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Texto 6 - VESENTINI, José Willian. O que é crítica?

Ou qual é a crítica da geografia


crítica?. In: Ensaios de Geografia Crítica. História, Epistemologia e (Geo)política. São
Paulo: Plêiade, 2009. 220 p

O que é crítica?
Ou qual é a crítica da geografia crítica?*

Geografia ou geografias críticas. A bibliografia da/sobre essa vertente


geográfica já é bastante significativa. Entretanto, uma dúvida se impõe:
o que é crítica? Em que sentido esse verbete vem sendo empregado
na(s) geografia(s) crítica(s)? Qual é, afinal, o significado do adjetivo
crítico, frequentemente utilizado, algumas vezes com diferentes
sentidos, em várias áreas do conhecimento? (Basta lembrarmos das
ideias de reflexão crítica, atitude crítica, teoria crítica, pensamento
crítico, ensino crítico, pedagogia crítica, racionalismo crítico e
inúmeras outras).
Esta preocupação, longe de ser diletante ou superficial, é algo que se
impõe fortemente com as mudanças na realidade social, em especial
com a crise terminal do antigo mundo socialista e com a relativização
das noções políticas de esquerda e direita, as quais, para muitos, não
têm mais sentido na realidade atual. Como iremos esquadrinhar logo
adiante, a noção de crítica (especialmente a de crítica social), a partir da
Revolução Francesa e principalmente no transcorrer do século XIX,
viu-se associada à ideia política de uma esquerda, isto é, àqueles que
propugnavam uma mudança radical na sociedade com vistas a uma
maior igualdade e liberdade. Por isso, tornou-se muito comum a
identificação das noções de crítica e de radical, algo que também
iremos problematizar.

*
Texto elaborado em 2009 para a revista Geousp, São Paulo, Depto. de Geografia da FFLCH-
USP, no prelo.

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Para início de conversa, a verdade é que ninguém mais sabe ao certo o


que é esquerda e direita hoje. Isso por várias razões. Pelo fracasso de
todas as experiências autodenominadas socialistas, fundamentadas bem
ou mal no marxismo e tendo se apresentado como “críticas” ao
capitalismo e alternativas “radicais” a ele. Pela crescente
complexização da sociedade moderna, em especial com o declínio das
lutas trabalhistas que tanto marcaram o século XIX e a primeira metade
do XX, lutas essas sempre identificadas com a esquerda e com todas as
vertentes libertárias ou socialistas. Pelo advento de novos sujeitos e
frentes de lutas no plural – feministas, ecológicas, étnicas, de
orientação sexual, de moradia, de imigrantes de regiões pobres em
áreas mais desenvolvidas etc. –, por vezes até antagônicos. Pela
expansão e o enorme poderio da mídia, a qual, juntamente com as
pesquisas de opinião, faz com que praticamente todos os partidos
políticos reformulem os seus discursos em função do que o público
quer neste ou naquele momento, independentemente de sua posição
ideológica (se é que isso ainda existe). Por tudo isso, reiteramos, as
noções de esquerda e direita tornaram-se problemáticas para definir
todo um espectro de posições políticas no mundo atual. Existe ainda
uma perda de referências. A grande bandeira de luta da velha e heróica
esquerda, aquela do século XIX e da primeira metade do século XX, a
de uma sociedade utópica1 que garantisse concomitante o máximo de
liberdade e de igualdade, foi completamente destroçada por inúmeros
acontecimentos e estudos científicos: pela soturna realidade de todos os
socialismos reais, em primeiro lugar, e também por pesquisas e
reflexões lógico-matemáticas, tais como, por exemplo, aquelas do
prêmio Nobel de economia Amartya Sen, nas quais se demonstra
1
Na verdade, estamos generalizando de forma proposital para evitar uma digressão sobre as
controvérsias a respeito da utopia no pensamento crítico (que nunca foi nem é apenas
marxista), no qual há autores que a exorcizam e outros que a assumem. Por exemplo: Marx e
Engels, em primeiro lugar, além de grande parte dos marxistas do início do século XX (Lênin,
Trotsky, Rosa Luxemburgo, Kautsky e outros) nunca foram adeptos da utopia e, pelo contrário,
desancaram os socialistas utópicos, acreditando firmemente que o socialismo não era uma
ideia utópica e, sim, “científica”, um resultado de “leis” inexoráveis da História (assim mesmo,
com H maiúsculo). A respeito da aversão do pensamento marxiano pela utopia remeto às
análises de FAUSTO, Ruy: A esquerda difícil. São Paulo, Perspectiva, 2007, p. 31-50. Em todo o
caso, não há dúvida de que, durante o transcorrer do século XX, o projeto socialista passou a
ser visto como utópico e essa defasagem entre ciência e utopia se estreitou sensivelmente.

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cabalmente que é impossível existir um máximo de igualdade sem


sacrificar a liberdade e vice-versa2.
Nesses termos, alguns autores que se consideram progressistas e
apregoam um mundo melhor, com maior justiça – entendida como
garantias para as liberdades democráticas, que não são algo eterno e
acabado e, sim, partes de um processo de constante criação e
reinvenção de direitos – e igualdade (embora nunca total), falam em ir
“além da esquerda e da direita”3, enquanto alguns poucos outros
despendem os maiores esforços no sentido de conservar, embora
redefinindo, essas categorias políticas4.
A manutenção desses rótulos – algo que no Brasil e na América Latina
em geral é um esforço quase exclusivo da autodenominada “esquerda”,
sendo que, nos Estados Unidos, ao inverso, é mais identificado com os
conservadores – não deixa de pagar um elevado preço teórico. De fato,
trata-se mais de um apego a uma identidade vista como “positiva”
(esquerda na América Latina e direita nos Estados Unidos), que, no
fundo, faz parte da autodefinição de certas pessoas e grupos, uma
tentativa de se manter fiel a um certo passado (ou a determinadas
tradições) e, no extremo – no caso de alguns partidos –, é algo que visa
angariar simpatias e votos.
Sem dúvida que existem teóricos sérios e bem-intencionados
procurando manter esses rótulos políticos. Não estamos nos referindo a
autores panfletários com visíveis insuficiências teóricas, que não
conseguem ir além do marxismo-leninismo, do tipo Ignácio Rangel,
Emir Sader, Robert Kurz e outros, que escrevem como se ainda
vivêssemos no século XIX, se recusando a analisar seriamente – e
aprender com – a experiência dos totalitarismos (nazismo e
comunismo), que menosprezam as conquistas democráticas. Pensamos
em teóricos do calibre de Norberto Bobbio e Ruy Fausto 5, dentre

2
SEN, Amartya. Desigualdade reexaminada. Rio de Janeiro, Record, 2001.
3
Cf. LEFORT, Claude. A invenção democrática. São Paulo, Brasiliense, 1983; e GIDDENS, A.
Para além da Esquerda e da Direita. São Paulo, Unesp, 1995.
4
BOBBIO, N. Esquerda e Direita. São Paulo, Editora Unesp, 1995; e FAUSTO, R. A esquerda
difícil, op. cit.
5
Idem, idem.

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poucos outros. Bobbio, por exemplo, acredita que a esquerda, hoje,


define-se fundamentalmente pela busca de uma maior igualdade social,
enquanto a defesa da liberdade seria mais um atributo da direita. E
Fausto pensa que uma esquerda nos dias atuais deve ser defensora
intransigente da democracia – por sinal, Bobbio também advoga essa
posição, embora identificando democracia com o liberalismo, algo que
Fausto repudia – e ir além do marxismo (posição também defendida
pelo liberal Bobbio), deixando de lado a ideia de uma “ditadura do
proletariado” (ou de qualquer outro tipo de ditadura) e mesmo a de uma
economia planificada sem a propriedade privada nos moldes
genericamente apontados por Marx, recuperando o ideal anarquista e
socialista utópico de autogestão, de cooperativas de pequenos
produtores ou trabalhadores etc.
Essas proposições, contudo, embora sejam as mais palatáveis (sem
dúvida que as mais democráticas) entre os que se autointitulam
esquerda, nos parecem, em certa medida, frágeis. Primeiro, no caso de
Bobbio, significaria deixar de lado os reclames por liberdades (contra
as prisões arbitrárias e a tortura, contra a violação dos direitos
humanos, pela ampliação dos direitos das mulheres, dos homossexuais,
das etnias minoritárias, dos idosos etc.) para a direita, algo
evidentemente absurdo e oposto a toda tradição progressista da
esquerda. É certo que Bobbio assinalou que a liberdade mais defendida
pela direita é a do mercado, mas, mesmo assim, insistiu em que a
bandeira de luta da esquerda é basicamente a igualdade e não as
liberdades. Entretanto, mesmo a liberdade do mercado – algo que nos
dias atuais inclui a proteção dos consumidores, o combate aos cartéis e
monopólios, inclusive àqueles estatais etc. – é fundamental para
qualquer democracia moderna, na medida em que ainda não foi
encontrado um substituto aceitável. Durante algum tempo pensou-se
que a estatização e a planificação da economia fossem melhor que o
mercado, mas isso já foi completamente descartado ao ponto de alguns
autores da new left, inclusive economistas que participaram de planos
quinquenais na Hungria e na China na época em que vigorava a
economia planificada, terem afirmado que, se houver um novo

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socialismo no século XXI, sem dúvida que ele terá por base a economia
de mercado6.
Depois, existe o fato óbvio de que somente a vigência da democracia,
logo, das liberdades e da participação, é que se pode garantir um
mínimo de igualdade – mas nunca total, pois isso é um sonho utópico
no sentido literal da palavra (isto é, “que não existe em lugar algum”),
tal como a ilha imaginada por Thomas Morus. Na prática, a própria
vigência das liberdades conduz a certa desigualdade na medida em que
as pessoas e os grupos são desiguais nas suas potencialidades, nas suas
necessidades, no seu valor de barganha para a sociedade, na
criatividade ou nas formas de luta etc. E tentar impor uma igualdade
total através da única forma possível, qual seja, pela força através de
um regime não democrático – um partido único no poder (ou um líder
carismático) que diz representar os trabalhadores ou o povo –, como foi
demonstrado exaustivamente, é algo que sempre resulta em privilégios
abusivos para alguns, que mandam e desmandam de forma arbitrária,
que usam em seu proveito pessoal os bens tidos como públicos.
Quanto à posição de Fausto, acredito que de fato seja interessante
investir esforços na busca de alternativas libertárias do tipo economia
com base em cooperativas, autogestão em empresas e outras
instituições etc. O problema é que, muitas vezes, essas experiências
cooperativas ou autogestionárias resultam na ditadura de uma pessoa ou
um grupo; ou então na promoção de interesses corporativos – ou de
grupelhos específicos – que são opostos aos interesses maiores da
sociedade. Não podemos continuar a ser ingênuos hoje, depois de
tantas experiências de manipulação de assembléias – basta lembrar,
sem a menor pretensão em denegar, de inúmeras instrumentalizações
da “vontade popular” em alguns orçamentos participativos –, a respeito
do assembleísmo. Vistas de regra existem partidos ou grupelhos
organizados que conseguem impor os seus pontos de vista apriorísticos
nas resoluções, seja pelo cansaço da maioria, seja pela manipulação dos
votos. E, ao contrário de Bobbio, Fausto não enfrenta o dilema da
igualdade versus a liberdade; ele continua – tal como no século XIX – a
escrever como se essa antinomia não existisse. Parodiando o título do
6
Cf. NOVE, Alec. A economia do socialismo possível. São Paulo, Ática, 1989.

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seu livro, podemos dizer que, de fato, é difícil ser (inequivocamente) de


esquerda – como também de direita – no século XXI.
Essa polêmica evidentemente já chegou até a geografia crítica. Desde a
última década do século XX, logo depois da debacle do socialismo real
no Leste europeu e na ex-União Soviética, surgiram várias listas de
discussão – ou fóruns, como se denominam – na Internet a respeito do
que seria uma geografia crítica hoje7. Dando uma rápida espiada em
algumas dessas mensagens – pois é praticamente impossível ler todas
(são milhares), algo que provavelmente nem mesmo o mediador de
cada um desses grupos consegue fazer –, logo se percebe que não existe
sequer um mínimo consenso entre os participantes a respeito do que é
ou deveria ser uma geografia crítica: para alguns, é sinônimo (ou no
mínimo complementar) ao adjetivo radical, e/ou do adjetivo socialista
(embora nunca fique claro que tipo de socialismo); para outros,
simplesmente de denúncia de grupos neonazistas, de alguma forma de
desigualdades ou injustiças, ou de agressões à natureza em qualquer
parte do mundo, e assim por diante.
Também em livros e artigos acadêmicos esse debate se encontra em
andamento. Dois geógrafos britânicos, apesar de admitirem haver
“inúmeras desavenças sobre o que seria esquerda”, concluíram o seu
artigo de forma extremamente otimista, afirmando que ela, hoje,
“representa o futuro”8. Esse texto suscitou um enorme debate. Tanto
que é já é considerado o ensaio mais citado entre todos os que já foram
publicados nessa revista – Antipode –, que em 1969 inaugurou a
“geografia radical” anglo-saxônica. Nesse mesmo número da revista
existe um diálogo com esse texto, por parte de um autor marxista que
censura a ênfase no pluralismo em Thrift e Amin e os chama – de
forma depreciativa, pois acredita por um motivo obscuro qualquer (não
explicitado) que há semelhanças entre o pluralismo científico e a
“conversão ao neoliberalismo” da esquerda trabalhista britânica (Tony

7
Por exemplo, http://www.jiscmail.ac.uk/lists/crit-geog-forum.html, fórum de geografia
crítica existente desde março de 1996.
8
THRIFT, Nigel e AMIN, Ash. What is Left ? Just the Future. In : Antipode. A Radical Journal of
Geography. Vol.37, Issue 5, November 2005, p. 220-238.

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Blair e outros) – de neocríticos9. Logo no ano seguinte, veio uma


intervenção de uma geógrafa norte-americana, que estranhou tanto
otimismo – ou tanta ingenuidade – por parte daqueles dois autores num
momento em que inegavelmente a esquerda se encontra em crise10.
Outro autor norte-americano, nesse mesmo ano, assinalou – para horror
de autores como Smith – que, a partir do final dos anos 1980 nos
Estados Unidos, por influência do pensamento pós-moderno em
ascensão, que gradativamente passou a substituir o neomarxismo como
referência teórica nos círculos engajados da geografia acadêmica,
pouco a pouco a bandeira de uma “geografia radical” foi sendo
substituída pela de “geografia crítica”11.
Considero pertinente este último ponto de vista, pois na verdade a
proposta de uma geografia crítica surgiu primeiramente na França, em
1976, com Yves Lacoste e outros participantes da revista Hérodote, que
desde o início se mostraram reticentes em relação ao marxismo e
incorporaram ideias de pensadores anarquistas (Réclus) e,
principalmente, pós-modernos (Foucault). Esse geógrafo francês
chegou mesmo a assinalar, de forma foucaultiana, que o marxismo
negligenciou o espaço em prol de uma supervalorização do tempo12.
É bem verdade que com a expansão da geografia crítica para a Itália,
Espanha, Brasil e outros países da América Latina, um certo marxismo-
leninismo com fortes influências de Althusser e discípulos passou a
ocupar o lugar do pensamento pós-moderno, pelo menos em grande
parte, conforme já havíamos assinalado em dois textos dos anos 8013.

9
SMITH, Neil. What is left? Neo-critical Geography, or the flat pluralist world of business
class. In: Antipode. A Radical Journal of Geography. Vol.37, Issue 5, november 2005, p. 887-
889.
10
WILLS, Jane. What’s left? The left, its crisis and rehabilitation. In: Antipode. A Radical
Journal of Geography. Vol.38, Issue 5, November 2006, p. 907-15.
11
BLOMLEY, Nicholas. Uncritical critical Geography? In : Progress in Human Geography.
Vol.30, n.1, 2006, p. 87-94.
12
LACOSTE, Y. A Geografia – isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra. Campinas,
Papirus, 1988, p. 139-51.
13
VESENTINI, J. W. Percalços da geografia crítica: entre a crise do marxismo e o mito do
conhecimento científico. In: Anais do 4º. Congresso Brasileiro de Geógrafos. São Paulo, AGB,
1984, Livro 2, Vol.2, p. 423-32 e Geografia e discurso crítico (da epistemologia à crítica do
conhecimento). In: Revista do Departamento de Geografia 4. São Paulo, USP, 1985, p. 7-13.

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Basta lembrar, para exemplificar, do livro extremamente dogmático do


geógrafo italiano Massimo Quaini14, que conseguiu enxergar nos
escritos de Marx e de Engels toda uma análise e até mesmo a “solução”
para os problemas ambientais e territoriais hodiernos! Em todo o caso,
mesmo continuando a existir uma forte presença de marxistas
ortodoxos nesta geografia – aqueles que têm por base teórica e
filosófica os escritos de Lênin, Althusser e discípulos como Martha
Harnecker (com a sua leitura estruturalista e empobrecida da obra de
Marx), o velho Lúckas ou Trotsky –, não há dúvidas de que ela
avançou no sentido de incorporar autores marxistas heterodoxos ou
neomarxistas (como Léfebvre), intelectuais pós-marxistas (como
Habermas) e até mesmo pós-modernos (como Foucault, Guattari,
Giddens e outros).
Prosseguindo com o seu pensamento, o mencionado geógrafo norte-
americano questiona sobre o que seria de fato uma atitude crítica e
coloca a seguinte dúvida: será que todos nós, que dizemos praticar uma
geografia crítica, somos realmente críticos?15. Ele ainda se pergunta,
com base num questionamento de um colega seu da universidade (cujo
nome não mencionou), se o adjetivo crítico, na verdade, não se tornou
redundante; e afirma que a tradição crítica nas ciências sociais teria
começado com Marx, que num trecho célebre decretou: “Entretanto os
filósofos somente têm interpretado, de várias maneiras, o mundo. A
questão principal é transformá-lo”16. A meu ver, o autor acertou em
cheio ao questionar o significado de crítica (ou mesmo de radical, num
outro plano) nos dias de hoje. Mas errou completamente ao identificar
o conceito de crítica com esse chamado ao engajamento que Marx
proclamou em 1845 nas suas Teses contra Feuerbach. Como iremos
mostrar a seguir, esse é um tremendo desacerto, típico da geografia
anglo-saxônica em geral que, via de regra, não conseguiu discernir os
significados (diferentes) de crítica e de radical, nem tampouco
esquadrinhar o longo percurso, que começou muito antes de Marx, da
crítica na vida social e política.

14
QUAINI, M. Marxismo e Geografia. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979.
15
BLOMLEY, 2006, op. cit., p. 87.
16
MARX, K., apud BLOMLEY, op. cit.

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Ipso facto, este nosso ensaio constitui uma modesta tentativa de


contribuição, por meio de uma releitura dos significados de crítica em
primeiro lugar, e também dos adjetivos radical e esquerda. Uma
releitura que vai até as origens e procura mostrar as mudanças que a
noção de crítica sofreu em alguns momentos históricos cruciais.
Tentaremos, principalmente, polemizar o que significa uma atitude
crítica hoje e se essa adjetivação ainda é necessária na geografia do
século XXI.
Vamos iniciar pela semântica. No senso comum, a palavra crítica
normalmente é vista sob um viés negativo, enquanto uma censura ou
condenação, como um julgamento sempre desfavorável. Criticar, no
entendimento comum, amiúde encontrável na mídia, em filmes, em
discursos políticos e mesmo em assembléias populares ou trabalhistas,
significa basicamente “falar mal” de alguma pessoa, ideia ou teoria, de
algum projeto ou de alguma proposição17. Entretanto, essa não é a
acepção filosófica e científica do conceito. Na filosofia, na
epistemologia e nas ciências humanas em geral, o significado de crítica
é o de um procedimento que implica em discernimento, critério,
apreciação minuciosa e julgamento que não precisa ser,
necessariamente, negativo. Mais ainda: é um procedimento tido como
necessário e até mesmo imprescindível para o aprimoramento e o
avanço do conhecimento18.
Etimologicamente, a palavra crítica vem do grego kritikòs, que
significa o ato de examinar ou julgar alguma coisa. Essa palavra é um
derivativo do vocábulo grego krinò, que pode ser entendido como a

17
Até mesmo alguns poucos cientistas sociais incorporaram esse viés equivocado. Um autor
brasileiro bastante citado e tido como especialista em metodologia científica, por exemplo,
asseverou que: “Do ponto de vista metodológico, critica é sempre negativa. Crítica ‘positiva’ é
outra coisa, quer dizer, é elogio.” (DEMO, Pedro. Mitologias da avaliação. São Paulo, Cortez,
2002, p. 30).
18
“A postura crítica torna-se, assim, um instrumento de pesquisa: a crítica é um instrumento
de progresso [científico]; é a crítica que distingue a postura científica da experiência pré-
científica, onde se fazem erros e se espera até que se esteja arruinado com eles [...] Quando se
tem postura crítica, explora-se os erros de forma positivamente crítica, aprendendo-se
conscientemente a partir deles.” (POPPER, Karl. O racionalismo crítico na política. Brasília,
Editora da UNB, 1994, p. 51).

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capacidade de distinguir, de estabelecer uma distinção19. Com os


gregos da antiguidade, portanto, os criadores do vocábulo, a crítica
implicava numa reflexão, num ato reflexivo no qual se avaliava ou
examinava alguma coisa: uma ideia, uma teoria, um comportamento,
uma peça de teatro, uma obra literária etc. Uma avaliação tanto dos
aspectos positivos como negativos, um julgamento, digamos assim, da
“qualidade” dessa coisa, de sua validade ou veracidade (total ou
parcial) e de seus erros ou equívocos (idem).
Michel Foucault procurou datar o momento em que a crítica passa a ter
um significado político. Numa conferência pronunciada em 1978 na
Sociedade Francesa de Filosofia, ele afirmou que, no Ocidente, com o
advento da modernidade, especialmente entre os séculos XV e XVI, a
palavra crítica começa a denotar um tipo de posição política, uma
oposição ao ato de governar, que, convém recordar, naquele momento
se identificava com a nascente monarquia absolutista. Na interpretação
desse autor:

Eu proporia então, como uma primeira definição da crítica,


esta caracterização geral: a arte de não ser de tal forma
governado. Não querer ser governado assim, não é não
mais querer aceitar essas leis porque elas são injustas,
porque, sob sua antiguidade ou sob o seu brilho mais ou
menos ameaçador que lhes dá a soberania de hoje, elas
escondem uma ilegitimidade essencial. A crítica é então,
desse ponto de vista, em face do governo e à obediência
que ele exige, opor direitos universais e imprescritíveis,
aos quais todo governo, qual seja ele, que se trate do
monarca, do magistrado, do educador, do pai de família,
deverá se submeter. À questão “como não ser
governado?”, responde-se dizendo: “quais são os limites
do direito de governar”?20.

19
Cf. SIERRA, Pelayo Garcia. Diccionario Filosófico. Biblioteca Filosofía en Español, Oviedo,
1999 ; e também CARROLL, Robert. The Skeptic’s Dictionary, disponível in
http://www.skepdic.com/, consultado em julho de 2007.
20
FOUCAULT, M. Qu'est-ce que la critique? Critique et Aufklärung. In : Bulletin de la Société
Française de Philosophie, Vol. 82, nº 2, avr/juin 1990, p. 35-63.

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Mas foi com Kant, no século XVIII, que a crítica assumiu o seu
significado moderno, praticamente o mesmo posteriormente retomado
por Hegel, por Marx e por tantos outros filósofos ou cientistas sociais
que se utilizaram desse conceito para definir alguma teoria ou corrente
de pensamento: Adorno e Horkheimer com a sua teoria crítica, Karl
Popper com o seu racionalismo crítico, Paulo Freire e Giroux, dentre
outros, com a proposta de uma pedagogia crítica etc. Tanto que a
filosofia kantiana também é conhecida pelo nome de criticismo21. Sua
monumental obra, Crítica da Razão Pura, é uma tentativa de examinar
minuciosamente as propriedades da razão pura, aquela desligada da
experiência, estabelecendo os seus limites. Não se trata, porém, de uma
radical negação da razão e, sim, uma autocrítica desta, uma espécie de
continuação do projeto iluminista de, utilizando a razão com base na
ciência moderna, combater todas as formas de escuridão (ignorância
por crenças e superstições, dogmatismo religioso, autoritarismo no
conhecimento e na vida política). Nas suas palavras:

O objetivo desta Crítica da razão pura especulativa reside


na tentativa de mudar o procedimento tradicional da
Metafísica e promover assim uma completa revolução nela
segundo o exemplo dos geômetras e investigadores da
natureza [...] Com base num lance superficial de olhos
sobre esta obra, poder-se-ia pensar que a sua utilidade seja
somente negativa, ou seja, de não ousarmos jamais elevar-
nos com a razão especulativa acima dos limites da
experiência [...] Ela se tornará, porém, imediatamente
positiva quando nos dermos conta de que os princípios,
com cujo apoio a razão especulativa ultrapassa os seus
limites, na verdade têm como resultado inevitável, se os
observarmos mais de perto, não uma ampliação mas uma
restrição do uso da nossa razão [...] Contestar a utilidade
positiva deste serviço prestado pela Crítica equivaleria a
dizer que a polícia não possui nenhuma utilidade positiva
por ser a sua principal ocupação fechar a porta à
violência22.

21
LEGRAND, Gerard. Dicionário de Filosofia. Lisboa, Edições 70, 1986, p. 103-4.
22
KANT, I. Crítica da Razão Pura. São Paulo, Abril Cultura, Col. Os Pensadores, 1974, p.14-5.

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A crítica, nesses termos, não é somente negativa – o “falar mal” de algo


ou mesmo somente apontar lacunas, problemas, insuficiências,
contradições –, mas também positiva na medida em que auxilia no
avanço ou no aprimoramento do objeto criticado, promove, enfim, uma
revolução no sentido de propor novas alternativas ou perspectivas. Mas
o criticismo kantiano vai mais além. Prosseguindo com a interpretação
de Foucault, temos que a crítica kantiana vincula-se à de
esclarecimento, isto é, da conquista da maioridade pelo ser humano:

A definição que Kant dava de crítica não é distante de


como ele entendia a Aufklärung [esclarecimento,
ilustração]. É característico, com efeito, que, em seu texto
de 1784 sobre o que é a Aufklärung, ele a definiu em
relação a um certo estado de menoridade no qual estaria
mantida, e mantida autoritariamente, a humanidade. Em
segundo lugar, ele caracterizou essa menoridade por uma
certa incapacidade na qual a humanidade estaria retida,
incapacidade de se servir de seu próprio entendimento sem
alguma coisa que fosse justamente a direção de um outro
[...] Em terceiro lugar, creio que é característico que Kant
tenha definido essa incapacidade por uma certa correlação
entre uma autoridade que se exerce e que mantém a
humanidade nesse estado de menoridade, correlação entre
este excesso de autoridade e, de outra parte, algo que ele
considera, que ele chama uma falta de decisão e de
coragem. [...] Enfim, é característico que, nesse texto Kant
dá como exemplos de retenção da menoridade da
humanidade, e por consequência, como exemplos, pontos
sobre os quais a Aufklärung deve erguer esse estado de
menoridade e maioridade em, certo tipo, os homens,
precisamente a religião, o direito e o conhecimento. O que
Kant descrevia como a Aufklärung, é o que eu tentei até
agora descrever como a crítica, como essa atitude crítica
que se vê aparecer como atitude específica no Ocidente a
partir, creio, do que foi historicamente o grande processo
de governamentalização da sociedade. Com relação a essa
Aufklärung (cujo emblema, vocês bem o sabem e Kant
lembra, é ‘sapere aude’ [atreva a conhecer, a pensar por

112
Ensaios de geografia crítica

conta própria], praticamente um contraponto a uma outra


voz, aquela de Frederico II, que dizia ‘que eles raciocinem
tanto quanto querem contanto que obedeçam’). Como
Kant vai definir a crítica? Eu diria que a crítica será aos
olhos de Kant o que ele dirá ao saber: você sabe bem até
onde pode saber? Raciocina tanto quanto queira, mas você
sabe bem até onde pode raciocinar sem perigo? A crítica
dirá, em suma, que está menos no que nós empreendemos,
com mais ou menos coragem, do que na ideia que nós
fazemos do nosso conhecimento e dos seus limites, que aí
vai a nossa liberdade, e que, por consequência, ao invés de
deixar dizer por um outro “obedeça”, é nesse momento,
quando se terá feito do seu próprio conhecimento uma
ideia justa, que se poderá descobrir o princípio da
autonomia e que não se terá mais que escutar o obedeça;
ou antes que o obedeça estará fundado sobre a autonomia
mesma23.

Nesses termos, a crítica para Kant implica um projeto de autonomia, de


libertação da razão das amarras do autoritarismo, do tradicionalismo e
das crendices. É uma contribuição para a revolução democrática no
sentido de maior autonomia da humanidade e dos indivíduos ou
cidadãos, isto é, de ousar pensar o impensável, de raciocinarmos por
conta própria independentemente dos dogmas e das proibições. Ou seja,
um convite a “mudar o mundo” no sentido de construir uma sociedade
com maior justiça e igualdade, com maior progresso científico, com
esclarecimento enfim. Não podemos negligenciar que, em grande parte,
a obra de Kant representa certa continuação do iluminismo e, ao
mesmo tempo, reflete uma admiração pela Revolução Francesa.
Hegel retomou essa concepção de crítica, mesmo procurando à sua
maneira superar o criticismo kantiano. Sabemos que ele valorizou a
História – com H maiúsculo, vista como a realização paulatina da razão
através de etapas ou avatares, num processo teleológico com um final
pré-definido. A dialética, para ele, não é apenas um procedimento –
visto como algo sem grande importância – de oposição (tese e antítese)

23
FOUCAULT, M. Op. cit., p. 40.

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José William Vesentini

que gera uma síntese, como em Kant. Para Hegel, a dialética é


supervalorizada e tem uma dimensão ontológica: ela se dá ou surge no
mundo sob a forma dos processos históricos. A dialética hegeliana não
pretende ser apenas uma forma de lógica, mas também uma ontologia.
De forma extremamente pretensiosa, ela se apresenta como a “verdade”
– o que capta a “essência” – ou o movimento da História.
Marx prosseguiu com esse viés hegeliano da dialética como a
realização da História, sendo esta uma dinâmica complexa que
atravessaria várias fases e, afinal, desembocaria na completa libertação
do ser humano. Afirmando ter colocado Hegel em posição invertida,
com os pés no chão, ele substituiu a razão ou o espírito pelas condições
materiais e a luta de classes, que também num processo teleológico, por
etapas, conduziriam ao socialismo e, após um período de transição, ao
comunismo, a História enfim realizada ou acabada. Sua principal obra,
O Capital, tem como subtítulo Crítica da Economia Política, numa
inegável inspiração kantiana na qual a crítica é uma superação com
subsunção e, mais ainda, é um procedimento revolucionário que aponta
para uma libertação do ser humano, para uma completa autonomia no
futuro. Procurando estabelecer os limites da economia política clássica
(de Adam Smith, David Ricardo e outros) – que seria, antes de tudo,
uma economia burguesa ou justificadora do sistema capitalista –, Marx
acreditou ter encontrado a sua superação com a análise das contradições
do capitalismo, o qual inexoravelmente cederia lugar a um novo modo
de produção sem a propriedade privada dos meios de produção.
Ao contrário do que pensam alguns, a crítica de Marx ao capitalismo e
à economia política não significou uma “crítica negativa” no sentido de
apenas apontar erros, problemas, mistificações ou contradições. Como
mostrou com propriedade Berman24, é na obra de Marx – muito mais
do que na de Ricardo, de Smith, de Keynes ou de qualquer outro autor
tido como ideólogo da economia de mercado – que vamos encontrar os
mais rasgados elogios ao capitalismo, em especial ao imenso
“progresso” que ele promoveu, à sua “missão civilizadora”, à criação
de um mercado mundial integrado. O sentido que Marx dava ao termo

24
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. São
Paulo, Companhia das Letras, 1987, p. 85-125.

114
Ensaios de geografia crítica

crítica, convém repetir, era o de um procedimento kantiano de entender


profundamente algo, inclusive nos seus aspectos positivos, assinalando
a sua importância histórica e, ao mesmo tempo, apontando os seus
limites ou as suas insuficiências (ou as suas “contradições”, nos termos
da dialética hegeliana).
Sabemos que, a partir do final do século XIX – e até o final do século
XX –, a noção de crítica esteve identificada basicamente com o
marxismo, como se fosse um atributo somente da “esquerda” (vista
como os adeptos do socialismo) e tendo o capitalismo como objeto
privilegiado, o alvo por excelência das críticas. No entanto, ao contrário
do procedimento crítico adotado por Marx, o marxismo posterior, com
raras exceções, somente viu aspectos “negativos” e inaceitáveis no
capitalismo (e mesmo na democracia!), como se este fosse um sistema
que de forma inelutável amplia as desigualdades e entrava o
“progresso”, isto é, o desenvolvimento das forças produtivas. É
evidente que, hoje, essa leitura precisa ser reexaminada e superada.
Precisa ser criticada enfim. Não é mais possível levar a sério a
concepção de dialética como portadora do segredo da história, ou como
o “método científico” por excelência; muito menos, a existência de um
sujeito qualquer (o proletariado, os trabalhadores, o espírito, as massas,
a multidão, os movimentos sociais, as ONGs ou qualquer outro agente)
que seria o redentor da humanidade. Não apenas o capitalismo, mas
também o socialismo real, assim como qualquer outro projeto de
sociedade que repudie o mercado e a democracia (por exemplo, aqueles
alicerçados em valores religiosos; ou o populismo autoritário “de
esquerda” da América Latina), deve igualmente ser objeto de profundas
críticas.
Malgrado os equívocos e as insuficiências de Marx e de Hegel – em
especial a tentativa de teleologizar a história e a pretensão de identificar
um agente portador do futuro e do segredo da história (a razão ou o
proletariado) –, não se pode perder de vista o que há de comum entre
eles e Kant. Ou, em outras palavras, o entendimento da crítica não
como falar mal ou desancar um pensamento, mas, sim, como
compreensão minuciosa dos seus fundamentos e limites, como
superação na qual se incorpora o que foi superado como parte de uma

115
José William Vesentini

síntese ou teoria superior. Ao mesmo tempo, crítica como um projeto


de autonomia da humanidade, de crescimento do ser humano no sentido
de libertação das amarras do tradicionalismo, das crendices, da
exploração social e do autoritarismo.
Acreditamos que esta deva ser a concepção reproduzida pela geografia
crítica – ou pelo menos por grande parte dela, que afinal é plural.
Crítica como superação com subsunção e, ao mesmo tempo, como um
engajamento em algum projeto de libertação que amplie o espaço da
democracia, que combata todas as formas de dogmatismo e de
autoritarismo. Todavia, existe hoje um grande dilema: a ideia de
projeto de libertação tornou-se extremamente problemática, embora de
maneira alguma dispensável. Mas a profunda compreensão desse fato
requer algumas explicações.
Em primeiro lugar, ao contrário do que pensam alguns, não se trata de
denegar completamente a geografia clássica ou tradicional,
substituindo-a pelo materialismo histórico com os seus conceitos
fundamentais (modo de produção, formação econômico-social, classes
sociais alicerçadas na produção, a teoria marxista do valor, o
socialismo como etapa que substituirá o capitalismo etc.). Com tal
procedimento, mesmo quando existe a tentativa de enriquecer ou
completar o marxismo com a incorporação do espaço geográfico – a
formação econômico-social transforma-se em formação sócio-espacial,
a luta de classes passa a abarcar os conflitos ambientais e territoriais, o
materialismo histórico passa a ser chamado de materialismo histórico-
geográfico etc.25 –, não existe uma verdadeira crítica da tradição
geográfica. Não há uma superação com subsunção e tampouco um
projeto de libertação realista e coerente com a nossa época. O que
existe nesse procedimento é apenas a substituição da tradição
geográfica por uma teoria do século XIX (mesmo que esta seja lida a
partir de algum autor posterior: Luckács, Althusser ou até Lèfebvre)
que imaginou ter superado o capitalismo pela análise de suas
contradições e limites, os quais pretensamente conduziriam ao
socialismo. Sem dúvida, naquele momento de ascensão dos

25
HARVEY, D. Spaces of Capital. Towards a Critical Geography. New York, Routledge, 2001,
passim.

116
Ensaios de geografia crítica

movimentos operários, essa construção teórica era crítica. Mas, nos


dias de hoje, ela se encontra envelhecida, até mesmo caduca, além de
completamente deslocada dos verdadeiros projetos de libertação, que
não se identificam mais com esse agente idealizado por Marx, o
proletariado, o qual, sejamos francos, sequer existe no mundo
empírico26. Insistir nessa via sem levar em conta a experiência dos
totalitarismos do século XX – que em boa parte nela se alicerçaram – e
as mudanças na vida social e econômica, com o advento de novos
sujeitos e campos de luta, nada mais é que, consciente ou
inconscientemente, partilhar um projeto de ascensão ao poder por uma
camada de burocratas que fala em nome dos trabalhadores, dos
excluídos ou da História27.
Destarte, a história do século XX – e em especial a crise do mundo
socialista, a emersão de novos sujeitos e formas de luta social, a par das
profundas mudanças ocorridas no capitalismo, que não pode mais ser
entendido pelas análises marxistas clássicas –, evidencia que a crítica
da economia política também deve ser criticada, que ela também possui
os seus limites e insuficiências, cada vez mais evidentes. Assumir o
materialismo histórico como “a” teoria na qual a geografia deve ser
diluída é um procedimento acrítico, que não realiza, sequer
minimamente, uma análise crítica da geografia, tal como aquela de
Kant frente à razão pura, ou mesmo a de Marx frente ao capitalismo.
Apenas se incorpora, de forma mecânica e sem grande criatividade,
determinados conceitos ou preocupações espaciais a um corpo teórico
já constituído, este, sim, nascido de uma tradição crítica, embora datada
e integrada a outros tempos, outras circunstâncias. Pouco se avança no

26
Claude LEFORT (As formas da História. São Paulo, Brasiliense, 1979, p. 249) foi um dos
primeiros a perceber isso, tendo sugerido que o proletariado foi mais uma invenção da “fértil
imaginação de Marx”.
27
Como já havia assinalado muito bem CASTORIADIS, C. (A instituição imaginária da
sociedade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982, p. 82-5), o marxismo no século XX pouco a pouco
degenerou numa ideologia da burocracia, num discurso legitimador de um partido ou um
grupo de burocratas que pretende alcançar o poder e/ou que já o exerce de forma totalitária,
isto é, sempre reprimindo violentamente as criticas e oposições, que são taxadas de
“burguesas” e antirrevolucionárias, e sempre falando em nome de uma pretensa comunidade
dos trabalhadores, do povo ou do proletariado.

117
José William Vesentini

conhecimento da realidade; em geral tão somente velhos chavões ou


estereótipos são regurgitados.
Devemos, então, indagar sobre o que seria um procedimento crítico nos
dias de hoje. Nesta época de pós-modernidade, com múltiplos sujeitos e
verdades, com visões de mundo alternativas e igualmente aceitáveis,
cada uma dentro de seu ponto de vista, continuar propagando a ideia de
crítica como a realização do sentido da história é algo completamente
extemporâneo. Ninguém mais tem o direito de falar em nome da
história e nenhum sujeito ou agente social é o detentor da verdade
entendida como algo unívoco. Outro problema é que não temos mais
aquele otimismo dos séculos XVIII e XIX a respeito da unicidade da
humanidade. Poucos acreditam hoje num projeto de libertação que
inclua todas as culturas e civilizações, todos os povos num único
modelo societário para o futuro. Cada vez mais se valorizam as
diferenças e as alteridades, a questão dos Outros, com suas diferentes
concepções a respeito do ideal de uma sociedade no futuro.
Isso posto, cabe uma interrogação: qualquer discurso que critique
outro(s) no sentido de incorporá-lo(s) numa nova síntese, e que
contenha um projeto qualquer de autonomia, pode ser considerado
crítico? Exemplificando: se pensarmos numa perspectiva cristã
fundamentalista, adepta do criacionismo, crítica seria uma compreensão
dos fundamentos e limites da ciência – neste caso, do neodarwinismo –
procurando superá-la com o ato de a incorporar como parte de uma
teoria que mantivesse os dogmas da religião e ao mesmo tempo
admitisse certas mudanças temporais na natureza e no advento dos
seres vivos? (E também existiria um projeto de autonomia ou libertação
nesse caso, mesmo que em outra vida). O mesmo valeria para os
fundamentalistas islâmicos, para os hinduístas, para os adeptos da
supremacia branca etc?
Cairíamos então num relativismo segundo o qual todos os pontos de
vista se equivalem e, assim sendo, qualquer discurso que procurasse
compreender uma teoria e incorporá-la num projeto qualquer de
“libertação” seria considerado crítico? É evidente que não. Então, como
sair desse impasse?

118
Ensaios de geografia crítica

Em primeiro lugar, temos que lembrar que, para Kant, existe um


vínculo indissociável entre crítica e democracia, sendo que esta
consiste num processo que implica na crescente libertação da
humanidade em relação às crendices, ao autoritarismo, às tradições que
reproduziam ou reproduzem uma sociedade rigidamente estratificada e
com privilégios para alguns. Crítica, nessa concepção kantiana e
moderna, deve ser algo que contribui para a liberdade e a igualdade dos
seres humanos, e nunca algo que justifique ou legitime qualquer tipo de
ditadura, de autoritarismo ou de totalitarismo, de privilégios, de
racismo ou de preconceitos. Não vivemos mais uma batalha entre
direita e esquerda, tampouco entre capitalismo e socialismo. Um
intelectual que enxergou muito bem um dos principais conflitos neste
novo século foi o escritor Francis Wheen, que afirmou:

A nova batalha será entre o melhor do legado do


Iluminismo (racionalismo, empirismo científico, separação
da Igreja e do Estado) por um lado e, do outro, várias
formas de obscurantismo e relativismo destituído de
valores, frequentemente mascarado como ‘anti-
imperialismo’ ou ‘antiuniversalismo’ - para dar um verniz
atraente radical a atitudes profundamente reacionárias28.

Assim sendo, não tem sentido adotar aquela posição comodista que
considera críticas determinadas ideias que servem de propaganda para
fundamentalismos ou dogmatismos, mesmo que elas sejam
extremamente ácidas em relação ao capitalismo, que é exorcizado como
o demônio do nosso tempo. Críticas essas, por sinal, que estão mais
para o “falar mal” de algo e nunca para a análise de seus fundamentos e
limites; que, no fundo, constituem tão somente impropérios a respeito
do capitalismo, da globalização e até mesmo da democracia.
Em segundo lugar, temos que levar em conta que a geografia é ou
pretende ser uma ciência. O que Kant almejava com a sua crítica como
prolongamento do iluminismo era exatamente libertar a humanidade

28
WHEEN, F. Answer to the question: Left and right defined the 20th century. What's next?,
in Prospect, march 2007, http://www.prospect-magazine.co.uk/article_details.php?id=8342,
capturado em março de 2007.

119
José William Vesentini

das amarras dos dogmatismos e dos autoritarismos, da escuridão enfim.


Essa iluminação através da razão seria comandada pela ciência
moderna. O escopo da ciência – ou melhor, das ciências, no plural, para
evitarmos o mito de um método único para todos os aspectos do real –
é desenvolver ou dilatar o conhecimento humano sobre a realidade em
todas as suas dimensões. Um conhecimento que, não raro, serve para
ampliar nosso controle sobre a natureza, tanto a interna (nosso corpo e
mente) como a externa (através da redução das distâncias, da ampliação
da oferta de alimentos, ou mesmo de novas substâncias, da produção de
máquinas e até de armamentos etc.).
Sem dúvida, esse controle hoje, ao contrário dos séculos XVIII e XIX,
é tido como problemático. Sabemos que muitas vezes ele gera
consequências nocivas para determinados ecossistemas e grupos
humanos ou, em alguns casos, até mesmo para a biosfera e para a
humanidade como um todo. Contudo, bem ou mal, ele sempre foi e
continua sendo o motor que impulsiona o chamado desenvolvimento,
inclusive nas suas possíveis formas sustentáveis. Mesmo que
critiquemos o conhecimento científico – algo que, como vimos, faz
parte do seu próprio modo de ser, no qual a crítica é necessária para
suas correções e rearranjos. Mesmo que deneguemos essa excrescência
da ciência moderna, o cientificismo, que advoga uma absurda atitude
arrogante e imperialista frente às demais formas de conhecimento –
desde o artístico ao filosófico, passando pelos diversos sensos comuns,
pela experiência de vida das comunidades tradicionais e dos povos
ditos selvagens etc. Mesmo assim, os cânones do conhecimento
científico continuam sendo a melhor maneira de superar o relativismo
puro e simples e avançar nessa problemática do que é uma atitude
crítica hoje.
Um dos grandes méritos da ciência ou das ciências é admitir que suas
verdades, embora frequentemente úteis e eficazes, sempre são
provisórias e sujeitas a correções ou superações. O conhecimento
científico não procura nem aceita o Absoluto. Ele relativiza os
conceitos e teorias, embora não no sentido do relativismo ingênuo, ou
puro e simples, na qual tudo é igual e, portanto, não existe qualquer
hierarquia e tampouco nenhuma forma de aprimoramento ou avanço

120
Ensaios de geografia crítica

gradativo do conhecimento. A ciência relativiza os conceitos e teorias –


e até mesmo os objetos – ao considerá-los como verdades provisórias e
sempre sujeitas a testes, a confrontos com a realidade e com outras
explicações, mas cujo sentido, mesmo havendo encontros e
desencontros, avanços e possíveis recuos, sem dúvida que tem um
norte, que é um crescente acúmulo de informações cada vez mais
eficazes no sentido de compreender (e agir sobre) o mundo, o real em
todos os seus aspectos.
É justamente aqui que encontramos a via que nos permitirá reconhecer
a criticidade numa teoria, num discurso: a sua relatividade em termos
de contextualização e significado para o universo do qual faz parte.
Não existem ideias ou teorias críticas em si. Elas só o são em função
do papel que desempenham no seu contexto, razão pela qual podem ser
críticas numa época, num momento e num lugar determinados – por
exemplo, o marxismo na Europa Ocidental do século XIX –, e também
podem ser completamente acríticas em outra época ou lugar, tal como
ocorre, como já mencionamos, com o marxismo em praticamente todo
o mundo nos dias de hoje.
Voltando, agora, para a seara da geografia, podemos seguir com a
inquietação de Blomley. Sem dúvida que existe certa verdade na
afirmação que há diferentes vertentes autodenominadas críticas na
geografia (como na ciência social e na filosofia em geral) e que talvez o
melhor seja deixar de lado esse adjetivo, pois, afinal de contas, já não
teria ele cumprido o seu papel? (Que foi o de servir de bandeira de luta
contra a geografia tradicional, que praticamente não existe mais ou,
pelo menos, já não conta com teóricos que a defendam).
Mas, por outro lado, cabe uma indagação. Como os geógrafos ditos
críticos vêm enfrentando esse problema da crítica? Uma parte deles,
felizmente minoritária (talvez não na América Latina), continua a agir e
escrever como se nada de importante tivesse ocorrido nos últimos anos
e décadas, como se vivêssemos ainda uma luta entre “esquerda” (os
adeptos do socialismo e críticos do capitalismo) e “direita” (os adeptos
do capitalismo, que seriam por definição conservadores e inimigos do
pensamento crítico). Crítica aqui é entendida como “falar mal” dos
demônios do nosso tempo: o capitalismo, naturalmente, junto com a

121
José William Vesentini

globalização vista como neoliberal, a democracia “burguesa” e a


imprensa livre (principalmente quando esta desanca regimes
autoritários e populistas “de esquerda”, quando denuncia os abusos dos
direitos humanos em Cuba etc.). São produzidos panfletos – ou estudos
pouco fundamentados, onde o objeto criticado sequer é compreendido
de fato –, nos quais, via de regra, existe uma interpretação paranóica ou
conspiracionista da história: foi a CIA quem promoveu os atentados de
11 de setembro de 2001, com vistas a obter apoio para as invasões do
Afeganistão e do Iraque; as cobranças de organizações internacionais,
especialmente o Banco Mundial, com a qualidade do sistema escolar, é
apenas parte de um projeto neoliberal com vistas a privatizar o nosso
ensino público; as preocupações com os desmatamentos na Amazônia
são meramente uma faceta do imperialismo que objetiva
internacionalizar aquela região (o que significaria deixá-la aos cuidados
dos países ricos, principalmente dos Estados Unidos); as denúncias de
presos políticos em Cuba ou da pobreza e do autoritarismo na Coréia
do Norte ou na Venezuela, no fundo, fazem o jogo do imperialismo
norte-americano, que almeja derrubar aqueles regimes revolucionários
etc. Para essa vertente, o pluralismo é um mal, o marxismo (entendido
como se fosse algo unívoco) é o único “método” científico válido, as
citações de algum autor (seja do próprio Marx ou, mais
frequentemente, de algum marxista posterior) substituem as análises ou
até mesmo o raciocínio, não existiria nenhum aspecto positivo na
globalização e nas novas tecnologias, mas tão somente uma constante
ampliação das desigualdades sociais e espaciais, e por aí afora.
Contudo, sem dúvida que existem sérias tentativas de renovar dentro
das geografias críticas, que não são meramente panfletárias e
comodistas, que procuram enfrentar os desafios de uma nova realidade,
inclusive aquele da crise do marxismo e da absoluta incapacidade de
grande parte das geografias críticas, e principalmente das radicais, em
incorporar essa questão até os primórdios dos anos 1990. Nem todos os
geógrafos ditos críticos são dogmáticos e meramente reproduzem
estereótipos. Existe uma vertente crítica na boa acepção do termo, que
procura realizar uma análise crítica tanto do capitalismo como também
– ou talvez mais ainda – do socialismo real, que buscou e busca
subsídios não apenas no marxismo (embora também criticado pelo

122
Ensaios de geografia crítica

reducionismo econômico e, principalmente, pela valorização do tempo


em detrimento do espaço), mas notadamente nos anarquismos
(especialmente de Réclus e Kropotkin), em Foucault e na pós-
modernidade. Mencionando apenas um exemplo entre muitos, uma
expressiva parte dos geógrafos autointitulados críticos, ao constatar as
radicais mudanças no capitalismo e o final do socialismo real, vem
procurando, nos últimos anos, renovar as suas teorias, com o uso de
conceitos ou ideias da teoria crítica, isto é, da Escola de Frankfurt, em
especial as de Habermas. Um dos expoentes dessa vertente, ao procurar
superar a “geografia radical” e construir uma “geografia crítica”, assim
se expressou:

As correntes radicais da geografia, em todas as suas


variantes, não apenas procuraram elaborar uma crítica do
positivismo lógico, como também efetuar mudanças
sociais e políticas. Em face do visível êxito do capitalismo
nos anos 1980 e da queda dos regimes comunistas da
Europa durante os anos 90, a geografia radical fracassou
retumbantemente nos seus objetivos práticos. No exame
das razões desse fracasso, devemos reexaminar as cinco
características chaves da teoria crítica de Habermas: as
relações entre teoria e prática, a teoria dos interesses
cognoscitivos, a teoria da competência comunicativa, o
interesse pela emancipação e a prática da autorreflexão [...]
O trabalho da geografia crítica consiste em exprimir as
desigualdades e convencer as pessoas do poder sobre suas
prováveis repercussões, além de participar ativamente na
criação de novas formas de organização social e
econômicas. Em poucas palavras, devemos reconhecer o
mal-estar de nossa sociedade, adotar uma postura
autorreflexiva frente a ela e atuar como psicanalistas da
situação da qual fazemos parte29.

Notamos um grande avanço nessa proposta que, como havia assinalado


Blomley, significa a passagem de uma geografia radical para uma
geografia crítica, pois crítica não se identifica com – embora

29
UNWIN, Tim. The place of Geography. London, Longman Group, 1992, p. 250-3.

123
José William Vesentini

pressuponha – um mero engajamento. O engajamento com os


problemas sociais e territoriais, inclusive os ambientais, foi a grande
bandeira de luta dos radicais anglo-saxônicos contra a geografia que
predominava na sua realidade até o final dos anos 1960: a geografia
pragmática ou quantitativa, voltada para planejamentos e
aparentemente “técnica” ou “neutra”. Ele teve o seu papel positivo.
Mas o mundo mudou, os problemas se modificaram – alguns se
ampliaram, outros se contraíram, outros novos surgiram e outros ainda
adquiriram distintas facetas – e o simples engajamento, embora
necessário, se tornou problemático (engajamento, por sinal, que de
forma visível hoje pode denotar uma atitude intransigente,
antidemocrática ou até terrorista, principalmente quando tido como
“radical”30).
Não existe engajamento apenas por um “outro mundo” ou um “mundo
melhor”. Afinal de contas, o que quer dizer “melhor”? Sem dúvida, é
algo que pode ser defendido com convicção até mesmo por neonazistas,
maoístas, bolivaristas e vários outros tipos político-ideológicos com
viés autoritário. Assim, os termos radical e crítica não se identificam
completamente. Eles podem se sobrepor em algumas ocasiões, mas, em
geral, apontam para atitudes diferentes. Voltando à proposta de Unwin,
observamos que, nela, o papel do geógrafo crítico não é o de
meramente ser um terrorista intelectual ou um incendiário – isto é, um
engajado de forma radical – e, sim, um “psicanalista” que detecta
problemas e, ao mesmo tempo, potenciais. Como se sabe, o psicanalista
30
O termo radical, ao contrário de crítica, não possui uma rica tradição filosófica e
epistemológica. Na verdade, ele veio do latim (radic = raiz) e, deixando de lado o seu uso na
matemática, na química, na linguística etc., ele tem dois significados principais. Primeiro,
denota uma atitude intransigente, inflexível, sem um verdadeiro diálogo com os outros.
Segundo, e de acordo com a sua origem etimológica, significa ir às origens ou à raiz das coisas.
É amplamente conhecida a frase tautológica de Marx segundo a qual “a raiz do Homem é o
próprio Homem”, ou melhor, as suas relações no mundo do trabalho. O problema é que os
dois significados frequentemente se misturam – inclusive em Marx, famoso pela sua
arrogante intransigência frente a qualquer ideia que não as suas (inclusive dos socialistas
utópicos, anarquistas etc.) – e, ademais, a “raiz” das coisas, exceto das árvores, é algo
extremamente problemático: para os geneticistas a raiz de um indivíduo está na sua herança
genética; para determinados antropólogos e também num outro plano, para os psicanalistas,
a raiz de uma sociedade está nos seus mitos e valores; para os ecologistas, está nas relações
com a natureza; e assim por diante.

124
Ensaios de geografia crítica

não destrói a personalidade que analisa e, sim, a reconstrói, a ajuda no


seu encontro, na superação dos seus problemas e fobias. A esse
respeito, alguns diriam, citando Gramsci, que para o novo nascer o
velho tem que morrer. Talvez sim, mas somente num sentido
metafórico. Pois o novo sempre significa certo prolongamento, com
determinadas nuanças, do velho. Não se trata do nascimento de um
indivíduo que vai – depois de várias décadas – substituir outro que
envelhece e morre. Essa visão organicista é equivocada na medida em
que é a mesma sociedade, embora transformada, que perdura. Ela pode
mudar sua estrutura produtiva, revolucionar seus valores, melhorar
substancialmente a qualidade de vida de seus membros. Mas sempre
haverá certa continuidade, uma herança que permanece. O velho,
portanto, nunca morre totalmente. É por isso que ainda hoje somos
herdeiros dos egípcios, dos gregos e dos romanos da antiguidade31, dos
iluministas do século XVIII ou dos socialistas, no plural, do século
XIX.
Quanto a Unwin, a filiação desse geógrafo à teoria crítica na sua versão
habermaniana pressupõe uma aversão ao tradicional dogmatismo do
marxismo-leninismo e, principalmente, uma aceitação da democracia,
que, ao invés de ser combatida, deve ser preservada e inclusive
expandida. Mesmo sem concordarmos inteiramente com a posição de
Unwin (deixando de lado, por ora, o porque disso), cabe elogiar o
avanço teórico e político contido na sua proposta (como também na de
Blomley e outros) de uma transição da geografia radical para uma
geografia crítica pós-marxista aberta e plural.

31
FREUD, S. (Moisés e o monoteísmo. São Paulo, Imago, 1997), por exemplo, analisou com
argúcia como o egípcio Moisés propagou uma religião monoteísta cujos mitos até hoje
influenciam uma grande parte do mundo. Quanto à importância da filosofia – e das artes –
grega ou do direito romano para a nossa vida atual, creio que é desnecessário insistir nesse
item.

125
José William Vesentini

126
Geografia crítica no Brasil:
uma interpretação depoente*

O advento e a expansão da geocrítica no Brasil


Existe um mito que, neste ensaio, procuramos questionar, o de que a
geografia crítica no Brasil se iniciou com o Encontro da AGB
(Associação dos Geógrafos Brasileiros) realizado em 1978 em
Fortaleza. A nosso ver, existe aí uma supervalorização dessa associação
e uma completa desconsideração dos professores de geografia que,
muito antes desse evento e à revelia da AGB, combatiam a ditadura
militar e implementavam um ensino crítico da disciplina. Este texto tem
o caráter de um depoimento pessoal na medida em que foi elaborado a
partir da memória de quem viveu esse período e tem uma visão
diferente daquela que, pelo menos nos meios acadêmicos, se tornou
hegemônica.
Em primeiro lugar, surge uma dúvida: do que estamos falando de fato?
O que é uma geografia crítica? Assim, para discorrermos sobre o
itinerário da geografia crítica no Brasil, temos obrigatoriamente que
definir do que estamos falando e quando esse fenômeno se iniciou.
Alguns identificam geocrítica tão somente com um discurso geográfico
não mnemônico que procura explicar ao invés de descrever. Já li uma
dissertação de mestrado, por sinal premiada, que reproduz esse viés
superficial e equivocado. Ora, se isso fosse verdade, existiria uma
geografia crítica no país desde os anos 1910 (com as obras de Delgado

*
Texto elaborado em outubro de 2001 para integrar nosso site na net:
www.geocrítica.com.br. Fizemos ligeiras alterações na redação para o incluir nesta coletânea.

127
José William Vesentini

de Carvalho) ou, pelo menos, a partir da década de 1950 (com os


estudos de Pierre Monbeig). Mas essa é uma visão ingênua, que
estereotipa a geografia tradicional, não vê as suas diversas nuances e os
seus trabalhos mais ricos e profícuos. E também não compreende a
verdadeira reviravolta operada pelas geografias críticas, no plural, que
não apenas procuram explicar as relações sociedade/natureza (não
confundir com a “adaptação do Homem ao meio”, algo que a geografia
tradicional algumas vezes fazia muito bem) e as relações de poder no
espaço, como, principalmente, buscam atuar no mundo, desenvolver o
espírito crítico do educando, engajar-se nas questões e lutas sociais (das
mulheres, dos moradores, dos ambientalistas, enfim dos que pleiteiam
uma sociedade democrática e tolerante, dos que contribuem para
engendrar uma realidade mais justa).
Não se pode dissociar o advento das geografias críticas da reação ou do
posicionamento crítico dos geógrafos frente a dois processos ou marcos
fundamentais para a história do pensamento geográfico na segunda
metade do século XX: os movimentos sociais contestatórios dos anos
1960 e 1970 (contracultura, lutas pelos direitos civis e sociais, reação à
guerra do Vietnã, movimento feminista, maio de 1968 etc.) e a falácia
da razão instrumental ou, mais especificamente – em nossa disciplina –,
da geografia pragmática e voltada para o planejamento. A geografia
crítica, no final das contas, foi aquela – ou, mais propriamente, aquelas,
no plural – que não apenas procurou superar tanto a geografia
tradicional quanto a quantitativa, como principalmente procurou se
envolver com novos sujeitos, buscou se identificar com a sociedade
civil, tentou se dissociar do Estado (esse sujeito privilegiado naquelas
duas modalidades anteriores de geografia, a tradicional e a pragmática)
e se engajar enquanto saber crítico – isto é, aquele que analisa,
compreende, aponta as contradições e os limites, busca contribuir par
um projeto de autonomia – nas reivindicações dos oprimidos, das
mulheres, dos indígenas, dos afro-descendentes e de todas as demais
etnias subjugadas, dos excluídos, dos dominados, dos que ensejam criar
algo novo, dos cidadãos em geral, na invenção de novos direitos.
Os primórdios da geografia crítica no Brasil, a nosso ver, enraizaram-se
em dois elementos principais. Primeiro, a influência e os subsídios

128
Ensaios de geografia crítica

oriundos do Primeiro Mundo e, em especial, da França – o nosso


grande farol até inícios dos anos 1980. Segundo, e principalmente, a
luta contra a ditadura militar e, ao mesmo tempo, contra o projeto de
capitalismo dependente e associado, contra a ideologia da guerra fria e
os seus tristes reflexos na repressão policial, nas torturas, no
cerceamento do pensamento crítico etc.
Ao contrário do que se pensa (se é que quem crê nisso pensa!), a
geografia crítica no Brasil – como também na França, segundo o
depoimento de Yves Lacoste1 – não se iniciou nem se desenvolveu
inicialmente nos estudos ou teses universitários. Tampouco no IBGE e
muito menos nas análises ambientais ou nas de planejamento. Ela se
desenvolveu, a partir em especial nos anos 1970, nas escolas de nível
fundamental (de 5a à 8a séries) e principalmente no ensino médio, o
antigo colegial ou 2o grau. E também, cabe reconhecer, em alguns
pouquíssimos cursinhos pré-vestibulares que, até inícios dos anos 1970,
tinham um perfil bem diferente daquele que é praticamente exclusivo
hoje. Ao invés de serem fábricas que apenas massificam os alunos e
visam lucros, eram, em alguns poucos casos, redutos de leituras e
discussões de obras críticas. Eram espaços de contestação e livre
discussão – inclusive de filmes por vezes censurados, venda de jornais
alternativos, peças teatrais que alguns grupos apresentavam
especialmente para os professores e alunos etc. Eu mesmo tive o
privilégio de discutir em seminários num cursinho, em 1969, obras
como Geografia do Subdesenvolvimento (de Yves Lacoste), Panorama
do mundo atual (Pierre George), Capitalismo e subdesenvolvimento na
América Latina (Gunder Frank), Formação do Brasil contemporâneo
(Caio Prado Jr.), Formação econômica do Brasil (Celso Furtado),
Manifesto do Partido Comunista (Marx e Engels) e outras.
A geocrítica no Brasil, portanto, se iniciou como um esforço, por parte
de alguns docentes, em superar (o que não significa abandonar
totalmente) a sua tradição, a sua formação universitária, aquilo que as
universidades diziam que “deveria ser ensinado”. Esses professores de
geografia procuravam suscitar nos seus alunos a compreensão do

1
Cf. o texto desse autor – “O ensino da geografia” –, disponível na rede in:
http://www.geocritica.hpg.com.br/geocritica04.htm

129
José William Vesentini

subdesenvolvimento (a importância, nos anos 1970, do livro Geografia


do subdesenvolvimento de Yves Lacoste foi enorme, embora esse tema
incorporasse também outros autores e obras significativos da época:
Paul Baran e Paul Sweezy, Harry Magdoff, Teotônio dos Santos, Rui
Mauro Marini, André Gunder Frank etc.), ligando esse tema com o
sistema capitalista mundial e as suas áreas centrais e periféricas. Eles
procuraram também enfatizar a questão agrária do Brasil, a questão da
distribuição social da renda (um tema recorrente no nosso pensamento
crítico desde os anos 1970), a questão da pobreza e da violência
policial. Eles – esse pequeno grupo de professores do ensino médio,
principalmente, os verdadeiros introdutores da geografia crítica no
Brasil – estavam fazendo tudo isso enquanto os “setores avançados” da
universidade – é evidente que estamos nos referindo aos cursos
superiores de geografia, inclusive na USP – enfatizavam obras/temas
como A organização do espaço, de Jean Labasse, os Pólos de
desenvolvimento, de François Perroux, ou, no máximo, o livro
Geografia ativa, de Pierre George e outros, em suma, temáticas
distantes de qualquer posicionamento crítico e claramente
comprometidas com o planejamento estatal.
Em grande parte, pode-se mesmo afirmar que a introdução da geografia
crítica na academia deveu-se ao “encontro” ou diálogo desses
professores de nível médio (ou de alguns cursinhos pré-vestibulares)
mais engajados e críticos com alguns raros docentes universitários que
também estavam descontentes com toda aquela situação de controle,
repressão e censura que existia na segunda metade dos anos 1960 e nos
anos 70 no Brasil. Só para mencionar um exemplo significativo,
podemos lembrar que, nesse período, sequer se podia falar em
geografia política e muito menos em geografia do subdesenvolvimento
nas universidades. Na própria USP, no Departamento de Geografia
(considerado, com razão, como o “mais avançado” do país nessa época,
o único que não foi subjugado nem pelos cursos de curta duração –
estudos sociais – e muito menos pelo pragmatismo de inspiração norte-
americana que rebaixava, ou melhor, travestia, a nossa disciplina de
uma ciência humana e social para uma geociência), havia uma
disciplina chamada “geografia do mundo tropical”, que ocupava o lugar
do estudo do subdesenvolvimento e procurava “analisar” a realidade da

130
Ensaios de geografia crítica

América Latina, da África e de grande parte da Ásia sob esse parâmetro


alicerçado na “Terra”, isto é, o tropicalismo!
Alguns poucos docentes universitários “abriram as portas” da academia
para esses professores críticos e, com uma boa dose de coragem,
aceitaram orientar (ou melhor, conceder a sua assinatura ou aval, pois
em geral eles dominavam esses novos temas menos que certos
orientandos) a elaboração de dissertações de mestrado ou teses de
doutorado sobre assuntos/objetos que até então eram oficialmente
interditados à pesquisa e ao saber geográficos: a autoajuda dos
moradores de bairros populares, os problemas do desenvolvimento
capitalista no campo, análises críticas da geopolítica brasileira e de seus
projetos, a escola e o ensino da geografia como aparatos ideológicos, a
industrialização e a produção do espaço em alguma região específica, o
espaço geográfico como locus (e instrumento) de lutas sociais, as
desigualdades (e a natureza classista) das formas de apropriação social
do espaço etc. A nosso ver, foi a partir desta confluência – entre uma
meia dúzia (se tanto) de docentes universitários com doutorado e um
punhado de (ex-)professores do ensino médio que já estavam
revolucionando há anos esse saber nas salas de aula – que surgiu
oficialmente, enquanto legitimação pela academia, a geografia crítica
no Brasil.

A geografia acadêmica e a AGB


A influência de Gramsci, direta ou indireta, foi notável nessa referida
confluência que oficializou, via academia, a geocrítica no Brasil. O
conceito gramsciano de hegemonia com base cultural foi o leitmotiv
que conduziu esses professores críticos até a pós-graduação, até as
pesquisas e a carreira universitária. É lógico que não foram todos os
professores críticos de geografia que caminharam até a universidade
nos anos 1970 ou inícios dos anos 80. Alguns desses professores foram
presos, torturados e até assassinados nos porões da ditadura. Outros se
engajaram em movimentos de “guerrilha” urbana ou rural. Outros,
ainda, “sumiram” dos grandes centros urbanos, como São Paulo, onde a
repressão policial era mais acirrada e constante, indo trabalhar em

131
José William Vesentini

regiões distantes de onde eram conhecidos, muitas vezes em pequenos


centros urbanos do interior (ou do litoral), temerosos e, ao mesmo
tempo, relativamente desiludidos pelo desmantelamento dos grupelhos
autointitulados revolucionários. Mas uma parcela deles fez esse
referido percurso, procurando gramscianamente “tomar a
universidade”, local a partir do qual teriam uma maior influência
cultural e, consequentemente, política. Foram eles que produziram as
primeiras obras – as primeiras teses ou dissertações, as primeiras
pesquisas acadêmicas –, aquelas que ficaram, em muitos casos sendo
publicadas total ou parcialmente, as quais estão disponíveis em certos
arquivos e bibliotecas e, dessa forma, servem de marco como os albores
(pelo menos no sentido documental) da geocrítica no Brasil. Essa foi a
primeira geração dos geógrafos críticos no Brasil. Convém reiterar,
para evitar mal-entendidos, que estamos nos referindo à geocrítica no
sentido dado a partir dos anos 1970 por Yves Lacoste e outros, na qual
evidentemente existem altos e baixos, trabalhos de excelente nível e
outros nem tanto. Não devemos ser maniqueístas. Não existem apenas
boas pesquisas e ótimos textos nesta nova modalidade de geografia;
pelo contrário, alguns são dogmáticos e até panfletários! Por outro lado,
malgrado a predominância do mnemônico e dos assuntos tratados de
forma compartimentada, existiram excelentes trabalhos na chamada
geografia tradicional, por exemplo os de Pierre Monbeig.
Foi a geração que produziu trabalhos pioneiros de pesquisas e/ou
reflexões críticas acadêmicas nos anos 1970 (principalmente no final
dessa década) e nos anos 1980. Depois dela, veio a segunda geração,
aquela dos anos 1990 e desta primeira década do século XXI, a qual,
em grande parte, é constituída por ex-alunos ou orientandos dessa
primeira geração (com a qual convive). Talvez a principal diferença
entre elas seja que a primeira geração era, pelo menos até o final dos
anos 80, essencialmente gramsciana no sentido de acreditar que estava
promovendo uma revolução (anticapitalista e igualitária) na geografia e
na universidade. A segunda geração, por sua vez (é lógico que toda
regra admite exceções e que existem interpenetrações ou
sobreposições), preocupa-se muito mais com o método, com novos
enfoques para analisar o “espaço”, com o prestígio científico ou social.
Mas essas diferenças são, antes de mais nada, relativas e, desde o

132
Ensaios de geografia crítica

início, já havia determinadas ambiguidades ou aporias nas geografias


críticas tanto no Brasil como no exterior2.
Afirma-se, comumente, que o Encontro de 1978 da AGB teria sido o
marco fundamental da introdução da geocrítica no Brasil. Sem
nenhuma intenção de desmerecer esse importante Encontro, que
ocorreu em Fortaleza e teve inúmeros méritos, acreditamos que essa
interpretação é exagerada e mitificadora. É uma espécie de “discurso
dos vencedores”, isto é, propagado por um punhado de geógrafos, na
época estudantes (de graduação ou de pós-graduação) ou professores
universitários sem grande prestígio (mas com potencial) e
dominados/subordinados institucionalmente pelos medalhões, que
contestaram a supremacia destes e democratizaram a AGB. Este foi,
afinal, o grande significado desse encontro: uma democratização,
mesmo que relativa (como toda democratização afinal, pois a
democracia não é uma forma acabada e permanente e, sim, um
processo de (re)invenção de direitos e que se expande continuamente),
da AGB no nível nacional. A partir daí, deixaram de existir duas
categorias de sócios na AGB nacional: os plenos, os professores
universitários, que podiam ser membros da diretoria; e os demais, que
pagavam suas anuidades mas não podiam concorrer aos cargos
decisórios. A partir desse evento, todos, pelo menos em tese, podiam
votar e ser votados, se inscrevendo na época apropriada – a cada dois
anos – para concorrer aos cargos diretivos dessa associação.
É lógico que esse punhado de “contestadores” (como foram chamados
na ocasião) acabou por dominar a AGB nacional – e talvez até eles
tenham se tornado nos “novos mandarins” – daí a expressão que
empregamos, “discurso dos vencedores”. Mas também o tema
engajamento social, a favor dos explorados/dominados, foi apregoado,
pela primeira vez num Encontro nacional da AGB, tendo como base
(ou como uma espécie de “aval”, pois era uma obra oriunda da França)
o livrete de Yves Lacoste, A Geografia – isso serve, em primeiro lugar,

2
Cf. VESENTINI, J. W. Percalços da geografia crítica: entre a crise do marxismo e o mito do
o
conhecimento científico, publicado nos Anais do 5 Congresso Brasileiro de Geógrafos (São
Paulo, julho de 1984, v. 2, p. 423-33).

133
José William Vesentini

para fazer a guerra3. Mas, a partir dessa democratização da AGB


nacional (pois a AGB-SP, a seção regional de São Paulo da associação,
já havia sido democratizada dois anos antes, desde 1976, e inclusive foi
dela que surgiu a “edição pirata” dessa obra de Lacoste), não se pode
falar em “introdução da geografia crítica no Brasil”, como muitos
fazem. Isso consiste numa espécie de história institucional, algo que
lembra muito os historiadores tradicionais, que denegam as lutas
populares e só promovem as mudanças nas instituições oficiais, além
de desqualificar toda uma ação anterior de centenas de professores de
geografia, alguns dos quais pagaram caro por essa ousadia de
revolucionar o conteúdo geográfico (e a prática pedagógica) nas salas
de aula.
Por outro lado, não se pode exagerar a importância – que todavia existe
– ou a difusão da AGB. Provavelmente, no mínimo 80% do
professorado de geografia do país, a imensa maioria dos geógrafos
portanto (pois o ensino sempre foi e ainda é o grande mercado de
trabalho para os formados em geografia), até hoje nunca sequer ouviu
falar dessa associação4. (Imagine-se, então, em 1978, quando a AGB
era bem mais elitizada!). Apesar de uma louvável (e relativa)
democratização a partir de 1976-78, a AGB ainda prossegue como um
reduto de alguns professores universitários, principalmente dos mais
3
A primeira edição dessa obra, em francês, deu-se em 1976 (e logo surgiu uma tradução
portuguesa, que foi xerocada em São Paulo e originou uma “edição pirata” brasileira, com
milhares de exemplares que, em grande parte, foram vendidos em Fortaleza durante o
Encontro de 1978). Uma edição mais recente, traduzida de uma nova versão ampliada escrita
pelo autor, foi publicada em 1988 pela editora Papirus, de Campinas. Nesta, existe uma
introdução de nossa autoria que realiza uma espécie de “balanço” a respeito do significado
dessa obra na geografia brasileira.
4
Utilizo esse número (e esse raciocínio) com base em pesquisas feitas em 1995-6 por alunos
do meu curso, Geografia crítica e Ensino, nas antigas Delegacias Regionais de Ensino da
Grande São Paulo, quando constatamos que 54% dos professores de geografia na rede pública
a a
(de 5 a 8 séries e no ensino médio) não são formados nesta disciplina, sendo estudantes
(principalmente de história, ciências sociais ou geografia) ou engenheiros, advogados,
teólogos ou seminaristas, historiadores ou sociólogos etc. A única referência que grande parte
desse pessoal possui, sobre as mudanças na geografia, é a que está contida nos (poucos) bons
livros didáticos, que algumas vezes eles usam para preparar suas aulas (mas não como livro-
texto dos alunos, que no máximo possuem um caderno). Se essa é a realidade da Grande São
Paulo, o centro dinâmico da economia nacional, imagine-se então a situação mediana no
restante do país!

134
Ensaios de geografia crítica

jovens (doutores) e não mais apenas dos “figurões” (catedráticos) como


era anteriormente, e pouco tem a ver com a realidade da geografia que
predomina no Brasil e no mundo (e que contém o futuro desta
disciplina), que é a geografia escolar no ensino fundamental e médio.
Não se trata de uma apreciação destrutiva e, sim, de uma mera
constatação, ou, se preferirem, uma autocrítica construtiva no sentido
de se identificar com essa associação e se preocupar com suas
insuficiências. Para sermos sinceros (e autocríticos), temos que aceitar
que a AGB tem uma escassa representatividade entre os próprios
geógrafos – cabe lembrar que o professor de geografia também é um
geógrafo, apesar de sofrer preconceitos por parte dos “técnicos”.
Ademais, apesar de ela ter se tornado mais aberta a partir dos anos
1980, continua não sendo uma instituição de fato democrática. Creio
ser desnecessário lembrar que em seus encontros e congressos –
principalmente na escala nacional, pois existe muito mais abertura em
algumas AGBs locais –, via de regra, existe um verdadeiro
“pensamento único”, com mesas-redondas nas quais, praticamente,
todos têm a mesma ideologia (só existem briguinhas por motivos
pessoais), com os mesmíssimos convidados a cada novo evento para
exporem suas surradas ideias, com uma completa ausência de “outras
falas” em palestras ou mesas-redondas que abordam temas
considerados “quentes”, tais como a reforma agrária e as
transformações no campo, as novas tendências da geografia (aqui
somente os marxistas-leninistas dogmáticos são convidados),
geopolítica, globalização etc. Alguns dizem, sem pejo, que isso é
absolutamente “normal”, pois os “revolucionários” chegaram ao poder
na AGB, o que, com isso, está impedindo que os “reacionários” tenham
voz. Afora a absoluta ausência de um espírito democrático e mesmo
crítico nesse posicionamento (no sentido de crítica como troca de
opiniões, como crescimento mútuo a partir de várias alternativas), não
são apenas os “reacionários” ou os tradicionalistas que são reprimidos.
Até mesmo os pontos de vista libertários são desestimulados a
participar. Toda instituição democrática – vide, por exemplo, os
Encontros da ANPOCS, nas quais sempre há diferentes pontos de vista
sobre temas considerados “quentes” ou controversos –, principalmente
as culturais e acadêmicas, deve ser pluralista e aberta às diferentes

135
José William Vesentini

interpretações. Rosa Luxemburgo, criticando os bolchevistas em 1918,


afirmou com propriedade que “a liberdade de quem pensa igual não é
liberdade. A verdadeira liberdade é para os que pensam de forma
diferente”. Existe, assim, um bolchevismo hegemônico na AGB, pelo
menos em grande parte de sua direção nacional.
É lógico que existem inúmeras razões que justificam (embora não
legitimem) essa elitização da AGB. Estamos falando agora da
elitização, de sua pouca representatividade, pois nada justifica o
bolchevismo em pleno século XXI. Primeiro, existe a necessidade de
suporte das universidades para que as AGBs locais – que, afinal, são a
base da nacional – possam existir: elas, em geral, inclusive a de São
Paulo, na qual a nacional está ancorada, mal conseguem pagar sozinhas
a conta do telefone ou do provedor da internet (imagine-se, então, o
aluguel de alguma sala); e tanto os diretores quanto os funcionários são
professores ou estudantes que realizam voluntaria e gratuitamente essas
tarefas. Temos, aliás, que elogiar o trabalho voluntário e gratuito de
todos os que contribuem para manter essa associação, que sem eles
deixaria de existir. Mas não há porque esconder que a maioria dos
estudantes que colabora acaba sendo manipulada, é apenas mão-de-
obra barata para que alguns poucos professores universitários
prossigam com sua doutrinação marxista-leninista. Depois, há o
excesso de trabalho e os baixíssimos salários percebidos pelos
professores do ensino fundamental e médio no Brasil, os quais, por esse
motivo, não têm tempo nem o mínimo de recursos financeiros
necessários para pagar as anuidades e frequentar assiduamente as
assembléias e os encontros da AGB. Mas esses fatores atenuantes, se
em parte justificam o elitismo (isto é a AGB como reduto de alguns
poucos professores universitários e, no fundo, uma instituição
desconhecida pela imensa maioria dos geógrafos), de maneira alguma
justificam o bolchevismo, principalmente após a crise do marxismo e
do socialismo real, após a constatação da total ausência de democracia
– ou mesmo de qualquer eficácia econômica sob o ponto de vista do
bem-estar da imensa maioria da população – nesses países que
seguiram os ensinamentos do marxismo-leninismo. Ademais, confundir
a AGB com a geografia do Brasil, como fazem aqueles que divulgam a
ideia de que o Encontro de Fortaleza teria sido o “deflagrador” da

136
Ensaios de geografia crítica

geografia crítica no país, é não enxergar a realidade, é confundir o todo


com uma pequena parte.

A geografia educativa
Já vimos que foi a partir da atividade educativa que a geocrítica se
iniciou e se desenvolveu no Brasil. Daí, ela se expandiu até a atividade
de pesquisas nas universidades, em especial na pós-graduação. Muitos
cometem o equívoco de identificar a geografia escolar com o conteúdo
dos livros didáticos, o que é um viés unilateral e, portanto, deformador.
Nessa ótica, surgiram determinados trabalhos, principalmente algumas
dissertações de mestrado defendidas nos anos 1990, que afirmaram que
a geografia escolar crítica no Brasil teria nascido ou com o livro
Estudos de Geografia, de Melhem Adas, cuja primeira edição saiu no
final de 1972, introduzindo nos compêndios da disciplina uma vertente
geográfica inspirada em Pierre George, ou com a nossa obra Sociedade
e espaço, originalmente editada em julho de 1982. A nosso ver,
nenhuma dessas opções é a rigor verídica, embora a segunda seria mais
correta se estivéssemos falando tão somente dos manuais escolares e
não da geografia escolar crítica como um todo. O livro didático é
apenas uma parte da geografia escolar; inclusive, nem é a mais
relevante. Ele é mais ou menos importante de acordo com o lugar e a
conjuntura: será fundamental no caso de professores/escolas que o têm
como base única e inquestionável, como uma “muleta” afinal. Mas ele
será pouco importante no caso, mais comum do que se pensa, em que
os professores/escolas os utilizam como ele deve ser utilizado: como
um complemento, como um material didático de apoio ao professor e
não como o definidor de toda a atividade educativa5.
Para mencionar a minha experiência pessoal, pois lecionei geografia
nas escolas fundamentais e médias desde que ingressei no primeiro ano
da graduação, no início de 1970 (a falta de docentes desta disciplina era
e ainda é imensa aqui em São Paulo), portanto, muito antes de publicar
o meu primeiro livro didático, já elaborava textos ou traduzia/adaptava

5
Cf. MOLINA, O. Quem engana quem? Professor versus livro didático. Campinas, Papirus,
1987.

137
José William Vesentini

outros, de autores variados e que em sua maioria sequer eram


mencionados nos departamentos de geografia das universidades:
Lacoste, Kropotkin, Brunhes, Gunder Frank, Magdoff, Sartre, Simone
de Beauvoir, Baran e outros, a respeito do capitalismo e do “socialismo
real”, do sistema capitalista mundial, do movimento feminista e as
conquistas das mulheres no mundo e no Brasil, dos movimentos sociais
urbanos, da geopolítica mundial etc.
Lembro, em especial, de duas experiências marcantes na minha carreira
docente no ensino médio: o COE (Centro de Orientação Educacional,
uma escola particular no bairro da Lapa, São Paulo, que virou uma
cooperativa dirigida pelos próprios professores) e o curso supletivo do
Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema.
Lecionei naquele primeiro colégio, de 1973 até 1977 (tendo como
grande parceiro Gumercindo Milhomem), e no sindicato, de 1974 até
1976 (tendo como grande companheiro “Toninho” Pavanello). No
COE, em primeiro lugar, nós redefinimos todo o conteúdo da geografia
escolar – inicialmente, em 1973, tentamos usar livros didáticos,
especialmente aquele primeiro de Melhem Adas recém-lançado na
época, mas depois concluímos que eles eram inadequados para a nossa
“proposta gramsciana” e passamos a só trabalhar com textos
especialmente elaborados em função da realidade dos alunos e dos
novos temas que abordávamos. Em segundo lugar, também mudamos a
relação professor/aluno e a própria organização espacial da sala de aula.
Abolimos as aulas expositivas e só trabalhávamos com leituras de
textos (alguns com mapas e gráficos, que deviam ser interpretados),
debates, dinâmica de grupos e estudos do meio. Chegamos levar todos
os alunos para uma praia em Cananéia, no litoral de São Paulo, ficando
lá uma semana inteira realizando um estudo de campo interdisciplinar
que envolvia as marés, os recursos naturais e os problemas ambientais
locais, a economia e a população (valores, cultura, demografia) de uma
comunidade de pescadores, além da história oral e documental do
lugar. Orientamos os alunos nos levantamentos sobre mendigos e
população de rua no bairro da Lapa, sobre os problemas ambientais e
de moradia nesse bairro etc. Por sinal, tudo isso incomodava alguns,
que denunciaram o colégio como “subversivo”, e o antigo DOPS, a
polícia política da época, dirigida em São Paulo pelo delegado-

138
Ensaios de geografia crítica

torturador Fleury, duas vezes invadiu o colégio e prendeu para


interrogatório alguns professores (aqueles que, por azar, estavam lá
naquele momento), além de ter roubado equipamentos da nossa gráfica
(nossa aparelhagem para imprimir textos e apostilas, inclusive com
cores). Por iniciativa minha, reorganizamos o espaço das salas de aula:
abolimos o quadro-negro, a mesa do professor e as carteiras individuais
dos alunos e no seu lugar colocamos algumas mesas redondas, para os
alunos ficarem permanentemente em grupos – cada um olhando para os
outros ao invés de todos olharem para o professor ou para o quadro-
negro – e, com frequência, abríamos uma imensa mesa-redonda na sala
para realizar algum debate. Quanto ao Sindicato dos Metalúrgicos,
onde lecionei em cursos supletivos durante cerca de 3 anos para alunos
trabalhadores, também introduzimos textos críticos e novos temas
(inclusive o direito de greve e a luta de classes), mas não mudamos a
organização espacial da sala de aula e nem mesmo a relação
professor/aluno, pois cada classe tinha centenas de estudantes e as aulas
expositivas eram uma imposição. No entanto, fomos advertidos várias
vezes pela direção do sindicato (na época pelega) que deveríamos
“maneirar” nas aulas, pois o pessoal do DOPS havia entrado em
contado com o sindicato, dizendo que receberam algumas denúncias e
poderiam até fechar o curso supletivo. Inclusive, foi esse o motivo da
nossa demissão (minha e do outro colega da área, o Pavanello, que há
alguns anos morreu num acidente de carro) pela diretoria pelega do
sindicato; afinal, não ensinávamos “o que deveria” (isto é, nomes de
rios ou de planaltos) e, sim, outros temas “sociais” que não eram
geográficos! Enfim, concluindo esta “digressão” de natureza pessoal
(recordando que este texto tem um caráter depoente), gostaria de deixar
claro que essas experiências – em especial, os textos que elaborei nesse
período (coloco na primeira pessoa do singular porque tanto o
Gumercindo quanto o Pavanello, dois importantes companheiros nessas
jornadas, não gostavam de redigir textos e, sim, de lecionar; os textos,
principalmente aqueles com os novos temas, eram de minha exclusiva
responsabilidade) – foram a base para a edição posterior dos meus
primeiros livros didáticos, Sociedade e espaço (de 1982) e Brasil,
sociedade e espaço (de 1984), que, não por acaso, são direcionados
para o ensino médio.

139
José William Vesentini

O parágrafo anterior, quase que biográfico, só tem sentido porque


acredito que isso foi o que ocorreu, mutatis mutandis, com dezenas,
talvez centenas de outros professores de geografia pelo Brasil afora,
alguns anteriormente, desde o final dos anos 1960. Ouvi falar sobre
experiências similares, talvez até mais férteis, aqui em São Paulo
(inclusive em alguns raríssimos cursinhos pré-vestibulares), em Santo
André, no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte e em outras cidades. Não
posso escrever a respeito delas por falta de material de apoio. Mas
acredito que foram experiências desse tipo que, no final das contas,
deram início à geografia crítica no Brasil. Mesmo porque, quando
examinamos a história de vida de muitos dos que produziram no final
dos anos 1970 e nos anos 1980 as obras pioneiras da geocrítica
brasileira, logo percebemos que, via de regra, eles começaram como
professores no ensino médio (ou em cursinhos) e, antes mesmo de
ingressarem na pós-graduação ou na carreira universitária, já
elaboravam textos e abordavam em suas aulas determinados temas que
eram considerados “não-geográficos”.
Quanto aos compêndios escolares, reitero o que já afirmei: que eles não
têm tanta importância assim (inclusive é no seu uso pelos professores
na sala de aula que eles adquirem tal ou qual característica) e que a
incorporação por alguns deles, nos anos 1970, das ideias georgeanas
(isto é, de Pierre George e a sua “geografia ativa”) não significou de
maneira nenhuma uma reviravolta crítica. Foi somente uma renovação
dentro do tradicional, na qual houve a abertura para alguns poucos
novos temas – o planejamento, a conservação dos recursos naturais e o
subdesenvolvimento entendido enquanto um rol de “características” –,
mas que eram assuntos e abordagens ainda não críticos e
comprometidos com o Estado enquanto sujeito, além de reproduzirem
uma visão idílica de sociedade – uma comunidade nacional sem
contradições – típica da geografia chauvinista. Algo, portanto, muito
distante daquilo que, desde o início, foi essencial na geocrítica, ou seja,
a crítica do capitalismo e do socialismo real, a compreensão do
subdesenvolvimento como parte periférica e integrante do sistema
capitalista mundial, a incorporação crítica da geopolítica, a questão
ambiental (e não meramente a “conservação dos recursos naturais”), o
distanciamento relativo frente ao Estado e, principalmente, uma

140
Ensaios de geografia crítica

abertura para as contradições e para os sujeitos sociais (desde o


proletariado até as mulheres, passando pelos moradores, consumidores,
etnias subjugadas etc.) e as suas lutas.

As publicações e a difusão na mídia


A expansão da geocrítica no Brasil também ocorreu no plano das
publicações (revistas acadêmicas e em especial livros) e, pelo menos
em parte, na difusão pela mídia – rádio, televisão, revistas para o
grande público e jornais. Houve um sensível aumento – embora ainda
insuficiente quando comparado à história ou às demais ciências sociais
– nas publicações geográficas não didáticas. No caso das obras
didáticas, ocorreu, a partir do final dos anos 1980, uma progressiva
mudança, com praticamente todos os autores tradicionais passando a
incorporar – algumas vezes de forma indevida e tão somente mecânica
ou imitativa – parte dos conteúdos críticos. Sem dúvida que houve
neste setor um avanço inegável. Mas, coincidentemente ou não, a
vendagem dessas obras no conjunto vem diminuindo bastante e
constantemente com o decorrer dos anos. Isso porque, no tocante às
escolas públicas, verificou-se uma perda de poder aquisitivo das
famílias de baixas rendas, o que implicou num sacrifício do compêndio
escolar – de todas as disciplinas e, em particular, das estereotipadas
como “menos importantes”. Por outro lado, no que se refere às escolas
particulares, tornou-se cada vez mais comum o uso de apostilas
padronizadas elaboradas por grandes redes que vendem as suas
franquias: Objetivo, Positivo, Anglo, Pitágoras etc., que são
essencialmente voltadas para o sucesso no vestibular e acabaram por
dominar cerca da metade das escolas particulares existentes no
território nacional.
Talvez pela primeira vez, pelo menos no Brasil, livros geográficos não
didáticos passaram a ser lidos e até citados por profissionais de áreas
diversas: urbanistas, sociólogos, filósofos, cientistas políticos,
economistas etc. Para mais uma vez mencionar um exemplo pessoal
(afinal esta é uma escrita de natureza depoente), o meu livro A capital
da geopolítica, de 1987 (mas baseado na minha tese de doutoramento,
de 1985, portanto uma obra acadêmica), conheceu sete edições e foi
141
José William Vesentini

lido não apenas por geógrafos, mas também – ou talvez até


principalmente – por urbanistas, cientistas políticos, militares,
historiadores e estudiosos de relações internacionais. Sei disso por
informações de livreiros e também pelos inúmeros convites para falar
sobre o assunto oriundos de departamentos de história ou de ciências
sociais, de seções do IAB, de associações de moradores etc. Mas sem
dúvida que o trabalho pioneiro nesse sentido foi aquele mencionado
livro-manifesto de Yves Lacoste, de 1976, que foi lido e citado por
centenas de profissionais de outras áreas e também por jornalistas
(lembro-me de uma resenha dessa época, assinada por Giles Lapouge,
no sisudo jornal O Estado de S. Paulo, que ocupou duas páginas
inteiras num domingo!). Por sinal, esse livrete de Lacoste, que nem de
longe é sua principal obra, foi provavelmente o trabalho geográfico
(deixando-se de lado publicações não acadêmicas tais como a revista
National Geographic) mais divulgado em todo o mundo desde pelo
menos os anos 1960, tendo sido traduzido e reeditado em dezenas de
idiomas: do inglês ao árabe, do japonês ao alemão, do sueco ao italiano
etc. Depois dele, só o livro A condição pós-moderna, de David Harvey
(de 1989), alcançou tamanha difusão internacional. E a geografia
brasileira passou a publicar muito mais que anteriormente, com o
revigoramento de alguns periódicos já existentes (como o Boletim
Paulista de Geografia) e o surgimento de novos outros (como a revista
Terra Livre e inúmeras outras de seções locais da AGB e/ou de
departamentos de geografia das universidades). Autores que
escreveram sucintos livros de divulgação da geocrítica, como
principalmente Rui Moreira (O que é geografia, de 1980) e Antonio
Carlos Robert de Moraes (Geografia: pequena história crítica, de
1981), alcançaram enormes vendagens e sucessivas reedições. Também
os livros dogmáticos Introdução à geografia – geografia e ideologia,
de Nelson Werneck Sodré (de 1976), e Marxismo e geografia, de
Massimo Quaini (editado no Brasil em 1979), tiveram uma grande
importância na propagação da geografia crítica para o grande público
brasileiro e para os estudantes universitários, pelo menos durante uma
fase inicial que ocorreu de meados dos anos 1970 até o final dos anos
1980. Para os professores de geografia em geral, que afinal são – pelo
menos em tese – os grandes consumidores dessas obras, na medida em

142
Ensaios de geografia crítica

que o grande mercado de trabalho no Brasil para os geógrafos sempre


foi o ensino, duas coletâneas de textos sobre a geografia escolar, de
autores variados (brasileiros e franceses), tiveram e ainda têm uma
grande importância: Para onde vai o ensino da geografia? (editora
Contexto, 1989, organização de Ariovaldo U. de Oliveira) e Geografia
e ensino: textos críticos (editora Papirus, 1989, por nós organizada).
São obras que passaram a ser recomendadas em quase todos os
concursos para professores, que conheceram várias reedições e que
incorporam pontos de vista diferenciados (e às vezes até alternativos) e
refletem bem a natureza pluralista da geocrítica no que se refere ao
entendimento do ensino da disciplina. Depois delas, nos anos 1990 e
nesta primeira década do século XXI, surgiram inúmeros outros livros
que podem ser classificados como geografia crítica, inclusive alguns
sobre as novas perspectivas para o ensino da geografia. Essas obras
mencionadas representam apenas os primeiros livros críticos no Brasil,
no final dos anos 1970 e nos anos 1980.
Um autor que merece um destaque à parte nessa trajetória da geocrítica
no Brasil é Milton Santos. Não tanto pela sua influência nas pesquisas
ou nos trabalhos científicos, muito menos pela sua influência no ensino
da disciplina, mas, sim, pela sua presença marcante na academia (como
um “novo mandarim”) e principalmente na mídia. Ele publicou, em
1978, a obra Por uma geografia nova. Da crítica da geografia a uma
geografia crítica, que, no fundo, pretendeu emular com o mencionado
livro-manifesto de Yves Lacoste e também propugnar uma “nova
geografia”, só que “científica” e “não ideológica” (com uma forte
clivagem entre ciência e ideologia, inspirada em Althusser, que Lacoste
considera sem importância) e que enfatizasse o espaço enquanto
“totalidade”. Mas essa proposta, a nosso ver, é problemática e
representa um atraso em relação à de Lacoste ou mesmo em relação ao
pensamento gramsciano dos professores que já lecionavam uma
geografia crítica anteriormente. Isso devido, em primeiro lugar, a um
ecletismo (não confundir com pluralismo), isto é, mistura ou
sobreposição sem coerência, sem trabalhar a interligação das
perspectivas, da análise sistêmica via ecossistemas com a concepção
kantiana do “espaço como acumulação desigual de tempos”, com a
ideia hegelo-marxista de totalidade (entendida pelo viés althusseriano,

143
José William Vesentini

que afinal de contas é stalinista), com certo cientificismo (separação


rígida entre ciência e ideologia, na pretensão de “fundar” uma geografia
científica ou uma espaciologia) e com visível flerte com determinadas
ideias terceiro-mundistas panfletárias. Em segundo lugar, devido à falta
de engajamento e de sujeitos sociais, além das ambiguidades na noção
de espaço, que se torna fetichizado. Se Lacoste escreveu a sua obra em
face do maio de 1968 na França e como uma análise/denúncia da
importância do raciocínio geográfico para a guerra do Vietnã, tendo
como interlocutores os cidadãos em geral, pensando em contribuir para
a expansão dos direitos democráticos (entre os quais ele incluiu o
“saber ler os mapas” e “conhecer o espaço geográfico para nele atuar
mais eficazmente”), Santos, por sua vez, não soube muito bem a quem
se dirigir e com um viés positivista propôs uma “nova ciência” –
inclusive sugeriu o termo espaciologia – que enfocasse o espaço
enquanto sujeito (sic) e como totalidade (ou melhor, como formação
sócio-espacial, inspirada na leitura althusseriana de formação sócio-
econômica; Althusser afirma que essa formação tem instâncias – a
econômica, a política e a ideológica – e Santos nela acrescenta a
“instância espacial”).
É evidente que tal proposta teórico-metodológica não poderia ter
grande aplicabilidade nas análises de fato críticas, ou mesmo nas
pesquisas engajadas (que, em alguns casos, não são críticas), pois quem
estuda, por exemplo, as lutas pela terra no meio rural tem que
privilegiar os sujeitos sociais envolvidos nos conflitos e não uma
espaciologia abstrata; quem estuda a questão da moradia nas cidades
tem que privilegiar os movimentos sociais urbanos – ou então a política
estatal – em contraposição aos interesses imobiliários; e quem estuda as
fronteiras ou o território tem que buscar os atores e os seus
instrumentos (inclusive ideológicos) que (re)construíram esses objetos
e não ficar regurgitando a respeito do espaço enquanto totalidade. Por
isso, autores como Foucault (nas relações entre espaço e poder e no
entendimento deste como uma rede e não uma pirâmide, como algo
mais amplo que o Estado) e Lèfebvre (no entendimento do espaço
produzido pelo capitalismo e pelas lutas sociais), principalmente, além
de outros (Lipietz e Francisco de Oliveira, na questão regional, José de
Souza Martins, na análise dos sujeitos do meio rural brasileiro, Claude

144
Ensaios de geografia crítica

Raffestin, na redefinição de conceitos como território/territorialidade,


espaço/espacialidade etc.), foram e são muito mais importantes nos
trabalhos acadêmicos da geocrítica brasileira – em especial, nas
geografias política, social, regional, demográfica, urbana e agrária – do
que a espaciologia de Milton Santos. Este, no final das contas, só
acabou produzindo uma meia dúzia de discípulos bem comportados e
pouco criativos, que recolhem informações ou dados estatísticos sobre
temas “novos” (telecomunicações, aeroportos, hotéis, sistema bancário
etc.) e tão somente os reproduzem acompanhados de frases
estereotipadas extraídas do mestre (tais como “este espaço manda e
aquele obedece”, “isto é um fixo e aquilo é um fluxo” ou “o território é
desigualmente apropriado”), sendo incapazes de engendrar qualquer
tese ou mesmo qualquer ideia nova a respeito do assunto abordado.
Pode-se exemplificar isso com o último livro de Santos, uma
publicação praticamente póstuma, O Brasil, território e sociedade no
início do século XXI (editado em 2001 em co-autoria com Silveira,
além da ajuda de inúmeros estagiários, que receberam bolsas de
iniciação científica durante anos e fizeram levantamentos bibliográfico
e de dados, além de resenhas de livros e teses). É o mais ambicioso de
todos os trabalhos da espaciologia: os autores sugerem na introdução
que ele já nasceu como um clássico comparável às obras de Caio Prado
Júnior, Celso Furtado e Florestan Fernandes (sic). Essa obra representa,
com perfeição, a incapacidade da espaciologia em produzir qualquer
trabalho importante ou mesmo criativo. Existe nas 473 páginas dessa
obra um amontoado de dados estatísticos, cartogramas e informações
descritivas, que podem ser facilmente obtidos por qualquer pessoa em
almanaques ou anuários especializados (inclusive na internet) – sobre a
rede bancária no Brasil e sua localização no território, os aeroportos, as
redes de transportes, as refinarias de petróleo e os dutos, os shopping-
centers, os telefones e computadores etc. – e nenhuma tese ou ideia
nova a respeito do significado disso tudo, apenas a constante repetição,
em cada capítulo, de clichês ou frases estereotipadas do seguinte tipo:
“alguns espaços mandam” (o Sudeste, especialmente São Paulo) e
outros “obedecem”, “o território é desigualmente apropriado”, “o lugar
é continuamente extorquido” etc. Não existe nenhuma análise dos
sujeitos, das classes ou grupos sociais, e nem mesmo qualquer

145
José William Vesentini

referência às lutas e conflitos ou aos projetos que (re)constroem o


espaço ou o território. É uma obra que lembra muito aqueles longos
artigos tradicionais do IBGE, editados na revista brasileira de
geografia nos anos 1950, 1960 e parte dos anos 1970, sobre a atividade
industrial, as cidades grandes e médias, os estabelecimentos
agropecuários etc., nos quais nunca havia uma explicação geográfico-
científica e, sim, um acúmulo de informações e dados estatísticos,
sempre acompanhados de cartogramas que mostravam a distribuição do
objeto estudado no território nacional. A única diferença é que este
livro procurou “sintetizar”, ou melhor, abordar na mesma obra todos
aqueles temas – e alguns outros – que as publicações do IBGE
enfocavam separadamente. Mas, no fundo, eles não estão integrados no
livro e, sim, divididos em capítulos distintos nos quais sempre é
repetida ad nauseam a retórica pseudo-crítica de que o “território é
apropriado desigualmente”, que a “guerra fiscal é uma guerra de
lugares” (e não de sujeitos sociais) e que existem “áreas que mandam”
(ou exploram) e outras que são “subordinadas”.
Antes que algum desinformado imagine que estamos negando que o
território é “desigualmente apropriado” ou que existem regiões mais e
outras menos desenvolvidas – pensando-se não somente em termos de
localização de indústrias ou de shopping-centers e, sim, de padrão de
vida dos habitantes (algo meio negligenciado no livro) –, gostaria de
lembrar que essa é uma velha discussão das ciências sociais (desde,
pelo menos, Marx e já abordada por geógrafos do passado como
Kropotkin e outros) e que o pensamento crítico, em todas as suas
vertentes, sempre reprochou essa interpretação conservadora de que
uma região (ou lugar, ou mesmo país) explora outras. Isso porque essa
ideia implica num fetiche do espaço, que passa a ser visto como um
“sujeito”. Ela omite as relações sociais de dominação e faz o jogo dos
dominantes ao espacializar ou reificar uma atividade inter-humana. O
próprio Marx, autor que teoricamente serve de alicerce para esse tipo de
raciocínio panfletário, citado várias vezes na obra (sempre com frases
descontextualizadas), já afirmava que a exploração é essencialmente

146
Ensaios de geografia crítica

social e nunca espacial6. É lógico que ela se manifesta ou se concretiza


no espaço, mas é produto de relações sociais. Não é por acaso que as
elites ou as oligarquias regionais dessas áreas consideradas atrasadas se
identificam plenamente com esse discurso pseudo-crítico – do tipo, por
exemplo, deste raciocínio simplista encontrável dezenas de vezes com
ligeiras alterações no livro: “Se São Paulo, que é apenas um estado,
possui 30 aeroportos – ou shopping-centers ou universidades –, por que
o Piauí, que também é um estado, só possui dois?”. Existe aí uma
entidade mitificada, o território dos estados, que acaba sendo mais
importante que os cidadãos. Em nenhum momento do livro se mostra
que São Paulo tem cerca de 25% da população nacional e o Piauí
apenas 1,5%, Roraima 0,2% e Tocantins 1,5%. Mas, a todo momento,
se repete que São Paulo tem 61 shopping-centers (em 1999), o Rio de
Janeiro 23 e, em contrapartida, nos estados nordestinos e nortistas os
shopping-centers são restritos a algumas capitais ou áreas
metropolitanas7. Ou que, na “região concentrada” (o Centro-sul),
existem 72% da rede bancária do país e uma agência bancária para cada
142,4 quilômetros quadrados, algo 126 vezes maior do que essa mesma
densidade na região Norte8. Uma bobageira, pois qualquer estudante de
ensino médio um pouco perspicaz irá recordar que o Centro-sul do
Brasil concentra mais de 65% da população nacional e que a região
Norte, com apenas 5% desse total possui uma extensão territorial
gigantesca, o que torna óbvia essa densidade bem menor de agências
bancárias por Km2.
Existem, sim, desigualdades regionais – por sinal, perceptíveis e
importantes – no Brasil, mas esse tipo de discurso que nivela todos os
Estados, que substitui a análise das desigualdades sociais por
comparações simplistas entre unidades da Federação, que fetichiza os
territórios estaduais e as regiões – as quais, no fundo, são uma ficção,
uma construção dos políticos ou do investigador – nada revela de novo

6
Para evitar uma enorme digressão, no final deste texto incluímos um adendo no qual se
discute com mais detalhes essa questão do sujeito nas relações de exploração e dominação –
se regiões ou classes/grupos sociais.
7
Cf. SANTOS, M. e SILVEIRA, M. L. O Brasil. Território e Sociedade no início do século XXI. Rio
de Janeiro, Record, 2001, p. 151-2.
8
Idem, p. 188.

147
José William Vesentini

(pelo contrário, esconde muita coisa) e nada tem de crítico. Esse


raciocínio ideológico acaba por encobrir a dominação social autoritária
(que normalmente acompanha qualquer situação de
subdesenvolvimento), criando um “inimigo” a ser combatido por todos
(isto é, as “regiões mais desenvolvidas”), igualando dominantes e
dominados, as elites regionais e a imensa maioria da população. Não
por acaso, esse tipo de discurso conta com a total adesão das
oligarquias regionais na medida em que implica na reivindicação de
mais investimentos para a “região explorada”, mais verbas que no final
das contas, vão ser apropriadas por essa elite. Observe-se, ainda, que
existe um sujeito implícito nesse tipo de discurso – o Estado,
naturalmente –, que seria o ator encarregado de “corrigir (de cima para
baixo) os desequilíbrios territoriais” através de uma realocação dos seus
gastos (que, logicamente, originam-se nos impostos pagos em especial
pelos cidadãos das áreas mais ricas e populosas, os quais nunca são
consultados ou sequer auscultados nesse raciocínio autoritário).
Entretanto, é inegável a importância que Milton Santos teve na difusão,
através da mídia, da geocrítica brasileira. Que eu saiba, ele foi o único
geógrafo a sair nas páginas amarelas da revista Veja, a ser longamente
entrevistado em praticamente todos os programas importantes da
televisão e também por todos os principais jornais e revistas do país, a
escrever periodicamente colunas na página 3 do jornal Folha de S.
Paulo etc. Ao seu redor, criou-se um grupo com ramificações em todo
o território nacional (e até no exterior – por exemplo, na Argentina) que
constantemente o promovia. Foram realizados, na primeira metade dos
anos 1990, vários encontros ou seminários internacionais sobre a nova
ordem mundial ou sobre o novo mapa-mundi, com subsídios oriundos
do CNPq e de outros órgãos públicos de financiamento (nos quais
Santos e o seu grupo sempre tiveram um grande poder), sendo
convidados vários importantes geógrafos franceses e norte-americanos
e, indefectivelmente, ele era designado para ser o conferencista da
abertura, a grande estrela do evento. Esse entourage conseguiu até – e
essa foi a verdadeira “pedra de toque” de toda a estratégia de promoção
da sua figura e, por tabela, de todo o grupo – forjar uma imagem sua

148
Ensaios de geografia crítica

como “refugiado esquerdista” da ditadura militar9 e, principalmente,


convencer a mídia brasileira que o então recém-criado e desconhecido
prêmio Vautrin Lud, que Santos ganhou em 1993, era uma espécie de
“prêmio Nobel da geografia”. Enfim, a partir dos anos 1990, pouco a
pouco a figura de Santos e a geocrítica brasileira passaram a se
confundir na mídia. Isso nunca ocorreu no plano da realidade – isto é,
das pesquisas acadêmicas, das teses e das obras publicadas – e muito
menos na consciência da maior parte dos geógrafos, em especial do
professorado. Mas sem dúvida que ocorreu na mídia e, por conseguinte,
na compreensão de boa parte do público e até dos profissionais de
outras áreas. Eu mesmo há alguns anos ouvi uma pergunta-afirmação,
feita por um jornalista que fazia doutorado na USP e lecionava no
departamento de jornalismo de uma universidade federal num estado
sulino, se foi depois e devido a Milton Santos que a geografia deixou
de ser uma disciplina descritiva e voltada para a memorização de
nomes de capitais ou de rios... E, também há alguns anos, um professor
universitário de geografia de um país latino-americano me enviou um
e-mail solicitando ajuda no levantamento das obras de Santos (e apenas
dele) para que ele pudesse escrever um artigo sobre a “história da
geografia crítica no Brasil”...
Resta apenas avaliar se essa identificação da geocrítica brasileira com a
figura do Milton Santos, operada através da mídia, foi positiva ou
negativa. Talvez tenha sido positiva, na medida em que contribuiu para
ampliar, embora não muito, o espaço da geografia nos meios de
comunicação de massas. Mas talvez tenha sido negativa, na medida em
que obliterou outras falas, outros caminhos e alternativas diferenciadas,
sugerindo uma homogeneidade onde sempre houve pluralidade e uma
rica complexidade. Em todo o caso, devemos lamentar a sua morte
prematura em junho deste ano (2001), num momento em que ele estava

9
Uma imagem, a rigor, maquiada, pois, até o golpe militar de 1964, Santos foi muito ligado a
José Aparecido, uma das figuras-chave do governo populista e direitista de Jânio Quadros. Ele
se auto-exilou na França por conveniência e não devido a qualquer perseguição séria por
parte dos órgãos de repressão. Ademais, só podemos lamentar nossa cultura subdesenvolvida
que transforma em “heróis” aqueles que, no pós-64, saíram do país e viveram durante algum
tempo no Chile, em Cuba ou na França, pois quem de fato contribuiu na luta contra a ditadura
militar foram os que permaneceram e continuaram a atuar apesar de todos os riscos.

149
José William Vesentini

numa grande efervescência intelectual. Pois, bem ou mal, ele sempre


buscou incorporar novos temas ao discurso geográfico e,
indiscutivelmente, teve o mérito de acompanhar as mudanças que
ocorreram nos últimos anos e décadas no espaço mundial e no território
brasileiro. Que ele descanse em paz e que, mesmo sem sua importante
contribuição, as geografias críticas do/no Brasil prossigam neste seu
itinerário de revolucionar o ensino da disciplina, de abordar/incorporar
novos temas e de realizar novos – de preferência de forma inovadora e
original, além de comprometida socialmente – estudos e pesquisas.

ADENDO – A POLÊMICA SOBRE O ESPAÇO COMO SUJEITO

Os comentários que fizemos sobre a obra de Milton Santos – em


especial, sobre o livro póstumo – demandam uma discussão mais
detalhada sobre o que alguns geógrafos denominam fetiche do
espaço10. Ou seja, o espaço visto não apenas como condição e
expressão material das relações sociais, mas como um sujeito, um ator
nos processos históricos. Trata-se de uma interpretação oriunda do
marxismo-leninismo – acredito que a sua origem remonta ao livro de
Lênin, Imperialismo, etapa superior do capitalismo, de 1917, que já
analisamos num escrito anterior11. Cabe apenas recordar que esse livro
foi escrito basicamente como contraponto à social-democracia de
Kautsky e com o nítido propósito de legitimar a “tomada do poder” por
um partido supostamente marxista num país considerado atrasado, a
Rússia, o qual, para Marx, não era ainda, devido ao fraco
desenvolvimento de suas forças produtivas – e, consequentemente, à
reduzida proporção do proletariado na população total –, um candidato
a transitar do capitalismo ao socialismo. Nesse livro, Lênin, mesmo
sem o dizer ou talvez perceber, contrariou as ideias de Marx (alguns

10
Cf. VILLENEUVE, P. Y. Classes sociais, regiões e acumulação do capital. In: Seleção de
Textos n. 8, AGB-SP, 1981, p. 1-20.
11
Cf. VESENTINI, J. W. Nova Ordem, Imperialismo e Geopolítica Global. Campinas, Papirus,
2003.

150
Ensaios de geografia crítica

dogmáticos dizem que “superou” ou “enriqueceu”) sobre a exploração


social, e sugeriu que existiria uma exploração entre Estados nacionais,
ou seja, entre espaços nacionais diferenciados – os países
desenvolvidos ou exploradores (na época, potências coloniais) e os
países periféricos ou explorados. A ideia de nações oprimidas (e não
apenas classes exploradas) é forte nessa obra, bem como a crença –
já ultrapassada pelos fatos – na impossibilidade do capitalismo
prosseguir para além dessa fase, isto é, a fase do imperialismo. Num
trecho do livro, Lênin assinala:

Os monopólios, a oligarquia, a tendência à dominação


em detrimento da liberdade, a exploração de um
número cada vez maior de nações pequenas ou débeis
por um punhado de nações mais ricas ou mais fortes:
tudo isso deu origem a essas características distintivas
do imperialismo, o que nos obriga a qualificá-lo de
capitalismo parasitário ou em estado de decomposição 12.

Essa assertiva contraria frontalmente os escritos de Marx, que, afinal,


foi o forjador da noção de exploração social alicerçada no trabalho vivo
não pago, isto é, na mais-valia. Só existe exploração ou transferência de
mais-valia entre pessoas, entre o trabalho e o capital, afirmou com
clareza Marx, e nunca entre regiões ou entre países. Em suas palavras:

Já vimos que a taxa da mais-valia depende, em primeiro


lugar, do grau de exploração da força de trabalho [...]
Outro fator importante para a acumulação é o grau de
produtividade do trabalho social. [Assim] um fiandeiro
inglês e um chinês podem trabalhar o mesmo número de
horas com a mesma intensidade [...] Apesar dessa
igualdade, há uma enorme diferença entre o valor do
produto semanal do inglês, que trabalhou com uma
poderosa máquina automática, e o do chinês que trabalha
com uma roda de fiar. No mesmo espaço de tempo em que

12
LÊNIN. El Imperialismo, Etapa Superior del Capitalismo, Buenos Aires, Anteo, 1971, p. 153,
grifo nosso.

151
José William Vesentini

um chinês fia uma libra-peso de algodão, o inglês


consegue fiar várias centenas de libra-peso13.
Fica implícito nessa citação que a Inglaterra era mais desenvolvida do
que a China porque tinha uma tecnologia mais avançada – o que, para
Marx, significava maior quantidade de mais-valia relativa e, portanto,
uma maior exploração do trabalhador inglês em comparação com o
chinês – e não devido a uma transferência de riquezas da China para a
Inglaterra. Para Marx, a Inglaterra era mais rica porque produzia
internamente mais riquezas ou mais-valia – e isso mesmo com os
operários ingleses trabalhando a mesma quantidade de horas por
semana que os chineses, ou até mesmo com estes últimos trabalhando
bem mais; só que eles produziriam menos valor devido ao menor
desenvolvimento tecnológico. Assim, para Marx, a exploração do
trabalho é um processo inter-humano, uma relação social e nunca uma
relação inter-regional ou internacional. As pessoas, na verdade as
classes – e não os espaços –, é que são os sujeitos dos processos sociais
e das relações no mundo do trabalho. É exatamente por esse motivo que
a “revolução social”, para esse clássico, deveria necessariamente
ocorrer primeiro nas regiões mais desenvolvidas pela ótica capitalista.
Ou seja, pela ótica marxiana, regiões com maior acumulação de capital,
com tecnologia mais evoluída e, portanto, com maior exploração do
trabalho; não se deve confundir exploração do trabalho com pobreza.
Afinal, de onde Santos retirou esse juízo de que algumas regiões
“mandam” e outras “obedecem” ou que as primeiras exploram as
segundas? Indiretamente foi de Lênin, do marxismo-leninismo pela via
de autores posteriores ao líder bolchevique. Como se sabe, Santos
retornou ao Brasil no final dos anos 1970, após um exílio voluntário no
exterior, e trouxe com ele, através de inúmeras publicações e cursos ou
orientações de alunos, uma visão estruturalista influenciada pelo
marxismo althusseriano (ou seja, de Luis Althusser e discípulos, tão em
moda na Paris da primeira metade dos anos 1970). Sem dúvida que no
Brasil, nos círculos mais enfronhados com as discussões marxistas ou
pós-marxistas, já se havia superado essa leitura empobrecida do

13
MARX, K. O Capital. Livro 1, volume 2. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975, p. 696-
704, passim.

152
Ensaios de geografia crítica

marxismo. Alguns intelectuais brasileiros tinham escrito ácidas críticas


ao althusserianismo (Giannotti, por exemplo, que era tido nos meios
uspianos como o “mais proeminente marxista brasileiro”; hoje, ele
afirma ter superado essa sua fase da vida14); também o importante texto
do historiador inglês Thompson, que evidenciou o stalinismo insidioso
que existe na leitura althusseriana do marxismo, era amplamente
conhecido15. Mais ainda, nessa época já trabalhávamos com outros
autores, críticos embora não-marxistas, na geografia brasileira:
Foucault, principalmente, como também Lefort, Castoriadis e outros,
que Santos nunca admitiu no seu esquematismo teórico, provavelmente
porque isso implicaria numa “implosão” do seu edifício conceitual
fechado e alicerçado na ideia de totalidade. Do althusserianismo Santos
incorporou a ideia de totalidade enquanto formação sócio-espacial e o
espaço como uma “instância” dessa sociedade total. Outra grande
influência que sofreu e assimilou na sua obra foi da fase neomarxista de
Henri Lefèbvre, por sinal um crítico de Althusser e um dos poucos
marxistas (depois de Gramsci) que valorizou o espaço na análise do
capitalismo. Lefèbvre, nos seus trabalhos a partir do final dos anos
1960 (ocasião em que deixou de ser o principal teórico do Partido
Comunista Francês, sendo substituído pelo seu desafeto Althusser), não
mais admitia uma “totalidade fechada” e esquematizada, mas isso não
impediu que Santos pinçasse algumas ideias de suas obras para
construir uma espaciologia fundamentada na formação sócio-espacial e
na percepção do espaço como um sujeito. Enfim, Santos aproveitou
uma ou outra coisa desse autor – como a noção de “produção do
espaço” e principalmente a “luta de lugares”, de contradições “do
espaço” e não apenas “no espaço” –, mas sempre encaixando todas
essas noções no seu edifício estrutural, na sua leitura althusseriana de
“instâncias” e de “formação sócio-espacial”.

14
GIANNOTTI, J. A. Contra Althusser. In: Teoria e Prática n.3, São Paulo, 1968; e Certa
herança marxista, São Paulo, Companhia das Letras, 2000. No primeiro texto, o então filósofo
marxista reprocha Althusser por fazer uma leitura cientificista e anti-historicista de Marx
centrada na oposição (que seria estranha para o criador do materialismo histórico) entre
objeto de conhecimento e objeto real. Já no recente livro, o pensador pós-marxista e em tese
pluralista afirma que Marx é apenas um clássico como outro qualquer e que sua leitura do real
cometeu o equívoco de confundir contradição com contrariedade.
15
THOMPSON, E. P. A miséria da teoria. Rio de Janeiro, Zahar, 1981.

153
José William Vesentini

Uma leitura frágil e equivocada. Não porque denuncia as desigualdades


regionais ou territoriais, algo trivial e teorizado com mais propriedade
pelos filósofos e cientistas sociais desde pelo menos o século XIX (E
mesmo pelos economistas brasileiros que, desde no mínimo os anos
1950, já tinham feito diagnósticos das desigualdades regionais do país
muito mais ricos e operacionais que o amontoado de informações
díspares coletadas por Santos. Basta lembrar da obra de Celso Furtado
de 1959, A operação Nordeste); mas, sim, porque amiúde cai num
discurso meramente prolixo e vazio, inclusive panfletário. Nem tem a
sofisticação do marxismo, no qual supostamente se apóia, porque não
consegue teorizar a transferência interespacial de valor, base da
exploração. Fica apenas no que Marx denominava aparências: tantos
aeroportos, agências bancárias ou shopping-centers aqui nesta região,
outros tantos ali na outra região, um número menor que, dessa forma,
“comprova uma apropriação desigual do espaço”, logo uma exploração.
Simplista, não? Mas é isso mesmo.
Enfim, um quiproquó sobre a hipotética exploração de alguns lugares
sobre outros. Mas exploração é uma categoria social, inter-humana, que
não pode existir entre coisas, entre espaços. É por isso que grande parte
dos pensadores marxistas ou neomarxistas, desde as últimas décadas,
deixou de lado a ideia leninista de “nações exploradas” – ou mesmo de
classes exploradas para os casos dos desempregados, dos sem teto, dos
sem terra etc. Pois, para haver exploração, é necessário existir trabalho
não pago, ou seja, geração de mais-valia. Ninguém é explorado porque
não tem emprego, terra ou capital. Tampouco porque não tem na sua
localidade um aeroporto ou um shopping-center. Por isso a noção de
excluídos tornou-se mais usada para se referir a essa situação – social,
regional ou internacional – de pobreza ou de carência16.
16
Um importante intelectual brasileiro [que nada tem a ver com Santos, exceto por um
grupelho de sequazes em comum] encetou uma crítica à noção de exclusão, argumentando
que todo excluído de uma forma ou de outra é útil ao sistema ou, em outras palavras, a
exclusão seria “uma expressão da contradição do desenvolvimento capitalista” (MARTINS, J.
de S. Exclusão social e a nova desigualdade. S. Paulo, Paulus, 1997). Considero equivocado
esse ponto de vista – devedor da filosofia de Hegel e de seu maior discípulo, Marx – que
sempre parte de uma totalidade imaginada explicando tudo, como algo onipresente e com um
destino pré-fixado, o que implica em desconsiderar as anomalias, o contrapoder que não se
subsome à pretensa “luta de classes”, o contingente e o surgimento do novo. Ademais, esse

154
Ensaios de geografia crítica

A categoria exploração pressupõe trabalho, atividade produtiva,


extração de riquezas, mais-valia enfim, enquanto a noção de exclusão
significa apenas não estar incluído, estar à margem de alguma coisa –
seja do trabalho, do acesso à escola ou à saúde gratuitas e/ou de boa
qualidade, do acesso à moradia ou à terra etc. Essa percepção teórica
mais sofisticada é algo que falta a Santos. Mas, no fundo, ele nunca se
preocupou com isso, pois aparentemente o que objetivava era gerar
impacto, ser promovido na mídia e na academia, publicar dezenas de
livros em pouco tempo e ter uma trupe ao seu redor ajudando na sua
promoção. Um conto de Machado de Assis – um diálogo entre pai e
filho, com conselhos daquele para este – retrata bem o seu objetivo
plenamente alcançado:

O meu desejo é que te faças grande e ilustre, ou pelo


menos notável [...] Nenhum [ofício] me parece mais útil e
cabido que o de medalhão [...] Sentenças latinas, ditos
históricos, versos célebres, brocardos jurídicos, máximas,
é de bom-tom trazê-los consigo para os discursos de
sobremesa, de felicitação ou de agradecimento. Melhor
que tudo isso, porém, que não passa de mero adorno, são
as frases feitas, as locuções convencionais, as fórmulas
consagradas pelos anos, incrustadas na memória individual
e pública. Essas fórmulas têm a vantagem de não obrigar
os outros a um esforço inútil [...] Não te falei ainda dos
benefícios da publicidade. A publicidade é uma dona
loureira e senhoril, que tu deves requestar à força de
pequenos mimos [...] Que Dom Quixote solicite os favores
dela mediante ações heróicas ou custosas [mas] o
verdadeiro medalhão tem outra política. Quanto à matéria
do discurso, tens à escolha: ou os negócios miúdos ou a
metafísica. Mas se puderes adota a metafísica. Um
discurso de metafísica política apaixona naturalmente os

argumento apenas retoma as críticas feitas pela sociologia latino-americana dos anos 1970
contra a ideia de marginalidade, identificada sem mais com a exclusão como se esta última
fosse apenas uma nova roupagem daquela, como se não tivesse pressupostos diferentes.
Longe de ser “um estado, uma coisa fixa e irremediável”, como o autor interpreta, a exclusão
é uma noção ética – no sentido dado por Richard Rorty – que implica em ação afirmativa, em
demanda por novos direitos.

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José William Vesentini

partidos e o público, chama os apartes e as respostas. E


depois não obriga a pensar e descobrir. Neste ramo dos
conhecimentos humanos tudo está achado, formulado,
rotulado, encaixotado; é só prover os alforjes da memória.
Em todo caso, não transcendas nunca os limites de uma
invejável vulgaridade. Foge a tudo o que possa cheirar a
reflexão, originalidade etc17.

17
MACHADO DE ASSIS. Teoria do Medalhão, publicado originalmente in Gazeta de Notícias,
Rio de Janeiro, 1881.

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