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Análise de Conjuntura OPSA

| n.2, fev. 2010 |


Observatório Político Sul-Americano
Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro IUPERJ/UCAM
http://observatorio.iuperj.br

Até onde vai a “onda rosa”?


Análise de Conjuntura (n.2, fev. 2010)
ISSN 1809-8924

Fabricio Pereira da Silva


Doutor em Ciência Política pelo IUPERJ

A política latino-americana foi marcada na última década pela ascensão de


partidos, movimentos e lideranças de esquerda a governos nacionais. Tal ascensão,
por sua relativa sincronia e delimitação regional, constitui em si mesma um
processo sócio-político único, que pode ser compreendido em seu conjunto (uma
“vaga” de esquerda a percorrer a região), com diversas características coincidentes
– mas com suas especificidades locais. O fenômeno foi chamado de “onda rosa”
latino-americana, ou expressões semelhantes (conferir, por exemplo, Panizza,
2006, que fala em “maré rosa”). A evidente inspiração vinha da ascensão de
partidos de centro-esquerda europeus ao poder na segunda metade dos anos 1990,
nomeada por analistas da mesma maneira. Se o fenômeno latino-americano, num
olhar mais apurado, não guarda tanta relação com o europeu, devendo ser
compreendido por si mesmo, ao menos a expressão pode ser aproveitada.
No entanto, para além da forma como o fenômeno pode ser chamado, o que
deve ser destacado é seu ineditismo, que deriva tanto do número elevado de países
nos quais se deu, quanto do fato dele ter se manifestado através de vitórias
eleitorais. Seria desnecessário e exaustivo recordar as inúmeras convulsões sociais
que assolaram a América Latina ao longo do último século em nome das esquerdas
ou do combate dado a elas. Seria igualmente desnecessário e exaustivo descrever
as dificuldades das esquerdas de se integrarem aos sistemas políticos e à disputa
democrática. Dito em poucas palavras, tratava-se até então de uma dificuldade das
esquerdas latino-americanas em serem aceitas pelas frágeis democracias da região
(quando elas existiram ou ensaiaram existir), e ao mesmo tempo em aceitá-las de
bom grado.
A “onda rosa” se iniciou ainda na década de 1990, com a eleição de Hugo
Chávez em 1998. Chávez, fundador do personalista Movimento V República (MVR),
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chegou ao poder em meio ao colapso das instituições e partidos “tradicionais”. Na


sequência, Ricardo Lagos, oriundo do Partido Socialista do Chile (PSCh), foi eleito
em 2000, representando uma inflexão à esquerda na Concertação, aliança que
governava o país desde o retorno à democracia em 1990. Em 2002, Luiz Inácio Lula
da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), foi eleito no Brasil. Na Argentina,
Néstor Kirchner foi eleito presidente em 2003, e procurou governar como parte
integrante desse giro à esquerda – apesar das evidentes dificuldades em se
considerar de esquerda um governante oriundo do peronismo. Tabaré Vázquez, da
Frente Ampla (FA), venceu as eleições uruguaias em 2004. Em 2005, Evo Morales,
do Movimento ao Socialismo (MAS) da Bolívia, venceu as segundas eleições que
disputou, como culminância da crise político-social vivenciada pelo país nos anos
anteriores. No ano seguinte, Rafael Correa chegou ao poder no Equador, após
fundar um movimento com o intuito de concorrer às eleições presidenciais, o Pátria
Altiva e Soberana (PAÍS na sigla em espanhol), também em meio a um colapso de
instituições e partidos “tradicionais”. No mesmo ano, Daniel Ortega e sua Frente
Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) regressaram ao poder na Nicarágua,
dessa vez por meios eleitorais. O ativista social Fernando Lugo chegou ao poder no
Paraguai em 2008 encabeçando uma frente de movimentos sociais, sindicatos e
partidos de oposição, encerrando uma hegemonia de seis décadas dos colorados.
Por fim, no ano seguinte Mauricio Funes, da Frente Farabundo Martí para a
Libertação Nacional (FMLN), chegou ao poder em El Salvador.
Como se vê, pela sua envergadura trata-se de uma tendência que marcou a
política latino-americana na última década, assim como a expansão das políticas
que se convencionou chamar “neoliberais” havia marcado a década de 1990. Para
reforçar esta afirmação, uma característica notável da ascensão de forças de
esquerda na região foi sua capacidade de reprodução imediata. Os presidentes e
partidos que foram expostos a pleitos nacionais puderam se reeleger ou eleger seus
sucessores. Chávez (2000 e 2006), Lula (2006), Correa (2009) e Morales (2009)
foram reeleitos. Lagos foi sucedido por Michelle Bachelet, também do PSCh, eleita
em 2006. Kirchner pôde apoiar sua esposa, Cristina Kirchner, como sua sucessora,
eleita em 2007. A FA elegeu em 2009 mais um presidente de suas fileiras, José
“Pepe” Mujica. O desenvolvimento dos “governos progressistas” e a reprodução da
“onda rosa” no tempo ampliam a gama de questionamentos que podem emanar
desse fenômeno. Além de compreender as razões de sua inédita ascensão, um
balanço preliminar de seus governos já pode ser iniciado, bem como se pode
questionar até que ponto chegaria a capacidade de reprodução no futuro próximo
desses governos.

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O intuito desse artigo é apontar chaves analíticas para a compreensão


desses problemas. Desde já, deixo claro que, pela complexidade dos fenômenos e
pelas limitações de espaço, a intenção é literalmente sugestiva. O artigo está
estruturado da seguinte forma. Primeiro aponto fatores que conjuntamente podem
explicar a ascensão das esquerdas latino-americanas ao poder – e a partir disso
procuro destacar algumas diferenças entre os casos nacionais. Na sequência, sugiro
algumas linhas que poderiam guiar a análise dos “governos progressistas” da
região, exercício que se inicia timidamente entre a literatura especializada. Por fim,
a partir de tudo que foi exposto, faço algumas prospecções acerca das
possibilidades de reprodução dos “governos progressistas”.

O que explica a “onda rosa”?1

Para compreender a ascensão das esquerdas latino-americanas a governos


nacionais nos últimos anos, é necessário, antes de tudo, abordar algumas
transformações mais propriamente estruturais que se deram nas últimas décadas e
favoreceram a referida ascensão.
Em primeiro lugar, a (re)democratização ocorrida na região, principalmente
na década de 1980. Após caminhos longos e complexos, a literatura especializada
pôde concluir que os processos de “transição” e “consolidação” (como aquela
literatura nomeava) das democracias latino-americanas haviam chegado a um
termo (Linz, Stepan, 1999). Ainda que marcado por notáveis limitações
institucionais e sociais (O’Donnell, 2004), esse processo abriu espaço para a
emergência e estruturação de forças oposicionistas “viáveis”. Estas puderam se
desenvolver e participar de seguidas eleições em diferentes níveis e relativamente
limpas, e ocupar espaços de poder local e nos parlamentos. Finalmente, a chegada
de algumas dessas forças ao poder, especificamente as filiadas à esquerda do
espectro político, demonstrou que as democracias latino-americanas possuíam ao
fim e ao cabo alguma vitalidade. Mesmo nos países que enfrentaram colapsos
institucionais e viram sistemas de partidos inteiros ruírem, a saída da crise se deu
por meios eleitorais (ainda que na sequência as instituições fossem profundamente
reformadas por algumas pelas forças políticas que chegaram ao poder).
Outro fator que abriu espaço para um potencial avanço das esquerdas em
democracia na América Latina foi o fim da “Guerra Fria”, com a derrocada do
“socialismo real” e consequente fim do mundo bipolar. Se o fim do “mundo
socialista” e a crise do pensamento marxista foram traumáticos mesmo para as

1
O conteúdo dessa seção, aqui apresentado sumariamente, foi desenvolvido na minha tese de
doutoramento em Ciência Política, intitulada “Vitórias na crise: trajetórias das esquerdas latino-
americanas contemporâneas”, defendida recentemente no IUPERJ.

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esquerdas que não eram intimamente ligadas a referentes práticos e teóricos do


socialismo, por outro lado, abriram a possibilidade especificamente para as
esquerdas latino-americanas de atuarem em democracias menos “bloqueadas”.
Com o fim da “Guerra Fria”, houve uma espécie de liberação prática e simbólica na
região, na medida em que a interferência norte-americana na sua antiga “zona de
influência” direta, se não se esgotou, ao menos manifestou certo refluxo
(Castañeda, 1994; Sader, 2009):

Um dos indicadores do tipo de restrição que a Guerra Fria impunha à


América Latina está expresso no desaparecimento das intervenções
militares no pós-Guerra Fria e a consequente erosão do poder
dissuasório que os militares detinham com respeito à dinâmica
política democrática e à expansão da cidadania social. Nesse novo
contexto, governos populares puderam não apenas ser eleitos como
também exercer seus mandatos (Lima, 2008, p. 11).

Se novas possibilidades e espaços estavam abertos, isso não significava que


seriam necessariamente ocupados por atores concretos. No entanto, isso
efetivamente se deu. E o espaço foi ocupado por atores que guardavam diversas
características em comum, que os tornaram melhor adaptados ao novo ambiente
no qual se desenvolveram. Destaco a seguir quatro ordens de fatores.
Os mais importantes representantes das esquerdas do subcontinente, os que
constituíram governos nacionais, se afastaram dos tradicionais modelos
organizativos associados a esse quadrante político: seja o modelo “classista de
massas” (característico da socialdemocracia européia em sua fase “clássica”),
tradicionalmente associado aos setores de centro-esquerda ou de esquerda
democrática, seja o modelo “leninista”, associado às correntes comunistas
(Gunther, Diamond, 2003). Ao distanciar-se desses formatos organizativos, se
afastavam de modelos pouco adaptáveis à modernidade contemporânea, à sua
nova fase, da qual o subcontinente é parte integrante, ainda que de forma criativa
e específica (Domingues, 2009). Por serem pouco flexíveis e calcados na
mobilização coletiva e em identidades sociais agora em desagregação, os referidos
modelos “clássicos” das esquerdas seriam pouco adequados a uma realidade
progressivamente marcada por um aumento da complexidade social e por
identidades e subjetividades coletivas mais flexíveis e heterogêneas. Mas se essas
esquerdas se afastaram de modelos organizativos pouco adaptáveis, elas não o
fizeram na direção de um único novo modelo. Pelo contrário, assumiram formas
diversas (até certo ponto “híbridas”), de acordo com as realidades locais, não mais
a partir de uma “fórmula” universal.
As esquerdas mais relevantes do subcontinente igualmente se afastaram dos
modelos ideológicos tradicionais desse campo político, notadamente das

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experiências do “socialismo real” e do marxismo(-leninismo) enquanto ideologia


“oficial”, em certo sentido “nacionalizando-se”. Considerando-se a já mencionada
crise do ideário marxista e derrocada do “socialismo real”, a relativa
“independência” simbólica permitiu o afastamento em relação a referências em
franco colapso e a adequação à crescente fluidez e heterogeneidade social da
modernidade contemporânea. Abriu-se, acima de tudo, a possibilidade para a
ampliação dos setores sociais que essas esquerdas pretendem representar,
potencialmente aumentando suas bases sociais e eleitorais. Notou-se,
efetivamente, um crescente pluriclassismo e supraclassismo entre elas. Além da
potencial ampliação dos setores aliados, com a inclusão de camadas médias e de
setores “produtivos” da burguesia, é notável o recurso a referências como “pobres”,
“cidadãos”, “povo” ou “nação”.
Além disso, num sentido “mínimo”, essas esquerdas se afirmaram
democratas e aceitaram participar do “jogo democrático” – mais do que alguns
analistas e/ou adversários políticos gostariam de admitir. Com isso, se afastaram
da imagem comumente associada a esquerdas de todos os quadrantes, em especial
as do subcontinente. As esquerdas latino-americanas atuais aceitaram a
democracia em seus aspectos representativos, entraram na disputa democrática, e
foram aceitas como adversários pelos seus contendores (algo difícil até pouco
tempo na região). Assim, essas esquerdas se adaptaram à (re)democratização
vivenciada no subcontinente, podendo aproveitar-se de suas possibilidades – que
se mostraram, ao fim e ao cabo, mais frutíferas do que alguns setores críticos mais
recalcitrantes tendem a admitir.
Por fim, outra característica comum foi o antineoliberalismo dessas
esquerdas, o que lhes permitiu preservar seu caráter alternativo e oposicionista em
meio às intensas reformulações descritas. Se essas esquerdas são distintas, em
diversos pontos, das tradições desse campo político, era de se esperar que
houvesse o risco de afastamento em relação àquela identidade como um todo,
acarretando a perda de bases sociais populares e a conquista de novos setores
heterogêneos. O antineoliberalismo teria servido como um “dique de contenção”,
impedindo que se estabelecesse um jogo de “soma zero”, garantindo-lhes o papel
de oposição à esquerda do espectro político, ao mesmo tempo em que antigas
estruturas, valores e identidades eram transformados nos partidos de mais longa
duração, ou simplesmente não se manifestavam entre movimentos de formação
recente. Pode-se afirmar assim que o antineoliberalismo serviu simbolicamente de
“farol” e de denominador comum aglutinador, em meio ao “nevoeiro” das grandes
transformações ocorridas na última quadra histórica. Adicionalmente, serviu de

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atrativo de votos e apoios quando o neoliberalismo começou a dar sinais de


esgotamento na região e no mundo.
Em relação estreita com esses fatores, deve-se abordar a crise de
legitimidade de instituições e sistemas partidários em diversos países latino-
americanos, notadamente na Venezuela, na Bolívia e no Equador. Tal crise em
diversos países parece ter oferecido uma janela de oportunidade a alguns
movimentos e novos partidos de esquerda, que surgiam como alternativas a
partidos considerados “tradicionais”. Em meio a um processo de perda de
legitimidade de partidos e formas de representação tradicionais e de colapso dos
sistemas partidários vigentes até então, esses novos movimentos e lideranças
puderam canalizar o descontentamento popular. Ao mesmo tempo deve-se
questionar se há relação entre estes processos regionais e o que boa parte da
literatura especializada define como uma crise geral da representação partidária2,
problema que não cabe nestas páginas.
Quando trato aqui de “crise” refiro-me a um movimento estrutural,
“orgânico”, no qual se manifesta uma crise de direção político-social, algo notado
especificamente na Bolívia, na Venezuela e no Equador. Nesses países, o modelo
neoliberal e o bloco de forças que o sustentava foram fortemente contestados (o
que se observou em menor medida por todo o subcontinente). No entanto, não é
somente com o fracasso do modelo neoliberal que essas crises se relacionam, é
também com o esgotamento de formas de organização estatal, dominação social,
baixa inclusão político-social e monopólio partidário, expressos em mais largas
durações. Nesses países, constata-se uma “crise de hegemonia”, uma “crise do
Estado em seu conjunto” (Gramsci, 2002, v. 3, p. 60), que está longe de ser
solucionada, podendo se estender por um longo período.
Com a seguida chegada ao poder de partidos, movimentos e lideranças de
esquerda na América Latina, a literatura especializada começou a elaborar análises
e tipologias para explicar esse fenômeno. De fato, uma das características mais
comuns nos trabalhos em torno das esquerdas latino-americanas atuais parece ser

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Em boa parte, a literatura especializada se dedicou a renovar o “clássico” modelo de “partidos de
massas” de Duverger (1970) com base nas transformações partidárias ocorridas mais recentemente na
Europa Ocidental – mas pouco se questionou acerca de sua eficácia para outras experiências partidárias
periféricas. Assim, diagnosticou-se a crescente diluição do “partido de massas”, e o surgimento de
variações a partir dele. Surgiram definições como a do partido “agarra tudo” (o catch-all’s people party
de Kirchheimer, 1966, desde então chamado de catch-all) ou o “profissional-eleitoral” (de Panebianco,
1988). Essas definições apontam para a diluição do caráter classista dos partidos; a valorização
progressiva do momento eleitoral em detrimento de seu papel socializador; a conseqüente
profissionalização das estruturas voltadas para a arena eleitoral e o enfraquecimento do papel dos
membros nesse e em outros campos da atividade partidária; a cartelização do aparato estatal que teria
crescente peso como financiador das atividades partidárias em detrimento da militância; e o surgimento
de novos partidos com caráter empresarial com o objetivo de penetrar nos sistemas partidários
cartelizados.

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o desejo de estabelecer tipologias classificatórias. Sem dúvida, a mais comum é a


que sugere a existência de “duas esquerdas”, uma “socialdemocrata” ou
“democrata” e outra “populista” ou “autoritária”, proposta por alguns estudiosos
com intenção quase sempre normativa, em que a primeira é vista como uma
esquerda “boa” e a outra como “má”. Organizações como o PSCh, o PT e a FA em
geral são associadas à primeira corrente, enquanto o MAS, o MVR (mais tarde
Partido Socialista Unido da Venezuela, PSUV) e o PAÍS integram a segunda. A FSLN
e a FMLN, quando são levadas em conta, são posicionadas ora num pólo da escala,
ora noutro. Bons exemplos de tipologias desse tipo foram formulados por
Castañeda (2006), Petkoff (2005) e Lanzaro (2009), entre muitos outros.
Discuti essa questão mais profundamente em outros trabalhos
(especialmente Silva, 2009, no qual analiso a literatura especializada nas esquerdas
latino-americanas contemporâneas). Aqui devo apenas destacar que considero que
essas esquerdas constituem um único “conjunto”, mas se dividem em dois
“subconjuntos”: as “renovadoras” e as “refundadoras”. Entre as primeiras posiciono
o PT, a FA e o PSCh, a FSLN e a FMLN, aos quais ao fim e ao cabo se agregam até
aqui os setores políticos no poder da Argentina e do Paraguai. Entre as segundas,
classifico o MAS, o MRV/PSUV e o PAÍS. As primeiras são caracterizadas por um
grau maior de institucionalização, maior integração ao sistema político, aceitação
das instituições da democracia representativa na forma “realmente existente” em
seus países e pela crítica moderada ao neoliberalismo. As segundas são
caracterizadas por um nível mais baixo de institucionalização, menor integração ao
sistema político, pela integração crítica às instituições da democracia representativa
e pela crítica radical ao neoliberalismo. As primeiras pretendem “renovar” a política
e o governo de seus países com uma abordagem mais igualitária, estatizante e
ética. As segundas propõem “refundar” suas institucionalidades, seus sistemas
partidários e o Estado como um todo, superando mais radicalmente o status quo
vigente no momento em que chegaram ao poder, associado a um colapso dos
sistemas partidário e institucional.
Espera-se que a classificação proposta se afaste das dicotomias defendidas
por grande parte da literatura especializada, pois para elaborá-la parti do
pressuposto de que, num sentido mínimo, todas essas esquerdas são democráticas,
e recusei, por outro lado, conceitos polissêmicos e acusatórios como o de
“populismo”. Acredito que esses não constituem eixos apropriados para estruturar
uma tipologia dessa natureza, sendo mais interessante destacar a gestação de
projetos distintos, que se explicam pelas diferenças entre os atores e organizações,
mas também por conjunturas, institucionalidades e temporalidades distintas. A
diferenciação proposta é, portanto, mais descritiva do que normativa e possui um

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caráter dinâmico. Ela parte de bases distintas e reconhece as semelhanças entre os


casos. A diferenciação proposta aqui procura, no entanto, destacar que as
esquerdas governantes latino-americanas integram subconjuntos potencialmente
mutáveis, e não conjuntos isolados e estancados.
É evidente que as diferenças destacadas não se explicam apenas pelo
voluntarismo dos agentes sociais. O que fica claro é que os partidos que se
inseriram em estruturas institucionais relativamente estabilizadas tenderam a uma
maior institucionalização, a uma moderação e à valorização da representação,
realizando (num tempo relativamente curto) trajetórias em direção ao centro
político para captar votos e apoios. Nos países com sistemas partidários mais
estáveis, nos quais os partidos continuam sendo os condutores dos processos
eleitorais, as esquerdas desenvolveram organizações mais estruturadas,
competitivas e integradas “de forma a evitar o transbordamento do conflito político
e contribuir para a sua moderação” (Anastasia, Ranulfo, Santos, 2004, p. 35).
Enquanto isso, organizações recém-fundadas (como o MVR e o PAÍS) ou de curta
trajetória (como o MAS) se aproveitaram de institucionalidades em colapso para
construir maiorias, sem a necessidade ou a possibilidade de encararem um
processo de institucionalização e de moderação. Adicionalmente, sobretudo o MAS
chegou ao poder no auge da iniciativa de movimentos sociais, ainda no bojo de
longos ciclos de protesto. Assim, estruturas e temporalidades distintas são
importantes fatores explicativos das diferenças entre essas esquerdas.

“Governos progressistas”: a hora do balanço

As questões colocadas pela literatura especializada ao longo da década que


se encerra visaram compreender a ascensão dessas esquerdas e suas diferentes
manifestações. No entanto, é de se esperar que progressivamente o foco deva ser
posto na análise mais concreta de suas experiências de governo. Algumas análises
nacionais e comparadas já começam a surgir nesse sentido (conferir, por exemplo,
Moreira, Raus, Leyton, 2008; e Lima, 2008). Na medida em que a “onda” de
esquerda começar a refluir e novas alternativas forem surgindo (algo natural num
ambiente democrático), a necessidade de uma avaliação dessas experiências se
imporá com ainda mais força. Assim, é razoável supor que a realização de um
“balanço” do primeiro ciclo regional de governos de esquerda da história da
América Latina constituirá uma tendência crescente na literatura especializada nos
próximos anos. Na sequência, aponto em caráter preliminar alguns fatores que
poderiam servir de núcleos centrais para a caracterização dos “governos
progressistas” latino-americanos. Procuro apontar eventuais diferenças entre os

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governos constituídos pelas esquerdas anteriormente definidas como “renovadoras”


e os formados pelas esquerdas chamadas “refundadoras”.
De fato, como afirma Lima (2008), “políticas de inclusão social amplas e
generosas constituem um elemento comum e definidor desses governos” (p. 13).
Trata-se de políticas sociais que não constituem um retorno ao arremedo de Estado
de bem-estar social de algumas nações latino-americanas desmontado nas décadas
anteriores. Essas políticas apontam efetivamente para investimentos sociais que
não podem ser considerados como promotores de direitos, nem são baseados em
concepções universalistas (no máximo, numa “semi-universalização”). No entanto,
tais investimentos parecem ter tido seu impacto nos indicadores sociais regionais.
Assim, avanços sociais apenas moderados podem ser considerados um primeiro
denominador comum dos “governos progressistas”.
Nesse sentido, se analisarmos esses resultados até o momento, todos os
países em questão tiveram avanços moderadamente positivos (aspecto analisado
detidamente em Sant’Anna, Silva, 2008). Grosso modo, a desigualdade social vem
se reduzindo na região lentamente, enquanto a pobreza tem apresentado uma
redução mais vistosa. Se fôssemos utilizar o critério da promoção da igualdade
como parâmetro de avaliação desses governos – na medida em que a defesa da
igualdade seria o principal definidor das esquerdas segundo Bobbio (1995) –
veríamos que na prática muitos deles só poderiam ser considerados “de esquerda”
num sentido moderado. Disso deriva a preferência pela utilização aqui do termo
“progressista” para nomear esses governos: a expressão “governos de esquerda”
seria polêmica em alguns casos, possivelmente não se adequando a todas as
administrações construídas a partir da vitória eleitoral de forças de esquerda na
região.
Outro fator de aproximação entre os “governos progressistas” poderia ser a
sua atuação internacional. Em certo sentido, eles buscaram uma maior autonomia
em relação a organismos internacionais – como o Fundo Monetário Internacional
(FMI) –, e em alguns casos uma maior inserção nas discussões em torno da
regulação global. Nas relações internacionais, buscaram alternativas econômicas e
políticas ao peso da influência norte-americana, incrementando suas relações com a
União Européia, os “países emergentes” e a periferia global. Por fim, bloquearam na
prática o projeto de integração econômica continental (Aliança de Livre Comércio
das Américas, ALCA) que era proposto pelos EUA quando a “onda rosa” começou a
se formar.
Como um corolário dessa movimentação, os referidos governos valorizaram
alguma modalidade de integração regional, propondo e engajando-se na construção
de organismos como a Aliança Bolivariana das Américas (ALBA) e a União de

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Nações Sul-Americanas (UNASUL). No entanto, poder-se-ia esperar que esses


projetos avançassem mais rapidamente, e que esses governos insistissem ainda
mais na integração, dando a ela uma ênfase mais estrutural – por exemplo,
integração da infraestrutura e circulação de pessoas. Sem esperar que a ascensão
das esquerdas fosse apontar automaticamente nessa direção, e reconhecendo que
houve avanços nessa matéria, considero que esses governos deveriam insistir na
alternativa da regionalização e mesmo em formas de “supranacionalidade”, na
medida em que estratégias auto-suficientes de desenvolvimento nacional parecem
inviáveis nos dias de hoje.
Por fim, se todas as esquerdas analisadas se opuseram às experiências
neoliberais anteriores, seus governos, mais do que simplesmente ter que conviver
com o legado deixado por aquelas experiências, não conseguiram até aqui superá-
las em definitivo – mesmo entre os “refundadores” e suas esporádicas defesas de
um indefinido “socialismo do século XXI”. Há uma rejeição total ou parcial das
experiências neoliberais da década anterior, mas na prática nota-se até aqui uma
dificuldade em superá-las definitivamente. Nesse sentido, o “núcleo duro” das
políticas econômicas dos governos anteriores, especialmente mecanismos de
manutenção da estabilidade econômica, foi pouco modificado pelos “governos
progressistas” (salvo parcialmente na Venezuela nos últimos anos, com um
estatismo mais forte e algumas políticas econômicas mais “voluntaristas”).
No entanto, para além das dificuldades com o legado neoliberal, os
“governos progressistas” de maneira geral realizaram uma “recuperação discursiva
e prática (política) do Estado em termos de intervenção na vida do país” (Moreira,
Raus, Leyton, 2008, p. 12). No bojo dessa recuperação, a idéia esposada na década
anterior pelos governos neoliberais de uma intrínseca “perfeição” dos mecanismos
de mercado vai dando lugar a um reconhecimento da necessidade de regular e
complementar o mercado com a atuação estatal. Nesse processo, introduziram
reformas e elementos heterodoxos em diversas áreas. Investigar essas novidades
institucionais poderá ser uma interessante área de estudos para a literatura
especializada, que poderá informar sobre as tentativas concretas de construir
alternativas no dia-a-dia da gestão estatal e das práticas políticas.
Com tudo isso, também quanto ao desempenho de governo, as semelhanças
entre as diversas experiências parecem ser tão significativas quanto suas
diferenças. A rápida comparação dos “governos progressistas”, aqui esboçada,
demonstra que a necessária mudança na região mais desigual do mundo parece
seguir mais lenta do que se poderia desejar. No entanto, podem-se apontar
também algumas diferenças entre os governos. Pode-se afirmar que todas as
esquerdas que chegaram ao poder na América Latina são “reformistas” no sentido

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mais tradicional do termo, na medida em que todas chegaram ao poder pela via
legal e, de uma forma ou de outra, governam dentro dos limites democráticos e,
por outro, elas não caminham com clareza (até aqui) na direção da superação do
sistema econômico-social capitalista. Nesse sentido, ambos os modelos de
esquerda no continente se traduzem em processos de reforma. Mas alguns
propõem reformas sem questionar e superar em definitivo o neoliberalismo,
enquanto outros propõem reformas articuladas com a meta de refundar o “Estado
em torno da esfera pública, de modo a possibilitar a constituição de um novo bloco
de forças no poder e o avanço na resolução da crise hegemônica na direção pós-
neoliberal” (Sader, 2009, p. 129).
Aqui se localizam as diferenças entre os “governos progressistas”. As
esquerdas aqui denominadas “refundadoras” se diferenciaram das “renovadoras”
quanto à reconstrução da institucionalidade e à reconfiguração das relações de
poder e de seus sistemas partidários. Essas diferenças podem ser consideradas de
“fôlego” (ainda que não necessariamente “estruturais” no sentido clássico do
termo), na medida em que vêm produzindo grandes transformações político-
institucionais nesses países. Além disso, nesse processo essas esquerdas adotam
discursos e por vezes práticas mais “rupturistas”, enquanto as “renovadoras” se
mostram mais “gradualistas”.
Moreira, Raus e Leyton (2008) definem de forma interessante as diferenças
advindas disso. Segundo eles, os governos encabeçados pelas esquerdas que aqui
classifico de “refundadoras” tenderiam em primeiro lugar a enfrentar com maior
decisão práticas, pressupostos ideológicos e instituições legadas pelos governos
neoliberais. Nesse sentido, seriam economicamente mais heterodoxos
(especialmente a Venezuela), sem abandonar o “núcleo duro” referido
anteriormente. Em segundo lugar, valorizariam mais as relações com as
subjetividades coletivas e a interpelação de identidades coletivas (principalmente o
“povo” e a “nação”) que individuais (como o “cidadão”). Em terceiro lugar,
procurariam se basear mais na mobilização de manifestações de apoio popular e
nas relações diretas com a população do que em partidos, e possuiriam clara
vocação “hegemonista” (por vezes mais impositiva que negociadora). Nesse
sentido, a política desses países demoraria a se “normalizar”. Esses governos
efetivamente gerariam uma forte polarização política baseada no apoio ou oposição
a eles, que, no entanto, não se traduziu ainda em novos sistemas partidários
estáveis, especialmente por parte da oposição. Em quarto lugar, seriam mais
“decisionistas”, possuindo uma maior tentação na direção da centralização do poder
– sem que isso signifique “transbordar as formas e os limites da democracia” (p.
18) –, com isso gerando uma dificuldade em produzir consensos e um incremento

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da confrontação e da possibilidade de isolamento. Finamente, investiriam mais na


integração regional e na independência em relação aos EUA.
Tendo a concordar sem maiores ressalvas com as quatro primeiras
características apontadas pelos autores e a discordar da última. Nesse ponto,
considero não haver maiores diferenças em termos de integração regional entre os
casos (à exceção do governo da Concertação no Chile, que combinou a busca de
integração regional com a realização de acordos comerciais bilaterais como forma
de integração à globalização). Os governos encabeçados pelos “refundadores”
assumem um discurso antiimperialista que não se efetiva (haja vista as
substanciais relações comerciais entre os EUA e a Venezuela). Nesse sentido, não é
possível afirmar até o momento que a ALBA – iniciativa lançada pelos
“refundadores” – tenha dado resultados mais efetivos e substanciais que as
tentativas de formação da UNASUL ou de relançamento do Mercado Comum do Sul
(Mercosul) – iniciativas propostas originalmente por “renovadores”. As dificuldades
da integração latino-americana seguem vigentes em todos os casos e iniciativas, e
iniciativas mais concretas e promissoras (como a instituição do Banco do Sul, com
capital de diversos países sul-americanos) são apoiadas por “governos
progressistas” de todos os matizes, sem distinções. De qualquer forma, o debate
em torno do “balanço” dos “governos progressistas” está apenas começando.

Perspectivas de reprodução da “onda rosa”

Agora que algumas características dos “governos progressistas” foram


analisadas (o que deverá ser uma tendência crescente da literatura especializada,
como já foi dito), pode-se ir um pouco mais adiante. Com base em chaves
analíticas apontadas até aqui, dedico-me nas próximas páginas à arriscada tarefa
de discutir as perspectivas de reprodução no futuro próximo da “vaga” de esquerda
na América Latina.
A crise econômica não afetou tão fortemente a América Latina quanto se
poderia esperar quando ela eclodiu em 2008. Ela efetivamente se manifestou na
região, especialmente nos primeiros meses de 2009. No entanto, no segundo
semestre grande parte dos países latino-americanos pôde superá-la após a
implantação de diversas medidas anticíclicas. Países como a Bolívia e o Equador
não chegaram sequer a entrar em recessão, enquanto outros como o Brasil
retomaram o crescimento nos últimos meses. A “nota dissonante” foi dada pela
Venezuela, atingida pela crise tardiamente, mas com força, e que vai enfrentando
problemas de recessão, inflação e crise energética (Domingues, Silva, 2010).

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Quando a crise econômica começou a se manifestar, poder-se-ia cogitar que


ela afetaria o desempenho e a avaliação dos “governos progressistas”, e seria
assim o “estopim” da reversão dessa tendência regional. No entanto, isso não foi
notado com clareza até aqui. Pinheiro (2009) mostra que não houve relação entre a
crise e índices que medem a popularidade dos presidentes e a estabilidade política
regional. Assim, podem-se refutar argumentos de que a crise iria levar a cidadania
a “punir” os governantes de turno (mesmo que não tivessem responsabilidade com
relação a ela, na medida em que seu epicentro se localizou nos países centrais), e
incrementaria a instabilidade institucional da região.
Em Domingues e Silva (2010), fizemos um balanço dos resultados eleitorais
dos últimos meses na região. A partir dele, pode-se sugerir que as vitórias
eleitorais associadas às esquerdas foram mais numerosas que as relacionadas com
a direita. Entre elas, deve-se localizar a aprovação em referendo da nova
Constituição da Bolívia em janeiro de 2009, e da emenda constitucional que
permite reeleições indefinidas na Venezuela no mês seguinte; a vitória de Funes em
El Salvador em março; a reeleição de Correa no Equador em abril; a eleição de
Mujica no Uruguai em novembro; e a reeleição de Morales na Bolívia em dezembro.
Por outro lado, os resultados eleitorais que beneficiaram a direita foram a eleição
de Ricardo Martinelli para presidente do Panamá em maio de 2009; a derrota da
versão “progressista” do peronismo nas eleições parlamentares do mês seguinte; e
finalmente a (mais significativa) vitória de Sebastián Piñera nas eleições
presidenciais chilenas de janeiro de 2010, pondo fim a vinte anos de governos
concertacionistas.
Com tudo isso, pode-se sugerir que o ciclo de esquerdas começa a vivenciar
um desgaste que, no entanto, não se manifesta na forma de uma “derrocada”. O
fenômeno parece guardar uma relação apenas moderada com a crise econômica
global, podendo, mais que isso, ser fruto de impasses “naturais” depois de (em
alguns casos) uma década de “governos progressistas”. Não se deve esperar que
em democracia uma tendência política se perpetue no poder, e o surgimento de
alternativas e a alternância de poder são mais que saudáveis. Insuficiências e
limites de projetos e políticas parecem levar alguns “governos progressistas” a
enfrentar dificuldades em manter suas amplas votações, garantir maiorias
parlamentares e eleger sucessores. Dois casos nacionais podem ilustrar o
argumento.
No Chile, a derrota da Concertação poderia ser atribuída antes de tudo ao
esgotamento da coalizão. De certa forma, seu “sucesso” a teria matado, na medida
em que sua razão de ser foi em primeiro lugar realizar a transição e, na sequência,
melhorar os indicadores sociais legados pela ditadura, “humanizar” o modelo

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chileno. Pode-se sugerir que na medida em que essas metas foram alcançadas a
coalizão não soube reinventar seu projeto, ir além dele. O governo de Bachelet (e
sua aprovação popular) poderia ser entendido como o ponto máximo ao qual a
aliança pôde chegar, e ao mesmo tempo o princípio de sua dissolução. A ascensão
de Bachelet, até então sem projeção na máquina partidária do PSCh, já havia
sinalizado nesse sentido, na medida em que ela constituiu um fenômeno de
popularidade que, ao fim e ao cabo, os partidos da Concertação tiveram que
aceitar. Chegando ao poder, ela governou prescindindo deles, em meio a um
crescente descontentamento da cidadania em relação à política (Huneeus, 2010).
Finalmente, enquanto os partidos de esquerda e centro se viram imersos em graves
crises e divisões internas e presenciaram o esgotamento do projeto
concertacionista, a direita parece ter conseguindo se “reinventar” ao menos ao
menos parcialmente, afastando-se do legado pinochetista, buscando alianças ao
centro e a modernização de seu discurso, calcado em propostas de “mudança”,
incremento do emprego e eficiência administrativa.
Já na Venezuela, nota-se nos últimos meses uma deterioração da situação
política. Como foi dito, o país foi afetado tardia e fortemente pela crise, e
recentemente parece ter havido um efetivo incremento da instabilidade. Em meio a
manifestações oposicionistas crescentes, Chávez parece estar assumindo um tom
mais violento em seus discursos. Enquanto isso, seu governo parece dar sinais de
falência administrativa e de projeto, com a saída de diversos ministros e a
deterioração de serviços públicos. Nesse país, a crise econômica parece guardar
maior relação com esse princípio de crise política. No entanto, mesmo aqui os
problemas do chavismo são muito maiores e mais complexos. Se a crise econômica
afetou mais fortemente esse país, foi porque o governo de Chávez após uma
década não soube reverter a situação de dependência da economia venezuelana em
relação ao petróleo, principal item de exportação do país e que financia a crescente
importação de quase tudo que se consome. Assim, a incapacidade para enfrentar
esse elemento estrutural do país finalmente está cobrando a fatura mais uma vez,
após a derrocada dos preços das commodities no mercado internacional. A isso
parece se somar a insistência do governo em modificar rumos e projetos a todo o
momento, impedindo a normalização do processo de “refundação” e o
desenvolvimento de políticas públicas progressistas que efetivamente enfrentem os
problemas sociais do país.
Com tudo isso, pode-se concluir que a tendência “progressista” permanece
em cena, mas que ela não se manifesta com a mesma intensidade que em seu
princípio. É possível especular que ela vá conviver nos próximos anos com uma
tendência de centro-direita “modernizada”. Esperando que isso não seja um ato de

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wishful thinking, pode-se notar que vai surgindo uma “nova direita” aggiornada –
que poderia ser simbolizada tanto por Piñera quanto por Martinelli. Da mesma
forma que as “novas esquerdas” não superaram totalmente o legado neoliberal dos
anos 1990, preservando alguns de seus aspectos e combinando-os com elementos
progressistas, pode-se esperar que essa “nova direita” mantenha características da
última “década progressista”. Por exemplo, que ela siga investindo nos amplos
programas sociais, que aceite um maior peso do Estado e das políticas anticíclicas,
e que não abandone totalmente os mais recentes projetos de integração da região.
Em suma, uma direita que não poderia mais ser exatamente (ou tão somente)
neoliberal, e muito menos retornar ao seu majoritário autoritarismo anterior.
Assim, minha sugestão é que nos próximos anos vá se travar uma batalha
entre a “nova esquerda” e uma “nova direita”, que não necessariamente deverá
encontrar um claro vencedor. Ambas podem conviver e se alternar no poder. A
expectativa é que uma terceira corrente não se junte a essas duas. Essa terceira
força seria uma nova versão de autoritarismo latino-americano, que poderia se
manifestar nos países mais instáveis da região. Isso se manifestou em Honduras,
onde em junho de 2009 o presidente Manuel Zelaya, eleito pelo Partido Liberal
(PL), mas convertido posteriormente em aliado de Chávez, foi derrubado pelos
militares com o apoio e participação da maior parte dos políticos locais. A razão
alegada pelos golpistas foi a pretensão do presidente de realizar uma consulta
popular (sem caráter vinculante) acerca da possibilidade de reeleição. Algo parecido
poderia se repetir no Paraguai, que vem enfrentando problemas de governabilidade
crescentes. Às previsíveis dificuldades do governo em gerir um Estado dominado
pelo Partido Colorado (PC) por mais de seis décadas e de controlar uma base
parlamentar heterogênea e por vezes hostil, se somou o escândalo da divulgação
de diversos casos de paternidade, ocorridos quando Lugo ainda era bispo. O
presidente já teve que demitir seguidas vezes os comandantes das Forças
Armadas, em meio a um crescente rumor de golpe militar (Domingues, Silva,
2010). Espera-se que o evento hondurenho tenha sido um caso excepcional, e que
não vá inspirar outros processos semelhantes.
Para concluir, considerando que o “ciclo progressista” não será eterno, pode-
se discutir o legado que ele poderia deixar a longo prazo, em termos de
transformações mais propriamente estruturais em suas sociedades. Para isso,
posso retomar algumas chaves analíticas introduzidas anteriormente. Referi-me à
“crise de hegemonia” manifestada em países como a Venezuela, o Equador e a
Bolívia, que estiveram no centro do surgimento de alternativas “refundadoras”
nesses países, propugnadoras de uma reorganização da política. Alternativamente à
utilização do conceito de “populismo” como chave para analisar essas esquerdas e

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seus governos, considero que na Venezuela e no Equador o “empate catastrófico”


de forças sociais e políticas, surgido no bojo da crise hegemônica, teria resultado,
até o momento, em experiências de lideranças “heróicas” que constituiriam formas
de “cesarismo progressista” – com certos elementos “jacobinos” em sua
manifestação. Segundo Gramsci, “o cesarismo é progressista quando sua
intervenção ajuda a força progressista a triunfar, ainda que com certos
compromissos e acomodações que limitam a vitória” (2002, v.3, p. 76). Já na
Bolívia, apesar de certos aspectos de “arbitragem” contidos também na liderança
de Morales e na atuação do MAS, os novos grupos sociais e políticos no poder são
os que mais poderiam ser tratados como construtores em potencial de uma nova
hegemonia e consenso, configurando um novo “bloco histórico”, que nada mais é
do que a identificação concreta e sem contradições de fundo entre novos conteúdos
econômico-sociais e novas formas ético-políticas (Gramsci, 2002, v. 1, p. 308).
Assim, a chave seria a capacidade dos “refundadores” em passarem das
maiorias momentâneas formadas por eles à efetiva construção de um novo “bloco
histórico”. Nesse sentido, pode-se sugerir aqui uma diferenciação interna. Se o caso
boliviano se caracterizaria por sua “organicidade”, enquanto o caso venezuelano e o
equatoriano constituiriam fenômenos de “cesarismo progressista”, no primeiro o
elemento “transformação” teria um maior potencial, tanto de desenvolvimento
quanto de reprodução no tempo. Haveria assim mais motivos para esperar que as
transformações ocorridas na Bolívia possam ter maior permanência, para além da
administração de Morales e do MAS. Enquanto isso é mais difícil prever o que
poderia restar, por exemplo, do longo e desgastante processo encabeçado por
Chávez. Em meio à crise atual vivenciada na Venezuela, radicalizar ainda mais o
processo poderia afastá-lo de bases sociais que ainda o apóiam. Por outro lado,
buscar institucionalizar avanços e normalizar as relações com as oposições poderia
preservar no longo prazo boa parte das transformações levadas a cabo na última
década (mas para isso Chávez teria que reconhecer que seu ciclo vai se esgotar em
algum momento, algo difícil para uma liderança com seu perfil).
Por fim, nos países onde os sinais de esgotamento do neoliberalismo se
manifestaram com menor intensidade, ou estiveram descolados de outras
desagregações institucionais (como Brasil, Chile, Uruguai, Nicarágua, El Salvador e
ao fim e ao cabo mesmo Argentina), é provável que elementos do paradigma
neoliberal permaneçam com mais intensidade e por mais tempo no repertório dos
blocos de poder que vão se configurando, mesclados a propostas mais ou menos
alternativas e heterodoxas. Esses blocos de poder não se configuram como “novos”
e potencialmente construtores de uma nova hegemonia, estando “bloqueados” de

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diversas maneiras (Domingues, 2009, p. 192)3. No entanto, não cabe desmerecer


as mudanças mais lentas e suaves implantadas pelos governos que buscam com
maior ênfase o consenso. Pelo que foi dito sobre o caso venezuelano, poderia até
ocorrer que essas transformações, ainda que de natureza distinta, tivessem
maiores possibilidades de se reproduzir em longo prazo. Esses governos mais
“moderados” não transformaram seus sistemas políticos e sociedades de cima a
baixo, mas poderiam ser reconhecidos mais adiante (mais um exercício de wishful
thinking?) como inauguradores de um lento, porém consistente processo de
enfrentamento dos problemas sociais e de reinserção internacional de seus países.

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3
Entre os casos considerados mais “moderados”, talvez no chileno fosse possível apontar mais
claramente a presença de elementos do que Gramsci chamou de “transformismo”, no qual setores que
pareciam irreconciliavelmente inimigos vão sendo absorvidos a uma ampla classe dirigente.

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Análise de Conjuntura | n.2 | fev. 2010

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Análise de Conjuntura | n.2 | fev. 2010

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