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Bertonha, 2014a.
2
Esse artigo trabalha com essa problemática, mas focando num tópico específico:
a presença do fascismo na América Latina no período entre as duas guerras mundiais.
Longe, contudo, de se pretender uma reconstrução factual dos movimentos fascistas no
continente ou uma reflexão geral sobre as razões de seus sucessos ou fracassos (o que,
de resto, já fiz em outros espaços2), o foco é muito mais específico: em que medida se
pode pensar num fascismo latino-americano? Haveria, dentro do pensamento fascista
local, especificidades tão evidentes a ponto de podermos criar uma tipologia especial
para defini-lo? Quais as fontes do pensamento fascista latino-americano e como
entender a relação entre o externo e o interno? São esses os eixos que norteiam esse
trabalho.
Para tanto, será necessário, antes de tudo, definir um “tipo ideal” de fascismo
com que trabalhar, de forma a termos como avaliar as experiências regionais e relançar
a discussão entre “mimético” e “original”. Posto isso, a discussão se centrará – pelo viés
comparado, especialmente, mas não só, no tocante à Europa oriental e do sul - na
possibilidade e/ou necessidade de se criar uma subtipologia específica para definir a
experiência fascista latino-americana, como “fascismo latino”, “fascismo ibérico” ou
mesmo “fascismo latino-americano”.
Ressalto, por fim, que esse artigo representa a evolução de inúmeros outros
textos e falas nas quais tenho desenvolvido o tema e que os citarei aqui, me
desobrigando de fazer notas bibliográficas além do mínimo necessário. Portanto, os
leitores interessados em discussões complementares e em bibliografia auxiliar poderão
ter acesso a elas nesses textos. O foco do texto, além disso, é o período do fascismo
clássico, nos anos 1920, 1930 e 1940, com uma atenção menor aos períodos anteriores e
posteriores, apesar da sua importância.
2
Bertonha, 2013a.
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respostas diferentes podem ser obtidas conforme os aspectos (ideologia, base social,
radicalismo discursivo, forma de exercício do poder, violência, etc.) que são enfatizados
3
na sua construção. É, no entanto, uma questão que tem que ser respondida, pois as
confusões conceituais (como as que associam fascismo ao autoritarismo ou ao
totalitarismo ou o separam do campo da direita) acabam por nos impedir de
compreender com mais precisão o mundo real no qual se deu e dá o embate político.
Realmente, ao confundir práticas antidemocráticas, violentas e intimidadoras
com o fascismo, perde-se a distinção entre método e objetivo. Todo fascista é, por
definição, incapaz de conviver com o debate, o respeito pelo outro e a prática pacífica
da discordância e da divergência (a não ser, possivelmente, em nível interno e apenas
dentro de certos limites), mas nem toda pessoa ou grupo que tem essa incapacidade é
fascista.
Fascismo, pois, é algo muito mais específico, ainda que haja variações de um
para outro movimento e, especialmente, como seria inevitável, entre os fascistas dos
anos 1930 e os do mundo atual. É um regime ou movimento fortemente anticomunista,
antissocialista e antidemocrático que propõe a substituição da ordem democrática
burguesa e do liberalismo político e econômico por uma nova. Nessa nova realidade,
haveria um Estado orgânico, hierárquico, baseado numa liderança carismática e num
partido único que serviria para a transmissão de uma ideologia específica, mobilizando
a sociedade. Um partido único, aliás, que iria além de uma simples negação de outros ou
de uma estrutura amorfa para acomodar interesses, mas uma real máquina de
mobilização popular e transmissão ideológica.
O fascismo também seria, ao contrário dos reacionários ou conservadores, um
movimento moderno, no sentido de não propor uma volta ao passado, mas um futuro
diferente. Ele é, aliás, tão moderno e adaptado ao mundo democrático (ainda que o
negasse) que proclama a necessidade da mobilização continua das multidões e utiliza
uma política deliberada de ódio ao “outro” (judeu, comunista, imigrante, gay, etc.) para
garantir essa mobilização. Nesse sentido, mesmo quando o fascismo não atinge
plenamente seu potencial totalitário (se restringindo, como no caso do fascismo italiano,
ao autoritarismo ou, no máximo, ao totalitarismo incompleto), ele tem que estar
presente, ao menos enquanto perspectiva.
3
Para pontos de vista diferentes, ver Griffin, 1991. Eatwell, 1996. Breuer, 2008. Paxton, 2008.
4
Ele não rompe, contudo, com a ordem capitalista e suas bases ideológicas, ao
final, são as da direita: ordem, hierarquia, desigualdade como valor. Mesmo sendo uma
direita radicalizada, não deixa de pertencer a essa família, o que permitiu aproximações
e alianças entre os vários ramos da direita nos mais variados contextos e épocas. 4 Nesse
sentido, discordo da possibilidade de existir um “fascismo de esquerda”, ainda que
certos regimes nacional-populistas, como o de Cárdenas ou de Perón, possam ter
apreciado ou incorporado aspectos do fascismo, especialmente do italiano.
Nesse ponto, pensando nas reflexões gerais desse simpósio, convém estabelecer
com precisão as fronteiras do fascismo frente a liberais, conservadores ou reacionários,
especialmente no tocante ao problema da modernidade. Todas essas correntes políticas e
ideológicas podem ser chamadas de modernas, no sentido que todas só fazem sentido
dentro do sistema democrático e liberal que emergiu a partir do iluminismo, sendo o
marco evidente a Revolução francesa de 1789. Seja relativizando a democracia ou
mesmo combatendo-a, é evidente o caráter moderno de todas essas correntes, desde o
século XVIII até o momento presente.
Há, contudo, diferenças em termos de que modernidade se está falando. Os
liberais do século XIX, apesar de discordarem sobre os limites da democracia ou da
atuação do Estado, acabavam por aceitar, em linhas gerais, a soberania do homem na
esfera pública. A oposição a eles, evidentemente, era dos conservadores, que
consideravam que ao homem não era permitido implementar medidas que iriam contra
os costumes estabelecidos, a vontade divina, etc. Muitos conservadores, dessa forma,
acabavam por ter certa atração pelo pensamento corporativista, ou seja, a ideia de
alternativas à atomização individualista promovida pelo liberalismo.
Na primeira metade do século XIX, na verdade, a maior parte dos conservadores
poderiam ser mais bem classificados, na minha interpretação, como reacionários. Ou
seja, como aqueles que reagiam a mudanças intensas na sociedade combatendo-as e
procurando, na medida do possível, fazer o relógio da História voltar para trás, na
direção do Antigo Regime ou da Idade Média.
No decorrer dos séculos XIX e XX, contudo, o embate entre essas forças mudou
os termos do problema. No campo liberal, a grande questão passou a ser como combinar
a proposta democrática com a consolidação do capitalismo e da sociedade de massas. Já
4
Ver alguns dos textos presentes em Bertonha, 2008; 2016 a.
5
5
Bobbio, 1995.
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Bertonha, 2013a.
7
A bibliografia sobre a ação nazista, fascista e falangista no continente tem crescido exponencialmente
nos últimos anos. Ver, por exemplo, Friedman, 2003. Gautig e Veit, 1995. Muller, 1998. González
Calleja, 1994 e 2014. González Calleja e Nevado, 1988. Delgado, 1988 e 1992. Para o caso italiano, ver a
bibliografia compilada em Bertonha, 2015 e um estudo específico sobre a América Latina em Bertonha
2010b.
8
Trindade, 2004. Larsen, 2001.
9
9
Mann, 2008: 74-95.
10
Larsen, 2011.
10
institucionais, também poderia ser explicado por este viés estrutural, como uma resposta
particular a uma crise ideológica de uma sociedade em transição para a modernidade. 11
Assim, mesmo que não seja um modelo perfeito, ele é válido ao indicar como certos
problemas da transição do mundo moderno podem sim ser de importância para explicar
o surgimento, ou não, de partidos fascistas de massa no continente.
Quando se trata de explicar a incapacidade desses movimentos, mesmo os mais
fortes, em atingir o poder, os fatores a serem elencados, provavelmente, seriam o
impacto da crise mundial e o gerenciamento desta pelas elites. Tais fatores podem
explicar porque, em alguns países, o fascismo não teve forças para se desenvolver além
de certo ponto e, especialmente, porque não conseguiram chegar ao poder em nenhum
Estado da região.
Efetivamente, é válido recordar como a década de 1930 não foi, na América
Latina, a era dos fascismos, mas a das ditaduras ou dos “Estados fortes” e foram estes
que, no limite, bloquearam a ascensão do fascismo ao poder, inclusive com a força das
armas, como aconteceu no Brasil e no Chile em 1938.
As variações de forma, claro, foram imensas. Na América central ou Caribe
(assim como na Bolívia ou na Venezuela), uma simples ditadura militar funcionou
perfeitamente quando de uma crise geral como a dos anos 1930. No Brasil, as elites
preferiram uma ditadura conservadora com traços modernizantes, enquanto ditaduras
mais ou menos disfarçadas - como os regimes de Terra no Uruguai, Justo na Argentina
e Benavides no Peru - se espalharam por todo o continente. Em alguns países, como na
Colômbia ou na Costa Rica, a democracia se manteve, mas sob a crescente influência
militar, mantendo o equilíbrio político e a estabilidade institucional.
Já o México vivia uma situação pós-revolucionária, com domínio da esquerda.
Longe de classificar o México como um “fascismo de esquerda” 12
, o identifico como
um regime nacional-populista com alguns aspectos em comum com o modelo fascista,
mas em franca oposição a ele, tanto que os verdadeiros grupos fascistas locais tiveram
muito pouco espaço de atuação.
Em todos estes países, o fato comum é que as elites mantiveram o controle do
poder e não viram necessidade de ceder espaço à direita radical ou a grupos alternativos,
os quais, portanto, não conseguiram assumir o Estado nem mesmo onde conseguiram
uma maior base popular e representatividade política. A opção fascista ficou na
11
Trindade, 2004:58-60
12
Savarino, 2013: 128.
11
“reserva” e não precisou ser utilizada em nenhum país. O fascismo poderia ter sido,
assim, uma opção para ao menos alguns dos países da região, mas a própria
modernidade incompleta destes países e o poder de suas elites o impediram.
conservadores de direita do que fascistas. Elas tinham alguma simpatia por Mussolini e
laços com os fascistas italianos e alemães em território argentino, mas Charles Maurras
era a principal fonte de inspiração externa. No final dos anos 1930, no máximo uma ou
outra dessas ligas se aproximaram o suficiente do fascismo para serem consideradas
como tal, mas o nacionalismo como um todo provavelmente não o era.
No entanto, em que pese esta ausência de fascismo organizado na Argentina
naqueles anos, a cultura fascista parece ter sido muito mais popular e difundida do que
em outros países. O ideal fascista pode não ter se corporificado, por razões locais, em
partidos e movimentos fascistas de peso, mas era bastante difundido em outros grupos
de direita e na sociedade como um todo. Assim, não classificaria a Argentina, como faz
Trindade13 como um país onde os fascismos não tiveram repercussão. Ela foi difusa e
indireta, mas de importância, ainda que não o suficiente para justificar a imagem da
Argentina como país fascista por excelência.
Além dessa difusão indireta das perspectivas fascistas, outro ponto de relevância
- já indicado, mas que convém recordar e aprofundar - é que nenhum dos fascismos da
América Latina e, especialmente, os que adquiriram maior relevância, realizaram uma
cópia simples ou uma transcrição literal do que liam e recebiam da Europa. Todos eles
se adaptaram às suas próprias sociedades e culturas, até para fazer sentido e terem
alguma perspectiva de sucesso político.
13
Trindade, 2004:21-28.
15
vez, também se davam dentro do contexto maior do mundo ocidental) com o novo
representado pelo fascismo é que a base ideológica do integralismo foi gerada.
A partir daí, algumas especificidades do integralismo brasileiro se tornam
evidentes. Miguel Reale, por exemplo, era um leitor atento e cuidadoso da experiência
da Itália fascista, tendo, inclusive, estudado em uma escola italiana de São Paulo
quando criança. Ele via com extrema simpatia o corporativismo e o novo modelo de
Estado que se implantava na Itália, mas se tornou um pouco mais crítico quando o
fascismo italiano começou a assumir tons mais racistas e totalitários. Miguel Reale,
além disso, refletiu bastante sobre como adaptar o sistema corporativo e de Estado
fascista para a realidade de uma Nação continental.
No modelo de Reale, as corporações e os municípios seriam as chaves para
permitir a constituição do Estado integralista, diluindo e amortecendo as tensões e
diferenças. O município seria célula fundamental da estrutura corporativa e teria
completa autonomia administrativa. Os líderes municipais seriam eleitos pelo sufrágio
universal, aceitável em realidades locais, enquanto, na esfera nacional, o poder viria do
alto.
Entretanto, o Estado Integral também teria soluções para regular e equilibrar as
prováveis distorções entre dimensão territorial e representatividade, entre a
representatividade em nível local e a extrema centralização política, graças às estruturas
corporativas. Se o liberalismo provocara o fortalecimento exagerado das unidades da
Federação, a correção dessa estrutura seria feita mantendo-se a forma federativa, desde
que combinada às corporações, à autonomia dos municípios e à centralização política,
com o objetivo de equilibrar as forças entre as regiões e o Estado-Nação. O exemplo de
Reale indica o processo de leitura e adaptação de conceitos fascistas para uma realidade
desconhecida da Europa, ou seja, as dimensões continentais do Brasil. 14
Sem querer entrar em detalhes sobre as adaptações e releituras feitas por cada
um dos movimentos e grupos fascistas do continente, creio que poderíamos elencar
alguns elementos centrais, gerais, capazes de identificar as especificidades da América
Latina dentro do universo fascista mais amplo.
A primeira delas seria o papel das Forças Armadas dentro da nova ordem
fascista. Os fascismos, em linhas gerais, nunca foram pretorianos, emanações dos
quartéis, e a desconfiança entre as Forças Armadas e os partidos fascistas foram
14
Bertonha, 2010, 2013b, 2013c e 2014.
16
contínuas. Claro que houve compromisso e aliança, mas as tensões entre os camisas
negras fascistas ou a SS com as forças armadas da Itália e da Alemanha são bem
conhecidas.
Na América Latina, foram os militares que, efetivamente, diminuíram o espaço
dos partidos fascistas e, no caso do Brasil e do Chile, que impediram o sucesso dos
golpes de Estado por eles organizados. Em alguns locais, igualmente, a tensão e a
desconfiança das forças armadas com os fascistas foi uma constante, como no Chile. Os
nacionalistas argentinos e os integralistas brasileiros, contudo, não tinham uma postura
contra os militares e, ao contrário, insistiam na necessidade de contar com eles para a
implantação da Nova Ordem. Na Argentina, aliás, essa aproximação foi ainda mais
intensa e mesmo os nacionalistas argentinos que poderíamos enquadrar como fascistas
desejavam a participação do Exército na Nova Ordem. É provável que o papel central
dos militares na política latino-americana naquele momento tenha diminuído um pouco
o sentimento antimilitar que predominou no caso do fascismo europeu.
Do mesmo modo, a ausência de veteranos de guerra (com a exceção dos
paraguaios e bolivianos da Guerra do Chaco e, talvez, dos ex-combatentes da Revolução
Mexicana) e o impacto moderado da Primeira Guerra Mundial na maior parte do
continente impactou o caráter dos fascismos latino-americanos, os quais foram
legalistas na maior parte do tempo. Nenhum deles, nem mesmo o integralismo, levou
em frente um projeto de conquista do poder pelas armas, confiando nas articulações
políticas e no apoio dos militares para tanto.
Fascismo sem algum tipo de pensamento imperial é praticamente impossível e
os fascismos latino-americanos desenvolveram projeções imperialistas. Os integralistas
pretendiam recuperar a posição de destaque um dia desfrutada pelo Brasil na região do
Prata e, especialmente, guiar espiritualmente a América Latina na direção do fascismo,
pretensão que os nacistas chilenos também tinham com relação, pelo menos, à América
andina. Os nacionalistas argentinos também projetavam a recuperação do suposto
espaço perdido ao Chile na Patagônia enquanto muitos mexicanos tendiam a ver no
fascismo uma forma de conter o poder dos Estados Unidos. Tal postura era também
compartilhada, inclusive, pela maioria dos fascismos latino-americanos. Nunca se
chegou, contudo, à elaboração de plataformas claras de conquista militar dos vizinhos, o
que reflete tanto o caráter embrionário da maioria dos movimentos, como a fraqueza
militar dos vários Estados do continente.
17
A herança católica foi valorizada pela maioria dos movimentos fascistas latino-
americanos, ainda que com várias gradações. Os nacistas chilenos, por exemplo, tinham
uma relação nem sempre harmoniosa com a Igreja Católica chilena, mas ressaltavam a
herança católica como um elemento unificador do povo chileno. Já os integralistas
brasileiros estavam muito mais próximos da Igreja (que nunca lhe deu, contudo, total
apoio) em termos de origens ideológicas e em apoio mútuo e consideravam o
catolicismo uma das essências nacionais. Mesmo assim, ele não era uma emanação do
catolicismo e setores do integralismo, como o de Miguel Reale, era eminentemente
laico. Por fim, vários grupos espalhados pela América Latina não só identificavam a
herança católica como elemento central da Nação unificada que se pretendia alcançar,
como estabeleceram laços ainda mais profundos com a estrutura eclesiástica.
Um dos casos mais relevantes foi o da Argentina. Nesse país, como já indicado,
as forças nacionalistas incluíam desde grupos reacionários que enfatizavam a
importância do Exército e da Igreja como instrumentos para restaurar a ordem nacional,
até grupos propriamente fascistas. Tais grupos também enfatizavam a colaboração, a
aliança e a penetração ideológica no interior do Exército e da Igreja, formatando uma
aliança que marcou a história argentina por décadas. Em resumo, se a influência católica
foi um traço marcante na história da direita latino-americana e, igualmente, do fascismo
latino-americano, houve variações de monta de país para país.
Em outras palavras, em alguns locais, a influência católica no campo da direita
foi tão forte que impediu o surgimento do fascismo, preterido em favor de grupos
reacionários ou dos governos conservadores. Mesmo dentro do universo fascista, além
disso, as variações ocorreram, passando desde uma firme e sólida aliança, como na
Argentina, até uma relação simbiótica, como no Brasil, e uma de relativa tensão, como
no Chile.
O racismo europeu também foi profundamente adaptado para que pudesse fazer
sentido em um continente mestiço. A proposta de uma uniformidade cultural e racial
que fortaleceria a Nação foi mantida, mas os termos dessa uniformidade não eram os
mesmos. No Paraguai, a fusão entre os guaranis e os espanhóis seria a base da nova
ordem, enquanto, no México, o problema do racismo e da formação racial mexicana era
considerado menor, ainda que houvesse restrições, por exemplo, aos imigrantes
chineses.
No Chile, onde os nacistas chilenos tiveram uma influência ideológica maior do
nazismo, construiu-se o mito de um povo chileno ariano, dentro do qual a raça europeia
18
15
Bertonha, 2014.
19
A Itália sofria algumas restrições pelo seu suposto laicismo, mas, em geral, o
racismo e o antissemitismo moderados, o bom relacionamento com a Igreja e os
militares e o tom mais autoritário do que totalitário do primeiro fascismo atraía
simpatias. Apenas quando o fascismo italiano começou a adquirir tons mais totalitários,
racistas e antissemitas, no final dos anos 1930, é que o encanto italiano começou a
diminuir, ainda que nunca tenha desaparecido.
O nazismo, em linhas gerais, nunca se tornou um referencial teórico central dos
fascismos latino-americanos. O seu racismo arianista e o seu antissemitismo exacerbado
faziam pouco sentido na América Latina e suas relações tensas com a Igreja geravam
mais desconfianças do que simpatia. A dificuldade de comunicação, cultural e
linguística, também tornava a mensagem nazista restrita a um gueto específico – as
comunidades de origem alemã – e o seu tom totalitário levava a desconfianças ainda
maiores.
Claro que uma simpatia geral por Adolf Hitler existiu e setores do integralismo
brasileiro ou dos nacionalistas argentinos se aproximaram dos ideais nazistas de forma
mais intensa. Também os nacistas chilenos tiveram um maior contato e diálogo com o
Terceiro Reich, ainda que menos importante do que pareça a primeira vista.16 Em
linhas, contudo, o apelo nazista no continente foi menor do que do fascismo italiano ou
ibérico.
16
Bertonha, 2016b.
21
17
Payne, 1999: 345.
22
nos quais a Igreja teve papel relevante, como o Portugal de Salazar ou a França de
Vichy. Além disso, uma fusão perfeita entre o conservadorismo católico e o fascismo é,
em termos conceituais, impossível. No máximo, como indicado por Griffin18, o termo
“fascismo clerical” poderia ser utilizado para identificar fascismos nos quais, em termos
ideológicos e políticos, a colaboração do catolicismo (ou da Igreja ortodoxa) em termos
ideológicos ou políticos foi maior do que em outros, como, por exemplo, o nazismo.
Nessa definição restrita, seria possível incluir os rexistas belgas, a Guarda de
Ferro romena, o fascismo austríaco e os ustaches croatas, por exemplo. Evidentemente,
vários dos movimentos e grupos fascistas da América Latina também poderiam ser
indexados nessa categoria, em maior ou menor grau. A própria imprecisão do conceito,
contudo, torna difícil resumir o fascismo latino-americano a uma manifestação a mais
do fascismo clerical.
Outro termo que surge em algumas análises do fascismo é “fascismo
mediterrâneo”, o qual englobaria as experiências da península ibérica, França e Itália. O
termo também é muito impreciso, ainda mais porque, normalmente, ele tende a reunir,
no mesmo bloco, grupos e regimes não comparáveis, como o salazarismo, o
franquismo, os vários movimentos fascistas ibéricos e o fascismo italiano.19
O termo “fascismo latino” talvez pudesse ser de mais utilidade. Ele unificaria os
movimentos e regimes fascistas dos países do sul da Europa e da América Latina num
único bloco, sendo essencial, contudo, que fossem excluídos, do conceito, os regimes e
movimentos conservadores. Seus elementos comuns seriam o catolicismo (e,
especialmente, segundo Costa Pinto, a influência do paradigma reacionário representado
pela Action Française), a recusa do racismo e do antissemitismo extremados nazistas, a
maior influência da versão italiana do fascismo frente à alemã e o fato que, salvo poucas
exceções, os fascismos foram eliminados por regimes conservadores de direita. 20
Um dos problemas desta teoria é a heterogeneidade da história política dos
países latinos naqueles anos. A Itália, por exemplo, foi o único país latino que se tornou
fascista, enquanto a grande maioria oscilou para regimes “fortes” de algum tipo. Já a
França, como demonstra uma imensa bibliografia, tem particularidades imensas, como a
presença de movimentos fascistas extremamente desenvolvidos e, ao mesmo tempo, de
uma forte resistência antifascista de esquerda quase inexistente em outros países latinos.
18
Griffin, 2007. Pollard, 2007. Ver também os artigos reunidos em Feldman, Turda e Georgescu, 2008.
19
Morgan, 2010.
20
Pinto, 2004. O texto completo está em Pinto, 2015, item “Uma variante do fascismo europeu”.
23
Em resumo, parece haver diferenças demais para que possamos criar um padrão latino
de fascismo.
Contudo, talvez não seja absurdo pensar em outra classificação, a qual poderia
excluir França, Itália e outros casos pouco claros e incluir Espanha e Portugal
juntamente com os países da América Latina. Nos dois países, o fascismo foi
relativamente fraco (com a exceção da Falange Espanhola depois da eclosão da Guerra
Civil) e o pouco que eles conseguiram em termos de popularidade parece ter a ver, de
forma análoga aos principais países latinos da América, com a emergência da
modernidade nestes países. Os tons mais próximos da matriz fascista do que da nazista
também parecem ser um traço em comum entre os dois grupos de países. Além disso,
foram ditaduras conservadoras e reacionárias, de Franco e Salazar, que acabaram por
eliminar os movimentos realmente fascistas, de Primo de Rivera e Rolão Preto. Houve
até mesmo uma tentativa de golpe dos nacional-sindicalistas em Portugal em 1939,
similares às dos nacistas no Chile e dos integralistas no Brasil em 1938.
Assim, talvez o termo “fascismo ibérico” fosse razoável para agrupar as histórias
dos movimentos fascistas na Península Ibérica e nas suas antigas colônias na América.
Ele é suficientemente amplo para abarcar várias experiências particulares, mas que tem
traços claramente similares em termos de ideologia, relação com as forças
conservadoras e mesmo destino. Ao mesmo tempo, é suficientemente restrito para
excluir casos duvidosos e outros muito particulares, como o francês e o italiano. Uma
avaliação completa da sua utilidade, contudo, será feita apenas na conclusão desse
artigo.
Ele não poderia, contudo, ser exclusivista, pois as proximidades do caso latino-
americano e/ou ibérico com outras regiões onde o fascismo esteve presente são
evidentes demais para serem desconsideradas.
21
Tenho trabalhado, nos últimos anos, com a problemática do fascismo na América do Norte e no Reino
Unido. Ver Bertonha 2002; 2003; 2010c, 2011b, 2015b.
25
dominante na região naquelas décadas. O fato de terem sido estas as que eliminaram os
fascismos locais também indica similitudes com a América Latina. No caso húngaro e
romeno, aliás, os conflitos entre os conservadores e os fascistas chegaram às armas,
como acontecido no Brasil, no Chile ou em Portugal.
No Leste europeu, contudo, certas questões impactaram com mais força do que
no universo ibérico. O antissemitismo era muito mais difundido e tinha um apelo
popular inegável, enquanto a questão do comunismo adquiria uma materialidade muito
maior, dada a vizinhança da URSS. A insatisfação com as mudanças territoriais pós-
1918 também foi um fator de impulso para o nacionalismo radical que não teve igual na
América Latina. Por fim, o fato do racismo e do imperialismo alemães serem voltados,
essencialmente, para esses países tornava a adesão ao modelo alemão de fascismo mais
problemática, ao menos para alguns grupos. Não espanta, aliás, que poloneses ou
bálticos olhassem com mais atenção para o modelo de Roma, até por exclusão, mesmo
quando pudessem apreciar o antissemitismo e o modelo de governo do Terceiro Reich.
Em resumo, quaisquer ideias de criar subtipologias como “fascismo americano”
ou “fascismo leste-europeu” parecem condenadas ao fracasso. Mesmo “fascismo
periférico” não leva a lugar nenhum, pois os grupos e movimentos fascistas de menor
desenvolvimento podem e devem ser incluídos no “modelo geral”. Além disso, os
fascismos de maior ou menor desenvolvimento não foram exclusivos de uma área
geográfica específica, pelo que essas classificações tornam-se menos importantes.
Conclusões
coisa, não importa tanto. O importante era não darem espaço ao fascismo e
permanecerem estáveis.
Essas são questões de importância para entender o fascismo, seus sucessos e
fracassos, em todo o mundo. Seja no mundo anglo-saxão, na Europa latina ou oriental
ou na América Latina, havia determinações estruturais que facilitavam (ou não) a
formação de um fascismo local e sua decolagem como movimento de massas. Do
mesmo modo, outras questões estruturais, como a estabilidade do sistema político e
social e sua capacidade de lidar com a crise mundial, também permitiam (ou não) a
chegada do fascismo ao poder, seja num bloco histórico com outras forças, seja
isoladamente.
O caso latino-americano ou mesmo ibérico, neste sentido, não é tão singular
como parece. Ecos do fascismo europeu foram sentidos em todo o continente e
tentativas de formação de algum tipo de movimento fascista foram vivenciadas em
praticamente todos os países. Em alguns, normalmente os mais modernos e onde havia
condições sociais e políticas mínimas, eles conseguiram sair do estágio embrionário e se
tornarem movimentos de massa. Mesmo nestes locais, contudo, sua caminhada para o
poder foi bloqueada pelas forças tradicionais e pelas elites. Apenas no Brasil, por
condições particulares, ele atingiu pleno desenvolvimento e quase atingiu o poder. Em
linhas gerais, contudo, a experiência fascista latino-americana não é tão diferente assim
da de outros países europeus e americanos.
Havia, contudo, algumas especificidades de importância. Grandes coletividades
de imigrantes alemães, italianos, portugueses e espanhóis estavam presentes no
continente e ligadas aos partidos fascistas dos seus países de origem. Apesar de isto não
significar que todas estavam dominadas pela ideologia fascista, elas permitiam uma
difusão especial da experiência fascista europeia no continente. Os vínculos culturais e
linguísticos, especialmente com a Península Ibérica, a França e a Itália, também
facilitavam essa difusão, o que tornava a mensagem fascista mais permeável no
continente do que, digamos, no Oriente Médio ou na China.
A forte presença do catolicismo, a ausência de veteranos da Primeira Guerra
Mundial e os efeitos diferenciados da crise de 1929 também são fatores distintos a
serem considerados, ainda que não sejam exclusivos da região. O fato de os
imperialismos italiano e alemão - salvo algumas exceções, especialmente em países com
amplas populações de origem germânica - não serem considerados ameaçadores no
continente (e, pelo contrário, serem vistos, ao menos em alguns países, como
27
22
Bertonha, 2011a: 67-69.
23
Morgan, 2004. Griffin, 2004.
28
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