e se eles surgirem para demolir a acusação não serão
levados em conta. Os fatos não contam. Depois da suspeita levantada, da acusação feita e propagada, nada
fará mudar seu curso.
Os bolsonaristas acusaram o BNDES de, sob o governo do PT, ter dado dinheiro a Cuba e a alguns
países da África, lesando o Tesouro Nacional. Diziam que era preciso abrir a “caixa preta” do banco. Pagou-
se uma auditoria com este fim, caríssima, como são essas auditorias: 48 milhões de reais. Encontrou o
vendaval de escândalos que os economistas de rodeio e de churrasco alardeavam? Nada, nenhuma
irregularidade. Gente séria, com conhecimento técnico para fazer esse tipo de avaliação, já dissera de graça
que a tal caixa preta não passava de delírio de fanáticos. Mas precisou o contribuinte pagar 48 milhões para
descobrir o óbvio. Mesmo assim, os bolsonaristas continuam a insistir na acusação tresloucada: houve roubo
no BNDES e o dinheiro foi para Cuba. Foi o que o cantor Amado Batista repetiu há poucos meses.
Convicção bolsonarista, depois de adquirida, nenhum fato tem o poder de abalá-la.
Nem quase 600 mil mortes abalam a crença na gripezinha e nas virtudes da hidroxicloroquina e da
ivermectina . E não poucos médicos, cegos por uma ideologia tosca, negando tudo o que aprenderam nos
bancos da faculdade, continuam receitando o que a ciência em todo o mundo já constatou ser uma fraude.
Enfim: o bolsonarismo não é uma preferência política, é uma doença mental de difícil cura.

(Publicado no jornal De Fato, ed. 6.181, ano XXI. Mossoró, 2/10/2021, p. 2. Espaço Jornalista Martins de Vasconcelos)

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