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Sociologias
versão impressa ISSN 1517-4522

Sociologias no.21 Porto Alegre jan./jun. 2009

doi: 10.1590/S1517-45222009000100009

ARTIGO

Visões da Pós-modernidade: discursos e perspectivas teóricas1

Visions of postmodernity: discourses and theoretical perspectives

Miriam Adelman

M.Phil em Sociologia pela New York University e Doutora em Ciências Humanas pela UFSC. Professora do
Departamento de Ciências Sociais da UFPR

RESUMO

Se bem a Sociologia nasce como uma "narrativa sobre a modernidade" (RITA FELSKI), o mundo contemporâneo
vive transformações sociais, culturais e políticas que demandam novas análises e novos olhares. O presente
trabalho aborda enfoques atuais e discursos sobre a pós-modernidade na Sociologia e na teoria social
contemporâneas, identificando alguns debates centrais. Entre outras coisas, percebe-se, em muitos discursos,
metáforas de "degeneração" ou deterioração social associadas a noções da "contaminação do público pelo
privado", ou, de forma contrária, do "privado pelo público". Existe grande preocupação em relação a uma suposta
perda de laços sociais que acompanharia a desconstrução de formas padronizadas de relacionamento (BAUMAN)
ou a uma perda de possibilidades dialógicas, fruto da pulverização das identidades sociais e culturais
(HABERMAS) Perante essas perspectivas e também a visão mais "otimista" de Giddens (através de sua noção da
reflexividade da "sociedade pós-tradicional") propõe-se aqui uma valorização da obra de autores como Andreas
Huyssen e das teóricas feministas e teóricos pós-coloniais, que apontam para algumas tendências da pós-
modernidade que, embora bastante contraditórias, permitem enxergar a construção de novos caminhos tanto
teóricos quanto práticos.

Palavras-chave: Pós-modernidade. Teoria sociológica contemporânea. Zygmunt Bauman. Público e privado.

Introdução

1
Se os debates sobre o conceito de "pós-modernidade" e "pós-modernismo", que foram centrais para a teoria social
dos anos oitenta, ocupam menos espaço hoje do que dez ou quinze anos atrás, isto talvez represente mais uma
trégua do que um consenso sobre o uso dos conceitos. No campo específico da Sociologia, vários dos autores
consagrados do nosso momento dizem não gostar do conceito - desde Anthony Giddens, que prefere falar de
"modernidade radicalizada" até Zygmunt Bauman, que, em tempos recentes, preferiu o termo de "modernidade
líquida" ao conceito de pós-modernidade que ele empregava em obra anterior. Mas nestes tempos em que mesmo
os menos "pós-modernos" aprenderam a prestar muita atenção nas palavras e nas coisas (BARRETT, 1999), uma
indagação sobre o que pode haver de significativo no apego ou na rejeição de um termo como este poderia ser
muito revelador. 2

Metáforas e visões de degeneração social permeiam uma boa parte dos discursos sobre a vida social
contemporânea, tanto desde o campo das teorias críticas, quanto dos argumentos neoconservadores que aparecem
dentro, mas particularmente fora da Academia (permeando também o "senso comum"). De fato, desde os anos 80,
o argumento de estarmos vivendo um momento de crise nas relações sociais e na "cultura" apareceu entre os
neoconservadores preocupados com a crise de legitimidade pela qual passavam as "democracias ocidentais" 3,
surgindo, por exemplo, na polêmica que surgiu nos EUA nos anos 80, sobre currículo e cânone, com sua grande
ansiedade em relação à crescente voz das "culturas minoritárias".4

Mas, desde o campo do neomarxismo e da teoria crítica, o momento "pós-moderno" - significado como fase
histórica do capitalismo tardio e seu "reflexo" no pensamento - também é representado como deterioração:
deterioro de possibilidades críticas e contestatórias, triunfo final de uma sociedade capitalista, sem mais
capacidade de manter uma oposição política e cultural autêntica.5

Da Sociologia acadêmica, diversificada e híbrida como ela é, não se esperaria que alinhasse facilmente conforme
posições "ideológicas" polarizadas. Por definição, ela deveria ter como objetivo a produção de análises complexas
de História, cultura e relações políticas e sociais da contemporaneidade. No entanto, a leitura dos autores e os
debates atuais revelam que mesmo as análises mais brilhantes costumam albergar subtextos ou pressuposições, às
vezes pouco examinados. Para avançar na leitura crítica de discursos sociológicos atuais sobre cultura e pós-
modernidade, procurando identificar tanto seus mais importantes insights quanto seus aspectos mais
problemáticos, pretendo neste trabalho me valer dos recursos de leitura crítica, oferecidos por alguns autores que -
como Andreas Huyssen e Rita Felski, escrevem desde outros campos disciplinares (principalmente a teoria
literária e a teoria feminista) 6. Neste sentido, dou continuidade ao trabalho que venho realizando, de explorar
novas interpretações de alguns dos discursos que gozam de ampla aceitação no meio acadêmico da Sociologia
brasileira hoje. 7

A sociologia acadêmica e sua "pós-modernidade":

Discuti, noutro lugar, o modo como os movimentos sociais, políticos e culturais dos anos 60 permearam o meio
acadêmico, tanto exigindo, quanto participando da transformação das perspectivas teóricas e metodológicas
conservadoras que nele ainda mantinham hegemonia.8 Houve, a partir desse momento, um florescimento de
perspectivas críticas nas ciências sociais, desde o renascimento de um marxismo que - seguindo a inspiração
frankfurtiana - tentava desenvolver abordagens mais sensíveis aos fenômenos da cultura e da subjetividade. Nos
EUA, uma nova geração de seguidores da Escola de Chicago, os quais desenvolviam um interacionismo
simbólico mais engajado, que enfocava processos de estigmatização e marginalização, mas também de resistência
subcultural, particularmente ligada à vida nas grandes cidades norte-americanas. O surgimento de uma teoria

2
feminista multidisciplinar desafiava o masculinismo dos cânones estabelecidos nas diversas áreas das ciências
humanas, e o aparecimento de uma nova geração de sociólogos incluídos entre os nomes que iriam obter maior
destaque, Alain Touraine, Anthony Giddens, Pierre Bourdieu e Richard Sennett.

Evidentemente caberia a esses sociólogos fornecer alguma caracterização mais específica das sociedades
ocidentais da fase do pós-guerra, que problematizasse questões de "ruptura" ou "continuidade" em relação às
sociedades que foram a matéria de análise da literatura clássica. O debate de fato já tinha começado; incluía as
discussões de sociólogos como Daniel Bell e Ralf Dahrendorf, com sua preocupação pela passagem de uma
sociedade estruturada em torno do industrialismo e seus conflitos, para uma outra, "pós-industrial" (BELL) ou da
"institucionalização dos conflitos de classe" (DAHRENDORF). Também durante os anos 60, críticos que se
tornaram expoentes da contracultura nos EUA, como Herbert Marcuse e Theodore Roszak, tinham dedicado
muitas páginas para falar dos novos conflitos e novas formas de resistência (vindo particularmente dos jovens) à
sociedade tecnocrática.

Desde o final dos anos 70 e principalmente a partir dos anos 80 (com certeza, em diálogo com perspectivas
surgidas fora da Sociologia, e autores como Michel Foucault), a discussão foi mudando de foco. Os anos de
grande protesto acabaram, e a sociedade parecia estar de novo estabilizada, talvez em cima de padrões um tanto
modificados - mas em que sentido, e com quais perspectivas para o futuro? Numa fase de aparente pouca
contestação política nos países do capitalismo central, talvez fosse momento para fazer um balanço de novo. Na
Sociologia, o conceito de modernidade tomou um lugar central e, com este, o de pós-modernidade, com toda a
ambigüidade de poder ser compreendido como herdeiro ou como rival daquela. 9

Em teóricos sociais tão diferentes quanto Christopher Lasch e Richard Sennett, aparece um discurso nostálgico,
de saudade (às vezes mascarada) para uma outra época na qual as tensões e conflitos em torno da autoridade eram
mais fáceis de identificar e, portanto, (talvez), lutar contra, na qual haveria, supostamente, coletividades mais
coesas de pessoas cujos interesses comuns e evidentes serviam como base de "laços comunitários", etc. Um dos
argumentos principais que pretendo fazer neste artigo é o da existência de um subtexto nestes autores (mais claro
talvez em Lasch e nos discursos alinhados explicitamente com o neoconservadorismo do que em Sennett) que
emergem das profundas ansiedades de gênero, pertencentes a nosso tempo10. Nesta visão, o "declínio" de laços de
família e de comunidade vinculam-se a uma "erosão" (muito lamentada) das fronteiras entre o público e o privado
e às mudanças nas relações de gênero e de cultura sexual que fariam parte de tal processo. (Um pouco mais
adiante, pretendo demonstrar como isto também aparece como um subtexto do trabalho mais recente do sociólogo
polonês Zygmunt Bauman, que se torna cada vez mais forte conforme ele se afasta da visão da pós-modernidade
que caracterizava sua obra do início dos anos 90).

Também é evidente que nenhum sociólogo da atualidade pode esquivar-se da difícil tarefa de dar conta das
mudanças que marcam a história da segunda metade do século XX - todas as ramificações da mudança da
sociedade da produção (e, como diria Claus Offe, do trabalho) para a sociedade do consumo (e do desemprego);
do mundo político dos dois blocos e da guerra fria para o mundo após a queda do muro de Berlim; do mundo dos
padrões culturais claros para o das "identidades plurais" e assim por diante. Um sociólogo pode posicionar-se
"contra" os discursos e a ênfase identitária pós-modernos, mas faz pouco sentido querer minimizar o impacto dos
fenômenos históricos aos quais tais discursos e identidades estão tentando responder.11 É, portanto, importante
fazer uma separação inicial entre ambas as questões: a da existência e do caráter, de um momento histórico que
pode ser denominado ou pensado como "pós-modernidade" e os traços estruturais e culturais que o definem - que
remete à discussão de possíveis continuidades ou rupturas históricas - e a segunda, de avaliação do movimento
filosófico, cultural e artístico, que adquire o nome de pós-modernismo, e o que este representa em relação aos
movimentos culturais de um período histórico anterior.12

3
Sociólogos atuais como Habermas e Giddens, claramente identificados com a disciplina da Sociologia enquanto
narrativa sobre a modernidade (FELSKI, op.cit.), trabalham com noções que enfatizam mais as continuidades do
que as rupturas entre nosso momento e os momentos de emergência e consolidação das instituições sociais
modernas. Habermas ainda aposta no "projeto inacabado" da modernidade, e na possibilidade de fazer avançar a
ação comunicativa, para além das tendências desintegrativas atuais de pulverização das identidades sociais (que
segundo ele, ameaçam a capacidade dialógica que a democracia moderna, enquanto projeto emancipatória,
desenvolve). No entanto, ele afirma que sua posição, nada teria a ver com a dos neoconservadoras que não
conseguem aceitar as mudanças culturais que fazem parte da "modernização societária"13 e

desplaza sobre el modernismo cultural las incómodas cargas de una más o menos existosa modernización
capitalista de la economia y la sociedad ... [responsabilizando] a la cultura del hedonismo, la ausencia de
identificaçión social y de obediencia, el narcisismo, el abandono de la competencia por el status e éxito. (1984,
p.29)

Na verdade, ele explica, a cultura intervém na origem destes "problemas" só de maneira indireta e mediada. Na
reação neoconservadora, haveria uma não compreensão da verdadeira natureza do protesto e descontentamento do
nosso tempo, que, para Habermas, representa uma revolta contra a "penetração da racionalidade econômica e
administrativa" na esfera própria da ação comunicativa. 14 Por outro lado, Habermas também tenta deixar claro
que defende o "projeto da modernidade", contra os seus detratores pós-modernos, que ele chama de "jovens
conservadores" ou "anti-modernos" que

recuperan la experiencia básica de la modernidad estética. Reclaman como propias las revelaciones de una
subjetividad descentrada,emancipada de los imperativos del trabajo e la utilidad, y con esta experiencia dan un
paso fuera del mundo moderno. Sobre la base de actitudes modernistas, justifican un irreconciliable
antimodernismo. Colocan en la esfera de lo lejano y lo arcaico a las potencias espontáneas de la imaginación, la
experiencia de si y la emoción. De manera maniquea, contraponen a la razón instrumental un principio sólo
accesible a través de la evocación, sea éste la voluntad de Poder, el Ser o la fuerza dionisíaca de lo poético".
(Idem, p.31)

Eles também, em lugar de compreender o que seriam para Habermas os verdadeiros desafios desse projeto ainda
acabado, cairiam num tipo de irracionalismo.

Com Giddens, voltamos a uma espécie de dicotomia sociológica clássica tradição/modernidade, sendo a
"reflexividade" - dos agentes e das instituições - traço fundamental desta última, que também irá possibilitar a
democratização paulatina das próprias relações sociais de hierarquias de poder e desigualdade social. Prefere o
termo "modernidade radicalizada" ao de "pós-modernidade", exatamente porque prefere enfatizar a continuidade
entre os diversos momentos da "sociedade pós-tradicional" que se sobreporia às suas aparentes diferenças. As
mudanças, contudo, são bem-vindas: no século XX, e especialmente na sua segunda metade, completa-se a
transformação de certas instituições sociais que promovem transformações da família, da sexualidade, das
relações de gênero, e da vida política, e a incorporação de novos atores e novas formas (legítimas) de atividade
política As relações de poder e desigualdades em acesso a poder e recursos são cada vez mais negociáveis e
negociadas.

Mesmo mantendo-se eles a certa distância, Giddens, no seu trabalho de análise social, recorre a alguns autores
considerados como "pós-modernos". Estes aparecem, por vezes, como fontes e interlocutores, evidenciando
também o uso que Giddens costuma fazer, de trabalhos produzidos em diversos campos disciplinares. Seu livro,
Modernity and Self-identity, empreende um diálogo bastante crítico com Foucault e suas teses sobre modernidade

4
e poder disciplinar. De modo semelhante, A Transformação da Intimidade (1992) faz amplo uso de literatura
feminista, mas com uma certa tendência de diminuir as tensões e contradições através das quais as relações de
gênero vêm sendo contestadas e re-negociadas ao longo do período moderno.

Zygmunt Bauman e os "riscos (perigos) da pós-modernidade"

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, autor de uma obra teórica rica e muito prolífica, vem sendo muito bem
acolhido no Brasil nos últimos anos, o que fica demonstrado no fato de existir versão brasileira de uma boa parte
de grande produção. Dentre estes, uma boa parte dos livros participam diretamente dos debates em torno da
condição (pós) moderna e a crise que, nos tempos atuais, supostamente toma conta das relações sociais, da cultura
e da política.

Um livro particularmente interessante é seu Intimations of Postmodernity, publicado originalmente em 1992, ou


seja, logo após a década conhecida como grande produtora de discursos e debates sobre pós-modernidade e pós-
modernismo. Embora nesta obra, ele aparentemente se posicione contra uma visão pós-moderna da pós-
modernidade (defendendo em lugar desta, uma "sociologia da pós-modernidade")15 a análise contida nela mostra
claras aproximações a algumas das críticas "pós-modernas" centrais da sociedade nascida da Revolução Industrial
e do Iluminismo. Com um pensamento que o distingue, por exemplo, de alguém como Anthony Giddens - para
quem a reflexividade característica da sociedade "pós-tradicional" marca sua diferença e só se realiza (radicaliza)
com o avanço da História ocidental moderna - ou de Habermas, com sua insistência na modernidade como projeto
inacabado; para Bauman, a modernidade se estabelece inicialmente como uma época de hierarquias, de padrões
normativos, e de sonhos de pureza e de controle "totalizante" sobre a natureza e sobre a "natureza humana". Após
o "choque" inicial da dissipação do Antigo Regime - fenômeno que trouxe consigo o reconhecimento de que o
mundo humano é contingente (o que também significa que sujeito à ação humana), nasce também uma nova
preocupação com a estrutura e a ordem, que desta vez, são vistas como humanamente criadas, garantidas e
vigiadas. Assim, os novos poderes procuram dar um rumo definido à sociedade, que deve previr o caos, planejar
racionalmente e manter do lado de fora, todos os perigos e ameaças potenciais à ordem. No item da sua
introdução tão espertamente intitulado, "Modernity or desperately seeking structure", fica evidente que ele parte
também daquilo que se tornou a preocupação fundamental dos filósofos pós-modernos (antecipada, claro, por
Weber no seu argumento sobre o desencantamento do mundo e posteriormente, por Adorno e Horkheimer no seu
brilhante trabalho sobre a Dialética do Esclarecimento): como é que os sonhos modernos rapidamente produzem
discursos e tentativas práticas de homogeneização e controle de um mundo não mais visto como determinado por
poderes divinos ou sobrenaturais. Cito Bauman:

The kind of society that, retrospectively, came to be called modern, emerged out of the discovery that human
order is vulnerable, contingent and devoid of reliable foundations. That discovery was shocking. The response to
the shock was a dream and an effort to make order solid, obligatory and reliably founded. This response
problematized contingency as an enemy and order as a task. It devalued and demonized the 'raw' human
condition. It prompted an incessant drive to eliminate the haphazard and annihilate the spontaneous..." (1987,
p.xi)

E mais adiante:

The new, modern order took off as a desperate search for structure in a world suddenly denuded of structure.
Utopias that served as beacons for the long march to the rule of reason visualized a world without margins,

5
leftovers, the unaccounted for - without dissidents and rebels; a world in which, as in the world just left behind,
everyone will have a job to do and everyone will be keen to do the job he has to: the I will and the I must will
merge." (idem, xv)

Assim, o Panopticom inventado por Bentham e analisado por Foucault no seu livro Vigiar e Punir torna-se, para
Bauman, uma boa metáfora para o mundo que os arquitetos da modernidade ansiavam construir: "Modernity was
a long march to prison. It never arrived there, albeit not for the lack of trying".(xvii)

Resgata-se deste impulso ordenador e repressivo da modernidade, segundo Bauman e outros autores16, somente o
"breve interlúdio" do humanismo, que se distinguiu pela sua abertura, pela sua aceitação da "diversidade" e das
profundezas paradoxais dos sentimentos e criatividade humanas, representado exemplarmente no pensamento
europeu por Montaigne, que reconhecia a especificidade temporal e espacial deste modo de vida, tão ansioso de
ser reconhecido como "universal". Mas este parece ser um momento fugidio, de maior humildade e sensibilidade
nos discursos, e que rapidamente sucumbe perante o apetite voraz da modernidade ocidental pelo poder e pela
conquista.

Há, nesta fase do trabalho de Bauman, outros pontos de convergência entre seu discurso e os discursos produzidos
desde perspectivas críticas pós-modernas e pós-coloniais sobre a modernidade. Evidenciam-se por exemplo, nos
argumentos que Bauman apresenta no capítulo "Legislators and Interpreters", que seguem uma linha muito
marcada pelo pensamento de Foucault sobre o poder disciplinar do Estado moderno e como este promove (e
depende de) uma nova elite de experts cujo saber (poder/saber) se torna uma grande forma, particularmente
moderna, de controle social17. Aponta, ainda de forma compartilhada com os discursos pós-modernos, para a
arrogância da visão que o Ocidente moderno desenvolve sobre si mesmo: sociedade que possui um conhecimento
superior a todas as outras, que se pensa universal e progressista, e que tem - em nome de uma missão civilizadora
ou de elevação do espírito e a vida humanos, legitimidade para subordinar - ou destruir - formas de vida
diferentes e locais, as dos seus Outros. Descreve a "autoridade legislativa" do Ocidente moderno e seus "homens
do saber": "The authority involved the right to command the rules the social world was to obey; and it was
legitimized in terms of a better judgment, a superior knowledge guaranteed by the proper method of its
production." E, com uma reflexividade particular, estende a crítica à sua própria categoria, aos intelectuais
ocidentais, e ao conceito moderno de "cultura" que se tornou não só eixo de teorização, senão justificativa para os
afazeres profissionais - e sua posição social - deste grupo:

The intellectual ideology of culture was launched as a militant, uncompromising and self-confident manifesto of
universally binding principles of social organization and individual conduct. It expressed not only the exuberant
administrative vigor of the time, but also a resounding certainty as to the direction of anticipated social change.
Indeed, forms of life conceived as obstacles to change and thus condemned to destruction had been relativized;
the form of life that was called to replace them was seen, however, as universal, inscribed in the essence and
destination of the human species as a whole." (ps. 10-11)

E com uma preocupação tipicamente "pós-moderna" pela força que os discursos têm na produção da vida social,
problematizando formas mais convencionais de pensar sobre um "substrato real" que os discursos escondem,
destaca-se a própria definição que Bauman oferece de "modernidade": "I take here the concept of 'modernity' to
stand for a perception of the world, rather than (as it has been misleadingly intimated) the world itself; a
perception locally grounded in a way that implied its universality and concealed its particularism." (p.12)

Partindo desta visão crítica da modernidade, a época da pós-modernidade, embora cheia de suas próprias
contradições, deve ter algum avanço para oferecer. É isto que transparece nesta obra de Bauman (e numa obra

6
anterior, Modernidade e Ambivalência, publicado originalmente em 1991, na Inglaterra): uma perspectiva mais
esperançosa, que enfatiza mais algumas novas possibilidades especificamente pós-modernas, e tendendo a ceder a
uma outra, mais negativa, de obras posteriores. Há então, na desestabilização pós-moderna dos padrões rígidos da
vida social da modernidade, algo de salutar ou potencialmente emancipatório. Há a (nova) possibilidade de
"conviver com a ambivalência". Traz os seus perigos, mas também um desafio que talvez valha a pena: há
consciência (embora "despreocupada" demais)

de que existem muitas histórias que precisam ser contadas e recontadas repetidamente, a cada vez perdendo algo
e acrescentando algo às versões anteriores. Há também uma nova determinação: a de resguardar as condições
nas quais todas as histórias podem ser contadas, recontadas e contadas novamente de forma diversa. É na sua
pluralidade e não na 'sobrevivência dos mais aptos (isto é, na extinção dos 'menos aptos') que reside agora a
esperança. (BAUMAN, 1999:259)

Mas o desafio, e os perigos, são enormes, pois: "Ao contrário da ciência e da ideologia política, a liberdade não
promete certeza nem garantia de nada". (idem, p.259).

Contudo, Bauman não consegue apostar muito nas mudanças sociais e culturais da pós-modernidade. A
modernidade, que promove o "desencaixe" (para emprestar o termo de Giddens para caracterizar a gênese das
instituições sociais modernas) dos indivíduos dos contextos comunitários tradicionais, não consegue oferecer uma
boa alternativa (só a família burguesa nuclear, privatizada e hierárquica). Porém a pós-modernidade tende a fazer
avançar esta tendência, privatizando ainda mais "os medos e ansiedades da época moderna". Como não fornece
bases institucionais para a reconstrução dos laços que unem as pessoas ao mundo - ao contrário, abre um espaço
cada vez maior para a "livre ação" do mercado - a pós-modernidade só pode ser a idade dos vínculos tênues e das
"comunidades imaginadas":

belief in their presence is their only brick and mortar, and imputation of importance their only source of
authority".(p. xix); "Having no other (and above all, no objectified, supra-individual) anchors except the
affections of their 'members', imagined communities solely exist through their manifestations (demonstrations,
marches, festivals, riots) (BAUMAN, 1992: xix).18

Desta forma, Bauman mostra ceticismo perante novas formas de sociabilidade que surgem a partir de uma busca
de vínculos diferentes. Seu ceticismo remete a um "paradoxo ético" que ele identifica como particular da pós-
modernidade, na qual as normas que antes regiam a vida cotidiana e comunitária vão sendo abolidas (seja pela
ação das pessoas na sua rejeição de imposições autoritárias, seja pela lógica "vale-tudo" do mercado). Se, na
modernidade, a "responsabilidade individual" quase inexistia ("Modernity was, among other things, a gigantic
exercise in abolishing individual responsibility other than that measured by the criteria of instrumental
rationality and practical achievement") , o desafio da pós-modernidade, embora ofereça a possibilidade da
constituição de um agente- sujeito, tende a desmoronarse perante um novo impasse de falta de referências e de
recursos coletivos:

The ethical paradox of the postmodern condition is that it restores to agents the fullness of moral choice and
responsibility while simultaneously depriving them of the comfort of the universal guidance that modern self-
confidence once promised. Ethical tasks of individuals grow while the socially produced resources to fulfill them
shrink. Moral responsibility comes together with the loneliness of moral choice". (xxii)

Outro grande assunto que Bauman trata, de forma muito perspicaz, contudo, ao mesmo tempo, merecendo certas
observações críticas, diz respeito à relação entre sociologia e pós-modernidade. Reafirmando uma questão que

7
vem sendo muito focalizada pela teoria social contemporânea, na sua preocupação "pós-moderna" pela construção
dos discursos - que a Sociologia como disciplina ou "narrativa" nasce em estreita relação com as tarefas políticas,
sociais e intelectuais colocadas pela modernidade, como momento histórico e tipo de sociedade que se torna seu
objeto - passa a considerar como a mudança para uma "sociedade pós-moderna" afetaria a tarefa de "fazer
Sociologia". Um grande elemento do seu argumento, desenvolvido através de vários capítulos deste livro de 1992,
gira em torno do que Bauman considera uma importantíssima mudança no papel e posição dos intelectuais.
Segundo ele, se o Estado-nação moderno precisava destes, para uma grande "missão" de educar as massas - ou
pelo menos, produzir discursos capazes de legitimar os Estados modernos no seu projeto de aglutinar e disciplinar
uma população heterogênea e, às vezes muito resistente às tentativas de controle exercidas pelo Capital -, poderia
dizer que esse papel legitimador e "legislativo" vai progressivamente perdendo sua razão de ser. As novas
condições sociais trazem novas formas de controle social (a dupla "sedução/repressão" de uma sociedade de
consumo) que independem da "legitimação", outra hora necessária. Além de perder sua centralidade na
elaboração desse tipo de discurso, os intelectuais também perdem seu papel no desenvolvimento e sustento da
"Cultura" ("a cultura", como comentei acima é, ou era para Bauman, antes de mais nada, uma ideologia dos
intelectuais das sociedades modernas), a qual se transforma em produtos midiáticos de uma grande indústria do
entretenimento. Neste contexto, o próprio conceito de "pós-modernidade" (e o deslocamento que o conceito
parece propiciar, da antiga forma de distinguir entre idéias e práticas, que enfatizava a "materialidade" destas
últimas e o caráter de "reflexo" das primeiras) teria, em si, muito a ver com a crise de deslocamento da própria
classe dos intelectuais.

Esses intelectuais, então, quando perdem sua função privilegiada de "legisladores de uma nova sociedade",
voltam-se para uma nova postura teórica, de "intérpretes" de um mundo "pós-iluminista". Assim, Bauman se
demonstra altamente cético em relação aos argumentos de intelectuais pós-modernos que vêem a necessidade de
uma "mudança de paradigma" nas ciências sociais. Eles estariam simplesmente se acomodando a uma situação
que os permite produzir ad infinitum novas "interpretações" de um mundo social diverso e complexo, sem tomada
de posição e reforçando uma espécie de relativismo que, embora tentem justificar como superação do
universalismo totalitário de outra época, não permite nenhum avanço em termos de compreensão dos novos
mecanismos de dominação (ver por exemplo, sua crítica à "tradução cultural" que seria o objetivo da "descrição
densa" do antropólogo Clifford Geertz ). Rejeita a proposta de uma "Sociologia pós-moderna" - uma Sociologia
modificada em suas premissas epistemológicas fundamentais, ou como ele diz, que enfocaria principalmente
jogos de linguagem/discursos/interação social que seria, para ele, muito mais sintoma do que explicação da pós-
modernidade. (Neste sentido, desenvolve uma crítica de muitas páginas sobre a etnometodologia precursora da
postura pós-modernista nas ciências sociais)19 Contra estes "pós-modernos" (embora com certeza influenciados
por eles, e por Foucault de forma particularmente notável), Bauman defende a idéia de que tarefa principal da
Sociologia hoje é "procurar uma compreensão da pós-modernidade". Há uma especificidade pós-moderna que
gera uma nova lógica que a Sociologia precisa ser capaz de captar. Não é mais a da produção, do trabalho
disciplinado, do padrão e da norma, da uniformidade, ou enfim, de um princípio da realidade que prevalece, senão
a do consumo, da liberdade do consumidor, que admite e se sustenta, inclusive, na base da diversidade e nem
precisa mais de garantir heterogeneidade ideológica ou cultural para garantir a integração social e sistêmica. A
Sociologia, portanto, precisa encarar tarefas teóricas novas.

Sua crítica mais radical ao discurso sociológico clássico remete-se à forma em que a Sociologia da modernidade
tende a equiparar sociedade e Estado-nação. 20 Aqui Bauman elabora um argumento muito forte, contra o que
seria o "exagero" da Sociologia clássica quanto a dois pontos relacionados: a preponderante "tendência
racionalizante" das sociedades modernas, assim como sua identificação e aceitação da "hipótese da
modernização". Tentarei deixar mais claro: o conceito de "sociedade" na Sociologia clássica "cut to the measure
of the nation-State" vê este último (ou seja, ambos) como uma unidade normativa, com uma distribuição interna

8
de poder não-ambígua, basicamente auto-sustentada e mantida através de suas próprias tendências internas que
impulsionam o desenvolvimento. Isto, segundo Bauman, representa um viés de concepção: o que pode ser visto
como tendência racionalizante se o olhar focaliza as relações internas de um Estado-nação, mostra aspectos que
não obedecem aos mesmos padrões e critérios de controle nas conseqüências que espalha para fora do seu próprio
território. De forma parecida, o caráter inadequado da "hipótese da modernização" se revela claramente em
"tempos pós-modernos", quando as múltiplas resistências, noutras partes do globo, aos supostos processos de
homogeneização global e ao triunfo de um modo ocidental de vida, tornaram-se muito mais visíveis. 21 Embora
não fique totalmente claro se, para Bauman, trata-se tanto de um problema de falha da teoria clássica ou de um
problema novo colocado pela "globalização" pós-moderna, ele é com certeza muito enfático na forma em que
pede que a Sociologia contemporânea se esforce para superar estes problemas, sugerindo "the elaboration of
categories appropriate to the analysis of dependencies and interactions in the 'mono-societal'social space, a
space without 'principal coordination', 'dominant culture', 'legitimate authority', etc., is now a most task faced by
sociology".

Bauman enumera também outros "fenômenos especificamente pós-modernos" que merecem reconhecimento,
estudo e teorização, dentre estes, todas as conseqüências do fato da aceleração do processo da "emancipação de
Capital do trabalho" (uma inversão paradoxal da previsão de Marx sobre o futuro da sociedade ocidental?), que
significa à sua vez, que o capitalismo agora engaja as pessoas na sua condição de consumidores e que - como
assinalei acima - desenvolve-se um novo esquema de controle, integração e dominação sociais, baseado na
oposição "sedução" (ligada à dependência das pessoas em relação ao mercado22)/repressão (ligada à "penetração
crescente da esfera privada"- sic).

Outro livro seu, escrito uns anos depois, O Mal-estar da Pós-modernidade (1998; primeira edição inglesa 1997),
é, como o título sugere, uma tentativa de explicar o mal-estar cultural e social, especificamente pós-moderno.
Explicitamente inspirado em Freud, para quem havia um mal-estar particular da modernidade, ele assinala:

os mal-estares da modernidade provinham de uma espécie de segurança que tolerava uma liberdade pequena
demais na busca da felicidade individual. Os mal-estares da pós-modernidade provêm de uma espécie de
liberdade de procura do prazer que tolera uma segurança individual pequena demais.(p.10)

Ao longo dos seus catorze capítulos, o livro apresenta discussões sobre diversos aspectos da cultura e da
sociabilidade da nossa época, e suas observações críticas são geralmente astutas e significativas. No entanto,
reaparece a grande dificuldade que parece caracterizar o pensamento de Bauman sobre a época contemporânea, o
que às vezes o deixa muito próximo aos "neoconservadores" de Habermas (ver acima): uma falta de sensibilidade
para com as mudanças no terreno das relações de gênero (e as que reinavam no terreno da sexualidade, impondo a
heterossexualidade compulsória e, no geral, um modelo de sexualidade pautada na reprodução) que repercutem
em muitas dimensões das sociabilidades e da prática social (família, trabalho, relações entre o público e privado
etc.). De fato, não se encontram entre suas referências e entre as pessoas que ele menciona como interlocutores,
nenhuma das teóricas importantes que nos últimos vinte a trinta anos vêm produzindo literatura crítica neste
sentido. Assim, quando num capítulo deste livro ele enumera as quatro "dimensões da incerteza presente" nas
quais se arraiga a corrente atmosfera de "medo ambiente", a terceira (sendo as duas primeiras, a "nova desordem"
política do mundo e a "desregulamentação universal" que trata basicamente do abandono do interesse na situação
econômica da classe trabalhadora e na - crescente - desigualdade socioeconômica) é interpretada em termos
bastante nostálgicos:

As outras redes de segurança, tecidas e sustentadas pessoalmente, essa segunda linha de trincheiras outrora
oferecida pela vizinhança ou pela família, onde uma pessoa podia retirar-se para curar as contusões deixadas

9
pelas escaramuças do local de trabalho - se elas não se desintegraram, então, pelo menos, foram
consideravelmente enfraquecidas. A pragmática das relações interpessoais (o novo estilo da 'política de vida',
como o descreveu com grande persuasão Anthony Giddens), agora permeado pelo dominante espírito do
consumismo e, desse modo, dispondo de outro como a fonte potencial de experiência agradável, em parte merece
censura: para o que quer que a nova pragmática [ênfase minha] ainda seja boa, ela não tem como gerar laços
duradouros nem, mais seguramente, laços que se suponham duradouros e tratados como tais. Os laços que ela
gera, em profusão, têm cláusulas embutidas até segunda ordem e passíveis de retirada unilateral: não prometem
a concessão nem a aquisição de direitos e obrigações.(p. 35)

Exemplifica-se aqui, o apego que Bauman tem à antiga visão burguesa da família como refúgio privado, como
haven in a heartless world (Cf. LASCH, 1977) espaço que abriga seus membros e oferece repouso (ou
recompensa) pelos sofrimentos do mundo cruel e competitivo do público. Esta visão, no entanto, já foi
amplamente criticada; desde os anos 60 e 70, as teóricas feministas mostraram com grande coerência e muitas
fontes históricas e literárias, como tal visão escondia uma desigualdade básica entre os gêneros, que também
sustentou historicamente a negação de status civil (de cidadã plena) das mulheres. Junto com teóricos de outras
perspectivas (desde a antipsiquiatria até Foucault), foi demonstrado que as relações de poder permeavam também
a vida familiar, e que novas formas mais sofisticadas de pensar as relações entre público e privado seriam
necessárias. Foi também a partir deste reconhecimento do caráter complexo e conflitivo da vida "em família" - e
de sua íntima relação (aproveitando o duplo sentido) com outras instituições do status quo, que a busca de novas
formas de organização da vida cotidiana e dos relacionamentos amorosos e sexuais tornou-se uma meta de vários
movimentos sociais dos anos 60: a contracultura, o feminismo, os movimentos das "minorias sexuais"... E - sem
poder entrar aqui numa discussão sobre os alcances e limites dos desejos e práticas destes movimentos - as
modificações que trouxeram para a cultura contemporânea, para a renegociação de relações de poder, e para
novas definições do possível, não pode ser reduzido, como aparece geralmente nos discursos neoconservadores, a
novos individualismos ou a uma cultura de "falta de compromisso" com os outros. Assim, desaponta ver como
um pensador tão astuto como Bauman possa subestimar tanto não só o grau de sofrimento que os "velhos
arranjos" traziam para uma grande parte da população - mulheres, jovens, pessoas que não se conformavam à
"matriz heterossexual" estabelecida, etc. - senão que não considere com mais atenção e paciência, a grande
quantidade de literatura atual, que inclui muitos excelentes estudos sociológicos e antropológicos produzidos ao
redor do mundo - que mostram que muitas pessoas continuam lutando para reconstruir as sociabilidades do
"público" e do "privado", de formas que permitem viver melhor as relações humanas. 23

Bauman também discute neste livro a "fragmentação da identidade" que tanto preocupa outros sociólogos, como
Habermas e Claus Offe. Se a modernidade exigia assimilação das diferenças e adaptação a um padrão universal, a
era pós-moderna, dos "tribos e tribalismos" parece ser mais preocupante ainda, tanto na medida em que os
indivíduos sejam instigados a não se comprometerem - de mudar esquizofrenicamente de uma identidade para
outra, como se colocasse e tirasse uma fantasia - quanto no sentido de que grupos sociais, ao afirmarem sua
diferença, recusem-se a contemplar e sentir qualquer laço de semelhança ou qualquer possibilidade de
convivência profunda com outros grupos.

Em relação a este primeiro ponto, parece-me que Bauman cai num viés interpretativo comum a muitos autores
que não se dispõem a considerar com devida seriedade a proposta de certos teóricos que eles identificam com a
perspectiva pós-moderna. A teórica "queer" Judith Butler já se viu obrigada a explicar, muitas vezes, para seus
críticos que pensar nas identidades de gênero como fluídas e não fixas - fixas numa "natureza verdadeira" da
pessoa, fixas no sentido de reprodução coerente do continuum sexo/gênero/identidade sexual/objeto de desejo 24 -
não significa que os processos de construção identitárias sejam superficiais ou - muito menos - não inscritas ou
"materializadas" no corpo de uma forma que a pessoa tenha uma vivência profunda delas. O sociólogo jamaicano

10
Stuart Hall também ajuda a pensar esta questão quando, na sua crítica de uma interpretação liberal do
"multiculturalismo" - que se limita a uma "democracia da tolerância" que mantém o distanciamento entre os
grupos ou interpreta o pluralismo enquanto convivência de estilos no mercado - aponta numa outra direção: as
sociedades atuais de fato são "multiculturais", juntando grupos étnicos e raciais e produzindo novos espaços,
culturas e linguagens "híbridas". Como Hall nos lembra, a "questão multicultural também sugere que o momento
da diferença é essencial à definição de democracia como espaço genuinamente heterogêneo". (2003: p. 87)

Quando Bauman receia que a

miscifilia bem pode ser substituída pela miscifobia; a tolerância da diferença bem pode ser aliada à categórica
recusa da solidariedade; o discurso monológico, em vez de dar lugar a um discurso dialógico, cindir-se-á em
uma série de solilóquios, com os falantes não mais insistindo em ser ouvidos, mas se recusando também a
escutar" (p. 103),

ele está percebendo alguns dos perigos mais angustiantes do momento pós-moderno, que faz muito sentido desde
o lugar onde ele se situa - como observador de novos conflitos raciais e étnicos na Europa, e sendo que o
desmembramento dos países do antigo bloco comunista e seu afundamento nos antagonismos étnicos têm tudo
para marcar profundamente sua leitura da pós-modernidade, que hoje ele prefere chamar de "modernidade
líquida". Mas há a oportunidade de construir, dentre os perigos e possibilidades oferecidas pela pós-modernidade,
uma "nova lógica política" (HALL, op.cit.):

...o fato é que nem os indivíduos enquanto entidades livres e sem amarras nem as comunidades enquanto
entidades solidárias ocupam por inteiro o espaço social. Cada qual é constituída na relação com aquilo que é
outro ou diferente dela própria (ou através dessa relação). Se isso não resultar em uma "guerra de todos contra
tudo", ou em um comunalismo segregado, então devemos perguntar-nos se o maior reconhecimento da diferença
e a maior igualdade e justiça para todos podem constituir um 'horizonte comum'. Como sugere Laclau, parece
que 'o universal é incomensurável com o particular' e que o primeiro 'não pode existir sem o segundo'. Antes de
corroer a democracia, esta chamada 'falha'é 'a pré-condição para a democracia'(Laclau, 1996). Dessa forma, a
lógica política multicultural requer, pelo menos, duas outras condições de existência: uma expansão e
radicalização cada vez mais profundas das práticas democráticas da vida social, bem como a contestação sem
trégua de cada forma de fechamento racial ou etnicamente excludente (praticado por outrem sobre as
comunidades minoritárias ou no interior delas.) (p.89)

Sociologia, pós-modernidade, pós-modernismo: reconsiderando caminhos teóricos

Assim como a pós-modernidade produz diversos caminhos culturais e políticos, alguns sendo mais enfatizados do
que outros, de acordo as interpretações e leituras que dela se fazem 25, o pós-modernismo, como movimento na
política e na cultura, é complexo e sujeito a vários tipos de interpretação. Termo originalmente cunhado para se
referir a um movimento artístico nos anos 60, o qual se representava como superação do modernismo, na
Sociologia parece ter sido de pouco interesse, fora do campo específico da Sociologia da cultura e da arte. 26 Mas
para qualquer Sociologia que dê centralidade às questões de subjetividade, pensar sobre o que seria uma
sensibilidade particularmente pós-moderna torna-se muito importante.

De novo, parece que a tendência que prevalece no discurso sociológico é aquela que entende o pós-modernismo
monoliticamente como cultura afirmativa, e associa a sensibilidade pós-moderna à manipulação "hipermoderna"

11
do mundo das imagens, prazeres consumistas imediatos e ilimitados e desejos que se satisfazem sem sequer
implicar em qualquer tensão sua realização e as possibilidades ou oportunidades sociais (como teria sido o caso
"noutro momento histórico", quando a cultura propunha transcendência e a sociedade impunha renúncias e
recalque). O problema não está na "falsidade", senão na parcialidade desse ponto de vista, que falha ao não
conseguir enxergar as diversas tendências que convivem - não sem tensões - nesse momento "pós-moderno" da
arte, da cultura, da sensibilidade e da política. Dentre os vários autores que têm uma visão complexa sobre o pós-
modernismo, o trabalho de Andreas Huyssen sobressai.

Analisando o momento em que surge o pós-modernismo - que precisa ser entendido também em relação aos
movimentos artísticos e culturais do modernismo e da avant-garde histórica 27- Huyssen assinala a passagem de
um "pós-modernismo de vanguarda" nos anos 60 (uma revolta cultural contra uma "versão do modernismo que,
nos anos 50, tinha sido domesticada")28 (p. 242), para duas tendências, a partir dos anos 70: uma "cultura do
ecletismo" que era, em grande parte, uma cultura afirmativa (isto é, de aceitação do status quo e a-criticamente
celebratória de uma cultura de massas acessível a todos...) e outra, "an alternative postmodernism in which
resistance, critique and negation of the status quo were redefined in non-modernist and non-avantgardist terms".
(p. 42)

Agora, um aspecto muito importante do pós-modernismo de vanguarda, que é retido pelo "pós-modernismo de
resistência" da segunda fase, é a forma em que criativamente problematiza a relação entre a "alta cultura" e
algumas formas da cultura de massas, sendo que um elemento crítico nesta tentativa surge da auto-afirmação das
culturas minoritárias, historicamente excluídas do campo do cânone, da cultura hegemônica. Felski (1995) analisa
a relação sempre contraditória das mulheres, seus gostos, seu consumo, assim como sua produção cultural com a
cultura canônica da modernidade, que envolve sua histórica associação com uma cultura "menor" mais vinculada
com a massificação. Gilroy introduz a noção da cultura negra - tanto a produção de intelectuais negros, quanto a
cultura cotidiana ou vernácula tão bem expressa na música e nas tradições orais das suas diversas comunidades -
como sendo desde muito cedo "uma contracultura da modernidade". A partir do final dos anos 50 e inícios dos
anos 60, há uma verdadeira irrupção destas "vozes minoritárias" nos campos mais visíveis da produção artística e
cultural, que não demora em se fazer sentir na organização da vida universitária e a produção de conhecimento
científico, histórico e filosófico.

A análise de Huyssen sobre o pós-modernismo oferece mais ainda uns pontos fundamentais para nossa
compreensão do fenômeno que representa. Na sua visão, é importante distinguir entre o pós-estruturalismo, que
"oferece uma teoria do modernismo, e não uma teoria do pós-moderno" e o pós-modernismo, que contra a noção
da morte do sujeito, trabalha no sentido de elaborar "new theories and practices of speaking, writing and acting
subjects" (p. 265). Apresenta um desafio crucial ao pensamento conservador - tanto o neoconservadorismo de
direita, do qual Habermas fala - que aceita a "modernização" enquanto seus efeitos sobre o trabalho e o mercado
de consumo, mas reage contra a perda de controles autoritários tradicionais sobre a expressão cultural, a
sexualidade e as sociabilidades - quanto suas expressões "de esquerda", que reproduzem a visão de pensadores
como Adorno e Horkheimer, - mais relevantes talvez para outro momento - mas negam a contribuição particular
de formas novas "contra-hegemônicas" (particularmente "minoritárias") de viver, pensar, e sentir. Neste sentido,
Huyssen articula:

the postmodern sensibility of our time... raises the question of cultural tradition and conservatism in the most
fundamental way as an aesthetic and a political issue... My main point about contemporary postmodernism is that
it operates in a field of tension between tradition and innovation, conservatism and renewal, mass culture and
high art. (p. 264)

12
Finalmente, Huyssen articula alguns dos elementos centrais de um "pós-modernismo de resistência" como: 1)
manter uma crítica da modernização, especialmente no seu sentido imperialista e de devastadora do meio
ambiente; 2) atenção à centralidade das questões de gênero e sexualidade na sociedade, na cultura e na política e
3) promover a revalorização de culturas não-européias e não-ocidentais. Se a isto, acrescentamos um outro
aspecto muito enfatizado muito pela teórica Jane Flax, o interesse particularmente pós-moderno, ou pós-
estruturalista, de continuar sempre atentos e dispostos a "pensar sobre como pensamos" - que inclui pensar nossa
localização no espaço e no tempo das relações sociais de classe, raça, gênero, centro/periferia e como esta nos
marca - teremos um elenco de elementos extremadamente importantes para pautar o trabalho dos que, nos inícios
de um novo século, preocupam-se ainda pelo "oficio d@ sociolog@"29.

Referências

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1 Trabalho preparado para apresentação no GT de Teoria Sociológica, Congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia, Belo Horizonte,
MG, 31/maio - 3 de julho 2005.
2 Num artigo publicado recentemente no caderno Mais da Folha de São Paulo, a filósofa Susan Buck-Morss discute o sentido dos
prefixos "pós" e "neo" na terminologia da política e da teoria social contemporâneas. Embora ela identifique mais o "pós" com "a
esquerda, no momento da negação crítica, enquanto a posição 'neo' esquece o passado e suas decepções e, com uma incrível amnésia
histórica, tenta atualizar o velho", (27/11/2005:10), também brinca com os termos com uma certa ironia e relativiza a utilidade dos
termos, acrescentando mais para o final do seu texto, "Mas, se pararmos aqui, presos no pós-período, ou voltarmos sem memória para
uma neoversão do passado, então perderemos a oportunidade que o tempo compartilhado de um presente global pode oferecer".
3 Sacudidas como foram em décadas anteriores por uma série de movimentos sociais e culturais, que também tinham gerado a crítica
"pós-moderna" da cultura, pensamento e relações sociais do Ocidente moderno. Alguns exemplos interessantes deste tipo de pensamento
encontram-se num livro publicado nos EUA em 1997, intitulado Reassessing the sixties: debating the political and cultural legacy.
(MACEDO, org.)
4 Nestes argumentos, o "pós-modernismo" se tornava alvo de ataque, como "máxima expressão" de uma tendência de desprezar a
"cultura ocidental", a "civilização" e a ciência.

14
5 Três autores marxistas contemporâneos que interpretaram e avançaram críticas influentes do "pós-modernismo" são Perry Anderson,
Terry Eagleton e Frederic Jameson. Estes dois últimos, com formação e atuação na área de crítica literária, destacam-se em certos
momentos por seus profundos insights sobre a cultura moderna e seus desdobramentos na contemporaneidade. Contudo, considero que
reproduzem um tipo de viés que estarei discutindo, neste trabalho, enfocando a produção de outros autores. Sobre Jameson e sua visão
da pós-modernidade, fiz alguns comentários noutro lugar (ADELMAN, op.cit.); uma discussão mais detalhada ficará para outro
momento.
6 De fato, meu trabalho vem ao encontro de outros esforços de enriquecer o trabalho de crítica ao transitar mais livremente pelas
fronteiras disciplinares. Reconheço, entre outras coisas, minha aprendizagem através da leitura da autora inglesa Rita Felski (1995) que,
com formação na área de crítica literatura, vem realizando uma análise muito astuta de discursos sociológicos clássicos, assim como de
alguns debates da teoria social contemporânea.
7 Cf. Adelman, Miriam. (op.cit.)
8 Ver primeiro e segundo capítulo da minha tese de doutoramento (idem)
9 Contudo, parece que vem a prevalecer a construção de uma espécie de oposição política entre ambos os termos, que tende a romantizar
um conceito às custas do outro (que por sua vez, se torna significante de todas as contradições ou formas de opressão/alienação social
possíveis)
10 Ver Segal (1999) para uma excelente discussão destas "ansiedades de gênero" e seu lugar na cultura e nos discursos contemporâneos.
11 Com certeza, é isto que Bauman está reconhecendo quando argumenta que hoje em dia, precisa fazer uma opção entre "uma
Sociologia da pós-modernidade" e uma "Sociologia pós-moderna".
12 Talvez a tendência à confusão no emprego dos conceitos venha de um enganoso paralelo que é comumente feito, entre
"modernidade/modernismo" e "pós-modernidade/pós-modernismo". Mas, como a obra de autores como Huyssen e Felski ajudam a
compreender, o amplo período histórico que adquire o nome de "modernidade" produziu uma série de movimentos na cultura e no
pensamento, entre os quais o modernismo - movimento neste sentido tardio, que emerge somente no final do século XIX - é apenas um,
embora tantas vezes no século XX considerado como o paradigmático. E, ainda mais, o próprio modernismo precisa ser visto de uma
forma mais complexificada - diferenciando, por exemplo, sua vertente avant-garde de outras de suas manifestações- para chegar a uma
compreensão mais profunda da sua relação com o pós-modernismo.
13 Como ele explica, estes neoconservadores abraçam a modernização tecnológica, científica, econômica e administrativa da sociedade,
mas não suas "conseqüências" ou dimensões culturais e subjetivas. É por isso que eles recomendam "una política que diluya el
contenido explosivo de la modernidad cultural".(p.31)
14 Lembra neste sentido o argumento do Touraine, em Crítica da Modernidade, que se baseia no estabelecimento da dicotomia entre
sujeito/razão (instrumental).
15 Como voltarei a discutir mais adiante, Bauman acredita que todos estaríamos dialogando, de alguma ou outra forma, com/sobre a
pós-modernidade, seja como analistas críticos dos fenômenos específicos ou aspectos específicos dos fenômenos do mundo atual, ou
adotando seus discursos "sintomáticos" (embora ele se distancie desta última opção).
16 Seu argumento aqui se parece bastante com o da filósofa feminista norte-americana Susan Bordo no livro Flight to Objectivity
(1987). Bordo acrescenta a este tipo de discussão, as novas representações do masculino e do feminino que fazem parte do esforço, a
partir de Descartes, de criar "através da razão" e da manipulação prática/técnica da natureza, um mundo que resiste à contingência e
desordem; encontra, nas novas ansiedades sobre a controlabilidade da vida, aspectos que dizem respeito às ansiedades sobre práticas de
sujeitos masculinos e femininos.
17 "Among the expert-intensive techniques, one spots immediately those central to panoptic control, like surveillance, 'correction',
welfare supervision, 'medicalization' or 'psychiatrization', as well as the servicing of the general legal/penal system; or themany
professions called into service and prominence due to the growing importance of needs-creation and entertainment as a paramount
network of social control. Many more areas particularly hospitable to experts can be seen, however, as ultimately related to the modern
techniques of power, though in a somewhat less obvious way." (BAUMAN, p. 15.)
18 Um pouco mais adiante, Bauman afirma: "In the world of imagined communities, the struggle for survival is a struggle for access to
the human imagination." (1992: xx) Mas deveríamos problematizar a forma em que Bauman se apropria do conceito de "imagined
communities" introduzido por Benedict Anderson no seu famoso livro que leva essa frase como título. O referente temporal de Anderson
não é pós-moderno senão moderno, e as "comunidades imaginadas" denotam uma construção mistificada de identidade nacional que
está na raiz dos nacionalismos modernos. O conceito construído por Anderson, que depois se torna muito importante no léxico dos
Estudos Culturas (na obra de autores como Stuart Hall e Arjun Appadurai), tampouco incentiva uma separação de dimensões "materiais"
e "simbólicas" no que tange ao estabelecimento destas comunidades políticas, pois, a partir do um imaginário particular sustentam - e
também refletem - relações de opressão bastante materializadas. Por sua vez, uma aplicação deste conceito a realidades pós-modernas
me parece exigir mais cuidados; perguntar exatamente a que tipo de "comunidades imaginadas" se refere, e se podem ser todas "postas
no mesmo saco". Por exemplo, as "comunidades diásporicas" caribenhas e indianas analisadas por Hall e Appadurai geralmente
envolvem vínculos com novos (ou vários) lugares, de tal forma que a des-territorialização é relativa e não absoluta, e as relações entre as
pessoas não necessariamente perdem sua dimensão de materialização em interações cotidianas face-a-face, embora hoje em dia operem
também através das redes do ciberespaço, em contextos "virtuais".

15
19 Contudo, não critica só "os pós-modernos" senão também autores atuais que se posicionam "contra a pós-modernidade", no sentido
de negar o termos chegado a um momento "suficientemente diferente" ou novidoso para requerer o desenvolvimento de novas categorias
teóricas. Sua crítica ao modelo de "sociedade em crise" presente em autores como Sennett, Lasch, Habermas, Offe e Gorz, vale muito a
pena visitar.
20 Este ponto de vista não impede Bauman de identificar um uso abrangente demais do conceito de pós-modernidade que ignora as
evidências de que os fenômenos geralmente descritos como características básicas da pós-modernidade restringem-se ou prevalecem, na
verdade, só em algumas partes "privilegiadas" do mundo. Se isto constitui, de certa forma, uma contradição dentro do próprio argumento
de Bauman é um ponto que me parece digno de consideração; em todo caso, é uma questão muito complexa que tem sido abordada de
uma maneira particularmente instigante pelo antropólogo indiano Arjun Appadurai (Modernity at Large: The Cultural Consequences of
Globalization) e pelo sociólogo jamaicano Stuart Hall, em vários trabalhos seus.
21 Uma parte do seu argumento diz respeito a uma suposta substituição de "old skills", que não eram gerados ou não "dependiam" do
mercado por "new skills"que se constituem através de e dependem do mercado. Este é um dos vários pontos em que falta mais evidência
empírica; é minha suspeita que se trata, em muitos casos mais das "mesmas habilidades" antes desenvolvidas principalmente por
mulheres dentro da esfera doméstica ou privada que passam a realizar-se fora desta, geralmente no contexto de serviços pagos. Em que
medida estas "velhas/novas habilidades" sejam a sua vez transformadas pelo novo contexto também me parece fascinante tema de
pesquisa (que de fato, já vem sendo realizada dentro de áreas como estudos de gênero, Sociologia do consumo, da família etc.); porém, o
tratamento parcial ou problemático que Bauman dá ao tema me parece refletir o grande problema que discutirei adiante - as
consequências enormes que me parece ter, para seus argumentos, a negligência total das dimensões de gênero da vida social, moderna e
pós-moderna. Neste caso específico, o fenômeno que ele coloca merece ser examinado à luz da questão de seus possíveis significados,
enquanto parte do grande movimento de fluxo das mulheres para sua ocupação de cada vez maior espaço público - que também deve ser
visto não em simples termos de "mudanças propiciadas pelo capital", senão como resultado de reivindicações e lutas femininas.
22 De fato, existe tanta literatura deste tipo produzida nas ciências sociais hoje, que começar a listá-la não me é possível neste momento.
Um livro recente que me chamou a atenção, que parte da perspectiva das mudanças enormes nos processos que regem a intimidade e os
relacionamentos e procura contribuir para a construção de um novo paradigma legal para poder ir além da dicotomia autonomia
individual/bem estar coletivo, é Regulating Intimacy: a New Legal Paradigm, de Jean L. Cohen (2003).
23 Como Butler explica no seu livro Gender Trouble, a matriz heterossexual da cultura moderna instaura normativamente a
correspondência necessária entre "sexo" (macho ou fêmea)/gênero (homem ou mulher)/identidade (homem masculino/mulher
feminina)/objeto de desejo (mulher para homem/homem para mulher) sem que isto esgote as práticas reais das pessoas - ao longo da
História, as "performances subversivas", ou transgressões, sempre apareciam para interromper essa cadeia. A pós-modernidade como
momento cultural multiplica as possibilidades e oportunidades para essas transgressões, gerando vários movimentos sociais que
contestam a ordem de sexo/gênero/poder que pautava esse modelo.
24 Não gostaria que esta afirmação fosse tomada como um relativismo "radical pós-moderna"; estou querendo dizer que há na pós-
modernidade, tendências diversas que se mantêm em tensão umas com outras, e que os processos históricos que levarão a hegemonia de
umas e outras continuam também. No entanto, é claro que os diversos autores e autoras aqui discutidas fazem suas escolhas de ênfase a
partir das suas próprias "posições de sujeito" - posições que refletem afiliações teóricas e inserções sociais.
25 Parece-me importante, neste ponto, a observação do sociólogo inglês Mike Featherstone: "Pode ser que o conceito tenha pouca
utilidade duradoura para as ciências sociais (pelo menos se a ênfase for colocada no termo 'ciência'), sendo ele mesmo um produto dos
processos de desmonopolização na vida acadêmica, que estão pondo abaixo algumas das barreiras entre os sujeitos e as instituições
baseadas no sujeito. Tais tendências são inimigas da manutenção da ciência. O termo, porém, pode ter alguma utilidade no modo pelo
qual direciona nossa atenção para a mudança cultural". (1997:68-69)
26 No seu excelente livro, After the Great Divide: Modernism, Mass Culture, Postmodernism (idem) Huyssen discute os elementos
críticos do modernismo, assim como seu freqüente apego à ideologia da modernização, sua afirmação de uma esfera artística separada
da vida cotidiana (associada à banalidade e às massas) e seu profundo desprezo (elitista) por quaisquer expressões da cultura popular/de
massas. A avant-garde histórica surge, por sua vez, com uma proposta de re-unir "arte" e "vida". Ele explica: "Modernism constituted
itself through a conscious strategy of exclusion, an anxiety of contamination by its other: an increasingly consuming and engulfing mass
culture. Both the strengths and the weaknesses of modernism as an adversary culture derive from that fact...However, modernism's
insistence on the autonomy of the art work, its obsessive hostility to mass culture, its radical separation from the culture of everyday life,
and its programmatic distance from political, economic and social concerns was always challenged as soon as it arose..." (p. vii),
primeiro pela avant-garde histórica, e posteriormente, pelo pós-modernismo.
27 Caracterizado, por Huyssen, (1) pela sua imaginação temporal que "displayed a powerful sense of the future and of new frontiers, of
rupture and discontinuity, of crisis and generational conflict", (2) por seu assalto iconoclasta à instituição da arte, que inclui a forma em
que o papel da arte era socialmente definido e percebido, assim como suas formas de produção, marketing, distribuição e consumo (3)
pelo seu "otimismo tecnológico" e (4) sua muitas vezes pouco crítica tentativa de valorizar a cultura popular, como contrastando com o
cânone da alta cultura, seja modernista ou "tradicional".
28 Caracterizado, por Huyssen, (1) pela sua imaginação temporal que "displayed a powerful sense of the future and of new frontiers, of
rupture and discontinuity, of crisis and generational conflict", (2) por seu assalto iconoclasta à instituição da arte, que inclui a forma em

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que o papel da arte era socialmente definido e percebido, assim como suas formas de produção, marketing, distribuição e consumo (3)
pelo seu "otimismo tecnológico" e (4) sua muitas vezes pouco crítica tentativa de valorizar a cultura popular, como contrastando com o
cânone da alta cultura, seja modernista ou "tradicional".
29 Refiro-me aqui somente a uma certa especificidade do olhar sociológico, e sem com isso querer defender qualquer tipo de
policiamento de fronteiras disciplinares. (Ver ao respeito: ADELMAN, 2004. Conclusões)

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Programa de Pós-Graduação em Sociologia - UFRGS

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Scientiae Studia
versão impressa ISSN 1678-3166

Sci. stud. vol.6 no.1 São Paulo jan./mar. 2008

doi: 10.1590/S1678-31662008000100003

ARTIGOS

Desencantamento da modernidade e da pós-modernidade: diferenciação, fragmentação e a matriz de


entrelaçamento

Terry Shinn

Pesquisador do GEMAS (UMR 8598), Maison des Sciences de l'Homme de Paris, França. shinn@msh-paris.fr

RESUMO

Em muitos setores significativos, mudou apreciavelmente o tom e a substância do discurso sociológico sobre o
passado, o presente e o futuro da cultura em geral, sobre as instituições, o conteúdo das aspirações e relações
individuais, e também sobre a matéria e a organização da ciência, da tecnologia e da epistemologia. O discurso da
sociedade pós-moderna e, correspondentemente, os fenômenos de suporte intelectual e social oferecem algum
crédito para os argumentos de que o mundo de hoje e os prospectos de amanhã estão em contraste radical, e
mesmo em assimetria, com o mundo dos últimos dois séculos e meio. O propósito deste artigo é triplo. Primeiro,
é necessário identificar os domínios específicos nos quais as alegações pós-modernas diferem das noções
dominantes da representação moderna da sociedade e da ciência. Quais são as maneiras pelas quais a pós-
modernidade forja conceitos substitutos e repudia conceitos da modernidade ou, de modo alternativo, até que grau
procura-se construí-los em vista das recentes mudanças cognitivas, tecnológicas e sociais, mesmo se situando,
todavia, no interior do quadro referencial da modernidade? Segundo, o que constitui a mensagem fundamental,
cultural e cognitiva, da pós-modernidade? Em que tal mensagem rompe autenticamente com a modernidade e
onde ela procura distintamente destruir os próprios fundamentos do pensamento da modernidade? Quais são as
implicações putativas para a ciência, a tecnologia e a própria epistemologia? Finalmente, propor-se-á aqui uma
alternativa à análise pós-moderna, uma alternativa que depende de características básicas do pensamento moderno
e que, entretanto, incorpora eventos que transformaram inegavelmente o homem, a máquina, o material e a
epistemologia nas últimas décadas e que, desse modo, redesenha o mapa da modernidade especificando as
componentes e os modos de interação e extensão alternativos. Essa hipótese pode ser vista como uma ponte entre
a modernidade clássica e a pós-modernidade, e também como um desvio em relação a estas. Essa linha de
pensamento pode ser, por ora, grosseiramente rotulada de "pós-pós-modernidade". A hipótese está baseada em
uma "matriz de entrelaçamento", a qual mobiliza três noções fundamentais que são fortemente informadas pela
experiência contemporânea na ciência e na tecnologia, embora não exclusivamente por esses domínios. O lugar
central atribuído aqui ao conhecimento e à epistemologia não é despropositado, em vista de sua primazia no fluxo
da ação hodierna (na inovação, na vida diária, na política).

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Palavras-chave: Pós-modernidade. Modernidade. Weber. Lyotard. Latour. Jameson. Beck. Gibbons. Durkheim.
Matriz de entrelaçamento.

INTRODUÇÃO

Em muitos setores significativos, mudou-se apreciavelmente o tom e a substância do discurso sociológico sobre o
passado, o presente e o futuro da cultura em geral, sobre as instituições, o conteúdo das aspirações e relações
individuais, e também sobre a matéria e a organização da ciência, da tecnologia e da epistemologia. É correto
dizer que, em alguns casos, observações sérias estão subjacentes a essa transformação discursiva e que, até
mesmo com muita freqüência, é possível interpretar eventos selecionados, ou características restritas de eventos
selecionados, em apoio a uma tese de mudança radical da sociedade e do conhecimento contemporâneos. O
discurso da sociedade pós-moderna e, correspondentemente, os fenômenos de suporte intelectual e social
oferecem algum crédito para os argumentos de que o mundo de hoje e os prospectos de amanhã estão em
contraste radical, e mesmo em assimetria, com o mundo dos últimos dois séculos e meio. Muitas prescrições pós-
modernistas conduziriam à conclusão de que a auto-interpretação, o auto-monitoramento e a auto-legislação de
nossa época deslocam e destroem formas prévias de representações e interações sociais, e de que elas alteram
totalmente o conteúdo, a organização e a epistemologia do trabalho científico e tecnológico (cf. Scott, 1997).

O propósito deste artigo é triplo. Primeiro, é necessário identificar os domínios específicos nos quais as alegações
pós-modernas diferem das noções dominantes da representação moderna da sociedade e da ciência. Quais são as
maneiras pelas quais a pós-modernidade forja conceitos substitutos e repudia conceitos da modernidade ou, de
modo alternativo, até que grau procura-se construí-los em vista das recentes mudanças cognitivas, tecnológicas e
sociais, mesmo se situando, todavia, no interior do quadro referencial da modernidade? Segundo, o que constitui a
mensagem fundamental, cultural e cognitiva, da pós-modernidade? Em que tal mensagem rompe autenticamente
com a modernidade e onde ela procura distintamente destruir os próprios fundamentos do pensamento da
modernidade? Quais são as implicações putativas para a ciência, a tecnologia e a própria epistemologia?
Finalmente, propor-se-á aqui uma alternativa à análise pós-moderna, uma alternativa que depende de
características básicas do pensamento moderno e que, entretanto, incorpora eventos que transformaram
inegavelmente o homem, a máquina, o material e a epistemologia nas últimas décadas e que, desse modo,
redesenha o mapa da modernidade especificando as componentes e os modos de interação e extensão alternativos.
Essa hipótese pode ser vista como uma ponte entre a modernidade clássica e a pós-modernidade, e também como
um desvio em relação a estas. Essa linha de pensamento pode ser, por ora, grosseiramente rotulada de "pós-pós-
modernidade". A hipótese está baseada em uma "matriz de entrelaçamento", a qual mobiliza três noções
fundamentais que são fortemente informadas pela experiência contemporânea na ciência e na tecnologia, embora
não exclusivamente por esses domínios. O lugar central atribuído aqui ao conhecimento e à epistemologia não é
despropositado, em vista de sua primazia no fluxo da ação hodierna (na inovação, na vida diária, na política).

Será aqui sugerido que o sistema de entrelaçamento da pós-pós-modernidade incorpora três princípios centrais.
(1) A unidade operacional da matriz de entrelaçamento consiste de um "referente" que se define por uma forma
específica de ação distinguível de referentes alternativos, forma essa que possui fronteiras, é auto-referente e que
encerra um núcleo estável, porém maleável à mudança e aberta à recombinação com outros referentes. (2) A
matriz de entrelaçamento possui uma lógica dominante de circulação de idéias, materiais e pessoas entre os
referentes, provocando, desse modo, a recombinação, a qual altera aspectos do referente inicial, ainda que esse
referente genético retenha suas características originais, embora enriquecida por meio do entrelaçamento com
outros referentes. O entrelaçamento de referentes não resulta em um híbrido. Em vez disso, origina uma malha

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dinâmica de componentes identificáveis de colaboração e de sinergia que são historicamente enraizados. (3)
Referentes entrelaçados podem estabilizar-se e, desse modo, chegar a constituir territórios mais amplos.
Territórios com base no entrelaçamento contêm simultaneamente a substância e a marca de seus múltiplos
referentes nucleares fundamentais. Todavia, os territórios constituem extensões que adquirem cumulativamente
novas características. O território de entrelaçamento expressa, assim, seus componentes referenciais autônomos e
constitui as formas de ação, de conhecimento ou de epistemologia que é mais do que a adição de suas unidades
fundamentais. Os territórios entrelaçados não são necessariamente permanentes e, algumas vezes, estão sujeitos a
uma existência provisória ou ao sucesso e à estabilidade moderados, seguidos de dissolução. Argumentar-se-á que
a ciência, a epistemologia e também os processos e estruturas da globalização são mais bem entendidos como
uma matriz de entrelaçamento do que nos termos oferecidos pela reflexão da pós-modernidade ou pela
perspectiva da modernidade clássica.

1 ECOS DA "MODERNIDADE"

A modernidade anunciou o fim do sagrado que marcava a pré-modernidade a sacralidade da crença na salvação e
o espírito de pertinência e coesão da comunidade. Na modernidade, esse embasamento existencial do pensamento
e da conduta individual e coletiva dá lugar a um zeigeist de "desencantamento" e de "gaiola de ferro", tão
eloqüentemente expresso por Max Weber como metáfora para a modernidade (cf. Scott, 1997; Weber, 1993).1
Seis conceitos centrais estão na base do que veio a ser conhecido como "modernidade": a epistemologia racional
crítica, a "universalidade", o ideal iluminista de progresso, a diferenciação estrutural, a integração funcional e o
determinismo (cf. Habermas, 1987). A partir desses princípios, segue-se uma plêiade de instituições acessórias, de
formas de interação social, um tipo de conhecimento e um sistema epistemológico dominante para estudar o
mundo material e social, experienciando-o e nele vivendo.

A modernização incorpora duas tradições que, em certa medida, reforçam-se reciprocamente: a corrente
"emancipatória" e a corrente "tecnológica". São exemplos emblemáticos da corrente emancipatória a Revolução
Francesa e a declaração de auto-determinação para todos, feita pelo presidente Woodrow Wilson em 1917, a qual
se tornou depois efetiva com o Tratado de Versailles. O componente emancipatório da modernização foi
encarnado no Estado-nação, o qual introduziu os princípios de cidadania, dever, burocracia, direitos e
responsabilidades institucionais e, não menos importante, de fronteiras. Estas últimas são as do Estado-nação,
construídas em torno da linguagem, da geografia, da história, da cultura e da política. A centralidade da fronteira
estende-se similarmente para a classe, a profissão, a etnia, a diversidade mental ou sexual, o privilégio e a
obrigação. Embora a modernização emancipatória exaltasse o individualismo, esse tipo de individualismo era
amplamente padronizado e estritamente monitorado e disciplinado. Novamente, a doutrina weberiana da
burocratização do Estado-nação assegurava o consentimento ou, quando requerido, as sanções. Com efeito, um
sistema demarcado pela diferenciação estrutural e pela integração funcional. É correto ver a modernidade como
um sistema de reações institucionais e individuais definido por fronteiras. A modernidade é um sistema
diferenciacionista. Tal diferenciação dominou as atividades internas do Estado-nação e igualmente abasteceu a
tendência de grande expansão em direção à aquisição colonial, sempre que a emancipação não fosse seriamente
aplicada. Partidos políticos, tanto conservadores como liberais, esforçaram-se durante décadas para sustentar essa
fronteira diferenciacionista traçada pela modernidade, enquanto as iniciativas do socialismo procuraram
ulteriormente torná-la mais palatável a uma base social mais ampla (cf. Stein, 1995).

A partir do cenário iluminista da modernidade, o componente tecnológico desenvolveu-se paralelamente à


corrente emancipatória. Durante a segunda revolução industrial e, mais claramente, no início do século xx, sua

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lógica e ramificações sociais eclipsaram, de modo geral, os impulsos em direção às ambições emancipatórias da
modernidade. Um exemplo emblemático dessa ascendência é a obtenção, por parte das escolas técnicas alemãs,
em 1900, do privilégio de oferecer o grau de doutor em ciência e em engenharia. Isso significou um enorme
ganho simbólico para a tecnologia, sua produção industrial e seu modo de vida, em detrimento do sistema
universitário filosoficamente orientado de educação superior. Ecoando a emancipação, o braço tecnológico está
baseado na racionalidade, na universalidade, na diferenciação estrutural e na integração funcional. A ciência junto
com a tecnologia constitui o foco essencial.2

Na modernidade, a tecnologia expressa três imperativos inevitáveis. Primeiro, a tecnologia significa


arregimentação numa escala jamais vista, o que contrasta totalmente com a maioria dos ofícios pré-modernos ou
mesmo com as antigas atividades manufatureiras. O trabalho e os trabalhadores devem ser arregimentados,
disciplinados e as tarefas transformadas em funções e integradas. A máquina tornou-se a palavra-chave para a
tecnologia moderna. A configuração das fronteiras foi aqui central, estendendo-se à ciência, às disciplinas
científicas e à comunicação entre elas, na mesma medida que à produção tecnológica. Segundo, a tecnologia
estava ligada à ideologia comteana do progresso científico e humano. Esse conceito de progresso inevitável tinha
sido inicialmente enunciado, no final do século xviii, por Condorcet com referência ao conceito de progresso
humano; assim, a filosofia de Condorcet e de Comte fundiram-se para tornar-se uma peça central da
modernidade. Para Weber, esse amálgama de progresso técnico inevitável, o qual se estende para sempre e é
fomentado pela força implacável da burocracia, aprisiona o homem em sua "gaiola de ferro". O desencantamento
do indivíduo deriva da falta de perspectiva, do fracasso ou da desesperança na felicidade devido a certos
progressos agressivos da máquina tecnológica. Porque a espécie humana nunca pode esgueirar-se no passado,
nem perscrutar seu destino futuro, não há lugar seja para o desencantamento, seja para a esperança perplexa.
Terceiro, a tecnologia reduziu a margem de liberdade do indivíduo. Embora a modernidade represente um avanço
nos direitos e deveres individuais, os espaços da liberdade e da liberação estão limitados, na modernidade, pelos
imperativos da universalidade homogeneizadora, pela racionalidade inconstante e pela integração e
funcionalidade tecnologicamente impostas. A obediência e o alinhamento constituem o âmago da hierarquia, a
qual, por sua vez, constitui o fundamento da burocracia tecnológica e civil.

O determinismo é onipresente. Ele contém o fundamento para a lógica do progresso humano inevitável. Leis
deterministas estão no centro das epistemologias do conhecimento científico e da tecnologia. As trajetórias
sociais, intelectuais, civis e mesmo pessoais do indivíduo são também a conseqüência de forças deterministas que
fecham certas vias enquanto abrem outras. A modernidade é, assim, um sistema marcado pela causalidade e por
fronteiras. Não se sugere aqui que a modernidade é um sistema totalmente fechado ou estático, pois a
transformação está incorporada no conceito de progresso. Todavia, o mapa do progresso se realiza confinado aos
princípios lineares e inexoráveis da modernidade.

Na metade do século xx, e mesmo antes, a lógica modernista da produção taylorista difundiu-se entre os países
desenvolvidos. Os indivíduos buscavam a aquisição de produtos adicionais e inovadores de modo mais impulsivo
do que, em muitos casos, a emancipação. Mostravam-se, assim, prontos para traduzir as complexidades do início
da modernidade, a qual possuía um lado emancipatório e um lado tecnológico, em preferência por mercadorias e
pelo crescimento do capitalismo a qualquer preço. Certamente, isso não pode impugnar os ganhos da maior
expectativa de vida, da melhor saúde, do maior conforto, do trabalho menos fisicamente penoso, do maior lazer
etc. O homem tornou-se o servo da tecnologia, e esta e tudo o que a ela se conecta representam, por sua vez, a
multiplicação da diferenciação e das fronteiras.

21
2 AS VOZES DA PÓS-MODERNIDADE

A mensagem da pós-modernidade é definitivamente menos consensual e homogênea do que as descrições e


análises da modernidade. Existem numerosas nuances e sutilezas analíticas nos escritos pós-modernos. Há,
todavia, concordância quanto a algumas proposições centrais. Mas, ao mesmo tempo, é possível perceber
considerável trabalho desviacionista, a maioria do qual poderia ser considera, não obstante, como o pensamento
de compadres pós-modernos. Ainda mais, umas poucas figuras, comumente consideradas como centrais para a
visão pós-moderna, estão atualmente sendo reexaminadas e, de fato, estão afastadas dos princípios pós-
modernos.3

De onde provém a reflexão preliminar da pós-modernidade? O estudante com discernimento em história da


ciência certamente perceberia a pós-modernidade pressagiada no clássico artigo de Paul Forman, publicado em
1971, o qual examina as origens e a dinâmica da não-causalidade na física da República de Weimar. Durante os
anos 1920, muitos eminentes cientistas alemães, tanto teóricos como experimentais, abandonaram a interpretação
causal e determinista do comportamento dos eventos físicos microscópicos, renunciando, desse modo, a sua
crença anterior de que seria possível apreender a causa dos eventos. Na medida em que os fenômenos atômicos
podiam ser descritos, as forças subjacentes eram não-causais. Esse mesmo movimento em direção à não-
causalidade e de afastamento em relação ao determinismo anterior estava igualmente presente na matemática
intuicionista. Forman atribui essa adoção da não-causalidade e rejeição virulenta do determinismo à expansão, na
Alemanha, do neo-romantismo, tal como se vê nos escritos de Spengler. Segundo Spengler, o entendimento
profundo reside no livre-arbítrio do indivíduo, na intuição e na psicologia. A causalidade, o determinismo, a
universalidade etc. não constituíam o modo de avançar nem na cultura em geral nem na ciência. Forman sugere
que, pelo bem ou pelo mal, o neo-romantismo valorizava o espírito e a ação livres e desimpedidos do indivíduo;
alimentava um novo espírito na cultura e na ciência, abrindo o caminho tanto para novas formas de ceticismo
como para novos espaços de liberdade. A introdução concomitante da incerteza na vida e no conhecimento reflete
claramente as dúvidas acerca da mensagem moderna padrão.

Em 2007, Forman defendeu explicitamente a pós-modernidade em um longo artigo, no qual insiste na tese pós-
moderna da reversão do estatuto e significado cultural da ciência e da tecnologia (cf. Forman, 2007). Forman
declara que, durante a modernidade, a ciência usufruiu de uma importância superior, enquanto que, na era pós-
moderna hodierna, a tecnologia é superior. Ele repreende severamente muitos historiadores da tecnologia pelo
fracasso em perceber essa inversão entre a tecnologia e a ciência como culturalmente superiores, e também por
curvarem-se implicitamente diante do primado incorreto da ciência. Forman afirma que o tempo da ciência está
definhando devido à falta de confiança em seu domínio. A ciência produziu incontáveis desastres. A fé pública na
ciência está abalada. Além disso, a ciência está moldada em uma lógica de disciplinaridade acadêmica, em
fronteiras entre universidade e empresa, na certeza epistemológica, na linearidade, no determinismo e
universalidade etc., os quais não estão no mesmo passo que a descrença, o ceticismo, a complexidade (cf. Rasch,
1991), o caos e a não-linearidade da pós-modernidade. Forman, por razões não estipuladas, parece datar a
primazia da pós-modernidade na cultura em algum momento por volta de 1980, mas, para outros autores, sua
introdução se deu, antes, por volta da metade do século. Para todos os porta-vozes da pós-modernidade, a ciência
e sua relação com a tecnologia são cruciais para o rompimento com a modernidade. Para alguns observadores, a
destruição dos princípios do progresso irreversível e do bem na ciência terminou com a explosão, em 1945, da
bomba atômica. Para outros, a ciência tornou-se desacreditada e a crença no progresso se colapsou na medida em
que a ciência contribuiu para a produção de bens de consumo e para uma deterioração ambiental. As crises
nacionais posteriores a 1945 erodiram a aceitação da crença no Estado-nação. E mais, a burocracia e a
racionalidade da organização total da sociedade e do indivíduo enfrentaram um ceticismo crescente após a metade
do século à medida que grupos minoritários começaram a insistir na legitimidade ou na igualdade de sistemas

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alternativos de epistemologia não cientificamente sustentados. A descrença na ciência e as dúvidas acerca de
muitos aspectos relacionados à modernidade proporcionaram, assim, um terreno fértil para a reflexão anti-
moderna e para a emergência da visão de mundo pós-moderna. A metade do século xx, com suas novas formas de
cognição e de tecnologia, é também comumente associada à gênese da pós-modernidade. Pode-se citar aqui os
campos da teoria do caos, da engenharia genética, da cibernética, dos estudos de não-linearidade e complexidade,
do desenvolvimento e difusão do computador e da capacidade de simulação da realidade, da geração da realidade
virtual, da supremacia da imagem como entretenimento e também como um novo dispositivo epistemológico , da
comunicação global etc. (cf. Gibbons et al., 1994; Nowotny et al., 2001; Etzkowitz & Leydesdorff, 1997). A
totalidade desses novos domínios cognitivos enfatiza a indeterminação e a contingência, dois fios que perpassam
todo o pensamento pós-moderno. A extensão na qual essa nova visão alternativa de mundo expressa
primariamente as percepções acadêmicas de ruptura radical (e que constituem, assim, linhas de especulação
amplamente interessantes) e em que medida a mensagem pós-moderna descreve acuradamente as alterações nas
atitudes e ações sociais e individuais, isso está ainda para ser estabelecido por meio de pesquisa empírica,
abundante, séria e metodologicamente fundada, antes que pela reflexão meramente teórica.

3 O GRUPO CENTRAL

Jean-François Lyotard (1924-1998) é incontestavelmente a figura mais emblemática da filosofia da pós-


modernidade. Seu livro, La condition postmodern (A condição pós-moderna), publicado em 1979, foi
rapidamente seguido por dois volumes adicionais que tratavam do mesmo tópico (Lyotard, 1979, 1983, 1988). A
formulação de Lyotard do conceito de pós-modernidade pode ser considerada como a culminação de seu
descontentamento longamente expresso com os princípios da modernidade. Ao longo da maior parte de sua
carreira, Lyotard criticou vigorosamente a filosofia marxista, as idéias que se seguiam da Escola de Frankfurt e,
em particular, Adorno. Sua defesa do que chamou "pós-modernidade" representa uma alternativa à catástrofe
evidente da modernidade, que, para ele, era o Shoah que compreendia o resultado lógico e último da experiência
moderna. Com efeito, porta-voz da pós-modernidade, Lyotard milita por um tipo muito diferente de ordem social
e econômica do que aquela supostamente proferida pela modernidade (cf. Lyotard, 1979, nota 11). No caso de
Lyotard, assim como de muitos outros filósofos e sociólogos defensores da pós-modernidade, o nascimento e
subseqüente desenvolvimento do conceito expressa mais uma reação contra o que se percebe como doenças da
modernidade do que constitui uma construção positiva original construída em torno de novas noções e visões. A
pós-modernidade emerge comumente como um movimento baseado em "anti"-posturas; e esse é claramente o
caso em Lyotard.

Lyotard protesta contra o formato da "grande narrativa" que domina o retrato modernista da história. Essa grande
narrativa, ele insiste, indica falsamente que muito do que é útil na história originou-se no Iluminismo, que desde o
Iluminismo a humanidade progrediu cognitivamente com rapidez, assim como em termos de liberdade, igualdade
e fraternidade. A grande narrativa histórica também impôs esses valores na escala universal. Não é somente a
ciência que é considerada universal, mas também os esquemas de valores e a ética da modernidade. Lyotard
rejeita a alegação de que a humanidade progrediu nos séculos recentes de que há hoje um estoque maior de
liberdade do que no passado. O nazismo e o comunismo atestam esse fato.

A modernidade, na realidade, solapou a individualidade. Assim, por exemplo, Lyotard rejeita o Estado de bem-
estar social, o qual alega-se constituir um grande avanço na solidariedade social, pois o indivíduo abandona a
responsabilidade por seu próprio destino pessoal. Por força do Estado-nação e de seus muitos projetos de
burocratização, a individualidade tornou-se uma casca vazia. Um princípio central da pós-modernidade de

23
Lyotard é sua insistência na "diferença". Ela requer pluralismo na escolha e ação individuais. A ética universalista
elimina a legitimidade da diferença individual e do pluralismo.

A posição de Lyotard sobre a ciência e a tecnologia é complexa e algumas vezes ambígua. Pode até mesmo ser
julgada como ocasionalmente contraditória. A ciência contém um mal, na medida em que representa um
componente fundamental do universalismo destrutivo. A ciência tornou-se uma divindade no pensamento da
modernidade e é, portanto, uma fonte de fechamento. Além do mais, gerou incontáveis efeitos materiais
perigosos. Assim, Lyotard tende a condenar a ciência e a P&D (pesquisa e desenvolvimento) que se tornou a
pedra angular da política e do investimento do Estado moderno. Lyotard notou que, já no processo de
modernização, ocorrera uma aceleração incessante na inovação e nos objetos materiais; e levantou a suspeita de
que a tendência de aceleração estava se tornando mais intensa na pós-modernidade. A ciência também é atacada
por conter um domínio homogeneizador. Lyotard sublinha que não são novos fatos e informação que conta, mas
antes o arranjo e a recombinação dos fatos. Isso requer imaginação individual a antítese da ciência. Lyotard
propõe uma alternativa para a ciência: a "tecnociência". Ele declara que a eficácia é sempre um sub-produto e
raramente emerge da pesquisa apropriada. Na pós-modernidade, a tecnociência inventaria conhecimento e
produtos benéficos para a humanidade, baseados em necessidades sociais verdadeiras e não em esotéricas
considerações ou em resultados potencialmente danosos. Ele considera a tecnologia como superior à ciência e que
a condição pós-moderna seria caracterizada por ela e por suas produções. A ciência devia ser dirigida pela
tecnologia. Alternativamente, tecnologia e ciência deveriam ser interdependentes e indissociáveis. Lyotard, no
entanto, também mantinha-se cauteloso, se não até mesmo cético, em relação à tecnociência, que ele via como
tornando-se eventualmente excessiva e como restringindo a liberdade, tal como a própria ciência havia feito na
modernidade.

A epistemologia racional é severamente criticada, pois faz parte da burocracia, do Estado-nação, da ciência e do
mito do progresso. A racionalidade é inaceitável porque ela consiste em uma posição standard bi-polar limitada
sim ou não, válido versus inválido. Ele prefere uma multiplicidade de veículos de raciocínio que se estendem para
além da racionalidade mutilada. Lyotard dá grande valor à imaginação individual. Ele considera que a
modernidade, com muita freqüência, censurou a imaginação e, desse modo, negou a capacidade dos indivíduos
para a criatividade e a auto-realização. Sua esperança era que a cega racionalidade mecânica fosse substituída
pelo pensamento analógico dirigido pela imaginação. Ele vê isso como uma via epistemológica suplementar para
a emancipação do individualismo.

Grande parte da mensagem pós-moderna de Lyotard está baseada na anti-diferenciação. Ao rejeitar a


epistemologia racionalista, com suas regras, seus métodos, seus processos válidos e a distinção de abordagens
alternativas do pensamento, ele efetivamente apaga importantes fronteiras centrais. Lyotard recusa-se a distinguir
entre modos de pensamento diferentes, a diferenciá-los. Ele repudia similarmente as fronteiras entre a ciência e a
tecnologia. Aqui, a anti-diferenciação talvez seja mais manifesta e significativa. Na defesa do individualismo
extremado e da multiplicação de identidades no interior de um mesmo domínio, a realidade pessoal fragmenta-se
e se dissolve. A noção de grupo social e de coletivo desmorona; o que equivale à fluidez sem fronteiras.
Finalmente, a unidade definida da universalidade dá lugar a uma multiplicidade desenfreada, onde, uma vez mais,
os limites do múltiplo são intencionalmente confusos e móveis. O mundo pós-moderno de Lyotard é um mundo
de infinitas combinações e re-combinações constantemente em fluxo. A diferença infindável constitui um
conceito-chave, pelo qual tudo é imaginado e pelo qual o anti-diferenciacionismo caracteriza o pensamento e a
ação.

Frederic Jameson é um segundo pensador pós-moderno eminente. Ele pertence à escola marxista de pensamento e
vê a tecnologia e a economia como os motores da mudança cultural (cf. Jameson, 1984). Jameson considera o

24
capitalismo contemporâneo como sendo pós-moderno em seu modo de produção e em suas relações sociais. O
capitalismo inicial, aquele do Iluminismo e de parte do século xix, foi marcado pela máquina a vapor. O
capitalismo médio representou a era do colonialismo, e a ele pertencia o motor de combustão interna, o fordismo
etc. O capitalismo recente, ou atual, é uma forma de capitalismo monopolista na qual a tecnologia característica é
eletrônica e nuclear , marcada por novos modos de produção e configurações culturais.

Jameson argumenta que a cultura pós-moderna pode ser distinguida por três elementos: (1) uma perda de
profundidade individual hoje as pessoas são muitas coisas e estão constantemente mudando, o que não significa
superficialidade mas, antes, multiplicidade; (2) o anterior entendimento progressivo e linear da história está
perdido os indivíduos vivem agora o presente; as noções de espaço e tempo são bastante diferentes na pós-
modernidade em comparação com a modernidade; (3) a emoção é legítima e central na pós-modernidade a
emoção abre caminho para muitas outras formas de exploração e de identidade.

Jameson centra-se em dois aspectos do pós-moderno. O capitalismo monopolista assenta na empresa


multinacional, transformando o modo de produção e de distribuição. A inovação tecnológica é superior nesse
sistema. A aceleração já era um componente profundamente enraizado na modernidade e o ritmo da aceleração
aumentava à medida que a modernidade avançava. Jameson argumenta que a empresa multinacional e as novas
tecnologias eletrônica e nuclear tornarão ainda mais rápido o tempo da inovação e do capitalismo. Com efeito, a
aceleração em todas as coisas, tanto materiais quanto pessoais, é subjacente à pós-modernidade. Jameson não
prevê limites para esse mecanismo central da aceleração pós-moderna. Ele analogamente declara o fim do Estado-
nação, o qual se curvou ainda mais profundamente diante do maior poder do capital (cf. Castells, 1996). A pós-
modernidade modifica nossa percepção do espaço; ela se desenrola em escala global, enquanto as localidades se
misturam e desaparecem, convergindo à medida que se tornam a unidade global o que novamente elimina a
nação.

As mudanças na noções de tempo e de espaço proporcionam o ambiente para a emergência de uma nova forma de
individualidade e de uma nova economia. Jameson refere-se à possibilidade de uma "economia cultural", que
implica uma postura alternativa em relação ao trabalho e ao consumo. Do mesmo modo, essa economia cultural
injeta um desejo pela estética na arena cultural. À medida que o sujeito individual anterior é substituído por um
indivíduo auto-operante em uma nova dimensão temporal e espacial, virão à tona recursos insondáveis da
imaginação e da criatividade. Jameson, desse modo, vê o capitalismo monopolista pós-moderno não meramente
como um novo modo de produção, mas igualmente como o motor para uma nova forma de identidade.

Diferentemente de outros pós-modernos, Jameson não abandona inteiramente a determinação em favor da


contingência. Suas predileções marxistas impedem que isso ocorra, na medida em que ele se aferra teimosamente
ao conceito de força diretora da economia e à relevância dos modos de produção. Jameson, no entanto, põe em
perigo o pensamento marxista puro, na medida em que rapidamente se desfaz de outras categorias de
diferenciação e, em particular, de fronteiras. Ele diz muito pouco acerca das divisões de classe na era pós-
moderna, e mesmo ignora as fronteiras entre empresas multinacionais concorrentes. Jameson se regozija pela
morte das fronteiras (políticas, econômicas, civis), as quais, por toda a modernidade, colocaram nação contra
nação. A diferenciação institucional e as divisões de trabalho enveredam pelo mesmo caminho. Jameson funde
implicitamente a tecnologia e a ciência, deixando de notar suas especificidades ou as transversalidades que
permitem a travessia das fronteiras entre elas, e ainda entre elas e outras formas de organização e ação sociais.
Além disso, para Jameson, o local simplesmente desaparece. A globalização não é problemática e, portanto, não
há tensão ou estranhamento na justaposição de uma unidade global universal a uma unidade local particular. As
fronteiras e a diferenciação desaparecem completamente do aparato conceitual dos pós-modernos.

25
Para os estudiosos da filosofia, história e sociologia da ciência e da tecnologia e, com efeito, para a totalidade da
comunidade acadêmica e para o público em geral, o nome de Bruno Latour rima com pós-modernidade; o que é,
em certos aspectos, um paradoxo. Em seu livro Nous n'avons jamais été modernes (Jamais fomos modernos), de
1997, Latour nega a existência mesma da modernidade, tornando-se ilógico para ele ser um "pós-moderno",
apesar de, com toda certeza, ele o ser (cf. Latour, 1997). Latour oferece uma resposta sofisticada. Ele argumenta
que a "modernidade" nada mais é do que um mito social, uma conveniência política, econômica e social de auto-
representação que se desenvolve propositadamente para um período, ao qual, entretanto, não corresponde uma
ordem social ou cognitiva. Com efeito, como ele mesmo escreve, "jamais fomos modernos". Visto a partir dessa
perspectiva, tem pouca conseqüência o debate corrente, comumente bastante inflamado, sobre a modernidade e a
pós-modernidade. Para Latour (1997), eventos múltiplos, interações e contingências estão conectados a inúmeras
flechas de tempo. Nunca existiu qualquer linearidade, ordem, estrutura e função históricas. O próprio homem
inventou um discurso chamado "modernidade", mas esse discurso está separado da dinâmica e dos eventos
experienciados pela humanidade. Em particular, Latour ataca o mito da modernidade que gerou categorias de
objetos e de relações, e que então procurou artificialmente entender os eventos e a identidade no interior desse
falso sistema referencial. Para Latour, o ponto central é apreender que as fronteiras não existem fora da
linguagem, que a "verdade" é um mito ficcional e que a força diretiva dos eventos é política (cf. Latour, 2003;
Beck, 2003).

A contribuição pós-moderna central de Latour consiste em sua teoria do ator-rede. Nessa teoria, as fronteiras são
explicitamente negadas o que é mais relevante, nega-se a distinção entre natureza e cultura. A natureza não existe
independentemente da cultura que a produz. A natureza é o resultado de dados e sinais gerados por máquinas
inventadas pelos homens precisamente para gerar esses sinais, os quais se apresentam na forma de imagens e
inscrições produzidas por homens, e de textos manipulados de feitura humana, publicados em periódicos cujo
conteúdo é contaminado por manobras profissionais e políticas. A natureza é produto da cultura. Latour,
juntamente com M. Callon, introduziu uma entidade que é, ela mesma, de modo variado e diverso, de feitura
humana, a saber, o atuante, ao qual se atribui classicamente características não-humanas "de tipo natural". Mas na
pós-modernidade de Latour, o atuante desenvolve estratégias singulares, alinha-se com os atores humanos etc. e,
desse modo, a diferenciação da natureza como algo diverso da cultura é novamente contrariada. Esse apagamento
da diferenciação entre cultura e natureza é caracteristicamente pós-modern0 e, em lugar algum, posto de modo tão
ruidoso como nos escritos de Latour e de seus discípulos.

Os preceitos modernos de causalidade e invariância também são substituídos por constructos pós-modernos de
contingência. Tudo é "constructo", e as forças que subjazem à construção são a contingência. A substância das
construções é o "contexto". A contextualidade é tanto causa como conseqüência. Contexto e contingência dirigem
o que é valorizado e avaliado como aceitável. A "verdade" é uma relação de força que resulta de um contexto
específico. Um contexto alternativo resultaria em uma configuração diferente de crença e aceitação. A "verdade"
pode ser definida como o que vence a batalha entre os atores em competição, o que se torna dominante (cf. Latour
& Woolgar, 1979; Latour, 1987).

Esse primado da contingência, do contexto e do poder conduz automaticamente Latour a sua bem conhecida
epistemologia relativista que embasa toda sua filosofia e sociologia. Latour elimina as fronteiras entre ciência,
tecnologia, especialistas e o cidadão. Como indicado acima, a demarcação entre a natureza e o estudo da natureza
é banida. A natureza existe por meio dos atos dos homens. Latour igualmente bane a diferenciação entre ciência e
tecnologia; o resultado disso é a "tecnociência". Enquanto a tecnociência pode ser interpretada de múltiplas
maneiras,4 para a pós-modernidade de Latour, a tecnologia é produzida pelo homem, e o que fornece os materiais
para a ciência é uma extensão dos objetos de tecnologia feitos pelo homem. Assim, a tecnociência reforça ainda
mais a anti-diferenciação de Latour (cf. Shinn & Ragouet, 2005). Os especialistas usufruem de autoridade

26
simplesmente devido a sua proximidade com o sacerdócio da ciência. Os especialistas não possuem conhecimento
"objetivo", "legítimo". Eles são especialistas em vista de sua autoridade e essa autoridade é redobrada em virtude
do mito de sua sabedoria entre os cidadãos. Latour prefere a ausência pós-moderna de fronteiras entre os
cidadãos, os especialistas, os tecnólogos e os cientistas. Cada um usufrui de uma medida igual de importância. Ele
insiste que a pós-modernidade exibe o realismo de reconhecer que o poder é central e que o poder da cultura
opera como uma força formativa das interações humanas.

Por fim, duas publicações pós-modernas merecem ser aqui mencionadas os escritos saídos das penas ou editados
por Helga Nowotny e por Michael Gibbons (Gibbons et al., 1994; Nowotny et al., 2001). O pensamento desses
pós-modernistas é bem definido e pode ser, assim, prontamente sumariado. O pós-moderno rompe com o
moderno após a Segunda Guerra Mundial por meio de uma combinação de novo conhecimento científico (análise
não-linear, caos e teoria da complexidade, cibernética, engenharia genética, pesquisa baseada em simulação (cf.
Shinn, 2006), nanociência e nanotecnologia) e de novas capacidades tecnológicas (computadores, nova
capacidade de comunicação, dispositivos de imagens para a saúde, o entretenimento e a realidade virtual). O pós-
moderno é também uma conseqüência do aumento da consciência política entre os cidadãos e da demanda por
mais cidadania e por inclusão nas decisões, particularmente, naquelas concernentes à direção e ao impacto da
pesquisa, dos interesses diversificados de grupos bem informados. Por meio dos esforços de Nowotny e Gibbons,
que possuem cargos nos centros nacionais e internacionais de elaboração de políticas científicas, o pensamento
pós-moderno tornou-se a ideologia e o modo de operação do momento, altamente influentes, tendo sucesso em
moldar o conteúdo de incontáveis editais para programas de financiamento público da pesquisa científica em
muitas nações, na Europa e na América do Norte (cf. Shinn, 2002).

Gibbons e Nowotny descrevem a evolução da ciência e da tecnologia em termos de duas principais eras: o modo
1 e o modo 2. O modo 1, que precedeu os séculos antes de cerca de 1950, caracterizou-se pela universidade, pela
diferenciação disciplinar, por um sistema de conhecimento determinado apenas pela comunidade científica e
separado das demandas das empresas e dos cidadãos, e no qual triunfava uma epistemologia da "verdade". As
formas emergentes de conhecimento e a insistência pelo público amplo por uma atenção direta da ciência sobre as
questões públicas urgentes conduziram ao enfraquecimento gradual da ciência em seu formato modo 1, ou até
mesmo ao desaparecimento da ciência tal como anteriormente conhecida. Gibbons e Nowotny referem-se à
verdade como uma "armadilha epistemológica". Para eles, existe de fato uma multiplicidade de vias de
pensamento que se estendem para além da racionalidade clássica. Hesitam, desse modo, em relação ao estatuto da
epistemologia do relativismo em sua marca de pós-modernidade. Eles afirmam a morte da teoria como um
objetivo do conhecimento. O avanço teórico está presentemente exaurido. Por contraste, o futuro do
conhecimento deve ser dirigido agora para a solução de problemas sociais pragmáticos urgentes, tais como o
crescimento global, a destruição ambiental, a saúde e as desigualdades e carências materiais. A universidade está
tornando-se esclerosada como um lugar de conhecimento. A empresa, ou uma conexão entre uma nova forma de
academia e de empresa, encerra o futuro. O conhecimento é mais bem desenvolvido em conexão com a indústria
e esta representa o vetor pelo qual o conhecimento prático se torna mais aplicável e se difunde pelo púbico. As
disciplinas acadêmicas também estão morrendo. Elas são hoje tão diferenciadas entre si que são incapazes de
enfrentar os problemas não-lineares e complexos que confrontam a humanidade. A pós-modernidade de Gibbons
e Nowotny não tem fronteiras. As fronteiras disciplinares são substituídas pela interdisciplinaridade. A distância
entre a universidade e a empresa é dissolvida, em vantagem da empresa. Os cidadãos não devem ser vistos ou
tratados como diferentes ou alheios ao conhecimento científico. A mensagem e o conhecimento do cidadão é
parte do processo da ciência; novamente, a dissolução de uma fronteira antiga. Na sociedade pós-moderna do
modo 2, a pesquisa será conduzida por grupos fluídos de curto prazo que atacam um problema relevante
específico, resolvem o problema e, então, debandam de modo a formar diferentes combinações e re-combinações

27
alternativas. Como declara Nowotny, na nova ágora pós-moderna, a ciência não fala mais para a sociedade, mas a
sociedade, em vez disso, fala com autoridade para a ciência.

4 COMPANHEIROS PÓS-MODERNOS DE VIAGEM?

Existem alguns pensadores sociais que continuam os vínculos com a modernidade, que evitam os pós-modernistas
e cuja reflexão e remodelação da modernidade, entretanto, convergem com tanta proximidade para o pensamento
pós-moderno, que eles poderiam, de fato, ser classificados como pós-modernos mais ou menos desviantes. Ulrich
Beck é o pensador mais proeminente desse grupo; sua posição, em um artigo de 2003, ademais de suas discussões
com Latour, dá crédito à percepção de sua posição pós-moderna (cf. Beck, 2003; Latour, 2003).

Beck procura, com maior ou menor sucesso, apresentar-se como um moderno. Ele divide a modernidade em dois
períodos: a primeira modernidade e a segunda modernidade. Ele pode ser considerado como o pai da segunda
modernidade. Da primeira modernidade, Beck preserva suas origens iluministas e o conceito de progresso. Ele
aceita similarmente o princípio da grande narrativa. A percepção que Beck tem da segunda modernidade é
original em certas bases, enquanto que, em outras, ela ecoa crescentemente a postura pós-moderna expressa por
Latour.

A segunda modernidade de Beck difere da primeira modernidade em três pontos essenciais. Enquanto a primeira
modernidade caracteriza-se por uma epistemologia racionalista, a segunda modernidade de Beck está, por sua
vez, assentada na "modernidade reflexiva" ou, no que ele alternativamente denomina "modernidade instituída"
(cf. Beck, 1994, Prefácio). Não se trata de uma denúncia clara da epistemologia racional; entretanto, abre-se o
caminho para epistemologias alternativas e, talvez, para o relativismo. Como será mostrado, a racionalidade, para
Beck, toma essencialmente a forma da tomada de decisão política, onde indivíduos de todos os backgrounds
associam seus modos de pensamento de modo a derivar conclusões e a empreender a ação. Beck insiste que a
modernidade reflexiva não deve ser confundida com a reflexão moderna, pois esta última tem base individual e
concentra-se na identidade e ação individuais, enquanto a modernidade reflexiva é política, coletiva, concentra-se
nos problemas sociais e assume múltiplas formas. A epistemologia não é, portanto, definida, nem determinista.

Beck distingue entre as formas de ciência da primeira e da segunda modernidade. A ciência da primeira
modernidade proporciona respostas para questões formuladas no interior da comunidade científica e divorciadas
das necessidades das empresas e da sociedade. Por oposição, a ciência da segunda modernidade dirige a atenção
aos "erros". Ela explora os problemas prementes na sociedade e no mundo material, procurando, então, resolver
esses problemas. A epistemologia da modernidade reflexiva é novamente crucial aqui. A ciência não está
profundamente divorciada do social ou do cidadão. Os especialistas não são apresentados como vozes de soluções
e autoridade indisputáveis. Uma ciência que se dirige ao mundo a partir da perspectiva da solução de erros é
inclusiva de muitas populações. Ela não fornece respostas corretas, mas antes soluções efetivas. A cognição
científica é, portanto, um problema de um multi-corpo; ela é altamente política. O lugar dessa modernidade
reflexiva é, com efeito, multi-institucional. A reflexividade não está nas pessoas individuais, mas nas pessoas que
operam a partir do interior das instituições. A modernidade reflexiva é tanto intra como inter-institucional. Nesse
sentido, embora mantendo a legitimidade das instituições, Beck retém uma séria conexão com a primeira
modernidade.

A incerteza ocupa o lugar central do pensamento de Beck e encontra sua mais clara expressão no que ele
denomina a "sociedade de risco". A segunda modernidade é, com efeito, caracterizada pela incerteza,

28
diferentemente da primeira modernidade que se caracteriza pelo conhecimento. Beck está profundamente
preocupado com os riscos que ameaçam a humanidade riscos naturais e riscos provocados pelo próprio homem à
guisa de catástrofe química, nuclear, biológica ou ecológica. As instituições reflexivas apresentam-se como um
bastião contra os perigos inerentes à sociedade de risco. Instituições civis e profissionais mistas (com a circulação
de informações e fatos no interior e entre as instituições) proporcionam um referencial para a mitigação do risco.
Se a segunda modernidade pudesse ser reduzida a uma única idéia, ela certamente deveria ser reduzida à
"sociedade de risco"; e os outros conceitos e medidas apresentados por Beck parecem ser formulados para mitigar
o risco.

Uma garantia contra o risco é, assim, a reflexividade coletiva e múltipla. Beck insiste que, na segunda
modernidade, as fronteiras definham. As fronteiras da primeira modernidade não estão mais presentes na segunda
modernidade. E isso apesar da manutenção das instituições, pois os limites institucionais se apagam à medida que
as idéias, os materiais e as pessoas passam de instituição a instituição. Essa ausência de fronteiras da segunda
modernidade já conta como uma característica-chave da pós-modernidade. Aqui, a segunda modernidade
assemelha-se muito à pós-modernidade, apesar das negativas de Beck.5

A tendência mais significativa e palpável de Ulrich Beck para uma pura análise pós-moderna é visível em sua
representação do problema da relação natureza/cultura. Assim como Latour e a maioria dos outros pós-modernos,
Beck recusa aqui a diferenciação. Ele retira seus exemplos acerca da fusão entre natureza e cultura do domínio da
ecologia e do ambiente; argumenta que a natureza não tem existência enquanto tal, que ela é um produto da
cultura. Aquilo a que nos referimos inocentemente como "natureza" é uma entidade feita pelo homem. Uma
floresta não é uma criatura da natureza; ela é o resultado de incontáveis intervenções humanas desflorestamento,
reflorestamento, introdução de novas espécies de animais ou de plantas, seleção de elementos pelo uso de
produtos químicos, queimadas etc. Em lugar algum pode-se encontrar uma floresta que não seja um produto da
intervenção cultural (cf. Beck, 2003). Na pós-modernidade, o homem é a medida de tudo.

Os escritos de Scott Lash e de Anthony Giddens são, em alguns aspectos, de difícil julgamento quanto as suas
posições em relação à pós-modernidade. Em alguns aspectos, eles parecem mover-se lentamente, quase
relutantemente, nessa direção, enquanto, por outro lado, resistem à evolução. O caso é claro para Lash, que
converge para a pós-modernidade, ainda que em uma única via e freqüentemente evitando muito do vocabulário e
muitas das questões comumente associados com a pós-modernidade (cf. Lash, 1994). Os escritos de Lash
contribuem com uma nova dimensão para a reflexão pós-moderna. Seu principal interesse é a estética da cultura
pós-moderna. Ele deseja uma forma cultural nova, marcada pela moral e pela ética. Essa estética toma a forma da
conduta individual e também de uma nova liberdade em direção à identidade e à criatividade: a arte. Em uma
extensa série de publicações, Lash se concentra principalmente nas questões da identidade e do amor em uma
arena que, de algum modo, parece flutuar entre o moderno e o explicitamente pós-moderno (cf. Lash, 1993; Lash
& Friedman, 1990, 1992).

Scott Lash dedica crescente atenção ao lugar da emoção na pós-modernidade. A emoção é vista como uma
apreciação da identidade e como um mecanismo de auto-liberação. A emoção é também vista como um
mecanismo para a coletivização em face das crescentes inclinações emancipatórias auto-referentes da pós-
modernidade. A emoção pode, assim, conter um meio pelo qual o entusiasmo coletivo e a solidariedade social
podem ser gerados. Ela age, aqui, como uma espécie de antídoto criativo à fragmentação do eu e à fragmentação
da ordem social que caracteriza a pós-modernidade. Por outro lado, ela pode funcionar como uma faca de dois
gumes. O sentimento de um alto grau de emoção pode induzir a uma disposição de excitação, energia e
concentração social que, por sua vez, injeta uma ambiência de re-encantamento. Contudo, em vista das
características fragmentadas, de anti-diferenciação, de auto-monitoração, de auto-interpretação e de auto-

29
legislação da pós-modernidade, a temporalidade e os efeitos construtivos da emoção serão, em pouco tempo, ou
esquecidos ou traduzidos em um desencantamento re-fortificado.6

Discutirei, de modo muito breve, a posição de Anthony Giddens. Tal posição é, ao mesmo tempo, sutil e
desestabilizadora. Embora tenha sido, durante longo tempo, um advogado enérgico da modernidade (cf. Luhman,
1994), Giddens, nos últimos anos, começou aparentemente a mudar. A defesa de Giddens da modernidade baseia-
se na centralidade da unidade família, do Estado-nação, da sociedade de classes e das divisões de trabalho todos
conceitos e padrões modernistas. Contudo, ele percebe a mudança contemporânea nas relações constitutivas da
sociedade. Estas são claramente discutidas como dinâmicas de imbricações e re-imbricações. Essa noção permite
a transformação, embora sempre no interior do referencial da cultura moderna. Enquanto Giddens sustenta a
centralidade moderna do indivíduo, o individualismo vai sendo suprimido pelo sistema de bem estar social. O
individualismo perde sua tendência emancipatória por meio de pressões sociais homogeneizantes. Desse modo,
esse autor, ao mesmo tempo em que defende a modernidade, percebe forças que devem finalmente conduzir a sua
profunda reforma (cf. Giddens, 1991). Giddens refere-se comumente a essa iniciativa como "política
emancipatória", o que é evidente, entre outros escritos, em sua colaboração com Beck e Lash (cf. Giddens, 1994).

No entanto, a preocupação altamente informada e bastante conhecida de Giddens com o pré-moderno constitui já
um bastião contra uma afinidade zelosa com os pós-modernos e, tal como já foi indicado, a enorme maioria de
seus trabalhos explora a transformação contemporânea ainda no interior das fronteiras do moderno. Além disso,
seu recente flerte com a pós-modernidade, tal como ilustrado por suas parcerias com Beck e Lash, representa um
deslizamento na direção do que é agora uma especulação pós-moderna bastante estilística. Falta verificar se isso
representa verdadeiramente uma mudança da parte de Giddens.

O veículo por meio do qual ocorre o envolvimento firme de Giddens com o pré-moderno, o moderno e a
modernidade cambiante liga-se à obsessão exibida por vários estudiosos com o tópico da "reflexividade". Com
efeito, a especulação sobre a reflexividade é agora um dos principais princípios da sociologia e se estende para
além da análise pós-moderna. Giddens foi tornando-se cada vez mais fascinado pela reflexão sobre a
reflexividade e introduziu de modo crescente o tópico em seu trabalho. Se isso contribuiu para um
redirecionamento mais profundo de sua análise, talvez ainda não se possa julgar completamente.

Entretanto, uma coisa é clara, a saber, a inflação da linguagem da "reflexividade" "modernidade reflexiva",
"reflexividade da segunda modernidade", "reflexividade pós-moderna", "reflexividade instituída", "reflexividade
estética", a "reflexividade irrefletida" de Bourdieu e assim por diante serve freqüentemente para obscurecer e
confundir o pensamento sociológico e filosófico sobre as relações entre a pré-modernidade, a modernidade e as
incontáveis formas recomendadas de pós-modernidade. Em nenhum lugar isso é mais claro do que nos trabalhos
de David Inglis e John Bones. Esses autores assumem uma postura parodoxal e, em alguns aspectos, esse
paradoxo reflete-se no ensinamento comumente bastante perceptivo de Anthony Giddens. Inglis e Bones
censuram corretamente Beck e seus muitos companheiros pós-modernos pelo mau uso e pelo uso excessivo do
vocabulário da "reflexividade", que eles afirmam constituir pouco mais do que um tipo de categoria abrangente
que serve comumente para anular ou contornar inadequações do pensamento (cf. Inglis & Bones, 2006; Inglis,
2003, 2005). Contudo, exatamente ao mesmo tempo, Inglis e Bones insistem repetidamente que a aplicação do
pensamento da reflexividade pode resolver importantes questões no confuso debate sobre a modernidade um
conceito ao qual eles aderem firmemente. Assim, a "reflexividade" parece ter emergido como uma espécie de
disposição, de moda e de armadilha de jogo de palavras. Muitos caíram vítimas disso, embora Giddens não tenha
sido um deles, mas seu flerte com a pós-modernidade certamente tem efeitos e não necessariamente para o
melhor.

30
5 UMA PITADA DE CETICISMO

Esta seção lança dúvidas, em dois níveis, sobre a própria centralidade do debate sobre modernidade versus pós-
modernidade. Primeiro, o debate mais incisivo pode não ser o debate entre a modernidade e a pós-modernidade,
mas antes entre a modernidade de Émile Durkheim (1912, 1993) e a pós-modernidade (Scott, 1997). Segundo,
para os países anteriormente colonizados e para as regiões em desenvolvimento, que com muita freqüência
tiveram uma experiência muito superficial da modernidade, qual é a relevância da pós-modernidade ou, pelo
menos, quais são os componentes da pós-modernidade que valem a pena ser mantidos?

O sociólogo Alan Scott tentou obliterar e, de fato, rejeitar o debate modernidade versus pós-modernidade por
meio da sociologia de Durkheim. Scott abre seu ataque sugerindo que as teses do desencantamento burocrático e
desumanizador do pensamento weberiano da modernidade são, de fato, uma construção fundamentalmente
equivocada do verdadeiro significado pretendido por Weber. Scott insiste que muito da análise da modernidade
volta-se para a metáfora da "gaiola de ferro", a qual foi mal interpretada por Parsons devido a um erro de
tradução. Para Scott, a metáfora não é a de uma "gaiola de ferro" ("iron cage"), mas antes uma "habitação de aço"
("steel housing").* Esse deslize de tradução é essencial (Scott, 1997). O ferro é rígido, inflexível, e a gaiola
aprisiona. Ao contrário, o aço é mais resistente, capaz de desempenho em condições mutáveis. Além disso, uma
habitação é um espaço relativamente aberto, no qual operam dinâmicas e no qual as coisas estão livres para
mudar. Scott insiste que essa reinterpretação da metáfora-chave da modernidade conduz o pensamento moderno
weberiano a um estreito alinhamento com as idéias de Durkheim sobre a dinâmica social. Durkheim mantém
constantemente em equilíbrio o individual e o coletivo. Ele permanece preso entre os dois pólos, embora sempre
livre em seu movimento. A posição precisa nesse cenário, argumenta Durkheim, dependerá dos requisitos de
circulação para uma dada época histórica.

P. Schilling e C. Mellor introduziram posteriormente uma aproximação entre uma forma não-weberiana de
modernidade e Durkheim. Esses sociólogos sublinham o conceito durkheimiano de efervescência. As pessoas
estão suspensas entre a iniciativa individual e a ação coletiva; tal posição é dinâmica e cambiante. Existe um forte
componente emocional na efervescência, que não nega necessariamente a racionalidade. A efervescência é de
dois tipos: construtiva e destrutiva. Uma é socialmente positiva; a outra contribui para o colapso de uma
sociedade. A efervescência introduz dois fatores centrais na modernidade. Ela proporciona as bases para a
escolha; ela oferece igualmente a oportunidade para adaptação e para mudança. Schilling e Mellor consideram a
efervescência como central para a modernidade e percebem a contribuição de Durkheim como um discernimento
básico. Eles apontam que esse conceito de efervescência contorna as inevitabilidades da modernidade weberiana
e, não menos que isso, evita a armadilha weberiana do desencantamento (cf. Schilling & Mellor, 1998).

Porta-vozes de países em desenvolvimento, anteriormente colônias, também expressam constantemente reservas


em relação ao que eles percebem como um objetivo mal dirigido e exagerado da pós-modernidade. Os escritos de
R. Lee são exemplos típicos dessa crítica (cf. Lee, 2008). Particularmente, Lee é crítico da tese da segunda
modernização, formulada por Beck, a qual ele considera como um esforço dos países do Atlântico Norte (Europa
e Estados Unidos), seja para esquecer o resto do mundo, seja ainda para dominá-lo. Lee condena o fracasso da
pós-modernidade em reconhecer que grande parte do terceiro-mundo nunca teve a experiência da modernização,
ou quase isso. Como, então, se pode esperar que alcancem a pós-modernidade?

Lee é particularmente cético em relação à recusa da pós-modernidade em reconhecer a realidade das fronteiras e
sua importância para a ação social. A eliminação das fronteiras é utópica. As fronteiras são marcas características

31
de diferentes grupos, formas de trabalho, caminhos epistemológicos e nações. Em nenhum lugar isso é mais
evidente do que nos países em desenvolvimento do hemisfério sul. Mas existe muita evidência de que as
fronteiras permanecem igualmente centrais no norte, onde, entretanto, as gradações de diferença entre os
componentes da ação humana refinaram-se por meio da multiplicação de especialidades. Para alguns
observadores, esse refinamento da diferenciação obscurece a realidade determinista das fronteiras. Com efeito,
alguns pós-modernistas do hemisfério norte chegaram a rejeitar as fronteiras com base em que elas impedem a
comensuração, mas existe evidência crescente de que as fronteiras não bloqueiam a comensuração, pois a
comunicação e a inteligibilidade recíproca atravessam as fronteiras por meio de travessias seletivas e freqüentes
(cf. Espeland & Mitchel, 1998). Os países em desenvolvimento não podem tolerar essa miopia ou má-vontade.

Lee continua atacando o próprio conceito de modernidade reflexiva ou, em outros termos, de "reflexividade
instituída". Ele declara que a noção de Beck baseia-se em um falso entendimento das relações que operam entre
os atores e que, além disso, Beck está inteiramente incorreto em sua dissolução da fronteira natureza/cultura, e
também em suas conseqüências para a chamada modernidade reflexiva. Lee conclui que o problema não é a
modernidade, mas antes certos projetos de modernização. Desse modo, Lee não anuncia "o fim da modernidade,
mas antes o ceticismo em relação a certas formas de modernização"; ele conclama para a promoção do que
especificamente denomina de "modernidade múltipla".

6 PARA ALÉM DA PÓS-MODERNIDADE: A "MATRIZ DE ENTRELAÇAMENTO"

Pretende-se que o conceito de matriz de entrelaçamento seja uma crítica tanto da modernidade como da pós-
modernidade, proposto como uma via que pode contribuir para transcender o que está se tornando um debate
inconclusivo e cada vez mais tedioso. O conceito de entrelaçamento preserva os elementos de referente, de
diferenciação, de fronteira e de divisão do trabalho. Esse conceito sustenta simultaneamente a dinâmica da
circulação e a sinergia de homens, materiais e idéias por entre as fronteiras, valorizando e promovendo a
comensuração. O entrelaçamento de múltiplos referentes constitui geografias territoriais ou políticas, sociais,
epistemológicas e cognitivas mais complexas e inovadoras. Desse modo, o entrelaçamento constitui uma
plataforma dinâmica e reversível que promove recombinações e descombinações. Antecipa, portanto,
interconexões de elementos estranhos e familiares, historicamente dissociados, nas quais, entretanto, cada
referente retém suas características históricas particulares, assumindo, ao mesmo tempo, novas características.

O "referente" compreende aqui a unidade básica de operação social/cognitiva. Um referente é fundado na ação.
Referentes diferentes se distinguem por categorias individuadas de atividade; os referentes possuem sua própria
lógica, funções, hierarquias, canais de comunicação e vias de circulação interna (cf. Abbott, 1995; Espeland &
Mitchel, 1998). Constituem referentes distintos o direito, a medicina, a ciência, a engenharia, a contabilidade, a
arquitetura, a informática, a arte, o transporte, a publicidade, a energia etc. No interior da ciência, as diferentes
disciplinas representam referentes e, no interior da medicina, o mesmo vale para as especialidades. Cada referente
é determinado por uma forma particular de conhecimento, de competência, de mercado e de identidade coletiva, e
cada um tem seus próprios objetivos, história e ambições. Isso pode soar como uma dinâmica de exclusão, o que
constitui uma das maiores críticas aos referentes por parte da pós-modernidade. Entretanto, por sua dinâmica
interna e pelo auto-interesse, os referentes são também seletivos e, ainda assim, altamente inclusivos. A matriz de
entrelaçamento pretende demonstrar o caráter inclusivo dos referentes e, desse modo, pretende tanto superar a
pós-modernidade como sugerir de modo mais claro as operações das interações sociais.

32
Dito de outro modo, o moderno sistema de referência clássico padrão costumeiramente enrijece e fecha fronteiras,
segmenta a sociedade por meio do congelamento da diferenciação e das divisões de trabalho, impedindo novas
configurações. Em oposição, a pós-modernidade tende a diminuir ou negar as fronteiras, rejeitando, desse modo,
a existência mesma dos referentes sociais e intelectuais. A pós-modernidade mistura tudo, diminuindo normas,
estrutura e função, abomina a substância, a continuidade e a historicidade, minimizando ou rejeitando a
identidade de elementos que são vistos como temporários, oportunistas e sempre fluidos. A pós-modernidade
recusa, assim, os referentes, de modo que, em um universo pós-moderno, tudo se torna possível e possui um igual
valor. É seguro dizer que o resultado constitui um mundo unidimensional. A dinâmica é vagamente denominada
"contexto" e "contingência". Entretanto, essas palavras pós-modernas pouco dizem acerca de como os
componentes se unem e, menos ainda, acerca das vias e possibilidades de mobilidade e combinação.

As unidade de entrelaçamento de fato, os referentes podem, em alguns aspectos, ligar-se às "figurações",


"figuras" ou "configurações" da sociologia de Norbert Elias (cf. Elias, 1987). A sociedade é composta por
(referentes) individuais e agrupamentos que exibem qualificações, funções e coletivos específicos. Essa
configuração não impede que as particularidades dos indivíduos contenham os vários referentes. Existe uma
heterogeneidade de manifestações endógenas para todo referente, ainda que o referente mantenha seu próprio
sistema de coordenadas seu sistema está codificado na linguagem de Niklas Luhman. Os referentes também são
informados pelo hábito, de Pierre Bordieu, para quem toda categoria social possui seu hábito particular, seu modo
específico de operação e de percepção. A auto-reflexividade proporciona um sistema de coordenadas
internalizado e que se auto-mantém (cf. Bourdieu, 1979).

Para esse esquema pós-pós-moderno de matriz de entrelaçamento, proposto como uma tentativa, as práticas
ordinárias dos referentes são fundamentais. Primeiro, em qualquer momento histórico particular, um referente
expressa suas características endógenas, suas capacidades e coordenadas de atividade, que estão, entretanto,
submetidas constantemente à mudança e ao desvio internamente gerado em virtude das contribuições originais de
seus próprios subgrupos e indivíduos mais proeminentes. Assim, por meio da circulação interna, o referente não
é, em si mesmo, intra-historicamente estático, mas antes exibe um potencial para a mudança dinâmica
circunscritamente imbricada. A troca e a colaboração intra-muros pode isoladamente provocar transformação; não
se requer necessariamente a travessia de fronteiras, a fluidez e o input amplamente social do pós-moderno.
Segundo, para um dado referente, tem lugar a circulação de indivíduos e de grupos que atravessam as fronteiras
dos referentes, seja pela circulação de curta-duração, seja por uma imersão prolongada nas comunidades
referentes alternativas, as quais possuem competências, mercados e, algumas vezes, hábitos alternativos. Esse
entrelaçamento pode ser espasmódico ou agudo. A característica importante é que o entrelaçamento contém, em
graus diferentes, um padrão de dinâmica social. Ele é a substância da circulação e pode tornar-se um motor de
transformação. A mudança freqüentemente ocorre quando grupos, que haviam temporariamente circulado por um
referente alternativo, retornam a seu referente básico pela travessia inversa das fronteiras e enriquecem seu
sistema por força do novo conhecimento, técnicas ou representações que adquiriram durante sua jornada extra-
referente. Essa jornada pelo segundo referente pode mostrar-se igualmente frutífera para o referente alternativo.
Um conceito central que se deve reter aqui é que tais misturas não alteram a lógica, a estrutura ou as ações
fundamentais do referente básico, o qual mantém seu código genético original.

O entrelaçamento permite a transformação em um contexto de continuidade. Isso parece não implicar nem o que
freqüentemente se considera como uma ridicularização da modernidade, nem uma defesa da
desinstitucionalização, da identidade e da auto-negação na pós-modernidade. O entrelaçamento legitima e
preserva o referente no nível individual, coletivo, profissional e institucional. Como o "referente" está fundado na
ação e na atividade, as coordenadas e vias de competência, a troca e a comunicação retêm uma medida de limite

33
racional. Uma vez que as regras podem ser alteradas, isso se faz no interior de um quadro de antecipação
calculada.

7 FECHAMENTO E FLUIDEZ

A rejeição pós-moderna da modernidade depende amplamente da lógica de "fechamento" desta última


diferenciações infindáveis, divisões de trabalho, fronteiras nacionais, burocratização, restrições e padronização do
individual. Por oposição, os defensores da modernidade reprovam a lógica pós-moderna que nega os sistemas, as
instituições, a diferenciação (principalmente entre cultura e natureza), a ciência, as disciplinas, e que clama pela
personalidade múltipla e pelo esvaziamento do local em favor do global. Repetindo: uma lógica de fechamento
versus uma lógica de fluidez.

A metáfora do "entrelaçamento" sugere uma via que pode circunscrever a polarização fechamento/fluidez. O
entrelaçamento permite uma variedade de relações ou interações no interior e entre referentes sociais, cognitivos e
epistemológicos, nas quais os referentes podem (i) sobrepor-se pouco ou muito, (ii) se co-misturar ou (iii) incluir
um entrelaçamento por inserção. Cada um desses arranjos constitui um grau, maior ou menor, de entrelaçamento.

No entrelaçamento por sobreposição, alguns componentes de vários referentes são reconhecidos como
coincidentes e são compartilhados; podem, assim, servir como pontes para a travessia de fronteiras, para a troca
de competência ou de conhecimento, para o reconhecimento e uso combinado de métodos e representações
comuns. Cada referente mantém sua identidade e posição específicas em relação ao referente vizinho, e mesmo
assim emerge a circulação, práticas conjuntas e a consciência de um referente recíproco. As relações não são
dadas. Os referentes podem tocar-se brevemente ou apenas deslocar-se de modo parcial em direção ao outro, sem
inscrever todavia, com isso, uma marca estrutural duradoura.

O entrelaçamento por co-mistura requer a co-penetração de múltiplos referentes. Domínios específicos e


definidos de elementos de cada referente são anexados aos elementos do outro referente. Aqui, a colaboração de
fraco entrelaçamento por sobreposição freqüentemente se traduz em uma forma de sinergia. No entrelaçamento
por co-mistura, projetos particulares selecionados, objetivos, linguagens, técnicas e representações de diferentes
referentes transformam-se. As atividades ocorrem aqui em dois níveis. Em um registro, cada referente continua
principalmente como antes. Ele desenvolve seus projetos, práticas e mercados de origem. As pessoas são
treinadas e socializadas segundo os preceitos estabelecidos do referente. Nessa estrutura, a circulação ocorre
assim como antes. Todavia, em paralelo com isso, emerge um segundo conjunto de conhecimentos, práticas e um
mercado suplementar, abertos nos espaços intersticiais que habitualmente ocorrem, em diferentes graus, em todos
os referentes envolvidos no ambiente do entrelaçamento por co-mistura. A fluidez faz parte desse processo. Por
meio das interações sinergéticas de alguns indivíduos oriundos de referentes diferentes, pode-se produzir um novo
vocabulário, uma nova maneira de fazer e de ver, e um novo mercado. Pessoas com capacidades alternativas e
complementares se encontram, aprendem a construir um novo conceito, objeto, conjunto de relações sociais etc.
não somente por meio da adição de suas capacidades, como ocorre no entrelaçamento por sobreposição, mas elas,
de fato, dão um passo além e multiplicam suas capacidades. Um novo fluxo de troca desenvolve-se paralelamente
à coexistência do capital tradicional de cada referente. Dito de outro modo, prêmios são oferecidos pelos adeptos
de cada referente e entram em circulação. Esses prêmios são equilibrados pela oferta de contra-prêmios do
referente de base. Enquanto o estoque de competência aumenta segundo uma lógica aditiva no entrelaçamento por
sobreposição, ele é multiplicado no entrelaçamento por co-mistura. Isso encerra uma diferença fundamental entre
as duas formas. Em alguns casos, o entrelaçamento por co-mistura pode originar uma nova comunidade

34
(freqüentemente bastante pequena e de curta duração) e, algumas vezes, até mesmo um novo referente. É
importante notar que o novo referente não colide com as operações e a autonomia dos referentes iniciais. Isso
ocorre no interior de um quadro de estruturas institucionais e organizacionais estabelecidas. Contrariamente às
teses pós-modernistas, aqui as fronteiras não se evaporam nem se reduzem a um mito ou a uma ficção
oportunista. Coletividades, identidades, formas de fazer e de saber anteriores não precisam ser abandonadas ou
jogadas fora a fim de se obter identidade, interação, representações ou visões transfiguradas.

Os arranjos de referentes por sobreposição e por co-mistura fornecem múltiplos e até mesmo simultâneos
experimentos, diferenças e novas combinações, recombinações e descombinações. A freqüente demanda verbal,
radical e agressiva dos pós-modernos por diversidade, diferença e multiplicidade pode ser acomodada pela
perspectiva do entrelaçamento. O motivo é, em parte, a circulação e a sinergia, e está similarmente conectado à
travessia de fronteiras. A multiplicação de capital e prêmios simbólicos também se mostra importante. A
multiplicidade e a diferença na matriz de entrelaçamento permite o movimento. Não obstante, a fluidez não é
realizada por meio do abandono e perda dos referentes. Os referentes são aqui um adjunto. Eles podem ser
considerados como uma necessidade sociológica do tipo aludido por Elias e Durkheim. Mas eles não são tão
obrigatórios e restritivos a ponto de colocar em risco a diversidade e a diferença psicológica, artística e das
práticas e expressões institucionais. Em parte, isso deriva da lógica básica da reversibilidade do entrelaçamento.
Os referentes constituem o material de um entrelaçamento. Eles também possuem a possibilidade de des-
entrelaçamento. O entrelaçamento não é uma interconexão. Não há fechamento aqui. O arranjo de entrelaçamento
pode ser associado ao entrelaçamento entre os dedos das duas mãos que se entrelaçam entre si. Existe espaço para
movimento lateral e longitudinal. Existe também espaço para recuo e completo desengajamento, à medida que os
dedos de uma mão se afastam dos dedos da outra mão. Trata-se de um potencial de conexão e de
complementaridade em um ambiente de autonomia e de liberdade; o que definitivamente contrasta com as
perspectivas projetadas tanto por pós-modernos sem referência como por modernos padronizadores e
embrutecedores.

O entrelaçamento por inserção constitui a forma última de entrelaçamento. Indivíduos e grupos originários de um
referente tornam-se habituados a um referente alternativo. Ao mesmo tempo em que se afastam de seu referente
doméstico, tais indivíduos e grupos, não obstante, de modo constante ou intermitente, despendem considerável
tempo em conexão com o segundo referente hospedeiro. Sua lógica e linguagem fundamentais permanecem
aquela do referente inicial, apesar de que, pela freqüentação de um segundo referente, eles também se tornam
amplamente familiarizados e, talvez, mesmo moderadamente proficientes nos modos do referente alternativo.
Eles nunca se tornam uma parte ou um membro completo do referente hospedeiro, o que requer treinamento,
longa experiência, um habitus, domínio dos códigos internos, conhecimento tácito e um verdadeiro incentivo para
tornar o referente hospedeiro o "seu" referente primário. Assim, os indivíduos se inserem, o que não os torna,
todavia, membros autênticos.7 A identidade reside no seu referente central. O envolvimento múltiplo total não
ocorre. O entrelaçamento por inserção representa o alcance máximo do engajamento múltiplo. A participação da
personalidade dividida e eficiente não consegue emergir. O entrelaçamento por inserção comumente proporciona
vantagens políticas, sociais, materiais e epistemológicas básicas para fim de expertise, a qual não pode ser
simultaneamente valorada a partir de ambos os referentes. Esse tipo de entrelaçamento também fornece uma base
para o treinamento de pessoas que visam projetos específicos para atravessar o divisor referencial. No final da
carreira, indivíduos freqüentemente afastam-se do referente hospedeiro e perdem subseqüentemente seu valor
como guardiães de seu referente original.

Para os pós-modernos, a dinâmica do entrelaçamento por inserção deveria proporcionar diversas lições e
demonstrar as condições limites de suas propostas. A expertise autêntica e completamente múltipla, o
engajamento institucional ou de grupo, ou mesmo a personalidade múltipla, ultrapassam aquilo que é efetiva e

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tecnicamente possível, coerente, temporal e organizacionalmente realizável por qualquer indivíduo. Não faz
absolutamente sentido postular que o humano não conhece limites. A tendência pós-moderna em direção ao
múltiplo é um poço sem fundo; está além do ideal renascentista polivalente. A necessidade de poder em um
mundo de especialidade constitui uma flagrante contradição insuperável para a ultra-multiplicidade que é
almejada pelo pós-moderno sob o imponente termo "diferença". A segunda lição a ser retirada pelos pós-
modernos do entrelaçamento por inserção assume o juízo oposto, em sua forma extrema. O perigo aqui é que o
entrelaçamento por inserção evolua para uma interconexão estéril. O movimento desejável e a competência multi-
lingüística do entrelaçamento por inserção correm o risco de tornarem-se uma armadilha, onde o ator adota regras
e fórmulas rígidas de modo a encobrir situações que são definidas como estereótipos vazios de situações
altamente complexas. Em vez de realizar um grau avançado de liberdade e fluidez, esse fechamento evoluiria, ao
contrário, na ficção pós-moderna, vazio de participação, de criatividade, de realização e de liberdade. O hiper-
entrelaçamento se voltaria, assim, contra si mesmo e tornar-se-ia, por sua vez, um turbilhão de tendências
emotivas de auto-decepção e ineficiência.

8 DOIS EXEMPLOS DE ENTRELANÇAMENTO

O primeiro exemplo de matriz de entrelaçamento concentra-se nos entrelaçamentos por sobreposição e por co-
mistura, e trata da pesquisa nas ciências físicas que envolveu aproximadamente trezentos cientistas, de modo
permanente ou intermitente, seja por uns poucos anos de carreira, seja pela duração de trinta anos. Essa
combinação de entrelaçamento por sobreposição e por co-mistura nunca resultou em uma nova disciplina e
tampouco no estabelecimento de um instituto ou laboratório. A dinâmica pertencia totalmente a uma categoria de
entrelaçamento na qual indivíduos permanecem simultaneamente ligados as suas disciplinas e institutos de origem
e que se movem através de fronteiras institucionais e disciplinares de modo a explorar fenômenos novos e
complexos. Esse entrelaçamento tem sido referido como "um laboratório sem paredes". O segundo episódio aqui
apresentado concentra-se, de outro modo, no entrelaçamento por co-mistura e por inserção, e trata de
comunidades e identidades que se movem da escala geográfica/política local para a escala global. A globalização
é um tema rotineiro dos pensadores pós-modernos, embora o modo como precisamente as questões de identidade
e cultura operam fique sem exame. A perspectiva do entrelaçamento por co-mistura e por inserção sugere um
sistema de identidade, de cultura e de territorialidade política que pode iluminar o vínculo entre o fundamento
local e o prospecto de globalização.

O entrelaçamento por sobreposição e por co-mistura nasce comumente de encontros serendipitosos entre
indivíduos ou grupos, e expressa uma vaga reorientação ou recombinação no interesse. O entrelaçamento não
resulta de um projeto ou programa preestabelecido. A pesquisa na física dos sólidos, desenvolvida na França logo
após o final da Segunda Guerra Mundial, por meio das iniciativas de cientistas tais como L. Néal, J. Friedel, P.
Aigrain, A. Guinier e R. Mastain, concentrou-se nos semicondutores baseados em substâncias puras sem defeito.
Ela incluiu trabalho sobre a supercondutividade e o magnetismo (cf. Pestre, 2001). Durante os anos 1970,
emergiu uma corrente de pesquisa adicional que tratava de materiais porosos, cristais líquidos e substâncias com
defeitos. Essa reorientação teve como pioneiro Pierre-Gilles de Gennes, que fundou uma escola de pesquisa de
"soft materials" e que recebeu o Prêmio Nobel, em 1991, por suas contribuições coletivas. Essa nova direção não
tinha embasamento disciplinar ou institucional. Seu ponto focal era os meios aleatórios macroscópicos (milieux
aléatoires macroscopiques) o estudo de materiais desordenados enquanto oposto à análise física anterior dos
materiais puramente cristalinos, não defeituosos _ de onde surgiu o acrônimo MIAM, assumido pelo grupo de
entrelaçamento. Materiais macroscópicos desordenados constituíam seu objeto de investigação. O que incluía
fenômenos de suspensão, gelatinização, percolação e o crescente estudo de fluidos e materiais secos granulares e

36
porosos. Enfatizou-se temas como ruptura e desgaste. Os fractais e a não-linearidade constituíam as ferramentas
conceituais rotineiras. Um tema então recorrente era a transição de fase (liquido/gás). Esses tópicos compartilham
um estilo comum de trabalho. A pesquisa não somente cobria uma diversidade de entidades físicas, mas também
envolvia uma gama de atores disciplinares, estendendo-se da mecânica de fluídos à química, à cerâmica, à
metalurgia, à estatística, à geofísica, à ciência dos materiais, às ciências da Terra, à simulação, à engenharia etc. O
domínio inicial sugeria possíveis aplicações importantes; alguns grupos industriais cruzaram a fronteira
academia/empresa e participaram do entrelaçamento por sobreposição.8 Empresas como Saint Gobain, Lafarge
Rhône Poulenc e IFP participaram da nova pesquisa não-estruturada, embora intensa, sobre materiais
desordenados.

O campo foi, já no início, altamente louvado com o Prêmio Nobel de Física, conferido em 1977 a Philip W.
Anderson por seu trabalho sobre "localização". Anderson imediatamente percebeu que o mais leve defeito
qualitativo em uma substância transforma o comportamento físico dessa substância. Desse modo, surgia uma
abertura para um campo completamente novo de investigação, não coberto por qualquer disciplina ou instituição.
O empenho nesse campo constituía, assim, uma questão de entrelaçamento, o que possibilitou tanto a indivíduos
como a grupos reterem seu referente cognitivo e organizacional de base, enquanto permitia, ao mesmo tempo, a
circulação por meio da sobreposição e da co-mistura de cientistas da mesma disciplina, ainda que de instituições
diferentes e que compartilhavam o mesmo interesse, ou ainda de cientistas de disciplinas alternativas que
compartilhavam preocupações todavia análogas, fundadas na mesma instituição. A fluidez da pós-modernidade
não foi requerida para a realização do entrelaçamento, e as restrições ao modelo da modernidade flanqueada
foram obliteradas pelas práticas e pela comunicação do entrelaçamento.

Em 1978, foi organizado um seminário pelos físicos franceses P. G. de Gennes, E. Guyon e seus colegas, na
famosa sala de conferência em Les Houches, para apresentação de trabalhos sobre materiais defeituosos e
desordenados. A iniciativa foi apoiada pela seção de Química do Centre National de la Recherche Scientifique
(CNRS). Dúzias de cientistas assistiram, não exclusivamente oriundos da França. Numerosas disciplinas foram
representadas e os tópicos centraram-se sobre fenômenos de suspensão e de gelatinização. Em 1980, em um outro
seminário de verão em Les Houches, E. Guyon apresentou uma comunicação sobre médias randonômicas
macroscópicas. Nessa juntura, o caráter de entrelaçamento do movimento tornava-se manifesto. Enquanto um
laboratório parisiense e outro em Rennes e em Marselha administravam a parte organizacional, muitos indivíduos
assistiram a uma sucessão de seminários não enquanto representantes de seus institutos oficiais, mas como
indivíduos ou grupos que desejavam entrelaçar-se, por sobreposição ou por co-mistura, em uma base mais
estável, mesmo oficial, com colegas provenientes de outras especialidades ou institutos de pesquisa. Colaboração
e sinergia constituíam o objetivo. O CNRS aceitou fornecer certo apoio. Proveu-se uma série de fundos modestos,
topicamente centrados, para temas particulares, na forma de uma Ação Temática Programada. Entretanto, uma
vez que se tornava cada vez mais manifesto o entrelaçamento por sobreposição e por co-mistura de investigadores
das nações vizinhas (Inglaterra, Alemanha, Noruega e Estados Unidos), o CNRS optou por estender a ajuda. O
fundo da Ação Temática Programada tornou-se, assim, cada vez mais disponível e, nos anos de 1990, dois
financiamentos quadri-anuais foram designados para o grupo de pesquisa. É importante notar que os últimos
programas não foram particularmente designados para os fundos de pesquisa. Tais fundos constituem
especificamente motores do entrelaçamento, notadamente um entrelaçamento por sobreposição e co-mistura. Eles
oferecem recursos para viagens, para a comunicação e para estudantes de doutorado e de pós-doutorado. Essas
iniciativas são de importância central para o entrelaçamento. Contudo, o movimento é percebido a partir do
interior da perspectiva dos referentes estabelecidos.

O exemplo brevemente descrito do MIAM oferece indicações acerca de como os referentes do entrelaçamento
operam, na forma de disciplinas, institutos de pesquisa e instituições nacionais. O entrelaçamento por

37
sobreposição e co-mistura permite a extensão de técnicas novas ou emergentes, de questões, de estilos de trabalho
e, acima de tudo, de padrões e, algumas vezes, de continuidades de circulação. No entrelaçamento por co-mistura,
como se observa no entrelaçamento das relações não oficiais entre Paris, Rennes e Marselha, ocorre uma sinergia
de longo prazo que continua a persistir no interior de um entrelaçamento contrariamente ao que ocorre em uma
estrutura institucionalizada , no qual, por um lado, colaborações e sinergia, breves ou duradouras, existem
independentemente da inercial tendência institucional da modernidade, ou mesmo da indiferença, ou, por outro
lado, da total ausência dos requerimentos da pós-modernidade para escapar da interminável fluidez e ausência de
fronteiras.9

O segundo exemplo de entrelaçamento concreto trata com o entrelaçamento por co-mistura e inserção,
particularmente com referência à globalização. Embora a globalização seja um objetivo proeminente para muitos
pós-modernos, existe pouca discussão acerca de como a globalização deve ser alcançada. A discussão se coloca
em termos da supressão do Estado-nação, do capitalismo monopolista, da emergência das corporações
multinacionais, da cidadania mundial e da fluidez ainda que estes possam ser vistos como fins, antes que como
meios. Em alguns casos, a questão das relações entre o local e o global é levantada, mas deixa-se em silêncio,
uma vez mais, as interconexões e mecanismos precisos no equilíbrio entre o local e o global. Irei sugerir, em
seguida, que combinações de entrelaçamento de sobreposição e entrelaçamento por co-mistura representam uma
base para a formação de territórios. Por sua vez, o entrelaçamento por sobreposição e co-mistura pode, assim,
estender territórios em direção à globalização. A centralidade da escala local repousa particularmente em sua
íntima e autêntica conexão com os habitantes autóctones e com a comunidade. Essa fixação no local é histórica,
cultural, econômica, política e lingüística. O entrelaçamento por sobreposição fornece uma lógica para a dinâmica
local. A concatenação entre local e territorial pode ser promovida por meio de uma combinação de
entrelaçamentos por sobreposição e por co-mistura, assim como localidades múltiplas podem construir
mecanismos aditivos de interesse, de mito, de instrumentalidade e de migração. A co-mistura bem pode se
mostrar particularmente decisiva aqui. A juntura territorial e a projeção em direção à globalização podem ter uma
base no entrelaçamento por inserção. Essa concatenação de diversos entrelaçamentos oferece uma dinâmica de
multi-nível e de multi-referente em direção à globalização. A perspectiva da matriz de entrelaçamento merece ser
considerada de acordo com três bases principais. Primeiro, ela preserva a autenticidade/autoctonia local em face
ao global. Segundo, ela situa os territórios no centro do localismo transversal. Terceiro, ela permite o dinamismo
e a reversibilidade nas batalhas e confrontos entre programas culturais e políticos alternativos de organização da
humanidade. Oferece, pelo menos, uma resposta à questão bastante legítima de R. Lee no debate
modernidade/pós-modernidade, ou seja, qual é o lugar da modernidade local múltipla na arquitetura da evolução
cognitiva e social, particularmente em relação à globalização do mundo em desenvolvimento no hemisfério sul?
Parte da resposta pode residir na matriz de entrelaçamento.

Os contornos daquilo que constitui o "local" são bastante familiares. Considerações de família, clã e tribo eram
bastante centrais, e atualmente o grupo local está organizado em torno de escolas, do esporte, de associações em
apoio aos times locais, de causas e grupos cívicos, de atividades culturais etc. A geografia também é de central
importância para a escala local. O local freqüentemente coincide com caminhos de comunicação e de transporte
através de rios ou ao redor de lagos, que se acomodam sobre vales ou em planícies determinadas por cadeias de
montanhas etc. As economias locais produzem uma gama de produtos autônomos, o que é necessário para a
sobrevivência local; existe um circuito local de troca e intercâmbio, e não é raro a existência de um idioma ou
dialeto local o córsico, o bretão, o alsaciano etc., ficando apenas com os encontrados na França. As catástrofes
locais são vividas e compartilhadas como eventos históricos, e personalidades históricas carismáticas surgem,
podendo incorporar-se na paisagem do mito heróico.

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A própria força do local constitui um entrelaçamento por sobreposição. Tal entrelaçamento traz os indivíduos
para junto das comunidades e da diversidade de atividades que compõem o local. Ele permite a mobilidade e a
extensão no interior do local. Por meio dos mecanismos e da dinâmica do entrelaçamento por sobreposição, os
indivíduos podem reter seu referente básico, bem como permanecer no interior do ambiente local quando se
requer a mudança para um referente alternativo. Oportunidades de emprego inconstantes são freqüentemente
identificadas e localmente obtidas por meio do entrelaçamento de sobreposição. Por força desse entrelaçamento
de sobreposição, o referente principal permanece sendo o local, ainda que indivíduos e grupos possam circular e
mudar, adquirir novas habilidades, acumular novas realizações e misturar-se com novos grupos na familiaridade e
segurança do ambiente circunscrito de casa.

O desafio difícil consiste no movimento da escala local para a dimensão territorial. 10 Um território pode
simplesmente ser visto como uma reunião ou combinação de múltiplos locais. De modo alternativo, um território
pode ser visto como constituindo um elemento adicional que transcende meramente um agrupamento de diversas
localidades. Ele pode ser percebido como oferecendo um valor agregado um potencial novo e adicional que
ultrapassa a simples adição de uma série de ambientes locais. Enquanto a lógica de entrelaçamento do local é
principalmente a do entrelaçamento por sobreposição, o entrelaçamento suportado por um território é o
entrelaçamento por co-mistura e, em menor extensão, talvez também o entrelaçamento por inserção.

Um território transcende seus componentes locais. Ele requer um entrelaçamento por co-mistura na forma de
pessoas que respeitam e compreendem as particularidades do referente local, e que também falam um idioma
transversal, que desfrutam de conhecimento transversal e que possuem uma visão transversal que reconhece a
entidade territorial. Não existe aqui necessidade alguma de os atores do entrelaçamento por co-mistura
abandonarem seus referentes locais autóctones. Para esse referente local, os atores multiplicam sua competência
por meio de recursos suplementares de referentes locais. Por meio da sinergia, esse entrelaçamento profissional,
cognitivo e social alcança os benefícios associados com a territorialidade transversa multi-local.

Ademais, a territorialidade baseia-se na geografia, na economia e na história. Ela compartilha necessariamente


uma moeda comum e, até certo ponto, um conjunto comum de valores, de ambições políticas e, eventualmente, de
instituições políticas. De modo semelhante, mitos e símbolos territoriais necessariamente emergem. Os territórios
estão, assim, fisicamente conectados. Eles podem construir uma história e uma mitologia convergentes. Eles
identificam e inventam os entrelaçamentos por co-mistura que, ao mesmo tempo, permitem e legitimam seus
projetos territoriais. A territorialidade não é uma unidade social "natural" do mesmo modo que a escala local. Em
vez disso, ela é freqüentemente uma combinação de conexões comerciais, de circulação da produção e de cálculo
político. E para a vida se expressar em uma unidade territorial, a consciência e o entrelaçamento estratégico
devem se desenvolver. As fluididades e a anti-diferenciação da pós-modernidade fecham o caminho para o
território. Elas favorecem a anti-territorialidade, a fragmentação, a hiper-diversidade e a diferença. O território é
um produto de junturas no interior do local; e, assim, sua conjunção e formas de entrelaçamento figuram aqui
relevantes na forma de indivíduos que atravessam localidades e se co-misturam com numerosos referentes no
interior de uma noção mais abrangente de território. Com efeito, o entrelaçamento por co-mistura oferece uma
matriz estável para a construção e para a arquitetura de um território.

Por fim, como explicar o sonho pós-moderno de globalização? Como já indicado, o processo recebeu pouca
atenção, e desde que a pós-modernidade nega a estrutura e a função, os contornos da globalização pós-moderna
também permanecem encobertos. Se a fluidez, a anti-diferenciação e a diferença individual fragmentada
constituem a totalidade da globalização, então existe pouco mais a se dizer. Por outro lado, se a globalização
pretende, em vez disso, representar algo substantivo, o entrelaçamento pode ser relevante, em particular, o
entrelaçamento por co-mistura e o entrelaçamento por inserção.

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A globalização pós-moderna pode, com efeito, sinalizar a comunicação e a troca econômica livre de tarifa. Poder-
se-ia até mesmo aludir a uma única moeda corrente. É improvável, entretanto, que isso se estenda a uma fluidez
desimpedida de populações de todas as raças, classes e habilidades, como se evidencia por inumeráveis eventos
históricos contemporâneos muitos dos quais trágicos, para dizer o mínimo. Todavia, se um tipo de semi-
globalização é seriamente esperado ou antecipado, o entrelaçamento por inserção poderia desempenhar um papel.
O entrelaçamento por inserção, nesse contexto, poderia promover o envolvimento do indivíduo e do grupo em um
referente territorial, antes que em um referente local. A globalização envolveria a convergência e conexão de
múltiplos territórios, mas talvez não a totalidade dos territórios dos planetas. Assim, o entrelaçamento por
inserção poderia percorrer múltiplos territórios. Uma vez que se toma um território como o referente central, o
atravessar de fronteiras para outros territórios, acompanhado por conhecimento apropriado e prática multi-
territorial, e que se baseia em permanências amplas, poderia contribuir para a introdução de confiança recíproca,
de representações, modos de interação e a preparação de uma pragmática multi-territorial e mesmo de regras que
poderiam promover uma forma bondosa de globalização. O entrelaçamento por inserção não pretende com efeito,
assim como nenhuma categoria de entrelaçamento produzir a homogeneidade, a conformidade etc. Ao contrário, a
missão do entrelaçamento é a preservação de habilidades e representações heterogêneas, com a possibilidade de
promover combinações novas, re-combinações e, potencialmente, des-combinações. No cenário da globalização
pós-moderna, portanto, a vocação do entrelaçamento seria uma abertura em direção a uma confederação e mesmo
a uma federação mais abrangente, mesmo em um contexto no qual a circulação maximal e a sinergia são
protegidas e fundadas na cultura, em hábitos e em especializações locais ou territoriais.

A auto-contradição da pós-modernidade consiste em que esta evoca a onipresença de um padrão. A dinâmica de


cada uma das três formas de entrelaçamento é bastante distinta. O entrelaçamento privilegia referentes definidos e
delimitados, promovendo uma travessia de fronteira seletiva e propositada em direção aos referentes alternativos,
em vista da realização de objetivos cognitivos, epistemológicos ou sociais, embora sempre mantendo contato com
o referente originário e conservando espaço para a manobra em vista da des-combinação, assim como também
para a combinação ou a re-combinação na busca pela novidade.

9 OBSERVAÇÕES FINAIS

A introdução do conceito de "entrelaçamento" em conexão com o conceito de "referente" e a operacionalização


de três formas de entrelaçamento ("por sobreposição", "por co-mistura" e "por inserção") tem a intenção de
fornecer uma perspectiva alternativa para o exame do material cognitivo, epistemológico e das transformações
sociais dos últimos 50 anos e talvez mesmo mais que isso. O debate modernidade versus pós-modernidade,
embora tenha produzido uma riqueza de escritos e numerosos pensamentos originais e, às vezes, interessantes,
está tornando-se repetitivo e, em certas ocasiões, trivial. Embora a perspectiva da modernidade tenha representado
compreensivamente muitos eventos que ocorreram entre o século xvii e meados do século xx, é evidente que, por
uma variedade de razões muitas vezes obscuras, transformações importantes modificaram a cognição, a
epistemologia, os materiais e a sociedade durante as últimas décadas.

Alguns estudiosos têm buscado desesperadamente revisar a análise da modernidade a fim de explicar essas
transformações, e algumas tentativas têm sido freqüentemente cogitadas. Outros escritores abandonaram
completamente as teses da modernidade e, assim, têm reescrito a experiência humana em termos de pós-
modernidade. Eles procuram descrever um mundo marcado pela completa descontinuidade com a história
pregressa e tentam explicar essa nova orientação. Examinado a partir de uma perspectiva puramente filosófica,
poder-se-ia pensar que a colocação modernidade versus pós-modernidade inclui uma dinâmica dialética hegeliana

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de tese e antítese! Contudo, não está absolutamente claro até que ponto tais escritos pós-modernos refletem
genuinamente a mudança ou, de outro modo, em que grau eles encerram uma nova representação fundada no
ceticismo e em sofismas. A resposta conveniente situa-se provavelmente em algum lugar intermediário. Seja
como for, algumas autoridades pós-modernas mais parecem expressar o desejo para produzir surpresa e clamor do
que contribuir para uma análise cuidadosa que respeita a metodologia, o rigor e as condições limitantes. A
onipresença do vocabulário da "reflexividade", em uma miríade de formas mal definidas ou contraditórias, é
emblemática do desejo da pós-modernidade de fundar seu discurso e formular soluções para problemas sociais ou
catástrofes que são freqüentemente produzidos. Defensores da modernidade, de uma ou de outra opinião, apelam
similarmente, de modo não crítico, à "reflexividade" ou para enriquecer seu próprio discurso emblemático ou para
criticar os pós-modernos. O léxico do debate modernidade versus pós-modernidade é, assim, freqüentemente
deficiente e exibe uma pobreza de imaginação.

A ambição do presente artigo foi representar criticamente o pensamento moderno e pós-moderno, acrescentando
alguns exemplos para apontar falhas salientes em ambos os campos. A apresentação da noção de entrelaçamento
foi empregada como um veículo crítico. Entretanto, além disso, o conceito de entrelaçamento pode também
oferecer um caminho de reflexão capaz de contribuir para evitar o debate modernidade versus pós-modernidade.
Em relação à noção de "entrelaçamento", talvez agora seja o momento para o desenvolvimento de uma
exploração sistemática de uma filologia de um agrupamento de linguagem que incorpora uma família de termos,
tais como "entrelaçamento", "sobreposição", "co-mistura", "inserção", "cooperação", "circulação" e "sinergia".
Essa filologia oferece enormes contrastes com a linguagem tanto da modernidade como da pós-modernidade. Isso
é manifesto a partir de um rápido relance por sobre os léxicos centrais da análise social contemporânea dominante
e pós-dominante. Uma sistemática abordagem filológica pode iluminar profundamente as consolidadas conexões
envolvidas na terminologia proposta pela abordagem de entrelaçamento e também sugerir novas interpretações a
essa filologia, evocando, assim, novas trajetórias de significado.

Com efeito, é possível que nem a modernidade nem a linha pós-moderna de pensamento capturem
adequadamente a experiência cognitiva, epistemológica e social contemporânea. Podemos estar nos movendo em
direção a uma pós-pós-modernidade, e a perspectiva do entrelaçamento, assim como sua filologia auxiliar, pode
articular modestamente alguns aspectos desse novo e necessário modo de ser e de pensar.

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Traduzido do original em inglês por Pablo Rubén Mariconda & Guilherme Rodrigues Neto
1 A. Scott considera que a metáfora "gaiola de ferro" foi traduzida incorretamente do alemão e que o termo "habitação de aço" é mais
apropriado. Scott sugere que o uso do último termo revisaria moderadamente nosso entendimento da percepção que Weber assume da
modernidade.
2 Seria incorreto considerar que as correntes emancipatória e tecnológica da modernidade não eram complementares em alguma medida
e em alguns contextos, e até mesmo que não estavam em conluio. Na França do início do século xix, o estabelecimento da Escola
Politécnica e a introdução do sistema integrado das Grandes Escolas serve para a ciência, para a tecnologia, para o aparato militar, para a
indústria e, com freqüência, acima de tudo, para a burocracia estatal. A burocracia estatal demonstra a interação sutil e poderosa entre as
duas correntes da modernidade (cf. Shinn, 1980) a emancipatória e a tecnológica , que são comumente representadas como pólos
antagônicos e em competição, dos quais a tecnologia finalmente emerge vitoriosa. Uma exploração mais profunda acerca da relação
histórica entre as duas correntes requer pesquisa rigorosa.
3 Paul Veyne (2008), em seu recente livro, desconsidera a alegação de que Michel Foucault figura entre os anti-estruturalistas. Segundo
muitos defensores da pós-modernidade, Foucault está no centro da inspiração pós-moderna.
4 Convém consultar, em particular, os dois números especiais do periódico Science in Perspective, de 2005, que tratam exclusivamente
da "tecnociência".
5 É interessante notar que, no trabalho de Beck, a abundância material necessária para alimentar, vestir e a abrigar a população mundial
é apresentada como um dado. A prosperidade é uma pressuposição não questionada da segunda modernidade. Em nenhum lugar,
levanta-se a questão da escassez ou da necessidade de lidar com essa possibilidade. A escassez é inteiramente superada pelo medo do
risco. Isto está numa interessante contraposição com Drexler, cuja preocupação inicial com a engenharia molecular e a nanotecnologia
era uma solução para o problema impeditivo da limitação de recursos em meio a uma população global que cresce tanto em número
como na demanda.

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6 Quero aqui agradecer a Anne Marcovich por chamar minha atenção para a capacidade de "re-encantamento", latente na pós-
modernidade. Ela sugere que a emergência ou a manipulação da "emoção" entre as populações da pós-modernidade pode, a curto prazo,
neutralizar o giro estrutural em direção ao desencantamento, normalmente associado com a modernidade weberiana. Sugerirei abaixo
que o conceito durkheimiano de "efervescência" pode, sob condições específicas, servir ao mesmo propósito. Tal como insiste Anne
Marcovich, a emoção deve ser, desse modo, subscrita como uma força fundamental na interação sociológica e nos eventos históricos.
7 Para o conceito e detalhes dos problemas envolvidos em tornar-se um membro autêntico de um referente hospedeiro, quando se tem
origem em referentes diferentes, cf. Shinn & Lamy, 2006. A informação apresentada nessa análise concentra-se em problemas de
entrelaçamento por inserção para cientistas pesquisadores do CNRS que abriram uma empresa enquanto empreendedores, mas que
nunca tiveram sucesso em evoluir como "verdadeiros" empreendedores. Aqui, os cientistas não podem evoluir para além de um arranjo
de entrelaçamento por inserção. Não se discerne aqui nem a emergência de um híbrido, freqüentemente aludido como uma configuração
futura promissora na pós-modernidade, nem de um autêntico capitalista.
8 Um exame cuidadoso revela, não obstante, que esse entrelaçamento era, de fato, limitado a uma sobreposição e não se constituía como
um entrelaçamento por co-mistura. As razões para essa inibição podem ter sido a restrição ao direito de propriedade ou, de outro modo,
o fracasso em obter resultados financeiros suficientemente rápidos na forma de lucro empresarial.
9 Cf. Shinn & Marcovich, no prelo. Nesse artigo, os autores apresentam três configurações de laboratórios contemporâneos de pesquisa.
Uma dessas configurações é a configuração "porosa"; ela é emblemática de um entrelaçamento por sobreposição. Descreve-se um
laboratório marginalmente institucionalizado do CNRS, cujos objetivos nunca foram divulgados ou esclarecidos, e se associa esse
laboratório com a procura pela matéria escura. Na realidade, a investigação da matéria escura tornou-se um centro para o entrelaçamento
por sobreposição relacionado ao magnetismo, à sismologia, a fenômenos atmosféricos selecionados, aos estudos cósmicos e à mecânica.
Cientistas e engenheiros permaneceram vinculados aos seus institutos oficiais de pesquisa no CNRS e às suas respectivas disciplinas.
Eles também se encontram de modo intermitente no pólo de entrelaçamento onde eles atravessam principalmente fronteiras em termos
de compartilhamento e construção de nova expertise técnica. Não existe hibridização alguma, nem qualquer fluidez. Esse entrelaçamento
por sobreposição tampouco gera fechamentos do tipo que os modernos talvez considerem inevitáveis. O entrelaçamento por
sobreposição favorece a comunicação, o compartilhamento de materiais e, às vezes, as colaborações práticas. O entrelaçamento ainda
mostra-se constituir um mecanismo elástico e flexível para o estabelecimento e também para a modificação dos graus de interação entre
indivíduos e grupos conscientes da vantagem da cuidadosa mobilidade definida. Isso não constitui nenhum nomadismo pós-moderno,
mas antes a circulação seletiva no interior de um território demarcado de modo múltiplo.
10 Para análises acerca da invariância histórica e reflexões sobre "o local e o territorial", cf. Marcovich, 2001.
*
Para um esclarecimento a respeito da tradução para o português da expressão de Weber, cf. a tábua de correspondência vocabular,
elaborada por Antônio Flávio Pierucci, em Weber, 2004, p. 19-20. (N.E.)

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