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A ciência nossa de cada dia

Aécio Cândido
é professor da UERN, aposentado, autor de Tempos do Verbo (poesia)

Meu avô paterno morreu em 1973, alguns anos depois de ter chegado energia elétrica à
nossa cidade. Agricultor, morreu sem saber o que é adubo químico e sem jamais ter falado ao
telefone. Sua vida não foi muito diferente da vida de seus avós, passada no século XIX. Tivesse
vivido alguns anos mais, ele teria assistido a uma série de mudanças intensas em nossa região.
Duas décadas depois de sua morte, muitas vaquejadas passaram a se realizar à noite. Ele
não teria acreditado numa notícia dessas. Esporte dos mais populares no interior nordestino, até
os anos 1980 as vaquejadas ocorriam apenas durante o dia. Com a expansão da rede de energia
elétrica e o acesso a uma iluminação mais potente, muitas vaquejadas tradicionais viraram festa
noturna.
O uso da eletricidade na iluminação pública permitiu que se atenuasse a distinção entre
dia e noite, assim como eliminou os medos que a escuridão desperta. Conta-se que Câmara
Cascudo respondeu assim a um jornalista que lhe perguntou se ele tinha medo de visagem:
“Conversando com você aqui nesta sala iluminada, não tenho não; mas, no sertão, numa noite
escura, atravessando um riacho e passando por baixo de um pé de oiticica, eu tenho”. De fato,
a claridade afugenta os medos. Ela possibilita a observação e, assim, fecha espaço à imaginação
– aquilo que se vê não se imagina. Por outro lado, os medos coletivos são persistentes.
A história acima é emblemática do avanço da ciência no quotidiano. A ciência tem
respondido bem à expectativa de extrapolar os limites humanos e de promover alívio ao peso do
trabalho.
O sociólogo italiano Domenico De Masi lembra que Júlio César, político e militar
romano, e Napoleão, político e militar francês, separados por mais de 1800 anos, consumiam o
mesmo tempo para se deslocarem entre Roma e a Gália, correspondente hoje ao território
francês. Como se vê, em 18 séculos, nenhum avanço significativo ocorreu na área dos
transportes. No entanto, a partir da Revolução Industrial, inicialmente com a energia a vapor, os
progressos se intensificaram.
Hoje, um avião multiplica em muitas dezenas de vezes a velocidade humana máxima e
o percurso entre Roma e Paris pode ser feito em poucas horas. Num país continental como o
Brasil, é possível, usando-se o avião em voos comerciais (o que significa dizer que algum tempo
se perde nas escalas e nos aeroportos), tomar o café da manhã em Florianópolis, por exemplo,
almoçar em Natal e jantar em Mossoró, ainda que se faça de carro o percurso de quase 300 km
entre as duas últimas cidades. O progresso nos meios de transporte, deixando para trás o lombo
de animais, as bigas romanas e o carro de boi, é uma conquista da Física moderna, dos estudos
sobre o movimento, a energia e os materiais.
A ciência, transformada em tecnologia, multiplicou em muitas e muitas vezes as
capacidades humanas. Ela tornou o homem mais veloz, mais informado e mais longevo. Se a
velocidade humana natural não passa de 6 km por hora, a do avião vai a 1200 km (200 vezes
mais); se a memória humana é falha para armazenar grandes quantidades de informações, o
computador expande quase ao infinito essa capacidade; se há poucos séculos a vida do homem,
submetida à competição com outras espécies, mal passava de 40 anos, hoje, graças aos
antibióticos, às vacinas, às vitaminas, aos hormônios artificiais e a outras intervenções da
medicina, chegar aos 80 anos não é mais um privilégio de pouquíssimos.
A medicina prolongou a vida humana, evitou a morte precoce (mortalidade infantil),
tornou a existência menos atribulada e a velhice menos doentia. A agronomia, graças à
adubação química, aos defensivos agrícolas e às sementes selecionadas, produziu o que se
chamou de “revolução verde”, uma elevação fantástica na produtividade das plantas. Com isso,
afastou-se em grande medida o fantasma lançado pela previsão catastrófica do frade Malthus,
que, no final do século XIX, concluiu que o futuro seria sombrio, em razão do descompasso
existente entre a expansão demográfica e a produção de alimentos. Mas se na Antiguidade o
trabalho de um agricultor poderia alimentar no máximo três pessoas, na agricultura moderna, o
trabalho de um homem pode alimentar centenas e centenas de outros. Na região de Mossoró, no
cultivo irrigado do melão, dois homens são suficientes para tocar a produção em um hectare,
produzindo pelo menos 35 mil quilos da fruta, o que é suficiente para alimentar 700 pessoas
durante todo um ano, cada uma delas consumindo mais de um quilo da fruta por semana.
Não sem razão, a população economicamente ativa na agricultura dos Estados Unidos
não chega a 3%. No Brasil, passava de dois terços nos anos 1940 e hoje fica em torno de 14%.
A liberação de mão de obra da agricultura para outros setores da economia teve um
efeito determinante nos rumos da sociedade. Ela permitiu que a sociedade se diversificasse,
gerando mais interconexão entre os grupos sociais. Para confirmar o fenômeno, você, leitor,
pode fazer um exercício simples de observação: veja quantas pessoas do seu círculo de amizade
exercem uma profissão inegavelmente ligada à produção de bens primários. Certamente você
conhece muitos professores, jornalistas, publicitários, cantores, músicos, servidores públicos,
cabeleireiros, desportistas, policiais, comerciários... Nenhum desses produz bens primários.
Não fosse o avanço tecnológico, a sociedade não poderia dispensar braços de se
ocuparem com a produção. Nas sociedades primitivas, as profissões situadas fora da produção
eram apenas as de soldado e sacerdote. Mesmo assim, os exércitos profissionais e a
profissionalização do culto só ocorreram em momentos mais avançados da história. As
sociedades primitivas e as sociedades camponesas dispensavam escritores, professores e
estudantes, até porque eram ágrafas.
O avanço tecnológico precisou das contribuições de todos os campos do conhecimento.
Os estudos da Física, por exemplo, no campo da Mecânica (estudo do movimento)
patrocinaram a produção de máquinas capazes de enfrentar, em lugar do homem, o trabalho
pesado ou perigoso. O trator, na agricultura, livrou o homem da capina; a escavadeira, na
construção civil, livrou-o do extenuante trabalho de fazer escavações, e o guindaste poupou-o
do trabalho de levantar peso. Tudo isso rompeu com a tradição de séculos e séculos de trabalho
pesado, tornando-o, em muitos casos, quase um divertimento.
A globalização dos mercados é resultado do progresso na área dos transportes e das
comunicações. De fato, antigamente (anos 30 e 40 do século passado), um fazendeiro
nordestino que tivesse uma boiada para vender teria que deslocar essa boiada até uma feira, em
viagem, às vezes, de dias, e lá esperar o aparecimento de compradores. Hoje ele vende num
único dia as boiadas que tiver, usando os meios de comunicação disponíveis: o telefone, o e-
mail, os aplicativos de mensagem e as redes sociais. A popularização vertiginosa da internet
eliminou completamente as distâncias e amplificou de tal modo o alcance da voz que, a rigor,
todos hoje encontram-se permanentemente frente à frente.
Os negacionistas negam a esfericidade da Terra, negam a eficácia da vacina, negam as
virtudes da democracia. Negar o celular seria um suicídio óbvio: sem celular, nada de fake
news. E é delas que eles se alimentam.
(Publicado no jornal De Fato ed. 6.204, ano XXII. Mossoró, 30/10/2021, p. 2. Espaço Jornalista Martins de
Vasconcelos)

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