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Entenda o que é “comunista” e outros termos importantes da política

(disponível em:
<https://congressoemfoco.uol.com.br/blogs-e-opiniao/colunistas/entenda-o-que-e-comunista
-e-outros-termos-importantes-da-politica/> acesso em 10/04/2020.

Por Ricardo De João Braga Em 05 abr, 2020 - 10:00

Opinião

Comunista, socialista, esquerdista e variações “ridicularistas” e pejorativas tomaram conta


de boa parte das discussões sobre política nos últimos anos. Confesso que desde o início
estranhei o uso, e principalmente o abuso, dos termos. Assim como um químico não fica à
vontade se alguém disser no laboratório “fervura”, ele provavelmente usaria “ebulição”, a
montanha de circunstâncias e significados possíveis dados aos termos políticos exigiriam
um melhor cuidado. Como ele não veio, cabe-nos tentar compreender como são usados e
alguns porquês.

A designação de um movimento político como “esquerda” ganhou seu sentido clássico no


período da França da primeira revolução, onde os mais radicais defensores de mudanças
colocavam-se no lado esquerdo da Assembleia e os mais conservadores à direita. Naquele
período havia três grandes linhas políticas. A primeira monárquica absolutista, que se
esboroava e nunca mais retomaria sua proeminência. A segunda burguesa, que desejava
derrubar a ordem feudal e desenvolver o capitalismo – grandes vitoriosos ao longo dos
séculos 19 e 20. A popular, baseada em reivindicações para os grupos mais pobres e
desprestigiados da sociedade, os quais veriam algumas vitórias parciais ao longo dos
próximos 200 anos.

Comunista, por sua vez, foi um termo que designou parte dos movimentos de trabalhadores
nos séculos 19 e 20, um subgrupo da linha política popular citada no parágrafo anterior.

O capitalismo em ascensão urbanizou e proletarizou muitas sociedades. Milhões de


pessoas aglomeravam-se nas cidades e trabalhavam nas fábricas, mas viviam em
péssimas condições. Assim, movimentos organizaram-se de diversas formas, sob diversas
ideologias, das mais às menos radicais. A amplitude das mudanças almejadas variava, e
mesmo vários grupos desejavam um passado idílico, romântico, em que todos viveriam
numa sonhada abundância no campo. Anarquistas, por sua vez, queriam uma sociedade
toda nova, sem estado, dominação, etc.

A grande base comunista derivou do trabalho de Karl Marx e seu colega Friedrich Engels
em meados do séc. 19. A par do desejo de uma vida melhor para as classes populares,
Marx e Engels aportaram uma perspectiva científica ao estudo da sociedade. Em sua
construção, que traz elementos importantes do Iluminismo, da crença na evolução e na
sociedade dirigindo-se a um futuro melhor, entendiam que a sociedade se movimenta,
sobretudo, baseada na luta de classes. Grupos com condições de vida e objetivos distintos
seriam antagonistas, pois conscientes de uma relação de exploração entre eles. O fulcro
dos problemas seria a propriedade privada, e o futuro, de forma inexorável e predita pela
ciência marxista, produziria uma sociedade sem propriedade privada, sem classes e sem
dominação: o mundo comunista (sobre o qual, justiça seja feita, Marx pouco escreveu).

A partir dessas bases os movimentos políticos dividiram-se em incontáveis tendências.


Considerada apenas a vertente à esquerda, a grande divisão ideológica dava-se em relação
à centralidade da revolução e à profundidade das transformações pretendidas. Para alguns,
tudo deveria mudar, necessariamente derrubando o sistema anterior – suprimir a
propriedade privada e coletivizar tudo era o grande alvo, assim como desconstruir a
ideologia burguesa com seus valores políticos, sociais e religiosos. A revolução russa
principiou assim, embora posteriormente tenha adquirido a face de uma ditadura burocrática
com altas doses de ideologia e propaganda, o que é outro capítulo enorme da discussão
política.

Por outro lado, alguns grupos conformaram-se a mudanças possíveis dentro do jogo de
poder capitalista, abrindo mão de transformações radicais e utilizando estrategicamente da
democracia liberal. Buscavam-se melhores salários, serviços públicos de qualidade,
possibilidades de ascensão social. Aqui surgiu a social democracia (que ganhou impulso no
pós II Guerra na Europa), e, em algumas variantes de nomenclatura, definiram-se os grupos
socialistas (brandos) em oposição aos comunistas (radicais).

Pois bem, descontadas as simplificações necessárias a um texto curto, atentando contra a


história geral, política e das ideias, o quadro acima situa as bases canônicas do que seria
esquerdista, comunista, socialista, socialdemocrata. É este quadro que gera o desconforto
com o uso disseminado e sem o mínimo rigor dos termos. Contudo, como dissemos, o uso
da linguagem é propriedade coletiva (contraditoriamente...), e cabe compreender o
significado que os termos adquiriram no debate contemporâneo no Brasil.

No clima de polarização política visto hoje em dia, comunista, socialista e esquerdista


e suas variantes são acusações que se faz a um grupo adversário, vindas em regra de
um emissor que busca apoiar valores tradicionais na economia, sociedade, cultura,
etc. Nessa intempérie dos termos, algumas ideias-força despontam, demonstrando
situações e razões que dão maior ensejo aos termos.

Uma acusação “comunista” usual dirige-se às Ciências Sociais, vistas como


altamente esquerdistas. Daí o ataque às universidades e a círculos de reflexão e
crítica social. Nesse sentido, parece-me que o problema reside na percepção que se tem
sobre a própria natureza dessas ciências, a Sociologia, a Antropologia, a Ciência Política e
mesmo algumas partes da Economia.

Imagina-se um biólogo criticando a extensão da família dos coleópteros? Ou a relevância


das pteridófitas nas florestas caducas? Desculpem-me os termos, referem-se a besouros,
samambaias e plantas das quais as folhas caem em determinadas estações. Da mesma
forma, um físico não questiona a força da gravidade. Quantas espécies de besouro existem,
quantas samambaias vivem em florestas e seu papel nelas, se a gravidade deveria ser
maior ou menor, nada disso está sob julgamento de valor humano. Não faz sentido uma
campanha para aumentar em um par de asas os coleópteros, pois isso facilitaria seu voo,
ou expressarmos nosso desejo de que a força da gravidade fosse menor para saltarmos
como na Lua. Não faz sentido porque tais fenômenos fogem ao controle dos seres
humanos, são fenômenos naturais.

Por outro lado, toda sociedade, a forma da economia, os valores culturais são criações
humanas. É a forma de pensar e agir de mulheres e homens que determinam se temos
propriedade privada, o nível da desigualdade, a aceitação de determinados hábitos
como monogamia, homossexualidade, discriminação racial. As Ciências Sociais
debruçam-se sobre esses fenômenos.

O grande contraste e desconforto que há deriva da diferença de visões entre aqueles que
compreendem tais fenômenos (sociais) como criações humanas e assim passíveis de
mudança e aqueles que os entendem como derivados de outras fontes, seja a tradição
intocável, seja o mandamento divino (via religião), ou mesmo uma imposição da natureza
sobre o homem.

Devido a esta razão o mundo das Ciências Sociais recebe mais cotidianamente a
marca de “esquerdista” e coisas do gênero pois a perspectiva crítica é nelas central,
e em muitos casos esta crítica aponta para uma mudança do mundo em que vivemos.
É impossível fazer Ciências Sociais sem a crítica à sociedade, faz parte da atividade.
Podemos dizer que essa crítica é “essencial”.

Não podemos esquecer, contudo, que, ao contrário, há uma enorme massa de fenômenos
sociais que mesmo criticados recebem o apoio para sua manutenção, pois não se vê, por
exemplo, que a crítica social procure abolir a ideia de educação para todos, da prevalência
do Direito, da importância da liberdade, da igualdade. De fato, o que as Ciências Sociais
não podem abrir mão é da crítica. Se ela se transforma em pedido de mudança, isso
ocorre em alguns casos, em franjas ideológicas, em tendências.

Em suma, o que define as Ciências Sociais é a crítica ao mundo humano. Aos que a
valorizam, isso é sua riqueza; aos que são contrários a determinadas mudanças, trata-se da
perversão da ciência. Veja curiosamente que um conservador ocidental, se levado a outras
culturas distintas, poderia lutar pelo fim da mutilação do clitóris, sendo totalmente crítico à
sociedade local. Talvez lá ele fosse taxado de “esquerdista”.

Um segundo uso da pejoração “comunista” volta-se ao sistema político. Há sem


dúvida um extenso e difuso sentimento de desconforto com a sociedade em que vivemos.
Em perspectiva histórica, a sociedade hoje traz muito mais confortos materiais a um número
bastante grande de pessoas, embora parcela enorme ainda permaneça em situações de
pobreza e miséria. Da mesma forma, a informação flui como nunca antes. Mas o fato é que
o sentimento de desconforto deriva do que o ser humano deseja, sonha e pede, e não do
que já foi conquistado; e é normal que seja assim.

Desta forma, o grande culpado da sociedade não atingir os fins que deseja precisa ser
encontrado, e essa figura está disponível desde sempre, o establishment. O establishment
consiste na ordem impessoal que rege a sociedade ou se refere ao grupo que
controla a sociedade, mesmo que tais controles sejam parciais e limitados. À medida
em que as pessoas desejam um mundo diferente mas não encontram forma de acesso a
ele, o establishment torna-se alvo.

No contexto atual brasileiro, chamar o establishment de esquerda derivou do movimento de


contestação política que cresceu à direita, basicamente o grupo que mostrou sua face a
partir de 2013 e obteve sucesso na última eleição de 2018. Vindo da direita e enfeixando
o mal-estar da população “com tudo que está aí” (corrupção, crise, criminalidade,
etc.), disso decorreu logicamente que todas as instituições, grupos econômicos e
figuras de relevo, quando postadas no grupo político antagonista, passassem a ser
chamados de esquerdistas. Ressalte-se que, para alguns representantes do
establishment, seria impossível construir uma imagem de esquerdismo em modelos
clássicos. Por exemplo, acusar a rede Globo de esquerdista, pois que defende a ordem
estabelecida, defendeu a ditadura militar e coisas do gênero. Contudo, leva o rótulo de
esquerdista porque simboliza o establishment, e este é o grande inimigo do momento.

No sentido da crítica ao establishment, o uso do impropério “comunista”, “esquerdista” e


variações nos lembra a máxima de Sartre, “o inferno são os outros”. Sim, todos aqueles que
não nos apoiam ou diferem de nós mesmos são esquerda, fazem parte do problema.

Por fim, essa discussão dos termos faz-nos também pensar se, à luz de seu significado
histórico, os movimentos e atores que hoje se dizem de esquerda realmente o são. A
experiência do PT e sua aliança no governo por mais de uma década questiona se
aqueles ideais de mudança social profunda realmente devem ser relacionados ao
grupo.

Em verdade, a trajetória do PT e seus aliados insere-se no mundo pós-queda do Muro de


Berlin, em que a esquerda perdeu suas bandeiras históricas. Mais do que isso, insere-se na
realidade brasileira em que os princípios republicanos são muito pouco enraizados e
relevantes. Nosso caldo cultural mistura o gosto atávico pela desigualdade, o
patrimonialismo e o corporativismo. Assim o “esquerdismo” resultante mostra-se
como uma figura muito peculiar, e aquém dos sonhos utópicos.

Assim, vê-se que o uso hoje dos termos esquerda e correlatos ganhou curso muito
particular. Por um lado serve para atacar o establishment, por outro questiona as
perspectivas de mudança. Por fim, é ainda uma bandeira já sem brilho.

Perder o sentido das palavras empobrece a experiência e reflexão humana. Talvez, ao


cabo, trate-se disso, de um empobrecimento da reflexão e da capacidade racional de
influenciar o mundo, pois entregues a conflitos superficiais e sonhos vazios.

Ricardo De João Braga


Economista e cientista político, tem mestrado pela Universidade de Siegen (Alemanha) e
doutorado pela Uerj.
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