Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
O que é crítica?
Ou qual é a crítica da geografia crítica?*
*
Texto elaborado em 2009 para a revista Geousp, São Paulo, Depto. de Geografia da FFLCH-
USP, no prelo.
101
José William Vesentini
102
Ensaios de geografia crítica
2
SEN, Amartya. Desigualdade reexaminada. Rio de Janeiro, Record, 2001.
3
Cf. LEFORT, Claude. A invenção democrática. São Paulo, Brasiliense, 1983; e GIDDENS, A.
Para além da Esquerda e da Direita. São Paulo, Unesp, 1995.
4
BOBBIO, N. Esquerda e Direita. São Paulo, Editora Unesp, 1995; e FAUSTO, R. A esquerda
difícil, op. cit.
5
Idem, idem.
103
José William Vesentini
104
Ensaios de geografia crítica
socialismo no século XXI, sem dúvida que ele terá por base a economia
de mercado6.
Depois, existe o fato óbvio de que somente a vigência da democracia,
logo, das liberdades e da participação, é que se pode garantir um
mínimo de igualdade – mas nunca total, pois isso é um sonho utópico
no sentido literal da palavra (isto é, “que não existe em lugar algum”),
tal como a ilha imaginada por Thomas Morus. Na prática, a própria
vigência das liberdades conduz a certa desigualdade na medida em que
as pessoas e os grupos são desiguais nas suas potencialidades, nas suas
necessidades, no seu valor de barganha para a sociedade, na
criatividade ou nas formas de luta etc. E tentar impor uma igualdade
total através da única forma possível, qual seja, pela força através de
um regime não democrático – um partido único no poder (ou um líder
carismático) que diz representar os trabalhadores ou o povo –, como foi
demonstrado exaustivamente, é algo que sempre resulta em privilégios
abusivos para alguns, que mandam e desmandam de forma arbitrária,
que usam em seu proveito pessoal os bens tidos como públicos.
Quanto à posição de Fausto, acredito que de fato seja interessante
investir esforços na busca de alternativas libertárias do tipo economia
com base em cooperativas, autogestão em empresas e outras
instituições etc. O problema é que, muitas vezes, essas experiências
cooperativas ou autogestionárias resultam na ditadura de uma pessoa ou
um grupo; ou então na promoção de interesses corporativos – ou de
grupelhos específicos – que são opostos aos interesses maiores da
sociedade. Não podemos continuar a ser ingênuos hoje, depois de
tantas experiências de manipulação de assembléias – basta lembrar,
sem a menor pretensão em denegar, de inúmeras instrumentalizações
da “vontade popular” em alguns orçamentos participativos –, a respeito
do assembleísmo. Vistas de regra existem partidos ou grupelhos
organizados que conseguem impor os seus pontos de vista apriorísticos
nas resoluções, seja pelo cansaço da maioria, seja pela manipulação dos
votos. E, ao contrário de Bobbio, Fausto não enfrenta o dilema da
igualdade versus a liberdade; ele continua – tal como no século XIX – a
escrever como se essa antinomia não existisse. Parodiando o título do
6
Cf. NOVE, Alec. A economia do socialismo possível. São Paulo, Ática, 1989.
105
José William Vesentini
7
Por exemplo, http://www.jiscmail.ac.uk/lists/crit-geog-forum.html, fórum de geografia
crítica existente desde março de 1996.
8
THRIFT, Nigel e AMIN, Ash. What is Left ? Just the Future. In : Antipode. A Radical Journal of
Geography. Vol.37, Issue 5, November 2005, p. 220-238.
106
Ensaios de geografia crítica
9
SMITH, Neil. What is left? Neo-critical Geography, or the flat pluralist world of business
class. In: Antipode. A Radical Journal of Geography. Vol.37, Issue 5, november 2005, p. 887-
889.
10
WILLS, Jane. What’s left? The left, its crisis and rehabilitation. In: Antipode. A Radical
Journal of Geography. Vol.38, Issue 5, November 2006, p. 907-15.
11
BLOMLEY, Nicholas. Uncritical critical Geography? In : Progress in Human Geography.
Vol.30, n.1, 2006, p. 87-94.
12
LACOSTE, Y. A Geografia – isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra. Campinas,
Papirus, 1988, p. 139-51.
13
VESENTINI, J. W. Percalços da geografia crítica: entre a crise do marxismo e o mito do
conhecimento científico. In: Anais do 4º. Congresso Brasileiro de Geógrafos. São Paulo, AGB,
1984, Livro 2, Vol.2, p. 423-32 e Geografia e discurso crítico (da epistemologia à crítica do
conhecimento). In: Revista do Departamento de Geografia 4. São Paulo, USP, 1985, p. 7-13.
107
José William Vesentini
14
QUAINI, M. Marxismo e Geografia. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979.
15
BLOMLEY, 2006, op. cit., p. 87.
16
MARX, K., apud BLOMLEY, op. cit.
108
Ensaios de geografia crítica
17
Até mesmo alguns poucos cientistas sociais incorporaram esse viés equivocado. Um autor
brasileiro bastante citado e tido como especialista em metodologia científica, por exemplo,
asseverou que: “Do ponto de vista metodológico, critica é sempre negativa. Crítica ‘positiva’ é
outra coisa, quer dizer, é elogio.” (DEMO, Pedro. Mitologias da avaliação. São Paulo, Cortez,
2002, p. 30).
18
“A postura crítica torna-se, assim, um instrumento de pesquisa: a crítica é um instrumento
de progresso [científico]; é a crítica que distingue a postura científica da experiência pré-
científica, onde se fazem erros e se espera até que se esteja arruinado com eles [...] Quando se
tem postura crítica, explora-se os erros de forma positivamente crítica, aprendendo-se
conscientemente a partir deles.” (POPPER, Karl. O racionalismo crítico na política. Brasília,
Editora da UNB, 1994, p. 51).
109
José William Vesentini
19
Cf. SIERRA, Pelayo Garcia. Diccionario Filosófico. Biblioteca Filosofía en Español, Oviedo,
1999 ; e também CARROLL, Robert. The Skeptic’s Dictionary, disponível in
http://www.skepdic.com/, consultado em julho de 2007.
20
FOUCAULT, M. Qu'est-ce que la critique? Critique et Aufklärung. In : Bulletin de la Société
Française de Philosophie, Vol. 82, nº 2, avr/juin 1990, p. 35-63.
110
Ensaios de geografia crítica
Mas foi com Kant, no século XVIII, que a crítica assumiu o seu
significado moderno, praticamente o mesmo posteriormente retomado
por Hegel, por Marx e por tantos outros filósofos ou cientistas sociais
que se utilizaram desse conceito para definir alguma teoria ou corrente
de pensamento: Adorno e Horkheimer com a sua teoria crítica, Karl
Popper com o seu racionalismo crítico, Paulo Freire e Giroux, dentre
outros, com a proposta de uma pedagogia crítica etc. Tanto que a
filosofia kantiana também é conhecida pelo nome de criticismo21. Sua
monumental obra, Crítica da Razão Pura, é uma tentativa de examinar
minuciosamente as propriedades da razão pura, aquela desligada da
experiência, estabelecendo os seus limites. Não se trata, porém, de uma
radical negação da razão e, sim, uma autocrítica desta, uma espécie de
continuação do projeto iluminista de, utilizando a razão com base na
ciência moderna, combater todas as formas de escuridão (ignorância
por crenças e superstições, dogmatismo religioso, autoritarismo no
conhecimento e na vida política). Nas suas palavras:
21
LEGRAND, Gerard. Dicionário de Filosofia. Lisboa, Edições 70, 1986, p. 103-4.
22
KANT, I. Crítica da Razão Pura. São Paulo, Abril Cultura, Col. Os Pensadores, 1974, p.14-5.
111
José William Vesentini
112
Ensaios de geografia crítica
23
FOUCAULT, M. Op. cit., p. 40.
113
José William Vesentini
24
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. São
Paulo, Companhia das Letras, 1987, p. 85-125.
114
Ensaios de geografia crítica
115
José William Vesentini
25
HARVEY, D. Spaces of Capital. Towards a Critical Geography. New York, Routledge, 2001,
passim.
116
Ensaios de geografia crítica
26
Claude LEFORT (As formas da História. São Paulo, Brasiliense, 1979, p. 249) foi um dos
primeiros a perceber isso, tendo sugerido que o proletariado foi mais uma invenção da “fértil
imaginação de Marx”.
27
Como já havia assinalado muito bem CASTORIADIS, C. (A instituição imaginária da
sociedade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982, p. 82-5), o marxismo no século XX pouco a pouco
degenerou numa ideologia da burocracia, num discurso legitimador de um partido ou um
grupo de burocratas que pretende alcançar o poder e/ou que já o exerce de forma totalitária,
isto é, sempre reprimindo violentamente as criticas e oposições, que são taxadas de
“burguesas” e antirrevolucionárias, e sempre falando em nome de uma pretensa comunidade
dos trabalhadores, do povo ou do proletariado.
117
José William Vesentini
118
Ensaios de geografia crítica
Assim sendo, não tem sentido adotar aquela posição comodista que
considera críticas determinadas ideias que servem de propaganda para
fundamentalismos ou dogmatismos, mesmo que elas sejam
extremamente ácidas em relação ao capitalismo, que é exorcizado como
o demônio do nosso tempo. Críticas essas, por sinal, que estão mais
para o “falar mal” de algo e nunca para a análise de seus fundamentos e
limites; que, no fundo, constituem tão somente impropérios a respeito
do capitalismo, da globalização e até mesmo da democracia.
Em segundo lugar, temos que levar em conta que a geografia é ou
pretende ser uma ciência. O que Kant almejava com a sua crítica como
prolongamento do iluminismo era exatamente libertar a humanidade
28
WHEEN, F. Answer to the question: Left and right defined the 20th century. What's next?,
in Prospect, march 2007, http://www.prospect-magazine.co.uk/article_details.php?id=8342,
capturado em março de 2007.
119
José William Vesentini
120
Ensaios de geografia crítica
121
José William Vesentini
122
Ensaios de geografia crítica
29
UNWIN, Tim. The place of Geography. London, Longman Group, 1992, p. 250-3.
123
José William Vesentini
124
Ensaios de geografia crítica
31
FREUD, S. (Moisés e o monoteísmo. São Paulo, Imago, 1997), por exemplo, analisou com
argúcia como o egípcio Moisés propagou uma religião monoteísta cujos mitos até hoje
influenciam uma grande parte do mundo. Quanto à importância da filosofia – e das artes –
grega ou do direito romano para a nossa vida atual, creio que é desnecessário insistir nesse
item.
125
José William Vesentini
126
Geografia crítica no Brasil:
uma interpretação depoente*
*
Texto elaborado em outubro de 2001 para integrar nosso site na net:
www.geocrítica.com.br. Fizemos ligeiras alterações na redação para o incluir nesta coletânea.
127
José William Vesentini
128
Ensaios de geografia crítica
1
Cf. o texto desse autor – “O ensino da geografia” –, disponível na rede in:
http://www.geocritica.hpg.com.br/geocritica04.htm
129
José William Vesentini
130
Ensaios de geografia crítica
131
José William Vesentini
132
Ensaios de geografia crítica
2
Cf. VESENTINI, J. W. Percalços da geografia crítica: entre a crise do marxismo e o mito do
o
conhecimento científico, publicado nos Anais do 5 Congresso Brasileiro de Geógrafos (São
Paulo, julho de 1984, v. 2, p. 423-33).
133
José William Vesentini
134
Ensaios de geografia crítica
135
José William Vesentini
136
Ensaios de geografia crítica
A geografia educativa
Já vimos que foi a partir da atividade educativa que a geocrítica se
iniciou e se desenvolveu no Brasil. Daí, ela se expandiu até a atividade
de pesquisas nas universidades, em especial na pós-graduação. Muitos
cometem o equívoco de identificar a geografia escolar com o conteúdo
dos livros didáticos, o que é um viés unilateral e, portanto, deformador.
Nessa ótica, surgiram determinados trabalhos, principalmente algumas
dissertações de mestrado defendidas nos anos 1990, que afirmaram que
a geografia escolar crítica no Brasil teria nascido ou com o livro
Estudos de Geografia, de Melhem Adas, cuja primeira edição saiu no
final de 1972, introduzindo nos compêndios da disciplina uma vertente
geográfica inspirada em Pierre George, ou com a nossa obra Sociedade
e espaço, originalmente editada em julho de 1982. A nosso ver,
nenhuma dessas opções é a rigor verídica, embora a segunda seria mais
correta se estivéssemos falando tão somente dos manuais escolares e
não da geografia escolar crítica como um todo. O livro didático é
apenas uma parte da geografia escolar; inclusive, nem é a mais
relevante. Ele é mais ou menos importante de acordo com o lugar e a
conjuntura: será fundamental no caso de professores/escolas que o têm
como base única e inquestionável, como uma “muleta” afinal. Mas ele
será pouco importante no caso, mais comum do que se pensa, em que
os professores/escolas os utilizam como ele deve ser utilizado: como
um complemento, como um material didático de apoio ao professor e
não como o definidor de toda a atividade educativa5.
Para mencionar a minha experiência pessoal, pois lecionei geografia
nas escolas fundamentais e médias desde que ingressei no primeiro ano
da graduação, no início de 1970 (a falta de docentes desta disciplina era
e ainda é imensa aqui em São Paulo), portanto, muito antes de publicar
o meu primeiro livro didático, já elaborava textos ou traduzia/adaptava
5
Cf. MOLINA, O. Quem engana quem? Professor versus livro didático. Campinas, Papirus,
1987.
137
José William Vesentini
138
Ensaios de geografia crítica
139
José William Vesentini
140
Ensaios de geografia crítica
142
Ensaios de geografia crítica
143
José William Vesentini
144
Ensaios de geografia crítica
145
José William Vesentini
146
Ensaios de geografia crítica
6
Para evitar uma enorme digressão, no final deste texto incluímos um adendo no qual se
discute com mais detalhes essa questão do sujeito nas relações de exploração e dominação –
se regiões ou classes/grupos sociais.
7
Cf. SANTOS, M. e SILVEIRA, M. L. O Brasil. Território e Sociedade no início do século XXI. Rio
de Janeiro, Record, 2001, p. 151-2.
8
Idem, p. 188.
147
José William Vesentini
148
Ensaios de geografia crítica
9
Uma imagem, a rigor, maquiada, pois, até o golpe militar de 1964, Santos foi muito ligado a
José Aparecido, uma das figuras-chave do governo populista e direitista de Jânio Quadros. Ele
se auto-exilou na França por conveniência e não devido a qualquer perseguição séria por
parte dos órgãos de repressão. Ademais, só podemos lamentar nossa cultura subdesenvolvida
que transforma em “heróis” aqueles que, no pós-64, saíram do país e viveram durante algum
tempo no Chile, em Cuba ou na França, pois quem de fato contribuiu na luta contra a ditadura
militar foram os que permaneceram e continuaram a atuar apesar de todos os riscos.
149
José William Vesentini
10
Cf. VILLENEUVE, P. Y. Classes sociais, regiões e acumulação do capital. In: Seleção de
Textos n. 8, AGB-SP, 1981, p. 1-20.
11
Cf. VESENTINI, J. W. Nova Ordem, Imperialismo e Geopolítica Global. Campinas, Papirus,
2003.
150
Ensaios de geografia crítica
12
LÊNIN. El Imperialismo, Etapa Superior del Capitalismo, Buenos Aires, Anteo, 1971, p. 153,
grifo nosso.
151
José William Vesentini
13
MARX, K. O Capital. Livro 1, volume 2. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975, p. 696-
704, passim.
152
Ensaios de geografia crítica
14
GIANNOTTI, J. A. Contra Althusser. In: Teoria e Prática n.3, São Paulo, 1968; e Certa
herança marxista, São Paulo, Companhia das Letras, 2000. No primeiro texto, o então filósofo
marxista reprocha Althusser por fazer uma leitura cientificista e anti-historicista de Marx
centrada na oposição (que seria estranha para o criador do materialismo histórico) entre
objeto de conhecimento e objeto real. Já no recente livro, o pensador pós-marxista e em tese
pluralista afirma que Marx é apenas um clássico como outro qualquer e que sua leitura do real
cometeu o equívoco de confundir contradição com contrariedade.
15
THOMPSON, E. P. A miséria da teoria. Rio de Janeiro, Zahar, 1981.
153
José William Vesentini
154
Ensaios de geografia crítica
argumento apenas retoma as críticas feitas pela sociologia latino-americana dos anos 1970
contra a ideia de marginalidade, identificada sem mais com a exclusão como se esta última
fosse apenas uma nova roupagem daquela, como se não tivesse pressupostos diferentes.
Longe de ser “um estado, uma coisa fixa e irremediável”, como o autor interpreta, a exclusão
é uma noção ética – no sentido dado por Richard Rorty – que implica em ação afirmativa, em
demanda por novos direitos.
155
José William Vesentini
17
MACHADO DE ASSIS. Teoria do Medalhão, publicado originalmente in Gazeta de Notícias,
Rio de Janeiro, 1881.
156