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CORREIO * 4 JUN 200C

squerda e populismo
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
na América Latina
Ex-presidente da República análise. Embora a esquerda atual não insista os movimentos étnicos. Pela primeira vez o
no controle coletivo dos meios de produção e eleitorado escolheu um presidente indígena,

A
julgar pela maioria das análises aca- reconheça o dinamismo das forças de merca- este é o verdadeiro significado de sua eleição.
dêmicas e artigos publicados sobre as do, o ideal de uma sociedade mais igualitária Importa secundariamente se ele é de esquer-
últimas eleições, a esquerda teria feito se de ampliação dos canais de participação da da, de qual esquerda, eventualmente de direi-
um retorno à cena em grande estilo psociedade civil permanece como um critério ta, ou se é populista em seus métodos e em
na América Latina. Essa versão esquemática p ara o alinhamento político. Assim como me sua retórica. E inegável que a forma que esco-
dos fatos vinha sendo amplamente aceita. i arece certo que a esquerda atual rejeita a Iheu para nacionalizar os ativos das empresas
Agora surgem interpretações mais sofistica- vdéia do partido-dínamo, força quase exclusi- estrangeiras que exploram gás e petróleo na
das da paisagem política. da da mudança social, e afasta as tentações de Bolívia, com fanfarra e ocupação militar, dá
Jorge Castafieda, que foi chanceler do d iminuir a importância do Estado de direito e sinais de um populismo ultrapassada Se ficar
México, discerne matizes. Em artigo publi- d as instituições representativas em benefício nisso, não fará o que a História espera dele:
cado na revista Foreign Affairs, distingue a mobilização das massas.
que negocie com energia mas sem insensa-
duas esquerdas: uma "tem raízes radicais, re Para mim, o governo de Michelle Bachelet tez, os recursos naturais da Bolívia para me-
mas hoje está moderna e aberta, ao passo q presenta o que hoje se deve chamar de es- lhorar a vida do povo. Se, com uma atitude
que a outra é fechada e fortemente o uli uerda. Quarta presidente eleita no Chile I objetiva, levar mais inirestimentos e reduzir a
ta . Para Castafieda, a primeira esquerda, re- Concertación Democrática, aliança essen- pobreza, o povoo reconhecerá como um diri-
presentada por líderes tais como a chilena cialmente de dois partidos tradicionais, o So- gente à altura dos desafios simbólicos e práti-
Michelle Bachelet e o presidente Lula, seria cialista e o Democrata-Cristão, que foram ri- cos de seu país.
"boa" e deveria por isso ser fortalecida pela vais no passado, mas têm sido capazes de se O presidente Kirchner é peronista, como o
comunidade internacional; já a segunda ver- renovar para dar continuidade e rumo ao Chi- neoliberal Carlos Menem dos anos 90 e o pre-
tente pouco ou nada teria do ideário de es- le, dirige um país que exibe boas taxas de sidente Eduardo Duhalde, mais recentemen-
querda. Significaria a volta do velho populis- crescimento econômico, respeito absoluto ao te. De novo cabe a pergunta: o que há de es-
mo autoritário, representado por figuras co- Estado de Direito, aumento da participação querda no peronismo que sobrevive à morte,
mo Hugo Chávez, Evo Morales e Néstor Kir- popular e implementação de políticas de re- há mais de 30 anos, de seu fundador, Juan Pe-
chner. Embora veja méritos na análise de dução da pobreza. rón, que encarnou como ninguém o populis-
Castafieda, acho que o panorama da região é Em contraste, os presidentes Hugo Chá- mo latino-americano?
mais nuançado e complexo. vez, da Venezuela, e Tabaré Vázquez, do Uru-
Não consigo enxergar, nesses casos, uma
Numa recente entrevista, Kenneth Maxwe- guai, representam, conquanto de forma bem reviravolta à esquerda na América Latina.
11, brasilianista britânico, oferece uma pers- distinta, fenômeno justamente oposto ao do Fosse o Chile o exemplo, ou mesmo o Uru-
pectiva mais abrangente e menos alentadora. Chile: a falência do sistema político tradicio- guai de Tabaré Vázquez, caberia o qualificati-
Para ele, "a esquerda não é uma categoria que nal, num caso e, noutro, o cansaço do eleito- vo. O que vejo hoje em alguns países é um an-
possa ser muito útil ou adequada" para inter- rado com os partidos tradicionais, embora tiamericanismo com um retorno gradual ao
pretar a realidade atual. Muito menos se po- sem ruptura do sistema político. Tabaré Váz- populismo, e noutros muita hesitação quanto
deria falar com propriedade de uma esquerda quez é o primeiro presidente eleito em muitas aos caminhos a serem seguidos. O populismo -
"errada" e de outra "certa": o presidente Lula, décadas que não pertence aos partidos Blan- é uma forma insidiosa de exercício de poder
por exemplo, teria passado da cate or . d co ou Colorado, que governavam há mais de
100 e ine essencialmente por prescindir
esquerda "errada", ainda em 2002, para con- púb anos. Seu governo tem oferecido políticas da mediação das instituições, do Congresso,
verter-se à esquerda "certa" nos últimos anos anu licas prudentes e sensatas, bem como dos partidos, e por basear-se na ligação direta
(para muitos, digo eu, perdendo mesmo apronciado sua intenção, surpreendente, de do governante com as massas, cimentada na
qualquer referencial de esquerda). O que es- Chá ximar-se economicamente dos EUA. troca de benesses.
taria ocorrendo na América Latina seria uma ricam vez, ao contrário, faz da retórica antiame-
A ameaça do retorno do populismo à Amé-
crise de governabilidade, sem produzir um das m sta sua principal bandeira aglutinadora rica Latina e, mais especificamente, à Améri-
movimento uniforme na direção da esquer- tica t assas. Declara-se um "outsider" da poli- ca do Sul, não trará escolhas fáceis ao Brasil e
da. Na região há, em cada país, um "mosaico milit radicional, sem filiação partidária, um ao governo atual. Havíamos concebido a inte-
de respostas específicas a estruturas políticas plebiar cujo poder aumenta com referendos e gração econômica e política da América do
decadentes e aos cada vez mais altos níveis de cimeiscitos convocados ao sabor dos aconte- Sul, nos anos 90, com base nos princípios da
desigualdade social e exclusão social". de esntos e da conveniência política. O que há democracia política e da economia de merca-
Concordo com a visão de Maxwell. É na anti- querda em Chávez, com seu discurso do. O exercício da integração econômica faci-
história das transformações sociais, políticas com aamericano que contrasta, na prática, litaria nossas respostas ao desafio da globali-
e econômicas de cada país, bem como nas venez postura realista de vender o petróleo zação. Todo esse edifício pode ter suas bases
opções ideológicas escolhidas por seus líde- O puelano ao país do Norte? solapadas se o populismo voltar à região, tra-
res, que devemos buscar a explicação do que tinto. residente Evo Morales é um caso dis- vestido de esquerdismo, trazendo consigo o
está ocorrendo. Mas, penso eu, a distinção BolíviaA crise de governabilidade é crónica na jogo de rivalidades antigas e muitas vezes
entre esquerda e direita continua útil para a les poa. O ineditismo da situação é que Mora- pessoais em lugar da cooperação institucio-
de reivindicar autênticas ligações com nal entre nações.

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