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Democracia na América Latina:

da inovação institucional ao velho


problema do equilíbrio entre os poderes
Leonardo Avritzer
resumo abstract

Neste trabalho, analisamos a construção In this work we analyze the building of


democrática latino-americana a partir democracy in Latin America from the
da obra de Guillermo O’Donnell e da perspective of Guillermo O´Donnell’s
sua percepção acerca dos problemas views on the problems to the building of
para a construção da democracia, que democracy in the region. He brought those
ele identifica com a assim chamada problems under the umbrella concept of
“democracia delegativa”. Iremos abordar delegative democracy. We will approach
a questão democrática na região a partir the democracy issue in Latin America
dos processos de constitucionalismo e o based on the new constitutional processes
novo equilíbrio de poderes na América in the region and the new power balance
Latina. Especialmente neste último it generated. During the period spanning
período, entre 2000 e 2015, houve from 2000 to 2015, legal institutions
um fortalecimento das instituições were strengthened in Latin America;
jurídicas, mas o nosso argumento é however, as we see it, such process has not
que esse fortalecimento ainda não brought about a new structure of power
gerou uma estrutura de equilíbrio de balance compatible with a consolidated
poderes compatível com a construção democracy. On the contrary, one can see
de uma democracia consolidada. Pelo traces of particularism and hierarchy −
contrário, é possível observar elementos typical historical problems of democratic
de particularismo e hierarquia, que são institutions in the region − emerge in the
próprios dos problemas históricos das new institutions or in the new balance
instituições democráticas na região, se between institutions.
manifestarem nas novas instituições ou
no novo equilíbrio entre as instituições. Keywords: democracy; delegativism;
balance of powers.
Palavras-chave: democracia; delegativis-
mo; equilíbrio de poderes.
Reprodução
A
América Latina como cultura, desses processos, existiram outros fenômenos
práticas sociais e formas de tão ou mais importantes, como, por exemplo, a
autoentendimento constitui uma recentralização administrativa que se seguiu ao
região com claras especificida- liberalismo no período pós-independência ou
des1. Desde a sua independên- simplesmente a inaplicabilidade do direito liberal
cia, a região transita entre duas na região durante o século XIX (Santos, 1996).
tendências antagônicas: de um O problema com esta linha de análise é que ela
lado, existem aqueles que pro- se concentra demasiadamente na ideia da falta
curam argumentar que nada de para analisar o que foi frequentemente o fracasso
distinto em relação à tradição li- rotundo de experiências ligadas ao liberalismo e
beral ocidental existe na região, à democracia na America Latina desde o século
a não ser algumas lacunas (Ve- XIX até a recente incursão neoliberal (Pereira,
liz, 1980). Assim, esses autores, 2007). Assim, para Veliz, o problema do liberalis-
ao pensarem a formação do Estado e da democra- mo latino-americano pressupõe algumas lacunas:
cia na América Latina, ou a formação da sociedade a falta de uma tradição feudal; a falta de disputa
civil, tentam argumentar na direção da reprodução religiosa; a falta de uma revolução industrial e
das mesmas estruturas existentes na Europa ou na a falta de um desenvolvimento político pareci-
América do Norte no mesmo período. Para eles, o do com aquele gerado pela Revolução Industrial
constitucionalismo liberal foi a marca registrada (Veliz, 1980, pp. 3-4). A tentativa do autor, como
da independência latino-americana (Veliz, 1980) de outros, é explicar a formação social e política
e o associativismo de corte liberal foi a marca re- latino-americana através de ausências identifica-
gistrada dos processos dessa independência (For- das na sua comparação com os países ocidentais,
ment, 2003). Escapa a esses autores que, ao largo em especial, com a Europa e os Estados Unidos.
Ao mesmo tempo em que encontramos, nas
ciências sociais na América Latina, a tentativa
1 Existem diferentes origens atribuídas à expressão “América
Latina” que evidentemente incluem alguns grupos sociais
de mostrar que nada há de específico na região,
e excluem outros grupos. A origem do termo remonta à também observamos uma intenção de romper
palavra latin ou latina, que encontra diversas definições na
radicalmente com qualquer continuidade de con-
literatura. O termo parece ter sido utilizado pela primeira vez
pelo publicista colombiano José Maria Torres Caicedo, em
1856. O uso mais corrente da expressão “latino-americana”
se deu no início do século XX, por diversos intelectuais de
influência decisiva no continente, entre eles José Enrique
Rodó e José Carlos Mariátegui, quando passou a ter um LEONARDO AVRITZER é professor titular de
significado político, geográfico e cultural, ainda que na Ciência Política da UFMG, presidente da Associação
sua acepção originária haja o problema da não inclusão Brasileira de Ciência Política e autor de, entre
do elemento indígena (Bruir, 2000). outros, A Moralidade da Democracia (Perspectiva).

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ceitos e argumentar pela total especificidade das mais influentes foram aquelas que perceberam que
formações sociais latino-americanas. A tentativa a especificidade latino-americana consiste em um
mais clara nessa direção foi de Richard Morse. De diálogo crítico com as estruturas europeias e norte-
acordo com o autor, a especificidade da formação -americana, diálogo este que implica pensar para-
política latino-americana deve ser ligada à rejeição digmas específicos para o entendimento da região
do liberalismo pelo pensamento tomista na Penín- ou pelo menos pensar uma forte adaptação das es-
sula Ibérica. Durante o século XVI, à medida que truturas ocidentais/liberais para a região (Cardoso,
o liberalismo se desenvolvia no mundo anglo- 1976; Canclini, 1990). A teoria da dependência nas
-saxão, desenvolvia-se também uma rejeição a ele suas diferentes versões procurou analisar a especi-
na Península Ibérica (Morse, 1989, pp. 86-7). Essa ficidade da America Latina através de uma adapta-
rejeição à tradição de direitos individuais acabou, ção do conceito de classe social à realidade local.
segundo Morse, gerando uma tradição completa- Para Cardoso e Falleto, uma mudança no ciclo de
mente separada da que irá prevalecer na Europa produção conduzia a uma mudança na aliança de
e que Morse procura valorizar. Só que tal empre- classe predominante e, consequentemente, uma
endimento tem um alto custo, qual seja, a desvin- mudança na estrutura do Estado (Cardoso & Fal-
culação da tradição latino-americana de qualquer leto, 1976). Apesar da clara limitação epistemoló-
tentativa de construir um conceito de direitos hu- gica da teoria empregada, de acordo com a qual
manos, democracia e justiça (Avritzer, 2002). Di- cada grupo de atores sociais existentes em cada
versos autores enfatizaram a mesma questão que parte da América Latina deve ser derivado direta-
Morse, chegando a diferentes conclusões. Alguns mente do tipo de produção econômica existente na
utilizaram a ideia da especificidade cultural para região (Avritzer, 2002), o marco teórico proposto
analisar o autoritarismo ou o corporativismo na por Cardoso e Falleto tem um elemento positivo
região, argumentando que a especificidade cultu- claro, qual seja, a percepção de que conceitos deri-
ral apontava nessa direção (Wiarda, 1980; Hun- vados da tradição europeia ou ocidental devem ser
tington, 1992). Outros autores utilizaram a mesma adaptados e analisados na sua especificidade local
literatura para defender a especificidade das estru- para fazerem sentido na América Latina. O mesmo
turas culturais e políticas alternativas (Damatta, entendimento pode ser derivado da obra de Garcia
1996). O problema com essa linha da análise é que Canclini com o seu conceito de hibridação. Apesar
ela nunca é capaz de demarcar o limite do alter- de o autor não trabalhar a especificidade da Améri-
nativismo e, quando o demarca, nunca é possível ca Latina, ele aborda a especificidade do conceito
saber se aquelas propostas políticas ou culturais de moderno na região. Para ele, a América Latina
que mais se afastam da relação com o paradigma vive “um conflito entre tradição e modernidade
europeu são as melhores. Por outro lado, elas ig- que não aparece como o esmagamento dos tradi-
noram (Mignolo, 2003) aspectos fundamentais da cionalistas pelos modernizantes, nem como uma
formação latino-americana que a tornam distinta resistência constante dos setores populares deter-
de formações como a asiática e de estudos sobre a minados a manterem as suas tradições. A interação
reapropriação da política e do conhecimento nesta é mais sinuosa e mais sutil” (Canclini, 1995, pp.
região2 (Chatterjee, 2000). 9), o que denomina de “hibridação”. Assim, tanto
Nem a teoria da replicação, nem a teoria da Canclini quanto Cardoso e Falleto percebem que o
especificidade completa prosperaram muito na problema para o entendimento da América Latina
região latino-americana. As teorias sobre o en- não passa pela negação dos conceitos emergentes
tendimento da América Latina que se tornaram na literatura denominada ocidental, mas pela sua
aplicação sem levar em conta suas especificidades
sociais, políticas e culturais.
2 Vale a pena ressaltar duas grandes diferenças entre a América Neste trabalho, iremos aplicar essa mesma
Latina e a Ásia. A América Latina sempre teve um vínculo
com a tradição ocidental e ainda que tenha experimentado concepção metodológica à ideia da construção
institucionalidades paralelas, estas últimas sempre estive- democrática na América Latina. Para isso iremos,
ram em relação com a modernidade ocidental. No caso da
Ásia, a relação com o Ocidente, que varia entre diferentes em primeiro lugar, abordar a obra de Guillermo
países, é muito mais distante (Chatterjee, 2005). O´Donnell e a sua percepção dos problemas para

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a construção democrática na América Latina, que Ainda assim, independente dos diferentes mo-
ele identifica com a assim chamada “democracia delos de democratização, Guillermo O’Donnell
delegativa”. Em seguida, iremos abordar o pro- (1994, 1996, 2004) levantou um problema que
cesso de constitucionalismo e o novo equilíbrio inicialmente chamou de delegativismo e que aca-
de poderes na América Latina para tentar mos- bou levando a uma literatura sobre a qualidade
trar que, no último período, há um fortalecimento da democracia na região. O’Donnell tratou esse
das instituições legais, mas ainda não suficiente problema no interior das relações entre política e
para gerar uma estrutura de equilíbrio de poderes cultura. Para ele, as mudanças político-institucio-
compatível com a construção de uma democra- nais e a vitória, no jogo político competitivo, das
cia consolidada. Pelo contrário, é possível obser- elites democráticas produziriam de imediato o
var elementos de particularismo e hierarquia se enraizamento de valores e práticas democráticas
manifestarem nas novas instituições ou no novo no seio societário, mas não entre as elites políti-
equilíbrio entre as instituições. cas. Assim, se constata já nos anos 90, no âmbito
de sua reflexão sobre a “democracia delegativa”,
que a institucionalização da democracia nas no-
DEMOCRATIZAÇÃO, DELEGATIVISMO
vas poliarquias latino-americanas não havia abo-
E EQUILÍBRIO DE PODERES lido as práticas “clientelistas” e “particularistas”.
O’Donnell (1994, 1996) remete tais problemas a
Os teóricos da transição democrática marca- vícios da elite (Avritzer, 2002, p. 32) que se ex-
ram profundamente os estudos sobre democracia pressam no sistema político, especialmente na
na América Latina e aprofundam a ruptura com a estrutura de divisão de poderes. Para ele,
teoria da modernização que influenciou toda a re-
gião, a partir da ênfase que os autores colocam no “[...] as democracias delegativas se fundamentam
papel democratizante das instituições (O’Donnell, em uma premissa básica: o que ganha uma eleição
Schmitter & Whitehead, 1986; Diamond, Linz & presidencial é autorizado a governar o país como
Lipset, 1989). Os teóricos da transição reconhe- lhe parecer conveniente e, na medida em que as
cem a importância política dos atores e traduzem relações de poder existentes permitam, até o final
o papel destes sob a lente elite/massas do elitismo de seu mandato. Tipicamente, os candidatos presi-
democrático, o que os leva a subsumir tais atores denciais vitoriosos nas democracias delegativas se
ao jogo político entre as elites. Quatro atores prin- apresentam como estando acima de todas as par-
cipais são identificados por O´Donnell e Schmitter tes; isto é, dos partidos políticos e dos interesses
em seu clássico livro que está completando 30 anos organizados. Nessa visão, outras instituições —
de publicação. Para eles, os duros, os moderados, como o Congresso e o Judiciário — são incômodos
a oposição radical e a oposição moderada são os que acompanham as vantagens internas e inter-
atores cuja ação irá determinar os desfechos demo- nacionais de ser um presidente democraticamente
cráticos ou não democráticos. eleito. A ideia de obrigatoriedade de prestar contas
Sabemos que a correlação de forças entre (accountability) a essas instituições, ou a outras
esses atores gerou casos distintos. O caso do organizações privadas ou semiprivadas, aparece
Brasil é claramente uma situação de negociação como um impedimento desnecessário à plena au-
entre os moderados do regime militar e a opo- toridade que o presidente recebeu da delegação de
sição moderada, no caso, o MDB. No caso da exercer” (O’Donnell, 1994, pp. 30-1).
Argentina, o colapso do regime levou a que os
duros e blandos não tivessem qualquer papel na Assim, encontramos nesse autor um diag-
ordem democrática posterior e que houvesse forte nóstico da democracia na América Latina, no
punição das violações de direitos humanos. Por começo dos anos 90, que se situa entre a especi-
fim, tivemos o caso chileno, com a altíssima dose ficidade e um diálogo mais amplo com as teorias
de continuidade com o regime anterior, que se da democracia, este último presente na questão
expressa nos vetos às mudanças constitucionais da qualidade das democracias expresso pelo con-
determinados pelo modelo eleitoral. ceito dahlsiano de poliarquia. A especificidade

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assenta-se no fato de que as democracias carecem Outros países latino-americanos também amplia-
de um elemento de qualidade que deteriora algu- ram fortemente o reconhecimento das suas comu-
mas instituições, entre as quais a accountability e nidades tradicionais, como foi o caso da Bolívia,
o Poder Judiciário. Na próxima seção deste artigo em que o artigo 1 da Constituição estabeleceu
irei mostrar a evolução dessas questões, para vol- o princípio do Estado plurinacional, entendendo
tar mais à frente com o problema do delegativis- a pluralidade como jurídica, política, cultural,
mo e da divisão dos poderes nesses últimos anos econômica e linguística (Bolívia, 2008). O artigo
que marcam o fim de uma hegemonia de esquerda 256 também compatibilizou a tradição de direitos
na região (Levitski & Roberts, 2011). plurais com os tratados internacionais firmados
pelo país, estabelecendo um marco mais amplo
do que o do Estado nacional para a vigência de
CONSTITUCIONALISMO, PARTICIPAÇÃO
direitos (Uprimny, 2012).
E EQUILÍBRIO DE PODERES O Brasil reconheceu, na sua Constituição de
1988, o direito das comunidades tradicionais, mas
O novo constitucionalismo latino-americano é de forma indireta e incompleta quando comparado
um processo que tem a sua origem na elaboração aos países andinos. A Constituição brasileira de
de novas Constituições, o que ocorreu no Brasil 1988 reconheceu os direitos dos povos indígenas
em 1988, na Colômbia em 1991, no Paraguai em nos artigos 20, 22, 129, 216, 231 e 232. Todos eles
1992, no Peru em 1993, na Venezuela em 1999, no são formas indiretas de reconhecimento. No artigo
Equador em 2008 e na Bolívia em 2009 (Uprimny, 20, as terras indígenas passam a pertencer à União;
2012). Essas novas Constituições tiveram diversas no artigo 22, a União passa a ter o direito privativo
características enumeradas por diversos autores de legislar sobre terras indígenas; no artigo 129,
(Gargarella, 2012; Uprimny, 2012). Neste artigo, o Ministério Público torna-se defensor dos direi-
irei sustentar que o novo constitucionalismo tem tos indígenas; no artigo 216, os indígenas passam
três características principais: a primeira delas é a fazer parte do patrimônio cultural e imaterial
a forte ampliação de direitos, em especial dos di- brasileiro; no artigo 231, há o reconhecimento dos
reitos das comunidades tradicionais, o que altera costumes, línguas, crenças e tradições indígenas,
o desenho das comunidades políticas; em segun- considerando-se nulos e sem efeitos os títulos de
do lugar, a ampliação das formas de participação propriedade sobre terras indígenas concedidos
existentes ao largo da deliberação pelo Executivo e a particulares; e no artigo 232, aos índios é re-
pelo Legislativo, o que altera o escopo do exercício conhecida a capacidade para ingressar em juízo
da soberania; e, em terceiro lugar, um novo papel para a defesa de seus direitos (Brasil, 1988). Assim,
do Poder Judiciário, o que muda o equilíbrio de no caso brasileiro, são produzidas garantias em
poderes tradicional na América Latina. Permitam- relação à posse da terra, um problema recorrente
-me elaborar essas três dimensões. na história do país, mas não são garantidos direitos
O primeiro ponto importante a ser destacado de autogoverno e autolegislação (Baldi, 2012). O
é que o novo constitucionalismo amplia os di- mesmo é verdadeiro em relação às comunidades
reitos, em especial, os direitos das comunidades quilombolas: o Brasil reconheceu o direito das
tradicionais. Esse é o caso das Constituições do comunidades quilombolas à propriedade coleti-
Brasil, da Colômbia, da Bolívia, do Equador e das va das terras por elas ocupadas no artigo 68 do
reformas constitucionais mexicanas entre 1992 e Ato das Disposições Constitucionais Transitórias,
2002 (Baldi, 2012). Esses direitos são reconheci- mas esse direito tem sido pouco garantido devido
dos de modo diferenciado. No caso da Colômbia à necessidade de desapropriação dessas terras pela
– que foi pioneira nesse aspecto –, a Constituição, União, diferentemente do caso da terra indígena
nos seus artigos 7 e 10, reconheceu a diversidade (Gomes, 2009).
étnica da nação colombiana e também sua diversi- Assim, no que diz respeito à invenção das co-
dade linguística. A Constituição colombiana tam- munidades, pode-se afirmar que o novo constitu-
bém transformou os dialetos locais em oficiais cionalismo iniciou um processo ativo de reinven-
nos seus próprios territórios (Colômbia, 1991). ção das comunidades, ao reconhecer e redefinir

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as pluralidades nacionais. Os processos latino- se manifestou em mais de dez outros artigos da
-americanos de independência foram deficientes Constituição, entre os quais os artigos dos direitos
na invenção das suas comunidades políticas, na sociais e os que tratam da organização dos pode-
medida em que excluíram do próprio conceito de res, em especial, os delimitadores dos poderes das
comunidade grupos relevantes e, muitas vezes, comissões do Congresso Nacional e suas Casas,
majoritários em termos populacionais (Van Cott, as quais podem até mesmo convocar audiências
2008). O novo constitucionalismo corrigiu esse públicas com entidades da sociedade civil. Aí re-
processo. Seja no caso dos países andinos, seja side a origem de uma fortíssima institucionalidade
no caso brasileiro, as comunidades que resulta- participativa que existe hoje no Brasil.
ram dos processos de colonização são redefini- A Constituição de 1988 gerou cinco formas di-
das para além dos processos de homogeneização ferentes de participação: o plebiscito, o referendum
que constituíram os Estados nacionais. Passam e a iniciativa popular; os conselhos de políticas
a existir nos países latino-americanos comuni- públicas nas áreas de saúde, assistência social e
dades plurais, nas quais os grupos minoritários políticas urbanas; os chamados “planos diretores
têm reconhecido o direito à diversidade, à terra e municipais”; a possibilidade de participação no
à preservação do seu patrimônio cultural. Legislativo, concretizada na participação popu-
O segundo elemento do novo constituciona- lar nas comissões parlamentares; e, por último, a
lismo latino-americano é a ampliação dos direi- possibilidade de participação nos legislativos es-
tos de participação. Diversas Constituições no taduais. Desse modo, ela ampliou fortemente as
continente sul-americano avançaram fortemente formas de participação no Brasil. Existem hoje no
em relação às formas de participação da popula- país, segundo o Ipea, cerca de 1.500.000 conselhos
ção nas políticas públicas. Entre elas, vale a pena que envolvem, pelo menos, 10 milhões de pessoas,
destacar a Constituição brasileira de 1988 e a se supormos dez membros por conselho de polí-
Constituição colombiana de 1991, no que diz res- tica (Avritzer, 2010). Ressalte-se que também a
peito à participação das comunidades afrodes- legislação infraconstitucional foi responsável pela
cendentes, a Constituição equatoriana de 2008, a ampliação da participação popular no Brasil. Para
Constituição boliviana de 2009 e a Constituição exemplificar, podemos citar a Lei 9.868/99, a qual
venezuelana de 1999, que aqui será tratada como possibilitou a realização de audiências públicas
um caso à parte3. Permitam-me abordar separa- pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de con-
damente os diferentes casos. trole concentrado de constitucionalidade.
No que diz respeito à organização da sobera- Temos, na América Latina, outros casos de
nia e da participação, a Constituição brasileira de participação tão fortes quanto o brasileiro, como
1988 buscou romper com uma tradição de baixa o da Bolívia. A Constituição boliviana define, no
participação social existente no Brasil e redefinir seu artigo 11, que a forma de governo na Bolívia
a maneira de exercício da soberania na redação do é a democracia “participativa, representativa, co-
seu artigo primeiro. No parágrafo único do artigo munitária”. Ela define diversos tipos de participa-
primeiro, o legislador constituinte deixou claro ção, entre as quais a assembleia, a consulta pré-
que “todo o poder emana do povo, que o exerce via, a iniciativa legislativa cidadã, o referendo e
por meio de representantes eleitos ou diretamen- a revogabilidade de mandatos (Lombardo Jorge
te”. Esse postulado geral de cidadania ampliada & D’Avila, 2009). Ainda no seu artigo 26, prevê
um conjunto de formas de participação adicionais,
entre as quais vale ressaltar processos de demo-
cracia comunitária, exercidos através de normas
3 O motivo de tratar o caso venezuelano à parte dos ou-
tros está ligado a dois fatos: a origem não democrática e procedimentos próprios. As consequências
do chavismo, que tem elementos evidentes de ruptura da participação na Bolívia são importantes, em
política com a democracia; os elementos de politização
do constitucionalismo com a associação entre a parti- especial aquelas ligadas à participação do próprio
cipação política e a defesa do chavismo. Ainda assim, a movimento indígena no interior das comunidades
Constituição venezuelana tem elementos similares aos
das outras Constituições latino-americanas no que diz indígenas autônomas, tal como foi o caso recente
respeito à participação. da construção de uma estrada dentro do Parque

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Nacional Isidoro Sécure. A partir do protesto con- reconhecimento de formas de participação direta
tra a passagem da rodovia no interior do parque, o previstas na própria Constituição. O Título IV da
governo boliviano convocou uma consulta popular Constituição, que define a organização e parti-
sobre o assunto, demonstrando a operacionalida- cipação no poder, além de elencar os princípios
de das formas de participação introduzidas pela de participação, lança amplo conjunto de outras
Constituição, não obstante haver um movimento de formas de participação, tal como nos casos da
questionamento da própria constitucionalidade da Bolívia e Venezuela, entre as quais se destacam
lei de consulta, discutindo-se inclusive a represen- a consulta popular, o referendum e a revocatória
tatividade do conselho indígena a ser consultado. de mandato. O caso do Equador, junto ao da Ve-
Por fim, temos as formas de participação na nezuela, é o mais instrutivo em relação à introdu-
Venezuela e no Equador. A Venezuela e o Equa- ção de formas de participação top-down, que têm
dor são casos um pouco distintos dos do Brasil, da sido apontadas pela literatura como muito pouco
Colômbia e da Bolívia, no que diz respeito à ori- efetivas ou frequentemente antidemocráticas, tal
gem dos mecanismos de participação. É possível como foi o plebiscito de revisão da Constituição
afirmar que, no Brasil, na Colômbia e na Bolívia, realizado em 2011 (Simon, 2010).
os mecanismos de participação são resultado da Assim, podemos afirmar que o novo constitu-
interação entre Estado e sociedade e de fortes rei- cionalismo latino-americano possui, de fato, uma
vindicações participativas da sociedade (Avritzer, concepção de participação política que se expressa,
2009; Garavito, 2002). Na Venezuela e no Equa- em primeiro lugar, em uma definição da soberania
dor, as formas de participação são top-down (Fung e do governo diferente daquela que se encontra nas
& Wright, 2003) e têm origem no próprio processo Constituições das democracias mais consolidadas
constituinte. Ainda assim, as duas Constituições e também nas Constituições latino-americanas do
têm um conjunto de artigos participativos. No caso século XX. Nessa definição, a soberania é amplia-
da Constituição venezuelana, esses artigos são o 6 da e se desdobra em algumas formas de participa-
e o 70. O artigo 6 afirma que a república boliva- ção como conselhos, “consejos comunales”, auto-
riana da Venezuela terá um governo “[...] demo- nomias indígenas, orçamento participativo, planos
crático, participativo, electivo, descentralizado, diretores, entre outras. É verdade que essas formas
alternativo, responsable, pluralista y de manda- funcionam diferenciadamente (Seele & Peruzzotti,
tos revocables”. Ainda que muitos elementos dessa 2010), mas o princípio de uma maneira diferente de
definição não estejam claros, como a ideia de um definir soberania política é parte comum da tradi-
governo alternativo, a Constituição da Venezuela ção do novo constitucionalismo, o que o diferencia
estabelece uma definição ampliada de democracia, da tradição constitucionalista anterior.
tal como nos casos do Brasil e da Bolívia. Ainda O novo constitucionalismo latino-americano
no artigo 70, temos uma série de instrumentos de também ampliou o papel do Judiciário no sistema
participação democrática, tais como o referendum, de decisão política, que é um tema central nes-
a consulta popular, a revocatória do mandato, as te artigo devido a prognósticos muito pouco oti-
iniciativas legislativas, o cabildo aberto e a as- mistas feitos por O’Donnell sobre a estrutura de
sembleia de cidadãos. Assim, temos também, na equilíbrio de poderes na região. Segundo Tate e
Venezuela, um amplo cardápio participativo, que Vallinder (2002, p. 28), a judicialização possui dois
gerou iniciativas de participação infraconstitucio- elementos principais: a transferência de decisões
nais, tais como os “conselhos ciudadanos”. O que sobre políticas públicas, antes tomadas pelo Poder
está claro no caso da Venezuela é que esse cardápio Legislativo, para o Poder Judiciário, e o processo a
participativo está fortemente vinculado ao chavis- partir do qual a tomada de decisões na arena polí-
mo e sua proposta de politização da sociedade civil tica assume elementos quase judiciais. Baseando-
(Lopes Maia, 2011). -nos nesses autores, podemos afirmar que o novo
Por fim, temos o Equador, que, nesse sentido, constitucionalismo aumentou as prerrogativas do
se assemelha muito à Venezuela. Em seu artigo Judiciário e abriu caminho para o seu crescente
1, a República do Equador é definida como tendo protagonismo. Sabemos que a tradição latino-ame-
um governo republicano e descentralizado, com ricana, até o final dos anos 80, era mais orientada

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para o gap entre norma jurídica e descumprimento conjunto de funções muito importantes, entre as
(Rosen, 1980; Verner, 1984). A partir das novas quais a possibilidade de ouvir ações ou apelos,
Constituições latino-americanas, a questão do in- denominados “ações de tutela”, as quais podem
cumplimiento ou da falta de efetividade se torna ser iniciadas por qualquer indivíduo (Landau &
menos importante e passa a ser substituída pela López-Murcia, 2009). Além disso, o artigo 93 ju-
questão do novo protagonismo do Poder Judiciário. dicializou o tratamento dos direitos humanos pela
Vale a pena diferenciar alguns casos. Corte, ao considerar vinculantes os tratados inter-
No caso do Brasil, a Constituição aprimorou o nacionais de direitos humanos. Assim, temos um
controle de constitucionalidade e ampliou o papel segundo caso de fortalecimento do Judiciário no
da sociedade civil nesse processo. O artigo 103 da contexto latino-americano. A Corte Constitucional
Constituição de 1988 prevê a Ação Direta de In- colombiana tem declarado a inconstitucionalidade
constitucionalidade (Adin) e amplia os atores que em um conjunto bastante amplo de questões liga-
podem argui-la. Até 1988, apenas o procurador das à cidadania. Uma dessas declarações (ou injun-
geral da República arguia a inconstitucionalidade, ções) foi a que julgou inconstitucional a situação
a qual foi ampliada não apenas para outros atores da população deslocada pela guerra civil contra
estatais, como também para atores da sociedade as Farc (Landau & López-Murica, 2009, p. 80).
civil. Foi essa modificação que permitiu a amplia- A Corte Constitucional colombiana também atuou
ção das Adins e um forte trânsito entre socieda- fortemente em casos ligados a direitos sociais, de-
de civil e Estado em diversas Adins. Entre 1988 clarando inconstitucional a cobrança do imposto
e 2010, já foram ajuizadas 1.335 Adins, 877 em sobre o valor agregado a produtos de primeira ne-
relação a medidas do Poder Executivo e 458 em cessidade, ou ordenando a indexação dos salários
relação a medidas do Poder Legislativo (Sundfeld de funcionários públicos (Uprimny, 2012, p. 59).
et al., 2011, p. 26). O ativismo da sociedade civil Por fim, a Corte assumiu uma postura extrema-
nessas Adins é bastante alto, ainda que a taxa de mente ativa, ao tomar a importantíssima decisão de
sucesso seja bem mais baixa. declarar a inconstitucionalidade da lei que aprovou
O segundo caso importante é o da Suprema um terceiro mandato para o ex-presidente Uribe.
Corte colombiana, depois da Constituição de 1991. Temos ainda três casos adicionais nos países
Tal Constituição outorgou à Suprema Corte um que estamos tratando neste artigo, que são bas-

tabela 1

Modelo constitucional latino-americano e o novo constitucionalismo

País Brasil Colômbia Bolívia Equador Venezuela

Ruptura constitucional Predomínio Diversas Diversas Predominância


com predomínio do Executivo. rupturas rupturas do Executivo
Período do Executivo. Suprema Corte constitucionais constitucionais com gestão
1930 fim do Executivo forte com não interferiu com com democrática
autoritarismo baixas prerrogativas na decretação predominância predominância pós-Punto Fijo.
do Poder Judiciário de estado de do Executivo. do Executivo.
em todos os períodos. emergência.

Poder Judiciário Suprema Corte Suprema Corte Suprema Corte Predominância


recupera prerrogativa ativa com ação ativa aceitando ativa e do Executivo
com os artigos 102 e de tutela. o pluralismo pluralismo com
1988 a 2009
103 entre outras formas jurídico. jurídico, mas intervenção
de controle. subordinada no Judiciário.
ao Executivo.

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dossiê democracia na américa latina

tante diferentes. O caso da Venezuela é o mais reitos de proteção, no artigo 75 e seguintes. Além
instrutivo em relação à manutenção de um velho disso, há no caso equatoriano um forte debate so-
padrão latino-americano de intervenção do Exe- bre o Consejo de la Judicatura de Transición, o
cutivo no Judiciário. O presidente Chávez demitiu qual está encarregado de reestruturar o Poder Ju-
o presidente da Suprema Corte venezuelana e a diciário no país e que, para fazê-lo, tem removido
Constituição reestruturou o sistema de equilíbrio um grande número de juízes.
de poderes em cinco poderes, retirando algumas Assim, é possível mostrar um padrão de mu-
das prerrogativas da Suprema Corte (Villa, 2005). dança na atuação do Poder Judiciário na região,
Os outros dois casos, o do Equador e o da Bo- o qual perpassa todos os países, com exceção da
lívia, parecem bastante diferentes. Ambos estão Venezuela e, provavelmente, do Equador. Em to-
estruturados em Constituições que ampliaram dos os casos, não só as Constituições ampliaram
fortemente a tradição de direitos e a autonomia fortemente a estrutura de direitos, mas foi possível
do Poder Judiciário. Ainda assim, vale a pena também ampliar o papel do Judiciário na imple-
diferenciá-los. Na Bolívia, temos efetivamente mentação desses mesmos direitos. O Poder Judici-
a tentativa de instalação do pluralismo jurídico, ário é hoje mais ativo na América Latina em duas
com fortes autonomias indígenas, baseadas em funções: na contenção de ilegalidades cometidas
uma justiça alternativa. A Constituição boliviana pelo Estado, tal como fica muito claro nas ações
entende o país como “um estado unitário social de tutela na Colômbia, e na efetivação da amplia-
de direito plurinacional comunitário” (Bolívia, ção de direitos no Brasil, Colômbia e Bolívia. O
2009). Essa pluralização se manifestou de forma Judiciário constitui também um instrumento de
ambígua em muitos conflitos, mas aguarda de- ampliação dos direitos plurinacionais, especial-
cisões importantes da Corte, especialmente no mente no caso da Bolívia e, em alguma medida,
caso recente da suposta inconstitucionalidade no do Equador4. Assim, temos de fato um consti-
da Lei Corta (Lei 180, de outubro de 2011) e da tucionalismo que mudou um padrão histórico de
Lei de Consulta Prévia (Lei 222, de fevereiro de exercício do poder, na medida em que moderou
2012). A “Lei Corta”, que é fruto da assim cha- uma tendência de Executivo presidencial e criou
mada “oitava marcha indígena”, acabou gerando uma estrutura de direitos e um Judiciário mais
a necessidade de um plebiscito entre a população independente. A questão, no entanto, que irei dis-
indígena, o qual se tornou polêmico, haja vista cutir na seção final deste artigo, é se podemos
a suposta violação do caráter prévio da consulta dizer se especificidades históricas que impediam
e a parcialidade da representatividade indígena. uma democratização mais profunda da região
Há casos, como o da Sentença Constitucional continuam existindo ou foram superadas.
295/03, nos quais a Corte Constitucional da Bo-
lívia já se pronunciou, reconhecendo os direitos
NOVOS IMPASSES NA DIVISÃO
indígenas. Nessa sentença, especificamente, a
Corte concedeu o pedido de tutela de um casal E EQUILÍBRIO DE PODERES
de uma comunidade indígena, o qual estava sen-
do ameaçado de expulsão, afirmando, todavia, O fim de uma década de governos de esquerda
que o mencionado casal deveria respeitar as nor- na América (Levitski & Roberts, 2011) e de um
mas comunitárias. Assim, é possível apontar a boom de crescimento econômico volta a colocar
Bolívia como um caso de pluralização do direito dilemas para a democracia na América Latina. Es-
com ativismo judicial. ses dilemas, mais uma vez, estão concentrados em
Por fim, temos o Equador, que se encaixa em torno do funcionamento do Executivo e do Judici-
um padrão semelhante ao da Bolívia. No que diz ário e da estrutura de equilíbrios de poder.
respeito ao texto constitucional, a Constituição
equatoriana também reconheceu o direito indígena
e ampliou a competência do Judiciário, garantindo,
4 O caso equatoriano é um pouco mais ambíguo que o
principalmente, fortes direitos de acesso ao Poder boliviano, em especial no que diz respeito às relações
Judiciário no seu capítulo oitavo, que trata dos di- entre Poder Executivo e Suprema Corte.

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Em primeiro lugar, passamos por mais uma lômbia, o Brasil, o Chile e a Argentina. Em todos
onda de conflitos em torno do Poder Executivo, o esses casos, houve um forte aumento de prerroga-
que a princípio pode ser positivo. A centralização tivas do Poder Judiciário, o que, em um primei-
das estruturas de poder em torno do Executivo ro momento, fortaleceu práticas democráticas na
foi, para Guillermo O’Donnell, parte do proble- região. A atuação da Suprema Corte colombiana
ma para a construção democrática na região. Os ao declarar a inconstitucionalidade de um terceiro
chamados impeachments populares (Peres-Linan, mandato para Uribe ou a tentativa de estabelecer
2007) são uma demonstração do que existe de er- limites à ação de um Poder Executivo muito forte
rado com a centralização das disputas políticas no centrado na luta contra as Farc parece ser um bom
Poder Executivo. A inclusão do Brasil no campo exemplo desse fortalecimento (Uprimny, 2012). O
dos países com impeachments populares mostra mesmo pode ser afirmado em relação ao Poder Ju-
que o problema é muito mais complicado e está diciário na Argentina, que se fortaleceu de forma
ligado à falta de um entendimento mais profun- significativa no período pós-autoritário ao julgar
do sobre as estruturas do Estado no momento de os ex-integrantes das juntas militares por graves
fortes disputas políticas. violações dos direitos humanos. O Brasil se co-
O mesmo podemos dizer sobre os primeiros loca como um terceiro caso, no qual, de um lado,
meses de um governo Macri e o início de uma houve uma forte continuidade do poder judicial
presidência de Michel Temer, que pode ser inte- com a estrutura judicial do período autoritário.
rina ou não. Assistimos a elementos de “delega- De outro, a partir da Constituição de 1988 e dos
tivismo” com uma atuação dos dois muito além seus artigos 103 e 104, há uma enorme ampliação
dos mandatos recebidos. No caso de Macri, no das prerrogativas do Poder Judiciário, que passa a
qual, pelo menos, houve uma eleição, vemos uma ter o poder de declarar a inconstitucionalidade de
extrapolação em relação à agência de controle de atores do Poder Executivo e que disputa e ganha
meios e à nomeação de membros do Poder Judici- prerrogativas antes detidas pelo Congresso Nacio-
ário por decreto, lembrando que a Argentina tem nal. No entanto, vemos um último período de forte
um sistema no qual o presidente governa alguns politização do Judiciário, no qual membros do Su-
meses sem que o Congresso esteja em pleno fun- premo Tribunal Federal se pronunciam em público
cionamento. Já no caso de Temer, a situação é mais sobre questões políticas se eximindo de tratá-las
grave porque não há nenhum mandato que justifi- na linguagem judicial, para nos referirmos aqui à
que uma forte mudança de curso ancorada apenas já clássica abordagem de Tate e Vallinder. Desse
em um Congresso sem nenhuma legitimidade. Por modo, temos um Poder Judiciário mais forte, mas
fim, vale a pena ficar de olho no caso peruano, que não necessariamente fortalece as regras do Es-
no qual o pior, a eleição de Keiko Fujimori, foi tado de direito e da institucionalidade democrática.
evitado, mas não sabemos a que preço. Assim, no Assim, abre-se um novo período em que, mais
caso do Poder Executivo, voltamos a discussões uma vez, as regras da disputa dos conflitos po-
feitas nos anos 70 por Juan Linz e nos anos 90, por líticos estão em aberto. Esses conflitos são pre-
O’Donnell. Ele é o poder ativo, mas a sua disputa cipitados por mais uma inflexão no desempenho
em momento de fortes mudanças políticas passa da economia, que acabou de passar por um mo-
por regras não escritas, acordos intraoligárquicos e mento excepcional. Nada há de errado com o fato
fortes modificações das regras do jogo. O desloca- de a economia passar por inflexões, o que desde
mento da centralidade absoluta do Poder Executivo 2008 tem ocorrido com as principais economias
tem que ser feito a partir de regras claras, e isso do mundo democrático. Mas a inflexão econômica
continua sendo um problema para a construção da gera conflitos distributivos e abre a luta por novos
democracia na região. projetos. É exatamente aí que aparecem mais uma
Por fim, vale a pena avaliar a grande mudança vez os problemas para a construção democrática
política da região nos últimos 20 anos, que é a na América Latina. Poder Executivo e Poder Ju-
emergência de um Poder Judiciário com prerroga- diciário se fortaleceram e passaram por um mo-
tivas de fato. O Judiciário, tal como foi mostrado mento positivo pautado pela resolução de conflitos
anteriormente, se fortaleceu, em países como a Co- no interior das regras democráticas. Novos atores

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estão presentes na cena política, o que mais uma no começo dos anos 90, em relação aos poderes e
vez é altamente positivo. Mas a volta à tona de um ao seu equilíbrio, mas há um problema de fundo
projeto conservador na região e a disputa do poder no conceito de democracia delegativa que conti-
ou da hegemonia por meios pouco democráticos nua operando, qual seja, o da obediência às regras
mostram que, mais uma vez, o problema históri- do jogo democrático por aqueles que atuam nas
co que se coloca para a construção democrática instituições. Esse será provavelmente o problema
é resolver conflitos, quando eles emergem, dentro que irá indicar, ao final deste período de forte ins-
da institucionalidade democrática. Talvez tenha- tabilidade política que atinge a América do Sul, o
mos superado o dilema apontado por O’Donnell, quanto a democracia na região avançou.

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