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Um fascismo ibérico ou latino? Comparação e vínculos transnacionais no universo


político fascista entre a América Latina e a Europa mediterrânea.

João Fábio Bertonha

Uma das questões mais relevantes para o pensamento social e político da


América Latina é o seu relacionamento com os principais centros de produção cultural
do Ocidente, ou seja, a Europa e, num momento posterior, os Estados Unidos. Os
pensadores e políticos latino-americanos seriam apenas repetidores inconsequentes de
ideologias, tópicos e temas originários de outras realidades ou criadores originais,
capazes de discutir seus problemas em seus próprios termos?
Essa possível disputa entre “repetidores” e “criadores” tem sido uma constante
nos debates intelectuais e políticos do continente, há muito tempo. Uma parte da
intelectualidade e dos políticos absorveu a ideia de que os problemas e soluções
apresentados e discutidos na Europa ou nos EUA são suficientemente próximos da
realidade latino-americana para serem incorporados e discutidos localmente sem a
necessidade de muitas adaptações. Isso foi praticado tanto por intelectuais que
defendiam o liberalismo clássico ou o “Consenso de Washington” como por marxistas e
outros pensadores de esquerda.
No outro polo, parte dos pensadores refletiu sobre a necessidade de criar
soluções e conceitos regionais ou, no mínimo, adaptar fortemente os conceitos oriundos
da Europa para que fizessem sentido na região. O indianismo do APRA na América
andina, a busca de um marxismo latino-americano ou mesmo a combinação entre o
maoismo e uma perspectiva supostamente inca feita pelo Sendero Luminoso no Peru
são exemplos disso.
Essa polarização entre o “ser totalmente nacional” e o “ser totalmente original”
não é exclusiva da América Latina, mas sua força na região reflete, na realidade, uma
questão maior relativa à identidade cultural do continente. O que é a América Latina?
Um simples pedaço do mundo ocidental ao sul do Rio Grande e a sudoeste da Europa
ou outra parte do Terceiro Mundo, ao lado de Ásia e África? Ou ambos?1 As respostas
variam e a falta de consenso indica como a identidade cultural latino-americana é
flexível e até mesmo ambígua.

1
Bertonha, 2014a.
2

Esse artigo trabalha com essa problemática, mas focando num tópico específico:
a presença do fascismo na América Latina no período entre as duas guerras mundiais.
Longe, contudo, de se pretender uma reconstrução factual dos movimentos fascistas no
continente ou uma reflexão geral sobre as razões de seus sucessos ou fracassos (o que,
de resto, já fiz em outros espaços2), o foco é muito mais específico: em que medida se
pode pensar num fascismo latino-americano? Haveria, dentro do pensamento fascista
local, especificidades tão evidentes a ponto de podermos criar uma tipologia especial
para defini-lo? Quais as fontes do pensamento fascista latino-americano e como
entender a relação entre o externo e o interno? São esses os eixos que norteiam esse
trabalho.
Para tanto, será necessário, antes de tudo, definir um “tipo ideal” de fascismo
com que trabalhar, de forma a termos como avaliar as experiências regionais e relançar
a discussão entre “mimético” e “original”. Posto isso, a discussão se centrará – pelo viés
comparado, especialmente, mas não só, no tocante à Europa oriental e do sul - na
possibilidade e/ou necessidade de se criar uma subtipologia específica para definir a
experiência fascista latino-americana, como “fascismo latino”, “fascismo ibérico” ou
mesmo “fascismo latino-americano”.
Ressalto, por fim, que esse artigo representa a evolução de inúmeros outros
textos e falas nas quais tenho desenvolvido o tema e que os citarei aqui, me
desobrigando de fazer notas bibliográficas além do mínimo necessário. Portanto, os
leitores interessados em discussões complementares e em bibliografia auxiliar poderão
ter acesso a elas nesses textos. O foco do texto, além disso, é o período do fascismo
clássico, nos anos 1920, 1930 e 1940, com uma atenção menor aos períodos anteriores e
posteriores, apesar da sua importância.

O tipo ideal fascista

O que é fascismo? Essa é uma pergunta que ocupou e ocupa o trabalho


intelectual de muitos historiadores e cientistas políticos nas últimas décadas, sendo
impossível o estabelecimento de um consenso. A busca de um “mínimo fascista” ou de
um “tipo ideal fascista” também tem sido uma constante desde 1945 e não existe um
consenso sobre ele. Essa busca pode ser questionada e problematizada no sentido de que

2
Bertonha, 2013a.
3

respostas diferentes podem ser obtidas conforme os aspectos (ideologia, base social,
radicalismo discursivo, forma de exercício do poder, violência, etc.) que são enfatizados
3
na sua construção. É, no entanto, uma questão que tem que ser respondida, pois as
confusões conceituais (como as que associam fascismo ao autoritarismo ou ao
totalitarismo ou o separam do campo da direita) acabam por nos impedir de
compreender com mais precisão o mundo real no qual se deu e dá o embate político.
Realmente, ao confundir práticas antidemocráticas, violentas e intimidadoras
com o fascismo, perde-se a distinção entre método e objetivo. Todo fascista é, por
definição, incapaz de conviver com o debate, o respeito pelo outro e a prática pacífica
da discordância e da divergência (a não ser, possivelmente, em nível interno e apenas
dentro de certos limites), mas nem toda pessoa ou grupo que tem essa incapacidade é
fascista.
Fascismo, pois, é algo muito mais específico, ainda que haja variações de um
para outro movimento e, especialmente, como seria inevitável, entre os fascistas dos
anos 1930 e os do mundo atual. É um regime ou movimento fortemente anticomunista,
antissocialista e antidemocrático que propõe a substituição da ordem democrática
burguesa e do liberalismo político e econômico por uma nova. Nessa nova realidade,
haveria um Estado orgânico, hierárquico, baseado numa liderança carismática e num
partido único que serviria para a transmissão de uma ideologia específica, mobilizando
a sociedade. Um partido único, aliás, que iria além de uma simples negação de outros ou
de uma estrutura amorfa para acomodar interesses, mas uma real máquina de
mobilização popular e transmissão ideológica.
O fascismo também seria, ao contrário dos reacionários ou conservadores, um
movimento moderno, no sentido de não propor uma volta ao passado, mas um futuro
diferente. Ele é, aliás, tão moderno e adaptado ao mundo democrático (ainda que o
negasse) que proclama a necessidade da mobilização continua das multidões e utiliza
uma política deliberada de ódio ao “outro” (judeu, comunista, imigrante, gay, etc.) para
garantir essa mobilização. Nesse sentido, mesmo quando o fascismo não atinge
plenamente seu potencial totalitário (se restringindo, como no caso do fascismo italiano,
ao autoritarismo ou, no máximo, ao totalitarismo incompleto), ele tem que estar
presente, ao menos enquanto perspectiva.

3
Para pontos de vista diferentes, ver Griffin, 1991. Eatwell, 1996. Breuer, 2008. Paxton, 2008.
4

Ele não rompe, contudo, com a ordem capitalista e suas bases ideológicas, ao
final, são as da direita: ordem, hierarquia, desigualdade como valor. Mesmo sendo uma
direita radicalizada, não deixa de pertencer a essa família, o que permitiu aproximações
e alianças entre os vários ramos da direita nos mais variados contextos e épocas. 4 Nesse
sentido, discordo da possibilidade de existir um “fascismo de esquerda”, ainda que
certos regimes nacional-populistas, como o de Cárdenas ou de Perón, possam ter
apreciado ou incorporado aspectos do fascismo, especialmente do italiano.
Nesse ponto, pensando nas reflexões gerais desse simpósio, convém estabelecer
com precisão as fronteiras do fascismo frente a liberais, conservadores ou reacionários,
especialmente no tocante ao problema da modernidade. Todas essas correntes políticas e
ideológicas podem ser chamadas de modernas, no sentido que todas só fazem sentido
dentro do sistema democrático e liberal que emergiu a partir do iluminismo, sendo o
marco evidente a Revolução francesa de 1789. Seja relativizando a democracia ou
mesmo combatendo-a, é evidente o caráter moderno de todas essas correntes, desde o
século XVIII até o momento presente.
Há, contudo, diferenças em termos de que modernidade se está falando. Os
liberais do século XIX, apesar de discordarem sobre os limites da democracia ou da
atuação do Estado, acabavam por aceitar, em linhas gerais, a soberania do homem na
esfera pública. A oposição a eles, evidentemente, era dos conservadores, que
consideravam que ao homem não era permitido implementar medidas que iriam contra
os costumes estabelecidos, a vontade divina, etc. Muitos conservadores, dessa forma,
acabavam por ter certa atração pelo pensamento corporativista, ou seja, a ideia de
alternativas à atomização individualista promovida pelo liberalismo.
Na primeira metade do século XIX, na verdade, a maior parte dos conservadores
poderiam ser mais bem classificados, na minha interpretação, como reacionários. Ou
seja, como aqueles que reagiam a mudanças intensas na sociedade combatendo-as e
procurando, na medida do possível, fazer o relógio da História voltar para trás, na
direção do Antigo Regime ou da Idade Média.
No decorrer dos séculos XIX e XX, contudo, o embate entre essas forças mudou
os termos do problema. No campo liberal, a grande questão passou a ser como combinar
a proposta democrática com a consolidação do capitalismo e da sociedade de massas. Já

4
Ver alguns dos textos presentes em Bertonha, 2008; 2016 a.
5

no campo conservador, o problema era a recusa ou a aceitação da democracia e do


capitalismo, cuja ascensão e consolidação não mais podiam ser negadas.
Com o passar do tempo, a maior parte da direita acabou por abandonar a
perspectiva reacionária e se assumir como realmente conservadora. Já que a sociedade
capitalista e liberal, na maior parte do Ocidente e em vários níveis, se consolidava, a
única alternativa era se adaptar a ela, mas conservando a maior parte possível da ordem
anterior, especialmente no tocante a privilégios, costumes, etc.
O caso colombiano, presente nesse livro com o artigo de Ricardo Arias Trujillo,
é um exemplo dessa situação, sendo a aliança entre conservadores e católicos (em
oposição aos liberais modernizantes) a chave da equação política por todo o século XIX.
Os reacionários propriamente ditos acabaram se concentrando em franjas isoladas da
sociedade, normalmente no interior da Igreja Católica.
Do mesmo modo, no artigo de Eduardo González Calleja sobre a Espanha do
século XIX, fica evidente a sobrevivência de um forte setor reacionário dentro da direita
espanhola – o carlismo – mas como, para a maior parte das forças políticas, a
perspectiva reacionária do início do século foi abandonada em favor de um liberalismo
conservador. O ideal católico e reacionário, contudo, nunca desapareceu do horizonte,
sendo reinserido no cenário à medida que novos desafios e ameaças – o comunismo, a
Comuna de Paris, a revolução bolchevique – surgiam e obrigavam conservadores e
reacionários a repactuarem sua aliança e suas disputas.
O artigo de Carlos Espinoza Fernandéz de Córdova, presente nesse livro, avança
nessa discussão para o período entre as duas guerras mundiais. Para ele, três das
principais correntes de direita do período – a democracia cristã, o corporativismo de
Estado e o fascismo – eram, em diferentes gradações, inimigas da democracia liberal.
Não eram, contudo, conservadoras e muito menos reacionárias, pois buscavam reformas
sociais ou mesmo a revolução e não pretendiam uma simples volta ao passado. Ao
mesmo tempo, se diferenciavam nas propostas para organizar o Estado e a sociedade
após a queda do liberalismo. O artigo de Irene Flunser Pimentel também caminha nesse
sentido ao identificar os pontos de afinidade, como o pessimismo antropológico, e de
ruptura entre o fascismo e a perspectiva conservadora.
Os fascistas, nesse contexto, deram um passo além nessa aceitação da
modernidade democrática, paradoxalmente para recusá-la com ainda mais intensidade.
Eles recusavam a democracia e as heranças do antigo liberalismo e defendiam uma
perspectiva corporativista para organizar a sociedade, numa tomada de posição que
6

poderia, a princípio, coloca-los no campo conservador. Ao contrário desses, contudo,


eles não acreditavam em meras correções de rota, mas em mudanças radicais,
revolucionárias, ainda que na direção de propostas de manutenção da ordem social.
Também não se aproximavam dos reacionários, já que não propunham a eliminação da
democracia, do capitalismo e da sociedade moderna em favor da Monarquia, da Igreja e
do corporativismo católico.
O fascismo, assim, é o mais moderno dos movimentos “conservadores”, pois os
fascistas assumiram como um dado de fato que a democracia estava tão consolidada no
Ocidente que só poderiam ser eliminada justamente pela aceitação da sociedade de
massas, urbana, e da própria modernidade. O mundo fascista continuaria burguês e a
sociedade de massas moderna se reproduziria dentro da sua própria versão do
corporativismo, mas eliminando a herança liberal e sem um retorno ao passado.
Para evitar confusões, aliás, creio que os termos “direita” e “esquerda” são mais
úteis do que “conservador” e “liberal” para trabalhar as famílias políticas da
modernidade. Ou, talvez, os últimos termos sejam mais úteis para a discussão política
do início do século XIX, enquanto a primeira dicotomia seja mais interessante para o
conjunto temporal dos séculos XIX a XXI e, especialmente, o XX.
Dessa forma, a direita, enquanto defensora da desigualdade como valor,
englobaria tanto os liberais-democráticos e os conservadores como os reacionários e os
fascistas. A esquerda, por sua vez, reuniria os liberais de esquerda, a social democracia
e também as suas vertentes radicais, como o comunismo ou o anarquismo. Minha
fundamentação teórica aqui, evidentemente, é Norberto Bobbio.5
Essa classificação ajuda a compreender as alianças entre as duas famílias no
decorrer do tempo. Na maior parte dos casos conhecidos, as várias famílias da direita
lutaram entre si, mas, nas horas decisivas, se agruparam em defesa da manutenção de
uma sociedade hierárquica. Já a esquerda, igualmente, sempre lutou internamente, mas,
nos momentos críticos, a tendência era a de aliança, ainda que menos do que a direita.
Esse misto de aliança e disputa explicaria, assim, para ficar no campo da direta, as
aproximações e disputas contínuas entre conservadores, liberais-democráticos,
reacionários e fascistas. E, dentro do fascismo, a disputa entre suas versões italiana e
alemã, com a sua ênfase no racismo e no antissemitismo. O lugar do fascismo dentro da
família da direita e frente aos conservadores fica, pois, delimitada.

5
Bobbio, 1995.
7

Dentro da nossa discussão específica, cumpre recordar igualmente como o


fascismo não foi um fenômeno restrito aos limites territoriais europeus, seguindo uma
expansão quase simultânea no continente asiático e africano, não obstante a baixa
adesão popular e seu caráter efêmero e incipiente, sobretudo no aspecto político
partidário. Nas áreas coloniais ou semicoloniais do mundo (África, Oriente Médio e a
Ásia), ele foi recebido e interpretado de formas diferentes, como instrumento de luta
anticolonial ou de reforço do poder do Estado.
Nas Américas, contudo, ele não só foi visto dessa forma, mas também como
uma alternativa real para a sociedade e o Estado. Assim, um estudo completo do
universo fascista não deve se limitar aos casos alemão e italiano, nem à Europa e nem
mesmo ao Ocidente tradicional (Europa e América do Norte), mas incluir todo o
universo ocidental, incluindo a Austrália e a América Latina. Estudos sobre a recepção
do fascismo na Síria, no Congo, na China e em outras áreas periféricas também são bem
vindos, mas a inclusão das Américas – e, especialmente, da América Latina - é a lacuna
mais grave a ser enfrentada se queremos compreender globalmente o fascismo.

A América Latina: fascismo mimético?

No continente americano, a presença do fascismo pode ser detectada desde os


anos 1920 e, especialmente, na década de 1930. Na América do Norte, vários grupos
buscaram a articulação com setores políticos conservadores e reacionários, com pouco
ou quase nulo sucesso. Nos EUA, William Dudley Pelley fundou a Silver Legion em
1933 e outros pequenos grupos fascistas proliferaram, além dos ligados às comunidades
alemã e italiana. No Canadá, dentre vários pequenos grupos e partidos fascistas, houve
relativo destaque para o Parti National Social Chrétien fundado por Adrien Arcand, que
fora também líder do National Unity Party of Canada.
Já a América Latina e, especialmente, o Cone Sul latino-americano é um caso à
parte dentro do universo extra-europeu. Era uma região ligada à Europa por séculos de
intercâmbios, diálogos e influências e na qual, ainda recentemente, ondas de imigrantes
europeus haviam se instalado, ampliando ainda mais o intercâmbio. Na América Latina,
além disso, as elites se viam como parte integrante da cultura ocidental e acreditavam
que ideias e questões debatidas na Europa não só podiam como deviam ser discutidas e
aplicadas no continente. Dessa forma, não espanta a difusão das ideias fascistas na
região.
8

O fascismo se originou, pois, do continente europeu, mas se espalhou pelo


Ocidente e, no caso latino-americano, se difundiu e teve importância no debate político
e social dos anos 1920 e, especialmente, nos anos 1930. A grande pergunta que fica é se
os movimentos fascistas do continente foram meras cópias dos originais europeus ou
adaptações locais desses mesmos originais. A distinção entre “cópias” e “adaptações”,
nesse momento, não é meramente semântica, mas significativa ao indicar o grau de
penetração do ideal fascista nessas sociedades.
Conforme detalhado em estudo anterior6, do qual retiro boa parte das
informações a seguir e onde se pode encontrar bibliografia auxiliar adequada, alguns
padrões comuns podem ser facilmente identificados. Em primeiro lugar, verifica-se a
quase que total inexistência de cópias simples dos fascismos europeus. Os verdadeiros
fascistas italianos, falangistas ou nazistas no continente só podem ser encontrados nas
sessões externas do PNF, da Falange ou do NSDAP instaladas no mesmo.7 Todos os
que se originaram de bases locais, mesmo os fortemente influenciados pelo referencial
externo e que, conceitualmente, são fascistas por se aproximarem do “tipo ideal”
delimitado anteriormente, tinham ao menos alguma especificidade local, até para
fazerem sentido.
No entanto, é correta a reflexão de autores como Trindade e Larsen8 de que
alguns fascismos seriam miméticos no sentido de não terem significado para as
realidades locais e que, por isto mesmo, não poderiam ter avançado além de um patamar
mínimo em termos de força popular e política. Já outros, atuando num contexto mais
favorável e representando valores e perspectivas com repercussão, teriam tido mais
sucesso e chegado, inclusive, próximos ao poder. No primeiro caso, incluiríamos a
América central, a Venezuela, o arco andino em geral, Uruguai e Paraguai. No
segundo, estaria o caso brasileiro e, num estágio intermediário, Chile, México e,
especialmente, Argentina.
Se pensarmos nas razões que poderiam, potencialmente, explicar esta divisão,
talvez seja de interesse pensar no problema da modernidade e na crise geral que, no caso
de alguns países europeus, colaborou para levar o fascismo ao poder.

6
Bertonha, 2013a.
7
A bibliografia sobre a ação nazista, fascista e falangista no continente tem crescido exponencialmente
nos últimos anos. Ver, por exemplo, Friedman, 2003. Gautig e Veit, 1995. Muller, 1998. González
Calleja, 1994 e 2014. González Calleja e Nevado, 1988. Delgado, 1988 e 1992. Para o caso italiano, ver a
bibliografia compilada em Bertonha, 2015 e um estudo específico sobre a América Latina em Bertonha
2010b.
8
Trindade, 2004. Larsen, 2001.
9

A hipótese de que o fascismo seja um estágio no caminho da modernidade


capitalista e liberal é antiga e já foi submetida a uma crítica mais do que consistente, a
qual não precisamos retomar aqui. A conclusão geral que podemos chegar é que a teoria
da modernização, se levada ao pé da letra, não nos leva muito longe na tarefa de
compreender o fascismo.9
Ainda assim, a relação estágio de desenvolvimento/modernidade/liberalismo
talvez não possa ser completamente relegada a um segundo plano e o trabalho de Stein
Larsen10 traz uma colaboração de interesse nesse aspecto, especialmente se trazida,
numa extrapolação minha, para o caso latino-americano.
Na visão de Larsen, graus de modernização e de liberalismo (aqui entendido
como sinônimo de democracia) são a chave para criar um sistema teórico capaz de
esclarecer como e por que o fascismo foi bem sucedido em algumas regiões e em outras
não. Para ele, o surgimento e desenvolvimento de movimentos fascistas de massa
demandariam um mínimo de modernidade capitalista (classes médias urbanas, meios de
comunicação de massa, sistema político minimamente funcional), sendo impossível que
eles surgissem, salvo poucas exceções, em ambientes politicamente fechados, rurais ou
arcaicos.
Para Larsen, sociedades atrasadas e pouco liberais, como a Bolívia ou a
Guatemala, não teriam espaço para o fascismo. Outras, já bastante liberalizadas
politicamente, mas pouco modernas, como o Peru ou a Colômbia, ofereceriam
perspectivas para o surgimento do fascismo, mas com limites. Já as altamente
modernizadas e liberalizadas seriam quase imunes, enquanto as pouco liberalizadas e
bastante modernizadas teriam amplas perspectivas para o desenvolvimento do fascismo.
Nesse último caso, estaria, por exemplo, o Brasil.
Tenho dúvidas se tal modelo serve para todos os casos reais que podemos
encontrar no continente e que apresentamos acima. Além disso, é óbvio que fatores
outros, como heranças culturais, conjunturas políticas específicas, etc. também devem
ser elencados para explicar o surgimento ou não do fascismo.
Mesmo assim, o fato de os países mais modernos da América Latina naqueles
anos (Brasil, Argentina, Chile, México, etc.) terem sido justamente os locais onde os
partidos ou a cultura fascista (no caso argentino) mais se desenvolveram talvez mereça
ser levado em consideração. A exceção brasileira, onde o fascismo criou raízes

9
Mann, 2008: 74-95.
10
Larsen, 2011.
10

institucionais, também poderia ser explicado por este viés estrutural, como uma resposta
particular a uma crise ideológica de uma sociedade em transição para a modernidade. 11
Assim, mesmo que não seja um modelo perfeito, ele é válido ao indicar como certos
problemas da transição do mundo moderno podem sim ser de importância para explicar
o surgimento, ou não, de partidos fascistas de massa no continente.
Quando se trata de explicar a incapacidade desses movimentos, mesmo os mais
fortes, em atingir o poder, os fatores a serem elencados, provavelmente, seriam o
impacto da crise mundial e o gerenciamento desta pelas elites. Tais fatores podem
explicar porque, em alguns países, o fascismo não teve forças para se desenvolver além
de certo ponto e, especialmente, porque não conseguiram chegar ao poder em nenhum
Estado da região.
Efetivamente, é válido recordar como a década de 1930 não foi, na América
Latina, a era dos fascismos, mas a das ditaduras ou dos “Estados fortes” e foram estes
que, no limite, bloquearam a ascensão do fascismo ao poder, inclusive com a força das
armas, como aconteceu no Brasil e no Chile em 1938.
As variações de forma, claro, foram imensas. Na América central ou Caribe
(assim como na Bolívia ou na Venezuela), uma simples ditadura militar funcionou
perfeitamente quando de uma crise geral como a dos anos 1930. No Brasil, as elites
preferiram uma ditadura conservadora com traços modernizantes, enquanto ditaduras
mais ou menos disfarçadas - como os regimes de Terra no Uruguai, Justo na Argentina
e Benavides no Peru - se espalharam por todo o continente. Em alguns países, como na
Colômbia ou na Costa Rica, a democracia se manteve, mas sob a crescente influência
militar, mantendo o equilíbrio político e a estabilidade institucional.
Já o México vivia uma situação pós-revolucionária, com domínio da esquerda.
Longe de classificar o México como um “fascismo de esquerda” 12
, o identifico como
um regime nacional-populista com alguns aspectos em comum com o modelo fascista,
mas em franca oposição a ele, tanto que os verdadeiros grupos fascistas locais tiveram
muito pouco espaço de atuação.
Em todos estes países, o fato comum é que as elites mantiveram o controle do
poder e não viram necessidade de ceder espaço à direita radical ou a grupos alternativos,
os quais, portanto, não conseguiram assumir o Estado nem mesmo onde conseguiram
uma maior base popular e representatividade política. A opção fascista ficou na

11
Trindade, 2004:58-60
12
Savarino, 2013: 128.
11

“reserva” e não precisou ser utilizada em nenhum país. O fascismo poderia ter sido,
assim, uma opção para ao menos alguns dos países da região, mas a própria
modernidade incompleta destes países e o poder de suas elites o impediram.

América Latina: o fascismo difuso

O fascismo não ter atingido o poder, contudo, não significa, automaticamente,


que a sua influência no debate político e ideológico do continente tenha se restringido
aos grupos que se aproximaram do “tipo ideal” fascista antes indicado. O diálogo entre
os vários movimentos da direita foi uma continuidade e tal diálogo tem que ser
ressaltado se queremos entender a presença do fascismo na região. Em resumo, não
foram apenas os fascistas latino-americanos que dialogaram e trocaram experiências
com seus irmãos europeus e de outros continentes, mas todas as correntes da direita, dos
liberais aos conservadores, passando pelos reacionários católicos e pelos reformistas
moderados, o fizeram. Isso impactou a história da América Latina e não apenas no
período entre as duas guerras.
Esse contexto ajuda a explicar, igualmente, o uso extensivo – e incorreto - do
conceito de “fascismo” para as manifestações sociais e políticas latino-americanos
daqueles anos. Como bem indicado por Franco Savarino (2013), manifestações de
simples autoritarismo, de conservadorismo católico, de nacional-populismo e outras
acabaram por ser explicadas e classificadas na rubrica de “fascismo”, o que levou a mal-
entendidos tanto na época como nas análises posteriores, criando um “jogo de ilusões”
que mais atrapalhou do que ajudou no nosso entendimento do período. Posso não
concordar integralmente com pontos da sua solução para o problema, mas o seu
diagnóstico é real.
Em alguns países da América latina, notadamente na região do Caribe e no arco
andino, o fascismo foi visto pelas elites conservadores, normalmente intelectuais e
militares, como uma fonte de inspiração e com simpatia. Ele também oferecia a
inspiração de um modelo político modernizador capaz de consolidar os Estados-Nação e
resolver a crise econômica e social sem recorrer ao comunismo, mas não mais do que
isso. Dessa forma, ditadores como Trujillo na República Dominicana, Somoza na
Nicarágua ou Batista em Cuba, para mencionar apenas alguns, podiam ser
extremamente sanguinários e admirar Mussolini, Franco e até Hitler, mas isso não os
fazia fascistas e nem os tornava aliados do fascismo.
12

Outras ditaduras militares ou cívico-militares, como as de Terra no Uruguai ou


de Benevides no Peru, também expressaram suas simpatias pelos regimes fascistas e até
absorveram algumas de suas características, especialmente no campo da repressão ou da
propaganda, mas não se tornaram fascistas e nem se aproximaram realmente desse
campo ideológico. No Peru, aliás, quem mobilizou as massas para fins políticos foi o
nacional-populismo representado pelo APRA e não o regime de Benevides ou o
pequeno fascismo local.
Em alguns casos, foram os próprios conservadores que eliminaram a perspectiva
de poder do fascismo. No Chile, o Movimiento Nacional Socialista chileno conseguiu
extrapolar os limites da coletividade alemã e se tornou algo maior, com
representatividade social e política. Eles conseguiram espaço suficiente para criar um
projeto de poder autônomo e tiveram relações conflitosas com outros grupos de direita,
o governo, os militares e a Igreja. O resultado é que não conseguiram alcançar o poder
e, após uma tentativa de golpe em 1938, foram formalmente eliminados.
No Brasil, o mesmo aconteceu. A Ação Integralista Brasileira, o maior partido
fascista surgido fora da Europa, foi seguradamente um movimento fascista, dadas as
suas características, bases sociais, vinculações ideológicas e internacionais, etc. Ele não
foi algo mimético, importado e sem significado na realidade nacional. Pelo contrário,
ele atraiu filhos de imigrantes, negros, parte das classes médias urbanas, intelectuais e
também alguns operários. O número exato dos seus militantes é desconhecido, mas se
aproximava das centenas de milhares de adeptos.
O movimento, além disso, esteve perto de atingir o poder no Brasil, tendo
participado do golpe de Getúlio Vargas que criou o Estado Novo em 1937. Sua força foi
insuficiente, porém, para assumir o poder num país onde a direita conservadora
(especialmente a Igreja, os militares e as elites políticas e econômicas) manteve o
controle do governo. Ao final, o movimento foi expelido do bloco governista e, após
tentar um golpe de Estado em 1938, foi formalmente eliminado por Vargas, tendo seu
líder, Plínio Salgado, se refugiado em Portugal.
Em alguns locais, aliás, os movimentos fascistas, isolados das forças
conservadoras que comandavam seus países, acabaram por serem reincorporados a
essas quando ficou evidente que as suas chances de poder eram inexistentes. Isso
aconteceu na Bolívia, onde os inexpressivos Falange Socialista Boliviana e Movimiento
Nacionalista Revolucionário acabaram participando do governo militar, de cunho
13

nacional-populista. O mesmo aconteceu na Colômbia, onde a Acción Nacional


Derechista acabou por ser reabsorvida pelo partido conservador.
A relação entre o fascismo e outros grupos de direita não se resumiu, contudo,
ao relacionamento – conflitivo ou amigável – com os Estados e os grupos nele
representados. Houve também sólidas trocas entre os fascistas (locais e europeus) com
círculos e grupos conservadores, católicos, reacionários e outros.
Os sinarquistas mexicanos, por exemplo, admiravam aspectos do fascismo e
adotaram uma parafernália simbólica próxima a ele. O sinarquismo, contudo, estava
mais próximo de um tipo de reação católica do que do “tipo ideal” fascista, ainda que
com uma influência razoável desse em alguns aspectos. O seu apelo à ação não violenta
e a sua recusa à conquista do poder, aliás, são muito pouco fascistas. Grupos
reacionários brasileiros, como os monarquistas católicos da Ação Patrianovista
Brasileira, também tinham alguma simpatia pelo fascismo, mas rejeitavam a sua
aliança. No Uruguai como no Paraguai, também identificamos círculos nacionalistas e
antissemitas com claras simpatias pelo fascismo, mas que não chegaram a se tornar
fascistas.
Nesses casos, portanto, o apelo do fascismo existiu, mas suas raízes sociais e
políticas eram insuficientes para gerar um projeto de poder autônomo. Ideias,
perspectivas e propostas fascistas foram vistas com simpatia ou até mesmo incorporadas
ao corpus das ditaduras militares ou de grupos reacionários ou conservadores, mas
acabaram por ser absorvidas ou anuladas dentro deles. Esses diálogos tornam difícil,
inclusive, separar com clareza os atores em campo.
O exemplo mais visível disso é a Argentina. Desde 1945, com o peronismo e a
fuga de muitos nazistas para a Argentina, tem-se a impressão de que a direita fascista
sempre teria sido forte no país desde o fim da Primeira Guerra Mundial.
Isso, contudo, não é necessariamente verdade. Perón era um líder carismático,
que mobilizava as massas e, em certo momento, teve simpatias fascistas. No entanto,
faltava a ele o ideal orgânico, os tradicionais valores da direita e a construção de um
partido como máquina de mobilização das pessoas para uma ideologia, e não como
simples instrumento do líder.
Na própria sociedade argentina, a questão era complexa. Nos anos 1930, havia
círculos extremamente influenciados pelo fascismo (militares, Igreja, setores da
oligarquia), mas os movimentos fascistas argentinos foram relativamente pequenos.
Havia as Ligas Nacionalistas, mas eram estas mais movimentos reacionários ou
14

conservadores de direita do que fascistas. Elas tinham alguma simpatia por Mussolini e
laços com os fascistas italianos e alemães em território argentino, mas Charles Maurras
era a principal fonte de inspiração externa. No final dos anos 1930, no máximo uma ou
outra dessas ligas se aproximaram o suficiente do fascismo para serem consideradas
como tal, mas o nacionalismo como um todo provavelmente não o era.
No entanto, em que pese esta ausência de fascismo organizado na Argentina
naqueles anos, a cultura fascista parece ter sido muito mais popular e difundida do que
em outros países. O ideal fascista pode não ter se corporificado, por razões locais, em
partidos e movimentos fascistas de peso, mas era bastante difundido em outros grupos
de direita e na sociedade como um todo. Assim, não classificaria a Argentina, como faz
Trindade13 como um país onde os fascismos não tiveram repercussão. Ela foi difusa e
indireta, mas de importância, ainda que não o suficiente para justificar a imagem da
Argentina como país fascista por excelência.
Além dessa difusão indireta das perspectivas fascistas, outro ponto de relevância
- já indicado, mas que convém recordar e aprofundar - é que nenhum dos fascismos da
América Latina e, especialmente, os que adquiriram maior relevância, realizaram uma
cópia simples ou uma transcrição literal do que liam e recebiam da Europa. Todos eles
se adaptaram às suas próprias sociedades e culturas, até para fazer sentido e terem
alguma perspectiva de sucesso político.

América Latina: o diálogo e a reelaboração do fascismo

O esforço de reelaboração do padrão fascista mais amplo para um continente


como o latino-americano não podia, realmente, deixar de levar em conta as
especificidades políticas, sociais e culturais da região. Isso se manifestou de formas
variadas e em graus diferentes, mas a leitura, absorção e reelaboração do que vinha de
fora foi realmente uma continuidade.
O integralismo brasileiro, por exemplo, absorveu boa parte das discussões
presentes na intelectualidade brasileira desde, no mínimo, o final do século XIX sobre a
viabilidade da existência do Brasil enquanto Estado independente e os problemas da sua
nacionalidade. No diálogo entre essas tradições e discussões nacionais (as quais, por sua

13
Trindade, 2004:21-28.
15

vez, também se davam dentro do contexto maior do mundo ocidental) com o novo
representado pelo fascismo é que a base ideológica do integralismo foi gerada.
A partir daí, algumas especificidades do integralismo brasileiro se tornam
evidentes. Miguel Reale, por exemplo, era um leitor atento e cuidadoso da experiência
da Itália fascista, tendo, inclusive, estudado em uma escola italiana de São Paulo
quando criança. Ele via com extrema simpatia o corporativismo e o novo modelo de
Estado que se implantava na Itália, mas se tornou um pouco mais crítico quando o
fascismo italiano começou a assumir tons mais racistas e totalitários. Miguel Reale,
além disso, refletiu bastante sobre como adaptar o sistema corporativo e de Estado
fascista para a realidade de uma Nação continental.
No modelo de Reale, as corporações e os municípios seriam as chaves para
permitir a constituição do Estado integralista, diluindo e amortecendo as tensões e
diferenças. O município seria célula fundamental da estrutura corporativa e teria
completa autonomia administrativa. Os líderes municipais seriam eleitos pelo sufrágio
universal, aceitável em realidades locais, enquanto, na esfera nacional, o poder viria do
alto.
Entretanto, o Estado Integral também teria soluções para regular e equilibrar as
prováveis distorções entre dimensão territorial e representatividade, entre a
representatividade em nível local e a extrema centralização política, graças às estruturas
corporativas. Se o liberalismo provocara o fortalecimento exagerado das unidades da
Federação, a correção dessa estrutura seria feita mantendo-se a forma federativa, desde
que combinada às corporações, à autonomia dos municípios e à centralização política,
com o objetivo de equilibrar as forças entre as regiões e o Estado-Nação. O exemplo de
Reale indica o processo de leitura e adaptação de conceitos fascistas para uma realidade
desconhecida da Europa, ou seja, as dimensões continentais do Brasil. 14
Sem querer entrar em detalhes sobre as adaptações e releituras feitas por cada
um dos movimentos e grupos fascistas do continente, creio que poderíamos elencar
alguns elementos centrais, gerais, capazes de identificar as especificidades da América
Latina dentro do universo fascista mais amplo.
A primeira delas seria o papel das Forças Armadas dentro da nova ordem
fascista. Os fascismos, em linhas gerais, nunca foram pretorianos, emanações dos
quartéis, e a desconfiança entre as Forças Armadas e os partidos fascistas foram

14
Bertonha, 2010, 2013b, 2013c e 2014.
16

contínuas. Claro que houve compromisso e aliança, mas as tensões entre os camisas
negras fascistas ou a SS com as forças armadas da Itália e da Alemanha são bem
conhecidas.
Na América Latina, foram os militares que, efetivamente, diminuíram o espaço
dos partidos fascistas e, no caso do Brasil e do Chile, que impediram o sucesso dos
golpes de Estado por eles organizados. Em alguns locais, igualmente, a tensão e a
desconfiança das forças armadas com os fascistas foi uma constante, como no Chile. Os
nacionalistas argentinos e os integralistas brasileiros, contudo, não tinham uma postura
contra os militares e, ao contrário, insistiam na necessidade de contar com eles para a
implantação da Nova Ordem. Na Argentina, aliás, essa aproximação foi ainda mais
intensa e mesmo os nacionalistas argentinos que poderíamos enquadrar como fascistas
desejavam a participação do Exército na Nova Ordem. É provável que o papel central
dos militares na política latino-americana naquele momento tenha diminuído um pouco
o sentimento antimilitar que predominou no caso do fascismo europeu.
Do mesmo modo, a ausência de veteranos de guerra (com a exceção dos
paraguaios e bolivianos da Guerra do Chaco e, talvez, dos ex-combatentes da Revolução
Mexicana) e o impacto moderado da Primeira Guerra Mundial na maior parte do
continente impactou o caráter dos fascismos latino-americanos, os quais foram
legalistas na maior parte do tempo. Nenhum deles, nem mesmo o integralismo, levou
em frente um projeto de conquista do poder pelas armas, confiando nas articulações
políticas e no apoio dos militares para tanto.
Fascismo sem algum tipo de pensamento imperial é praticamente impossível e
os fascismos latino-americanos desenvolveram projeções imperialistas. Os integralistas
pretendiam recuperar a posição de destaque um dia desfrutada pelo Brasil na região do
Prata e, especialmente, guiar espiritualmente a América Latina na direção do fascismo,
pretensão que os nacistas chilenos também tinham com relação, pelo menos, à América
andina. Os nacionalistas argentinos também projetavam a recuperação do suposto
espaço perdido ao Chile na Patagônia enquanto muitos mexicanos tendiam a ver no
fascismo uma forma de conter o poder dos Estados Unidos. Tal postura era também
compartilhada, inclusive, pela maioria dos fascismos latino-americanos. Nunca se
chegou, contudo, à elaboração de plataformas claras de conquista militar dos vizinhos, o
que reflete tanto o caráter embrionário da maioria dos movimentos, como a fraqueza
militar dos vários Estados do continente.
17

A herança católica foi valorizada pela maioria dos movimentos fascistas latino-
americanos, ainda que com várias gradações. Os nacistas chilenos, por exemplo, tinham
uma relação nem sempre harmoniosa com a Igreja Católica chilena, mas ressaltavam a
herança católica como um elemento unificador do povo chileno. Já os integralistas
brasileiros estavam muito mais próximos da Igreja (que nunca lhe deu, contudo, total
apoio) em termos de origens ideológicas e em apoio mútuo e consideravam o
catolicismo uma das essências nacionais. Mesmo assim, ele não era uma emanação do
catolicismo e setores do integralismo, como o de Miguel Reale, era eminentemente
laico. Por fim, vários grupos espalhados pela América Latina não só identificavam a
herança católica como elemento central da Nação unificada que se pretendia alcançar,
como estabeleceram laços ainda mais profundos com a estrutura eclesiástica.
Um dos casos mais relevantes foi o da Argentina. Nesse país, como já indicado,
as forças nacionalistas incluíam desde grupos reacionários que enfatizavam a
importância do Exército e da Igreja como instrumentos para restaurar a ordem nacional,
até grupos propriamente fascistas. Tais grupos também enfatizavam a colaboração, a
aliança e a penetração ideológica no interior do Exército e da Igreja, formatando uma
aliança que marcou a história argentina por décadas. Em resumo, se a influência católica
foi um traço marcante na história da direita latino-americana e, igualmente, do fascismo
latino-americano, houve variações de monta de país para país.
Em outras palavras, em alguns locais, a influência católica no campo da direita
foi tão forte que impediu o surgimento do fascismo, preterido em favor de grupos
reacionários ou dos governos conservadores. Mesmo dentro do universo fascista, além
disso, as variações ocorreram, passando desde uma firme e sólida aliança, como na
Argentina, até uma relação simbiótica, como no Brasil, e uma de relativa tensão, como
no Chile.
O racismo europeu também foi profundamente adaptado para que pudesse fazer
sentido em um continente mestiço. A proposta de uma uniformidade cultural e racial
que fortaleceria a Nação foi mantida, mas os termos dessa uniformidade não eram os
mesmos. No Paraguai, a fusão entre os guaranis e os espanhóis seria a base da nova
ordem, enquanto, no México, o problema do racismo e da formação racial mexicana era
considerado menor, ainda que houvesse restrições, por exemplo, aos imigrantes
chineses.
No Chile, onde os nacistas chilenos tiveram uma influência ideológica maior do
nazismo, construiu-se o mito de um povo chileno ariano, dentro do qual a raça europeia
18

predominava e anulava as influências indígenas. Nessa concepção, os chilenos eram os


únicos representantes da raça ariana na América andina e, como tal, destinados a liderar
países como o Peru e a Bolívia, ao mesmo tempo em que rejeitavam a imigração
peruana e boliviana para o Chile. Na Argentina, por sua vez, o discurso racista estava
fortemente presente nas avaliações dos nacionalistas no tocante aos chilenos ou aos
brasileiros. Não obstante, até pela elevada proporção de brancos na população e a pela
suposta eliminação dos indígenas, o racismo interno era menos acentuado.
Já no Brasil, país onde, naquele momento, ao menos um terço da população era
negra ou mestiça, as adaptações do discurso fascista tradicional tiveram que ser maiores.
Nesse sentido, o integralismo repetia, em boa medida, o discurso tradicional da elite
intelectual brasileira (a teoria das três raças que formariam o povo brasileiro) que
valorizava a mestiçagem, mas proclamava que essa mestiçagem e a imigração iriam
resultar em um país branco, superior.
Dessa forma, a sua visão racial não era tão exclusivista ou absoluta como a do
nazismo ou mesmo a do fascismo italiano. Claro que, em parte, a questão era tática, pois
o movimento tinha de camuflar quaisquer mensagens abertamente racistas para atingir a
imensa população mestiça e também para anular os que acusavam os integralistas de
compartilharem dos ideais arianos do nazismo. O racismo integralista, contudo, era
realmente flexível e integrador o bastante para permitir a participação da população
negra no movimento e não espanta que deixasse os observadores do fascismo italiano e,
especialmente, do nazismo, desconcertados. 15
Também o antissemitismo teve gradações de país para país. A visão dos judeus
como representantes da modernidade que se queria destruir foi muito comum, assim
como uma visão negativa do povo judeu e a resistência à sua imigração. Isso esteve
presente na Colômbia, no Peru, no Chile, no México e em outros locais. Na maior parte
dos casos, contudo, o sentimento antijudaico tinha origens no tradicionalismo católico e
mesmo movimentos mais próximos do nazismo alemão – como o nacismo chileno – não
compartilhavam das teorias nazistas a respeito do “perigo judeu” e/ou advogavam a
eliminação racial do povo judeu.
Também no Brasil, o antissemitismo foi um traço marcante na ideologia do
integralismo, especialmente, mas não só, na ala liderada por Gustavo Barroso. Seu
antissemitismo, contudo, era mais católico do que do nazista, o que permitia diálogos

15
Bertonha, 2014.
19

com forças reacionárias nacionais e internacionais. Ao mesmo tempo, seu


antissemitismo era tão agressivo (dirigido, em alguns momentos, à raça judaica) que
não é à toa que Berlim o visse com simpatia, convidando-o, inclusive, para eventos na
própria Alemanha.
Já Miguel Reale e Plínio Salgado, os outros líderes centrais do integralismo,
tinham posturas moderadas com relação aos judeus e ao judaísmo. A temática do
antissemitismo, na verdade, apesar de muito útil na propaganda integralista, não era o
tema central do seu discurso e não eram os judeus os alvos centrais do movimento,
salvo enquanto representantes da modernidade que se queria superar. Como o
antissemitismo nunca foi, salvo exceções, tema recorrente no debate político brasileiro,
o antissemitismo integralista foi mais exceção do que regra.
Já na Argentina, o antissemitismo acabou por se tornar um tema fundamental,
crucial, do discurso da direita, se tornando elemento definidor da maior parte dos
movimentos nacionalistas, seja dos tradicionalistas, seja dos fascistas. A importância da
comunidade judaica na vida argentina seria, provavelmente, o elemento fundamental
para explicar a força desse sentimento.
Outra característica marcante do fascismo latino-americano foi a sua, em geral,
recusa dos aspectos mais totalitários do fascismo. A mobilização popular e o
fortalecimento das ligações das massas com o Estado e o partido eram vistas cm
extrema desconfiança no continente. O modelo de sociedade geralmente implantado na
América Latina implicava numa elite separada do povo por privilégios imensos em
termos de riqueza e de poder e, até mesmo, em certos países, pela origem racial. Não
espanta que essas elites tenham preferido, sempre, soluções autoritárias às fascistas e
que, mesmo entre os movimentos fascistas, o tom mais autoritário tenha predominado
frente ao totalitário. O integralismo brasileiro talvez tenha sido a maior exceção, mas
mesmo ele não conseguiu superar a desconfiança das elites.
Refletindo suas características internas, os fascismos latino-americanos tinham
relações bem delimitadas com o mundo exterior. Autores reacionários, como Charles
Maurras ou António Sardinha, eram lidos e admirados e ditadores conservadores, como
Franco e Salazar, atraíam enorme atenção, mesmo quando eram criticados justamente
pelo seu “pouco fascismo”. Os autores e referenciais mais valorizados, contudo, eram os
fascistas, especialmente os próximos do modelo local, como os nacional-sindicalistas de
Rolão Preto em Portugal, a Falange Española ou mesmo, até certo ponto, os austro-
fascistas.
20

A Itália sofria algumas restrições pelo seu suposto laicismo, mas, em geral, o
racismo e o antissemitismo moderados, o bom relacionamento com a Igreja e os
militares e o tom mais autoritário do que totalitário do primeiro fascismo atraía
simpatias. Apenas quando o fascismo italiano começou a adquirir tons mais totalitários,
racistas e antissemitas, no final dos anos 1930, é que o encanto italiano começou a
diminuir, ainda que nunca tenha desaparecido.
O nazismo, em linhas gerais, nunca se tornou um referencial teórico central dos
fascismos latino-americanos. O seu racismo arianista e o seu antissemitismo exacerbado
faziam pouco sentido na América Latina e suas relações tensas com a Igreja geravam
mais desconfianças do que simpatia. A dificuldade de comunicação, cultural e
linguística, também tornava a mensagem nazista restrita a um gueto específico – as
comunidades de origem alemã – e o seu tom totalitário levava a desconfianças ainda
maiores.
Claro que uma simpatia geral por Adolf Hitler existiu e setores do integralismo
brasileiro ou dos nacionalistas argentinos se aproximaram dos ideais nazistas de forma
mais intensa. Também os nacistas chilenos tiveram um maior contato e diálogo com o
Terceiro Reich, ainda que menos importante do que pareça a primeira vista.16 Em
linhas, contudo, o apelo nazista no continente foi menor do que do fascismo italiano ou
ibérico.

Um fascismo latino-americano ou ibérico?

O apresentado acima nos permite chegar a algumas conclusões. Em primeiro


lugar, seja na sua forma institucional, seja na difusão de suas ideias em outros
movimentos (reacionários ou conservadores), o fascismo esteve plenamente presente no
debate político e intelectual latino-americano no período entre as guerras. Na crítica ao
liberalismo, à democracia e à esquerda, na busca da renovação nacional e de suas elites
e no recurso, em vários níveis, ao corporativismo, o fascismo existiu e se desenvolveu
no espaço ao sul do Rio Grande. Tal fascismo esteve em contínuo diálogo com seus
pares na Europa e em outros continentes e deve fazer parte, portanto, de qualquer
esforço para criar um “tipo ideal” fascista.

16
Bertonha, 2016b.
21

O fascismo latino-americano, contudo, tem seus próprios traços particulares: um


potencial totalitário (sem o qual não pode haver fascismo), mas com maior simpatia
pelo viés autoritário; uma maior aproximação com a Igreja e as Forças Armadas; um
tom racista e antissemita menos acentuado e, em linhas gerais, a anulação do seu projeto
de poder por regimes conservadores de direita. Do mesmo modo, a ausência de
veteranos de guerra, o menor impacto da Primeira Guerra Mundial e da crise de 1929, e
uma menor mobilização da esquerda do que na Europa também são elementos
circunstanciais a considerar. Stanley Payne já havia mencionado alguns desses aspectos
décadas atrás17 e eles são válidos. A pergunta que fica é se tais características são
suficientes para que precisemos criar uma sub-tipologia diversa para nomeá-lo.

O continente latino-americano e a Europa mediterrânea: um fascismo latino ou


ibérico?

Como indicado acima, a criação de um “tipo ideal” fascista ou do “mínimo


fascista” é uma tarefa dificultosa, mas necessária enquanto ferramenta para facilitar o
entendimento de um fenômeno histórico real como foi o fascismo. Do mesmo modo, a
possibilidade de criação de tipologias internas ao fascismo pode ser perigosa se acabar
por conduzir a uma dispersão exagerada do conceito. No entanto, enquanto instrumento
analítico, tal tipologização poderia, a princípio, facilitar a compreensão do “mínimo”
fascista e, ao mesmo tempo, da multiplicidade de formas com que ele se expressou.
Várias dessas tipologias estão disponíveis, mas a discussão a avançar é se
haveria margem para a elaboração de um “subtipo ideal” do fascismo - latino-
americano, mediterrâneo, ibérico ou latino - e se essa elaboração favoreceria ou
atrapalharia o entendimento do que foi o fascismo no continente.
É possível pensar, inicialmente, que os fascismos da América Latina fossem,
simplesmente, variações do “fascismo clerical”, dada a forte presença do catolicismo,
em algum nível, na sua constituição. Tal conceito serviria para identificar movimentos
ou partidos fascistas nos quais a influência da Igreja católica teria sido tão forte que os
teria transformado em algo particular, mais conservador do que as vertentes fascistas
radicais, como o fascismo italiano ou o nazismo.
O conceito em si é de difícil defesa, pois confunde grupos fascistas com boas
relações com o catolicismo com movimentos ou regimes conservadores e reacionários

17
Payne, 1999: 345.
22

nos quais a Igreja teve papel relevante, como o Portugal de Salazar ou a França de
Vichy. Além disso, uma fusão perfeita entre o conservadorismo católico e o fascismo é,
em termos conceituais, impossível. No máximo, como indicado por Griffin18, o termo
“fascismo clerical” poderia ser utilizado para identificar fascismos nos quais, em termos
ideológicos e políticos, a colaboração do catolicismo (ou da Igreja ortodoxa) em termos
ideológicos ou políticos foi maior do que em outros, como, por exemplo, o nazismo.
Nessa definição restrita, seria possível incluir os rexistas belgas, a Guarda de
Ferro romena, o fascismo austríaco e os ustaches croatas, por exemplo. Evidentemente,
vários dos movimentos e grupos fascistas da América Latina também poderiam ser
indexados nessa categoria, em maior ou menor grau. A própria imprecisão do conceito,
contudo, torna difícil resumir o fascismo latino-americano a uma manifestação a mais
do fascismo clerical.
Outro termo que surge em algumas análises do fascismo é “fascismo
mediterrâneo”, o qual englobaria as experiências da península ibérica, França e Itália. O
termo também é muito impreciso, ainda mais porque, normalmente, ele tende a reunir,
no mesmo bloco, grupos e regimes não comparáveis, como o salazarismo, o
franquismo, os vários movimentos fascistas ibéricos e o fascismo italiano.19
O termo “fascismo latino” talvez pudesse ser de mais utilidade. Ele unificaria os
movimentos e regimes fascistas dos países do sul da Europa e da América Latina num
único bloco, sendo essencial, contudo, que fossem excluídos, do conceito, os regimes e
movimentos conservadores. Seus elementos comuns seriam o catolicismo (e,
especialmente, segundo Costa Pinto, a influência do paradigma reacionário representado
pela Action Française), a recusa do racismo e do antissemitismo extremados nazistas, a
maior influência da versão italiana do fascismo frente à alemã e o fato que, salvo poucas
exceções, os fascismos foram eliminados por regimes conservadores de direita. 20
Um dos problemas desta teoria é a heterogeneidade da história política dos
países latinos naqueles anos. A Itália, por exemplo, foi o único país latino que se tornou
fascista, enquanto a grande maioria oscilou para regimes “fortes” de algum tipo. Já a
França, como demonstra uma imensa bibliografia, tem particularidades imensas, como a
presença de movimentos fascistas extremamente desenvolvidos e, ao mesmo tempo, de
uma forte resistência antifascista de esquerda quase inexistente em outros países latinos.

18
Griffin, 2007. Pollard, 2007. Ver também os artigos reunidos em Feldman, Turda e Georgescu, 2008.
19
Morgan, 2010.
20
Pinto, 2004. O texto completo está em Pinto, 2015, item “Uma variante do fascismo europeu”.
23

Em resumo, parece haver diferenças demais para que possamos criar um padrão latino
de fascismo.
Contudo, talvez não seja absurdo pensar em outra classificação, a qual poderia
excluir França, Itália e outros casos pouco claros e incluir Espanha e Portugal
juntamente com os países da América Latina. Nos dois países, o fascismo foi
relativamente fraco (com a exceção da Falange Espanhola depois da eclosão da Guerra
Civil) e o pouco que eles conseguiram em termos de popularidade parece ter a ver, de
forma análoga aos principais países latinos da América, com a emergência da
modernidade nestes países. Os tons mais próximos da matriz fascista do que da nazista
também parecem ser um traço em comum entre os dois grupos de países. Além disso,
foram ditaduras conservadoras e reacionárias, de Franco e Salazar, que acabaram por
eliminar os movimentos realmente fascistas, de Primo de Rivera e Rolão Preto. Houve
até mesmo uma tentativa de golpe dos nacional-sindicalistas em Portugal em 1939,
similares às dos nacistas no Chile e dos integralistas no Brasil em 1938.
Assim, talvez o termo “fascismo ibérico” fosse razoável para agrupar as histórias
dos movimentos fascistas na Península Ibérica e nas suas antigas colônias na América.
Ele é suficientemente amplo para abarcar várias experiências particulares, mas que tem
traços claramente similares em termos de ideologia, relação com as forças
conservadoras e mesmo destino. Ao mesmo tempo, é suficientemente restrito para
excluir casos duvidosos e outros muito particulares, como o francês e o italiano. Uma
avaliação completa da sua utilidade, contudo, será feita apenas na conclusão desse
artigo.
Ele não poderia, contudo, ser exclusivista, pois as proximidades do caso latino-
americano e/ou ibérico com outras regiões onde o fascismo esteve presente são
evidentes demais para serem desconsideradas.

As outras “periferias fascistas”: Europa oriental e o universo de língua inglesa

No universo anglo-saxão (Grã-Bretanha, Austrália, América do Norte), por


exemplo, as elites tradicionais também conseguiram lidar com a crise do liberalismo
sem apelar aos fascismos, que permaneceram restritos a grupos de imigrantes alemães e
italianos ou a setores minoritários da sociedade. Em boa medida, porque eram
sociedades plenamente modernas e com um liberalismo consolidado, o que ajudou a
diminuir o apelo das soluções fascistas.
24

Ao contrário da América Latina ou da Península ibérica, assim, o fascismo


nestes países foi bloqueado pela própria democracia. A aproximação que pode ser feita
é que a estabilidade do sistema político (ou a sua reconfiguração nesta direção, numa
ditadura conservadora ou dentro da democracia) e a confiança das elites em superar a
crise sem ceder o poder a grupos radicais foram fundamentais para conter quaisquer
riscos de ascensão do fascismo em todos esses locais. O mesmo raciocínio poderia ser
extrapolado para outras partes do mundo ocidental, como a Escandinávia, a Suíça, etc.
As diferenças, contudo, também são relevantes. O catolicismo não foi a base
doutrinária da maior parte dos grupos fascistas escandinavos, norte-americanos ou
australianos, com a exceção maior sendo os fascistas do Quebec. O fato de os regimes
fascistas terem se instalado primeiro na Itália e Alemanha também atrapalhou os
fascismos locais, pois eles passaram a ser identificados como o provável inimigo de
uma futura guerra, o que diminuía o seu apelo popular. Essa preocupação com o
imperialismo alemão ou italiano era menor na América Latina, ainda que presente,
especialmente em conexão com as comunidades imigradas italianas e, especialmente,
alemãs. 21
Pela configuração racial e cultural dos povos de língua inglesa, a perspectiva
fascista italiana, apesar de atrair simpatia e apoio, especialmente antes de 1935, foi
menor, enquanto o referencial espanhol ou português era quase ignorado. O nazismo
alemão acabou por ser objeto da maior parte da simpatia e do diálogo, deslocando o
fascismo italiano da posição de principal interlocutor externo.
Já o caso do Leste europeu é relativamente próximo do ibérico. Os Estados eram
recentes e pouco consolidados, com modernidade parcial e tradições liberais quase
inexistentes. Havia espaço para algum tipo de fascismo e não espanta que movimentos
fascistas tenham surgido e tido alguma relevância.
Contudo, é evidente que há especificidades, como a base camponesa ou a forte
presença de aristocratas no fascismo romeno. Mas, em geral, o fascismo da região
parece ter uma história próxima do da América Latina ou da Península ibérica. Isso
tanto pela sua base cristã (como na Guarda de Ferro romena, ligada ao catolicismo
ortodoxo, ou na Eslováquia), como pelo seu apelo popular limitado, típico de países
pouco modernos, com as notórias exceções da Hungria e da Romênia. E, mais
especialmente, pelo fato das ditaduras conservadoras terem sido o modelo político

21
Tenho trabalhado, nos últimos anos, com a problemática do fascismo na América do Norte e no Reino
Unido. Ver Bertonha 2002; 2003; 2010c, 2011b, 2015b.
25

dominante na região naquelas décadas. O fato de terem sido estas as que eliminaram os
fascismos locais também indica similitudes com a América Latina. No caso húngaro e
romeno, aliás, os conflitos entre os conservadores e os fascistas chegaram às armas,
como acontecido no Brasil, no Chile ou em Portugal.
No Leste europeu, contudo, certas questões impactaram com mais força do que
no universo ibérico. O antissemitismo era muito mais difundido e tinha um apelo
popular inegável, enquanto a questão do comunismo adquiria uma materialidade muito
maior, dada a vizinhança da URSS. A insatisfação com as mudanças territoriais pós-
1918 também foi um fator de impulso para o nacionalismo radical que não teve igual na
América Latina. Por fim, o fato do racismo e do imperialismo alemães serem voltados,
essencialmente, para esses países tornava a adesão ao modelo alemão de fascismo mais
problemática, ao menos para alguns grupos. Não espanta, aliás, que poloneses ou
bálticos olhassem com mais atenção para o modelo de Roma, até por exclusão, mesmo
quando pudessem apreciar o antissemitismo e o modelo de governo do Terceiro Reich.
Em resumo, quaisquer ideias de criar subtipologias como “fascismo americano”
ou “fascismo leste-europeu” parecem condenadas ao fracasso. Mesmo “fascismo
periférico” não leva a lugar nenhum, pois os grupos e movimentos fascistas de menor
desenvolvimento podem e devem ser incluídos no “modelo geral”. Além disso, os
fascismos de maior ou menor desenvolvimento não foram exclusivos de uma área
geográfica específica, pelo que essas classificações tornam-se menos importantes.

Conclusões

A questão da modernidade é de importância para explicar o surgimento e o


desenvolvimento dos fascismos e os problemas da transição para o mundo moderno
podem ser pensados como estruturalmente importantes para entender o fenômeno
fascista.
No entanto, essa questão é apenas uma entre várias a serem consideradas. Se o
Estado e as elites no poder perdiam o controle da situação, mesmo que
temporariamente, os fascistas podiam crescer, como no Brasil dos anos 1930. Já onde as
elites mantinham sua influência dominante e se sentiam seguras, tais partidos não
progrediam. Se o Estado era uma democracia, uma ditadura conservadora ou outra
26

coisa, não importa tanto. O importante era não darem espaço ao fascismo e
permanecerem estáveis.
Essas são questões de importância para entender o fascismo, seus sucessos e
fracassos, em todo o mundo. Seja no mundo anglo-saxão, na Europa latina ou oriental
ou na América Latina, havia determinações estruturais que facilitavam (ou não) a
formação de um fascismo local e sua decolagem como movimento de massas. Do
mesmo modo, outras questões estruturais, como a estabilidade do sistema político e
social e sua capacidade de lidar com a crise mundial, também permitiam (ou não) a
chegada do fascismo ao poder, seja num bloco histórico com outras forças, seja
isoladamente.
O caso latino-americano ou mesmo ibérico, neste sentido, não é tão singular
como parece. Ecos do fascismo europeu foram sentidos em todo o continente e
tentativas de formação de algum tipo de movimento fascista foram vivenciadas em
praticamente todos os países. Em alguns, normalmente os mais modernos e onde havia
condições sociais e políticas mínimas, eles conseguiram sair do estágio embrionário e se
tornarem movimentos de massa. Mesmo nestes locais, contudo, sua caminhada para o
poder foi bloqueada pelas forças tradicionais e pelas elites. Apenas no Brasil, por
condições particulares, ele atingiu pleno desenvolvimento e quase atingiu o poder. Em
linhas gerais, contudo, a experiência fascista latino-americana não é tão diferente assim
da de outros países europeus e americanos.
Havia, contudo, algumas especificidades de importância. Grandes coletividades
de imigrantes alemães, italianos, portugueses e espanhóis estavam presentes no
continente e ligadas aos partidos fascistas dos seus países de origem. Apesar de isto não
significar que todas estavam dominadas pela ideologia fascista, elas permitiam uma
difusão especial da experiência fascista europeia no continente. Os vínculos culturais e
linguísticos, especialmente com a Península Ibérica, a França e a Itália, também
facilitavam essa difusão, o que tornava a mensagem fascista mais permeável no
continente do que, digamos, no Oriente Médio ou na China.
A forte presença do catolicismo, a ausência de veteranos da Primeira Guerra
Mundial e os efeitos diferenciados da crise de 1929 também são fatores distintos a
serem considerados, ainda que não sejam exclusivos da região. O fato de os
imperialismos italiano e alemão - salvo algumas exceções, especialmente em países com
amplas populações de origem germânica - não serem considerados ameaçadores no
continente (e, pelo contrário, serem vistos, ao menos em alguns países, como
27

concorrentes ao norte-americano) também é específico da região e pode ter atraído


algumas simpatias ao fascismo.
Anos atrás, sugeri que valia a pena discutir a hipótese de criar subtipologias
como “fascismo latino” ou “fascismo ibérico” como instrumento para a compreensão do
22
fascismo nessas regiões. A discussão, com certeza, é válida, mas minha conclusão,
nesse momento, caminha para uma resposta negativa a tal sugestão. O uso em termos
geográficos e didáticos pode ser válido, mas não há justificativa real, em termos
teóricos, para a criação de uma subtipologia específica. O fascismo na América Latina
tinha, com certeza, mais semelhanças e contatos com a Europa ibérica e latina em geral,
formando um universo com algumas especificidades. Mas não o suficiente para que sua
experiência possa ser separada analiticamente do fenômeno fascista como um todo.23
No entanto, a experiência do fascismo na região, apesar de não se corporificar
em regimes fascistas, impactou com força a vida política latino-americana e tal impacto
se fez sentir inclusive em anos posteriores. Participando da mesma realidade do mundo
ocidental posterior à Primeira Guerra Mundial e dialogando intensamente com a
Europa, a América do Norte e entre si, os fascistas latino-americanos se sentiam parte
integrante da mesma realidade compartilhada por seus irmãos do resto do mundo e,
nesse sentido, membros plenos da família política e ideológica ocidental.

22
Bertonha, 2011a: 67-69.
23
Morgan, 2004. Griffin, 2004.
28

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