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VIDA

OCIOSA
A FILHA
GODOFREDO
RANGEL
FALANGE
GLORIOSA
OS BEM-
-CASADOS
vol. 1
vol. 1
Belo Horizonte | MG, 2022
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APRESENTAÇÃO
7 Tribunal de Justiça de Minas Gerais | TJMG
8 Escola Judicial Desembargador Edésio Fernandes | Ejef
9 Associação dos Magistrados Mineiros | Amagis

10 GODOFREDO RANGEL, IMORTAL


Rogério Faria Tavares

13 VIDA OCIOSA

127 A FILHA

214 O MEU MESTRE RANGEL


Autran Dourado

223 LITERATURA CALIGRÁFICA


Antonio Candido

237 CRONOLOGIA
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Esta reedição de quatro obras de referência de Godofredo


Rangel — Vida ociosa, A filha, Falange gloriosa e Os bem-casados — é
também uma forma de resgatar uma parte importante da história
literária brasileira. Revisitar o escritor Godofredo Rangel é ser
testemunha de um nobre clássico: o amor pela literatura.
A Escola Judicial Desembargador Edésio Fernandes (Ejef), a
Associação dos Magistrados Mineiros (Amagis) e a Academia
Mineira de Letras (AML), responsáveis pela brilhante iniciativa,
nos convidam a esta experiência mágica e transformadora que a
leitura nos propõe.
Monteiro Lobato, grande amigo de Godofredo Rangel,
em uma de suas cartas escreveu-lhe: Parabéns! Enfim, Rangel,
estás consagrado no nosso grupo como o grande romancista que o país
esperava — a nossa roda sabe o que diz, e o que ela diz é a opinião de
amanhã.
Visionário, Lobato tinha razão. Rangel é e será eterno em sua
obra. Os dois trocaram cartas durante 45 anos, 1903 a 1948,
cartas também eternizadas nas 752 páginas em dois volumes sob
o título A barca de Gleyre.
O roteiro intelectual e afetivo de Godofredo Rangel o tor-
nou imortal da Academia Mineira de Letras. Isso já se constitui
motivo suficiente para uma (re)leitura de suas obras, que emo-
cionam, sensibilizam e nos convidam a viver a Vida Ociosa, assim,
como deve ser.

Desembargador Gilson Soares Lemes


Presidente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais
Mercê da família de Godofredo Rangel, especialmente do fiel
curador de sua obra, o Acadêmico Márcio Sampaio; da participação
marcante e decisiva da Associação dos Magistrados Mineiros; da
Academia Mineira de Letras, de onde se destacam a sensibilida-
de e o descortino do Dr. Rogério Tavares, seu Presidente; o Tri-
bunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, pela Escola Judicial
Desembargador Edésio Fernandes, participa deste evento magis-
tral: a publicação da obra do homem público, do escritor e juiz,
do artista José Godofredo de Moura Rangel, ou, simplesmente,
Godofredo Rangel.
De sua parte, a Escola Judicial empreende esforços para resgatar
a memória histórica da magistratura e, ainda, possibilitar o acesso
à instigante obra do autor, juiz e romancista mineiro, onde se
retratam traços da vida interiorana (é no interior de Minas o locus
da maioria das comarcas), bem assim, numa mirada humanista,
possibilitar o contato com as letras e a literatura e a lida com a com-
plexidade das significações jurídicas e os seus reflexos na vida social.
Do ofício de juiz destacam-se as letras. As letras são do ofício do juiz.
Godofredo é juiz. Juiz-escritor, juiz-professor, juiz-tradutor.
Humanista. Ilustra a imagem institucional do Tribunal de Justiça
de Minas Gerais, que se projeta nesta iniciativa, com a participação
na reedição de sua obra, em parceria com a Associação dos Magis-
trados Mineiros e a Academia Mineira de Letras.
Tiago Pinto
Superintendente da Escola Judicial Desembargador Edésio Fernandes
SegundoVice-Presidente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais
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DifunDir e celebrar o talento literário dos magistrados mineiros é uma


das missões da Amagis há muitos anos. Uma divulgação mais intensa
teve início a partir da criação da revista MagisCultura, em 2009. A par-
tir de então, os magistrados e magistradas passaram a ter espaço pró-
prio para exercer suas expressões artísticas. Além disso, a revista serviu
de inspiração para que colegas magistrados começassem a escrever.
A ligação entre a Magistratura e a literatura, contudo, remonta a
um tempo muito anterior. Personagens como Tomás António Gonzaga
(1744-1810), muito conhecido como poeta e inconfidente, mas que
também foi magistrado, e Hermenegildo de Barros (1866-1955), juiz
que percorreu todas as instâncias e que também foi exímio escritor, são
exemplos desse diálogo entre as letras e a Magistratura.
Outro grande magistrado, cujo talento literário é inegável, foi Godo-
fredo Rangel. Sua trajetória está muito bem descrita em nota biográfica
que integra esta edição, o que dispensa detalhes nesta apresentação. O
mais importante é que, com esta obra que o leitor tem em mãos, o es-
critor Godofredo Rangel “renasce”. Seus romances podem ser apresen-
tados ao grande público após longo tempo decorrido sem novas edições.
É como se ele estivesse entre nós novamente, pois sua obra será eterna.
Assim, a Amagis cumpre a missão de entregar às atuais e às futuras
gerações esses quatro inestimáveis romances de Godofredo Rangel.
Ressaltamos também a satisfação em dar vida a esse projeto ao lado
de instituições como o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, através da
Escola Judicial Desembargador Edésio Fernandes, e a Academia Minei-
ra de Letras. Não poderia haver companhia melhor para efetivarmos
nosso propósito de difundir e celebrar a obra de Godofredo Rangel.
Destacamos ainda o trabalho de Márcio Sampaio, que, por mais de 50
anos, acalenta e cuida do legado de Godofredo Rangel.
Por fim, registramos agradecimento às pessoas que trabalharam, dire-
ta e indiretamente, nesta obra, em especial ao ex-presidente da Amagis,
desembargador Alberto Diniz Junior, em cuja gestão se iniciou
este projeto.
juiZ luiZ carlos rEZEnDE E santos
Presidente da Amagis
Godofredo Rangel, imortal

O corpo fenece. O legado, no entanto, é perene. Vence a morte e


o esquecimento. Os quatro romances de Godofredo Rangel, agora
relançados, oferecem às novas gerações eficiente testemunho do
raro padrão de sua literatura, reconhecido e admirado, ao longo do
tempo, por uma legião de leitores altamente qualificados. Como
um dia escreveu Monteiro Lobato, com quem o autor se corres-
pondeu por mais de 40 anos, a respeito de sua estreia: “Quero ter a
glória de ser o primeiro a dizer que Vida ociosa só pode figurar em
nossas letras junto ao melhor de Machado. Aquilo é uma obra prima
de psicologia e realismo das mais puras. É um livro sedimentado e
definitivamente lindo”. Sobre o mesmo volume, assim se exprimiu
Antônio Moraes, seu sucessor na cadeira de número 13 da Acade-
mia Mineira de Letras (AML), em seu discurso de posse como um
de seus membros, em 1952: “Em Vida ociosa os personagens vivem.
Têm carne, têm músculos, têm coração, têm alma, têm nervos”.
Na oração proferida durante o velório do escritor, no Cemité-
rio do Bonfim, em Belo Horizonte, o então presidente da Casa de
Alphonsus de Guimaraens, Mário Matos, foi certeiro: “Godofredo
Rangel é certamente o mais mineiro dos escritores de Minas. A sua
voz literária, como quer que se manifestasse, transpirava o cheiro da
terra, o murmúrio da água do córrego e a poesia do céu de Minas”.
A respeito da convivência com o escritor, o mesmo Matos acrescen-
tou: “Como homem e cidadão, era dessas raras criaturas que, depois
de meia hora de conversa, deixavam no ouvinte o desejo de incor-
porá-lo a seu parentesco religioso e a sua amizade, o desejo de
convidá-lo para compadre”. Para, mais adiante, concluir: “Há uma
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palavra que lhe resume a vida toda. Suavidade. Viveu suavemente,


tinha a palavra suave, com suavidade deslizava pela existência, amou
em tom suave e suavemente sofreu. Foi uma criatura em surdina,
assim como um canto de pássaro, a música na rua dos arraiais ou a
melancolia do crepúsculo no campo”.
Por tudo isso, é uma satisfação para a AML estar ao lado do Tri-
bunal de Justiça de Minas Gerais, da Escola Judicial Desembargador
Edésio Fernandes e da Associação dos Magistrados Mineiros no pre-
sente empreendimento editorial. Comprometidas com o direito à
Cultura, garantido pela Constituição Federal de 1988, as menciona-
das instituições executam, por meio de tal gesto, tarefa de inegável
interesse público e de imensa repercussão nos meios sociais.
Fundada em 1909, em Juiz de Fora, para promover a Língua Por-
tuguesa, as Letras e as Artes, e, igualmente, a Educação e a História,
a Academia permanece leal ao sonho de seus idealizadores, passados
mais de 112 anos. O resgate da densa contribuição de um de seus
mais ilustres integrantes para a vida literária brasileira comprova e
reitera sua vocação e seu destino. Que à recuperação da memória li-
terária de Godofredo Rangel, aqui belamente realizada, se sucedam
outros projetos de igual envergadura. Será bom para todos!

Rogério Faria Tavares


Jornalista. Doutor em Literatura
Presidente da Academia Mineira de Letras
VIDA
OCIOSA
GODOFREDO
RANGEL
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A estrada

Atravesso um longo trecho do povoado, que ainda dorme na pe-


numbra. A orla do horizonte empalidece. Cantos roucos de galos
erguem-se de todos os quintais. Arvoredos sonolentos debruçam-se
sobre velhas cercas, sombrios e relentados, com um fulgor de dia-
mante negro em cada folha. A aragem corta e ligeira névoa adensa-
-se nas extremidades da rua. Sorvendo até o imo dos pulmões o ar
úmido e frio, sinto meu sangue reagir alvoroçadamente, dando-me
uma doce impressão de bem-estar.
A estrada. Um resto da melancolia da noite ainda se exprime
no cricrilar transnoitado dos últimos grilos; em compensação, o
hesitante rangido com que as primeiras cigarras ensaiam a música
do dia, o crescendo de pios e gorjeios na grande mata do outro
lado do rio, anunciam o dia que alvorece.
Essa hora exerce sobre mim efeitos contraditórios. Às vezes
acabrunha-me, intumesce-me o coração com velhas recordações
imprecisas; há em minha alma o renascer de sensações antigas, e
que de longínquas jaziam em letargo, como mortas. Para despertá-
-las basta um quase nada: um reflexo alvacento num alagadiço, um
voo ondulante de pássaro, o sussurro da viração nas folhagens…
De que me lembro? A que cenas deslembradas de minha vida se
prendem essas fugidias sensações? Sabe-o apenas o subconsciente.
Nesses instantes a alma tumultua-me; dentro de mim alguém de-
bruça-se à janela do passado e alonga olhos nostálgicos para o que
quer que seja que não distingo. Sim! Diviso às vezes, nuns como
VIDA
OCIOSA

toques imprecisos de paisagem entre névoas, minha mãe que com


o lenço me acena, certa madrugada de despedida; um perfil de
companheiro de infância, uma fita de fumaça imota no ar parado,
desnovelando-se sem pressa, que o comboio ao longe continua a
estirar, até o cabo de certa interminável várzea, minha conhecida
da infância. Saudades, enfim, de pessoas e coisas velhas, ou de pes-
soas apenas, que as coisas dos antigos tempos como que se perso-
nificam e vivem, fitando-nos, como almas chorosas, do fundo de
nosso passado.
Outras vezes causa-me um recrescer de vitalidade. Sinto-me
germinar. Minh’alma desabrocha em aspirações, e julgo-me forte
para realizá-las. Parece que todos os triunfos dependem da minha
simples vontade. Um “quero” equivale a um “fiat”. Se estou enfer-
mo, esqueço a lazeira física, todo impessoalizado na consciência da
força. Não! meu coração não desequilibra seu ritmo nem os pul-
mões arfam penosamente; não sou carne, não tenho besta! sou uma
ideia que quer, uma energia que atua.
O caminho segue a cavaleiro do rio, que deriva à minha di-
reita, encoberto pela vegetação. Às vezes corre tão perto que,
arremessando-se uma pedra em sua direitura, se ouve o grulhar
das águas deglutindo-a. Flui misterioso e silente, apenas espaço a
espaço traindo sua presença o marulho da corrente arrufando-se
em coivaras, ou um breve reflexo prateado numa entreaberta das
ramarias. E a estrada, sanguejante, com vincos de carros de bois e
moldes de cascos de animais, prolonga-se à minha frente, orlada
de laçarias bambas de cipós florescidos. Em certo ponto, numa
surpresa de colorido, surge uma sempre-lustrosa revestida de flo-
res roxas, alto a baixo, tantas flores que não se lhe vê outra cor; e,
no chão, onde roja as dobras da rica túnica, esgarça-se num rastro
de pétalas violáceas.
Nas vertentes o caminho abaúla-se em facões. Não raro,
ladeando a estrada, cruzes negras abrem os braços carcomidos;
pecíolos ressequidos coroam o tope de uma ou outra, indi-
cando que a criatura que ali tombou inda não está totalmente
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esquecida; e, achegadas aos seus pés, pia oferenda dos viandan-


tes, morouços de pedras soltas.
Que alegre tintinabular me canta agora nos ouvidos? Que líri-
co madrigal, cadente e argentino, vem carrilhonando estrada em
fora? Ah, é uma tropa. À frente trota a madrinha, com um colar
de campainhas por peitoral. Vem lépida, contente, estimulada pela
doce música que suas passadas ferem, orgulhosa talvez dos laços de
baeta vermelha que a adornam, como rústica divindade de um culto
primitivo. Até ao alto do pau do arrocho, enristado sobre as cargas
como uma haste de bandeira, ondula a flâmula ridente de duas tiras
escarlates. Embala-me assim a alma com as suaves toadas de minha
infância, canta-me essa velha cantiga serrana, simples e sem letra,
ó doce aparição das estradas mineiras, poética fantasia de tropeiros
roídos de saudades, que, se à noite descantam nos arpejos da viola
as suas melancolias de eternos desterrados, de dia sentem que o
jornadear é mais suave embalado pelo teu carrilhão sonoro e jovial,
doce encantamento para os ouvidos e refrigério para a nostalgia.
E, repicando festiva, com o surdo acompanhamento do patear da
tropa, a agreste harmonia perde-se a distância.
Agora a vetusta porteira, de largos tabuões horizontais. O coice
é um tronco, malfalquejado, tendo ao topo uma abertura esculpida
em cruz. Ao abrir, ela emite um rangido prolongado e sonoro; e
volta silenciosa, para fechar-se em baque poderoso sobre o mourão-
-batente, o qual retumba pelos grotões como um tiro de peça.
Não sei por quê, é grande a força emotiva destes dois sons com-
binados; quando os últimos ecos se calam, inda noss’alma está a
vibrar, ferida profundamente em suas mais íntimas cordas; e à boca
vem-nos aquele mesmo ressaibo de vaga saudade, uma melancolia
de recordações longínquas; talvez porque sugerem, com a influi-
ção do meio, na paz bucólica da natureza, a lembrança de velhos
fazendões semiabandonados, onde as horas passam arrastadamente,
apenas escandido o seu espesso silêncio pelo baque das porteiras
lá fora e pelo fanho bater de horas do velho relógio, alto como um
armário, empertigado a um canto do imenso salão de jantar.
VIDA
OCIOSA

Como toda a porteira de antigas estradas, esta é um monumento


em que colaboram a mão do homem e a da natureza. Característica
e pitoresca. Para cima e para baixo, valos divisórios colmados de um
“betume” de raizadas, gramíneas, trapoerabas de florinhas azuis. A
restinga de mata que orla em geral toda a beira de valo, ali arqueia
as ramagens em túnel sobre a estrada. Unhas-de-vaca de folhas fen-
didas, angicos rendilhados, bicos-de-pato de bastas e miúdas folhas
crescem ao lado dos mourões, entremisturando ao alto as verdes
galhadas oblíquas, em tácito concerto para resguardar naquele tre-
cho uma pouca de sombra fresca e preciosíssima.
Quando as soalheiras escaldantes zimbram as abundantes inver-
nadas que margeiam o caminho, estorricando os capinzais, sutili-
zando em ondadas de pó a terra vermelha das estradas, procuran-
do haurir, indessedentáveis, até à última gota de seiva da vegetação
causticada, para aquele que andou longo percurso à inclemência do
sol a porteira é uma surpresa e uma delícia. A urdidura das copas é
impenetrável; das barrancas revestidas da verde cabelugem de aven-
cas e musgos, poreja continuamente um pouco de umidade que não
chega para empapar a terra mas sobeja para fazer da temperatura
carícia e voluptuosidade para a epiderme. As próprias borboletas
comprazem-se nessa nesga de sombra ilhada aí providencialmente;
quem passa vê-as no chão úmido, aos enxames, pintalgando a terra,
como pétalas soltas espalhadas pelo vento, pétalas de tonalidades vi-
vas, com predominância do amarelo-canário e vermelho de fogo. À
chegada do viandante evolam-se e revoluteiam, como torturadas por
um pé de vento; mas não fogem; e, esvoaçando às tontas, esperam
que o importuno se afaste, para, estetas rústicas — quem sabe! —
deleitarem-se em bordar de novo, na grata penumbra, ingênuas
fantasias coloridas.
Agora, pela manhã frígida, este bosque põe-me um arrepio à flor
da pele. As borboletas — preguiçosas! — ainda para aqui não vie-
ram, “a espairecer as suas borboletices”. Das folhagens encharcadas,
espaçadamente o orvalho goteja, crivando o chão de pequeninos
furos; e, ao estrondear da porteira no batente, precipita-se numa
chuva efêmera, rumoreja largamente e cessa de improviso.
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Seguem-se duzentas braças de campo. Daqui em diante vai-se


sempre subindo, suavemente, por um chão apisoado e enegrecido.
O morro é todo encaroçado de cupins, a que as gramíneas põem
cerco, num sem-conto de frágeis pendões aprumados. Aqui e ali
vingam escalar os cômodos mais baixos, que abafam sob sua inva-
são, deixando apenas adivinharem-se as convexidades submersas.
Quantas vezes, do eirado da velha fazenda do Córrego Fundo, que
neste momento demando, durante a estiagem das primeiras chu-
vas, contemplei, neste campo, o êxodo ascensional das aleluias!
Então, de mil furos invisíveis, via borbotar como vaporações tur-
vas, cones de fumo vivo que subia e se espalhava, dando, ao raso
do campo, um tom cor de fuligem, fino e vibrátil, que observado
de perto era o debater de miríades de asas minúsculas. E divertia-
-me ver o alvoroço das galinhas de siá Marciana, o pescoço esti-
cado para o ar, cacarejando aflitas, a regalar-se do farto maná que
lhes caía do céu sob a forma de inseto.
Já do oriente, tangenciando a lombada da serra, e premido sob
uma nuvem rosa e ouro, filtra-se o primeiro raio de sol. Pelas bar-
rancas sombrias da estrada, em moitas de barba-de-bode, rebri-
lha aqui e além oblíquo fio alvíssimo. Recrudesce a vozearia dos
pássaros, e asas multiplicam-se nos ares, aos trinços, aos chilros e
casquinadas de cristal.
Mais abaixo mostra-se enfim uma curva do rio, harmoniosa
e suave como uma linha humana. À superfície líquida desfilam
nevoaças, aos esquadrões, sopradas pela aragem matinal. Do
lado da estrada as águas espraiam-se claras sobre areais; do
outro lado, alto e ininterrupto paredão de verdura, exuberante,
selvático, como se a correnteza delimitasse as terras habitadas
do sertão bruto. E daquele tapume enredado com que a natu-
reza parece entrincheirar-se contra a invasão dos pequeninos
civilizados, daquela exuberância quase agressiva, do longe e
confuso alarido dos seres da selva, do entrelaçado das copas,
do perfume acre de mata virgem que em ondadas a viração
VIDA
OCIOSA

traz, vem-me uma atração conturbadora, a incutir-me o pesar


de não ser fera ou jequitibá, para, integrado na natureza, viver
a rude e misteriosa vida da floresta.
Mas meus olhos fogem à vertigem e atentam numa figura hu-
mana acocorada, como um mocho, num cupim. É o Américo, meu
amigo, que me espera. Radiante acena-me uma saudação e preci-
pita-se ao meu encontro; alegremente correspondo; e em pouco
estreitamo-nos em reforçado abraço.
Mais uma centena de passos, e eis-nos chegados à fazenda do
Córrego Fundo.
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Ruínas

Alquebrada de velhice, a casa mal se firma agora nos esteios oblí-


quos e comidos de cupim. Vergastada dos temporais e corroídas
polegada a polegada pela ação erosiva do tempo, as paredes raros
vestígios mostram da última mão de cal levada vinte anos antes.
As ripas, enxadrezadas com os paus a pique, exibem por toda a
parte sua ossatura carunchosa. É um cadáver de casa, uma carcaça
decomposta, já mostrando as costelas descarnadas. Ao lado, onde
foram as tulhas, vê-se hoje um montão de escombros; e, no eirado,
para onde se abre a porta principal, cresce o capim desafogadamen-
te. Contrastando com esse ar de morte e abandono e dando uma
nota ridente de vida ao vetusto pardieiro, sobe dos fundos uma es-
piral de fumo azul, que se desfibra lentamente no espaço.
Aí moram o velho Próspero e siá Marciana, pais do Américo. Já
rumando os oitenta ou noventa anos (nem sei quantos!) dão exem-
plo de serena velhice, sem amarguras contra a vida, nem o pesar de
deixá-la. Enquanto pôde, o velho trabalhou. Foi fazendeiro, teve
grandes rebanhos de gado e extensos alqueires de plantações; mas,
por ser bom e confiante, o que tinha foi-se rapidamente, quando sua
atividade começou a declinar e ao peso dos gastos não podia opor
equivalente receita. Ingratidões e abusos de confiança levaram-lhe
até o último vintém; o que porém se lhe salvou do soçobro, e à sua
companheira, o único e precioso tesouro inconsumptível de que
não os puderam esbulhar, foi a branda alegria d’alma que os acom-
panhou em todas as vicissitudes do passado, e que dá à velhice de
VIDA
OCIOSA

ambos uns toques de mocidade vivaz, como festões de madressilvas


alastrando sobre ruínas. Paupérrimos, a própria vivenda em que
moram é alheia — pertence a um irmão mais moço de Próspe-
ro, fazendeiro “desempenhado”, e tão sovina que, o ceder-lhes por
favor essa moradia, torna a todos boquiabertos. Os velhos nunca
se queixam; mas sei que o proprietário, o major Claudino, não os
deixa em completo sossego. É uns dez anos mais moço que Prós-
pero. Foi este quem lhe deu a mão para começar a vida e continuá-
-la; e também foi Claudino quem abocanhou os últimos restos de
sua fortuna, valendo-se de contas pouco compreensíveis e de juros
misteriosamente intricados. Nessa época, como quisesse expulsar
os velhos da fazenda, levantou essa descaridade tal clamor entre os
conhecidos e parentes, que Claudino cedeu, a contragosto, deixan-
do-lhes o usufruto da casa e de algumas braças de terreno. “Estão
velhos, pouco hão de durar”, dizia para conformar-se. Mas os ve-
lhos resistem valentemente aos embates dos anos e Claudino com
isso impacienta-se, diz impertinências, reclama contra o descalabro
crescente de tudo e quer levá-los para sua própria casa. Próspe-
ro limita-se a replicar sorrindo e sem levar a mal: “Tem paciência,
mano! Espera mais um pouco. Para o ano eu e a prima já estamos
pescando mandis no rio da eternidade…” (A “prima” é siá Marcia-
na. Dá-lhe tal tratamento, por terem esse parentesco.)
Enquanto esperam, pescam mandis no rio que passa aos fundos
da fazenda. Tanto basta para esquecerem os anos e as enfermidades.
Toda a tarde, Próspero, com o rosto encoberto sob as largas abas de
um chapéu achamboado, entra em sua velhíssima canoa de peroba,
que é preciso tentear com cuidados infinitos para não fazer água, e
vai distribuindo aqui e ali, pelas duas margens, anzóis de espera e
laços de capivara; e, sobre a madrugada seguinte, lá volta a correr
os mesmos sítios, a dar balanço nos rendimentos da noite… E longe
em longe acontece acabar de matar no anzol, a pontoadas de chuço,
um enorme dourado, que alegremente traz às costas, ladeira acima,
e que, resfolegando, num gesto triunfal, atira pesadamente sobre a
mesa de jantar.
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Durante o dia ele, mais a velha, radicam-se à sombra dum in-


gazeiro, cujas ramarias espalhadas protegem do sol, e pescam no
remanso que embaixo faz o rio e que transformaram em ceveiro.
E vendo-os ali juntinhos, as varas paralelas curvando-se ao peso das
chumbadas, cotovelo contra cotovelo, a gente adivinha que os dois
irão juntinhos para a cova, quando algum deles assentar de zarpar
para as trevas eternas, que talvez já estejam tão próximas como a
primeira curva do rio.
O velho Próspero foi caçador apaixonado. Quando lhe peço que
me conte trechos de sua vida vêm estes, as mais das vezes, mis-
turados com episódios de caça; o primeiro parto de siá Marciana,
ligava-se intimamente com a aventura de uma célebre Pirata, ca-
delinha onceira; quando lhes morreu o segundo filho, estava, havia
três dias, batendo mato bravo, atrás duma bandeira de queixadas;
e, ao voltar a casa, carregado de magníficos despojos, seus gritos
de triunfo morreram-lhe na garganta, ante o cadaverzinho exposto
numa mesa, entre quatro velas altas. Agora que lhe falta resistência
para varar brenhas e desentocar onças, canaliza o seu furor venató-
rio contra os peixes, contentando-se, quanto a caças de pelo, em
armar às capivaras que lhe destroçam o arrozal.
Invejo-lhe a mania da pesca. Escolheu-a bem para passatempo
da velhice, pois não depende de agudeza de vista, nem de músculos
reforçados. Seus braços de canoeiro prático, embora trêmulos, ainda
sabem o jeito de “temperar” uma canoa, sem excessiva despesa
muscular. Lastimável é o escritor que, ao se dobarem os anos da
segunda metade da vida, nota em si incapacidade crescente para
obter a tensão espiritual que engendra as obras-primas; ao
meticuloso sábio que esmiúça ao microscópio os elementos invisí-
veis das células, deve ir-se-lhe, com o acume da visão, o gosto
pela vida. Ai dos que, em sobrevindo o momento, não estiverem
aparelhados para empunhar a filosófica vara de pescar do velho
Próspero! E isso o torna feliz. Tiraram-lhe a fortuna — tomou do
anzol; arrebatem-lhe o anzol, inda resta o rosário; de modo que,
sua bondosa simplicidade, se lhe perdeu a abastança, granjeou-lhe
VIDA
OCIOSA

a conformidade na desgraça. Rememora os antigos anos de fartura,


compraz-se às vezes em narrá-los, como um viajante relata as mara-
vilhas que viu no decurso da viagem. Essas recordações têm para ele
o doce ressaibo das boas coisas gozadas, sem que lhes sinta amargor
por serem coisas idas.
Contou-me um dia que, no tempo de seu pai vivo, havia tantos
escravos na fazenda, que davam de comer à molecada num cocho
de que ainda no eirado restam vestígios. Despejavam ali dentro ta-
chadas de canjiquinha e com uma buzina convocavam a miuçalha
esparsa. De todas as senzalas, da casa, da horta, do pasto, negrinhos
acudiam correndo, como uma horda de capetinhas nus. E as mãos
avançavam sofregamente para a comida. “Ficava estivado de negri-
nho, tudo pelado”, explicou Próspero em sua linguagem pitoresca,
acentuando a frase com um gesto para indicar a fila ininterrupta
de petizes, de uma e outra banda do cocho. Por morte dos pais
herdara bons lotes de culturas; veio depois a legítima da “prima”,
o que ainda seu trabalho acresceu, nos anos felizes da mocidade.
Por essa época povoavam-lhe a casa parentes e amigos. Até parecia
hotel. Pessoas havia que lá passavam meses, a ares ou para caçar.
Um tal Leonardo, comido de sífilis, permaneceu na fazenda mais de
ano, em tratamento. Ao restabelecer-se, Próspero emprestou-lhe
dinheiro para comprar um sítio. O pobre do Leonardo! se não tinha
recursos para tocar a vida! Com esse princípio arranjou-a tão bem,
que hoje é homem de largas posses. É verdade que os esqueceu e
que, quando os cruza, mal bole no chapéu; mas anda tão atarefado,
sua camaradagem é tão grande, que na cabeça, cheia de preocupa-
ções, não sobra espaço para cortesias fúteis. Negou-lhes uma vez
auxílio — não por ingratidão, e sim porque o muito serviço põe a
gente assim azaranzado e de mau humor, e a ele, coitado, serviço
não faltava. O pobrezinho do Leonardo! Como a velha se lembrava
ainda dele quase cego, babando pus, com a boca cheia de tumores
que mal o deixavam alimentar-se, tanto que era preciso descerem-
-lhe leite à garganta por um canudinho de bambu! E agarrava-se a
siá Marciana, chamando-lhe mamãe, e chorando, num retrocesso à
infância, quase imbecilizado pela moléstia.
24 | 25

Entre outras passagens também contou-me que estanciara na fa-


zenda umas semanas certo médico português. O Dr. Filipe, homem
muito divertido, e a cuja figura evocada os velhos sorriam um para o
outro. Sem clínica, vivia a correr terras, de sapatões ferrados e rou-
pa no fio… Nem recursos tinha para viajar a cavalo; ia de lugar em
lugar com a malinha às costas e bastão na mão, e por isso na cidade
puseram-lhe a alcunha de Dr. De a Pé. Que maldade, coitado! Po-
rem apelido num homem infeliz e sensível, que, ao falar na “terra”,
marejavam-se-lhe os olhos, de saudades da mãe e da irmã, que lá
ficaram tão longe, sem amparo, da outra banda do mar.
Mas os velhos sorriam, lembrados de certo episódio malicioso.
Querendo aprender a caçar, esse bom Dr. Filipe mal sabia pegar
numa espingarda. Deu ali seus primeiros tiros, e, a cada um, que
assinalava um malogro, escapava-lhe um má-raios de desapontamen-
to. Próspero, porém, não desanimava com o aluno, e repisava como
estribilho: “Ainda espero ver um dia o doutor matar uma capivara!”.
Afinal esse dia chegou. A mata virgem alastrava até tão perto da
fazenda, que à tarde urus e inhambus vinham mariscar no terreiro,
confraternizando com as galinhas e marrecos da criação doméstica.
As capivaras, então, eram uma praga. Uma tarde foi visto um casal
delas à beira do açude, ao fundo da horta. “Pegue na espingarda,
Dr. Filipe, e venha!”, disse o velho. Foram até o açude. À sua che-
gada os grandes roedores mergulharam prontamente na água negra.
Certo momento apareceu um focinho à tona, bem perto do Dr. Fi-
lipe. Ele atira à queima-bucha: “Má-raios!”. Outro tiro — por um
milagre acerta. A cachorrada encarrega-se de tirar d’água o animal
ferido, e sumariamente o acaba às dentadas. O doutor ficou radian-
te da façanha. Então o velho Próspero propôs-lhe uma questãozinha
magana: “Doutor, o senhor, que é médico, entende muito de orga-
nismos vivos; por isso, diga-me se esta capivara é macha ou fêmea”.
“Oh! nada mais simples!”, exclamou o doutor, ofendido pela insigni-
ficância da consulta. E olha o bicho despreocupado, depois examina-o
atento, e concentra-se na análise e submete-o a uma inspeção cons-
cienciosa e científica… Por fim desiste, no auge da perplexidade.
VIDA
OCIOSA

Então Próspero solta uma casquinada: “É macha, doutor! Olha


o focinho… Capivara macha tem um calo no nariz”. E os velhos
riam-se, à evocação da descocha do Dr. De a Pé, por levar o
formidável quinau.
Chegada a uma recordação como esta, mistura de antigas gran-
dezas com reminiscências de velhas caçadas, a retentiva do velho
transvia-se do fio direito da narração, e, esquecido do mais, delei-
ta-se em memorar proezas de caçador. E é sobremaneira agradável
ouvi-las, principalmente em torno de um brasido, em noite frígida.
Se o tempo é desabrido, e as chuvas fazem das estradas extensos
lameirais, reúnem-se nesses serões mais pessoas na velha fazenda,
viandantes colhidos pelo temporal e que, ao abrigo de suas telhas
hospitaleiras esperam estiagem propícia para a continuação da jor-
nada. E quando acerta serem caçadores esses viajantes encharcados,
ainda aumenta o prazer da palestra, pois cada um desfia o mais inte-
ressante de suas recordações. Quanto a siá Marciana, essa limita-se
a comentar as narrativas do “primo” com as suas impressões pessoais
de esposa extremosa: as angústias das longas esperas, o olhar pela
janela verrumando o oceano das copadas que se derramavam em
torno, ou sondando as últimas curvas das estradas, a medir o tem-
po com as pulsações do coração… Como tardavam os caçadores!
Prouvesse a Deus não houvesse acontecido uma desgraça! E quan-
do Próspero voltava, que júbilo ao vê-lo são e salvo, e ao apreciar,
como entendedora, o porte da suçuarana que dizimara a matilha, ou
o número de queixadas abatidos no bando!
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Acolhimento cordial

— Então, Dr. Félix! tardou mas sempre apareceu — repetia-me


Américo exultando, ao abrir a cancela do eirado, deixando à es-
querda a porta da vendinha da fazenda.
Ao chegarmos à entrada principal da casa, com o indicador
cruzando a boca recomendei-lhe silêncio; e gritei para dentro,
engrossando a voz:
— Ô de casa!
Respondeu-me de dentro uma voz de velha:
— Pode entrar, que desta vez não me assusta!
Ouvi no mesmo instante, vindo da cozinha, o arrastar conhecido
das chinelas de siá Marciana e a voz do velho Próspero, já um tanto
surdo, que lhe perguntava o que sucedia de anormal àquela hora tão
matutina.
— É o tropeiro de fala grossa que me assustou o outro dia —
explicou ela.
Penetrando a sala de entrada, depus o chapéu sobre uma mesa,
negra de uso, chata e larga, desse estilo esparramado dos antigos
estrados e arcas de guardar cereais. Relanceei as paredes fuliginosas,
cobertas de desenhos de grandes peixes: dourados ao natural, pia-
bas de três palmos, mandis gigantes ainda com os ferrões alvoroça-
dos e as barbatanas em leque, prontos para a defesa — registro fiel
das felicidades de pesca do velho Próspero, que Américo perpetuara
sobre a cal, a carvão e urucu. Cada peixe grande tirado do rio, antes
de ir para a panela fazia escala ante o artista primitivo, que lhe de-
buxava a efígie na parede.
VIDA
OCIOSA

Abracei os velhos, que tropegamente vieram ao meu encontro.


— Então, como vamos de doenças? — perguntei-lhes, ence-
tando o assunto obrigatório à chegada, questão preliminar, como
dizemos em nossa gíria forense (penso não haver dito ainda que sou
bacharel, e juiz em um termo sertanejo).
— Ah, Dr. Félix! Andamos cheios de “não presta!” — exclamou
a mulher. — Vamos pendendo de velhice. Minhas carnes secam,
meu corpo é só osso. Também já estou uma irara velha — acrescen-
tou mostrando os cabelos encanecidos.
Para despreocupá-la, disse Próspero que aquilo não era nada. A
“prima” sempre tivera dessas alternativas de engordar e emagrecer
dum momento para outro.
— Tem natureza de cachorro — terminou, rindo-se.
Siá Marciana protestou, escandalizada com a comparação.
Depois foi o turno do Américo, que se queixou do mal moral
que lhe causava aquele ermo e a falta do convívio de homens supe-
riores. Por fim tive de sofrer um interrogatório minucioso, que me
obrigou a desfiar-lhes, à míngua de moléstias mais graves, todos os
meus defluxos, dores de dentes e picadas de pernilongos, sobre-
vindos desde minha última visita; sussurrando a todo o instante um
“coitado!” os velhos ouviram-me concentradamente. Siá Marciana
receitou-me um simples, bom para tudo aquilo; Próspero contra-
veio, aconselhando outra coisa. Disputaram um pouco sobre este
ponto, mas afinal chegaram a um acordo. Sobre que acordaram, não
pus tento.
Conversando chegáramos à varanda. O descalabro das pare-
des era o mesmo. Sobre os panos de cal empardecida escapos à
ação roaz do tempo, viam-se novos desenhos de peixes enormes,
alguns ainda de anzol espetado no beiço. A mobília ali compu-
nha-se de um vasto estrado que podia servir de cama, de uma
imensa caixa e duas cadeiras desconjuntadas, uma ainda com
uns restos de palhinha e conservada com cuidado, porque era
“a cadeira do Dr. Félix”. Para contentá-los, sentei-me um pouco
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na alfaia privilegiada que me ofereciam quatro mãos solícitas; em


seguida fui aboletar-me à oriental sobre a caixa, vindo o velho
ladear-me, devido à sua surdez. Ouvi as recriminações que me
faziam por minhas espaçadas visitas; que viviam a esperar-me, a
fazer conjecturas sobre minhas idas, se era hoje ou amanhã ou a
que hora, indo a todo o instante sondar a estrada, a ver se eu apon-
tava. Quanto a Américo, dirigia-se toda a manhã para seu posto de
observação, que era o cupim onde eu o vira acocorado.
— Se soubesse a falta que nos faz, viria todo o dia — rematou
Américo.
Perguntei então ao velho sobre as últimas pescas.
— Ah! Dr. Félix! — exclamou apaixonadamente — fiquei
hoje aborrecido. Os aruraus esta noite fizeram mutirão e rasga-
ram-me todas as redes da lagoa. Já esses danados do papo amarelo
me comiam leitões, quando era o mangueiro no fundo da horta, e
agora perseguem meus peixes!
E contou-me que entre a maçaroca das redes rotas encontrara
a metade de uma piaba de dois palmos.
Enquanto Próspero falava, era visível o desgosto que sentia
Américo, pelo rumo trivial que a conversação tomava. De espíri-
to fundamentalmente científico, ansiava por abordar questões de
maior tomo, mas repugnava-lhe profanar altos problemas, mes-
clando-os às frases dispersas de uma palestra vulgar. Por fim, não
se conteve, e alvitrou um conhecido expediente:
— Dr. Félix, quero um particular com o senhor.
Nunca fui amante de conversas reservadas. Lembra-me que, a
primeira, foi com o meu primeiro mestre, que me chamou a um
quartinho, mimoseando-me aí com meia dúzia de varadas. Ve-
lhas varadas! Já lá vão mais de três lustros. A segunda, tive-a com
um ex-futuro cunhado, que, em noite atra, os olhos fuzilantes,
enorme cacete alçado, à guisa de mundéu, sobre minha inerme
personalidade de estudante, me propôs um dilema: “Ou casar,
ou…”. O lugar ermo e a atitude diziam o resto. Até hoje não sei
VIDA
OCIOSA

que milagroso santo me tirou dentre as aspas do terrível Mino-


tauro. Que embirração, inventarem os filósofos essas especiosida-
des escolásticas! Desse tempo em diante, os colóquios à parte me
causam horror. Sendo, porém, conhecida a natureza inofensiva do
que me solicitava o bom Américo, acedi. Em consequência, meu
amigo travou-me o braço e conduziu-me a seu quartinho.
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Um gênio enciclopédico

Os velhos não protestaram contra o despotismo do Américo, que


assim me escamoteava, em dois tempos, ao seu convívio. É que adi-
vinharam que íamos falar sobre os “estudos”. Mas a este ponto pre-
cisa ser focalizada à vista do leitor, nalgum dos seus aspectos, a alma
e a situação do meu amigo.
Américo, apesar de seus quarenta anos, era ainda uma espécie
de filho-famílias. Na fazenda sua única função consistia em gerir
a vendola, que abria a porta exígua para a estrada, comparti-
mento mais frequentado pelas mamangavas e maribondos, que
pelos viandantes raros.
Usava a barba intonsa e arrepelada ao deus-dará, e, ao alto da
testa, acidentada de várias bossas correspondentes aos seus vários
talentos, rareava-lhe o cabelo em profundas entradas, apresentando
um capucho revolto, na linha de simetria. As bossas da fronte e os
olhos encovados davam-lhe uma expressão aquilina que parecia ter
a virtude de revolver escaninhos d’almas.
Américo possuía assombrosas disposições para fazer a canivete,
com pontas de bambu, pedaços de carretel e palhetas de mica, umas
canetas de formas caprichosas, pintadas a urucu e pó de sapateiro,
de um amarelo terroso listrado de preto. Dava-lhes ainda outros
matizes com sucos de frutinhas silvestres. As canetas amontoavam-
-se aos molhos nas prateleiras da venda, e ali ficavam eternamente,
visível mostra do desequilíbrio entre a oferta e a procura da mer-
cadoria. Os pedaços de carretel serviam para tirar sortes: a gente
VIDA
OCIOSA

rodava-os, e, ao parar, um certo pique apontava no eixo uma letra


ou uma frase que respondia à pergunta formulada a esse oráculo
de nova espécie.
Nos intervalos dessa fabricação, mergulhava-se em suas leituras
prediletas, entre elas um tratado de mesmerismo nunca assaz ma-
nuseado, outro de física, e qualquer coisa de Allan Kardec, o que
tudo, agindo separada e conjuntamente, era para estremecer-lhe a
fraca razão. Gostava das conversações científicas, não admitindo que
se perdesse tempo em prosas de nonada; e, debatendo sua especiali-
dade, sabia encantoar o interlocutor desprevenido em questões pro-
fundíssimas, insondáveis, que explicavam a desusada proeminência
de suas bossas frontais. Para isso tinha um jeito especial, uma certa
manha em concatenar perguntinhas capciosas, na aparência inofen-
sivas, que insensivelmente iam guindando a gente ao pináculo de al-
tos problemas transcendentes. Estas questões constituíram o nobre
emprego de sua vida. Na época em que todo o mundo se casa, ele
esqueceu o matrimônio, todo embebido em resolver o problema
do infinito do tempo e do espaço. Onde começa o mundo? Onde
acaba? Seria o espaço o conteúdo de uma imensa bola de vidro? E
para além desse vidro? Outras bolas? Quando começara o tempo?
Se desde o princípio até hoje decorrera o infinito, como podería-
mos chegar até o hoje se de hoje ao fim há o mesmo tempo infinito
e nunca chegaremos ao fim? E com a atenção aguda aplicada a estes
altos problemas, não vira a mocidade que fugia, nem as roceirinhas
casadeiras que o rodeavam, atraídas pelas culturas paternas. Só ago-
ra, depois que lhe demonstrei por uma série de finas induções e
deduções que a conservação da espécie é um dever moral, porque a
ciência não pode morrer, e porque se todo o mundo pensasse como
ele a humanidade se extinguiria e a ciência com ela; e, como a única
forma legitimadora da reprodução é o conjugo vobis, concluía-se que,
etc. Américo convenceu-se; e depois ficou, além de convencido, al-
tamente estimulado, quando lhe contei, com ar misterioso, existir
uma viúva moça e rica, que só esperava, para aparecer-lhe, acabar
de assimilar umas tinturas de magnetismo e eletricidade, com uns
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toques de Kardec, para não ser uma esposa vulgar e incapaz de sus-
tentar uma conversação instrutiva com seu científico marido.
Américo fora toda a vida o orgulho da família, o seu grande ho-
mem; e todos lastimavam que não houvesse seguido uma carrei-
ra superior. Desde criança revelara inclinações destoantes do seu
meio. Em pequenito, enquanto os outros fedelhos andavam a correr
pastos e pegar animais, ou brincavam de “tempo-será”, ele deixava-
-se ficar espichado, de queixo no chão, a passar figuras do Manual
de criador de galinhas. — Era um amor pelos livros! — dizia siá
Marciana ao marido, indo buscá-lo para vir de mansinho apreciar o
sério aplicado do pirralho. E os dois ficavam a cocá-lo com o olhar
repassado de comoção. E faziam planos: seria isto, seria aquilo. Mais
tarde, nos tempos de estudante, firmou-se a vocação. Tinha uma
memória para guardar as coisas! Depois que o mestre o deu como
preparado, e que pediu, aflito, que não lhe mandassem mais o “Mer-
quinho” (bons quinaus lhe pregara o pequeno!) este continuou a ser,
só consigo, bom estudante. Conservara sempre, e sempre manuseada,
a sua biblioteca de aluno, recapitulando, no intervalo de mais altas
cogitações, a matéria aprendida, com uma sede de conservar que
era quase avareza; e a conservara com tal aferro, que inda agora,
que dobrava os quarenta anos, tinha fresquinha na memória a exó-
tica onomástica das ilhas da Oceania e dos vulcões do México; sabia
de cor todas as definições da Gramática da infância, e traduzia cor-
rentemente os exercícios do Sevène. Se não encorpou esse cabedal,
também não desaprendeu o sabido. Às vezes pedia-me que abrisse
ao acaso um de seus livros escolares e lesse a primeira linha. Eu o
fazia. E Américo tomava-me logo o fio da frase, e desembestava por
ali abaixo sem uma hesitação; a matéria saía-lhe fluente, corredia,
sabidinha e em um nunca-acabar.
Depois de sair do colégio, nem tentaram os pais metê-lo na la-
voura: ele revelara uma aversão profunda por tudo o que não fosse
ciência pura e por isso também não aprendera ofício, nem ocupara
empregos; vivia na fazenda à espera de uma oportunidade para con-
tinuar os estudos fora, numa grande capital; mas o amor materno,
VIDA
OCIOSA

hesitações sobre a carreira a seguir, o apego à fazenda, e, principal-


mente, um não sei quê muito imperioso e que nunca souberam o
que fosse, não os deixavam encontrar uma oportunidade bastante
oportuna para a execução de seus mimosos planos. E assim foi fi-
cando e amadurecendo em anos meu bom e estudioso amigo.
— O Américo não é como qualquer um, ele tem qualquer coi-
sa aqui — dizia ainda o pai, dando pancadinhas na cabeça. — Ele
é porque nunca saiu da roça, senão poderia ser hoje médico, ad-
vogado… ou… ou mesmo professor (era uma escala ascendente).
E, se bem que melancolizados com o estéril fugir dos anos,
os velhos ainda esperavam que o filho, mais tarde, atingisse uma
daquelas sumidades.
Chegados a seu quarto, Américo fez-me sentar à beira da cama,
para o misterioso colóquio. Em frente, sobre uma mesa, estava um
armarinho. Em suas prateleiras via-se um caos de frutinhas secas,
papéis amarelos, cascalhos de cor e forma esquisita, volumes des-
conjuntados, com folhas espessas e de bordos revirados, pelo apli-
cado manuseio em tantos lustros. À margem daquela mesa um ve-
lho Delamarche aberto exibia um mapa das constelações. Induzi que
Américo andava virado para a astronomia.
— Senhor doutor — começou —, desculpe ter-lhe pedido este
particular; mas, o senhor compreende, há assuntos de interesse, que
não convém debater levianamente.
— De que se trata? — inquiri.
Sem responder, Américo concentrou-se, firmando dois dedos
da mão esquerda nas arcadas superciliares. Passados instantes,
perguntou-me:
— Acredita na pluralidade dos mundos habitados?
— Acredito.
— E… será gente pacífica, a que habita os outros planetas?
— Conforme o grau de seu adiantamento.
De novo a fronte pendeu-lhe sobre o polegar e o índex e Amé-
rico submergiu-se no subjetivo. Esperando a continuação eu exa-
minava-lhe as bossas, comparando-lhes as dimensões respectivas
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e conjecturando: esta, a mais chata, era a do magnetismo; outra,


a mais pontuda, a das especulações filosóficas; aquela, sobre cujo
cimo lustroso uma mosca deambulava em idas e vindas, era a do
espiritismo; a outra…
— Porque o meu receio — continuou Américo enxotando a
mosca — é que o cientista do futuro, que primeiro realizar a co-
municação interplanetária, seja recebido num meio hostil, que o
faça prisioneiro das alturas; e, semelhante desterro, como prêmio
da arrojada tentativa, seria incomparável desdita.
Concordei que seria uma ocorrência lastimável; não acreditava,
porém, que quem quer que fosse, em dias vindouros, chegasse a cor-
rer tal risco. As excursões intermundiais nunca seriam praticáveis.
— Como não! E o progresso da ciência, senhor doutor! — pro-
testou Américo.
— Mas não crê que noutros astros, mais velhos que o nosso,
esteja a ciência infinitamente mais adiantada?
— Sim…
— Pois bem, se fosse possível semelhante viação, já nos teria
visitado algum habitante dessas regiões privilegiadas.
— Ora essa! E eu que ainda não o havia pensado! — pasmou
Américo.
E, transparecendo-lhe da fisionomia o alívio de uma preocupa-
ção incomodativa, removida por aquele argumento, tomou-me a
mão, asseverando com calor:
— Uma palestra com o senhor vale contos de réis!
Protestei modestamente; Américo insistiu que valia; teimei que
não, ele que sim, e não cessaria a disputa se não ouvíssemos a voz
alegre de siá Marciana, avisando:
— O café está na mesa! Não o deixem esfriar!
VIDA
OCIOSA

Ao café

Fomos ao café. Atravessando a casa, aspirei com prazer o recender


a vassoura verde, que impregnava o ambiente, deixado pela varre-
dura da manhã. Outras conhecidas notas caseiras vinham aumentar
minha sensação de tranquilidade e bem-estar: cacarejos e pios no
quintal, chios de filhotes de morcego entre a fuligem da telha-vã.
Entrevi em sua placa o velho papagaio sorumbático.
Na larga mesa da sala de entrada já estava o bule fumegante, ro-
deado de pequenas canecas de louça e tigelinhas desbeiçadas, com
letreiros “Saudade”, “Amizade”, tudo sobre uma grande salva de
prata, última alfaia preciosa dos velhos tempos de abastança, relí-
quia de família, que desde época imemorial vinha de pais a filhos.
“Minha cadeira”, forrada com um couro de cachorro-do-mato, fora
removida para ali. Ouviu-se na cozinha um estralejar de gordura
frita e dali a instantes surgiu siá Marciana com um prato de biscoitos
ainda quentes da panela.
Abanquei-me ao lado de Próspero, que estava solenemente sen-
tado diante de um canecão cheio até à borda. Siá Marciana intencio-
nalmente ofereceu-me a tigelinha “Amizade” e passou-me os biscoi-
tos fritos, sentenciando:
— Diziam os antigos, Dr. Félix, que café deve ser assentado,
assoprado e mastigado.
Sem cerimônias, pus diante de mim uma pirâmide de biscoitos
e fiz o prato, sensivelmente diminuído, continuar o giro. Em mo-
vimentos ritmados, o canecão, espécie de patriarca do vasilhame,
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ia até os bigodes aparados do patriarca da família e voltava para a


mesa. O velho Próspero bebia silencioso, com a unção de quem
segue um ritual. No espaçado e no calmo das idas e vindas, havia
como que a afirmação segura de que Roma não se fez num dia e que
mais tempo menos tempo se veria o fundo do canecão.
— Por que está quieto, Sr. Próspero? — perguntei-lhe, para
puxar palestra.
Pousou a vasilha e, voltando-se para mim, disse:
— Ando mais surdo estes dias, doutor, e receio que minha prosa
o incomode. Sei como é cacete conversar com surdos: é preciso
gritar e ainda reter o riso, por causa dos disparates que se ouvem.
No meu tempo eu também não gostava muito e só conversava por
espírito de caridade. Por isso julgo os outros por mim…
Rematou sorrindo, como quem conta com um protesto certo e
delicado. Protestei e perguntei-lhe se o incômodo não o fazia sofrer.
— Às vezes entristece-me um bocado. A gente, quando vai en-
surdecendo, também vai ficando isolado. O som é um dos encantos
da existência, e, sentir-se ele esmorecer em torno de nós, é como
sentirmos o afastar da vida. Com o som, os homens nos fogem,
de sorte que vamos ficando trancados no silêncio, como em nova
espécie de deserto. Mas enquanto eu tiver olhos para ver minha
velha, não desespero… — e fitou maganamente siá Marciana, que
lhe chamou enjoado, caçoando:
— Isso da surdez do meu velho, Dr. Félix, acho que é um pouco
de malandrice. Vêm aqui às vezes umas caboclinhas bonitas e, com
a desculpa de não escutar, ele as vai renteando com desembaraço.
Houve risadas e o velho sentenciou, brejeiramente:
— Tudo neste mundo tem sua compensação. Essa é a da surdez.
Deus quando dá o mal, também dá o consolo…
Contou-nos, em seguida, como começara aquilo, insensivel-
mente afetando a um tempo os dois ouvidos, lá iam anos. Defeito
imperceptível a princípio, foi-se aos poucos fazendo doença incô-
moda. Parecia-lhe que todo o mundo falava enrolado, ou em língua
estranha. Um dia teve um raio de esperança. Estava sentado na eira,
VIDA
OCIOSA

a apreciar a tarde, quando sentiu uma espécie de estouro na ca-


beça. A surdez cessou instantaneamente, por milagre. Ficou com
o ouvido apuradíssimo como nunca o tivera. Ouvia nitidamente a
conversa de dois canoeiros, ao longe, na curva do rio e o chapinhar
compassado do remo na corrente. Levantou-se exultante, trêmulo,
para contar à “prima” tal prodígio; nisto ouviu um segundo estou-
ro, formidável como um trovão. E desse momento em diante teve
oclusão completa de um ouvido. O outro piorava lentamente.
— Dizem que os moribundos têm, às vezes, visita da saúde. Isso
foi, decerto, a despedida do som.
Após estas palavras, o canecão, em repouso algum tempo, re-
começou seus pausados movimentos. Para espancar a nuvem me-
lancólica trazida pelo assunto, resolvi entreter os altos espíritos de
Américo com pouco de física recreativa. Com garbo de prestidigi-
tador arregacei as mangas, pedi um copo d’água e um pedaço de
papel, e perguntei:
— Conhece a experiência do copo invertido, cuja água não se
entorna?
— Apenas de leitura. Mas supusera ser coisa que só existisse
em livros.
— Pois atenção! Um, dois, e…
Fiz a sorte. O pasmo de Américo assumiu as proporções de êxtase.
— Sim senhor! Ora vê-se! Sim senhor! — era só o que sabia
dizer, arregalando olhos admirativos.
Tais surpresas, que me divertia a provocar no espírito simples
de Américo, constituíam um regalo de minha predileção. Todavia,
em minha convivência com essas boas criaturas, mais de uma vez
pungitivo remorso feriu-me a consciência. Parecia-me não haver
lisura em meu procedimento e que, na corrente alternativa de pro-
vas amistosas que entretêm a verdadeira afeição, eu ali dava menos
do que recebia. Sentia-me profundamente amado pelos meus ami-
gos; era um filho dos velhos e um irmão de Américo; e, para mim,
eram todos talvez mero divertimento; pois analisando, bem pela
raiz, meu sentimento por eles, reconheceria serem os quitutes de
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siá Marciana, as histórias de caça do velho e os espantos virginais do


Américo, que o entretinham e viçavam. Depois de me doer com
essas considerações, eu rematava comigo, para aligeirar escrúpulos:
— Afinal, tudo na vida corta-se pelo mesmo modelo; e é
avisado, para a não desvestirmos do seu florente recamo, que nos
contentemos com aspirar a flor dos sentimentos, gozando a sua
superficialidade amável, sem cogitar das pútridas fermentações
dos subsolos. Se remorsos me pungem, não é que eu peque muito,
mas porque vejo claro. Não há como flutuar à tona dos sentimentos
bons, levados pela sua onda mansa, sem que lhes descomponhamos
a estrutura elemental…
O canecão, mais uma vez esquecido durante a sorte de física,
já retomara seus movimentos regulares. Então Próspero pediu-me
notícias da conflagração.
— A humanidade continua possuída de sua demência assassina —
respondi. — Longe de abrandar, a luta se encruece. Cada dia, na
terra e no mar, a voragem da morte traga milheiros de vidas.
— Coitados! — murmurou siá Marciana, envolvendo a todas as
vítimas no manto de sua piedade.
Brincando distraidamente com o copo da experiência, em cuja
água um raio de sol, chegando obliquamente, acendia rebrilhos
alegres, disse-lhe que desejaria estar lá, no mais forte da refrega,
para apreciar a hecatombe.
— Apreciar! — estranhou a velha. — Como pode dizer assim
de uma coisa tão triste!
— Siá Marciana — continuei —, o homem é um animal
perverso. Somos parentes da pantera e do jaguar, e ainda rema-
nescem em refolhos misteriosos de nossa alma, como uma ninhada
de víboras numa greta de lajedo, velhos instintos vivazes, mal-a-
cobertados pela fragílima côdea civilizada com que campamos na
sociedade; é um velho legado de sangue, atavismo de índole, de que
não nos poderíamos libertar em poucos milhares de anos — um
minuto na evolução. Em nós há rugidos adormecidos, crispações de
garras dissimuladas no veludo macio das patas. Amamos o sangue e
o espetáculo do sofrimento, das agonias horríveis…
VIDA
OCIOSA

Os velhos ouviam sorridentes, como se minha lenga-lenga os


divertisse. Lançado no tema, e um tanto pela vaidade de exibir, ante
sua simpleza rústica, minha natureza perversamente refinada de ho-
mem culto, prossegui, balançando ligeiramente o copo, a cuja beira
uma mosca pousara:
— Embora o neguemos, é-nos uma volúpia o espetáculo do so-
frimento. O sentimento da comiseração é um enxerto das morais
doentias e por isso como que nos demora apenas à flor da pele. Pois
o preceito principal da nossa moral indestrutível e primitiva é que
cada um de nós é o eixo, o núcleo da humanidade, a sua razão de ser.
Só existe o nosso sofrimento. Cada um de nós tem todos os direitos
imagináveis sobre as pessoas e coisas que nos cercam. Sabemos que
a luta é necessária — pois desses fundamentos resulta um perma-
nente e salutar estado de luta. Lutamos para a solução do único
problema que nos interessa: o da nossa felicidade pessoal. E, se tudo
foi criado para nosso gáudio, também o foi o sofrimento alheio,
que não é a menor de nossas delícias. Que deleite estranho e sobre-
-humano o sentirmos — tigres travestidos de homens — a presa
cobiçada impotente entre nossas garras! É um ser vivo que pensa
ter os mesmos direitos que nós e que, com toda a sua arrogante
presunção, está à nossa mercê. Saboreamos-lhe o susto, que se lhe
acende no olhar esgazeado, voltado para nós a suplicar misericórdia.
— Não terás quartel! — respondemos, cravando-lhe agudamen-
te o olhar impiedoso, para aumentar o terror. E, como requinte
da voluptuosidade da carnagem, brincamos primeiro com a presa
inerme, alentando-a a espaços com uma falsa esperança. Simula-
mos descuido: pensa que pode fugir, tenta-o, mas reapoderamo-nos
dela. O terror acresce. E isto se repete indefinidamente. Sente, en-
fim, que tudo está acabado; e, esgotado pelo seu próprio excesso, o
terror começa a esmorecer em desânimo, em conformidade… E,
na sua passividade descorajada, nesse languescer de desalento, há
como o abandono voluptuoso de uma fêmea que se entrega…
Os velhos continuaram a sorrir. À beira do copo, em cuja água
límpida uma flecha de ouro se abeberava, passeava a mosca confia-
damente. Acendendo um cigarro, prossegui:
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— Então esgotaram-se os aperitivos preliminares, acabou-se a


fase preparatória. É a grande hora. Ajeitamos a vítima para o sacri-
fício. Vamos saborear a agonia física depois do sofrimento moral.
Sedentos de sangue, e com o frenesi de um lascivo sedento de amor,
cravamos-lhe os dentes agudos no pescoço. Há um ganir de dor
deliciosamente cruciante. Nervosamente afastamos com o focinho
o lanho de carne arrancada, e aplicamos a boca sanguissedenta bem
ao fundo da chaga, no esguicho da artéria rompida; empurramos o
focinho sôfrego até se justapor à ruptura dos tecidos, para que nós
e a vítima façamos um só todo, um caso delicioso de xifopagia, de
hermafroditismo de nova espécie, em que em vez da volúpia se bebe
a vida. Está formado o novo e estranho ser! Somos um! E nos nossos
braços felpudos, que embalam e dominam, sentimos a vítima bara-
fustar impotente, com excitantes ralos de agonia, toda fremente,
a estrebuchar, fazendo, a cada arranco, que o sangue borbote em
golfadas mais vívidas; e, quando o corpo afrouxado dá de esmo-
recer, num colapso, e o sangue flui moroso, reexcitamo-lo com o
entranhar nervoso das garras nas partes mais sensíveis, provocamos
um último e poderoso entesamento que nos jorra na goela a últi-
ma golfada quente. E, enfim saciados, a cabeça torva, os sentidos
preguiçosos, a volúpia extinta, deixamos tombar dos braços, como
uma trouxa inconsistente, o corpo da vítima inanida e, a passo bam-
bo, vamos enrodilhar-nos sonolentos à sombra acalentadora de uma
grande árvore da espessura…
Num estouvado movimento caiu n’água a pequenina mosca.
Como se debate aflita! Estendo-lhe uma felpa da palha do cigarro,
como ponte salvadora. Toda de seu desespero, espolinha-se e não a
vê. Não vá a pobrezinha afogar-se!
— Pois somos assim. O medo das represálias, ele apenas, re-
calca-nos o natural bravio de besta-fera. Por isso a guerra é bela
e natural. Traz a abolição momentânea de todas as ferropeias, de
todas as mentiras jurídicas e morais — hipocrisias de nossa falsa ci-
vilização. Podemos ser tigres, ser humanos! Deixados à solta, como
matilha desatrelada, nossos instintos recalcados cevam-se em todas
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as grandes voluptuosidades: os estupros, os saques, as carnificinas,


as flamas incendiárias… Somos selvagens, somos bárbaros, mas
humanos. É a grande vida natural que ressurge, é a natureza que
reivindica os seus direitos imprescritíveis, é o eterno, o indestru-
tível, que fulgura à labareda dos incêndios, no resplendor de uma
incomparável apoteose!
Afinal sentiu a mosca a fibra. Apegou-se a ela e começou a subir
lentamente. Depu-la com cautela sobre a mesa. Andou um pouco,
arrastando as asas pesadas. Tentou voar — caiu. Espanejou-se, deu
mais forte impulso e, librando-se enfim no ar, alegremente voou
pela réstia dourada, janela em fora, a secar as asinhas úmidas à luz
gloriosa da manhã.
Os velhos continuavam a sorrir…
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O hóspede

Esvaziado o canecão, levantei-me, o que significava uma ordem para


que cada um se desse às suas ocupações habituais; era já combinação
nossa, imposta por mim, para que não perdessem o dia rodeando-
-me, esquecidos de tudo. Próspero foi ver se ainda salvava alguns
palmos de malha das redes rompidas pelos jacarés; siá Marciana di-
rigiu-se à cozinha, provocando, no caminho, a palra do velho papa-
gaio, acabado de velhice, que passava o dia a cochilar na placa da va-
randa; quanto a Américo, ficou comigo. Aproveitei o momento para
passar-lhe um pacotinho de pratas, espécie de dádiva tira-remorsos,
com que concorria, sem ciência dos velhos, para o custeio da casa,
a fim de reparar o rombo que davam minhas visitas à caixa comum;
este dinheiro aparecia como renda do negócio malsortido. Américo,
meio distraído, e lançando um olhar vago para fora, enfiou o rolete
no bolso. Estava agitado, cogitabundo; por fim voltou-se para meu
lado e disse:
— Não sei se o José virá hoje; se o doutor permite, vou à casa
dele saber.
— Pois não!
Américo calcou até às orelhas um chapéu abudo, tomou um ben-
galão que figurava uma cobra enroscada num tronco — obra-prima
de seu canivete — e dirigiu-se para a cancela, que fechou sobre si.
José era um aluno, ou melhor, o aluno. Porque Américo ensina-
va. O quê, não sei. Por um certo pudor, se eu me avizinhava quando
estava lecionando, ele parava, e por nada no mundo continuaria à
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minha vista, como quem se considera muito humilde para tão nobre
empresa. A verdade é que no cômodo de negócio, lugar das aulas,
eu via à hora da lição profusas bolas de tabatinga, de vários tama-
nhos, que representavam, talvez, os planetas conhecidos — o que
me fazia temer pelo miolo do seu catecúmeno.
Embora admitido grátis, era o José tratado com todas as conside-
rações. Américo trazia-o nas palminhas, como um bem mui valioso
que é necessário conservar. Se caía doente, velava-lhe à cabeceira,
em aflições maternais; queria-o consigo às refeições, como pensio-
nista semi-interno; e cedo eram inquietações de cada momento: o
negrinho viria? não viria? (José era da cor da noite.) Comigo mes-
mo batizei o discípulo amado: “o hóspede do Grande Hotel”. A his-
tória da alcunha dava pano para longa novela, cômico-sentimental.
Em poucas linhas passo a tracejá-la:
O Sr. Almeida vegetou trinta anos numas bibocas infrequentadas
do sul de Minas. Assim vegetara seu pai, seu avô, seu bisavô, e assim
vegetariam mais tarde os filhos, se os tivesse; mas era apenas pai
de nove filhas casadeiras, as mais velhas bem passadinhas e, as mais
moças, umas passando e outras no viço e frescor dos melhores anos.
Naquele desterro onde vivalma não estanciava, que valia, po-
rém, a graça, o viço, o desabrolhar de tantas louçainhas? Ai das nove
filhas solteiras! Ai dos ricos encantos que se fanavam na solidão!
Feiticeiros sorrisos, voluntariedades feminis, fanfreluches cheios de
encanto, momos caprichosos, tudo que faz da mulher um entezi-
nho apetecível, estavam ali como certas flores agrestes amoitadas
no ermo e que esterilmente perfumam o ar com suas delicadas ca-
çoilas aromais, sem um olfato que as aspire, nem olhos extasiados a
quem maravilhem. As nove flores agrestes do Sr. Almeida tinham-se
apenas, umas às outras, como espectadoras invariáveis de tanto en-
canto esperdiçado na solidão, e sabe Deus se se contentavam com
tão pouco! A melancolia daquele destino infecundo azedava-lhes o
gênio, ao ponto de passarem os dias a unharem-se umas às outras.
E o Sr. Almeida, por fim, coçava a barba, pensativo. Gostava de
passar os dias pitando seu cigarrão de palha, um toco babujado
que lhe filtrava doce quietude à alma, de envolta com a fumarada,
acocorado perto de uma bacia com brasas, a ralhar com os criou-
linhos e a gritar com as nove; compreendia agora, porém, que sua
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vida não podia cifrar-se naquilo. Esta ideia embutiu-se com tanto
aferro no seu cérebro, que um dia resolveu quebrar as tradições
da família, tomando uma grande resolução. O proprietário de um
grande hotel, numa vila de águas, desejava pôr lavoura; o Sr. Al-
meida deu o que tinha pelo hotel e freguesia, e despediu-se defini-
tivamente do ermo agrícola. Não vira solução mais acertada para
seu caso melindroso. Pois um hotel, em tal ponto, é frequentado
pelo escol da sociedade carioca e paulista, e ali, pondo à vista dos
pensionistas as nove virtudes guerreiras enrijadas na vida da roça,
não lhe seria difícil achar bons partidos matrimoniais.
E lá se foram. Infelizmente, porém, o Grande Hotel andava
desconceituado. O dono alienara-o para livrar-se do alcaide. Tinha
o prédio corredores imensos, quartos sem-conta, refeitórios am-
plos, era todo largueza e amplidão, mas não apareciam veranistas
que lhe viessem despertar o silêncio claustral, animando aqueles
corredores, longos e vazios como artérias cortadas, com um pou-
co de sangue corrente de gente viva. Mais cogitativo que nunca,
e a recoçar o queixo, o Sr. Almeida resolveu instalar a um canto
um fogareiro, para sentir acalentar-lhe a melancólica desilusão um
pouco de borralho, a cuja beira passava as horas intermináveis a
cuspir o sarro do toco.
Um dia, não se sabe como, surgiu lá o primeiro hóspede, homem
dos seus quarenta. Foi um rebuliço na casa. O Sr. Almeida gague-
java e atarantava-se, e as nove musas, passadinhas ou não, ficaram
num alvoroço de aleluias em tarde estiva, a trançar estonteada-
mente pela casa, numa boa vontade de servir e agradar, que era
para pôr um homem rendido. O Sr. Garcia (este o nome do hós-
pede) não podia queixar-se de mau tratamento. Verdade que pre-
feriria menos rebuliço e vaivém, pois, muito neurastênico, fora
para calma dos nervos irritadiços que escolhera aquele hotel des-
frequentado. Só encontrava um pouco de bem-estar no ambiente
sedativo dos lugares ermos, na convivência consigo mesmo em
infindáveis meditações, em que o ondeante mover do pensamento
parece fazer-se fora do tempo e do espaço, e o espírito flutua,
frouxamente, como uma penumbra de crepúsculo em nave aban-
donada. Com a sua chegada ao Grande Hotel, fez-se ali, na sua
paz morta e atmosfera de estupor, a vida que ele evitava. O toco
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do Sr. Almeida lá ficou a tostar-se nas brasas esquecidas; com a


obrigação de dar prosa, não descolava do homem, interessando-se
pela sua saúde e família e contando-lhe reminiscências da lavoura.
O Sr. Garcia era delicado, e conversava. Se o hóspede queria água,
o Sr. Almeida berrava para os fundos: “Água para o Sr. Garcia!”.
A casa toda agitava-se, havia correrias, balbúrdia, rumor de lutas,
trinclidos de copos, gritos como eco: “Água para o Sr. Garcia!”.
E era um bater de portas, um alagar de torneiras, até que enfim,
quando o Sr. Almeida berrava pela décima vez a reclamar a água,
aparecia uma das nove musas, com um copo orvalhado numa sal-
va, corada e pudica, e a fazer com os lábios uns trejeitinhos gracio-
sos, que eram para bulir tentadoramente com um coração menos
amante do ermo, como o do nevropático pensionista.
O Sr. Garcia ali viveu, adorado, benquerido, adivinhado, amima-
do, por espaço de algumas semanas; mas a situação tornava-se insus-
tentável; com receio de levantar celeuma, ele procurava conter até
as mais urgentes necessidades corporais. Chegava a passar fome e
sede. Um dia, por fim, com o mal incuravelmente agravado, e com
a obsessão das mais tétricas ideias, saiu do hotel sub-repticiamente,
deixando a conta paga e sumiu para sempre.
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Manequinho

Dos fundos da casa vinha-me sem interrupção o incansável arrastar


de chinelos de siá Marciana. O rangido da porta dum velho armá-
rio, e um barulho seco de milho mexido, indicaram-me que ia tratar
da criação de pena. Aquele rangido conhecido alvoroçou o terreiro:
ouviu-se um rumoroso frufrutar de asas e uma orquestra de pios e
grasnidos. Cacarejante e em andar cauteloso, atravessou a casa, da
frente para os fundos, uma galinha cercada de pintos; ao cruzar-me,
deitou-me a matrona com desconfiança o seu olhar perscrutador,
esse olhar lateral das aves, que parece exprimir simulação. Com seu
monótono crocró, saiu para o terreiro.
Fui apreciar a refeição das aves. Ao atravessar a varanda, o ve-
lho papagaio que continuava a cochilar na placa, despertando em
sobressalto ao rumor de meus passos, caiu do poleiro; em seguida,
com muito custo, à força de bico e unhas, conseguiu grimpar pela
correntinha e alcançar o pouso, onde continuou sua interrompida
modorra de velho.
— Quit! quit! quit! — gritava siá Marciana da porta do terreiro,
dando tempo a que chegassem os últimos retardatários.
Debrucei-me à janela, a cujo poial se acostava um longo caixo-
te, onde vicejavam manjericões e fúcsias trepadeiras. Dali eu via o
chão batido do terreiro, onde apenas medravam escassos carurus e
carrapichos-de-carneiro; e, além, o milharal já seco, pronto para a
colheita; afogava-lhes os altos colmos vestidos de velhas folhas far-
falhantes, o feijão de vara a subir triunfalmente até aos pendões,
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enroscando-lhes suas espirais vestidas de folhas verdes e pesadas


de longos e oscilantes molhos de vagens. Entrelaçando seu cau-
le volúvel com o do feijoal, e misturando com as deste as folhas
verdes, alastravam trepadeiras florescidas, abafando ainda mais os
colmos ressequidos, que entreapareciam aqui e ali, estonteados
e como faltos de ar, emergindo de sob aquela viridente alcatifa,
profusamente estrelada de alegres campânulas róseas e azuis. Co-
brindo totalmente as achas da cerca, que dava para a rua, com seus
fofos de verdura, um chuchuzeiro proliferava em pendentes pesos
brancos, de áspera casca.
Para ver-se livre da galinhada, que se apinhara à orla de sua saia,
siá Marciana atirou o primeiro punhado de milho bem longe, no
terreiro. As aves em confusão precipitaram-se para o cevo, e num
momento cessou todo o rumor de asas, ouvindo-se apenas as pan-
cadinhas secas dos bicos no chão apisoado.
— T’c, t’c, t’c — e nova mancheia atirada ao meio do bando,
num rumor espalhado de grãos caídos.
— Chit! — fez a velha enxotando do ombro uma franga im-
prudente que lhe tomara de assalto o cogote. — Esta Quita é con-
fiada, que é um precipício. Bem sabe ela que é a minha predileta.
A culpa foi da criação.
E, continuando a atirar o milho, siá Marciana contou-me sua his-
tória:
— Era um pintinho doente, morre não morre, que um dia de
chuva encontrei encarangado e nu, largado da mãe, debaixo do as-
soalho. Foi criado à beira do fogo, muito embrulhadinha e, à custa
de mil cuidados, vingou. Com isso ficou mal-acostumada. Cresceu
mansinha e hoje é essa agarração que o senhor vê. Não sai da cozi-
nha e dorme na taipa do fogão. Anda atrás de mim, que parece um
cachorrinho: a cada momento preciso enxotá-la.
A lata cantou à saída do resto do grão atirado a esmo.
— Então chama-se Quita?
— Está estranhando? — sorriu a velha. — Minhas galinhas têm
todas nome de gente. Quem me deu a mãe desta, com a roda de
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pintos, foi a Quita do compadre Elias. Aquele galo chama-se João de


Melo — só porque este passou por aqui e o achou bonito. Ali está
a Maria Justina, a Pinduca, a Amélia… Olha aquela arrepiada: tem
um nome de homem… É a Dr. Félix…
E siá Marciana riu alto.
— Meu nome? — perguntei.
— Sim, porque a estou reservando para o senhor. Quero que
também comece uma criação na sua casa, e sabe que galinha, para ir
adiante, é preciso que a primeira seja dada.
Deu-me ainda outras instruções: que nunca eu chocasse número
par de ovos, senão gorava. O número ímpar tinha virtudes, até nas
crianças; nunca se vira nascer alguma de 6 ou 8 meses.
Num voo pesado, depois de escolher posição, a Quita alcançou o
braço de siá Marciana, onde ficou a bater asas, procurando equilíbrio.
— Vem, tentação! — disse a velha, auxiliando-a a atingir o ombro.
A esse momento siá Marciana lembrou-se de uma operação que
tinha que fazer. Acomodou a Quita na cozinha, e tirou de sob um
jacá um frangote assarapantado. Munindo-se de tesoura e de agulha,
foi sentar-se à porta do terreiro. O frango parecia doente, e fazia
com o pescoço movimentos sacudidos, como para tossir, imobili-
zando-se depois com o bico aberto, anelante.
— Ainda tem o pau atravessado no papo, este coitado — disse
ela acariciando-lhe a cabeça.
Contou-me que se chamava Manequinho e que era, havia cinco
dias, mártir do galinheiro, desde que num acesso inconsiderado de
gula abocara aquele graveto. Nada do que comia lhe parava no papo:
vinham engulhos e vomitava. E o coitado, que era esganado, havia
de sentir tanta fome! O resto da galinhada já o sabia, e, logo depois
da ração matinal e da tarde, fazia-lhe numeroso acompanhamento,
à espera do vômito suculento. E o cortejo punha-se em evoluções
pelo terreiro, lento e expectante, o frango sorumbático abrindo a
marcha, com os engulhos, e as cabeças ávidas a espreitar a hora,
prestes para o assalto. Quando o vômito tardava, o augusto patriar-
ca do quintal, o galo João de Melo, bicava-lhe a cabeça aflita, como
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a dizer-lhe que se apressasse, por favor, que aquilo de andar tan-


to, era, afinal, cansativo e aborrecido. De repente, num engasgo
mais forte, Manequinho estacava: era o momento. Havia então um
precipitar-se geral e desordenado; as aves premiam-no num assal-
to terrível, pulavam-lhe às costas; outras, mais sôfregas, bicavam-lhe a
língua, e enfiavam o bico pela goela abaixo, de esganadas. Manequinho
definhava. Aquilo não era vida!
Nesse dia siá Marciana resolveu livrá-lo do suplício ou matá-lo.
Foi breve a operação: uma tesouradinha no papo, tirar o pau, uns
pontos, tudo no meio de um exagerado bater de asas. Enquanto isso,
ela animava-o. Ia ver como a vida lhe mudava! Todo o dia, quando
chamasse para o milho, não viria ele desconsolado, sem entusiasmo,
fechando a comitiva, como se acompanhasse a um enterro; podia
agora comer muito, quanto lhe apetecesse, até ficar com o papo
tumefacto. Tivesse paciência…
Um nó cego para rematar a costura e pronto. Acabou-se o
estardalhaço de asas. E, como para demonstrar que a cesura não lhe
diminuiria a voracidade do costume, Manequinho entupiu-se do milho,
que a velha lhe serviu no covo da mão. Em seguida soltou-o. Onde caiu
encorujou-se receoso. Mas as galinhas começaram a avizinhar-se.
Rodearam-no. Premeram-no. Então, Manequinho pôs-se a andar,
recomeçando sua Via de Amargura. E lá ia o acompanhamento. Pelo
terreiro fizeram as evoluções do costume. Manequinho à frente,
desconsolado, inquieto, e o galinheiro todo atrás, com pausa e per-
tinácia. Às vezes, porém, notava-se no olhar daquele uma fugidia ex-
pressão maliciosa, que parecia dizer: “Podem vir! Mas previno-lhes
que perdem o tempo! Muitos dias regalei a vocês todos, com o
máximo desinteresse; em vez de me agradeceram a magnanimi-
dade, pagavam-me com maus-tratos. Pois bem, já que foram tão
ingratos, hoje acabou-se. Podem acompanhar-me quanto quiserem!
isto até me distrai… E favorece o quilo. Façamos de conta que esta-
mos fazendo a Avenida”.
E, trocando com pachorra as longas pernas, guiava o povinho
de penas por todos os cantos e recantos do terreiro. Certo momento
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o galo João de Melo foi-se-lhe pôr à beira, como para oferecer-lhe


o braço. Mas não. Intérprete do descontentamento geral das
massas, deu-lhe uma bicada de incitamento. Manequinho piou e
abriu as pernas, correndo… A galinhada atirou-se furiosamente
ao seu encalço… Não vi o desenlace, porque o bando se afastou,
sumindo-se na horta.
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O Dr. Formiguinha

Batendo rijamente no assoalho a peroba do Américo anunciou-lhe a


chegada. Suas primeiras palavras deram-nos a agradável segurança
de que o José viria. Depondo o chapéu e o porrete, fez menção de
sentar-se, para debater comigo um de seus temas favoritos; mas um
tinir de níquel no balcão da vendinha, chamou-lhe a atenção.
Era a freguesia dos tostões de pinga, que reclamava Américo.
Nada o molestava tanto como essas quedas no real, que lhe entre-
cortavam as altas lucubrações científicas.
— Se soubesse como esta vida me aborrece, Dr. Félix…
E lá se foi, displicente.
Siá Marciana, por sua vez, desceu à horta, a mexer-se para o
almoço, que costumava ser em hora bastante matinal. De caminho
cruzou Próspero, que já voltava da lagoa, com um bolo de redes sob
o braço. Entrando a sala, o velho acomodou-as a um canto.
— Poucas se podem aproveitar — disse ele —; mas depois do
almoço vou ver se restauro algumas.
E, ainda ofegante da empinada ladeira da horta, sentou-se no
estrado, onde se pôs a arrancar rabos-de-burro e amores-secos ade-
ridos à calça ensopada de orvalho.
Entrementes, eu revia, meio desatento, as figuras de peixe de-
buxadas na parede. Conhecia-lhes a história, como foram apanha-
dos, a quem os enviaram, pois o melhor das pescas era sempre
destinado a presentes a amigos. Deleitava-me ouvir Próspero recon-
tar-lhes a história; punha-se o velho em pé, com o dedo apontava
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uma das efígies e começava a narrar; e duma passava a outra, até


corrê-las todas, memorando incidentes antigos, surpresas gratas
de pescador: uma linha que amarfanha violentamente as capituvas
num farfalhar tempestuoso que indica uma grande presa a deba-
ter-se na água; um formidável mandi amarelo colhido em pescaria
de rodada, certa vez que levara a canoa rio acima, bem longe, e
viera depois suavemente, trazido na correnteza frouxa, com uma
das mãos a temperar a canoa, a outra empunhando a longa vara de
vinte e cinco palmos, e graduando-lhe a altura de modo a trazer o
anzol de arrasto pelo talvegue onde se alapam os grandes mandis
triangulares, de pele dourada pintada de preto.
Com o dedo em alvo e acompanhando a parede, figura por figu-
ra, e com seu ar ancestral e barba longa, o Sr. Próspero sugeria-me
Paulo da Gama a explicar ao malabar os fastos portugueses, borda-
dos nas bandeiras da armada lusitana:
“Este que vês, pastor já foi de gado,
Viriato sabemos que se chama…”
A mais recente representava um dourado de três palmos, que
fora dado ao médico que tratara a última doença da velha. E Prós-
pero contava o prodígio: pegara-o num anzol pequeno, destinado a
peixe de menor porte. Ao correr, de madrugada, as varas de espera
espalhadas pelas duas margens, vira n’água um grande rebojo e uma
larga forma refulgente que por momentos prancheava… Avizinhou
a canoa, febricitante, em risco de cair; e, sem mais nem mais, foi-se
abraçando ao bicho, quando o pilhou de jeito. Houve uma trovoada
no fundo da canoa onde o atirara; o dourado, espinoteando com
valentia, queria saltar a borda; tornou-se preciso, para conter-lhe
os assomos, que o velho se sentasse sobre sua grande massa viscosa
e o sangrasse, ato contínuo, à faca.
Siá Marciana subiu a escadinha do terreiro com o côncavo da saia
repleto de vagens e chuchus.
— Não muda a calça, primo? Tão molhada! — exclamou,
entrando na varanda.
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O Sr. Próspero meneou a cabeça, num trejeito de indiferença:


“Para quê? Estava acostumado com a água. A umidade nunca lhe
fizera mal”. Siá Marciana falou-me então das imprudências do ve-
lho. Julgava-se moço, não usava resguardos. Lidando n’água, tinha
estouvamentos perigosos: no ano último caíra duas vezes no rio, e
todo o dia era uma porção de “quases” de inspirar apreensões…
— Um dia cai a casa — sentenciou.
E acrescentou em alvoroço, como quem torna a si:
— E eu que estou a parolar, esquecendo o almoço! Quando o
senhor vem ver-nos, Dr. Félix, nós todos ficamos com a cabeça à
roda. Não avalia a falta que sentimos quando custa a aparecer! É só
o nosso assunto de conversa… O Américo, esse que o diga! Trepa
num cupim e aí fica horas, espiando a estrada…
Américo, que vinha de atender à inculta freguesia, confirmou
que sim — mas com uma certa circunspecção que denotava conde-
nar fraquezas sentimentais e expansões excessivas. Acrescentou que
a amizade que tinha por mim era um sentimento nobre e elevado,
como a afeição que votava aos livros.
Eu achava graça nessas declarações amistosas e sentia-me bem,
assim festejado e adorado por aquelas criaturas simples. Mas, para
escandalizá-los, pus-me a narrar:
— Acredito que sintam essa falta… Nossa capacidade afetiva é
tão grande, que às vezes se estende a coisas mínimas. Lembra-me o
caso de uma formiga doceira, cujo desaparecimento muito me pena-
lizou. Aparecia em certa hora da noite, à hora em que habitualmen-
te escrevo. Surgia de um ângulo da mesa, atravessava-a em diagonal,
passando sobre o papel, e quebrava além outra aresta, sumindo-se
até o dia imediato. Foi assim muitas noites. Acostumei-me à formi-
guinha e, ao avizinhar-se a hora de seu aparecimento, tornava-me
inquieto, expectante, fugiam-me as ideias, e nada mais podia fazer,
até que surgisse, lépida, ligeira, alegrando o papel com seu passinho
miúdo, a minha querida amiguinha. À sua passagem eu movia a pena
em continência, arredando-lhe a ponta da trajetória conhecida. Era
tão fragilzinha minha amiga! o mais leve de meus movimentos podia
causar-lhe a morte. Nesses instantes eu interpelava-a: “Onde vais
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tão apressada, minha diligente formiga? Parece que tens a cabecinha


cheia de preocupações. Detém-te um pouco, conversemos! Queres
açúcar? Reservar-te-ei toda a noite uma boa porção. Anda ao menos
mais devagar! Repara que há vinte e quatro horas não te vejo, e sem
te ver tenho que passar outras tantas. Vê bem: um oásis de meio
minuto entre dois desertos imensos! Vou com a mão interceptar-te
a passagem; para seguires, terás que transpor o obstáculo, ou espe-
rar que eu te deixe continuar teu atarefado destino. É muito cedo!
Não receies que te estranhem a falta, no formigueiro onde moras;
são tantas as formiguinhas trabalhadeiras, e tão parecidas! Faze de
conta que hoje foi tua excursão mais longa… Não me atendes, for-
miguinha ingrata? Então… até amanhã!”. Não me atendia. Era uma
pressa, um frenesi de seguir… Não via a trilha de açúcar com que
eu lhe pulverizava o caminho; se a mão lho cortava em barreira,
não hesitava: subia por ela e descia do outro lado, deixando-me na
pele um tênue prurido, que era como uma carícia afetuosa. E não
se detinha. Toda ela era uma pressa nervosa, um andar aflitivo, uma
celeridade de pequeninos meneios, que pareciam dizer-me: “É im-
possível! não posso, meu tempo está contado, só tenho prazo para
vir ver-te de passagem e muito depressa. Posso apenas conceder-te
uma visitinha de instantes, para matar a tua e a minha saudade. Não
me detenhas! Tenho muito que fazer…”. E, acabando de atravessar
obliquamente a mesa, quebrava a quina e desaparecia. Um dia…
ela não veio mais. Fiquei imprestável, tive que depor a pena. En-
chiam-me tristes apreensões. Que seria feito de minha formiga
doceira? Aborreceu-se de mim? Esqueceu-me? Afogou-se numa
gota de orvalho? Um passo brutal esmagou-a inconsciente? Eu sentia
infinitos receios. Esperei-a uma noite, muitas noites. Nada! Nunca
mais voltou…
Todos escutaram sorrindo minha história. Quando terminei,
siá Marciana exclamou:
— Que graça, a da comparação! Vou agora mudar seu nome —
d’hoje em diante é o Dr. Formiguinha.
Riu-se alto e foi para a cozinha com a arregaçada de vagens
e chuchus.
VIDA
OCIOSA

Bocejos e guloseimas

Ainda desta vez o dia arrasta-se numa lentidão deliciosamente


aborrecida. Vive-se mais, na fazenda do Córrego Fundo, que no
resto do orbe. Invento mil modos de encher tempo e ainda há
sobra para uma semana de farniente. Maravilhas da vida rural! Por
isso é que o fazendeiro que passou anos a tostar-se ao calor dum
brasido, tem a voz indolente, frouxa e de um fanhoso monótono
com um sabor a confidências, que acalenta e entorpece. Por essa
causa é que poupa os movimentos; para levantar-se não o põe
alerta, de pé, a mola duma energia que atua de pronto; esse mo-
vimento é um capítulo do seu dia: primeiro hesita, pesa e resol-
ve, depois começa — estira os braços, num bocejo hiante e sem
fim, descai sem forças, corcovado, sobre seus próprios quadris,
recomeça o bocejo e o espreguiçar, com a mão tenteia um apoio,
mexe o pé e com um “ah!” interminável vai-se levantando, bambo,
desconjuntado. Ganhou com isso alguns minutos.
Siá Marciana tem um bom sistema de encher-me o dia, vive
a inventar comezainas. Lá surge da cozinha com um prato de pi-
nhões. Tenho o que descascar e roer até o almoço. Enquanto o
faço, Próspero encordoa anzóis, dando-me conselhos: devem-se
encastoar com cabelos de cavalo-marinho, cuja transparência os
torna invisíveis na água; se em vez de fio se usa arame, cuidado
com as crocas! que, encrocando, a menor piaba o arrebenta; o fio
deve ser do comprimento da vara, enrolando-se outro compri-
mento por esta abaixo…
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De vez em quando uma discussão religiosa. Próspero aprecia


a leitura da História Bíblica, a que dá interpretações pitorescas.
Proponho-lhe uma questão difícil: se os pecados são sugestão do
Demônio, não seria melhor que Deus não houvesse criado a este?
Ele refuta-me calmamente:
— Se o senhor montasse uma empresa, não necessitava de um
administrador? Assim, criado o inferno para castigo dos maus, era
preciso um tomador de conta, e este é o Diabo.
Dou-me por convencido, e ele prossegue a encordoar os anzóis
e eu a roer os pinhões.
Nesta conversa desatada e mastigação interminável, veio a
hora do almoço. O aluno foi pontual. À mesa lá estava à beira do
Américo, que se desmanchava em atenções. Era um negrinho de
quinze anos, empertigado, de meia e chinelos, que em questão
de decência o professor mostrava-se inflexível. Usava a carapinha
levantada em topete, e a tudo só respondia “sim” ou “não”. Tinha
ar sério de negro educado, que sabe ser negro só “nas cor”. Aquilo
era obra do Américo.
Siá Marciana arrumou-me um prato alto como uma pirâmide,
que lenta, mas seguramente, eu ia escavando e trasfegando para os
mistérios do tubo digestivo. A cada momento eram instigações:
— Coitado do Dr. Félix! está sem fome! O senhor precisa
tratar-se melhor…
Ao fim da refeição deixei-me ficar na cadeira, refarto, soltos os
botões abdominais, sem coragem para deslocar-me. Sentia-me in-
teiriço, empanzinado, como feito de uma só peça indobrável. A bar-
riga tumefacta dava-me sensações de gravidez.
— Coitado do Dr. Félix! Anda tão sem apetite… coma ao me-
nos uma pamonha com o café… Agora é uma raridade milho verde,
mas ainda aparece.
— Pamonhas? — hesitei, apalpei-me. — Venham! — resolvi,
intrepidamente.
Como sabiam bem! Pena foi não poder passar de duas, que as-
sim mesmo se puseram a brigar com o almoço e os pinhões, para
VIDA
OCIOSA

arranjar lugar. Convenci-me nessa hora que a impenetrabilidade é a


mais secante das propriedades gerais dos corpos. Conciliei a pendên-
cia e compus-me com a física cedendo mais um botão da cintura.
Siá Marciana arranjou com sobejos o prato da gata favorita, que
lhe puxava significativamente a barra da saia. Sopesando-a pelo ven-
tre elástico, pô-la sobre a toalha, junto ao petisco.
— É um animalzinho tão manso e asseado! — disse ela, dando-
-lhe maternos olhares.
Sempre impliquei com bichanos. Detesto-lhes a música encatar-
roada do peito e a balda de coçar pulgas nas bocas das calças da
gente, principalmente se são novas. Observei:
— Fie-se nessa cordura hipócrita! Não conhece o aviso popular
“gato matou sô padre”?
A velha riu-se. Era uma antiquíssima história e provavelmente
lendária. Já seus bisavós lhe contavam em menina o caso do padre
que, armado de chicote, se fechara numa sala para castigar um bi-
chano. O animal enfurece-se, encrava-lhe as presas curvas na gar-
ganta e… era um padre que morria e um exemplo que ficava para
todos os séculos porvindouros. Que a história era muito espalhada.
Ouvira-a do Dr. De a Pé, galego, e também um francês lha confir-
mara, pelo que um e outro ouviram na sua terra, deles.
— Caluniaram vocês, minha gatinha… — e siá Marciana ama-
ciava-lhe a espinha ondulante, esperando a terminação do almoço,
para acabar de tirar a mesa.
Fora a toalha, espalha-se o pessoal. A velha encafua-se na cozi-
nha. Próspero vai buscar as redes necessitadas de reparos, e Amé-
rico, mais o empertigado negrinho, somem-se para o cômodo de
negócio. Na sala só fico eu, empachado, o cóccix no rebordo da
cadeira, a nuca apoiada no respaldo. Daí a instantes faz-me o velho
companhia, consertando uma primeira rede que estende sobre a
larga mesa de óleo.
Próspero absorveu-se no trabalho, pelo qual, meio distraído, eu
me interessava. O novelo de barbante não tinha descanso. Duran-
te meia hora acompanhei-lhe os movimentos, calculando comigo:
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“Agora é um remendo aqui, um nó ali…”. Às vezes errava em mi-


nhas conjecturas, o que me dava uma leve contrariedade. Incansa-
velmente meu espírito formulava previsões: “Para consertar aque-
la ponta, o velho terá fatalmente que passar para o outro lado da
mesa…”. Fatalmente enganava-me; ou virava ele o tecido, ou de-
bruçava-se mais.
Isso fatigava-me extraordinariamente.
Com intervalos mais ou menos longos, Próspero ia ligando pe-
daços de frases, narrando-me episódios de pescarias a malhas. Nun-
ca compreendi bem como se arma uma rede: sobre isso minhas
ideias eram em absoluto falsas, o que me desgostava. Ao mesmo
tempo receava que o velho mo explicasse. Aprender é tedioso. Os
maquinismos, então, causam-me particular horror. Numa descasca-
deira, ao ver o café cair, deleito-me com isso; mas se querem con-
tar-me o processo da descasca, supliciam-me inutilmente. O caso
das redes enchia-me de apreensões, porque uma ideia falsa também
causa tédio e eu tinha na boca uma perguntinha recalcada: “Como se
arma isso?”. Previa já a intuitiva exposição: o velho que interrompia
o trabalho e fazia gestos de fincar estacas, e outros gestos figurando
a rede estirada… Provavelmente eu faria um esforço de abstração,
mas continuaria na mesma, sem compreender.
Nesse em meio ia acompanhando o conserto, procurando, a es-
paços, divertir a atenção para o exterior, onde devassava um trecho
de céu. Era cair de Cila em Caríbdis. Via corvos minúsculos ao alto,
descrevendo serenamente grandes órbitas vadias. As extremas de
suas parábolas, quase as encobriam os portais da janela. Era sem-
pre quase. Por esse lado também vinham-me apreensões: “Desta vez
encobre, porque a parábola é mais longa…”. Preparava-me para
mudar de posição a fim de não perder as extremas da curva. Mas
era escusado, porque, mal tangenciava o portal, o voo tornava em
direção regressiva… Era intolerável. Antes as redes! Após um tem-
po infinito finalizou-se a primeira. Suspirei de alívio.
— Quantas faltam agora, Sr. Próspero?
— Nove.
VIDA
OCIOSA

Horripilado, levantei-me e fugi. Não foi bem fugir; a expressão é


muito lesta para quem tinha meia arroba de mantimento no bucho;
fui rebolando-me para o interior da casa com a lerdice dum cevado
em ponto de faca. Ao chegar à varanda, novo susto do papagaio e a
indefectível queda do poleiro.
— Por isso é que meu Louro anda acorrentado depois de velho —
disse siá Marciana, que vinha trazer-lhe a ração. — Cai à toa! Velhice
é coisa triste, não, meu negro?
Contou-me que não havia papagaio tão tagarela como aquele,
no seu tempo. Sabia o nome a todos, atiçava cachorros, chamava os
escravos. Toda a manhã descia da placa e ia postar-se na cerca que
dá para a estrada, donde saudava os transeuntes conhecidos com um
“boa-tarde” nasal. Para ele era sempre tarde, a qualquer hora… Em
novo, muito dado, mas a idade tornara-o rabugento. Só tolerava o
velho; os agrados dos mais, recebia-os de bico em riste. E que impli-
cância tomara com o Leonardo, o hóspede comido de sífilis que ali
fora curar-se da gafeira que o imbecilizava! Se, quando o via, estava
solto, lá ia, pés impercussos, empoleirar-se em sítio propício e, zás!
no lóbulo da orelha. Ainda agora, ao ouvir-lhe a voz na estrada, agi-
tava-se, caía, batia as asas, febril, buscando libertar-se da corrente.
— Não é assim, meu Louro? — perguntou ela.
Não teve resposta, porque, depois de uma bicada inapetente na
comida, a ave, sem esperar pela conclusão da biografia, recaíra em
sua modorra habitual.
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Tédio

Vagabundeei sem rumo pela casa, buscando algo em que me inte-


ressasse. Pesado e bamboleante fui ao negócio. Fora o sol rever-
berava, dando ofuscantes fulgurações de ouro à estrada poeirenta,
onde rangia a intolerável serrazina do guincho de um carro de bois.
Fartamente assoalhados pelo chispante estendal de luz, os campos
também modorravam sonolentos.
Nada há tão vulgar como as horas dum dia de sol. O venerável
astro-rei, tenha paciência, bem podia variar os seus processos de
iluminação. São assaz estúpidas essas reincidentes ondas de ouro e
mormaço, cegantes para a vista e atorporantes para o organismo.
Não pensavam assim os altivolantes corvos, cujos remígios serenos
se banhavam voluptuosamente no ar das alturas, refazendo, incan-
sáveis, curvas enormes. Divisados de longe eram pequenos traços
horizontais, rudimentos de monoplanos, as asas ligeiramente arre-
bitadas na ponta. Arranquei-me à sua vista obsidente e relanceei o
cômodo. Nas prateleiras, meia dúzia de molhos de rapaduras, mui-
tos feixinhos de canetas invendíveis, um litro de óleo de capivara,
meia dúzia de peixes fritos num prato esbeiçado e o garrafão de
pinga. Um enxame de abelhas zumbia e rezumbia em torno das ra-
paduras, cujo cheiro enjoativo impregnava o ar. Em atitude correta,
o José copiava, em bela vertical, uma historieta do livro de leitura.
Perto, Américo sorria enfiado, julgando-se sem perdão aos meus
olhos pela sua grande ousadia de querer lecionar.
VIDA
OCIOSA

— Também ensina estas coisas? — perguntei-lhe, mostrando o


caderno. — Supus que apenas transmitisse ciência pura.
— O senhor sabe — desculpou-se ele —, é preciso começar
por essas ninharias. Não faz dois meses que saiu do abecedário…
— Aprendeu com você? — perguntei-lhe, admirado.
Fiz o negrinho ler, ditei algumas palavras, passei-lhe uma con-
ta — era surpreendente como acertava. Maravilhado encarei no
Américo. Estava ali um bom corte de professor primário. Revolvi
no pensamento certa resolução secreta.
— E gosta do ensino? — inquiri.
— Oh, senhor doutor! Se não fosse muita presunção eu arranja-
ria uma escola para lecionar de graça os moleques destes lados; mas,
afinal, como diz o caipira, cada um deve pendurar o chapéu onde a
mão alcança — ou quem tem perna curta não dá passo largo. Isso
só para homens como Vossa Excelência.
Sorri com o “Vossa Excelência”, e internei-me de novo para a
varanda. Sentia urgente necessidade de espichar-me em meu lugar
de repouso preferido. No meio daquela pasmaceira soçobrante, a
caixa antolhava-se-me como lugar de eleição. Estendi-me com gozo
na larga tampa, e, dobrando o cotovelo, fiz do punho travesseiro.
— Já deu o ataque de preguiça, Dr. Félix? — casquinou da an-
tessala siá Marciana, que auxiliava o velho.
— Já… Quantas redes prontas?
— Uma só, por enquanto…
Meu Deus, como era demorado! Aquela paciente tarefa enerva-
va-me, como se estivesse eu próprio a trabalhar. Penosíssimo fardo
é a ociosidade, algumas vezes!
No meu pouso não pude ainda cair em beatitude. O tédio é um
estado fecundo às más sugestões. No meu cérebro o Sr. Próspero
trançava barbantes sem cessar e regiravam preguiçosas rondas de
corvos. Cerrando os olhos eu via estrias e manchas verdes e escar-
lates, doloroso decalque impresso na retina pela ofuscante visão das
estradas e dos campos ensolados. Queria dispersar-me, devanear;
puxei pontas de romances heroicos, cujo principal personagem era
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eu; mas o enredo apagava-se como um rio sem foz que se evapora
no deserto e a dispersão concentrava-se no importuno vinco daque-
las impressões visuais.
Uma coisa pulou na arca. Era a gata predileta de siá Marciana,
muito dada, esfregadeira, ronronante. Coçou as pulgas no meu pé,
continuou a fricção perna acima, deixando na casimira um rastro de
pelos caidiços. Achei adorável aquela sem-cerimônia e, ajuntando
paciência, resolvi comigo:
“Vamos ver até onde chega o atrevimento”. Fez-me massagem
abdominal, coçou-se no meu cotovelo, encostou a bigodeira pruin-
te no meu rosto, rouquejando surdas catarreiras; fez menção de
beijar-me, fossou-me no ouvido…
“Vamos ver até onde vai!”, trocadilhei, fulo de raiva. Foi a dez
passos de distância, pois sem chamar mais paciência, apliquei-lhe
um tabefe centrífugo: siá Marciana não estava ali… Perto dela é que
eu tinha hipocrisias. Amimava o felino, tomava-o nas mãos, achava-o
bonito e tudo o mais que agradasse à dona.
Escafedeu-se a gata aos pinchos e bufos pela janela do terrei-
ro. Fez-me falta, porque então senti-me vazio. O vácuo pesava-me
como chumbo.
— Quantas redes? — perguntei.
— Quase duas.
E eram dez, ao todo! Busquei alhear a atenção pensando em coi-
sas da cidade. Evoquei a minha vida de homem civilizado…
O diabinho zombeteiro do tédio fez-me lembrar uma inquirição
marcada para aquele dia. Testemunhas de longe, crime sensacional,
com advogados, acusador particular… Pulei da caixa. E eu que me
havia esquecido! Maldito azar!
Dias e dias que passo às moscas em meu gabinete, sem uma
petição, um auto a despachar, sem um depoimento, apenas a en-
cabulação da visita do meirinho bexigoso, reverente e correto,
a perguntar-me inutilmente: “Senhor doutor, tem alguma coisa
para os cartórios?” — tão correto que, ao chegarem as onze, já
começo a enfezar: “Faltam cinco minutos… quatro, três, dois…”
VIDA
OCIOSA

e exaspero-me, apreensivo, certo de que daí a um minuto bate


delicadamente à porta e na curvatura respeitosa do costume me
estribilha o quotidiano: “Senhor doutor, tem alguma coisa…” — e
espero que falte aquele dia ao menos, que quebre aquele hábito
de pontualidade acerbante, novo suplício de Dâmocles — e passa
o minuto, e aí vêm as pancadas e a pergunta e a minha resposta
impaciente: “Nada, nada, homem de Deus!” — tantos dias assim
vazios e, logo naquele, destinado a uma excursão de visita aos ve-
lhos, a tal encravação do sumário a berrar-me de longe a sugestão
de um intolerável remorso!
Numa crispação raivosa procurei perto a gata, para um se-
gundo revés de desabafo. Nada! Havia-se decerto eclipsado para
o fundo da horta, suicidara-se no rio ou fugira para o fim do
mundo, a evitar segunda aventura. Senti-lhe a falta. Serzinho
inestimável, um bichano!
— Ora, que se arranjassem! Dar-me-iam como presente à in-
quirição, ou a deixariam para o dia imediato.
Estendi-me de novo na caixa. Mas já não tinha sossego. O abor-
recimento moral comunicara-se ao físico: revolvia-me, remexia-me,
voltava-me “como a porta em sua couceira”.
Só via autos, num ror de papelada com estampilhas e um desfile
interminável de figuras de partes: este, rábula terrível, que acha-
va em artigos tudo que eu fazia “radicalmente nulo”, por isso, por
aquilo; uma rubrica malgatafunhada, uns minutos de atraso na au-
diência, o porteiro que apregoou só uma vez o requerido, e já se
enfileiravam os “Provará…”. E era tudo catado, depurado, num es-
piolhar implacável; outro, figura manhosa e insinuante, a querer em
palestras auferir conselhos ou previsões sobre o êxito de tal feito;
um terceiro, berrador e impulsivo, possesso com um indeferido,
a clamar que o juiz é prevaricador e comprado — uma procissão
irritante de figuras irmãmente hostis, da surda hostilidade instintiva
de classe, que separa os postulantes e os julgadores, e os põe, a uns
e outros, numa eterna e irritante defensiva. Via-os a todos ganan-
ciosos e rapaces, com as unhas que esfolam o constituinte prontas
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para agadanharem o juiz. Enxotava-os da mente e eles tornavam


processionalmente, com as suas astúcias e exigências, protestando
e recorrendo…
Por fim foi-se esfumando a turba vociferante, deixando apenas
enfocados uns gordos autos de embargos por julgar, que estavam
havia sessenta dias sobre minha mesa de trabalho.
Incoercíveis, os remorsos continuavam a pungir-me, com
pontas aceradas.
Oh, esses malditos autos! Ter que meditar duzentas folhas ense-
badas e arriar a livraria, procurar o caso nos praxistas, quando os
praxistas preveem todos os casos, menos o que nos interessa! Ante
a enormidade da tarefa os embargos lá ficavam dormindo sobre a
mesa o sono dos prazos intermináveis…
Afogado sob tanta culpa, tive uma reação de desespero. Não!
eu não era um mau juiz. Em mim sentia a massa dos julgamen-
tos imparciais. Mas — diabo! — a justiça, como nós a compre-
endemos, esse tonto catar de artigos e retalhos de acórdãos, era
excessivamente implexa. Em mim não faltava boa vontade para o
trabalho nem amor acendrado ao monumento das leis; respeita-
va-as, admirando-lhes o alto espírito filantrópico. Respeitava os
bons juízes e as sábias sentenças. O diário oficial, por exemplo,
transcrevia sempre os julgados de um dos mais sabedores de nos-
sos Papinianos, onde cada parágrafo tinha farta cauda de citações
ponderosas. Eram sentenças de peso e tutano, via-se bem. E com
respeito imenso eu as cortava e colecionava. Pode-se ser mais res-
peitoso? Não as lia, é verdade, mas — com mil raios! —, se não
me faltava boa vontade para o trabalho, sobejava-me pouca para o
começar e assim ficavam em perpétua esterilidade as minhas boas
intenções. Que pena não estarmos na terra dos vizires autônomos
e Salomões sumaríssimos, que numa frase deslindam uma pendên-
cia, sem inútil esbanjar de tinta e de praxistas!
A culpa não era minha, portanto. E, com esta convicção cres-
cente, os gordos autos de embargos foram-se também reduzindo e
esfumando a distância.
VIDA
OCIOSA

— Tome um travesseiro, Dr. Félix.


Agradeci a siá Marciana, que vinha de rematar com o velho a
segunda rede e ajeitei-o sob a cabeça. Boa e perspicaz velhinha!
era decerto o que me faltava para calar a galhofa dos diabinhos
do tédio. A cabeça azoinada achou-se bem naquele aconchego de
paina macia e a alma dilatou-se satisfeita, predisposta a cair na
beatitude de um longo cochilo.
Tudo começou a tornar-se em calma e incomparável mansuetu-
de. Os escrúpulos das obrigações atamancadas e esquecidas, a hos-
tilidade das figuras que à desfilada me traziam pungitivo anseio, o
vinco luminoso do meio-dia ensoado, as repisadas órbitas dos cor-
vos lentos, foram-se vaporando e dissipando no doce diluimento
com que se esmaecia e se apagava no azul a nuvenzinha branca que
nesse momento meus olhos contemplavam; até o conserto infindá-
vel das redes, em vez de nervosismo, trazia-me a tranquila certeza
dum dia doce e sem fim. Parava o tempo, o mundo imobilizava-se
na última postura das mãos e no derradeiro soído de voz, como no
castelo da princesa adormecida, suspendia-se a vida numa última
emoção, o ritmo do coração numa diástole final, tudo passava ao
estado de irrealidade e de sonho…
Benigna sesta beatificadora! Não era bem dormir mas apenas
entreviver, fazer na alma um grande vácuo, dar-lhe uma varredura
nas ideias e preocupações, fazê-la uma coisa inerte e vegetativa
que se abre ao sol e à vida com a passividade de uma fronde larga-
mente espalmada na altura.
E, assim vazia, penetrava-a com suavidade o ambiente daquela
quadra, o odor dos manjericões que viçavam à janela, sob as fúc-
sias que a emolduravam. Entrava-me uma sensação de paz, de lar e
bucolismo. Era como um retrocesso à infância: sentia-me recuado
vinte anos, tornava-me criança. E àquela hora nada me seria mais
doce que uma cantiga materna à cabeceira.
“Dorme, dorme, meu filhinho,
Que o Tutu vem te pegar…”
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Não ter a gente a vida toda quem assim nos embale, dando-nos
a carícia de macia mão que nos alisasse os cabelos, a dizer-nos his-
tórias de fadas e príncipes encantados e a chamar-nos filho, uma asa
imorredoura sob a qual nos pudéssemos fazer pequeninos, encolhi-
dos, escondidinhos…
Mal-organizada, esta complicação dolorosa da vida!
Mas naquele momento parecia-me quase perfeita.
“Viver é bom!”, murmurava sonolenta minh’alma, dissolvendo-se.
Longe, na estrada, rangia ainda o carro, interminavelmente; e
era como se o meio-dia se houvesse feito som e por essa voz ator-
porada e longa dissesse o desmaio voluptuoso dos grandes campos
adormecidos ao sol…
VIDA
OCIOSA

Uma história de caçadas

— Conte-me uma história de caça, Sr. Próspero.


Ultimado o conserto das redes, viera o velho sentar-se ao pé de
mim. Sentei-me também; e, ainda estrouvinhado do longo cochilo,
observava, um tanto abstraído do lugar e da hora, no alto de um por-
tal negro, pequeninos túneis de barro estendidos lado a lado, povoado
rústico acrescentado cada dia pela faina construtora dos maribondos.
Saindo de seu profundo torpor, o velho papagaio dignou-se abrir um
olho vidrento, com que nos inspecionou um instante; em seguida
remergulhou na sua imobilidade de ave empalhada.
O Sr. Próspero pigarreou, sorriu, ajeitou-se e começou a his-
tória reclamada. Era um velho episódio, num tanto desairoso para
seus foros de caçador feliz. Combinaram uma vez, ele e o Capitão
Domiciano, passar a noite num barreiro, à espera de caça. Não sabia
eu que era um “barreiro”? Ia explicar-me. Nas nascentes de certos
córregos, há, nalgumas grotas, uma espécie de lama salitrada, que
os animais gostam de lamber. A terra aí lagrimeja continuamente
escassa umidade. Durante o dia e a noite reveza-se nesse lugar toda a
sorte de caça. É o ponto de encontro das espécies mais desirmanadas,
e algumas ali vão mais à cata de pábulo vivo, que atraídas pelo salga-
do marejamento do solo. De dia são os animais menos espantadiços
e as aves de grande porte, até jacutingas: à noite é a assembleia
transida das pacas e capivaras ariscas, cutias, cachorros-do-mato,
que não raro são surpresos pelos temerosos povoadores da mata
virgem: antas, onças, queixadas. Calcado por todo o feitio de patas,
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o terreno é limpo em certo raio; e, pela ação erosiva de milhares de


bicos e línguas, vai-se solapando em roda. Não há melhor posto para
um caçador, que uma das árvores do circuito. É preciso, porém, que
seja homem de coragem e use certas prevenções. Ora, para isso, era
ótimo companheiro o Capitão Domiciano, pois mais de uma vez
haviam-se arriscado em sombrias tocas de feras e acampado sema-
nas em serras bravas, à caça de macucos. Durante o dia foram ao
ponto escolhido, para os preparativos necessários. Procuraram uma
árvore apropriada para construção dum estaleiro, e que não fosse
oblíqua, nem muito grossa, que as onças grimpam de melhor grado
nos troncos hartos lançados de viés. Feita a escolha, dois escravos,
Adão e Pai Tomás, arranjaram o ponto de pouso.
— Sabe que é um estaleiro ou jirau? É uma espécie de prateleira
de paus encruzados, armada numa árvore. Estiva-se bem estivado,
fazendo-se como um assoalho e dos lados levantam-se parapeitos.
Fazem-se para uma e duas pessoas. Aí até pode-se dormir. Finali-
zando os escravos o serviço, fomos para a fazenda, a tratar dos últi-
mos aprestos. Preparamos matalotagem, verificamos o bom estado
e limpeza das armas, entrouxamos cobertas que nos defendessem
do frio e nesses arranjos esperávamos a tardinha para partir. Preci-
sa-se ir com dia e estar-se disposto a passar a noite no jirau, porque
é perigoso arriscar-se a gente com o escuro em lugar rondado por
tão perigosas feras. Depois do jantar chegou à fazenda, muito aço-
dado, o Vigilato, nosso parente longe. “Soube que vão ao barreiro?”,
perguntou. Respondemos que sim. “Pois vim para caçar com vocês.”
“Impossível! o jirau dá apenas para dois. Se avisasse mais cedo…”
“Não seja essa a dúvida! arranjar-me-ei de qualquer modo.” Pensei
que fosse gracejo, porque era de gênio brincalhão e pouco dado a
aventuras. Mas teimou que ia, que ia… Já vinha armado e pronto
para o pernoite. “Pois então, Vigilato, faça o que quiser. Depois não
se arrependa!” E, à tardinha, partimos os três, rumo ao barreiro…
Aqui o Sr. Próspero tocou-me o braço:
— Veja, Dr. Félix, a atenção do louro… Está-se recordando dos
tempos antigos…
VIDA
OCIOSA

De feito, o papagaio, com os olhinhos agora vivos e brilhantes,


desperto do seu sono de velhice, escutava com imensa atenção.
— São do seu tempo, meu louro, o Vigilato, o Capitão Domiciano,
o Pai Adão…
E o velho prosseguiu na narrativa. Foram, pois, rumo da
grota. Chegados aí, Próspero e o capitão subiram, a experi-
mentar o estaleiro. Pareceu-lhes pouco sólido e nele cabiam
estritamente duas pessoas.
— Pois, Vigilato, arranje-se como puder, que não sobeja espaço
para você.
O rapaz tomou em riso a dificuldade. Se ainda estava dia…
— Vou fazer uma estiva melhor que a sua — disse.
Numa árvore perto atravessou uns paus pelas forquilhas dos
galhos, amarrou e encruzilhou em tudo sólido cipó e pôs-se à turca
sobre a armação, gracejando:
— Daqui farei mais proezas que vocês, porque não há parapeito
a estorvar-me.
E pilheriava, contava casos, atirava remoques aos companheiros.
Quando o negrume da noite deu de adensar aos poucos, o caso
mudou de figura. Vigilato foi-se pondo mudo e de olhos arregalados.
— C’os diabos! — rosnou entredentes. — Não avisei a Marico-
ta, que pode estar inquieta…
Devassou num relance o caminho a desandar; mas seguir um car-
reiro mal-amassado, por brenhas inóspitas, e àquela hora, e só…
— Vamos adiar a espera para outra noite? — perguntou em
voz incerta.
Os companheiros, quietos.
— Que diabo! Não respondem?
— Pouco barulho — ciciou Próspero; — é tarde para lembrar-
-se da Maricota. Se tem medo, trocamos de lugar.
— Medo, eu?!
E tentou, para mostrar isenção, cochichar novas facécias,
que lhe saíram miseravelmente sem sal. Os ouvintes, também,
não lhe encorajavam a loquela, pois para o bom caçador é grave
70 | 71

pecado quebrar o silêncio solene da espera. E os bichos não


iam tardar.
Fechou-se de todo a noite. Do barreiro subiam sons misteriosos,
bruscas correrias, estranho amarfanhar de folhagens, guinchos aba-
fados, longos silêncios expectantes…
Em forçada inação passam algumas horas. Felizmente a lua ele-
va-se e na clareira esmoitada espalha-se um difuso albor. Já se pode
caçar. E, olhos à espreita, ouvidos fitos na calada da selva, ao menor
rumorejo suspeito comprimem com o polegar o gatilho das armas,
prontos para aperrá-las.
Raras formas assustadiças sombreavam o chão numa carreira, fa-
zendo, pequeninas que eram, largo rumor. Um focinho minúsculo
trabalhava o barranco, na faina de lamber. Nada que valesse uma
carga de chumbo e o alarme de uma detonação.
Vigilato pôs-se a trautear entre dentes uma modinha, afetando
desassombro. O focinhito riscou o chão de negro, numa fuga rápida.
— Pst! — recomendaram os companheiros ao cantador
importuno.
Fez-se outra vez o silêncio… e, no silêncio, muito longe, rou-
quejou um urro sinistro.
— Nunca ouviu urrar uma onça, Dr. Félix? É uma coisa bonita.
É um miado forte, mas um tanto engasgado, como o dos gatos em
sanha. Quando ela urra, parece que tudo se confrange de medo e
até a mata fica mais quieta.
No instante do uivo entreviu-se no barreiro um confuso deban-
dar de formas antes invisíveis. Um trepidar seco vinha do estaladei-
ro do Vigilato. Ele tremia e os paus nos seus pés tremiam com ele.
— A bicha aí vem — murmurou o capitão.
Passou-se um espaço de calada absoluta. No céu sem brisa imo-
bilizaram-se as ramas das árvores, negras e como petrificadas. Ape-
nas longe em longe um lufo manso corria um frêmito pelas franças
sombrias. E aquilo prolongava-se, sem termo… “Má noite!”, pen-
savam os caçadores.
Mas um segundo indício, bem próximo, preveniu-os de algo sen-
sacional. Ouviram um taque-taque característico.
VIDA
OCIOSA

— É pintada — avisou Próspero. — Essa qualidade de onça tem


o “sotaque” de estralar com as orelhas. Armas engatilhadas e silên-
cio. Vamos atirar todos juntos. Segurem o ponto e esperem o sinal.
Do negrume da brenha surge uma grande massa animada que
avança lenta e ondulante. É um felino. Ao sair da orla de sombra, ba-
te-lhe em cheio o luar. Tem o pelo mosqueado de negro e ouro. Na
pausa solene dos quadris a deslocarem-se na marcha, há a segurança
da força. Ondulante e lenta atravessa o barreiro, em direitura da ár-
vore onde se acham os dois… Detém-se em baixo, como buscando
sonegar-se-lhe à sombra, à espera, também.
Preparam o ponto, cautelosamente.
Os dentes de Vigilato estralejam, entrebatendo-se.
— Pst! — faz Próspero, a pedir-lhe silêncio.
Com o “pst” a onça olha para cima. Domiciano assusta-se e um
seu movimento instintivo falseia um pau do estaleiro, e o estaleiro,
mais os dois caçadores, desabam fragorosamente sobre a onça… A
fera, surpreendida, atira-se, de salto, para a árvore onde está Vigila-
to. Vigilato despenha-se, num berro…
— Ah, senhor doutor, nem posso contar-lhe todas as peripécias
dessa noite! Caímos de muito alto — ficamos machucados, uma
espingarda quebrou-se e as outras ficaram sob os escombros… E,
tropeçando no escuro, aos tombos, aflitos, a olhar para trás, fugi-
mos correndo quanto podíamos, quase sem rumo, extraviados na
escuridão da mata. Felizmente não fomos perseguidos. Então, reco-
brando alento, pudemos gemer as nossas contusões, e, acendendo
pedaços de taquara e palha de pinheiro, conseguimos achar o cami-
nho da fazenda.
E Próspero ria, da velha recordação. Siá Marciana, da cozinha,
fez coro com ele. Eu ajudei-os. E, esperto na sua placa, revivendo
também antiquíssimas memórias, na ilusão de um retrocesso aos
bons tempos, o papagaio quebrou sua obstinada mudez, clamando
em falsete estridente:
— Capitão Domiciano! Vigilato! Pai Tomás!
72 | 73

No barreiro

Num barreiro — continuou Próspero, a quem escutávamos


atentos eu e o papagaio — onde se reúnem espécies tão várias,
dão-se às vezes interessantes episódios. Era testemunha, não de
vista, mas de ouvida, de uma pendência entre uma onça e um
bando de queixadas.
Os queixadas, acrescentou, não são os únicos animais que po-
dem enfrentar o nosso jaguar; a anta defende-se dele perfeita-
mente, graças à sua rija couraça nativa. E sua arma de ataque é
o arremesso da fuga. Nunca assistira eu à corrida de uma anta?
Era espetáculo empolgante. Quando foge acossada pelo inimigo,
tem o ímpeto de um obus; rompe desencabrestadamente em
linha direita, varando, esmagando, sem encontrar obstáculo. É
uma avalanche que despenha. E não há enrediça de touça ou
tranqueira engrazada que ela, irresistível, não force. Malgra-
do a couraça encorreada, é atacada às vezes. A onça, num pulo,
toma-lhe de assalto o cogote, onde se encarapita; e aí, aderi-
da como emplastro vivo, forceja por estroncar-lhe o cachaço.
Contaram-lhe de uma que, levando uma fera assim às cavalei-
ras, embarafustou mato adentro em rompente arremesso, que
o peso suplementar não moderava, aprofundando um túnel no
intricado da selva. Guiada pelo instinto, atira-se de raspão sob o
primeiro madeiro deitado de través… Com o crânio estalado, a
onça desmonta bruscamente, aquém do obstáculo, onde fica esca-
bujando, no ralo último. Podia não ser verdade, mas era verossímil.
VIDA
OCIOSA

Atestava, porém, a veracidade do que passava a narrar. “Palavra


de caçador, Dr. Félix!”
Desta vez era seu companheiro um vizinho, bom sujeito,
o Prudêncio.
Estavam empoleirados num jirau. Noite negra e silêncio grande.
Um rastilho prateado, no horizonte, anuncia a lua. Já as ramas mais
altas se meneiam alvacentas sobre o bojo atro da clareira. Podem
dormir, ainda é cedo para caçar, pois o luar tardará a banhar o bar-
reiro emparedado pela grande mata, num profundo entresseio de
serras. E, no estaleiro cômodo, dispõem-se a fazer cama… Súbito a
atenção aviva-se-lhes. Ouvem um rumor longínquo, um vago cre-
pitar que se torna cada vez mais nítido. Por fim é um vasto estré-
pito que se avizinha, tomando monte e vale, em convergência para
um só ponto — o barreiro. À chegada, o rumor sinistro torna-se
o formidável estralejar das presas de um cento de queixadas. De
mistura soam roncos, grunhidos, acachoado farfalhar de folhagens
destroçadas. E o terreno apisoado pela horda invasora é fossado e
furiosamente revolvido, arado pelo cento de focinhos, que ávidos se
cevam na salobra infiltração do solo.
No entanto, os caçadores nada veem. A treva homogênea, com-
pacta, espessa como piche, enche o âmbito da clareira. A vida ali é
apenas o confuso rumor da bandeira invasora — um grulhar múlti-
plo e um amortecido estrincar de presas. Aquela vida misteriosa no
negror da noite, coa-lhes pelos nervos arrepios de pavor. Arriscar
passos, àquela hora, sob as soturnas abóbadas da mata, seria buscar
o perigo. Em cada ponto das pesadas trevas pode haver uma em-
boscada. A elasticidade do salto está pronta para o bote, as orelhas
aplicam-se adivinhando a presa, as úngulas crispam-se nervosas no
antegosto da posse… Mesmo protegidos pela altura, os caçadores
estão emocionados e trementes. Oh, a forte sensação, eternamente
renovada, da montaria às feras!
Embaixo, a bulha amortece. É agora um resfolegar exasperado
de focinhos lavrando a terra mole, num grande raio. Improviso, ce-
leuma terrível. Entrebatem-se as presas entre roncos ferozes, bufos
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assanhados e confuso revolvimento da horda. Era uma onda infernal


a investir contra um ponto e a recuar, como rolos encapelados abal-
roando um rochedo e refugindo com fragor. E a misteriosa inves-
tida arrancava para um mesmo ponto, sempre o mesmo… Para os
caçadores só havia em baixo a homogeneidade do negrume; nem
chispas, fosforescências, ou pálido delinear de contornos: a treva
unida, igual.
— Sabe que significa este rebate? — perguntou Próspero
a Prudêncio.
— Não.
— É um inimigo. Os queixadas defendem-se.
— De quê?
— Escute, escute!
Não tardou partiu de baixo um rugido fortíssimo, prolongado,
que dominou a alarida dos porcos, enchendo a mata e a noite com
um reboo de trovão; e embuzinado pelo vale, desconforme trompa,
o rebramar da fera foi despertar até longe os ecos adormecidos dos
rincões selváticos.
Aos caçadores, azoinaram-lhes os ouvidos.
— É onça! — exclamou abafadamente Prudêncio. — Atire!
— Atirar como! — objetou Próspero. — Nada vejo! Mas sosse-
gue, que, ocupada a caçar os queixadas, não dará pela nossa presença.
Com o urro espalhou-se o pânico no bando dos suínos, se-
guindo-se precipitada bulha de numerosa abalada. E, entre bufos,
guinchos, matraquear de dentes e um farfalhar encachoeirado, a
esparramada turba desgalgou pelo vale, tornando-se prestes uma
crepitação longínqua. E então, já remoto, um segundo urro ecoou
no silêncio e na treva. O inimigo também distanciava-se, na esteira
da preia recalcitrante.
Esse incidente foi um azar. Subiu serena a lua, dealbando as
entranhas do vale, um luar tão claro, que se desenhava no barreiro
a sombra carregada do menor caule de erva. Era uma riqueza de
minúcias no chão calcado e aberto, que mais claramente mostrava
a falta de caça. Nem uma paca, nem um rato montês!
VIDA
OCIOSA

Pela madrugada desceram, com as cargas inexplodidas nos canos


das armas. Viram em cada palmo do solo os vestígios da passagem
do bando; e, num grosso tronco, para onde se concentrara a
investida da bandeira, a casca, nalguns lugares escodeada de fresco
e agatanhada de garras, mostrava a cautela da onça, em frente dos
queixadas, não se aventurando ao duvidoso desenlace de uma luta
rosto a rosto com a desaçaimada horda estrepitosa.
76 | 77

Horas de ócio

Faltava carne para o jantar; por isso, depois do café da uma hora,
meus amigos piraquaras aprestaram-se para a ida à beira-rio. Estava
pronto o samburá com os roletes de angu, debulhos de frango e
milho para rapar na ceva, como chamariz. Convidaram-me para
participar da pescaria.
— Outro dia… — respondi. — Venho com tenções de pescar,
e no entanto não me encorajo a arrostar sol e ladeira para satisfazer
meu desejo. E a vida assim é que me parece razoável: um perpétuo
aspirar, sem realizações.
— Tem graça, Dr. Félix! — aparteou siá Marciana. — Acha
mesmo que o melhor da festa é a espera?
— Sou assim, na verdade, e entendo que é o mais lógico meio de
evitar desilusões. É a causa de ainda estar solteiro. Não quero dizer
que condene o amor…
Perpassou-me aos olhos da memória a estampa do tal ex-futuro
cunhado, de marreta engatilhada: “Ou casar, ou…”. O desastrado es-
paventara-me uma vez por todas do casamento, com grande conster-
nação das amáveis pretendentes a sogras, pululante espécie que vive a
tecer redes de agrados para que se lhes carreiem as filhas do lar.
— Por exemplo: essa mata da outra margem, que não é como
esta margem praguejada de caatingas e pastos, exerce sobre mim
verdadeira fascinação. De contemplá-la a distância embriago-me,
perturbo-me, imprecando os fados que me fizeram nascer civilizado
e homem. A verdadeira vida é a da floresta, com os seus mistérios,
VIDA
OCIOSA

emboscadas, emanações de húmus milenário e florações ridentís-


simas. Seu silêncio há de segredar-nos coisas nunca ouvidas, que
valem os livros de todos os poetas e filósofos. Porque a sabedoria
nativa e a poesia humana estão nessas vozes ciciantes das brenhas,
no exalar mistérios do seu chão balofo e de seus troncos penugen-
tos… Eu desejaria ser índio, ou fera, ou o que quer que seja que
respira e sente, vivendo entre os jequitibás centenários, a conver-
sar o ermo, deus familiar sempre presente onde haja uma árvore
frondejante ataviada de bromélias e entrelaçada de lianas. Viver a
floresta, entrever-lhe a alma bruta! Mas… lá não vou. É simples
porquê. A desejá-la me inebrio; possuindo-a, ver-me-ia azoina-
do de pernilongos, ferretoado de outros insetos, de sorte que o
tempo da visita iria em esborrachar essas pequeninas pestes. Além
disso, as orquídeas não me pareceriam bem florescidas, nem os
cipós bem tramados, nem os jequitibás bem anchos, nem o perigo
bem real. Não sei se estarei a plagiar um romancista querido…
Mas a verdade é que suas onças e queixadas já se estão fazendo
lendárias, Sr. Próspero, mais as suas encorreadas antas. Já repara-
ram que tudo que nos contam de bom e digno de ser visto, ou fica
para muito longe ou se passou há muito tempo? Esses escritores
que nos impingem suas maravilhas… Se fossem descrever uma
pesca, mostrar-nos-iam dourados espadanejantes, a abrir n’água
remoinhos espumosos, reagindo à tração da corda. Obrigassem-
-nos, porém, a tomar do anzol para provar com feitos a parola-
gem, garanto que somente ajuntariam numa farpa de capim meia
dúzia de pratinhas anêmicos, do porte de um dedo minguinho.
De pé quedo, e sorrindo, ouviram os velhos o estirado discurso.
— Decerto que o peixe não vem quando se quer — disse Próspe-
ro —, mas há dias felizes, e então o extraordinário visita-nos. — Di-
ga-me: já viu peixes subir cachoeira, aos milhares, aos milhões?
— Falaram-me nisso — respondi, cético.
— Pois, quando as águas crescerem mais um pouco, vou obri-
gá-lo a dar um passeio a umas três léguas daqui, para presenciar um
pouco de maravilhoso.
78 | 79

— Três léguas! — exclamei horrorizado. — É como disse: ou


fica muito longe ou foi há muito tempo…
— Há de ir longe uma vez na vida. Estamos combinados? Encar-
rego-me da condução.
Resolvi molemente que sim, que iria. Mal sabia — incauto que
fui! — o terrível compromisso que acabava de asselar.
E, varas ao ombro, e armados de “coador”, “desabusa” de desen-
roscar anzóis, samburá de iscas e demais utensis indispensáveis, lá se
foram os dois velhos, rumo ao rio.
Ficando só, revolveram-se-me na memória as últimas narrativas
de caçadas. E, esperta pelo longo repouso, com sugestivo pábulo,
teceu minha imaginação uma série de romances heroicos em que eu
era o personagem principal. Em poucos minutos abati um casal de
suçuaranas e uma bandeira de quinhentos queixadas, a tiro e à faca.
Saí com um ligeiro arranhão na perna e uma das mangas do paletó
ligeiramente rasgada — coisa que com dois pontos e um pouco
de arnica tinha conserto. Os despojos, carregados por uma carava-
na de burros, puseram queixicaídos meus jurisdicionados. Tinto de
sangue como um magarefe, ia eu à frente do comboio triunfal. Das
janelas espiavam todas as caras de minha implicância: o advogado
dos “provará” esmiuçadores, o impulsivo, o meirinho cacete, um
negociante que me não fiava, outro que me cobrava atrevidamente,
todos corridíssimos de sua inferioridade.
Esgotadas essas sensações de triunfo, meti-me em empresas de
pesca. Apanhei num dia quinze dúzias de lambaris, seguidas de tre-
ze dourados, um jaú e, por fim, um peixe-fenômeno que ia saindo,
sem fim, da água. Eu a recuar morro acima e o monstro a deitar
rabo: trinta metros, cinquenta, cem… A este ponto escandalizou-
-me o exagero do romance e deixei, ainda com farta rabada n’água,
o mirífico peixe, capaz de embuchar uma geração de Jonas.
No entanto, sem temer aquele homem terrível sentado na arca,
a esfregadeira gata de siá Marciana, já esquecida e confiada, fazia
evoluções pela sala, a negacear um pinto piador extraviado da mãe.
Eu olhava-a com uma certa amizade, com a afeição tolerante e um
VIDA
OCIOSA

tanto paternal dos poderosos e temidos, pela vítima inerme que já


lhes sofreu o peso da cólera. Começava até a simpatizar com aquela
figurinha de felino a fingir de onça. Na graça elástica do andar, no
harmonioso de todos os seus movimentos, havia o garbo clássico
das grandes espécies, o que lhe dava, por parentesco remoto, uma
certa nobreza. Como se as pernas das cadeiras figurassem rebolei-
ras soturnas, encolhia-se entre elas a preparar o salto; e, pé sus-
penso, acompanhava depois ocultamente os vaivéns do extraviado,
simulando, mais adiante, outro bote traiçoeiro. Por fim a piadeira
desolada do pinto perdido enervou-me; ouvindo palavras de des-
pedida no cômodo de negócio, para lá encaminhei-me, a assistir à
partida do Discípulo, que era despachado mais cedo, em virtude do
acontecimento extraordinário de minha visita. De caminho um mio
lancinante: pisara o rabo da oncinha.
— Fez fiasco, senhora gata! Suas altas parentas têm mais cuidado
com o nobre apêndice… A espécie degenerou, não há que ver.
Segurando a alça dos livros cuidadosamente empilhados, o preti-
nho partia, com uma caneta, de prêmio, no bolso.
— Amanhã bem cedo, não se esqueça, José! — recomendou-lhe
Américo. — Temos muito que recapitular.
— Sim, sô Merco.
Da porta o professor olhava-o afastar-se; e, revendo-lhe a linha
de discípulo impecável, saboreava-se em sua obra.
A certa distância José agachou-se e encheu os bolsos de pedras.
— Que é lá isso?! — bradou Américo, alarmado, saindo a apu-
rar o caso.
Não se julgando observado, o negrinho sobressaltou-se; e, fazen-
do torcidas da aba do paletó, explicou, com vexame:
— É que, o senhor sabe, os meninos por aí me puseram apelido
de Zé Correto, e eu queria quebrar a cara de meia dúzia.
— Não, meu filho! Não faça isso… À voz da inveja devemos
contrapor o orgulho de nossa superioridade. Despreze esses
remoques.
E esvaziou à sua Obra os bolsos cheios de projéteis.
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De regresso, fez da mão sobrecéu, observando o sol.


— O dia está-se velando, Dr. Félix — disse. — Vamos ter, pro-
vavelmente, mudança de tempo.
Pus-me em defensiva, suspeitando os manejos conhecidos para a
entrada em conversações científicas:
— É… E afinal, um pouco de fresca não seria mau. Se chovesse,
ser-me-ia bom pretexto para dormir aqui. Prefiro não ver hoje meu
pessoal da cidade, porque enforquei uma inquirição importante.
Mas, a sondar o céu, com a mão em pala, não aceitou Américo
a desconversa; e, com pausa e tranquilidade, como quem formula a
pergunta mais natural do mundo, começou:
— Senhor doutor, com a capacidade calorífica que tem hoje o
centro de nosso sistema planetário, e dado o seu arrefecimento
progressivo, qual será o lapso de tempo necessário para a extinção
completa da energia solar?
VIDA
OCIOSA

O aguaceiro

Numa transição inesperada, o dia começou de embruscar. A atmos-


fera tornava-se dormente e abafada. A gente parecia mover-se num
fundo opresso de água morna.
— E os velhos! — preocupou-se Américo. — Entretidos na pes-
ca, talvez nada vejam…
Ia gritá-los; mas, da janela das fúcsias, que meneavam os flexíveis
caules florescidos, divisamo-los açodados, a vingar cansadamente a
ladeira da horta.
Já os cabritos, salvando a cerca, recolhiam. As bafagens do ven-
to, que levantava, encrespavam num sussurro as folhas do feijoal,
embalançando as campânulas que sobrenadavam nas ondulações
da verdura.
— Quantos dourados? — gracejei, à fala com os velhos anelan-
tes, já entrados no terreiro.
Siá Marciana, de rosto quase encoberto pelo chapeirão de palha
desabado, tirou do cesto piriforme um peixe de palmo:
— Não caçoe, que aqui trago um dourado legítimo. Mas filhote
muito novo.
A pesca fora má, explicou Próspero. Talvez porque o ceveiro es-
tivesse rondado por algum pirata dos poços profundos. Por seguro,
lá ficara um anzol, iscado com lambari vivo.
— E que seria esse pirata? — indaguei.
— Talvez um dourado dos grandes, que breve terá o Américo
que desenhar na parede. Não se trata, Deus louvado, do minhocão
ou do boi-d’água — sorriu o velho.
82 | 83

Disse-me do primeiro, que é crença ser enorme serpente que


solapa as ribanceiras, mudando o curso aos rios; e muitos supers-
ticiosos juravam já ter visto o boi-d’água, monstro que ama espa-
paçar-se ao sol, fazendo seu pouso em lajedos ilhados no meio das
correntes profundas; em avistando alguém, atufa-se no abismo; a
água catadupeja e espirra, fechando-se em sorvedouro sobre seu
gigantesco costado.
— Feche a janela! — interrompeu-se, a um súbito pegão
de vento que revolveu a casa, despregando da parede velhos
cromos de folhinhas.
Fora, a lufada assobiava numa cerquinha de bambus novos, ar-
rancando-lhe uma assuada de mil silvos agudos e graves. Vastos
turbilhões de folhas e poeira revoluteavam no ar. De volta aos
beirais andorinhas retardatárias lutavam com o vento; às guinadas
daqui pr’ali, debatiam-se, buscando o rumo; por momentos, per-
dido o equilíbrio, descaíam, para, rasteiras com o chão, recome-
çarem o voo e a luta, numa aflição de asas que traduzia o anseio
pelo ninho; e, às vezes, como vencidas, levava-as o vento, coisas
inertes, espaço em fora.
Pela porta do negócio, aonde eu fora acudir a batidas urgen-
tes, de envolta com a ventania embarafustaram aos gritinhos duas
mulatas, meio cegas do pó, acolhendo-se do temporal. Uma delas,
papuda, trazia uma pequenita acavalada na cinta. À minha vista
acanharam-se.
— Siá Marciana?
— Entrem — disse-lhes, apontando a portinha de comunicação.
Uma atrás da outra entraram. Observei-lhes o andar desengon-
çado, bambaleante, tão peculiar aos roceiros, e que é a adaptação
do passo humano às desigualdades do chão habitualmente trilhado.
A tromba passou quase instantânea, como viera. Mas o dia som-
breou ainda mais. Da porta do negócio, onde me deixara ficar,
inspecionei o arredor. A poeira erguida flutuava imota, toldando a
perspectiva com a sua cor suja; e revoadas de folhas, largadas na
altura, desciam aos corrupios, ou em lentos vaivéns, juncando a
VIDA
OCIOSA

estrada. Suava-se. A pele, titilante, pedia o refrigério duma afusão


gelada e o calmo espasmo das prolongadas imersões. Tudo gritava
pela água, ansiava por aguaceiro diluvial que abeberasse o solo calci-
nado e em farta ablução abstergesse a natureza. No abafo abochor-
nado da hora, havia uma como concentração de expectativa. A terra
voltava-se para o céu negro, num boquear generalizado de poros
sequiosos, suplicando a gota d’água de Lázaro; e, nessa dilatação de
secura e anseio, o boleado dos campos parecia intumescer-se, para
que mais fácil a fresquidão os filtrasse e embebesse, restituindo aos
colmos estanques de linfa o alegre rugitar alvoroçado da seiva.
As primeiras gotículas, ainda invisíveis, disseminaram-se escas-
sas; depois esboçaram-se, menos espalhadas, em tracinhos finos
caindo. O céu mostrava-se taciturno, como fechado num rancor
reconcentrado, rosnando. A súbitas um estampido seco explodiu
nas entranhas das nuvens; e, em longo ecoar, uma cauda rumorosa
de sons fez o circuito do horizonte, passeando pelas quebradas das
montanhas seu rugido mordaçado.
Foi o sinal. Grossos pingões precipitaram-se em atropelo, em-
pelotando a poeira, cerrando-se, premendo-se, a espipocar balofa-
mente no chão; em pouco a bátega despejava-se em ondadas cheias.
Colunas brancas corriam no horizonte, como batalhões de reforços,
sucedendo-se num assalto. Despenhavam-se dos beirais as goteiras
tensas, paralelas, estralando nas pedras da calçada; e, formando um
reticulado de inumeráveis veios, a água confluía para o meio da es-
trada em enxurro barrento, que abria carreira morro abaixo.
Eu estava salvo. Não me linchariam, aquele dia. Fui logo avi-
sar siá Marciana:
— A senhora tem hoje um hóspede para pousar.
Os velhos ficaram encantados. Américo irradiou, antegozando
longas horas da noite fecundas em ciência pura: naturalmente eu
seria seu companheiro de quarto.
Na varanda reinava penumbra, a que logo meus olhos se afize-
ram. Vi as duas mulatas sentadas na beira do estrado.
— O senhor deve sentir fome — disse siá Marciana. — Vou
buscar-lhe uma coisa de que gosta muito…
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Suas chinelas arrastaram-se, encaminhando-se para a cozinha.


Trouxe-me um pedaço de mogango coberto com uma poça de me-
lado. Cada um teve o seu naco e sua colher. Fez-se na sala um silên-
cio de mastigação. Fora, as goteiras trapejavam, em abafado esca-
choo. O feijoal, sob a corda d’água, abria um acachoeirado rumor,
que nos chegava amortecido, através das janelas fechadas.
— Fenômeno curioso, um chuveiro assim repentino — murmu-
rou Américo, cogitativo.
— O doutor não adivinha sobre que falávamos — disse siá
Marciana noutro rumo, lançando um olhar malicioso à compa-
nheira papuda.
— Não seja linguaruda! — pediu a mulata, bufando de riso e
escondendo a cara.
— Não é segredo — riu a velha —; diz a Clemência que impli-
ca quando encontra qualquer pessoa, porque a primeira coisa que
olham é a barriga dela, e que o senhor foi mais delicado.
— Gente! a senhora diz tudo! — torceu-se Clemência, engas-
gada de riso. — A falar verdade, pois decerto! é coisa que implica,
porque não foi roubado. Há criaturas que parece que nunca viram
pança de mulher! Sabe, o sô Gaspar? Trasantontem teve o desaforo
de perguntar-me se comi muita abob’ra.
Olhei-lhe o abdômen, que de fato era um monumento notável.
Trazia sua possuidora as mãos enclavinhadas sobre o embigo, talvez
com a pretensão de dissimular-lhe o volume.
— Tem mesmo muita gente desaforado — grunhiu a papuda.
— Desde que fiquei com o pescoço grosso, é um gosto de repa-
rar… Esta grossura…
Contou-lhe a história desde remotos antecedentes, fugindo,
com eufemismos, à propriedade da expressão. Ouvindo a conversa,
a menina, ainda enganchada na ilharga, pôs-se a brincar distraída
com o par de cabaças.
— Fica queta, demoninho! — rugiu a criatura, estortegan-
do-lhe a nádega.
A pequenita confrangeu-se, largando os pendurelhos.
VIDA
OCIOSA

Siá Marciana entrou a perguntar sobre as conhecidas das bandas


delas. Miséria, doenças… Havia uma grande novidade: voltara de
cumprir trinta anos na cadeia o Lourenço da Frederica. Lembra-
vam-se? Da Frederica, que andava com o Martinho, de longos anos.
Lourenço namorava-a. Num acesso de “canelagem” pica de faca um
caboclo, que deitara vistas cúpidas à mulata. Não houve apelo nem
perdão — gramou todo o tempo entre grades. Chegara avelhus-
cado, quietarrão com inchação de membros, e arrastando de uma
perna. Não sabiam que viera cheirar para ali. Estivera na casa da
Frederica uma hora, e depois seguira pras terras dele que, parecia,
eram além de Uberaba — coisa de léguas e léguas.
Interessei-me pelo caso e fiz perguntas. Nada sabiam… A Frede-
rica era quem poderia contar.
— Ela mora no caminho da cachoeira, Dr. Félix — explicou
Próspero. — O senhor ver-lhe-á o rancho quando fizer a viagem
planejada. Falar nisso — não pode ser na quinta-feira próxima?
Assenti, de corpo mole; como quisesse…
Continuou a falar nesse passeio. Disse algo sobre cavalo arreado,
e não sei que mais, o que ouvi desatento. Pois esse projeto pouco
tentava-me a lesmice. Eram castelos no ar, pensava.
A chuva ainda cantava na coberta, coando fino pulverisco pelos
interstícios das telhas. Com a garoa rarefeita, a temperatura refres-
cava, no interior fechado. Já as projeções das cordas d’água eram
menos rumorosas. Cedia, o temporal. De goteiras aqui e ali, apara-
das em latas, pingopingava a água com mais espaço.
Com satisfação atentaram as mulatas em seu declínio.
— Vai passar, sá Clemência — resmungou a dos papos.
— Deixe chover — disse a velha. — As senhoras estão em abri-
go. Esperem a janta.
— Impossível, sá Marciana! É ida de muita urgência… Precisa-
mos estar logo na cidade.
Coisas de doença. O marido da Clemência estava com febre e
empachado.
— Será do lugar… Porque estamos mudados de pouco tempo.
E aquela morada não me está quadrando nada. É na beira da estrada
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e, na estrada, a senhora sabe, passa bom e passa ruim. Desde


que fui pr’aquela casa não tive um dia de alegria. Nem a gente
pode criar. Tenho uma paixão quando gavião come um pintinho
meu, e lá já comeram oito, só esta sumana. E não combino com
o novo patrão. Assim, a senhora vê — meu homem na cama,
entregue, e ele passa pra lá e pra cá e não vai lá nem uma vez
perguntar se morreu, se viveu.
E ainda insolências, “ridiquices”…
— Mamãe, quero água… — choramingou a pequenita.
— Fica queta, coisa ruim! — ralhou a papuda, com um repelão.
— Tu não qué água nenhum.
— Vou buscar, neném… espere!
E siá Marciana, tomando um copo, apressou-se para o pote. Des-
tapou e tirou água com a caneca de borda repicada e cintada de
furinhos sob as pontas — precaução para o asseio da bebida.
Mas o tempo estiara. Só se ouvia o pingar lento das abas do telha-
do e o rumor distante da enxurrada decrescida, afastando-se.
Perras de movimento as mulatas puseram-se em pé, gemendo
a preguiça.
— Bem, vacês até outro dia.
Despediram-se de um em um.
Pela porta que lhes deu saída entrou uma aragem fresca e a pa-
lidez do dia enevoado. Abertas todas as portadas, a casa alegrou-se
com a suave claridade exterior. Frouxéis de nuvens brancas tape-
tavam docemente o céu. Ouvia-se ainda um murmurejar de águas
remotas, perdidas ao longe. Escasqueada a paisagem de seu tisne
poento, todas as cores se fixaram, lavadas, nítidas. O próprio som
tinha um timbre mais claro e musical. Da terra, enfim saciada, bro-
tava como um sorriso esparso, que cascalhava, argentino, nas sur-
riadas dos caracarás pousados num sassafrás fronteiro, sorriso feito
em frescor na aragem, em brando frêmito nos pendões penugentos
dos campos e em alvura cariciosa nas lentas vaporações que já des-
pegavam do solo, acamando-se maciamente nos refolhos dos vales.
VIDA
OCIOSA

Pirata

Fechou-se a noite. Das margens empantanadas do rio sobe confusa


vozearia de batráquios. Há o tantã dos tanoeiros, encambulhado com
silvos, grulhos, coaxos, ladridos de matilha solta respondendo-se de
ponta a ponta dos atascadeiros, regougos graves, espaçados — vo-
zes de experiência e ponderação —, guinchos, grunhidos, timbres
inomináveis, bufidos estranhos, onomatopeias bárbaras de todas as
vozes animadas. E se se busca divisar, nos almargeais alagados, as
manadas sem-número de bestas apocalípticas, que em tal soada po-
voam os ecos da noite, apenas se entrevê, fuscamente alumiado ao
palor do luar nevoento, o nível palustre deserto e imoto, adorme-
cido na calma da noite. Longe em longe vem da mata virgem um
ulular soturno, voz de mistério que coa nos nervos um arrepio de
pavor. É a vida noturna que começa. Insulada a fazenda em terras
despovoadas onde abateu a sombra, só, no desabrigo e no abando-
no, traz doce sensação de segurança e conforto o ver-se a gente
nesse conchego amigo a tais horas avançadas. O velado da entoação
das lentas frases trocadas, o bruxuleio da lamparina empenachada
de bulcões de fumo negro, o ambiente de “lar”, mergulharam-me
num sopor agradável, propício às dispersões frouxas do espírito.
Mais uma vez o ulular remoto encheu a calma da noite com seu
lúgubre ecoar.
— Que significa esse uivo, Sr. Próspero? — perguntei.
Fazendo um gesto vago, o velho respondeu:
— Não sei. A mata é misteriosa. Pode ser um pio de ave noturna
ou o urrar de uma fera. Há certos sons indecifráveis, mesmo para
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os que estão familiarizados com a vida nas brenhas. Daí as supers-


tições, a crença no sobrenatural, tão comum entre os rústicos…
Rodeávamos, na varanda, uma bacia com brasas, uns no es-
trado, outros nas cadeiras. Olhávamos todos fixamente o lume,
como hipnotizados.
— Mais uma história de caça, Sr. Próspero — disse eu, por
fim, quebrando o silêncio que se havia estabelecido.
O velho sorriu, já esperando o pedido; e reconcentrou-se,
cabisbaixo, como quem puxa recordações e escolhe. A sua testa
avincou-se, nessa introversão cogitativa. Via-se que seu espírito
adejava longe. Levantou por fim a cabeça, e disse:
— Vou contar-lhe a história da Pirata, a cadelinha onceira que
tão tragicamente acabou. Uma figurinha de nada, pertencente ao
Felício, nosso primo segundo. Tinha ele posses a um quarto de
légua daqui, onde ainda se veem, afundidos em urtigas, os restos
dos alicerces da fazenda do Fundão.
Nesse tempo era a cidade meia dúzia de ranchos esparsos. A
mata inviolada alastrava por outeiros e gargantas, afogando as
terras onde agora ondeia, na sazão das flores, o roxo furta-cor
das invernadas. Onde se vê o rio escampo, águas fluentes abertas
ao céu que se remira nelas, era um trançado de retorsos tron-
cos e galhadas em abóbada, tapando o azul. Na meia-luz difusa
do bojo da mata, a corrente sombria coleava em meandros as
águas rebalsadas, que apenas esboçavam em seu espelho torvo os
ziguezagueantes elances das cordoalhas de cipós monstruosos,
que se atiram em fugas loucas de rama em rama, espirrando
de si esguichos de folhas tenras, e embalançando-se em sanefas
emaranhadas sobre o veio dormente. Havia ali ecos claustrais,
estranhas sonoridades de nave deserta, que se fizeram hoje no
flébil marulho das águas murmurilantes ao sol. A caça abunda-
va. Onças vinham urrar à noite às portas dos currais. Certa vez
apareceu morta no Fundão uma novilha, vítima de uma pintada.
Felício, exaustinado de raiva, reuniu caçadores e camaradas para
encalçar a fera. Os cachorreiros ajoujaram uma dúzia de cães
VIDA
OCIOSA

escolhidos dentre o melhor em várias fazendas. Prontos para a


batida, Felício guiou a matilha ao sítio onde se achava o corpo da
novilha; e aí disse à Pirata, apontando a “carniça”:
— Mataram minha novilha, Pirata! Descubra quem fez isso, Pirata!
A cadelinha fareja os restos, toma os ventos à roda, ensaia, afir-
ma, e despede no cheiro da onça. Livre da trela, a canzoada emenda
após ela, em festiva alarida. Mal os seguem os caçadores. A fera
está farta, pesada do cevo, venceu decerto pouca distância. Mesmo
assim, adentram-se muito na floresta, é um andar sem tréguas o dia
todo. À tardinha a cachorrada assanha-se ao longe. Os caçadores
precipitam-se, “estumando-a” aos brados. Ganindo alto alguns cães
retornam, fundamente alanhados das presas felinas. À sua chegada,
a onça, que ainda não trepou, embrenha-se para mais além, salvan-
do pirambeiras e barrocais impérvios. Como cai a noite, é tarde
para rodearem caminho até ela. Chamam a Pirata e reúnem o resto
da matilha. Houve dois cães de menos, que acham nas vizinhanças,
ventres abertos alto a baixo, entornando os intestinos moles pela
fenda. Mau começo… Os camaradas armam rancho, onde todos
pernoitam. Não vinham preparados para tanta demora; mas o espí-
rito de aventura tinha-se-lhes atiçoado de tal sorte, que, na ebriez
da perseguição, pouco se lhes dava dos cuidados aflitos dos que es-
peravam. Fervia-lhes o sangue tumultuoso, e à noite foi o sono cor-
tado de alertas sonambúlicos. No outro dia a Pirata reacha o faro, e
partem na abalada da caça.Vencem mais léguas penosas na mata sem
termo. Já traz por fim cansativa obsessão o varar de cabeça baixa
espinheiros obstrutos, o meter-se de ombros em cerradas redouças
que travam a passagem e o desfilar repisado dos grossos troncos
acabelados de musgo e orquídeas ridentes, que em cachos pensos
se premem a cada dispartimento de ramos. Topam a onça, não acu-
ada, ao fim do dia. Escapa-lhes ainda. Quatro cachorros de menos.
Rancho, pernoite. No terceiro dia foi liquidado o resto da matilha,
menos a cadelinha. Os melhores cães eram feitos em tassalhos san-
guejantes, alguns ainda trementes, num persistir de vitalidade so-
fredora, que movia dó. Acabavam-nos os próprios donos, que mal
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reconheciam naquelas formas espostejadas os seus onceiros favori-


tos. E o ódio intumescia-lhes o coração, encruecido ao ponto que,
obstinados na batida, esqueciam família e tudo. Tinham por pouco
os sofrimentos que aturavam, de cansaço, contusões e fome. Por-
que um bocado para a boca já montava a problema. E com a roupa
em frangalhos, os pés tumentes rompendo o calçado, aprofundavam
mais a selva, num entranhar-se desvariado e sem fim. Da matilha,
apenas, lépida e sagaz, sobrevivia a cadelinha. Sob as presas da onça
era uma esquiva gota de azougue, a sumir-se num pronto, e a tor-
nar, buliçosa, incansável, ubíqua, torturando o colosso como o mos-
cardo da fábula. Não havia bote que a colhesse. — Sim… colheu-a
afinal a fera. Os caçadores ainda a encontraram arfando, e a revirar
para o dono uns olhos lastimosos, que pareciam dizer-lhe: “Vê? Fiz
tudo o que pude. Não me culpe!”. Já empedernidos pelo exaspe-
ro da perseguição baldada, os caçadores olharam-na indiferentes.
Felício teve-lhe raiva de ser tão frágil, tão nervos, tão rudimento
de coisa, que uma unhada canhestra bastava para levar-lhe o sopro
da vida. A noite amarrou-os ali. Nem conversavam, trancados em
taciturnidade rancorosa, sentindo o queimor interno da impotência
em revolta. Um sugeriu: “Há mais de três dias a onça não come…
Virá procurar a cadela…”. Era uma ideia. Engatilharam duas espin-
gardas sobre o cevo que se confrangia na última contratura de mús-
culos, presos a ele os pinguelos por atilhos de embira, e desanda-
ram a arranchar longe. A insônia teve-os muitas horas febricitantes,
o ouvido à escuta, naquele lance supremo. Alta noite, detonação.
Como foi tardio o alvorecer da manhã! Então, correm à armadilha.
Lá estavam as espingardas, gatilhos caídos, sobre a isca intacta.
Mas há um rastro de sangue — a bicha tomara chumbo! Seguem
os vestígios. Andam, pesquisam… e súbito sai-lhes de cara, dum
engrazado de taquari, uma desconforme pintada. Há um grito de
surpresa. O desenlace! Alçada sobre os pés traseiros, as presas cin-
tilando, a fera emite um rugido e investe contra Próspero. Prós-
pero mete-lhe pela goela o cano da espingarda. “Atirem!”, grita.
No mesmo instante uma descarga troa, chamuscando o zagaieiro
VIDA
OCIOSA

improvisado, e a bicha, ainda alçando-se mais, num esgar de mor-


te bambeia e tomba pesadamente de costas. Afinal, encerrava-se
aquele capítulo palpitante. Os homens, tornados em feras durante
a perseguição, restituem-se a seres de pensar e sentimento. No
coração desafogado canta-lhes o júbilo da vitória. Riem, rouque-
jam hurras, bêbedos de alegria. E comovem-se então com a sorte
da cadelinha, causa indireta do sucesso. Querem mostrar ao ca-
dáver a pele da onça, pesada túnica felpuda. Voltam ao lugar da
armadilha e defronte o corpo sacodem o troféu sangrento. E Felí-
cio, chorando, toma a cadelinha nos braços, exclamando: “Pirata!
minha Pirata! mesmo morta soubeste ser boa!”.
— Nesse momento todos soluçamos — concluiu Próspero —;
abalados como estávamos de cansaço e emoções, não era difícil
passar rapidamente do riso às lágrimas. E estas justificavam-se. Só
uma alma de caçador e numa conjuntura como aquela, pode en-
tender uma afeição assim absurda por um irracional. E ali mesmo,
à roda do cadáver, juramos não caçar mais onças em dias de nossa
vida. Verdade é que nem todos cumpriram o juramento… Creio
mesmo que nenhum de nós, à exceção do dono da Pirata. Dali,
andando sem parar, e tomando atalhos, levamos dia e meio para
tornar a casa. Só à volta nos inquietamos com cuidados da família.
E eu com a “prima”… gorda, à espera qualquer hora… Por isso
foi-me uma agonia o regresso. E, chegando à fazenda, encontro
nascido o Américo.
O velho calou-se. Era, creio, a décima vez que me repetia essa
história. E, pela décima vez, todos mostravam os olhos marejados,
comovidos da sorte da cadelinha, que vivia em suas recordações
como criatura amada. Siá Marciana, como de costume, juntou então
à narrativa a sua nota pessoal. Que interminável angústia a dos cinco
dias de espera! A demora alarmava a todos. As mulheres descabela-
vam-se, em desespero. Turmas de camaradas batiam as matas derre-
dor, tocando buzina e dando salvas. Afinal a chegada, os caçadores
esfarrapados, estrompados e semimortos de fome…
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A recordação ainda fumegou, em volta do brasido, numa ou


noutra frase solta, ao passo que as mãos instintivamente se rentavam
sobre as brasas veladas.
Fora, uma harmoniosa serenidade baixara sobre a noite. Cala-
ra-se na mata o ulular misterioso, voz lúgubre de um ser estranho,
que turbava, com uma ameaça de drama, a quietude universal. A
matinada das rãs se ensurdecia, como se as ganhasse o torpor da
noite. Em torno, o descampado, o deserto. Sós, ilhados no ermo,
como era doce o conforto daquele abrigo, daquela rodinha de al-
mas, banhados pelos dúbios clarões da lamparina! Dava uma cali-
dez de ninho ao corpo e à alma. Também a mata silenciosa, com a
sonolência de suas grandes frondes imóveis, parecia um carinhoso
conchego de ramas sombrias. Ali embaixo, era só a paz, a calentura
das tocas acolhedoras, a placidez dos ninhos, a segurança da vida. A
natureza dormia e sonhava florações feéricas, frutescências opimas;
e o sonho dos brutos, adormecidos na paz, flutuava brandamente
sob as copas, como uma exalação de bruma…
Súbito, sobressaltei. Longe, de uma quebrada ignota, subiu um
guincho agudo, torturado, espiralando para o infinito uma imensa
angústia de vítima que implora o céu, um ganir que se vocalizava
em agudo crescente de agonia inenarrável, e que instantaneamente
calou, apenas revivendo na maquinal repetição dos ecos perdidos…
VIDA
OCIOSA

Fumigações

A palestra arrefecera em torno das brasas extintas. Cada qual se


isolava em suas reflexões. Siá Marciana ciciava padre-nossos nume-
rosos; a obrigação era grande, por isso começava cedo. Em certo
momento, explicou-me:
— Antigamente, Dr. Félix, eu rezava um padre-nosso por cada
defunto estimado; mas hoje são tantos, que dedico um a cada cinco
mortos e dura horas o cumprimento da tarefa. Rezo até por gente
que não conheci. Há tempos leu o velho num jornal que morreu
afogado, não sei onde, um pescador; e de vinte anos para cá não me
esqueci dele uma só noite, embora ignorando-lhe o nome. Chamo-
-lhe “o pescador do jornal”.
— Mas, siá Marciana — objetei — são tantos os pescadores
afogados, cujo perecimento os jornais registram, que, ao cair sua
prece na eternidade, pode haver disputa grossa entre as vítimas: tal-
vez botem demanda uns aos outros, para destrinçar a propriedade
do sufrágio.
— Se houver dúvida — sorriu a velha —, repartirão a intenção
por igual. Assim todos se salvem! Simpatizei sempre com pesca-
dores, Dr. Félix. Quem lida em cima d’água em regra é gente boa
e pacífica. Por isso escolheu Jesus entre eles seus apóstolos mais
amados.
— É que, ocupados em fazer mal aos peixes, não se lembram de
o fazer ao próximo — sentenciou o velho.
Calamo-nos. Cada um passou a revolver seu próprio círculo de
reflexões. Era esse cogitar mecânico das horas cansadas, quando as
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ideias se soltam como presos desalgemados, e se juntam e dissociam


sem espírito de sistema, agregando-se vadiamente em simulacros
de raciocínios, fluidos, inconsistentes… São as travessuras das po-
bres encarceradas, em momentos de folga. É também o desagregar
do sono que começa. Nos olhos semicerrados a retina semelhante-
mente se emancipa, desfilando sem método as impressões do dia:
água a cair, uma árvore, um chuchu, andorinhas tontas a lutar com
o vento…
— Traz a sanfona e toca, Américo — diz Próspero.
O instrumento, que o sanfonista pousa sobre os joelhos, absorve
o ar num prolongado acorde. Àquela hora, soltas as ideias, a música
penetra-nos como um bálsamo. Seu ritmo, assim doce e rústico, é a
única linguagem compatível com o nosso estado de espírito. Soam
velhas melopeias de mutirões, gemidos de escravos melancolizados
em cantigas, toadas de extintos serões que a sanfona já sabe de cor,
antiga como o são elas e que saem automaticamente dos dedos habi-
tuados do Américo. Seu timbre anacrônico ressurge coisas remotas,
esfumadas no passado. Cerrados os olhos, os velhos se impregnam
desse odor ancestral, como se aspira o recender a alfazema de alfaias
antiquíssimas. De quantos anos a sanfona do Américo espairece os
serões da fazenda, com a sua voz fanhosa! Cada música prende a
uma época, ou recorda um morto amado; antigas seroadas alegres,
tempos de angústia, tudo revive, gravado nos acordes dolentes, re-
fazendo a história de dias idos.
Eu achava encanto em vê-los, os três, tão absorvidos, inalando
aquela revivescência do passado. Também a música influía sobre
mim, mas o meu sonho era o sonho deles; buscava sentir o refle-
xo de suas cogitações, enxertar-me em seus pensamentos, como
quinhoeiro deles. Não é que após mim não ficassem vinte e tantos
anos de acervo próprio de recordações; mas só o passado dos outros
parece-me interessante. É o meu uma série de fragmentos desco-
nexos, um perpassar de silhuetas vagas, e tem o vinco preponde-
rante das sensações desagradáveis; um mau romance truncado, sem
interesse, de que de bom grado me alijaria, se pudesse deli-lo dos
VIDA
OCIOSA

refolhos d’alma, onde, por mal de pecados, se tatuou inapagavel-


mente. Esmaga-me a predominância dos maus momentos sofridos;
meu passado figura-se-me um rol de misérias cujo cruciar, quando
o evoco, lateja sempre atual. Não sei que malévolo ímã me consti-
tui o núcleo da alma, que só atrai, limalha imprestável, impressões
sabendo a fel e pranto.
E, ao lado dessa, outras penúrias. Sei de pessoas que, de uma
excursão pequena, fazem uma narrativa longa, vendo em ínfimos
nadas peripécias atraentes. Creio que, o que nos torna a vida inte-
ressante, é sorvê-la com o apetite ávido de todas as curiosidades,
o qual, em torno de incidentes mínimos, multiplica sugadores de
polvo, bem como na mesa colabora o apetite no sabor das iguarias.
Tenho viajado muito; mas em tanto correr terras não colhi uma ane-
dota, uma observação rara, como se desprende num canteiro o pe-
dicel de uma flor. Tudo encinzeira-me tédio na alma e escancela-me
a boca em bocejos. Sou, talvez, um abortado da alma, inviável para
a vida normal. É por isso que sinceramente invejo os que sabem ou
podem viver. Oh, as simples criaturas, cujas almas se entreabrem
como corolas para acolher o orvalho dos eflúvios do passado! Que
livro interessante não folheiam, ao ritmo da sanfona roufenha que
há tantos anos lhes acalenta os serões!
E a noite prolonga-se nessa beatitude sem fim — meus ami-
gos todo recordações; eu, vampiro de nova espécie, avoejando
pela sua cisma.
Encorujado na placa, o papagaio dorme, com o bico aninhado
nas penas das costas.
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A cavalo

Serviço até o pescoço. É uma enchente de autos. Esta atmosfera


de petições e arrazoados produz-me, como a pasmaceira habitual,
efeito desalentador. As impertinências dos advogados, longe de me
espicaçar brio, tiram-me até a coragem de levantar a pena empo-
eirada da mesinha de trabalho. E já entreouço à volta um zum-zum
de descontentamento que me turba o farniente. Preciso fugir, cobrar
um pouco de vitalidade para enfrentar com valentia os desgostosos.
Na minha cabeça soa como refrão incansável uma frase do velho
Próspero: “Quinta-feira, sem falta! Quinta-feira…”. E como é hoje
uma quinta, alicio resolução para zarpar para o Córrego Fundo.
Fecho meu ninho de solteirão e saio. Nuvens algodoam-se espar-
samente no céu. Como tem chovido, palmilho com esforço o chão
barrento. Meus sapatões roceiros produzem borborigmos na lama
peganhenta. Detenho-me rente a uma cerca, observando uma moi-
ta de taiobas folhudas, consteladas de pérolas d’água. A intervalos
uma gotícula corre sobre os folhões e perde-se como estrela caden-
te — um risco de prata e sumiu-se. Muitas vão engrossar outras
pérolas, que hesitam bamboantes, límpidas, na superfície glauca.
Desprendo-me dessa vista e continuo, meio arrependido, o meu
caminho. Dia péssimo para uma excursão! o serviço largado, o la-
meiral extenso, chuva à tarde, provavelmente… Meus pensamen-
tos levam-me para trás mas as pernas instintivamente avançam.
Hoje não há cigarras. Provavelmente tiritam, sob o abrigo
de uma folha, não se sentindo de veia para a música azoinante.
VIDA
OCIOSA

Parafusam, porventura, sobre o caso da formiga. Má coisa, a impre-


visão! Agora que o sol não as embriaga, filosofam, fazem exame de
consciência e juram tomar rumo mais sensato. Entreluza, porém,
o primeiro raio de ouro, e as tontinhas, esquecidas dos protestos,
serão todas para a luz e para o céu, numa generalizada orquestração
sonora, afronta de arte à labuta utilitária das formigas.
Sucedem-se os conhecidos marcos de minha rota: a sempre-
-lustrosa, opada de roxo, alcatifando o chão de pétalas caídas; a
porteira, frígida, sob a arqueadura das ramarias encontradas; a
curva do rio, o campo entressemeado de cupins… Enfim, a fa-
zenda. Tosando a relva da eira, um animal, já de arreios postos,
espera alguém.
— Ô de casa!
Vêm os velhos, vem o Américo.
— Aqui está o homem! — exclama Próspero. — Já tomou
café? Então não o convido para entrar. A cavalo!
— Que é isso?! — espantei-me.
— Pois hoje é quinta, não se lembra? Os peixes já estão pulan-
do na cachoeira. O doutor sabe o rumo, é tocar. Nada de pregui-
ças. Estou hoje disposto até a montá-lo à força no animal.
Pedi, objetei, reagi — tudo baldado. Vi-me, sem apelo, escan-
chado no quadrúpede. Supliquei ainda, quase lacrimoso, mas uma
palmada na anca da montaria cortou cerce as últimas esperanças,
despedindo-a em trote acelerado. Eis-me a jornadear. Miserável
de mim! Meu espírito, desdobrando-se, apiedava-se da misérrima
vítima que a cavalgadura sacolejava num trote duro. De longe gri-
tou-me Próspero que fizesse isto ou aquilo para amaciar a anda-
dura. Não entendi bem, nem me esforcei por entendê-lo, devido
à minha preguiça de assimilar aquisições novas — do que depois
me arrependi. Convenci-me nesse dia de que é sempre bom sa-
ber. Primeiro, caí num estado de resignação acomodatício. Meu
eu que sofria, vendo o outro eu doer-se evangelicamente de sua
sorte, assumiu atitude de mártir, para que o outro lacrimejasse
mais condolências. Dizia o primeiro:
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— Vês como me componho? O trote vascoleja-me tão dura-


mente, que nas minhas entranhas é um confuso misturar e abalroar
de vísceras. O estômago embica com o fígado, o coração se atraca
com as pacueras e nos convólvulos das tripas é um emaranhado labi-
ríntico. Sou um infeliz! E não me queixo. Sei conformar-me.
Ao que o outro respondia:
— Pobre amigo! Sua paciência raia pelo grandioso. Está aí
um caso desses heroísmos obscuros, mas nem por isso menos
meritórios, que a fama não celebra. Continue a sofrer paciente,
bom amigo!
Algum tempo depois as consolações do outro pareceram-me
sensaboronas, e meu estoicismo improfícuo. Então refundi os dois
personagens e busquei lembrar os conselhos do velho, gritados à
partida. Mas nada me acudia. Eu tivera preguiça de escutar. E esses
conhecimentos agora me seriam úteis, para conseguir a reversibi-
lidade do trote em cadência mais aceitável. Pelos modos, os bichos
dessa espécie sabem várias maneiras de andar, escolhíveis à la carte.
Faltava-me somente um meio de correspondência. Era o diabo!
Procurei, então, recurso, na caixa das ideias. Era homem de luzes,
tinha obrigação de saber. Revolvi o mofo dos velhos preparatórios,
evoquei o capítulo dos paquidermes, pedi auxílio à história dos
cavalos célebres: nada que me valesse naquela conjuntura! Nem o
velho cabedal de humanidades cavalares, nem Incitatus, Rocinante
ou o cavalo branco de Bonaparte me deram um rastilho de clarivi-
dência. Por fim a Lógica refulgiu, com soberana luz, lembrando-me
que há induções, deduções, experiências e contraexperiências
para arrancar as verdades do seu poço escuro. Era isso! O método
experimental! Atinaria assim com a receita do velho.
Submeti a azêmola a uma porção de manejos. Dei rédea, pu-
xei rédea, sofreei de arranco e com amabilidade, toquei-lhe as
orelhas, escoicinhei-lhe os ilhais com os tacões das botinas. Nada!
Minhas vísceras, aos gritos, pediam urgência. Redobrei os recur-
sos, combinando-os, alternando-os, e mais além iria, se o animal
súbito não assentasse de reagir, procurando cuspir-me da sela e
VIDA
OCIOSA

ameaçando andar de dois. Convenci-me esse dia de que as expe-


riências in anima vili têm seus senões. Apressei-me a amaciá-lo:
— Que é lá isso? Acalme-se, que o caso não é para tanto. Entre-
mos num acordo, criatura! Sou homem pacato e razoável — acei-
tarei condições.
Fez-se o acordo tácito. A montada voltou a andar de quatro,
com a cláusula de me pôr eu o mais quieto possível. Em compen-
sação, buscou variar o mais possível o cardápio. Às vezes abria um
galope macio, dando-me ao corpo agradável galeio; outras, ser-
via-me o trote de má morte, lardeado de um horrível picadinho
sacudido; por fim caiu num passo preguiçoso, melancólico, que
parecia sentenciar:
— A vida é triste. Para que pressas, se ao cabo de tudo é sempre
a morte? Uns trepam, outros são trepados, qual corre, qual anda,
mas no fim a dentuça da megera abocanha a todos.
Aquela andadura dizia-me coisas. Eu edificava-me, traduzindo
seu compasso significativo. Quando me senti saturado de filoso-
fia cavalina, lancei vistas aos arredores. Campo, campo, campo…
Monotonia exacerbante. À margem da estrada, o mesmo ervecer
tolhiço de juapoca rajado, de gerbão de pendão negro e florinhas
roxas, barbascos felpudos, manojos de carqueja. Cupins bojavam a
flux, como a furunculose da terra. Nos espigões, a eterna crista de
arbustos, debruando valos ocultos. Era secante e vulgar. Como os
grandes artistas, nem sempre a paisagem tem gênio.
E assim corria a viagem. Quanto custa às vezes viver a compridez
do dia, cuja lentidão ainda frisa mais, pautada por uma andadura
lerda de rocim!
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O sentenciado Lourenço

A vastidão dos campos sem veios d’água, dera-me sede. Avistei


um rancho à beira da estrada. Defrontando a porta, defendida por
um cancelo, gritei pelos moradores. No mesmo instante vi agitar-
-se no cômodo da entrada, que também servia de cozinha, uma
mulata obesa e velhusca.
— Um pouco d’água, faça favor?
Trouxe-ma numa cuia, pedindo desculpas: casa de pobre…
Regalei-me com a frescura nevada da bebida.
Nesse momento uma voz de homem chamou da horta:
— Frederica!
Frederica! Este nome lembrou-me o sentenciado Lourenço, que
matara um homem por ciúmes. Aquele escombro de gente, aquelas
roscas de toucinho velho com figura humana, aquela criatura fora a
fatal inspiradora do gesto homicida, no frescor de seus dezoito anos
tentadores, que tinham a virtude de açular os homens uns contra os
outros, em fúria de morte, na disputa de sua posse. Que descalabro!
O que os anos levam de graça e provocantes atrativos!
E, com o vivo interesse que me causara a narrativa das duas ro-
ceiras no dia do temporal, borbulhavam-me à boca muitas pergun-
tas sobre o encontro com o Lourenço após trinta anos de cárcere;
recalquei-as, porém. Decerto fora banal e desinteressante. Duas
respostas que me desse, e lá se desenflorava a mente do romance
que eu tecera sobre a volta do sentenciado. Era melhor não saber.
Entreguei a cuia, agradecendo; e prossegui.
VIDA
OCIOSA

Fora melhor não perguntar. Porque, afinal, bastava-me a minha


visão interior, que sobrepujaria, certo, a realidade. E evoquei a fi-
gura do Lourenço, demandando a casinhola, meio inchado, deslum-
brado do sol a que se desabituara, arrastando de uma perna. Passara
trinta anos a antegozar aquele momento. Nele via a razão de ser de
sua vida, o ponto de convergência de seus mais caros pensamen-
tos. Pela ilusão da ausência, acarinhara todo o tempo a imagem da
mulata, como a vira pela última vez. Nos primeiros anos esperava
com ânsia a saída; entretinham-no as apelações, o perdão em fes-
tas nacionais… De cada vez era um alvoroço. Via-se chegando de
surpresa; e, na alegria do amor reatado, causa dela, desfechava o
romance de sua vida.
Mas os anos se escoavam, os últimos recursos foram baldos e
o perdão não viera. Sem esperança, aquietaram-se os assomos de
sua mocidade insofrida, recalcitrante entre as grades e começou a
ganhar uma calma filosofia de conformidade. Sua vida não era mais
um romance com desfecho e sim uma interminável biografia inco-
lor, que, decepada em qualquer ponto, aí ficaria bem rematada, sem
que se lhe notasse descontinuidade. A Frederica, se pousava de or-
dinário na sua imaginação, nela chumbada indelevelmente, não lhe
acelerava o ritmo do sangue. Evocava-a melancólico, como um bem
inatingível, raio de luz que tangenciou o deserto polar de sua vida
com uma promessa e presto se eclipsou esquivo. Se a sorte houvera
sido outra! Se não lhe truncassem o encadeamento da vida! Porque
a liberdade era uma porta longínqua, a tremeluzir baçamente no
cerraceiro da velhice, como uma luzita hesitante na sombra vasta.
Volveram-se os tempos e ele saiu. Ei-lo trôpego, aturdido pelo
ar livre e espaço desempeçado, buscando, em terras longes, o pa-
radeiro da mulata. Por que o fizera? Último anseio pela felicidade?
Atração? Monomania de pobre-diabo um pouco virado do juízo? E
o ar livre o oprimia, o mundo aberto e imenso dava-lhe vertigens.
Talvez lhe passassem pela imaginação cenas de outrora e, permisto,
os sorrisos feiticeiros duns dezoito anos túrgidos de seiva, boleados
em tentações de carne, inspiradores da acre tonteira que o arrastara
ao desvario e ao sangue. Velhas exalações…
1 02 | 103

E trôpego, arrastando a perna, chega, afinal. O sol abrasa. Es-


baforido pousa o bordão e a trouxa, limpa o suor. Que canseiras
de estradas longas!
Antes de bater olha o céu e o arredor. Não tem pressa. Fere
fogo, remexe a cinza do cachimbo e chega a isca. Devassa outra
vez o arredor e o céu puxando a primeira fumaça. Ainda arqueja.
Que estradas sem fim! Que mundo imenso! O pensamento ler-
deia-lhe com as baforadas indolentes. Bambo, acocora-se, cra-
vando os olhos hipnotizados numa volta da estrada coruscante
de luz. Revê a prisão, o carcereiro de sorriso amável, os ou-
tros sentenciados. Boa gente! Sentira deixá-los. O coração ainda
apertava-lhe a essa nova ruptura do encadeamento de seus dias.
Ia encetar uma terceira existência, ele que se contentaria com a
embriaguez da primeira ou com o tédio sonolento da segunda.
Má coisa, o recomeçar!
Enfim, repousa na derradeira etapa; e, daquela soleira terminal,
como dum píncaro sobranceiro, aprazia-lhe olhar ao longe o cami-
nho andado e balancear as fadigas retrospectivas. E, assim, queda
largo tempo. É com esforço que resolve reentrar no presente. Er-
gue-se a custo e dá “ô de casa”.
Chegando do fundo, Frederica assoma à porta.
— Boas tardes.
— Boas tardes.
Ela entreabre a cancela e espera, de pé, no limiar. Ele observa-a
em silêncio. O silêncio demora-se. Por fim rompe-o:
— Vacê é a Frederica?
— Sou.
— Eu sou o Lourenço.
Recai o silêncio. Observam-se longamente.
— Entra.
Frederica escancara a cancela, dando-lhe passagem.
— Senta.
Apresenta-lhe uma tripeça, indo acomodar-se no toro do pilão.
Continuam a observar-se mudamente. Ela, primeiro, quebra a mudez:
VIDA
OCIOSA

— Antão vacê é o Lourenço?


— Sou.
O sentenciado atiça o fogo do cachimbo e recomeça a baforar.
Seu pensamento também bafora, em visões esparsas. Era a mesma
necessidade de relançar, ao cabo da jornada, o caminho feito. Sentia
uma grande calma, o sedativo bem-estar de quem chegou e pode,
afinal, espairecer. Mas a vida sabia-lhe amarga. Precisava confor-
mar-se. O que a gente se ilude, sequestrada entre grades! Cá fora
também a roda do tempo não para de girar. O mundo, para seguir
seu curso, não espera trinta anos a libertação de um qualquer Lou-
renço. Seu pensamento flutuava, de reminiscência em reminiscên-
cia. Coisas antigas!
Grita de crianças, no terreiro, chamou-o à atualidade.
— Vacê mora com homem? — perguntou.
Com o Martinho. Tenho onze “famílias” dele.
A vida sabia-lhe amarga. Havia mudanças. Não lhe haviam de
embalsamar o passado, imutável, aguardando os trinta anos. A roda
do tempo girava igual em toda a parte, e em toda a parte a vida
revezava seus cambiantes aspectos, em agregamentos e desintegra-
ções. Invadiu-o então um grande cansaço.
Bamboleando a custo o corpanzil anafado, Frederica tirou o coa-
dor do arco, espetado na parede. O condenado seguia-lhe os movi-
mentos; viu-a enxaguar o pano, assoprar as brasas arrefecidas, ajei-
tar a chocolateira no borralho, depois sentar-se na taipa, à espera,
sem desprender os olhos das brasas, que a fascinavam.
O pensamento de Lourenço esvoaçou frouxo, para a prisão.
Revia o carcereiro, de sorriso amável, bom homem. Envelhecera
na faina e o mister lhe não empedernira o coração. Longas prosas
tiraram ambos, separados pelo engradado da porta. O tempo fize-
ra-os amigos. O Sr. Pedrosa, que assim se chamava, poupava-o na
faxina e facilitava-lhe a venda de seus artigos de trançador, ofício
aprendido na cadeia — o que procurava o encarcerado compensar-
-lhe com a prestação de pequeninos adjutórios. E a cada momento
reciprocavam-se desses miúdos obséquios que, mesmo impalpáveis
1 04 | 1 05

e ínfimos, firmam a amizade, sem a onerar com o compromisso


de obrigações que cativam. Era o Pedrosa, por ter melhor cabeça,
quem fazia o cálculo do tempo a cumprir: “onze anos, dez meses e
cinco dias, Lourenço…”. Uma folhinha animada, impaciente por
não soltar mais prestes os folhelhos, exulando-os ao vento em re-
voada, ao ritmo do seu desejo, para soltar o amigo. Depois a des-
pedida: não houve prantos, mas íntima agonia rebuçada de frases
vulgares. “Você sabe, aqui um criado para o servir.” “Disponha, sem
cerimônia.” “Até um dia!”
E aí começara a odisseia do preso, a angustiosa freima com que
tentava recolher os restos do passado, para com eles recompor sua
existência mutilada.
Primeiro a Frederica. Vagara de déu em déu recolhendo no-
tícias. Tudo vago. “Léguas além…” E, sublinhando esse vago, as
mãos acenavam molemente, significando distâncias sem fim. Fe-
lizmente havia economias. Com parcimônia nos gastos poderia
correr muitas terras. E, ademais, tinha pernas. Meio inchado, e
perro, o andar muito talvez lhe destravasse as juntas e adelgaçasse
a compleição. Provavelmente não seria logo — um mal-andado
em anos, levaria outros tantos a desandar. Era também um modo
de desforrar-se da clausura. E metera-se longânime pelas estradas.
Mesmo pequena, contentava-se com a aquisição do dia, desde que
significasse mais umas braças trilhadas. Assim vai-se longe, embo-
ra arrastando um membro imprestável. Pois trinta anos, infinita-
mente lentos, não passaram?
Jornadeara meses, em rumos incertos. A obsessão das estradas
rubras, coleando infindáveis, tornara-se-lhe dolorosa; era o suplí-
cio perene do eterno recomeçar; a reverberação da luz dava-lhe
ofuscações oftálmicas; os incômodos não melhoravam, antes agrava-
vam-se. Tudo, porém, tem seu termo. Descobrira a mulata. “Adeus,
canseiras de estradas longas!” E, chegando, ao enxugar da testa as
bagas de suor, era como se se despedisse do longo azar que o tolhera
na vida e, depondo a trouxa e o bordão, depunha o passado. Mas as
coisas haviam mudado. Isso é que era mau.
VIDA
OCIOSA

Soerguendo a cabeça, assoprou para o alto uma lenta baforada.


— O Martinho é bom sujeito?
— Bebe, às vezes. Do mais não tenho queixa.
Enfim, a vida é a vida. Cada um tem lá a sua sorte, como diz o
outro, e da sorte de cada um só Deus sabe. É quem ajunta e separa,
trama e destrama. A Frederica parecia remediada a seu gosto dela.
Então encarou-a melhor, analisando-lhe as feições. Estava bem
diferente. E a esse ponto evocou os velhos tempos de namoro.
Viu-a provocante e roliça, na graça dos seus anos floridos. Esti-
mava um colar de grandes contas douradas, que lhe dera ele num
caxambu. Adornava-se sempre com o singelo adereço, cuja cor
fulgente casava bem com o seu colo de âmbar; e, quando ela sor-
ria, brilhavam harmoniosamente o seu sorriso e as contas. Furta-
ra-lhe beijos à boca rosada, que lhe sabia a polpa de frutos. Certa
vez, num abraço, sentira contra o peito áspero de cavador o suave
premer de seus seios turgentes. O sangue fervera-lhe aos borbu-
lhões, incendido de desejo. Era rapariga de virar a cabeça e fora
má sorte do outro vir cobiçar-lhe a criatura. O que tem de ser!
Mas tudo, velhos casos. O passado, passado.
Desligou-se da recordação. Todavia, uma lembrança puxa outra.
Acudiu-lhe a mãe, já por aqueles tempos velhinha, a bater roupa, e
os manos pequenos. Não vira mais a família e nem tivera notícias.
Na sua memória, porém, vivia ela embalsamada, sempre a mesma,
no mesmo rancho, com as mesmas idades e a vida enquadrada na
mesma paisagem da roça. E vieram-lhe saudades da mãe e dos ir-
mãos. Trinta anos longe! E fora ingrato, poucos pensamentos lhes
dera nesse trajeto de tempo. Tinha economias — iria levar à velhi-
nha um pouco de descanso. Tanto bater roupa na fonte há de dolorir
o braço, inda mais a ela, que sofria de reumatismo. Parecia que ain-
da a ouvia queixar-se das juntas, em frases gemidas, quando o frio
enevoava o ar, acamando geada brancacenta nos campos. Boa mãe!
dar-lhe-ia ele o que economizara, tudo, tudo! não queria um vin-
tém para si. Fariam uma casinha de telhas no lugar do rancho velho
e haviam de morar juntinhos.
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Já ansiava pela chegada. Mas uma dúvida doeu-lhe no coração:


trinta anos!
— Vacê, tome café.
Frederica apresentou-lhe uma tigela fumante. Para si aparou
noutra vasilha, sob o bico do coador suspenso da parede. Beberam.
Ouvia-se no silêncio o gluglutar espaçado dos goles. De longe vinha
vozearia de crianças, garrulando.
Lourenço depôs a tigela e reatiçou o cachimbo.
Trinta anos! Os irmãos pequeninos, que via como um bando
trêfego a derriçar pitangueiras, estavam já homens maduros. Talvez
nem todos fossem vivos. E a pobre mãe, que deixara de cabelos
algodoando-se de velhice… Mas onde quer que houvesse farrapos
do passado, cumpria ir recolhê-los, em romaria piedosa, para ver se
do acervo esparso reconstituiria um simulacro de vida. Era alheio
aquele lar onde pensara repousar, apenas sofrendo em retrospecto
mental as canseiras sentidas: nele não podia acolher-se. Era vomita-
do dali como o fora da prisão, em cujo vegetar achava mais suavida-
de, que naquele jornadear sem paradeiro. Era mister seguir avante.
Procurou entrever os dias vindouros. Tremeluziu-lhe outra vez na
imaginação, numa fulgência doce, a casinha materna. A velha, os
irmãozinhos… Mas a fulgência desbotou. Tantos anos de permeio!
Invadiu-o de novo um tédio infinito. A vida pesava-lhe.
Cumpria, porém, partir. Ergueu-se penosamente.
— Antão, adeus.
— Adeus, Lourenço.
A custo deslocou a perna enferma, buscando a porta. A incha-
ção, agravando-se, punha-o opresso. Era um mal-estar, um sibilo no
peito… À soleira, defendendo a vista, sondou a estrada, assuntando
concentradamente, como se sondasse o futuro. Lonjuras infinitas,
sol escaldante, o impreciso além…
— Adeus — repetiu.
— Adeus, Lourenço.
Guardou o cachimbo, retomou a trouxa e o bordão, e afastou-se,
trôpego, paciente, rebocando a custo a perna enferma, como um
casco desarvorado, sem rumo, toando ao léu…
VIDA
OCIOSA

Crescite et multiplicamini

Às nove horas senti fome. Foi quando me avizinhava da fazenda da


Paineira, de sô Quim Capitão. Conhecia vagamente o velho, que
vivia entrevado, com a ciática. “Bom ponto de almoço”, pensei. “E
de repouso também, pois a cachoeira ainda dista uns três quartos.”
A fazenda era um casarão achaparrado, com capacidade para
aposentar um corpo de exército. Circuitavam-na culturas em aban-
dono, que se asselvajavam em capoeirinha. Ouvia-se o trapejar de
água a cair e o rumor de um moinho, trabalhando.
Ao ranger a porteira do curral, saiu afobado da fazenda, ao
meu encontro, um homem dum olho furado. Soube depois que se
chamava Sontonho.
— Veio buscar o fubá do Totó? — gritou-me ele, a plenos pul-
mões, chegado a meio passo de distância.
— Não senhor; eu…
— Você então é o camarada do Zaeca? — secundou semelhante-
mente, espichando o pescoço para reconhecer-me.
— Também não! Eu…
A esse ponto enxergou-me gravata e colarinho, e disse, desco-
brindo-se:
— O senhor desculpe, eu vejo pouco. Veio buscar fubá?
— Não! Desejava apenas, se não incomodo, descansar um pouco
e almoçar, sendo possível.
— Decerto que há de ser possível! Uma quarta só?
— Como lhe dizia, não vim precisamente para isso…
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Aí Sontonho fez da mão porta-voz e berrou-me na concha


do ouvido:
— Meio alqueire?
Larguei a rédea e fugi para a máscara da fazenda.
— Trouxe saco? — gritou ainda ele, no ouvido do cavalo.
Não sei como findou o diálogo, que foi longo, a avaliar pelos
brados que soavam para os lados da porteira.
Bati e introduziram-me no quarto do velho. Sô Quim Capitão re-
costou-se na almofada para conversar. Estava escanifrado, de olhos
fundos, muito nos cambitos, desenhando-se-lhe a ossatura aciden-
tada sob a colcha de retalhos. Um bentinho untuoso aninhava-se-lhe
entre as falripas do peito descarnado e a cabeleira branca arrepelada
dava-lhe ares de Jeová em fúria, a deitar maldição.
Depois que me identificou e reconheceu, pediu notícias do povo
do Córrego Fundo e da cidade. Quis saber da guerra, da crise e abis-
mava-se de tudo, como se a fazenda fosse uma ilha deserta, e ele,
Robinson. Detinha-se, às vezes, num esgar de dor e contorcia-se
no catre, onde seus ossos secos estralejavam, como varas dum feixe
mal-atado. Depois, acalmado de súbito, pedia desculpas da pausa,
e recomeçava a “especulação”. Fazia-me repetir as coisas duas, três
vezes e dar de tudo explicações miúdas. Era um anseio de saber, de
inquirir e um regalo das notícias sabidas, que por momentos esque-
cia os estortegões dos nervos gritadores.
Arrancaram-me do seu quarto para o almoço.
— Fique aqui hoje! — disse ele. — Viroca, manda as meninas
desarrear o animal.
As “meninas” eram três filhas bobas, cobertas de molambos, e
com farrapos de saias até os joelhos. Malgrado meus protestos, pas-
saram as três para o curral.
O almoço já fumegava em terrinões claros, altos como monu-
mentos, na mesa da varanda. Espantava-me de tanta iguaria numa
casa aparentemente despovoada, quando começaram a concorrer,
de todos os cômodos, os numerosos membros da família. Eram uns
homens barbaçudos, de olhar palerma, ainda remelados de sono, e
VIDA
OCIOSA

de andar desconjuntado; e eram bojudas figuras de mulheres, mais


ou menos matronas, de ar atarefado de galinhas chocadeiras a cuidar
dos pintos. Não havia braço sem cria. Os ventres boleavam-lhes,
em competência de fetos; a primeira empinava o embigo, já nos nove
meses; na segunda espinoteava o filho já viável; e, em todas, as proe-
minências, mais ou menos acentuadas, assinalavam as fases várias da
gestação. A essa vista afigurava-se à gente estar na matriz inicial do
orbe terrestre, ponto de difusão das raças.
Cumprimentei a todos e a todas, aturdido de tanta cara nova. Só
mais tarde consegui rotular cada uma com um nome e destrinçar o
mesclado parentesco. Havia ali um Tavico, uma Zoca, Bié, Biela, Car-
rinho, Viroca, Bastião, Tintina, Cocota… Apareceu também Sonto-
nho do Olho Furado, que se mostrou muito meu amigo e me convi-
dou a sentar a seu lado.
— O fubá está pronto — avisou-me.
As três bobas, de volta do curral, passaram para os fundos, carre-
gando os arreios. Essas serviam, almoçando depois na cozinha.
O pasto foi suculento e o pantagruelismo generalizado dos
convivas dava-me por sugestão um apetite que raiava o esgana-
mento. Comia-se muito e depressa. As três bobas, atarantadas, nun-
ca sabiam bem a quem acudir primeiro; e se não serviam presto, era
uma saraivada de epítetos:
— Ó saranga, a caçarola da fritada!
— Que pamonha! há ques tempo ’tou te pedindo o revirado!
Era incrível o que aquelas bocas, enormes como furnas, se em-
bastiam de mantimento. Os homens não proseavam, com o tento
nos terrinões e a se vigiarem de esguelha, prontos para a ofensiva,
no caso de saque de algum bocado precioso. Se ia alguém espostejar
um frango, as queixadas paravam de mastigar e os olhos convergiam
terríveis para a travessa, a fiscalizar o operador; rateada a ave em
quinhões equitativos, recomeçava em torno da mesa a mandibula-
ção interrompida.
Cruzados os talheres após as repetições do estilo, foi cada um
servido de uma pratarrada de leite com angu; ao cabo chupei os
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bigodes, como os demais, para aclimar-me aos novos costumes. Se-


guiu-se café com bolinhos. E eu já estava tão bem assimilado àquela
companhia que em seguida obliquei como todos um olhar inquisi-
dor para os lados da cozinha, a ver se apontava ainda alguma coisa.
Após razoável espera, convictos de que havia acabado a refeição,
cada um de nós se apossou de alguns punhados dos bolinhos rema-
nescentes e dispersamo-nos. Os varões, refartos e bambos, retira-
vam-se, na maioria, para os seus aposentos.
Por desencargo de consciência fui espiar meu animal. Vendo-o
desarreado e a comer milho, invadiu-me um grande desânimo de
continuar a viagem.
— Não tem nada que olhar para o cavalo — disse-me D. Viroca,
que me observava —; papai já disse que hoje o senhor fica aqui.
— Impossível, minha senhora!
Demonstrei-lhe por mil razões, qual mais convincente, que ins-
tava seguir minha viagem; primeira — era juiz e não estava em fé-
rias; segunda — viera em animal alheio, que devia restituir à tarde;
terceira… quarta… milésima…
Ela calou-se, convencida, depois de opor-se muito, e mui ama-
velmente; eu, porém, cedera apenas à mania dos considerandos,
pois estava inclinado a bater pouso naquela mansão que me quadra-
va tão bem; por isso, foi com espanto que ela me ouviu pedir umas
chinelas, quando esperava agradecimentos e despedida. Ordenei às
três mudas que me aprontassem um banho com salmoura, requisitei
um terno de brim do Totoca e uma camisa sem goma do Sontonho
e espapacei-me, por fim, regaladamente, na marquesa de volutas da
sala de jantar. Estranhei somente que apenas me dessem para com-
panhia três canzarrões de colmilhos brilhantes, Nimrod, Piquete e
Danúbio, cujas boas graças conquistei com um punhado dos boli-
nhos enceleirados e que eu tivera o cuidado de baldear aos bolsos
do terno de brim. Estranhei — mas depois compreendi que havia
ali hábitos arraigados a tolerar e respeitar.
— Por que não vai para o quarto de papai, dar uma prosa? —
disse-me D. Biela, passando.
VIDA
OCIOSA

Respondi-lhe que estava bem e deixei-me ficar. E as horas cor-


riam nessa doce inação. Quando o silêncio me pesava, retinha ao
pé de mim o primeiro que passasse pela sala e fazia-lhe perguntas,
inquirindo do pessoal e do parentesco, pedindo pormenores, como
contagiado da inextinguível curiosidade do velho paralítico, eu que
sempre procurei desinteressar-me do que se passa sobre este plane-
ta tão pouco interessante. Talvez a esfrega do cavalo me tivesse en-
sinado uma vez por todas a não descurar das pequeninas coisas que
convém saber e a supersaturar-me da ciência das insignificâncias
importantes. E só então começou a fazer-se luz em meu espírito,
sobre a intricada genealogia e correlatividade do pessoal da fazenda.
Aprendi que sô Quim Capitão era pai do Carrinho, casado com a
Saninha. Estes geraram o Tavico, casado com a Tintina de olhos sapi-
roquentos. Carrinho, filho de sô Quim e pai do Tavico, tivera fazen-
da e terras. Quando casou o Tavico, pôs-lhe negócio de gêneros na
cidade. Em dois meses o casal comeu o sortimento e o filho levou a
mulher para a roça, aonde ia “ajudar” o pai. Aí ele e a Tintina gera-
ram uma porção de filhos e filhas… Na fazenda paterna já estavam
outros filhos “ajudando” o Carrinho. O eufemismo encobria desem-
prego e dava recacho para enfrentar de cabeça alta os maldizentes.
Em poucos anos todos de parceria comeram a fazenda e as terras,
e foram para a Paineira “fazer companhia” ao velho entrevado. Che-
gando aí o sistema solar do Carrinho, composto de sol, planetas
e satélites, já encontraram na fazenda outros sistemas solares, que
todos rodavam em torno de sô Quim, que era uma espécie de ponto
fixo desse novo universo. Tal união tornava-se edificante e levava os
fazendeiros das cercanias a exclamar, apontando-os como exemplo:
— Família unida como a de sô Quim, eu nunca vi!
Havia, sim, congraçamento, e o mútuo desejo de prestar servi-
ços. Se ali estava a família da Cocota, era para esta fazer companhia
a sá Tuda, perto das dores; quando a Tuda “desocupasse”, seguraria
a Cocota, que também estava muito “pesada”; e, livres as duas, não
podiam desamparar a Biela, que já tinha enjoos e vágados; e nesse
gangorrear de panças ia passando o tempo.
1 12 | 11 3

Malgrado tanta companhia, mirrava-se na soledade de seu quar-


to o venerando tronco daquela proliferação copiosa. Dali mesmo,
esteio sólido da fazenda, administrava os pastos de aluguel, principal
fonte de renda. Seu braço direito eram as três bobas, “guerreiras”
para o trabalho; trindade inseparável, iam todo o dia, simétricas,
para o eito; roçavam, plantavam; e ainda cozinhavam, lavavam, com
os três pares de pernões em perpétua exibição, sob os farrapos dos
saiotes. Braço esquerdo era Sontonho do Olho Furado, que cuidava
do fubá com uma dedicação sem igual; impaciente, numa freima de
mania, vivia da fazenda para o moinho e do moinho para a fazenda,
um pouco desperdiçadamente, porém, pois seus sentidos avariados
o faziam andar um pouco mais do que o estritamente necessário;
tanto era que, empurrasse uma criação a porteira do curral, lá saía
com a chave do moinho na mão, muito apressado, perguntando:
— É p’ramorde o fubá? Trouxe saco?
E, sem atentar mais, nem esperar resposta, enveredava diligente-
mente para a engenhoca.
Com exceção do Bié de barba comprida, frases sentenciosas e
músculos dignos do guatambu, que passava os dias no terreiro, ca-
pão da pintalhada, a fazer carrinhos para as crianças, os outros va-
rões reservavam-se para a reprodução da espécie, mister de mais
nobre alcance. Viviam pelos quartos, derreados da faina de procriar,
a refocilar os órgãos trabalhados em intermináveis sonecas repara-
doras. Apenas deixavam, estremunhados, os leitos prolíficos, à hora
das refeições.
Essa inércia geral ia-me ganhando, de sorte que eu não deixava o
sofá de volutas da sala de jantar, o qual, à noite, me servia de leito.
Aquela atmosfera de langue despreocupação antolhava-se-me como
sumo bem e único modo de vida razoável. Quantos dias encalhei ali,
como Aníbal em Cápua, integrado na família de sô Quim Capitão
na qualidade de satélite avulso? Nem sei. Em certas disposições de
ânimo devolve-se o tempo unido, como uma sombra que perpassa
lentamente e sem fim, sem repartições de dias e de noites. Não era,
todavia, totalmente feliz; acabrunhava-me a vaga consumpção dum
VIDA
OCIOSA

Adão solitário, que boceja no meio da perfeição do seu Paraíso,


sentindo pesarem-lhe várias costelas sobressalentes.
No meu sofá, saboreava-me do silêncio e da penumbra do am-
plo salão de jantar. O mulherio atropelava-se ao longe, na cozinha,
inventando quitutes; dali vinha um afastado chiar de panelas, casca-
lhadas, exclamações joviais. Em cabides de pau embutidos nas om-
breiras, canos para o alto, pendiam espingardas presas pelas correias
e buzinas retorsas, que sonorizavam o silêncio com recordações de
caçadas. O alto relógio secular contava os segundos, e tempos a
tempos batia nasaladamente horas frouxas. E, naquela estagnação
de sombra e mudez, produzia ecos sonoros a tosse do velho, aos
fundos, ou a carreira de algum dos canzarrões de guarda, únicas
almas vivas que a espaços a animavam e que, em demanda da co-
zinha, onde iam pedinchar os sobejos, levavam tempos a vencer o
varandão, desesperando a gente de vê-los chegar ao cabo do imenso
cômodo. A intervalos, uma alegre alarida: são os quitutes que vêm
em bandejas e travessas:
“Senhor doutor, corá? Pipocas, senhor doutor?” E às vezes mi-
lho ou batatas assadas, ou talhadas de moranga. Tomo às mãos
ambas meu quinhão, já espertado pelo apetite; e em seguida o
bando esparcela-se pelos quartos, onde os machos, estrouvinha-
dos, granjeiam com os petiscos um precioso reconforto para a
substância fatigada.
E os dias eram todos assim parecidos…
1 14 | 1 15

A cachoeira

Enquanto reino sobre meu sofá como único e indisputável senhor,


a vida parece-me amável; mas o velho piorou e o curandeiro que o
trata veio arraigar-se a meu lado, refugindo do enfermo, cuja loque-
la interrogativa não se compadece com sua veia filosofante. Se meu
vizinho fosse um ser inofensivo, eu poderia tolerá-lo; mas o homem
fala, fala, fala… Procuro dispersar-me; numa fuga de atenção anali-
so-lhe a cabecinha ruiva de formiga e orço-lhe trigonometricamen-
te a proeminência do nariz pontudo; minha atenção, porém, resvala
para a perlenga ininterrupta e eis-me de novo a ouvi-lo:
— É como lhe digo — sou carimbamba por muito fuçador e
querer saber coisas que não me competem. Sou peneireiro, fazedor
de pilão, de colher de pau e de gamela, e devia ficar só nisso, porque
é como lá diz: “Quem é mão não faz pé” e “Quem nasceu pra ca-
chorro há de morrer latindo”. Pois eu, o senhor sabe, não tive prin-
cípio nenhum; o pouquinho que aprendi foi escutando aqui e ali e
conversando com os entendidos, que eu, Deus louvado, sei pôr-me
no meu lugar. Às vezes sou poeta e gosto de especular os médicos;
foi assim que, pedindo uma explicação a um deles, do que me disse
compreendi que a saluva é a graxa do estamo. Guspir é um vício.
Veja as criações, que não gospem. À proporção que a saluva vai
marejando na boca, a gente deve engolir, porque assim ela vai de-
senvolvendo pra dentro e não faz falta para a digestão. Creio que é por
isso que meu estamo é bom. Aquilo que caiu dentro dele, vara. Como
de tudo. Só não gosto de caça de rabo, porque é parente de cachorro. E
como, sempre que meu estamo pede. Numa comparação: um moinho,
VIDA
OCIOSA

se tem milho na moega, vai moendo; se não tem, azanga. Assim


também o estamo: é preciso ter nele sempre alguma cousinha pra
não trabalhar em seco.
Abundei na mesma opinião e o meu interlocutor prosseguiu:
— Sou peneireiro e lavro madeira, mas não tenho mais tempo
pra dar ao ofício; são muitos os doentes e vivo da casa deste pra
daquele. Ainda agora… ainda agora…
Veio esta repetição porque comecei a abstrair noutras coisas
e o homem o percebeu. Com o segundo “ainda agora” ele exigia
que me fixasse na sua exposição. Concentrei-me a escutá-lo e
ele continuou:
— Ainda agora venho de trás da serra, onde fui ver um compa-
dre com um berne arruinado; e dei volta pelo Engenho, por causa
duma esporada de mandi na mão do Zé Vicente. Aí estão duas doen-
cinhas que parecem de nada e ameaçam levar os doentes. Dou mais
por sô Quim Capitão, que não é homem de ir assim entregando a
palha com a rapadura. Esse é dos antigos, a vida nele está mais agar-
rada. Porque hoje, senhor doutor, com a descoberta desses vapor
e desses automóvel, a gente anda mais depressa, mas também vive
mais depressa. Tudo vem mais cedo, até a morte. No meu tempo
criança começava a adentar depois de um ano; hoje, com cinco,
seis meses… Antigamente as criancinhas nasciam de olhos fecha-
dos, feito cachorrinho; só os abriam no fim de oito dias; hoje tudo
nasce arregaladinho e esperto, como se já entendessem as coisas.
Sô Quim é duro, não vai assim em dois arrancos. Se me atendesse,
eu o punha bom, porque doença que entra com a friagem, cura-se
pelo sistema antigo, com tártaro em folha de laranja; se o estamo
não aceita, a gente põe uma chave na mão, pra não vomitar; no dia
seguinte, sangria, pra força da doença sair; depois, qualquer cordial
cura. Enfim… enfim…
Sofreou de novo minha atenção erradia, prosseguindo:
— Enfim, se faz bem ou mal, não seguindo meus conselhos, só
Deus sabe, porque tudo neste mundo é o destino. Eu, na minha
compreensão, senhor doutor, acho que Deus criou o mundo com
tudo o que é necessário para nós, e deu, a cada um, um destino.
1 16 | 117

Veja, numa comparação, uma gata que acaba de parir. As mamiqui-


nhas são umas coisas de nada, umas berruguinha que a gente custa
a enxergar. Se der, cada uma, meia colher de leite por dia, é o mais.
No entanto, os gatinhos, quando nascem, a mãe vai ficar deitada, e
eles vão fuçando no pelo da gata, até dar com as berruguinhas. Du-
rante dois meses só vivem daquela miséria de leite. E assim mesmo
ficam gordos, lustrosos. Que é isso? É o destino. Noutra compara-
ção… noutra comparação, senhor doutor…
— Arreiem já meu cavalo! — ordenei às três mudas, que passavam.
Arreado, despedi-me, montei e fugi.
E foi assim que num dia de sol quebrou-se o encanto e pude des-
pegar-me daquela deleitosa mansão.
Toca para a cachoeira. Receei recomeçar experiências para pôr o
animal em andadura aceitável; por seu lado, também receoso, ofe-
receu-me ele o acordo de um galope macio que, jubiloso, aceitei.
Carrascais de candeias tortas bordejavam agora a estrada, inter-
poladas de ásperos pés de fruta-de-lobo. Não temesse eu melin-
drar a montada, apearia para colher gabirobinhas do campo, que
recendiam convidativamente da orla do caminho. O chão arenoso e
declivado pouco empapara a água caída nos últimos dias, que decor-
reram num chuveiro pertinaz. A aragem era fresca e o sol, doce; e,
contrastando a penumbra de meu prolongado encerro, sorria-me a
natureza o melhor de seus sorrisos.
Aqui e ali fugiam roscas do rio, que carregava águas barrentas.
Às suas margens multiplicara a vazante espraiados tranquilos, que
cintilavam ao sol. Já audível, o rumorejar da cachoeira encorpava-se
a cada passo avante; era uma cortina de sons que se erguia numa
nesga do horizonte e que, em pouco, alastrando, ganhava todo o
circuito da paisagem, estrondejando compactamente.
Meto-me por um trilho que se desgarra da estrada, em direitura
da cachoeira. Cruzo pedestres, já de volta, com sacos e jacás atesta-
dos de peixe. Conversam gritando como surdos, para fazerem-se ou-
vir. Avisto por fim, constringidos entre paredões de rocha, os rolos
de água, despenhando-se. São os degraus em que a torrente rabeia,
fustigando o leito, como serpente assanhada a encrespar a cauda
VIDA
OCIOSA

nervosa. Muita gente: homens nus, ou com tanga, ou só de calças,


munidos de toda a sorte de utensílios de pesca, ou outros objetos
momentaneamente adaptados a esse uso — balaios ou coadores na
ponta de bambus, guarda-chuvas, balaios sustidos nas mãos, peneiras,
redes ondeantes como bandeiras, na extrema de varas longas.
A torrente despeja-se aos fluxos e refluxos. Quando a ondada
passa, pulam os peixes em cada poço, inumeráveis, projetando-se para
o ar, a despedir chispas de prata dos corpos retorsos nervosamente
enovelados e vibráteis. E aqueles aparelhos visam todos colhê-los no
salto. Se recresce o rolo líquido, aquieta-se o peixe um momento,
esperando que passe, para, em cada socalco, entre o esfervecer dos
borbulhões tumultuosos, recomeçar o seu projetar incessante, que o
caipira compara a pipocas arrebentando. Abaixo da cachoeira, onde
o caudal se rebalsa e retoma a majestade de seu curso lento, a água é
torva, quase negra; e, ao olhar que lhe escruta a profundeza, essa ne-
grura revela-se feita de cardumes de dorsos escuros, que esfervilham,
evolucionando processionalmente no bojo dos remansos, esperando
o seu turno de lançar o salto. Lembram correição de formigas, faixas
migratórias de gafanhotos, perpassando inumeráveis. Lateralmen-
te derivam fios escassos, delgadas fitas que traçam sinuosidades no
lajedo, fazendo escala em caldeirões cavados na rocha. Esses filetes
que mal umedecem a pedra, são o varadouro dos peixes ínfimos, dos
embriões de polegada para menos, que sobem, miniaturas de peixes,
por aquelas miniaturas de rio. Nos caldeirões enxameiam aos milha-
res, negrejando em espirais — simulacro de nebulosas movediças,
que são, em vez de formigamento de astros, um rebolir de germens.
Sobem como vermes, reptando, e aos pequeninos arrancos; e, nas in-
tercadências dos estos, que estancam os exíguos manadeiros, aderem
ao limo, expectantes, em formas glutinosas de sanguessugas.
Por toda a parte é a obsessão do peixe. O ambiente tresanda a
peixe podre. Ao andar, patinham os pés numa lama mucilaginosa de
peixes esmagados. Nas mãos, nas vasilhas, aos montes na margem, há
o contorcionar epiléptico de formas prateadas. Só se vê peixe e só se
pensa em peixe. É a luta sem tréguas declarada aos pobres viageiros.
1 18 | 119

Onde os esquece o homem, caçam-nos seriemas, socós, marrecas,


espécimens sem conto de parasitas do rio.
— Pode ser belo — mastiguei —; mas monótono e repisado
como uma descrição de Zola. Havendo satisfeito uma velha curiosi-
dade, eis-me enfarado, com a saciedade da posse. Isto me confirma a
cômoda filosofia…
Está visto. Agora, rumo da cidade. Já míngua ao longe o trapejar da
cachoeira. Desobstruídos daquele som e daquela vista, meus sentidos
se deixam impregnar da suavidade da hora. É um dia precioso, tocado
discretamente a ouro e repassado do perfume do assa-peixe branco,
cujos capulhos recendem às margens da estrada. Meu animal chouta
inteligentemente. Já diviso, espapaçada e imensa, a fazenda da Painei-
ra, que dormita no silêncio dos vastos campos, alheada da vida, num
infindável coma de gestação.
Quando fronteio o curral, ouço berros e a porteira rechina, dando
passagem a alguém, que nesse dia viu demais. É Sontonho do Olho
Furado, com dois sacos na mão.
— Sô doutor Félix! — grita estentoricamente.
Tive um arrepio de terror. Se a tentação vencia, e me ia esquecer
de novo ali, outra temporada! Enrijei minha vontade com a evocação
do curandeiro terrífico.
— Pois o fubá, Dr. Félix! Não é que já ia sem ele?
— Ora, Sontonho! não é preciso… Até outro dia!
Piquei de esporas, ou, mais propriamente, de calcanhares, tentan-
do fugir; mas, implacável, meu amigo travou solidamente do freio.
— Neste saco — disse e apontou — está sua encomenda: meio
alqueire; neste outro, mais meio, que lhe dou como lembrança de
amizade; porque — não é por estar em sua presença — fiquei gos-
tando muito do senhor.
— Obrigado, Sontonho… Mas, co’os diabos! não hei de levar
isto comigo.
— Pus em dois sacos para fazer um picuá — explicou a criatura.
E, malgrado minha relutância, depois de atar, uma na outra, as
bocas dos sacos, atravessou-os na cabeçada dos arreios.
VIDA
OCIOSA

— Então, como não quer portar, boa viagem — disse ele.


— Adeus, Sontonho.
E, dando aos calcanhares, afastei-me precipitadamente.
Agora já não me corria a viagem tão bem. Sentindo o acréscimo de
peso, o animal rezingava, socando-me com um trote duro e ameaçan-
do-me com várias acrobacias. Eu deixava-o ir, encolhendo-me na sela,
para evitar movimentos que irritassem o bucéfalo. O que não parava,
eram os sacos. Sacudidos daqui pr’ali, batiam-me em compasso os
joelhos, polvilhando-me de branco as calças.Tive a ideia de largá-los à
beira da estrada; mas receei consequências imprevistas, dado o gênio
incerto e esfogueteado da montaria. Achei melhor deitar fatalismo. A
viagem, com aqueles sacos, já estava, por sem dúvida, prevista na mi-
nha página do Livro do Destino.Todavia, se assim me vissem a recovar
fubá, eu, o juiz municipal do termo! — receei.
Se viram! Comecei a cruzar gente da cidade. O médico, acudin-
do a um chamado. Os irmãos Faria. A família Gonçalves. A família
Guimarães. Diabo! Todo o povoado se baldeava nesse dia para outra
parte. Cruzou-me o meirinho, um advogado. Santo Deus! Mais duas
famílias… Agora o interminável cortejo de um casamento: um cava-
leiro, dois, três, vinte, trinta… Santa Bárbara!
Uns cumprimentavam-me, todos observavam-me obliquamente,
a maior parte ria-se sob capa, cochichando entre si o que quer que
fosse. A face, esbraseando, ardia-me. Suava. E com o suor o corpo
pinicava-me, dando-me uma coceira infernal, principalmente no fio
da espinha, no ponto exato onde as mãos não alcançam. Um estirão
deserto — graças a Deus! — e a fazenda do Córrego Fundo.
Apeio, tiro os sacos e entro pisando duro, para desemperrar
as pernas.
— Ô de casa!
— O Dr. Félix! O homem sumido! — exclamam os velhos.
— Sim, meus amigos! Mas que reaparece com um presentinho
para siá Marciana!
Entrego-lhe a sacaria. E assim liberto-me, radiante, do picuá de
má morte.
1 20 | 121

Dupla surpresa

— É como lhe digo, sô doutor: a linha da divisa passa por esta cova,
a vinte braças de um óleo pardo; por aqui vai descendo…
E o dedo do meu jurisdicionado ia descendo por um papel sujo,
esboço de mapa, de dobras rustidas de velhice.
— Sim, sim! Já me disse isso; mas não posso, absolutamente,
dar opinião; procure um advogado de sua confiança, exponha-
-lhe o caso…
— … vai descendo, até esbarrar no corgo do Zé Elias. Aqui
faz um bico…
Levantei-me, impaciente e pus-me a passear, agitado, pelo es-
critório. Forte maçada! Precisando ir ao Córrego Fundo e aquele
estupor a moer-me a paciência, com a história infindável de seus
litígios! Se o não despejei vinte vezes pela janela, é que me comovia
a humildade paciente com que acolhia meus frenesis. Desta vez ain-
da emudeceu, com o papel sujo estendido sobre a perna, à espera.
— Pois vá, vá perguntar a um advogado o que quiser. E olhe,
tenho serviço, não posso atender ao senhor toda a vida.
Malgrado estas palavras ásperas, meu consulente continuou
incrustado na cadeira.
Recomecei meu passear agitado, buscando divertir o pensa-
mento. Sobre a mesa vi, dobrado, o papel azul recebido de manhã.
Um doce calor de júbilo filtrou-se-me no espírito. Senti-me feliz.
Mas uns gordos autos de embargos, que avultavam logo adiante,
esfriaram-me consideravelmente a alegria. Diabo! Tanto atraso no
VIDA
OCIOSA

serviço… Os prazos findos rabujavam em minha consciência lenga-


-lengas intermináveis, atassalhando-me de remorsos.
Afastei essa vista importuna e voltei-me para o gramofone. Era
uma velha máquina, preciosa, que, de empréstimo em emprésti-
mo, se desgovernara desoladoramente. Mas o último empréstimo
dera-lhe virtudes raras, muito de meu agrado. Mesmo sem disco
tocava músicas de Wagner, ricas de estrépito. Desloquei a mola e ele
começou. Primeiro foi um roncar surdo de tempestade que cresce;
súbito desencadearam-se trovões rolantes de mistura com guinchos
inexprimíveis. Em seguida amainou e pôs-se a piar e a ringir com
um acento tão animal, que bulia nas fibras do coração. Foi nesse
ponto que bateram palmas à porta.
— Senhor doutor, licença para três! — exclamou uma voz de velha.
— Oh! que boa surpresa! — retruquei, correndo ao encontro
dos meus amigos do Córrego Fundo.
Era a primeira vez que os via na cidade. Viviam tão consigo e
ilhados na sua pobreza, amavam tanto seus hábitos tranquilos, que a
novidade quase me alarmou.
— Pois aqui estamos! — disse o velho Próspero, entrando. — E
especialmente para ver o doutor.
Recebi-os jubiloso.
— Um homem solteiro morando sozinho num casarão destes! —
admirou-se siá Marciana.
Mostrei-lhes o interior da casa, a cozinha, onde o meu moleque
queimava sistematicamente o feijão, a horta afundada em ervas al-
tas; depois levei-os ao escritório, onde acendi o fogareiro de álcool.
— O senhor também é meio cozinheiro — gracejou siá Marciana.
— E faço questão de que me conheçam a força.
Ofereci-lhes cadeiras, nas quais silenciosamente se sentaram.
Notei algo de estranho em meus amigos. Raras frases proferiam,
como se os ganhasse uma grande preocupação e, a miúdo, trocavam
olhares de inteligência, que me intrigavam.
Notei ainda que o Sr. Próspero vestia a sobrecasaca de grande
gala. Muito deveriam ter-se alarmado as borboletas de minha
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porteira! Pronunciei algumas palavras para puxar palestra; elas,


porém, congelaram-se no silêncio dos três. Trocaram, a esse pon-
to, novos olhares significativos.
Então o Sr. Próspero levantou-se solene.
— Américo — disse —, dê-me os óculos.
Os óculos! Era grave. O velho só os punha em circunstâncias
excepcionais.
Ajeitou-os atrás das orelhas e, voltando-se de novo para o filho:
— Américo, dê-me a caixinha.
Recebeu das mãos do filho um pequeno volume embrulhado
em papel de seda e amarrado com uma fita; e, voltando-se para
mim, começou em voz pausada:
— Senhor doutor, nós temos contas velhas que ajustar. Faz al-
guns anos que o senhor nos dá o prazer de frequentar o nosso
rancho. Lá o recebemos, não como hóspede e sim como filho. No
entanto, o senhor — e aqui brandiu o indicador ameaçadoramen-
te — de cada vez que nos visita deixa um pacotinho de pratas,
como se lhe cobrássemos nosso feijão. Nunca nos recusamos a re-
cebê-las, para pô-lo mais à vontade; secretamente, porém, cons-
piramos uma vingança, isto há meses, há anos, esperando que não
a levasse a mal.
— Mas… — ia-me eu defendendo.
— O senhor é muito orgulhoso — e o dedo brandiu de novo —,
muito mesmo, por isso, como não queria nosso feijão, também,
orgulhozinho de pobres! não queríamos as suas pratas. Se tivés-
semos recursos, nossa vingança seria fazer-lhe um belo presente;
não sendo isso possível, eu, notando que em seus dedos faltava
alguma coisa, disse à prima: “Vamos juntando as pratas da hospeda-
gem (senti nas faces o grifo da palavra) e lhas devolveremos sob a
forma de um anel. Se não aceitar como devolução, receberá como
brinde de amigos”. E aqui está, senhor doutor Félix, a vingança
dos seus piraquaras…
A estas palavras abriu o estojo e estendeu-mo. Era uma joia
belíssima, deitada sobre veludo, tendo no aro as insígnias da
VIDA
OCIOSA

justiça. No engaste, uma grinalda de brilhantes chamejava à roda


de sanguíneo rubi.
— Que beleza! — exclamei, examinando o mimo —; a lição
foi boa — castigaram-me o orgulho. Mas os senhores estão também
mareados deste pecado…
— Nós? — e os velhos admiraram-se.
— Decerto. Castigaram-me por não aceitar seu feijão. Precisam
de castigo por enjeitarem minhas pratas…
— O caso não é o mesmo — protestou Próspero.
— É, sim — atalhei. — A minha desforra, porém, será imediata.
Depus o estojo na mesa e, tomando o papelucho azul, entreguei-o
solenemente a Américo, dizendo:
— Senhor professor, aceite meus cordiais parabéns!
Américo leu — tremeu-lhe a mão, tremeu-lhe o beiço, ficou
pálido e sem fala; e súbito atirou-se sobre mim, estreitando-me
convulsivamente:
— Ó senhor doutor… senhor doutor…
Estava um tanto teatral, mas era sincero; mais do que eu que, em
vez de rejubilar com o seu júbilo, divertia-me com a situação, que
me obrigava a atitudes de quinto ato. Essa coisa tão importante para
Américo, para mim pouco significava, pois, criar uma escola rural
no Córrego Fundo e nomeá-lo professor, não fora êxito em que
despendesse grande esforço, graças a certas facilidades de ocasião e
ao influxo de prestantes intermediários.
Enquanto Próspero arrancava o alvissareiro telegrama das mãos
de Américo, tartamudeava este que nunca ousara esperar que se
realizasse um dia o seu sonho secreto. E, lançado em contrastes de
sentimentos, ora irradiava, felicíssimo, ora turbava-se, duvidoso
dos seus próprios méritos, achando a tarefa muito grande para
seus ombros frágeis.
— Duvida, Américo, duvida bastante, meu amigo — filosofei —,
que as realidades mais doces são as que saem das dúvidas mais amargas.
Inteirados por sua vez da nova, os velhos ficaram uns instantes
sem voz, como o Américo; depois, identicamente, tremeram de
mãos e lábios, e abraçaram-me, e exultaram, e duvidaram — o que
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me ensinou que os lances da vida são muito parecidos, duas alegrias,


pelos modos, assemelhando-se entre si como duas gotas d’água.
Mas a máquina, roncando, anunciou-nos pronto o café. Ser-
vi. Bem salgada pareceria a bebida a Próspero, tantas lágrimas
nela misturava!
Passamos largo tempo juntos. Prometi ir à fazenda no dia seguin-
te, para orientá-los sobre as formalidades da nomeação. À saída foi
um não acabar de mútuos agradecimentos.
Retiraram-se, por fim.
Tornado ao escritório, retomei o estojo e contemplei melancoli-
camente a joia coruscante de rebrilhos, calculando comigo o quanto
de privações e amarguras se condensariam naquela cercadura chis-
pante e naquela gota de sangue vivo mineralizado. Em vez da festiva
alegria com que os pobrezinhos contavam, com que aperto de cora-
ção eu recebia a sua dádiva!
E considerei a joia, longo tempo, absorto, até que uma voz
cava, saída de algum ponto misterioso da quadra, veio subitamente
despertar-me:
— Como lhe dizia, sô doutor, aqui a divisa faz um bico. Ao
depois a gente garra corgo abaixo tuda vida, até o angico do
pasto do João Juca…
GODOFREDO RANGEL

A FILHA
ROMANCE

A FILHA
GODOFREDO
RANGEL
A FILHA

La fixité de la personnalité dépend uniquement de la constance du milieu.


Dès que ce milieu subit un changement, les équilibres des éléments de la
vie mentale se dissocient. II en résulte, chez le même être, la naissance
d’équilibres nouveaux et, par conséquent, d’une personnalité nouvelle.

LE BON
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A loucura de amar

Das alegrias e desventuras idas o que a memória conserva nem


sempre é o essencial. Fotógrafo negligente, apanha ao acaso os ins-
tantâneos com que forma o álbum de imagens do passado de cada
um. De um amigo querido que perdemos, de uma cena antiga que
profundamente nos comoveu, fica-nos muita vez, como lembrança,
um gesto apenas, um sorriso, uma atitude. A representação mental
não vai além. E esses traços ligeiros tornam-se figurações alegóricas
daquilo que um dia nos fez gozar ou sofrer.
Certas épocas felizes fixam-se destarte num ponto de luz em
nosso espírito, como, no céu, um ponto luminoso também resume
a imensidade de um mundo.
Quando Sálvio evocava o período em que sua felicidade culmina-
ra, via, sempre, mentalmente, o mesmo quadro: um quarto claro,
pela manhã; através das vidraças, pouco além, um trecho de muro,
onde grimpavam roseiras florescidas; e, rente ao muro, Leila, um
lindo serzinho branco, em seu roupão também branco, colhendo
rosas para as floreiras da sala.
Cada vez que procurava ter a representação mental de sua felici-
dade, era sempre o que via: o dia limpidamente a filtrar no quarto,
e Leila, o muro, os festões das roseiras… Ainda mais (a fotografia
era sonora) — ouvia a canção que a esposinha chilreava, com sua
voz docemente velada, mais velada ainda a soar através das vidraças
descidas. Esse gorjeio amortecido dava-lhe a impressão da distân-
cia. Era como se Leila estivesse longe, ao cabo do mundo… Sentia
A FILHA

saudades, e seu olhar dizia-lho se ela casualmente se voltava. Leila


então sorria-lhe, feliz de sentir-se adorada por aquela alma toda sua.
E buliçosamente prolongava o martírio da espera, sabendo que mais
doce tornaria o momento do regresso.
Colhidas as flores, entrava. Ouvia-lhe Sálvio o piso leve na areia
do jardim, e, depois, no interior da casa.
Oh, o rumor de seus passos. Que música deliciosa aquele tique-
-tique miúdo, de seu andarzinho ligeiro, que a levava como num
voo feliz! Enlevado, ele se concentrava a ouvi-lo, pois aquele som
pertencia a ela, era também ela e por isso o seu ouvido queria-o
todo, avaramente, sem o desperdício de uma vibração.
Girava a maçaneta e Leila entrava, numa irrupção de vivacidade
e alegria, mostrando-lhe a colheita de corolas orvalhadas:
— Vê, Sálvio! que lindas!
Ele dizia-lhe:
— Que linda és tu, meu amor!
Cingia-lhe o corpo branco. Sentia-a toda fria, contra si, rorejada
também de orvalho, como uma grande flor matinal.
Ela oferecia-lhe as rosas para que as beijasse. Seu rosto sorri-
dente emoldurava-se na braçada florida. E era a boquinha ridente e
esquiva, mimo de graça, que o seu beijo buscava.
E as rosas desfolhavam-se. Choviam pétalas no leito e no
tapete. E Leila, em lindo amuo, contemplava seu pobre rama-
lhete destroçado…
Tivera outros momentos de ventura, mas nenhum se lhe impri-
mira na memória com a mesma nitidez de visão desta cena tantas
vezes repetida; empastamento de imagens… o impreciso… né-
voa… névoa amável, que através dos tempos ainda lhe impregnava
a imaginação com o saudoso ressábio das venturas passadas. Oh! a
felicidade não se entesoura; flor de um dia, colhe-se no presente; e
ao colhermo-la, toda ela arde intensamente e nesse flamejamento
se consome. Restam depois cinzas, saudade…
Na felicidade dele estava sempre Leila. Amava-a tão agudamente,
que o assaltava de contínuo o receio de ver fugir sua ventura. “Minha
1 30 | 131

felicidade causa-me pavor”, dizia-se, tentando analisar os próprios


sentimentos. “Sinto-me criminoso de um crime que desconheço,
como se houvesse culpa em ser feliz. Será vedado à alma humana
atingir os cimos da felicidade perfeita? Infringe assim o seu destino?”
Ou talvez — refletia anos após — o infrator fosse ele apenas. Nas-
cera predestinado ao sofrimento e instintivamente pungia-o a culpa
de resistir a esse pendor fatal.
Amava-a com exaltação de demência. Muita vez, tendo-a entre
os braços, cingia-a violentamente, em frenesi incontível, como se
quisesse reter uma ventura fugidia. E parecia-lhe ser incompleta a
posse. Magoava-a… E Leila fitava-lhe uns olhos de muda exprobra-
ção, sem compreender-lhe tumultuoso amor.
O excesso de sua ventura, por absurdo contraste, chegava a tor-
ná-lo infeliz. Nessa dúvida sem causa, nesse recear inexplicável,
sombreava-se-lhe o espírito. Como o criminoso, tomado de horror,
vê, em tudo o esgar agônico da vítima, também em seus momen-
tos de ventura erguia-se-lhe diante o espectro misterioso de uma
desgraça iminente. E embora a evidência o desmentisse, pressentia
ante si o resvaladouro fatal, que o levaria despenhado, de transe em
transe, ao abismo da dor sem intermitência nem limites.
Em desvairada ânsia de posse queria Leila integralmente sua, em
cada ato, em cada pensamento; queria-a fora do mundo objetivo,
como um pensamento nascido em seu espírito e que apenas vivesse
em seu espírito. Tomava zelos de tudo. E, quando no segundo ano
de casados lhe nasceu Noeme, chegava a senti-los do amor que ela
dedicava à filhinha. E ai! este sentimento mau ia mais tarde infligir-
-lhe remorsos cruéis.
Compreendia o que havia de excesso nos próprios zelos, que
sobrepujavam seu desejo de ser razoável. O país em que sua pai-
xão nascera confinava por todos os pontos com o impossível. Seu
irreflexivo sentimento de poderio sobre ela, de domínio absoluto,
nunca o teve o senhor mais despótico sobre o escravo mais humil-
de. Para exercer esse ilimitado império queria que Leila fosse um
objeto que se pudesse ocultar do mundo, retirar da vida comum,
A FILHA

para que vivesse nele e para ele exclusivamente. Desejaria cercar


sua felicidade de todas as precauções como à princesinha malfada-
da os pais receosos de que se cumprisse o vaticínio da fada má.
Se pudesse, ergueria entre ela e o mundo as paredes graníticas de
uma prisão, tão altas, que do mundo apenas se avistasse, muito lon-
ge, onde pairam as nuvens altas, um pequenino retângulo azul. E
nessa prisão far-lhe-ia esquecer tudo o que vivera, tudo, até seus
pensamentos mais castos de menina inocente. Toda sua! Como uma
Lorenza magnetizada, sob a hipnose de uma inextinguível paixão,
a iniciar, desde essa amnésia, um novo ciclo de existência mental,
só para ele, oclusa a memória para o que fosse lembrança diversa,
toda ela voltada para a ideia fixa, para ele, para seu amor, totalmente
sua, cada parcela de seu corpo, cada vibração de sua sensibilidade,
até o esvoaçar efêmero do mais sutil pensamento. Em verdade: o
impossível delimitado em todos os pontos por outros impossíveis.
Era uma loucura amorosa que o enervava, uma como demência lú-
cida, porque bem reconhecia quanto tresvariava; a razão, vencida
pelo sentimento, embalde repetia-lhe que cada qual apenas aqui-
nhoa uma parcela da existência do ente amado; cada ser vive a frag-
mentar-se, a dispersar-se como um aroma; a beleza, a graça, todo
o encanto da mulher, é um trescalar sutil que se irradia. Quantas
vezes o fito de uns lindos olhos não põe um tumulto na alma daque-
le em quem negligentemente pousaram? E a modulação de uma
voz doce, que ouvimos proferir uma frase vulgar, não instila, como
a música, enlevo e turbação? E tanto basta para endoidecer o ze-
loso. O amor extremo aspira o irrealizável, e, por isso, infelicita,
sentindo a cada momento a própria imperfeição. Como seria bela
a completa fusão das almas, sonhada pelos românticos e pelos mís-
ticos! É o amor real pequena coisa, tosca e incompleta, feita para
contentamento da animalidade rudimentar. Toda a grande paixão
é um relâmpago de demência, é a revolta do homem contra a sua
humanidade. Nasce votada à morte. É o relumbrar de um grande
clarão que prestes se extingue.
À proporção que corria o tempo, mais se avolumava essa infeli-
cidade, nascida de sua grande ventura. Embalde ele perguntava-se:
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“Por quê? Leila ama-me…”. Rebuscava atentamente a causa do seu


sofrimento e não a descobria. E nem com isso lograva modificar seu
estado de ânimo.
Certo dia, em um livro, deparou-se-lhe esta reflexão: “Em todo
o amor correspondido há um que ama a outro que se deixa amar”.
Este pensamento caiu-lhe talhante n’alma, despertando-a, num so-
bressalto para a evidência. Não se esclarecia tudo? Leila amava-o,
sim, mas seu amor, certo era a própria paixão dele, Sálvio, que irra-
diava para ela, iluminava-a e volvia restituída a seu foco de origem.
Os grandes amores não fazem mais que amar a si mesmos. É a his-
tória de Pigmaleão… Têm eles poderosa força de contágio. Assim
veria o sol, pela própria luz iluminada, a ronda fria dos planetas.
Refrangência de luz… corrente induzida… sombra gerada pelo
corpo, eco gerado pelo som.
Leila amava-o… mas em seu amor havia unicamente a passivi-
dade de uma alma que se abandona. E na inércia de seu sentimento
não poderia um dia germinar a semente do fastio? Ele já pensava en-
trever, em seu olhar tão lindo e meigo, como um desmaio de tédio,
a embaciá-lo. Receava perdê-la, e este receio já era talvez a intuição
da verdade e por isso se lhe tornava em vivo sofrimento, objetivan-
do-se em zelos absurdos. Mas a verdadeira causa de sua infelicidade
não poderia encontrar-se em nítidos motivos. Ainda estava em ser,
toda em pressentimento, vaga intuição, nesse como senso divinató-
rio que será porventura a secreta comunicação das almas.
Em uma noite inesquecível ele, com a supervisão dos zelosos,
teve a impressão viva do afastamento de Leila. Sentada ao piano,
suas mãos corriam o teclado, negligentemente. Sob os dedos ágeis
nasciam os compassos de sua berceuse favorita, tão modificada, po-
rém, que era como se ela improvisasse, aprazendo-lhe, não repro-
duzir a inspiração alheia, mas embalar-se em cadência e em harmo-
nia em relação com o ritmo secreto de seus sentimentos. Além da
alma do compositor, habitava a música a alma dela. Modificavam-se,
uma e outra, completavam-se, num sentimento comum e podero-
so. No lânguido correr das mãos sobre as teclas, exprimia-se um
A FILHA

anseio que ousava, hesitava, esmorecia, numa agonia de incerteza e


desalento e volvia, impetuoso, numa onda de desvairamento, para
quebrar-se ainda num estranho e surdo queixume doloroso como o
de um ser sepultado vivo nas entranhas da terra. Naqueles sons har-
moniosos estava veiculado o que quer que era do recesso da alma,
que se não pode exprimir em palavras; eram a expressão simbólica
dum sentimento recalcado que asfixia e que, assim expresso numa
linguagem de sons, desoprime da angústia inenarrável, conservan-
do o segredo; ou seria a expressão de sentimentos informes, em-
briões indecisos, apenas esboçados no íntimo, além da percepção da
consciência e já imperiosos perturbadores.
Leila embalava-se na cadência lenta da música, tocando-a inter-
minavelmente. Sálvio contemplava-a absorto. Via-lhe sobre as ma-
deixas negras o branco nascer das espáduas, parecendo manar do
fulgor leitoso de seus ombros a luz branca que iluminava a sala;
fitava-lhe os braços pulcros, que em movimento harmonioso acom-
panhavam a cadência da música. Tão harmonioso que o objetivo do
compositor parecia ter sido apenas criar-lhes o ritmo silencioso. A
cabeça flectia-lhe em imperceptível cadência e o corpo, erguendo-
-se do mocho como capitosa flor humana, obedecia também, ligei-
ramente, ao ritmo suave. Sálvio, suspenso, contemplava-a. Para ele
o maior gozo não era tanto ouvi-la, porém vê-la tocar. Arrastava-o
uma invencível necessidade de adoração. Era preciso esforço para
dominar-se, conter o ímpeto de interrompê-la violentamente, ar-
rebatando-a ao piano em loucura de amor; e quedava-se imóvel,
sofreando o seu desejo, sentindo que ceder a este era uma sorte de
profanação… Porque via-a transfigurada; não era Leila, mas enti-
dade excelsa, superior à humanidade, alta e pura como uma ideia,
a manifestação de um ideal de beleza. Era a Mulher, poderosa dis-
tribuidora dos destinos humanos, realizando inconscientemente sua
divina missão de seduzir.
E essa noite Leila entregava-se com mais abandono ao embalar
da música, à harmonia monótona e melancólica que brotava de
seus dedos e parecia morrer e renascer de si mesma, como fonte
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inexaurível de sons; repetição indefinida dos mesmos trechos, que


lembrava o eterno suceder-se dos insignificantes acontecimentos
da vida. E arrebatada pela linguagem dos sentimentos perturbado-
res que pela primeira vez encontravam expressão, Leila, tocando a
harmonia interminável, gozava como um langor nascido num mo-
mento de volúpia e que prolonga indefinidamente a persistente me-
mória da sensação esvaída.
Sálvio sentiu-o… E seu enlevo, essa noite, tornou-se, pouco a
pouco, tortura incomportável; zelos encapelaram-se-lhe n’alma em
maré tumultuosa… zelos do artista morto que concebera aqueles
sons venenosos e sua cadência hipnotizante, e que vinha do fundo
do passado trazer a Leila a morbidez de seus sentimentos, seduzin-
do-a para aquele consórcio subjetivo; zelos de todo o incompreen-
dido que pulsava na harmonia letal.
E a música expirou-lhe sob os dedos. Leila ainda se quedou
um tempo suspensa… Por fim tornou a si e fremiu, em sobres-
salto, ao sentir-se de novo no ambiente real. Volveu o olhar em
torno e seu olhar encontrou o de Sálvio. Que estranho brilho
ele surpreendeu-lhe no fito das pupilas! Era como a revelação
de misteriosa febre que lhe devorasse a alma. E certo que se ela
própria então se perguntasse “Que sinto?” reconheceria surpresa
que não o saberia dizer.
A Sálvio foi como se naquele momento ouvisse o fragoroso des-
moronar de sua felicidade. Mas Leila ainda fitava-o sorridente…
E seu olhar fascinou-o e seu sorriso atraiu-o. Avizinhou-se dela, e,
trêmulo ainda de emoção, cingiu-lhe o corpo. Inclinou-se para a
fascinadora, rosto contra rosto, imersa a cabeça sob as suas madei-
xas soltas, aspirando-lhes o olor acre e feminil. Estando assim, es-
quecia o sofrimento. Junto a Leila, era como se fizesse das mãos
conchas, e, curvo sobre o Letes, bebesse a água do esquecimento.
Agora, na alma dele, que se anulara, apenas estava Leila. Embebe-
dava-o o esquisito aroma de flor que se exalava de seus cabelos, de
seu corpo branco, como se no sangue lhe ardesse um raro incenso
cuja fragrância lhe filtrasse na pele sedosa e quente. Sentiu-se ébrio,
A FILHA

tomou-o uma vertigem de amor, que lhe enfebrecia os nervos,


como um tóxico violento. Era feliz. E compreendia então que o
destino o encadeara àquele grande amor, que o arrastaria após si
na vida, inelutavelmente, quebrantado e inerte como uma coisa…
Depois, quando a lufada de loucura passou, Sálvio recaiu no seu
estado de sofrimento. Volveram exacerbados, os ciúmes atrozes. E
desse dia em diante odiou o piano, por onde se comunicavam com
Leila as almas perturbadoras do passado. Ela é minha, minha, dizia
em seu imperativo sentimento de propriedade. Quero-a toda, “cada
átomo do seu corpo, cada vibração de sua sensibilidade”. Se o ciúme
for avareza, como o disseram, sinto-me o mais mesquinho usurário
que nunca existiu.
“É um sentimento absurdo, raciocinava ainda, uma exaltação
mórbida que terá capítulo próprio num tratado de patologia. Devo
ser um demente. Como as moléstias são o exagero ou a atenuação
dos fenômenos comuns, minha loucura será a intumescência absur-
da dos sentimentos e pensamentos normais.”
Desejaria curar-se… mas então era o nadador exausto que a
onda afastou da praia; quer voltar, mas a onda arrasta-o para mais
longe, mais longe ainda. Levava-lhe a alma o turbilhão que arre-
batou Francesca, e, nesse turbilhão interno, seu querer era pluma
leve, poeira, fumo… Via como os catalépticos, reduzidos a espe-
táculo de si mesmos. E, se a razão ainda o iluminava, era, em sua
impotência para dirigir, a fim de mostrar-lhe, sob luz mais viva, a
desordem interior.
E o invencível sentimento enleava-lhe cada dia mais uma espira
de seus cíngulos fatais.
Tinha, no entanto, seus momentos de pausa. Um nada aplacava-o;
a voz de Leila, o perfume de seu corpo, seu passo leve… Aclarava-
-se-lhe a vida. Enchia-a alvorada sobrenatural. Mas súbito, impetuo-
samente, renascia o desespero. Este era como um monstro satânico,
que o elegera vítima de um lento sacrifício. Nos momentos de calma,
sabia que a emboscada estava próxima. Sua alucinação corporizava-o,
fazia tangível. Era uma forma sinistra que lhe espreitava os passos e
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os pensamentos, prestes a colhê-lo, a cada instante. Ignorava onde o


encontraria: se no jardim, no leito, no gabinete de trabalho… Mas
sentia-a, à Forma Horrenda, quando ela se aproximava. Como que
a ouvia descerrar as portas, que não lhe punham vedação. Anuncia-
va-a estranho arrepio de pavor. Avizinhava-se… O horror avolu-
mava-lhe n’alma, encrespavam-se-lhe os nervos. Fugir? Mas como?
E súbito sentia-se empolgado. E, presa da figura apavorante, todo
ele tremia, convulso, no paroxismo da raiva impotente. E, então,
caoticamente lhe tumultuavam no espírito as imaginações torturan-
tes, os sofrimentos absurdos, os ciúmes atrozes, obumbrando-lhe a
lucidez mental…
— É demência, repetia-se, pura demência…
Mas o conhecimento da moléstia não tem eficácia curativa. E sua
escravização cada dia se tornava maior.
Leila também parecia sofrer. Tinha o desalento e a tristeza de
uma alma em desterro. Como que a realidade das pessoas e das
coisas que a cercavam se apagava para sua sensibilidade e esta apenas
reconhecesse Noeme, a filhinha pequenina. Sálvio desejaria saber
que estranho mal a consumia e lhes matava a felicidade, aumentando
sem cessar a distância que mediava entre ambos. E angustiadamente
perguntava-lhe o que a fazia sofrer. Receava que a amasse menos?
Humilhava-a a mediocridade de sua condição, ou a sua pobreza?
“Que tens?”, insistia ansiosamente.
Ela, forçando-se, entressorria melancólica e murmurava: “Nada”.
Outras vezes seus lábios sussurravam um esboço de resposta que
não chegava a precisar-se em palavras; e alheia e esquecida, perdia-
-se de novo em seu viver remoto.
Para ter a intuição do mal ignorado, Sálvio analisava-lhe os cam-
biantes da fisionomia dolente. Seus olhares enfocavam-se para ela
em estranha fixidez, como se quisessem penetrar-lhe o interior do
espírito. As pupilas, coruscantes, dilatavam-se, na imperiosa neces-
sidade de adivinhar. Embalde. Quanto mais pertinazmente lhe fixa-
va as pupilas viperinas, que cresciam como as de um intoxicado de
beladona, mais a visão se empastava e panejavam os véus da indeci-
são e da dúvida. E o mistério permanecia imperscrutável.
A FILHA

A alegria de Leila expirara-se. Fora sua vivacidade de passarinho


feliz. O piano, mudo, recolhera-se em si mesmo, como alguém que,
cansado de viver, se introverteu em meditação. E, para Sálvio, sua
forma sinistra, na penumbra da sala, era a de um monstro saciado
que dormia. Não soavam mais na casa as endechas que lhe penetra-
vam tão fundo o coração, e raro se ouvia no pavimento o tique-tique
sutil dos sapatos de Leila. E desfeita e branca, envolta em seu rou-
pão alvo, passava as horas na sala, reclinada num divã, tendo na mão
um livro que seu olhar desatento não lia. Sua expressão era de estar
lendo através daquelas páginas, ao longe, no infinito. Seu rosto não
exprimia êxtase, como Sálvio o surpreendera ao executar a música
perturbadora e sim um anseio que afinal esmorece em desalento.
Mesmo perto de Sálvio, era como se estivesse só. E seus lábios de
rosa a esmaecer em neve apenas se entreabriam, espaço a espaço,
para murmurar: “Que tédio!”.
“Mas não haverá um meio de volver a felicidade perdida?”, per-
guntava-se Sálvio. “Não a conheceremos mais?”
E, para aplacar a sede de ventura em que se consumia, fechava
os olhos e evocava o passado de amor. Via o trecho de muro branco
quase ao alcance da mão, via os festões de rosas. Através das vidraças
claras entrava o albor da manhã e o canto esmaecido. O estalido da
tesoura cortando as hastes, o pisar levípede na areia… Tempos que
pareciam ir longe! Mas a lembrança da ventura passada, ao invés de
aplacar-lhe a sede ardente, mais a apurava… E um sinistro pres-
sentimento dizia-lhe que a felicidade não tornaria mais. Ele e Leila
foram dois astros cujas rotas se roçaram numa encruzilhada do céu
e que depois divergiram, a distanciar-se sempre… como se a força
que orienta os sentimentos houvesse analogias com as leis da gra-
vitação que a seu sabor cruzam e descruzam as órbitas, não se lhes
dando da saudade que porventura deixem os astros que passaram.
Leila como que jazia adormecida por um sortilégio fatal. As
lembranças de seu amor não lhe reavivavam na alma a emoção
extinta. E Sálvio, em palavras candentes de paixão, tentava des-
pertá-la do letargo.
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— Amo-te tanto — dizia-lhe —, que nem sei como cabe esse


infinito na estreiteza de uma alma. Minha paixão por ti é uma des-
sas dádivas totais, como as faziam os ascetas à sua divindade; sin-
to-me teu até à mais pequenina parcela de meu ser. Minha paixão
está sempre dentro de mim abrasando-me como uma flama incon-
sumptível e pervertendo-me o senso da realidade; parece um des-
ses mórbus fatais que geram o delírio e exasperam até à loucura
os sentimentos. Quanto mais meu amor é imperioso, mais desejo
anular-me, rojar-me em adoração, beijando-te a fímbria do vestido
e o pó dos teus sapatos. E quanto mais me anulo, sentindo-me uma
coisa, um objeto teu, por absurda contradição tanto mais me ergo
dominadoramente e quero-te minha, como uma escrava. Adoro em
ti uma santidade extraterrena. És uma dessas visitações que fulgem
no êxtase dos místicos, a revelar o céu, e que desejo adorar prostra-
do, a fronte no pó. Tudo o que é teu e tudo aquilo em que tocas re-
veste-se logo a meus olhos de um prestígio sobrenatural. Os frascos
de teu toucador, o pano de teu vestido, tuas joias, figuram-se-me
relíquias preciosíssimas, com as quais o mínimo contato é profana-
ção. Se te acaricio os cabelos, como agora, minha mão branqueia
e treme, como se cometesse um sacrilégio. Não sei como ousam
meus braços cingir-te, como se atreve a macular-te o meu desejo…
Indecifrável dualidade esta que vive em mim — a do justo que se
prostra e adora, e a do demônio, que ardendo num desejo mau,
profana a santidade…
— Ama-me, toma-me — prosseguia ele, e suas palavras eram
como flamas de desespero. — Serei um objeto de que uses para teu
capricho. Sê totalmente minha… Quero haurir toda a vida que em
ti se contém, como se refresca uma sede inextinguível em uma fon-
te perene. Dá-me de novo tua alma que me foge, colhe-a no voo e
traze-a para que nosso noivado recomece. Vejo em ti uma perpétua
noiva nunca maculada, sempre virgem para o meu carinho. Quando
te beijo é sempre com a emoção do prometido que, trêmulo, co-
mete a primeira ousadia de amor. Olha-me, fala-me… Tua voz tem
sobre mim magnetismos sobrenaturais, revolve-me interiormente,
A FILHA

como se cada palavra houvesse virtudes cabalísticas, produz-me um


espasmo de volúpia tão grande, que cuido morrer. Fosse assim o
canto das sereias e não me deixaria amarrar, como Ulisses, ao mas-
tro da nau errante; entregar-me-ia à venenosa harmonia e me lan-
çaria ao mar, vítima voluntária em holocausto à eterna beleza. Mal
sabes o senhorio despótico que exerces sobre mim! Em ti terminam
sempre os ciclos de meu pensamento, como os do justo se fecham
em Deus. És a minha razão de viver. Quando a vida me esmaga e
os inimigos me hostilizam, quando, durante o dia, sinto o amargo
sabor da luta estéril e sinto-me demasiado opresso e prestes a desfa-
lecer, penso em nossa casa, em nossas noites de amor como remate
dos dias de trabalho, e tanto basta para restituir-me a coragem per-
dida. Não sabes, querida, que te amo, que te amo?
Leila fitava-o esmaecidamente, falava-lhe, mas a alma estava ain-
da longe das palavras… se é que não lhe desertara do corpo branco,
deixando-o em postura de estátua do sonho e do desalento.
Exasperava-se a paixão de Sálvio; e, de rojos, junto a Leila, re-
clinada, branca e ausente, no divã, memorava episódios passados:
— Lembras-te quando lias na rede, sob as árvores do pomar? O
resplendor causticante do dia fazia mais suave a sombra e o perfume
das laranjeiras florescidas. Eu vinha sorrateiro, de manso, turbar-te
a quietação da leitura. Vendo-te embebida a acompanhar um enredo
de amor, sentia ciúmes do livro e de seus heróis imaginários. Lias
absorta… E eis que a meio da página mão importuna te vela os
lindos olhos… Não te assustavas, sorrias. Sabias que o impulso de
minha saudade me levaria até junto de ti. Se eras meu exclusivo,
meu constante pensamento! Enquanto te velava os olhos, eu sentia
no côncavo da mão a carícia de teus cílios, que batiam, em doce
impaciência. Tuas mãozinhas afinal não se continham e tomavam a
minha manápula pesada e a arredavam. Que pequeninas e brancas
eram, em contraste com a minha rude mão de homem! Como eram
brancas e frágeis! E bem sentirias, vendo-as assim às três, que na fra-
gilidade de tuas mãos estava o meu destino. Soltavas depois a prisio-
neira, e desistindo de ler, abandonavas o livro. Fitavas-me docemente
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e tuas pálpebras batiam, fatigadas da leitura; e semicerrando os olhos


pedias-me que te embalasse… Ia e vinha a rede em lento balouço…
Entre teus cílios coava-se num desmaio de cor a luz verde das co-
pas do arvoredo. Reacendia o ar e havia um sussurro de abelhas e
pipilos de aves; e as vozes dos insetos e das aves, em surdina, eram
como um perfume de som a impregnar o silêncio. Num langor de
preguiça e de abandono pedias-me que te contasse histórias. E eu
dizia-te as lindas fantasias orientais, com princesas prisioneiras em
altas torres, fadas, príncipes encantados, gênios poderosos e escra-
vizados, que com um aceno fazem brotar do solo palácios de ouro,
carvões que se mudam em diamantes, tesouros sob a guarda de gno-
mos vigilantes…
Tuas pálpebras lento e lento cerravam-se; a magia da hora mer-
gulhava-te a alma num estado intermédio da vigília e do sonho. Flu-
tuavas, no irreal. A realidade fazia-se sonho e o sonho realidade…
Nas copas do arvoredo, semeadas de sol, frutesciam pedrarias; in-
clinadas sobre ti as boas fadas sorriam-te; zumbiam no ar os gênios
serviçais e humílimos… Nos papeios das aves queixavam-se prince-
sas infelizes, que a um aceno da tua mão se livrariam do encanto…
O tom verde do ambiente, eram porventura águas marinhas, vistas
através das paredes de submerso paço de cristal…
Súbito despertavas. Surpresa, vias-me ao pé de ti, de joelhos, a
embalar-te. Meigamente teus braços fechavam-se em meu pescoço
e sussurravas: “És meu palácio de ouro e meu príncipe encantado!”.
Sálvio colhia uma das mãos de Leila e beijava-lha no dorso cetíneo
e no rendilhado da palma; em seguida, revertia às suas evocações:
— E nosso passeio à grota, no seio da grande mata? Era um
recanto selvagem de natureza primitiva e parecíamos os primeiros
humanos a desvelá-lo. A vegetação tinha aí o tumulto desordenado
de uma grande luta silenciosa. Da cólera soberba dos veludos tron-
cos ressumbrava uma impressão de suavidade e paz. Era, no recolhi-
mento, a aparência da calma e da concórdia… E nós hauríamos essa
ilusão até o mais profundo de nosso ser. E eu disse-te: “Querida,
se mil anos se condensassem numa hora, presenciaríamos a pugna
A FILHA

tremenda da floresta; veríamos brotar os ramos como enormes bra-


ços furiosos, atirando a todos os pontos grandes gestos agressivos;
umas árvores a se aprumarem resolutamente, em sede de domina-
ção, outras a se debaterem semiasfixiadas, sem ar e sem sol; outras,
vencidas, amarelecer e secar; e o chão a esfervecer de contínuo,
em ondas sucessivas de verdura, para os novos assaltos ferozes…
Vê esta flexão de galhos e seu estiramento robusto? São punhos
cerrados em braços convulsionados de cólera silenciosa e lenta…
Mas nada podemos contemplar da pugna formidanda. É mui breve
o instante de nossa vida. Por isso, dessa epopeia apenas cai sobre
nós esta paz, esta doçura, acolhendo a nossa ventura… Oh! Leila!
Eu desejaria que tivéssemos a vida lenta das árvores, para fazer mil
anos desta hora do nosso amor!”.
Caminhávamos silenciosos, quase tristes, da tristeza das feli-
cidades profundas, que pela nossa deficiência de expressão se ex-
primem como as dores profundas; mesclada, porém, à minha ven-
tura, em promiscuidade insólita, eu experimentava a opressão de
um grande pesar — o da insignificância do instante da nossa vida,
da pequenez da nossa alma, para conter tão grande amor. Não ser-
mos como os jequitibás, milenários e colossais, não termos, como
eles, o espaço desmesurado e o tempo indefinido, para albergar o
nosso imenso amor!
Subindo a grota, nossos passos perlongavam o regato cujo ma-
rulho se ouvia sob as touças de caetés que lhe encobriam o curso.
Subíamos, e a cada passo a mata se adensava, mais ínvia, e o vale se
fechava, mais sombrio, como se nos encaminhássemos ao ádito de
um templo onde se celebrassem os mistérios de um rito augusto.
Detivemo-nos fatigados no sítio em que o regato, derivando acele-
rado entre pedrouços, se despenhava em pequenina cascata. Era um
recanto aprazível, a que a calma da hora realçava o encanto e fres-
cor; como que a cascata cantava naquele recesso da selva as ende-
chas saudosas em que uma princesa prisioneira se queixasse da me-
lancolia de sua prisão. Entre pedras retorcia-se sua cabeleira alva,
que, ao cair, com argentino fragor, num côncavo de rocha cavada em
142 | 14 3

piscina, emoldurada de avencas e musgos verde-negro, se encrespa-


va em rendas de espumas; daí, aos borbulhões irrequietos se evadia
entre pedras, retomando mais abaixo o exíguo leito que descia a
grota. Estilhas de ouro do sol dançavam no chão com a sombra das
folhas; e, no alto, pontilhado de azul, havia o dossel profundo das
ramas superpostas. Na sombra louquejavam bandos de borboletas
loiras; e era como se as estilhas de sol, ferindo o chão, se mudassem
magicamente em esvoaçantes enxames de ouro.
O encachoeirado rumor não permitia que nos falássemos. Mas
nosso maior prazer era então olhar. Absorvemo-nos em contempla-
ção. Súbito, levada de impulso incoercível, começaste a desatacar o
vestido.Tinhas, porém, pudor e a cada instante as mãos se te retraíam
e hesitavam em revelar os tesouros de carne de teu corpo. Lia-se-te
no olhar o susto de quem vai praticar uma ação má… Fitavas-me de
soslaio… Eu distanciava-me, simulando-me ainda embebido a con-
templar a selva e a água a descer tumultuosa entre pedrouços e fe-
tos. Vendo-me absorto, porventura pensavas: “Ele, em êxtase, só vê
a natureza e nem pensa em mim”. Tolinha! se era possível! Só amo
a natureza em ti e por ti. Ela só é bela e sorridente quando a povoa
o amor. Antes havia ali um vácuo melancólico, uma tristeza severa e
secular, que tua presença encheu de beleza e juventude.
E procurando que te ocultassem as ramas, desfolhavas, em frenesi
assustado, as cassas leves de tuas vestes. Os tesouros de teu corpo
iam branqueando na sombra verde… E ainda hesitavas… E nas hesi-
tações em que te detinhas em teu despir-se harmonioso, eras como
certas músicas que se retardam em pausas para mais vivamente ferir
a alma. Pausas onde ressoam subjetivamente os últimos compas-
sos, como numa lagoa plácida, entre árvores, se retratam as frondes
marginais, em doce prolongamento de ilusão. Lutavam fortemente
o pudor e o desejo… Mas o níveo torçal das águas a desmanchar-se
em espumas seduzia-te, com uma fascinação irresistível… O desejo
venceu. Febril despresilhaste a compilação dos últimos colchetes e
saltaste sob o rolo d’água espumarenta. Então, soando débeis entre
o fragor da cascata, ouvi teus gritos assustados. Tinhas medo —
A FILHA

e ao mesmo tempo sentias o gozo daquela volúpia fria. Malgrado


os acenos de tuas mãozinhas aflitas, que me mandavam afastar-me,
não pude obedecer-te e fiquei a contemplar-te, bela, na piscina de
pedra, onde rendas espúmeas te vestiam a nudez e a água corria-te
sobre o corpo em serpes fluidas. Que encanto! Em cima as ramas
sobrepondo-se até o céu; em torno, as cortinas de folhas entre as
colunas dos troncos; e destacando-se na penumbra, vivo, branco,
como feito de jaspe, o teu corpo impecável. Parecias brotar ali
da espuma como Vênus renascente, para quebrar a fereza alpestre
àquele virgem rincão de mata. Confusa de pejo, como Eva depois
da culpa, retraías-te sob o fito de meu olhar que se paralisara a
contemplar-te. E em tuas espáduas e teu dorso branco, coleavam as
serpes fluidas vestindo-te caridosamente um manto líquido… Mas
de que valeu? Colhi-te em meus braços, quando mal o pensavas,
ao saíres d’água… e nos meus braços barafustaste, fria, coleante
como esquiva náiade surpresa em terra. Escorregadia qual enguia
humana quase escapavas… Mas meus braços implacáveis reapre-
savam-te. Subjuguei-te… Esmoreceste vencida… E meu beijo ar-
dente violentando teus lábios gélidos comunicava-lhes sua flama.
E então sentíamos, entre o olor de musgos e folhas mortas que
impregnava o ambiente, que a sombra se fazia mais doce e mais
acolhedor o verde encantamento daquelas copas, onde mal filtrava
o sol em retilíneas filandras de luz, que, ferindo o chão, se trans-
mutavam em enxames de borboletas cor de ouro… Lembras-te,
Leila, amor meu?
O passado revivia intensamente em Sálvio; e em sua voz expri-
mia-se a paixão enlaivada de loucura… Mas daquela forma branca
reclinada no divã, a alma estava ausente. O sentimento dela unica-
mente via a filhinha pequenina, cujas madeixas acariciava entre os
dedos adelgaçados.
Para Sálvio começou enfim o desalento. Reconhecia a inanidade
de seus esforços. E dizia-se que a felicidade não voltaria mais. Fora
a passageira de um dia. E, malgrado seu tresloucado amor, sentia
não poder vencer o irremediável. A separação crescia sempre, pelo
144 | 14 5

decreto de um implacável destino, que a marcara com o selo do ir-


revogável. Seus ditames eram inquebrantáveis. Vindas do Ignoto, as
trajetórias das duas vidas cruzaram-se num ponto de luz e divergi-
ram de novo para o abismo do Ignoto. Como em pesadelo atormen-
tado, sentia ímpetos de invocá-la, “Leila! Leila!”, para a fazer voltar.
Caía-lhe a ilusão vendo no divã seu vulto alvo, espiritualizado, como
a sombra de um ente humano e ao ouvir-lhe a voz velada bocejar:
“Que tédio!”.
E sua demência não conheceu limites. As ideias mais desvairadas
possuíram-no. E repisava a antiga reflexão: “Humilha-a nossa po-
breza, nossa condição medíocre; mas hei de erguer-me, triunfarei e
reconquistarei o seu amor”.
E abrasou-o uma desmedida ambição. Seu trabalho foi uma luta
corpo a corpo com o destino. Todavia, azar estranho anulava-lhe os
esforços. Tudo inútil… Eram golpes de espada atirados pela insânia
na água fugidia. A espada, em cólera, silva golpe sobre golpe; e a água
ferida fecha-se de novo e corre, marulhando escárnios e risotas.
Sua condição, que era precária, fazia-se dia a dia pior. Nos negó-
cios, os mais simples e os mais lógicos de seus atos tinham sempre
imprevistas consequências de desastre. O que levantava aos outros, a
ele, por estranho contraste, deprimia-o mais. E, certa hora, possuído
pela angústia de nova catástrofe, afigurou-se-lhe o furto, em última
instância, meio lícito de enriquecer. Lançado pela exasperação dos
sentimentos além das raias do Bem e do Mal, para ele já não havia
Moral nem Razão — somente o desespero de seu grande amor in-
feliz. Falsificou um documento. Sua inexperiência, porém, quase
o traiu e a tentativa frustrou-se. “É difícil ser desonesto”, meditou,
“o próprio crime exige um aprendizado que não tenho”. Fora um
irresponsável. A loucura, tomando as rédeas da consciência, despe-
nhara-o cegamente na perdição, pois as consequências dessa tenta-
tiva criminosa iria mais tarde influir poderosamente em sua vida.
Foi quando, adoecendo Leila, sucedeu abrir-se-lhe de improviso
a boca de uma sepultura. Requeimou-a uma febre intensa, que
era como a flama de uma pira votiva em que a oferecessem em
A FILHA

holocausto aos deuses de uma religião feroz. Morreu impassível,


sem que seu rosto um só instante exprimisse sofrimento; exprimia,
sim, cansaço; e, ao expedir o último alento, era como se aborre-
cendo por igual a vida e a morte, ainda sussurrasse: “Que tédio!”.
Apenas teve, ao beijar a filhinha, em despedida, uma única vibração
humana, um triste olhar de piedade — piedade ou arrependimento
de havê-la feito viver.
Aturdido, com a alma túmida de sentimentos violentos, Sálvio
vira-a morrer. Seu sentir compacto enublava-lhe a razão. No fun-
do de seu peito uma fibra dolorida desferia um queixume lanci-
nante, como um grito agudo que se perde no ermo, com o timbre
dilacerador de uma corda ferida em sua maior tensão, num vio-
lino delirante; e ele sentia que era algo dentro de si que também
agonizava — o prazer de viver, talvez.
Leila morreu. E o incomportável sofrimento tomou toda a alma
de Sálvio. Ereto, imóvel, era a aparência de uma coisa esboçada em
forma humana, parecia petrificado pela dor e seu olhar inexpressivo
lembrava as pupilas de pedra de uma estátua.
A espaços, clarões de consciência fulguravam-lhe na noite do es-
pírito, e a noite, após, tornava-se a fazer. Eram fosfenas efêmeras,
que fosforejam e esmaiam silenciosas, nas trevas de uma retina. E,
nesses instantes, traduzindo o que lhe ia no íntimo, em suas pupilas
de pedra acendia-se uma lucilação de loucura.
Ao sair o enterro, não houve contê-lo: acompanhou-o com os
trajos em desordem, o rosto macerado, os cabelos revoltos. Auto-
maticamente andava e imitava o mais que os outros faziam. Às vezes
um frêmito de sensibilidade vibrava-lhe os nervos, mas a impassi-
bilidade volvia e empedernia-o, como ao príncipe oriental tornado
em mármore, pela eficiência de um sortilégio. A anestesia que se
obtém pelo cansaço do sofrimento, também a pode causar o seu
excesso. Naqueles momentos ele sabia, ele via. E estranhos pensa-
mentos de sonâmbulo ocupavam-lhe o espírito. Suas ideias, incoor-
denadas, não tinham seriação lógica; nasciam-lhe como essas vege-
tações de acaso, irreflexivos surtos de vitalidade, que medram num
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interstício de telhado ou entre as pedras da rua. Certo momento


pensava: “Se não houvesse a decomposição dos corpos, eu guardaria
Leila. Vê-la-ia insensível, mas ainda em adoração me rojaria, a seus
pés. Dir-lhe-ia que a amava; relembrar-lhe-ia nosso noivado; e eu a
traria escrava e oculta, como o tesouro de um avaro. Mas os vermes
vão cevar-se em seu belo corpo, que todo se desfará, no horror da
decomposição!”.
Sua exaltação amorosa e seus zelos absurdos sobreviviam a Leila.
Eram como um ímpeto cego que desconhece obstáculos. A morte
sobrevém e o ímpeto transpõe-na, perfazendo a parábola do projétil
lançado. Sua paixão viventíssima, tardaria a bruxulear e a extinguir-
-se. Para seu sentimento, desdobrado da razão e em contraste com
a evidência desta, Leila ainda vivia. O sentimento tem o raciocínio
tardo; guiado pela reflexão é como um louco cego, que um infante
procurasse conduzir.
Na igreja, durante a encomendação, rasgou-se nova aberta de
lucidez na sombra de seu espírito, voltando-lhe uma semiconsciên-
cia da realidade. No silêncio besouravam funebremente as frases do
ritual, enquanto, em torno à essa, os homens graves, expectantes,
eram como estátuas negras em postura solene. Luzeiros de círios
empalideciam a penumbra de manchas de luz mortiça e impregna-
va-se o ar de um aroma tumular, de cera, incenso e flores fanadas.
Jaziam abertos os tampos do caixão. No interior Sálvio apenas
divisava uma almofada de cetim, e sobre ela um tufo de cabelos cas-
tanhos. Seu sentir estava paralisado pelo próprio excesso; atingira o
ápice sobre-humano em que a dor pela própria intensidade se anula,
como essas agudíssimas vibrações de sons que fogem à perceptivi-
dade dos ouvidos. Mas o seu espírito via e compreendia. E, em es-
panto, a contemplar-lhe os cabelos, uns tristes cabelos empastados,
desfeitos sobre o cetim, exclamava consigo: “Ela era mortal!”.
Via-a sempre tão alta, tão soberana, tão senhora de seu destino
e objeto de sua adoração, que a ideia de humanidade e de morte
contrastava absurdamente com essa essência divina. Caía a realidade
como uma surpresa aterradora e colhia-o o pasmo da revelação do
não pressentido segredo.
A FILHA

“Ela era humana e mortal! Um ser frágil, sujeito como eu, como
uma ave, uma flor, às contingências da vida e da morte. Leila, o po-
bre amor meu, também possuía uma alma sequiosa do impossível
e sofria todas as torturas de uma aspiração incontestada. Possuía-a,
quiçá, o mesmo desejar violento e desordenado que morava dentro
em mim. Nosso desesperado e vão anseio eram duas gavinhas cegas,
a enrolarem-se no ar sobre si mesmas, na impotência de um desejo
inatingível. Sonhando o suporte da ventura, buscam-no perdida-
mente, a tatear o vácuo, e, na ânsia extrema, crispam, enovelando-
-as, suas fibrilhas verdes. Ela era humana e mortal!”
A piedade queria viçar na mole anestesiada de seus sentimentos,
como uma flor cujas pétalas fossem retalhos sangrentos do coração.
Mas a inconsciência submergia-lhe de novo o senso do real.
O enterro seguiu. Como meada que se desenrola, saíram, do
basto ajuntamento de homens lúgubres que enchiam a igreja, duas
fitas paralelas que vermiculavam molemente, picadas de luzes páli-
das, para o outeiro do cemitério. Entre elas, como um testudáceo
aprisionado entre duas serpentes e movendo-se com pés numero-
sos, ia um bolo negro, carregando uma coisa sinistra. Nas alas, pin-
celadas de opas rubras, as luzes tristes dos círios morriam na clari-
dade. Plangiam os sinos, cujos dobres lentos se arrastavam em ecos
remorados e quando se calavam, ouviam-se no silêncio atônito galos
roucos cocoricar. Os pés batiam o chão, ritmados, num trovoar en-
surdecido, e as coroas funerárias, amontoadas no caixão, tilintavam,
sacudidas pela marcha dos carregadores.
Sálvio seguia, sonambulicamente, a alma ainda insensibilizada
pelo excesso de sofrimento. Confusos pesadelos povoavam-lhe a
consciência adormecida. Sentia-se, num espanto, como pairando
além-túmulo, num mundo de ignoto horror. A espaços um trovão
surdo despertava-o em sobressalto: eram os pés da multidão baten-
do o chão duro, de envolta com o tilintar metálico das coroas sacu-
didas. Entre as alas o bolo sinistro tangava, como ébrio, avançando
com os seus numerosos pés.
Os olhos dilatados de Sálvio, saindo do horror do sonho, en-
chiam-se daquela realidade de pavor… E o fluxo da inconsciência
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enoitava-lhe de novo o espírito, abafando-o sob seu grande e espesso


manto negro.
E entre os pesadelos horríveis súbito possuiu-o um sonho feliz.
Viu-se numa paisagem refulgente, de matas redouradas de luz. O
sol mesclava folhas de ouro às folhas verdes das copas. Caçada.
Alegre fanfarra de buzinas. Cães corriam lançados como dardos,
numa alarida estrangulada de prazer; e, empós a matilha, bêbedos
de ventura, ele e os outros caçadores precipitavam-se, esporas, fi-
tas, em esfuziantes corcéis. Que perseguiam? Nada… Era apenas
a volúpia vertiginosa do arremesso, que tomara homens e cães,
enquanto as buzinas soavam estridentes. Delirantes de prazer es-
fuziavam sob as abóbadas ouro e verde, naquela corrida sem fim.
Súbito, estacam, pávidos, a um estrondo insólito… E Sálvio des-
pertou ao trovão surdo de centenas de pés reboando no chão duro.
E as fitas paralelas de homens negros vermiculavam, pintalgadas de
luzes e de coágulos de sangue, colina acima, envoltas no crepúsculo
que começava a baixar…
Esta imagem desvaneceu-se-lhe no espírito. E Sálvio sonhou ain-
da. Possuído de uma alucinação via Leila branca, reclinada no divã,
a face marmórea, o olhar perdido ao longe, absorta num ignoto
sonho de felicidade. E convulsivamente suplicava-lhe:
— Ouve-me! Não me reconheces? Fita-me tuas pupilas negras,
para eu sentir-me no interior de tua alma. Oh, quando me amavas,
como se iluminavam num brilho de paixão! Tinham em seu fulgor
sombrio a expressão de uma alma que se concentrou num olhar.
Teus olhos tinham sobre mim o império hipnotizante que possuem
os fascinadores de serpentes. Se mos fitavas eu logo rojava-lhe,
coleando como um réptil, a esmolar o teu beijo. Depois… em-
baciaram-se, porque tua alma fugiu deles. O tédio amortalhou-os
de uma névoa opaca. E agora, se casualmente me fitam, são dois
ceguinhos, não me veem… não me compreendem, como os peca-
dores de Babel que esqueceram a língua nativa e falavam idiomas
estranhos… E, fitando-me, é como se perguntassem angustiados
A FILHA

onde fica a pátria que esqueceram… Olhos forasteiros, olhos tristes


de quem erra perdido longe do país natal!
Sua atitude era de fervor e súplica e todo o seu ser, volvido para
Leila, era deplorativo e pedinte. Mas em sua voz havia o desalento
amargo de quem sabe que implora em vão. E a imagem diafaniza-
va-se, Leila era como uma nuvem insensível e branca, a ascender.
Quanto mais seu desespero a chamava, mais remota se fazia. O es-
paço entre ambos aumentava, aumentava sempre. E a imagem, es-
fazendo-se em névoa, crescia e subia… Via-a, em seu abandono de
tédio e alheamento, alto, muito alto, no terraço de uma torre, que
brotava da terra.
Em desespero ele chamava:
— Leila! Leila!
Estendia os braços suplicantes para a imagem distante. E a tor-
re imensa subia, alargava-se, e Leila no alto era como uma nuvem
branca estirada de um extremo a outro do céu.
— Leila! Leila!
Eram vãos os seus clamores. Sua voz soava sem timbre e as trevas
o envolviam. Oh, ela não o veria, não o ouviria mais!
E ao sopé da torre gigantesca em cujo cimo resplandecia uma
auréola de estrelas, ínfimo e todo voltado para a imagem branca,
Sálvio clamava, clamava sem fim, bracejando perdidamente, na
exaustinada alucinação de um desespero impotente.
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A fuga

Sálvio agora vivia como sepultado sob uma abóbada de chumbo. No


interior eram trevas e silêncio. O doloroso amor, sua única palpita-
ção de sentimento, ainda vivia-lhe n’alma. Morta Leila, sua paixão
por ela perdurava, lançando-se sem objeto no vácuo do não ser.
Tinha a vitalidade persistente de um tassalho de carne fresca, onde
ainda se contrai um resíduo de vida que tarda a extinguir-se. Os atos
da vida comum, exercia-os mecanicamente; as forças inconscientes
renderam-lhe a razão no posto de comando e praticavam os mil pe-
queninos atos tediosos que constituem a vida ordinária.
Não via a filha. Entre ele e Noeme, o pequenino legado que lhe
deixara a morta e que andava aos cuidados dos fâmulos, interpunha-
-se a oclusão de uma catarata mental. Se improviso o despertassem
restituindo-lhe o senso da realidade, tomá-lo-ia um sentimento de
surpresa, vendo a criança. Era mau pai. O amor, quando perfei-
to, exclui a perfeição dos outros sentimentos. É uma hipertrofia da
alma, que se alimenta de todas as funções do ser, tudo transmudan-
do em flama de paixão. Lâmpada custosíssima, nela arde todo o óleo
da vida, num espasmo de voluptuosa agonia.
Nesse supremo paroxismo, consumida pela própria violência,
sua paixão lentamente morria. Mas ai! o amor nunca morre só; ar-
rasta consigo tanta coisa! Deixou-o vivo; Sálvio, porém, era como
as paredes carbonizadas que fecham o vácuo de um edifício que o
incêndio devorou.
Nessa ruína, nesse chão revolto por um cataclismo é que ia bro-
tar, em messe tardonha, o sentimento da paternidade.
A FILHA

O interior de sua casa dava bem a impressão de um lar que mor-


reu. Os sentimentos humanos comunicam-se também às coisas bru-
tas, que refletem sua alegria ou tristeza. Os raios de sol como que
desaprenderam o caminho de suas quadras, onde se espessava uma
penumbra de crepúsculo. Desprendia-se de tudo um olor de mofo
e de velhice e uma tristeza de fim. O piano, em mutismo tumular,
avultava a um canto da sala; mão descuidosa erguera-lhe o tampo e
ele assim permanecera; e, na penumbra, a mancha lívida do teclado
abria um sorrir imóvel de caveira.
O viúvo era ali uma sombra confundida entre outras sombras.
Os servidores mudos, e em piso manso, perpassavam-lhe ante a vis-
ta, como entes irreais. Sálvio não poderia afirmar se eram seres
humanos ou visões da mente enferma. Sentia às vezes a impressão
de ter diante de si um vulto grave a murmurar-lhe: “Coragem. Fi-
cou-lhe uma filhinha… Cumpra seu dever de pai!”.
Ouvia-se também ali a vozita de Noeme, cujos passos erravam
no interior sombrio, ninando o seu grande bebê, a articular uns
sons que imitavam cantigas de adormecer crianças. Às vezes, cheia
de aborrecimento, choramingava; outras, Sálvio sentia o que quer
que fosse a repuxar-lhe o paletó; e, se ia sair retinham-no duas mão-
zinhas teimosas, de que distraidamente se libertava e ouvia distan-
ciar-se, atrás, o chorito da filha que ficava.
Um dia, uma das sombras que deslizavam no interior avizinhou-
-se dele e falou-lhe. O eco de suas palavras surdas dissipou-se, sem
que Sálvio lhes apreendesse o sentido. E a sombra esquivou-se.
Passadas horas, a ama voltou, a insistir: “A menina está doente…”.
Muda, de pé, aguardava uma ordem. Sálvio fitou-a. “Tem febre”,
tornou a ama. Ele reagiu com esforço contra o marasmo. Acom-
panhou a ama até o berço da filha. Noeme dormia. O sono era-lhe
sobressaltado e tinha o rostinho rosado de febre. A camisa branca
tremia-lhe com os batidos do pequenino coração agitado. “Chamo
o doutor?” O pai acenou que sim. Veio o médico nesse dia e nos
subsequentes. À cabeceira da filha Sálvio auxiliava a ama a dar-lhe os
cuidados necessários. A febre, com poucas remitências, persistia. E,
na casa muda, soava às vezes, isocronicamente, o gemido da criança.
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O diagnóstico do médico era hesitante. Todo de expectativas…


Examinava-a meticulosamente, cada dia, a pesquisar a causa da mo-
léstia… A arte não lhe valia. E, certa vez, como o pai lhe reiterasse
a pergunta habitual sobre o estado da doente:
— Nada tem, respondeu. Ou antes, não descubro para a molés-
tia causa material… Tem os órgãos perfeitos.
Compondo os óculos, concentrou-se num sentimento de pieda-
de, pois também tinha uma filha, pequenina como Noeme.
— Não há causa material — continuou. — São saudades da
mãe. Saudades inconscientes. O carinho materno é elemento vital
para os pequeninos seres. É como o sangue que alimenta o feto na
vida gestativa — sangue espiritual, que vai de alma a alma. Mãe e
filho se completam no começo da vida infantil. Há aderências invisí-
veis, uma como xifopagia moral. E a falta da mãe trunca a existência
precária da criança, dá-se como um traumatismo, uma amputação
e o organismo ressente-se… É ao que nós, os grandes, chamamos
saudade… Saudade que se gera automática e inconscientemente,
como uma reação vital.
— E que fazer?
O médico enxugou os olhos. O ofício não lhe empedernira ainda
suficientemente o coração.
— Amá-la, acarinhá-la… Suprir quanto possível a falta insu-
prível… — fez uma pausa. — Carinhos, a menina precisa apenas
de carinhos…
Quando o médico saiu, Sálvio, debruçado sobre o berço da peque-
nina doente, meditava sobre o mistério daquela existência que des-
pontava, daquele gérmen de ser que ficara confiado a seus cuidados
e no qual já residia uma almazinha capaz de sentir tristezas e alegrias.
Com uma primeira vibração a alma do pai despertava da sua letargia
e essa primeira vibração era o remorso. No seu coração lavrado pelo
sofrimento despontava a paternidade. E a pequenina doente, desse
dia em diante não se sentia tão só, porque aquela figura devastada
dia e noite reclinada sobre seu berço, não era somente o enfermeiro,
mas também o pai. Este começava a conhecer as cordas da pequenina
A FILHA

alma, a adivinhar o que lhe dava prazer, adquirindo a divina ciência


que as mães têm intuitivamente, e dava com o carinho o alimento
espiritual, cuja privação rompera o equilíbrio daquela frágil exis-
tência. Melhoras se produziram e em pouco Noeme convalescia. E
era então uma impertinência, a querer o pai constantemente ao pé
de si, a ensinar-lhe a brincar com suas bonecas ou a recortar-lhe em
papel figuras de bichos ou de homens. E Sálvio, encontrando um
fim para seu viver inútil, resolveu dedicar-lho totalmente. Sua alma
estava morta para o que não fosse o cumprimento de sua missão
paterna. Não podendo viver — pensava — devia auxiliar a viver
Noeme. E como um salgueiro, nascido à beira d’água, passa, a vida
toda, penso sobre sua correnteza, sua alma, nascida para amar, in-
clinou-se dessa época em diante sobre a vida daquele pequenino ser,
ficando fadada a permanecer assim o restante de sua existência. E,
numa retribuição miraculosa, quanto mais dava sua vida a Noeme,
mais recebia dela incentivo para viver. Seus olhos, cansados da do-
lorosa introspecção para as trevas de seu íntimo, já se dirigiam para
as coisas exteriores. Quando melancolicamente fitava a filhinha, não
era apenas, como primeiro o fazia, para investigar em seu rosto os
traços da esposa morta; olhava-a por si mesma, como um ser frágil
ferido no berço pela maior desgraça que então a poderia ferir. Que
tristeza imensa, quando a via errando pela casa, a ninar a sua bone-
ca! Tinha com esta um carinho, um cuidado, trazendo-a unida a si e
bem recoberta, em cueiritos de trapos. Às vezes sentava-se ao chão,
a um ângulo da sala, e dirigindo-se à boneca falava-lhe numa algara-
via incompreensível, que tinha inflexões meigas. Lembravam na en-
toação as frases de carinho que a mãe costumava dizer-lhe. Outras
vezes cortava-lhe o coração vê-la entrar na sala, e, como distraída,
encaminhar-se para o divã onde costumava encontrar a mãe. Era
ainda o hábito… e a saudade inconsciente… E Sálvio esforçava-se
por preencher o vazio deixado pela morta, sentindo também que
era cada vez menor o vazio da própria alma.
Era assim que ele renascia para a vida nova, que alvorecia como
um diluimento branco de madrugada nos horizontes adormecidos
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na noite. O sofrimento entorpecera-se, o doloroso amor expirara


numa melancolia infinita. Veio a conformidade cinzenta e ele acei-
tou de novo a vida. Achava, porém, a esta um sabor aborrecido.
Sentia anorexia de viver. Cada manhã, ao despertar, via ante si a
compridez do dia como um prato nauseante, que precisava ingerir
até às últimas migalhas.
Quando ele recomeçou a ver a vida comum, com os seus peque-
nos seres e os meandros de suas pequeninas preocupações, tomou-o
uma impressão de espanto, por ver que fora do mundo de seus sen-
timentos havia o que quer que fosse real. O universo não era um
imenso deserto! E, sentindo-se ainda muito longe, via confusamente
em torno a si o formigar dos ínfimos humanos. Colhia-o a surpresa
de quem, através de um telescópio, visse surgir da calma luminosa
de um astro a complexa agitação da vida, num mundo semelhante
a este, ao qual o afastamento funde no reflexo pálido que nossos
olhos contemplam. Reconhecia os lugares e pessoas, reentrando na
normalidade da existência habitual. Via o descalabro em que iam
seus negócios, esforçando-se debalde a fazê-los prosperar. Na luta
da vida, ele fora o soldado posto fora do combate e que, volvendo
depois, encontra nas fileiras seu posto preenchido. Enquanto jazera
na torre da alucinação, os liliputianos eliminaram-no; e, como se
isolara para sofrer, via-se agora só, no conflito de interesses, con-
trastado por adversários astutos e fortes. Mas não o abatia tanto
essa hostilidade, no que tinha de lesiva, como o triste espetáculo da
desenfreada cobiça. Oh, os pequeninos seres, os ínfimos embriões!
Cada qual era uma potência. E cada qual era um inimigo, trazendo
consigo, como uma vespa, sua dose de peçonha e pronto a instilá-la
em seu opositor.
Finda a labuta do dia, ele encontrava o conforto necessitado, na
companhia da filha e na paz de sua casa. Frequentava-a à noite, des-
de a morte de Leila, o major Mourão. Provedor da Santa Casa, não
se limitava a exercer a sua filantropia nos enfermos do corpo; aco-
lhia também sob as asas protetoras a viuvez, a orfandade e as outras
formas da miséria e do desamparo. Se havia um golpe d’alma a ser
A FILHA

pensado ou bens de órfãos e viúvas a acautelar-se em mãos impo-


lutas voltavam-se para o major todas as vistas, como à única pessoa
naturalmente fadada à investidura desses encargos.
Seu exterior dizia com a austeridade do moral. Sisudo, fron-
te vincada de rugas reflexivas. Fechado em sua sobrecasaca ne-
gra, cobrindo-lhe longa como uma sotaina o porte corpulento,
respirava um ar sacerdotal, que era acentuado pelo gesto lento e
pela voz grave, profundamente persuasiva, que descia como um
bálsamo nas chagas vivas do sofrimento e que, falando do Além,
assumia um tom profético, repassando-se dum reboo tumbal, que
abalava a incredulidade.
Essa visita noturna era sobremaneira grata ao insulamento de
Sálvio, contribuindo a sacudir-lhe a atonia e a preencher-lhe os me-
lancólicos serões.
Decorreram semanas. Sálvio reerguera-se moralmente. Con-
formado, repetia então consigo: “Ser feliz não é o essencial, e sim,
viver. Que é a felicidade numa vida? O trânsito luminoso de um
meteoro, que deslumbra e se esvai. O essencial não é ser feliz. De-
pois que tivemos nosso quinhão de ventura, ficamos quites, nós e a
sorte. Então resta-nos auxiliar os outros a viver e nisso também se
encontra uma espécie de satisfação funda e grave”.
E, contemplando a filha pequenina, ele tinha a impressão
de que suas vidas, que corriam paralelas, haviam começado no
mesmo ponto.
Súbito, porém, foi a catástrofe. Renasceu o processo do docu-
mento falso e apareciam provas contra Sálvio. Como a labareda,
adormecida em rescaldo, renova mais impetuoso o incêndio, res-
surgiu com escândalo, apaixonando a opinião. Os ínfimos insetos,
coligados entre si, volviam para o concorrente os pungitivos fer-
rões, a fim de definitivamente o eliminarem.
Sálvio, relembrando o passado, não se reconhecia culpado. Sua
impressão, julgando-se a si próprio, era a de que outrem agira em
si. Modificara-se a identidade de seu “eu”, desse equilíbrio mental
que as circunstâncias, criam e refazem, variável como elas. Agiria
outrem em si, um ser diverso e efêmero, que se lhe assenhoreava
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do governo da razão. Como havia, porém, de justificar-se, sem pro-


fanar seu drama íntimo, assoalhando-o inutilmente à incompetência
julgadora dos estranhos? Quem o compreenderia?
E um mutismo doloroso selou-lhe os lábios. Sentia-se inocente,
mas no olhar de todos lia a acusação “falsário!” e a convicção unâni-
me começou a gerar-lhe na alma uma confusa consciência de culpa.
O major frequentava-lhe ainda a casa, mas espaçara as visitas.
Em suas relações com Sálvio notava-se um esforço, um constran-
gimento. Sua voz era mais grave, suas expressões mais sentenciosas
e Sálvio sentia que quando elas consolavam, arguíam também. Seu
olhar severo intimava-lhe: “justifique-se!”. Mas o doloroso mutismo
soldava os lábios de Sálvio.
E quedava-se numa inércia abúlica, sem raciocinar, sem pre-
ver, valendo-se da resignação fácil dos simples, ao murmurarem:
“tem de ser!”.
Uma noite, a horas desusadas, entrou-lhe o provedor à casa. Sua
sobrecasaca negra parecia então mais solene e seu porte mais agi-
gantado. Na sisudez de seu olhar leu Sálvio que soara em sua vida
uma hora decisiva. E o major abordando um assunto em que nunca
diretamente tocara, começou sem rodeios:
— Foi lavrada a pronúncia. Há provas de sua culpabilidade
e o senhor vai ser preso. Soube-o agora e julguei de meu dever
dar-lhe este aviso.
— Preso? — parecia perguntar mudamente Sálvio.
— E talvez já — respondeu o major à muda interrogação.
E seu ouvido escrutava os rumores da noite.
Sálvio ficou paralisado. Caía em seu espírito, fulguramente, a
evidência de sua situação. As palavras do provedor significavam:
“fuja!”. E ele pensava em Noeme. Só então compreendeu achar-se
na contingência de separar-se dela. E ideias tumultuárias encon-
troavam-se-lhe no espírito: “Deixar-se prender e defender-se? Fi-
car, seria a condenação. Deixar-se condenar? E Noeme? A prisão
os afastaria. Leva-a? Era impossibilitar a fuga, ou sacrificar em
seus azares a fragilidade da criança. Fugir, era perdê-la. Matar-se?
Matar-se? — E Noeme?”.
A FILHA

Na clarividência da nova situação, que caíra ante ele como enor-


me muralha a embargar-lhe o passo, abriam-se portas numerosas de
soluções possíveis… Mas, às réplicas secas da razão, as portas estron-
davam herméticas e ele defrontava-se com a muralha intransponível,
tolhendo-lhe a vida. Amarrava-o a impossibilidade de resolver.
— Quer fugir? — interpelou-o o provedor. — O tempo urge
— e, vendo-o ainda atado, o major impeliu-o à resolução extrema,
decidindo por ele: “Fuja… Se lhe faltam recursos, comprar-lhe-ei a
parte que pelo inventário lhe tocou na casa e no mobiliário. Oculte-
-se longe, muito longe, onde o esqueçam. A menina ficará comigo.
Criá-la-ei como filha, educá-la-ei cristãmente, para que as suas vir-
tudes resgatem a…”.
A frase concluiu-se por si, no silêncio, enquanto os braços do
major se estendiam como protetoras asas, sobre o berço da menina
adormecida.
E, na pausa que se seguiu, a Sálvio pareceu ouvir cair estas pala-
vras duras:
— Livrá-la-ei do teu contato, mundificá-la-ei da peçonha origi-
nal. Arredarei da inocente o lodo de tua vida, para assentar as bases
do edifício da purificação.
Tirou dinheiro do bolso e deu-o a Sálvio, apresentando-lhe em
seguida o documento que redigira. Era uma confissão de dívida.
Munido dela obteria facilmente, depois, a transferência da propos-
ta. Sálvio estendeu-o na mesa e tomou da pena, para assinar. E en-
quanto a mão hesitava, como se ele houvera esquecido o próprio
nome, abriam-se-lhe no espírito novamente as soluções possíveis:
Levar Noeme? Entregar-se? Matar-se? Implorar misericórdia? De
novo as portas estrondavam inexoravelmente.
— Assine aqui — acudiu-lhe o provedor indicando a linha.
Ele obedeceu.
— Agora, parta — disse-lhe o major abafadamente, escrutando
ainda os misteriosos sussurros da noite.
Sálvio, às pressas, emaçou alguns objetos; em seguida, beijou a
filhinha adormecida e partiu.
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A repulsa

Sálvio homiziou-se num lugarejo remoto, onde a ação da justiça


não o iria atingir. Adquirira modesta chácara à saída do arraial, em
praça quase despovoada, a qual supriam da animação humana, que
lhe faltava, bandos de aves pousadas em um grupo de corpulentas
paineiras. Recuada do alinhamento, humilde e pobre, a vivenda pa-
recia retratar a esquivança do dono ao trato social. A este não era
difícil furtar-se ao mesmo, porque evitavam-no de instinto. Não lhe
conheciam a culpa, mas, seu torvo aspecto, seu acabrunhamento,
por si próprios geravam a repulsão, dando-lhe o estigma de um ser
egresso da vida comum. Além da habitual prevenção das pessoas
simples pelos forasteiros, seu todo, como marcado pela culpa, pa-
recia dizer: “Sou um criminoso. Devo, como um poleá, viver à parte
e só”. Entanto, se queria acusar-se, achava-se puro. Sua falta, como
a oxidação de uma lâmina, gerara-se sem deliberação volitiva; ar-
rastara-o o desvario da paixão infeliz, loucura lúcida que exalta o
sentimento e anula a vontade. Então refletia: “Se me sinto inocente
é que já se me perverteu o senso moral. Há em minha consciência
zonas anestesiadas. Um tóxico ou um bacilo pestífero também se
sentiriam inocentes…”.
E achava assim mais razões para isolar-se, anular-se.
De todo o seu passado, o sentimento que mais vivamente o pun-
gia, era o pesar de haver começado tão tarde a amar a filha.
Quando a alma lhe latejava dolorida, pensando em Leila, o sen-
timento tangenciava essa recordação e ia pousar na filha. E aquele
A FILHA

pesar que sabia a remorso de uma culpa involuntária, dava-lhe in-


centivo para viver.
Satisfeito separava todo mês o dinheiro das despesas da menina,
que convencionara com o provedor remeter-lhe por intermédio de
uma firma do Rio (por intermédio da mesma, também o major lhe
mandava notícias da filha); e, quando a quantia era mais avultada,
sentia maior prazer. Mas seus recursos eram parcos. A venda da casa
dera-lhe apenas para a viagem e para aquela compra. As culturas
eram poucas e os rendimentos insignificantes; parecia que a própria
terra, conhecedora de sua falta, se retraía também com ele, como
os homens que o evitavam.
Seus dias festivos eram os em que recebia cartas dando notícias
da filha. Com que impaciência as esperava! Vinham poucas — uma
por mês — e uma ou outra vez faltavam. Hesitava um momento
em abri-las, receando más notícias; expandia-se-lhe, porém, o co-
ração lendo que tudo ia “sem novidades”. Eram sempre lacônicas e
a redação pouco variava; acusavam o recebimento do dinheiro e em
seguida “A menina vai sem novidades”, uma fórmula cerimoniosa
para o remate e a assinatura. Antes de abri-las, Sálvio já podia repe-
tir-lhes os períodos todos. Nem por isso, ao recebê-las, era menor
seu alvoroço de ventura.
Um dia houve uma alteração em seus dizeres. Escrevia-lhe o pro-
vedor: “A menina está mal, com o sarampo, mas todos os cuidados
lhe têm sido prestados”. E pedia remessa de dinheiro para as despe-
sas extraordinárias.
Lendo tremulamente a notícia má, uma resolução sulcou-lhe o
espírito: iria às ocultas ver a filha, e, estando já sã, trá-la-ia consigo.
E, poucos dias após, um vulto resguardado pela escuridão da noite
batia à porta do major. Sua temeridade causou espanto à criada que
a foi abrir e o fez entrar. O provedor, já acomodado, tardou a apare-
cer. E, como perguntasse por Noeme, a criada, deixando-o na sala
de jantar, foi buscá-la.
Sálvio relanceou o cômodo em que se achava. Bem que deserto,
havia ali um ambiente de lar, que impregnava suavemente o espírito.
No centro, a grande mesa, onde jaziam ainda em desordem as xícaras
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do chá da noite. Próximo, a máquina de coser, aberta, indicando


um trabalho interrompido. Num ângulo, a mesinha de estudo
dos pequenos, com livros e cadernos esparsos, dando mostras
de que estiveram seroando no preparo das lições. E, embora
seu pensamento se focalizasse na filha, Sálvio sentiu saudades
confusas… Eram como as pastadas de emoções que nos deixam
os sonhos que nos visitaram durante a noite. Saudades de seu lar
truncado e da sua meninice…
A criada reapareceu. Trazia ao braço a menina toda envolta em
um cobertor, vendo-se-lhe apenas o rostinho magro, todo em esca-
mas. Convalescia do sarampo. Seus olhos mortiços e as feições des-
feitas mostravam que fora longamente martirizada pela moléstia.
Não lhe viu as mãos, que deviam estar macérrimas, nos ossos.
Acompanhava-a a mulher do provedor, nutrida matrona de fi-
sionomia severa, como se lhe fora comunicado, pelo contágio da
vida comum, o ar de gravidade e ponderação que ressumava o rosto
do major. Cumprimentou a Sálvio constrangida, não sabendo qual
atitude assumir, ante o regresso inesperado. Proferiu frases breves
sobre a doença da menina. Ouvindo-a, o pai alternava o olhar para
ela e para a filha. Certo momento fez menção de tomar Noeme nos
braços. A menina primeiro confrangeu-se, não o reconhecendo; sú-
bito, porém, os olhinhos mortiços acenderam-se num brilho inte-
ligente, que parecia dizer: “Este é o meu paizinho. Bem o reconhe-
ço!”. Ele sorriu-lhe, estendendo-lhe os braços, e Noeme, fitando-o,
hesitava entre o acanhamento e o desejo de ir com o pai.
Foi quando assomou à porta o vulto do provedor. Embora simu-
lasse calma, a indignação traía-se-lhe na lividez do rosto e no tremor
das mãos. Estendeu-as, não para cumprimentar a Sálvio, mas como
para lançar um anátema.
Começou a verberar-lhe a imprudência. Réu foragido, sua vinda
podia ser sabida. E a ele, major, acusariam de pactuar com um fal-
sário, podendo cair, talvez, sobre sua cabeça impoluta, o vilipêndio
de uma suspeita infamante.
Sálvio, de cabeça baixa, ouvia-lhe as recriminações.
E o provedor prosseguiu. Suas palavras caíam cadentes, uma a
uma, requintadamente lentas. Lembrou-lhe a culpa, o desamparo
A FILHA

da menina, a responsabilidade que assumira adotando-a, e, na noite


da fuga, o seu aviso oportuno. Agora tinha o direito de pedir, exigir
a sua prudência e gratidão.
Sálvio esboçou, humilde, a sua desculpa: À notícia da enfer-
midade da filha, não pudera conter-se. E desejaria levá-la, se já
estivesse boa…
— Levá-la! Levá-la! E o provedor alçou as mãos ao céu. Seria
possível abominação igual!
Relanceou Sálvio d’alto a baixo, o olhar carregado de desprezo.
Acusava-o, nessa mudez eloquente, de querer a desgraça e a per-
versão da filha.
— Leve-a, continuou friamente, após uma pausa. Se quer, en-
trego-lha, lavando as mãos do mal que possa maculá-la. Mas há for-
malidades a preencher. Fui investido legalmente da tutela, por estar
sua filha na situação dos menores abandonados, e, assim, depende
minha destituição de ato judiciário.
Sálvio compreendeu-lhe o alcance das palavras. Perdera os direi-
tos sobre Noeme. Em face da lei, o pai agora era o major.
E este prosseguiu:
— Como vê, para a solução alvitrada há dificuldades… O juiz
não lha restituiria e eu teria que levar por diante minha missão.
Levá-la-ei. O Bem é o meu Evangelho. O Bem, até ao sacrifício…
Noeme continuará sendo minha filha. Mas o senhor não deve aqui
tornar. Perdoo-lhe desta vez a imprudência; mas nunca, nunca mais
reincida na mesma falta.
Ante a mole negra que investia para ele, Sálvio retraía-se.
A Moral, a Justiça, a Sociedade, todas essas coisas terríveis e
imensas, como que se encarnavam na sua estatura formidável e se
alçavam sobre ele, naquele momento, para esmagá-lo.
O braço estendido, a mão convulsa e anatematizadora, pareciam
indicar-lhe a porta.
E, curvo, humilde, arrepeso, transpôs a soleira, ouvindo mais
uma vez soar cavamente a frase:
“Nunca, nunca mais!”
Aquela era, em última instância, sua sentença de condenação.
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Regressando ao exílio, Sálvio levou consigo uma tristeza maior. Ao


reentrar em sua vivenda rústica, dirigiu-se ao cômodo onde estava
uma velha frasqueira, de cujo fundo retirou um precioso guardado.
Era uma lembrança de Noeme, que levara consigo por ocasião da
fuga, um vestidinho vermelho que ela usara muito tempo.
Pela primeira vez revia esta roupinha. Queria contentar o insa-
tisfeito desejo de acarinhar a filha, com que tornara ao desterro.
Não chegara a tomá-la nos braços, nem lhe ouvira a vozita… Aper-
tou contra o peito a relíquia. Mas era uma consolação triste, como
a de quem se abraça a um cadáver.
Foi nessa época que, relativamente a Noeme, compreendeu sua
verdadeira situação. Perante a lei não era mais o pai. Até então ali-
mentara não sei que ilusões, que agora totalmente caíam. Via bem
que só poderia viver como um réprobo, sonegando-se na sombra,
à margem da vida. Poderia ainda ser pai, mas ocultamente, no es-
quecimento e na distância, como uma dessas sombras invisíveis e
protetoras em que os espíritas creem e todo o esforço para sair da
penumbra redundaria em desastre. Devia renunciar, conformar-se
com o seu destino de amar sempre e amar em vão. Aceitou a sua
sorte. E dessa dolorosa renúncia tirava às vezes um bruxuleio de
felicidade melancólica, porque imolava-se à filha, ao arroio querido,
sobre o qual, salgueiro tristonho, ficaria, pensas as ramas, reclinado
para sempre, para todo o sempre.
Na sua túrbida resignação e soledade continuavam ainda a cair
momentos de ventura, com as cartas do provedor, sempre parcas
A FILHA

de informações e cada vez mais espaçadas. A filha restabelecida ia


sempre “sem novidades”. Esta, a fórmula de que o tutor não mais se
afastaria, para não correr o risco de despertar novo alarma. Longe
em longe representava sobre a necessidade do aumento da mesada
“devido às despesas maiores, com o crescimento da menina”. Sál-
vio, redobrando esforços, satisfazia-o, mas sempre aquém do pró-
prio desejo, porque em sua luta pelo pão continuava a persegui-lo
o azar. A terra, estéril e maldita, recusava-se a germinar a semente
que lhe lançava. Enquanto seus vizinhos prosperavam, Sálvio, de seu
perseverante esforço, mal poupava a mesada de Noeme. O pouco
que colhia era como a esmola regateada por um coração duro, que
contrafeito a lança no chapéu do pedinte. Se a geada queimou, se
os gafanhotos devastaram, ou calcinou a seca à terra, podia-se afir-
mar que a principal vítima era ele. E Sálvio começava a murmurar
sombriamente: “É sorte!”. Às vezes, cruzados os braços, quedava-
-se desalentado, cismando que no mistério do incognoscível havia o
que quer que fosse que lhe era hostil. Às suas tribulações presentes
reunia as do passado, e, dado o negro balanço no acervo de sua
desdita, procurava esclarecer o mistério de sua condenação… Se
Deus existisse, Deus não seria, por significar a suma bondade; nem
o Demônio, porque favorecia aos maus. Haveria outra coisa, que
não sabia o que era. Queria imprecar o céu, mas via-o vazio; acusan-
do a terra, achava-a inocente; acusando os homens, reconhecia-se
culpado; mas, se acusava sua culpa, sentia-se imáculo… E ante essa
potência incógnita que lhe era adversa ele se transia de vago pavor,
como ante um oculto inimigo inexorável. “É sorte!”, murmurava,
repetindo a covarde fórmula de resignação. Mas, acabrunhadamente,
sem esperança, recomeçava a lutar.
Nas horas de repouso, quando se afastavam de seu espírito as
preocupações do trabalho, seu pensamento, dando-se todo à filha,
projetava-se fora do momento atual, em ascese evocativa, adorando-a
a distância. Esta concentração pia adoçava-lhe o desterro, como o
benefício apaziguador da adoração extática. Se o labor absorvente
lhe tomava as horas todas, que surda irritação não lhe lavrava no
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íntimo! O pensamento sofria sentindo-se preso, agrilhoado à tarefa.


Mas os domingos eram todos seus. Então, abria-se o espaço para o
prisioneiro tristonho. E, movendo as asas fumosas, voava, em piedosa
romaria, para o país melancólico da Saudade…
Nessas horas meditativas, inclinava a cabeça, e, cerrados os olhos,
evocava a filha. Procurava reter-lhe a imagem, que a memória con-
servava, para que os anos não a desvanecessem ou modificassem.
Via-lhe o rostinho cercado pelo cobertor, a pele pintada, escaman-
do-se, a expressão entre acanhada e satisfeita, abrindo-se-lhe nos
olhos mortiços de doente um lume de felicidade, que dizia: “Bem o
conheço! Este é o meu paizinho!”. Nesse momento fora feliz. Oh,
para que lhe dera o pai, com sua presença, esse instante de júbilo
ilusório! Por que fora reavivar no espírito da criança sua imagem
quase extinta! Certo, não o vendo mais, tivera saudades.
Doentinha, desejaria tê-lo junto a si, alegrando-lhe a conva-
lescença. E ele partira, e o desejo de sua pequenina alma ficara
insatisfeito. Talvez houvesse recaído, novamente atingida pelo trau-
matismo estranho que lhe causara a perda da mãe, pelo mal das
saudades… Fora mau. Devia morrer de todo na lembrança da filha,
amá-la em secreto, do seio da sombra, ser o salgueiro que a água
passa e não vê, ser a raiz que a flor ignora. Havia na natureza bruta,
que devera tomar para modelo, o exemplo da abnegação ignorada.
Era, porém, difícil. Desejaria, ao contrário, que Noeme o reco-
nhecesse sempre e se sentisse, sempre, impelida para ele… ufana
de o ter como pai, forte com o seu amparo, invocando-lhe o nome
quando a molestassem… Longe dele, ignorando-o, sua imagem
dissipar-se-ia no espírito da filha. A princípio se lembraria ainda,
vez em vez, de uma sombra triste e carinhosa, movendo-se na bru-
ma de um passado longínquo. Depois, a última lembrança se apaga-
ria. E dele apenas saberia o que com abjeção lhe dissessem, tornan-
do-se para ela um espectro de pavor, a cuja só lembrança estenderia
as mãozinhas, num instintivo gesto de repulsa. Morreria sem que
ela o compreendesse, desconhecendo quanto a amara. Como era
difícil desaparecer, quando, ao contrário, desejaria fazer-se-lhe
A FILHA

sempre presente; desejaria, ao pressentir que no espírito da criança


desbotava a sua imagem, como velha fotografia que o tempo desco-
ra, ir sacudir-lhe a memória como quem desperta a um dormente,
dizendo: “Olha-me! sou eu teu pai. Reconhece-me, sangue de meu
sangue, alma de minha alma!”.
A espaços, vagas de desespero encapelavam-se-lhe na alma, mas
logo se aplacavam, e Sálvio recaía na calmaria morta da resignação.
Sua revolta abatia, como tormenta remansada; mas apesar da vitória,
a independência selvática do egoísmo estremecia-lhe o íntimo em
dolorosas convulsões.
Desamava olhar outras crianças, porque não tinha ante os olhos
a que suas pupilas desejariam ver. Era incapaz de acariciar as cabe-
cinhas turbulentas que via na rua, a brincar. Parecia-lhe que, dan-
do-lhes um carinho, esbulhava a Noeme de um bem que só a ela
pertencia. Evitava as crianças. E estas, vendo-o taciturno e esquivo,
temiam-no como a um desses terríveis monstros que as amas inven-
tam para as amedrontar. Nos lares, se os pequenos pirraceavam ou
não queriam dormir, bastava dizer-lhes “Olha o homem da chácara”,
e os olhitos enchiam-se de pavor e os petizes aquietavam-se.
Um dia, em sua soledade, apareceu-lhe um amigo. Era um cão
que lhe entrava a casa, a pedinchar-lhe com os olhos famélicos
umas migalhas do jantar. Entrava, e, desde esse dia, como achan-
do-se bem naquele abrigo, deixara-se ali ficar. À noite, estava-
-lhe quieto, enroscado aos pés. Cedo, acompanhava-o ao serviço e
seus giros inquietos de animalzinho folgazão tinham sempre como
centro a pessoa do dono eleito, da qual não se distanciava. E, ao
vê-lo assim rente a si, Sálvio lembrava-se da filha, quando ao sair
à rua lhe sentia as mãozitas presas às abas do paletó, para levá-la
também, rompendo depois em desconsolado choro, vendo-o afas-
tar-se sem ela. Esse desejo de não o deixar um só instante era, em
sua alma infantil, aquele mesmo instinto de afeto, instinto — Ai
dela! — primeiro contrariado pela separação da morte, depois
pela separação do crime. Esse contentamento que o pai não podia
dar-lhe, dava-o a um irracional…
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Sálvio admirava-se da sede de dedicação que pode residir na alma


de um bruto, dedicação que não exige troco, toda contente da alegria
de se dar. Bastava fitá-lo desatento e o canito estouvadamente, aos
latidos e aos pulos, mostrava-lhe sua ventura numa agitação ruidosa,
misto de alegria de viver e de alegria de amar. Entretanto, nos serões
tristes, quando Sálvio, sentado, banzava, tendo o cão enrodilhado aos
pés, no olhar do irracional ele via como a súplica de um agrado, do
agrado que Sálvio nunca lhe dera e que saborearia mais do que os
sobejos da mesa. Não tivera ao menos o contentamento de ter um
nome, pelo qual se sentisse chamar. E quanto mais os seus olhos se
faziam pedintes, mais a tristeza assombreava a alma do pai, lembran-
do-lhe o abandono de Noeme.
Gira o tempo, lento, caindo dia a dia, minuto a minuto, como a
gota d’água duma clepsidra. Faz-se monotonamente a sucessão dos
aspectos de um mundo que para Sálvio estava morto. Os ciclos das es-
tações sucedem-se morosos, trazendo a reiteração dos mesmos atos,
gerando nos espíritos as mesmas preocupações. Primavera, verão,
outono, inverno… Primavera, verão… E os ciclos fecham-se e reco-
meçam, para tornar a fechar-se e recomeçar. No largo, roseavam-se
de flores, as copas das paineiras, e depois juncavam a grama lençóis de
pétalas caídas. Cresciam os frutos como longos pesos pendentes, que
depois secavam e fendiam-se, evolando-se em paina. E o êxodo das
sementes era como a migração das almas virgens, cheias de fé, bus-
cando ao longe terras ideais; e era como o enxame dos pensamentos
de Sálvio, evolando-se para junto da filha. Na primavera, ébrios de
ventura, os sabiás cantavam; depois emudeciam e o céu peneirava dos
nimbos esgarçados um choro de melancolias. E tudo ainda tornava…
As próprias coisas brutas pareciam ter, como o homem, alternativas de
alegria e tristeza e eram como um exemplo para a consolação dos infe-
lizes. A cada dor de inverno, pareciam dizer: “A primavera voltará…”.
Mas Sálvio não a esperava mais. Sobrevivia-se. E a felicidade dos seres
e das coisas refletia-se em sua alma como a luz que incide em um
mundo extinto… Luz que não cria a vida e apenas serve a patentear,
com crueza maior, o espetáculo da desolação e da morte.
A FILHA

O espírito de Sálvio continuava a hibernar em longos marasmos


sombrios, mas vez em vez o lanceava a cutilada de uma dilacerante
saudade da filha. O que a despertava era quase sempre a vista de ou-
tras crianças. Certos dias, ao entardecer, findo o serviço, sentava-se
ao portão de sua propriedade, que dava para o largo, e via, então,
brincar, sob as paineiras, turmas de meninas pequeninas. Sua tur-
bulência enchia de alegria a quietação da tardinha, naquele recanto
bucólico, com o reboliço e a grazinada de um bando de avezinhas
felizes. Eram brincos de cabra-cega, de corre-corre-cotia, de tempo-
-será… Se brincavam de pegar, ele ouvia a voz compassada da mais
velha, escolhendo à sorte entre as irrequietas comandadas a que
devia ficar no “pique”:
Uma pulga
Na balança
Deu um pulo
Foi à França.
Os cavalos
A pular,
As meninas
A correr,
Vamos — ver
Quem — vai
Pe — gar!
Lançada a sorte, era uma debandada ruidosa, como um rebate
inopinado num bando de aves.
Outras ocasiões, à noite, enquanto estralejavam as fogueiras de
junho, as crianças, mãos dadas, brincavam de roda, ora entoando
em coro a melopeia de ingênuas cantigas, ora cantando uma vozinha
em solo. Suas vozes frescas, angelicais, soavam:
Se esta rua, se esta rua fosse minha
Eu mandava, eu mandava ladrilhar
Com pedrinhas, com pedrinhas de brilhante
Para o meu, para o meu amor passar.
1 68 | 169

Ou então, em coro, a canção do “Barqueiro”:


Ao passar a barca
Me disse o barqueiro:
“Menina bonita
Não paga dinheiro”.
E do meio da roda uma voz respondia:
Eu não sou bonita
E nem quero ser;
Eu tenho dinheiro
Eu pago a você.
Os clarões das fogueiras banhavam a roda viva e aos seus reflexos
via Sálvio, no rosário de anjos, as carinhas irradiantes, os cabelos
revoltos, enquanto, segurando-se as mãozinhas, rodavam, rodavam.
E naquele coro de vozes celestiais ele notava um vácuo de som. Fal-
tava ali outra vozinha angelical, de outra criança que ali não estava,
a vozinha de Noeme. E os olhos do pai se arrasavam de lágrimas.
Evitava andar pela povoação, porque em toda a parte tudo lha
fazia lembrar: uma caminha de criança, entrevista no interior de
um lar; uma pequenita a choramingar impertinente no braço da
pajem que a levava à missa; um anjo de procissão, com grandes asas
de libélula, levado pela mão do pai engravatado e todo ufano; um
magote de pequenitas, de vestidinhos acima dos joelhos, acocoradas
sobre um pé de trevo, nascido entre duas pedras da calçada, procu-
rando “bananinhas”; um choro impertinente em duo como uma voz
carinhosa cantando cantigas de embalar…
E sem embargo do tempo passado era assim que a via sempre:
criança, pequenina… Via-a ainda sarampenta, o rosto afilado e olhos
mortiços, de quem foi martirizada pela moléstia… Olhos que ainda
se acendiam em enlevo, com um fulgor que era uma explosão de
alegria silenciosa ao reconhecê-lo, parecendo dizer-lhe: “És o meu
paizinho, reconheço-te! Padeci muito, mas agora tenho-te a ti para
me recompensar do que passei…”.
A FILHA

Embora se dobassem os anos, não vencia essa ilusão. As próprias


cartas do provedor fortaleciam-na, como as frases usuais: “Recebi a
mesada. Aqui, na forma do costume. A menina vai sem novidades”.
As cartas não mudavam; o sentimento, também não; assim, em sua
memória, o passado remanescia integralmente.
Se na vigília o possuíam estas lembranças, dormindo eram os
sonhos que avivavam o mal-entorpecido sofrimento. Oh, sonhos
cruéis e repetidos, sempre travados de amargura incomportável e
desesperação infinita! Sonhava uma noite que ia vê-la. Viajava in-
findavelmente. Afinal chegava. Mas, quanta atrapalhação! Nunca a
encontra. Às vezes, quando chega, ela acaba de partir para muito
longe, arrebatada num comboio fantástico, que ele vê distanciar-se,
reduzindo-se daí a instantes a um ponto mal perceptível no hori-
zonte. Outras vezes, ao chegar, dizem-lhe que ela está numa festa.
Há repiques de sinos, estrondar de morteiros e multidão formigan-
te, em trajos de festa, nas praças e ruas embandeiradas. E, de per-
meio à multidão, milhares e milhares de crianças, pequeninas como
ela. O pai, aflito, a procurá-la, vai e volta, acotovela o povo, revolve
as ruas. Examina vivamente as crianças, uma a uma. “Não, não é
esta!” “Nem esta.” Em frenesi crescente, doloroso, perquire, inda-
ga, rompe a mole do povo que se faz mais densa e quase o asfixia.
Nada! Noeme, a pobrezinha! não estarão a esmagá-la? E crianças,
torrentes de crianças… Para dar um passo, ofega, debate-se. E nun-
ca a encontrará, santo Deus! Súbito entrevê longe um vestidinho
vermelho, de manguitas curtas, como o que guardara. Noeme! Era
Noeme! Precipita-se, rompe com esforço sobre-humano a espessa
barreira. Mas chegou tarde. O vestidinho vermelho desapareceu.
Apenas vê outras crianças, inumeráveis, aos milhares, pequeninas
como a sua filha…
Sonha de novo. É um deserto de areia. Há pedras eretas como
homens de pé, encapuchadas de bromélias, como de um cocar de
guerreiro selvagem. Ele erra no deserto, que é sempre o mesmo:
chão de areia, guerreiros eretos, incontáveis. E Sálvio vaga inquieto
como procurando uma coisa que não sabe o que seja e que não acha.
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Certo momento avista, ao longe, a filha. Só, naquele ermo, a po-


brezinha! Decerto afastou-se de casa e perdeu-se no deserto, sem
poder voltar. Chegou a tempo para salvá-la. Chama-a: “Noeme!”.
Ela ouve-o, sua carinha chorosa ilumina-se. Corre-lhe ao encontro,
jubilosa, exclamando: “Papai!”. Ele abre os braços e espera, curva-
do, a filhinha que se precipita, correndo em sua direção. E, quando
já está perto, o pai, mal crendo em sua ventura, reflete: “É impos-
sível! Não pode ser verdade. Separam-nos duzentas léguas! Certo
estou sonhando”. Então olha e não vê mais Noeme. Desvaneceu-se.
Chama-a uma, muitas vezes. Em vão. Ele está só. Em torno, apenas
o deserto a desdobrar-se sem termo: pedras eretas, cocares guer-
reiros e areia, areia, areia…
Oh, sonhos cruéis! mil vezes mais cruéis que a realidade.
Momentos houve em que o incomportável sofrimento o fazia
pensar: “Ir vê-la, mais uma só vez, e, em seguida, matar-me”. A
morte para ele nada tinha de repulsiva. Com que apetite a desejava,
como a ambicionava com todo o seu ser cansado de penar! Seria o
sono repousador após uma jornada exaustiva. Deixar o sono pesar
sobre suas pálpebras, sentir-se invadido do torpor do não ser, do não
sentir, e, apagado o lume do pensamento, mergulhar enfim na som-
bra acolhedora, cuja quietude nada turba. “Morrer… dormir…”
Mas… depois? Não o depois de Hamlet, os sonhos temerosos do
Além, não o depois do que se ia, mas o da filha desamparada, que fi-
cava. Não! Viver ainda! ainda! Sacrificar-se cada dia, cada hora, pela
filha abandonada. Podia ele morrer, santo Deus? afastar aquela pro-
vação, que era a vida de Noeme? Viveria. Ser-lhe-ia ainda possível.
Fosse embora imenso o quebranto d’alma, sentia, para valer à filha,
as forças continuamente renascentes. Demais, todo o sofrimento
tem intermitências de lassidão e letargia. Se hoje se escanzela na
alma em abismo de desesperação, depois o abismo cerra a boca
saciada e o infeliz, recaindo no marasmo, esquece e vive.
Viver para a filha: era o termo de suas hesitações. E, flutuando
entre os contrastes de seus sentimentos, Sálvio continuou a
vegetar no desterro.
A FILHA

Dobam-se ainda os anos, em giros lentos. Em sua primavera de-


punham as paineiras, aos pés, toalhas de flores róseas. Era como se
se despissem de um manto régio, deitando-o mansamente no chão,
a sussurrar consigo mesmas: “A nova primavera dar-me-á outro
manto mais belo e rescendente!”. E, quando vinha o inverno, elas,
em sua nudez esquelética, eram como almas cheias de esperança,
contemplando o céu. E de novo revestiam-nas os mantos régios e
novos lençóis de flores róseas desciam-lhes mansamente aos pés.
Na órbita sempre refeita girava o mundo no éter, fazendo a trans-
lação da monotonia das coisas. Quantas florações de esperanças,
quantos invernos de desolações, não se alternavam, espaço em fora!
E, olhando em torno de si, Sálvio via a mudança dos seres e das
coisas. Dezoito anos! tanto bastava para uma geração render a outra
geração. As cabeças pretas punham-se grisalhas, as grisalhas encane-
ciam. Nas fisionomias moças cavavam-se rugas e onde espairecia um
sorriso descuidoso nascia o vinco de uma preocupação dolorosa,
como se as tristezas fossem as rugas das almas que viveram. As tur-
mas dos velhinhos conhecidos iam partindo trôpegas e resignadas,
como convivas transnoitados de um banquete, que enfim recolhem,
fatigados e cheios de tédio. E aos pés da geração antiga surdia, túmi-
da de seiva, a onda grulhante da geração que a vinha render.
O canito folgazão, trazido pelo acaso, que um dia lhe entrara a
casa para se lhe enroscar aos pés, também envelhecera e acabara.
Não abandonara a Sálvio. Morrera lentamente, arrastando longo
tempo suas mazelas de rafeiro velho. Não tinha mais a sua alegria
ruidosa, ao ver o dono, expressa em ganidos e saltos de contenta-
mento. Sua afeição permanecia inalterável, mas era austera e medi-
tativa, mescla da alegria de amar e da tristeza de viver. Encarando
o dono, com a alma afetuosa toda nas pupilas de bruto sensível,
parecia exprobrar-lhe: “Fui-te fiel em todo o decurso de minha
curta vida; nem um instante minha dedicação se desmentiu; ao
passo que os homens te detestavam, minha afeição manteve-se pro-
funda e leal; e nunca te mereci uma carícia!”. E, ao expirar, quando
Sálvio lhe afagara a pobre cabeça agonizante, parecia que o velho
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cão, recebendo essa carícia a vida toda esperada, experimentava,


ao morrer, a sua maior ventura.
Um dia, observando-se casualmente a um espelho, Sálvio tam-
bém viu-se envelhecido. Quê! Era ele aquela ruína, aquele rosto
engelhado e aqueles cabelos brancos! Como o tempo devasta o
corpo! Internamente, na alma, sentia a mesma devastação. Era
bem um fim de vida. Ele nunca volvera a atenção para a saúde,
pois a desordem das funções do corpo eram um acidente imper-
ceptível no tumulto desordenado do espírito. Estava a acabar tam-
bém, como o velho cão.
A própria vivenda, imagem do seu dono, desmantelava-se em
ruínas. As fendas das paredes, onde pululava a fauna dos escom-
bros, o teto selado invadido de trepadeiras daninhas que se in-
sinuavam sob as telhas, o terreno em volta, afogado em pragas,
exprimiam o desalento de uma alma, que, cansada de lutar, afinal
se rendeu. E, à frente, o portão que abria para o largo, ladeado
de taipas desmoronadas, parecia ter escrito na testada oblíqua o
letreiro sombrio da desesperança.
Nas plantações a terra exausta retraía-se, por seu turno, empe-
drada e seca, como um coração mau, regateando-lhe as colheitas
minguadas a ponto de, mês em mês, incutir-lhe o receio de não
poder enviar, no mês seguinte, a pensão da filha, cujo aumento pro-
gressivo era reclamado nas cartas, agora raras, do provedor.Todas as
calamidades do céu continuavam a chover na sua propriedade. Era,
na desolação das ruinarias, uma tempestade de azares e um concer-
to de presságios, para indicar-lhe que o fim estava próximo. E ele
que às vezes desejara a morte, tomava-se de pavor à só ideia de que
ela não poderia tardar. De sua alma subia o grito: “E Noeme!”. Não
valer-lhe mais, não vê-la mais, nunca mais! E o grande pavor fazia
que agora concentrasse toda a atenção em si; nunca pensara que
o iam preocupar tanto as lazeiras do corpo. Uma vez, sentindo-se
impossibilitado de trabalhar, sua inquietação foi maior; apenas me-
lhorou, correu a um consultório. O médico arguiu-o e examinou-o
atentamente. Findo o exame, disse-lhe: “Não é nada”. E sentou-se
A FILHA

para escrever a receita. Recebendo-a, Sálvio explicou-lhe: Não de-


sejava somente aquilo! Eram desnecessárias palavras de animação.
O que queria era um diagnóstico fiel. Expôs-lhe que a vida lhe cor-
ria difícil e que, morrendo sem o esperar, poderia infelicitar a ou-
trem. Fez alusões à filhinha distante, da qual era o arrimo. Instou
que lhe dissesse a verdade, para preparar-se para a morte, nada dei-
xando confiado ao acaso. O facultativo fixou-o penetrantemente.
Certo, viu-lhe através dos olhos ansiosos o torvelinho torvo de sua
vida. Então renunciou à piedosa mentira. E como Sálvio, calado,
esperasse a resposta, pousou-lhe a mão no ombro, dizendo-lhe em
voz pausada:
— Seu caso é sério, meu amigo… Coração… Epilepsia larva-
da… Que sei eu? O diagnóstico é obscuro e complexo… Mas é
sério… muito sério… Se tem providências a tomar, tome-as, que a
morte pode estar emboscada no minuto que vai cair…
O médico fugia ao seu hábito de discrição profissional. Mas
compreendera tratar-se de um caso de exceção, porque o seu clien-
te desconhecido era já um homem fora da vida.
Sálvio retirou-se aturdido. No cérebro lhe plangiam as lúgubres
badaladas: “É um caso sério… muito sério…”. Achou inútil todo
o seu esforço passado, estéril toda a sua vida sacrificada, já que ia
abandonar de novo a filha, quando ainda necessário lhe era o seu
amparo. Não transmutara seu longo sofrimento em uma auréola de
felicidade para Noeme, não transformara seu desespero ignorado
em suave claridade que lhe iluminasse o futuro. Sua missão, para ser
perfeita, devia ser interminável, como a obscura tarefa do coração
vitalizando o organismo.
Nem um instante possuiu-o o prazer covarde de acabar. Inquie-
tações dolorosas borbulhavam-lhe na alma. E só agora lhe despon-
tava a dúvida de terem sido eficazes os seus trabalhos passados, para
aligeirar a vida à pobre filha criada sem pais, em lar estranho. Oh, se
ao menos soubesse que não se sacrificara em vão!
Então, a revolta contra a sorte cresceu-lhe mais uma vez violen-
tamente na alma. Embora houvesse fugido à condenação, sentira-
-se toda a vida condenado sem culpa, por uma sentença inapelável.
174 | 175

Os tratos de seu martírio iam-se, cada vez mais, premendo-se em


círculos mais estreitos, em todo o decurso de sua vida. E embalde
procurava conhecer o juiz que o sentenciara. Fora a sorte? ou o aca-
so? Mas os caprichos da sorte e do acaso às vezes desmancham-se
em sorrisos; não se concentram assim, sem uma hesitação, sem uma
diversão, como tendo o propósito deliberado de aniquilar lenta-
mente uma existência. Atrás de seu destino ele pressentia a presen-
ça de uma perversidade apurada e poderosa a supliciá-lo. Títere da
desgraça, o fio de sua vida fora tomado pelas mãos de uma divinda-
de sombria e feroz, que se deliciava com o espetáculo das infindá-
veis agonias. E ele procurava embalde a mão que o esmagava, o deus
feroz e ignoto, essa coisa misteriosa e terrível que voltara contra ele
toda a sua capacidade de ódio, destruindo-lhe implacavelmente a
vida. Queria conhecê-lo, a esse Deus, que não era nenhum dos que
os homens adoravam ou temiam, queria vê-lo face a face, para com
o coração transido de covardia implorar-lhe: “Piedade! já purguei
na solidão as minhas culpas ignoradas. Vivi só e resignado. Acolhi de
fronte baixa os decretos da desgraça. Piedade! não por mim, mas
pela minha filha. Feri-me com redobrado furor. Os recursos do céu,
para causar a dor, são inextinguíveis. Continuai a exercê-los contra
mim, mas deixai-me viver para a minha filha!”.
Mas este grito, Sálvio não o deixou sair da alma, sabia ser tudo
em vão. Os fados regiam o destino dos homens, que toam pelo
mundo como coisas brutas, levadas a esmo pelas forças ignoradas.
No vazio imenso de seu desalento plangia ainda o refrão: “Seu caso
é sério, meu amigo… muito sério…”.
Sua derrota estava próxima. “A morte pode estar emboscada no
minuto que vai cair.”
E, súbito, numa instantânea e irreflexiva resolução, esqueceu
seus protestos de renúncia, o futuro de Noeme sacrificado, a prisão
iminente, para pensar unicamente em si, no seu desejo imperioso
de ver ainda Noeme mais uma vez, uma última vez.
E erguendo violentamente todas as lousas superpostas que o
oprimiam, surgiu de seu túmulo, e, presa da ideia obsidente, irre-
sistível, absurda, Sálvio partiu.
A FILHA

A turvação de Caim

Na sala, por prudência conservada semiobscura, e aberta para a es-


curidão fechada da rua, o major Mourão passeia agitadamente, pois
espera Sálvio, que por telegrama o avisara de sua chegada.
Múltiplos sentimentos lhe conturbavam o espírito.
Sua situação é difícil, porque sucederam graves fatos, que não
comunicara ao pai de sua pupila.
Passeia febril e soturno, todo entrajado de negro, como de cos-
tume, e às vezes gesticula ante a ilusão de um interlocutor que pro-
curasse persuadir.
O major não andava de sorte. Deixara de ser provedor, por-
que, sob sua administração envolta em arcanos só dele conheci-
dos, a Santa Casa falira; evaporara-se-lhe o avultado patrimônio
e ignorava-se o destino tomado pelas subvenções do governo e
contribuições particulares.
Seus haveres pessoais, dissiparam-nos os filhos precocemente
dissolutos.
Sem embargo dos anos e dos dissabores, que pouco lhe altera-
ram o físico, apenas acentuando-lhe mais as rugas reflexivas da fron-
te e pondo-lhe nas têmporas duas pastas de cãs, ele ainda conservava
a sua linha austera de apóstolo e anjo da consolação; mas as suas
atitudes solenes e voz cava, convincente e apaziguadora, arrancada
das entranhas da alma, incutiam desconfiança e por isso não se insi-
nuava mais nos meandros dos corações malferidos. É que os órfãos e
viúvas, cujos haveres gerira, viram-se afinal empobrecidos sem que
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lhes fossem prestadas contas nítidas. Na balbúrdia destas, expostas


com gestos majestosos e reboos de voz tumbal, apenas entendiam
que sua necessidade se tornara penúria, agravando-se o desconforto
d’alma com a falta absoluta de recursos.
Sentenciado pelo clamor de suas vítimas inumeráveis, o major
encontrou-se um dia pobre e desconceituado. Fora bom ter nos
tempos prósperos encarreirado os filhos; excetuava-se apenas o úl-
timo, já moço, que ia começar tarde e em má quadra. Felizmente a
mesada de Sálvio dava a mantença da casa, e, com algum acréscimo,
daria também para os estudos do rapaz. Esta mesada era como uma
aposentadoria merecida, suavizando-lhe os dissabores e dando-lhe
tranquilidade à velhice incipiente.
“Com algum acréscimo…” Não seria grande sacrifício para
Sálvio, pensava o provedor. Supunha-o essa hora riquíssimo. Não
ajuizava claramente do modo como ganhava ele a vida, suspeitan-
do vagamente que fosse em falcatruas e outras torpezas rendosas.
Mas não se detinha em tais suposições. Evitava formular um juízo.
Tanto mais que os juízos temerários eram pecado. Na dúvida, era
de presumir-se sua honestidade. Naturalmente (dizia consigo) ele,
provedor, nunca lhe aconselharia contumácia na senda do crime;
e, se no dinheiro de Sálvio houvesse mácula, ao cair-lhe nas mãos
brancas tornava-se límpido, como se a distância e o obscuro dester-
ro lhe servissem de filtro purificador. Seria assim pura, numa taça
de prata, a água que brotou da sordície do subsolo. Porque o major
era austero a seu modo. Não aceitaria conscientemente, talvez, o
produto de um crime. Em seu foro íntimo sentia-se ilibado de todas
as culpas que a maledicência lhe assacava. Pelo desvio de dinheiro da
Santa Casa e dos depósitos dos órfãos e viúvas, a consciência não lhe
pungia, não só por se julgar credor de grande compensação, pelo
dedicar-se toda a vida a minorar os males alheios, como porque, a
gerir essas quantias, concebia sobre elas tão forte sentimento de
propriedade, que era como se dispusesse do próprio patrimônio.
Mas se o dinheiro de Sálvio em suas mãos caía límpido e o con-
tato metálico não poluía — estava-lhe neste ponto tão tranquila a
A FILHA

consciência! —, já sua presença causava-lhe repulsa. Repugnava-


-lhe, como o contato de um réptil. Era com displicência e fazendo
violento esforço sobre si mesmo, que se submetia à necessidade da-
quele encontro. Irritava-o, ainda, a flagrante desobediência à antiga
ordem. Se soubesse onde sua resposta o poderia encontrar, telegra-
faria: “Proíbo-lhe que venha!”. Mas o aviso recente fora expedido
do percurso, quase ao fim da viagem, precedendo algumas horas
apenas a chegada do expedidor.
Preocupava-o, sobretudo, não poder dar boas contas do depósito
que lhe confiara.
E, agitadamente, o ex-provedor espacejava pela sala sombria, a
desmanchar-se em longos gestos, dialogando a sós consigo.
Era noite, e essa a hora em que esperava Sálvio.
Os momentos aborrecidos que ia passar com o falsário, aumen-
tava-os os da aborrecida expectativa. A cada instante o major com-
punha-se e observava a porta, onde esperava ver aquele surgir. Na
porta enquadrava-se a escuridão espessa da rua. Na escuridão podia
estar o vácuo, mas podia estar um homem. Certo, o criminoso viria
sorrateiro, para não se fazer pressentir, agasalhado nas dobras cúm-
plices das trevas. O major exasperava-se com essa própria conivên-
cia da escuridão protetora. Oh, não estar a noite clara, enluzeirada
de astros, esplendente de luar, para que todos vissem e reconheces-
sem o criminoso foragido e lhe castigassem com a prisão o desfaça-
mento do regresso ao local do crime! Nesta própria circunstância
revelava-se-lhe a tara do mal… E se ele próprio prevenisse a auto-
ridade e o fizesse capturar?
Hesitou, num fulgor de esperança… Mas, preso Sálvio, lá se ia
de vez a aposentadoria reconfortadora de seus cansados anos. Uma
catástrofe! E, além das privações que passaria, cortava-se a carreira
do rapaz, que pouco tempo antes, concluídos os preparatórios, se-
guira para São Paulo, a iniciá-la. A iniciá-la e também fazer esqueci-
do o escândalo em que fora o protagonista e que tornara, ao seu lar,
alvo da maledicência pública.
Esta objeção enfurecia-o; sentia o desespero de uma fera acuada;
e como desabafo, improperava:
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— A infâmia do pai infamou a filha, refluindo lama sobre mim.


O mal contaminou o filho e nos enxovalhou a todos. E tudo partiu
dessa alma pútrida, desse atascal maldito!
A veemência das apóstrofes e o exagitar-se possesso acalmavam-
-lhe, aos poucos, a exasperação. Apaziguado, enfim, submetia-se ao
encontro inevitável.
Num dos momentos em que escrutava a escuridão, teve um so-
bressalto. Nela esboçou-se uma forma humana e Sálvio apareceu no
limiar. Era uma figura curva e velhusca. E, ante a sombra, que pare-
cia gerada pela condensação da treva exterior, aquela mole de egoís-
mo tremeu. A mão que o major lhe estendeu tinha a friez do suor da
agonia; e em sua cabeça gerou-se confusão, porque aquela sombra
murcha e curva mudamente dizia, com toda a sua pessoa: “Quero
a minha filha”. O ex-provedor desejaria falar, mas as palavras nega-
vam-se-lhe à prolação. É que agora lhe surgia um novo aspecto da
catástrofe sucedida, na qual apenas vira a si e ao filho, esquecendo o
pai da vítima. E turvava-se como Caim, ouvindo a voz celeste.
A custo recobrou sobre si algum império; e então começou, afe-
tuoso, paternal:
— Meu amigo, como mudaste! Vê-se que passaste a vida a pe-
nar… Os sofrimentos do espírito ficam-nos marcados no rosto
como cicatrizes profundas… E os teus devem ter sido imensos!
A palavra, hesitante, formulava-se mais natural. E ele prosseguiu:
— O sofrimento é nosso destino comum, a nossa cruz pesada…
Temos de levar aos lábios o cálix de todas as amarguras, para que
o paladar conheça bem o sabor da vida… E, golpe sobre golpe, é
uma tragédia que não tem fim… Digo-o eu, com a experiência das
provações… Mas os sofrimentos como que nos revestem com uma
couraça, para melhor resistir aos embates da sorte. Mesmo assim,
meu amigo, arma-te de toda a tua coragem, para o novo golpe que
te espera. Porque tua filha, Sálvio… nossa filha… perdeu-se.
A sombra, curva e humilde, como que se fez ainda menor.
— Uma desgraça, meu amigo! uma horrível desgraça. Faz me-
ses… Uma catástrofe inesperada… inexplicável… Quis relatar-ta,
A FILHA

vinte vezes tomei a pena, mas a mão recusou-se a obedecer… Si-


lenciei. Preferi manter-te na ignorância, e, se pudesse, prolongaria
a mesma ilusão, até o fim de teus dias… Bastava que o golpe me
ferisse a mim… E feriu-me duramente! Tantos os carinhos com que
a criamos, tanto o recato com que lhe amparávamos a inocência, no
sacrário do lar… e, um dia… a culpa ignorada traiu-se por si… Ia
ser mãe… E eu, como um pai justiceiro e inexorável, como tu, meu
amigo, que farias o mesmo, eu… expulsei-a.
Seu ouvinte, aniquilado, sumido, parecia prestes a acarear-se
com o pó.
— Recolheu-a um lar honesto — continuou o provedor —,
onde deu à luz o fruto de seu crime. Mas à criança, para que não a
contaminasse a mácula original, acolhi-a em minha casa. Renova-
-se em tua netinha o legado que me deixaste. E oxalá a pequenina
inocente resgate com uma vida de virtudes a culpa da concepção…
O ex-provedor senhoreara-se totalmente de si. Sua voz conso-
ladora enriquecia-se de inflexões profundas e a mão traçava na pe-
numbra largos gestos convincentes. Falou-lhe ainda longo tempo,
com unção balsamizadora, pensando-lhe a chaga recente. E como a
sombra, humilde, esmagada, recuasse lentamente, buscando a por-
ta, ele exortou-a:
— Vai, meu amigo, torna ao teu ermo, retoma a tua cruz. Vai-te
em paz. É pela soma de nossas provações que se faz grande nosso
merecimento perante o Céu… Deus te acompanhe!
E, sobre a figura triste do pai, que se desvanecia na sombra ex-
terior, suas mãos ainda se ergueram majestosas, eloquentes, a aben-
çoá-lo solenemente, numa promessa de redenção.
180 | 181

Ser ou não ser

Sálvio sentiu-se então subitamente amputado da vida. No momento


da terrível revelação seus ombros de cariátide sofredora, que esta-
lavam sob o peso de uma longa miséria, subitamente se aliviaram.
Pôs-se a vagar nas ruas sombrias. Não se destinava a lugar certo; no
apuro de sofrimento a que chegara, eram-lhe todos os caminhos in-
diferentes, contanto que conduzissem ao fim. Se procurava refletir,
seus raciocínios dissipavam-se, sem concluir em juízos. Em momen-
tos, dando acordo da realidade, admirava-se de ainda sentir-se viver
e tomava-o impressão de que era no mundo como um intruso na
propriedade alheia, um corpo estranho, uma excrescência, que tar-
dava em restituir à matéria a sua porção de matéria, para, mesclada
às substâncias elementais, remodelar-se em outros seres, em ou-
tras vãs tentativas de criação. A espaços, seu espírito se confrangia
em uma palpitação dolorosa, gemendo: “Noeme!”. Mas a filha não
existia mais. Como a realidade fora semelhante aos sonhos atrozes
que lhe amarguravam o repouso noturno! E a ele, que vivera tão só,
pareceu-lhe que somente agora se lhe fazia em torno a verdadeira
solidão. Antecipadamente sentia-se tomado pela letargia profunda
da morte. Mas, vez em vez, a noite do seu espírito se iluminava com
uma doce aparição, um vulto pequenino de criança. “Noeme!”
Os passos incertos afastavam-no da cidade. Fugia de instinto à
acumulação dos humanos, à oficina sinistra onde se engendravam
todas as monstruosidades.
A FILHA

Agora não havia covardia em acabar. E, no ermo selvático, dete-


ve-se, olhando o céu. Germinava-lhe na alma uma confusa necessi-
dade de orar. E volvendo-se para o alto suplicou:
— Senhor! Minha missão está finda. Quero agora descansar. Tra-
balhei as horas todas do longo dia da vida. A fronte alagou-se-me em
suor e trago as mãos calejadas e o coração sangrando. É justo que o
servo diligente receba o seu salário. Se fui culpado, resgatei a mi-
nha culpa. Vivi para minha filha. Ela foi o tesouro que me confiaste,
como os talentos da parábola. Dia a dia, minuto a minuto, zelei pelo
meu depósito; dei-lhe a vigília do dia e a inquietação das noites. E
agora as minhas mãos procuram-no e não o acham. Tomaram-mo.
Se tive culpa, perdoa-me, senhor! Estou cansado, quero repousar.
E longo tempo quedou-se imóvel, o olhar fito na altura, como es-
perando uma palavra de consolação. Mas o céu parecia contemplar a
sua dor com uma expressão singular, que não era a indiferença e o
tédio com que via as dores dos humanos. No seu mutismo sombrio
notava-se o que fosse de hostil; e num breve clarão que fosforeou,
arrepanhando a fímbria do horizonte, o pai viu como um ríctus sar-
dônico que insultava sua miséria. E nesse instante desvaneceu-se,
rápido como aquele clarão, o seu momento de fé. Ai dele! residia
muito longe, em altitudes inacessíveis, o Deus de misericórdia que
um dia dissera: “Bem-aventurados os que sofrem!”. Se os sofrimen-
tos lhe eram gratos, ele, como Jó, não era um monturo? Quem os
via e se regozijava era a Potestade Ignota, essa outra coisa atroz, ine-
xorável, que regia os destinos, talvez a fatalidade do Mal e da Dor.
A esse instante os olhos hediondos da potência misteriosa deveriam
rutilar como dois sóis sangrentos e sua boca disforme, babujando
peçonha, deveria estorcer-se em alegria perversa, esperando ouvi-
-lo enfim clamar, esmagado, a palavra do apóstata: “venceste!”.
E Sálvio rebelou-se. Com o olhar alucinado circunvagou o céu.
Oh, ele desejaria saber onde se ocultava a divindade terrível, para
mostrar-lhe os punhos irados, atroando o espaço de blasfêmias.
Olhava o céu com rancor, culpando-o de sua vida esfacelada. Re-
passando os transes do passado via em tudo como um propósito
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deliberado de aniquilá-lo. A essa hora já deveria estar morto, e per-


sistir em viver era um ato de suprema rebeldia. A cada instante, em
sua vida, sentira mão invisível impeli-lo para o fim, como se lhe dis-
sessem “Anda! resolve-te!”, como se o suicídio fosse o gáudio maior
para os deuses cruéis. E perdurara toda uma existência a revolta do
infinitamente pequeno contra o infinitamente poderoso.Viu em seu
passado, longe, um tênue albor de felicidade, uma remota esplanada
de ventura, e, depois, o seu descer sem fim. Descer? despenhar-se.
Quando se sentia infeliz, abria-se-lhe aos pés o vácuo de uma des-
ventura maior. Despenha-se ainda. E, ao fundo, falseia-se-lhe ainda
o chão, para rolar em novos abismos. É um suceder-se de funduras
sem termo, convencendo-o, com sua triste experiência, de que infi-
nita era a faculdade humana de sofrer. E, ao cabo de tudo, a absoluta
inutilidade do sacrifício para a felicidade da filha…
“Noeme!” A radiosa visitação iluminou-lhe ainda a atribulação
do espírito com a sua doce claridade. Viu-lhe o vulto pequenino.
Parecia ter revoltado para ele os olhos lacrimosos, implorando
socorro e proteção, como a vira um dia em sonho, perdida no
areal sem fim. Deveria ter naquele tempo corrido em sua salva-
ção. Agora, era tarde!
Não lhe restava, então, dever algum a cumprir? Ia abandoná-la
mais uma vez, irremissivelmente?
Assaltou-o uma dúvida. E quedou-se de novo hesitante entre o
ser e o não ser, agoniado, perplexo… E foi quando lhe pareceu ou-
vir, na confusão de seu espírito, ou em qualquer ponto da noite, um
riso misterioso que mofava de sua miséria…
E seu espírito alteou-se outra vez, nova onda de revolta intumes-
ceu-lhe o coração. Oh, ele afastaria todos os obstáculos que o desti-
no interpusesse, separando-o da filha. Ainda persistia integral o seu
dever de pai, como na remota infância de Noeme. Não morderia o
pó, vencido, clamando a palavra de humilhação e ignomínia. Acabar,
ainda era uma covardia. E surpreendia-se de ter sido tanta a sua
cegueira, que pudesse um momento sequer pensar diversamente.
A FILHA

— Viver para a minha filha — murmurou. — Fazer-lhe até meus


últimos momentos a oferenda de minha vida. Sempre, sempre! Se
está humilhada, devo erguê-la de sua humilhação. Poluída ou pura,
o meu dever permanece o mesmo: purificá-la, ampará-la, consolá-
-la, embora me esperem novos tormentos, embora sofra o suplício
de não a ter mais, tendo-a junto de mim.
Viver, ainda, ainda! Continuar reclinado sobre a filha, em sua
postura de carinho e proteção, como as ramas do salgueiro sobre
a correnteza… Se o inverno lhe crestou as ramas e secou as águas
do arroio, ainda assim haveria uma secreta correspondência entre a
alma da árvore morta e a alma da correnteza estanque — ou have-
ria, ao menos uma ilusão consoladora.
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Noeme

O major acordara bem-disposto. Depois do paroxismo de senti-


mentos do dia antecedente, dormira tranquilamente com o desa-
fogo de quem se evadiu de uma situação intolerável. Trouxe-lhe a
manhã a “serena claridade” que sucede às noites borrascosas. Seus
sentimentos, exasperados durante algumas horas, retomaram o
curso tranquilo. Seu alívio era repassado da agradável emoção de
sentir restituir-se-lhe a confiança em si, a consciência da própria
força, que lhe falecera um momento no dia da provação.
Naquela hora bonançosa cheia da embriaguez suave do triun-
fo, descortinava límpido o futuro; sem empeços a carreira do
filho caçula (não fosse ingrato como os outros, que apenas cria-
vam asas o esqueciam) e garantido o conforto e a paz tão gratos
a seus dias outoniços.
A esse amanhecer ditoso estava reservada uma desagradável sur-
presa. Ouvindo bater à porta, foi ele pessoalmente abrir. Era Sálvio!
Ainda! Em pleno dia! A víbora, cuja cabeça não fora bem esmagada,
levantava-a outra vez, para ameaçar-lhe o sossego e o futuro do rapaz.
O ex-provedor, tomado de cólera, empertigou-se, para assumir
a sua atitude mais majestosa; mas o seu desalinho matinal e as chi-
nelas caseiras compunham-lhe uma figura cômica.
— O senhor! — exclamou. — Ainda!
E enquanto a ira lhe tolhia mais palavras, ouviu soar a voz mansa
de Sálvio, voz de entoação abafada, como se em sua vida solitária
houvesse desaprendido o articular sons humanos. E ao passo que o
A FILHA

major revezava atitudes dramáticas exprimindo-se com a mímica da


indignação silenciosa, o pai explicava-lhe que ia levar consigo a filha
e reclamava por isso a netinha, que lhe fora tomada. A vida resumia-
-se-lhe no cumprimento de seu dever de pai e esse dever era agora
redobrado de encargos mais graves.
Como o major começasse a replicar-lhe com veemência, o
pai atalhou-o e insistiu, calmamente, reclamando a neta. Em
sua insistência havia a firmeza tranquila de quem tomou uma
resolução irremovível.
Então a cólera do major desencadeou-se em reboos tremendos,
nos mais atroantes impropérios. É que na suavidade daquela manhã
alvorecida tão linda, via agora o total desmoronamento de sua vida.
E, diante da persistência invencível do pai, precipitou-se desca-
belado porta a fora pregoando-lhe o nome em altos brados, man-
dando avisar a força…
Quando as praças chegaram, o pai saía do interior da casa ten-
do a criança nos braços. Deixou-se conduzir passivamente, re-
lutando todavia em entregar a menina, que lhe quiseram tomar.
Apresentaram-no à justiça. Mas não o detiveram preso: o crime
estava prescrito.
Apenas livre, Sálvio pediu informações sobre o paradeiro de
Noeme. Não lho sabiam dizer. Não a conheciam pelo nome. A al-
guém, todavia, lembrou perguntar-lhe se não era a “alugada do ma-
jor”. À resposta afirmativa, deram-lhe a indicação; procurasse uma
casinha pobre, no campo, a meia légua da cidade. Fora onde a reco-
lheram, ao sair expulsa da casa do provedor.
O pai deixou a cidade, tomando o caminho indicado. Cabisbai-
xo, todo abstraído em suas cogitações, arredava-se maquinalmente
dos carros e cavaleiros que encontrava. E a si mesmo repetia como
um refrão: “cumprir o meu dever…”. E esta reflexão aligeirava sua
alma fechada num círculo de pensamentos tristes — a tristeza da
perdição de Noeme…
De uma volta da estrada avistou a casinha. E, instantaneamente,
naquele ponto, uma onda de emoção fez-lhe esquecer a mácula da
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filha. Houve um colapso na realidade e viveram apenas os senti-


mentos do passado.
Encaminhando-se para o casebre observou-o. Comparada com
ele, a casa em que vivera em seu desterro era uma habitação confor-
tável. Envolvia-o um silêncio profundo. Parecia deserto. Em volta,
o silêncio dos campos. Não se ouvia um cantar de ave. E o coração
bateu-lhe em sobressalto pressago… Após tantos obstáculos não iria
encontrar ainda Noeme? A realidade iria ser como em seus sonhos
aflitivos, nos quais, ao chegar, diziam-lhe que Noeme partira para
longe, muito longe? Seria como uma dolorosa previsão o pesadelo
em que agoniado a procurara em vão, no meio da cidade em festa,
entre milhares de crianças pequeninas como ela, apenas entreven-
do, a distância, o vestidinho vermelho, que logo se desvanecia? Ou
estaria ainda a sonhar, supondo Noeme tão perto? Ia talvez acordar,
murmurando: “Separam-nos duzentas léguas!”. Seria possível, santo
Deus, que apenas estivesse de permeio entre ele e a filha a simples
espessura de uma parede?
O receio de perdê-la ainda, congelava-lhe o sangue, corria-lhe
no corpo um arrepio álgido, tiritava… Murmurou consigo, bus-
cando tranquilidade: “São vãos receios. Ela está aqui”. E, mais cal-
mo, contemplou a paisagem que se estendia à frente do casebre:
a tristeza dos campos, escalonados de pequizeiros raquíticos, con-
torcendo como supliciados os galhos misérrimos. Uma caravana de
morros escalvados fugia para o horizonte desoladamente, como em
cumprimento de uma romaria dolorosa. Sálvio disse consigo ao ver
um banco tosco, ao lado da entrada, que certo a filha costumava
sentar-se ali, ao morrer melancólico das tardes e que aquela paisa-
gem era a que contemplava a sua tristeza. E como se na paisagem
que era familiar aos olhos dele também estivesse um pouco de sua
filha. Sálvio fixou-a para se apossar dos pensamentos de Noeme que
ali se dispersaram; e nunca mais lhe esqueceriam a faixa amarela
da estrada, serpeando nos campos ermos, os pequizeiros retortos,
emplastrados de cupins e a caravana dolente dos morros por onde
viajara a mágoa de sua alma, a sua humilhação, a sua vergonha…
A FILHA

O coração confrangeu-lhe a esse pensamento. Era piedade, mas


era também o amargor do desespero. Lembraram-lhe suas palavras:
“Sofrer o suplício de não ter mais filha, tendo-a embora junto de
mim…”. Mas para que pensamentos dolorosos em hora tão feliz?
Bastava repetir-se agora que ela estava ali, distante dele a
espessura de uma parede apenas e que não haveria quem lha
tomasse mais.
E, concentrando toda sua força de ânimo, bateu tremulante
à porta…
Na casa fez-se pequeno rumor. Soaram passos em direção à por-
ta. Assomou nesta uma moça.
Sálvio observou-a. Não teria ainda vinte anos. Os pés estavam
descalços e vestia uns frangalhos de roupa. Sua fisionomia tinha ex-
pressão medrosa. Enquanto encarava com desconfiança aquele des-
conhecido, que trazia achegada a si uma criança, Sálvio observava-a
muda e fixamente.
Era-lhe uma estranha. Não a reconhecia. E seus olhos ansiosos
cravaram-se nela, agudamente…
Então deu-se uma deformação de imagens, como quando a vis-
ta fixa cansativamente o mesmo objeto… uma transfiguração…
Aquele rosto, aquele ser desconhecido, foi desfazendo o seu sigilo
e revelando-se lentamente a ele. Era um enigma que lentamente
desvelava seus arcanos, uma nebulosa imprecisa que se ia esboçando
em contornos e modelando em ser… Como na fantasia vertigino-
sa do retorno ao passado, na marcha retrógrada do tempo, apare-
ciam no semblante da jovem traços infantis e o corpo reduzia-se-lhe
numa figura de criança triste, presa de uma saudade imprecisa, a
vagar pela casa, ninando a boneca… Feição a feição, renascia na
moça a filhinha abandonada.
Era ela.
Mudamente, ante seu olhar de espanto e incompreensão, Sálvio
mostrou-lhe o rostinho da criança e ofereceu-lha…
Ela precipitou-se a tomá-la. Em seu rosto não se pintava o vexa-
me da culpa e sim uma expressão de alegria desbordante.
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E no mesmo instante receosa, perguntou-lhe:


— Não a leva mais?
E na incerteza da resposta, sua expectativa era angustiosa.
Sálvio murmurou apenas: “Noeme!”.
Ela encarou-o surpresa. Não o reconhecia.
O coração do pai abrumou-se. E lembraram-lhe as suas pala-
vras do passado: “Oh! Eu desejaria que ela me reconhecesse sem-
pre como seu pai, como seu protetor! Desejaria, quando a minha
imagem se lhe desbotasse no pensamento, sacudir-lhe a memória
entorpecida como se desperta a um dormente, clamando-lhe: —
Olha-me, reconhece-me, alma de minh’alma, sangue de meu san-
gue! Sou eu, teu pai!”. Em seu espírito talvez já ele estava morto.
Morto ou infamado… E se acaso o reconhecesse, ia retrair-se num
momento de repulsa e de pavor…
E o coração do pai mergulhou-se numa agonia “mais amarga do
que a morte”.
Fixou-lhe ainda um longo olhar de desesperação infinita… como
se quisesse atingir-lhe, através dos olhos, os meandros mais remotos
de sua memória, para que, através dos anos, ressuscitassem as lem-
branças antigas…
— Noeme! — murmurou de novo, com infinita tristeza.
Abalada por aquele olhar profundo, Noeme estremeceu…
Aquela voz como que a ouvira já… Há muito tempo, em sua in-
fância… Nas suas reminiscências remotas houve um sobressalto,
fulgurou-lhe no espírito uma súbita intuição…
E o olhar da filha iluminou-se, a fisionomia expandiu-se, e a ex-
pressão de felicidade que lhe transfigurou o semblante parecia di-
zer-lhe, como em outros tempos:
— Oh! Eu te reconheço! És o meu paizinho!
A FILHA

Trevas…

Anoitecia.
O comboio corria, rumoroso e em seu ímpeto selvagem era
como um animal noturno, que exulta com a chegada das trevas.
Sálvio, a filha e a netinha formavam um grupo silencioso no re-
canto de um vagão.
Noeme, envolta em seu vexame, conservava-se quieta e humil-
de, com um vago receio de tudo e de todos.
Sálvio também estava mudo. No isolamento em que vivera, de-
sabituara-se do uso da palavra. Sua boca silenciara a vida toda, e ele
apenas conversava com a filha em pensamento. Tinha-a agora defini-
tivamente, mas seus lábios fechados como por um selo de chumbo,
ainda nada conseguiam dizer.
Suas almas, que se haviam aberto no instante do mútuo reconhe-
cimento, não se comunicavam mais; isolaram-se de novo, concen-
tradas em seus próprios sentimentos, fechadas, distantes…
Ele queria agradar-lhe, falar-lhe, fazer planos de futuro, mos-
trar a melhoria de situação que a esperava, desejaria, forçando o
próprio acabrunhamento, dizer-lhe ao menos frases triviais, que
rompessem o silêncio penoso. Não o conseguia. Se queria a boca
proferir alguma palavra, seus lábios, dolorosamente comprimidos,
negavam-se a pronunciá-la.
É que agora, vencidas tantas dificuldades, acalmada a exaspera-
ção da luta para reconquistá-la, volvia-lhe o senso da realidade, que
momentaneamente lhe fugira e uma onda negra de desespero, lento
e lento, voltava a senhorear-se de seu espírito.
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Levando consigo a filha, tinha a sensação de que a perdera irre-


missivelmente. Noeme era a outra, a doce visão do seu passado, o
pequenino ser inocente que lhe aclarava a noite do espírito com um
doce fulgor de aparição. E ela morrera como um sonho, dispersan-
do-se nas brumas do passado, amortalhada em sua saudade.
Sálvio vencera o destino… Mas que valia a vitória? Nela achava
um amargo sabor de derrota.
E, sombra a sombra, desciam de novo ao seu espírito os sen-
timentos tristes, como bandadas lúgubres de corvos, de grandes
asas de luto, abatendo-se em longos giros sobre a presa inerte. Fora
também a noite baixava, sombra a sombra, e, na tristeza universal
das coisas, fazia estranho contraste a alegria selvagem do comboio,
que era como uma grande besta noturna, que se compraz, com a
chegada das trevas.
Noeme, Noeme! Era ela aquele ente maculado, que acalentava
nos braços uma criança? O pai a contemplava em doloroso espanto.
Noeme, curva sob sua vergonha, continuava silenciosa. Temia o
silêncio do pai. Sabia que em seu foro interior a estava julgando,
e — ai dela! — entre todos os seus julgadores não encontrara uma
alma compadecida.
Certo momento a criança acordou chorando. Sentia frio. A mãe
aconchegou-a mais contra si. Não tinha outro agasalho nem levava
outra roupa a não ser os farrapos que vestia. A pequenina aquietou-
-se. E Noeme, vencida afinal pelo cansaço, acabou por adormecer
também. A cabeça reclinou-lhe sobre o seio e mesmo a dormir sua
postura era de humilhação e de vexame.
Sálvio contemplava-a, trespassado de dor. Era, em verdade,
aquele ser poluído, a pequenina toda inocente por quem se definha-
ra de saudades, e que, quando ia sair, lhe repuxava o paletó com as
mãozitas insistentes? Cravava-lhe obstinadamente os olhos, e, quan-
to mais lhos fitava no corpo adormecido, mais a mancha crescia,
alastrava-se, tomando-a toda, como uma úlcera maligna. Fazia sobre
si um grande esforço para que em seu espírito dominasse apenas a
piedade; mas uma repulsa incoercível o impedia, afastando-o dela.
A FILHA

Parecia-lhe ouvir o riso escarninho dos fados maus: “Não terás


Noeme… Sentirás o horror de não ter filha, tendo-a embora junto
de ti…”. Antes houvesse morrido, que suportar esse martírio. E
ele achava em seu novo sofrimento um sabor diverso de todos até
então sentidos. Figurava-lhe cada sofrimento ter seu sabor próprio
e todos os sabores eram atrozes. Ele era na vida como o único con-
vidado de um banquete macabro, condenado a alimentar-se, como
Fineu, das iguarias nauseabundas temperadas pelas Harpias. O úl-
timo prato requintava no horrível. E, tendo acordo de que o trem
corria, Sálvio perguntava-se: “Para que viajar tanto? O mundo é em
toda a parte igual para o desespero. Em qualquer ponto pode este
acampar, sendo inútil o dispêndio de tantas fadigas”. A desventura,
aninhada no coração de ambos, ia com eles, veloz como o comboio,
através das distâncias vencidas.
A corrida na noite prosseguia rumorosa. Sálvio, oprimido pelo
sofrimento, olhava desatento para fora. E os véus de sombras bai-
xavam ainda na treva densa. Dentro das trevas havia trevas maiores,
maciços de negrumes que não lembravam perfis de coisas conhe-
cidas. Um velário negro cerrara sobre o céu uma abóbada de luto.
Era como se todas as coisas fossem morrendo, envoltas em amplo
sudário negro. Apenas, única parcela de mundo que ainda subsis-
tia, via-se um recanto do céu ao longe, muito ao longe, iluminado
pelo bruxuleio de um luar agônico, de um verde de gangrena. Na-
quela pequenina nesga de céu longínquo, que aos poucos se velava
também, recortava-se um minúsculo perfil de palmeira, entre ra-
ras estrelas tristes. E nos confins do horizonte, aquele pequenino
recanto de céu, era como a última despedida da vida distante, a
imagem esvanecente da última esperança e quase uma recordação
do que já foi.
Sálvio, para fugir à obsessão invencível, murmurava surdamente,
como se repetisse com desesperado fervor as palavras de uma pre-
ce: “É a carne de minha carne, o sangue de meu sangue…”.
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A aurora da ressurreição

E o galope sem tréguas rompia o seio da noite. Agora, galgando


um aclive, a locomotiva arquejava, borbotando um repuxo de
faíscas, que se desnastravam sobre o comboio, envolvendo-o
numa coma ígnea.
Feria o olhar de Sálvio o oblíquo perpassar das faúlhas, estriando
o negror das trevas; via-as como miríades de salamandras de fogo
curvetear em dança doida e se extinguirem. Cada qual era como
agitada pela passageira alegria de uma vida breve; umas persistiam
mais, outras menos tempo e todas alfim apagavam-se; havia-as que
tracejavam no espaço uma curva louca, indo morrer ao alto; outras,
mais vivazes, esteiravam o chão de uma semeadura de pontos ar-
dentes, que logo se consumiam. E era como se as trevas, dilaceradas
pelo efêmero meteoro, galopassem em rolo negro ao encalço do
comboio, refazendo o rasgão de luz que se lhe abria no espesso luto.
E a máquina, exausta, em resfôlego penoso, violentando o seio da
noite com seu estridor e seu clarão, borbotava, como o jato de inex-
tinguível fogo de artifício, novos turbilhões, que sem cessar reno-
vavam a juba ígnea, envolvendo o comboio num chuveiro ardente.
E Sálvio meditou: Quem ao longe observasse o comboio, no-
taria apenas um clarão e o clarão pareceria cada noite o mesmo,
como uma coisa que perdurasse idêntica a si própria. Aos olhos
desse, a vida agitada das fagulhas era uma calma claridade que
passava ao fundo da noite e que ao outro dia tornaria a passar. To-
davia, instante a instante, já não era a mesma a juba de fogo, nem
A FILHA

as mesmas as faíscas, embora persistisse a revolver-se no espaço o


seu bulcão de ouro.
E Sálvio disse consigo que a humanidade era aquele clarão, e faísca
a vida atormentada dos humanos. Uma e outra tinham aqueles cur-
veteios breves, que ora tracejavam para o alto uma espira louca, e ora
iam acabar no chão… A vida era a dolorosa convulsão das salaman-
dras efêmeras. E, semelhante aos borrões de sombra no encalço do
comboio, iam os rolos negros da morte em pós do meteoro fugidio,
na trajetória do tempo, refazendo os rasgões de seu severo dó.
E Sálvio achou a vida vã, o homem vão e o mundo vão.
Por que tanta inquietação, tanta luta e aflição d’alma, na exis-
tência breve do “bicho da terra tão pequeno”? Eram desnecessários
tantos soluços, anátemas, blasfêmias, traições, anseios impossíveis,
angústias sopitas, iras devastadoras, a amargurar o trânsito da pe-
quenina salamandra fugace. Não pela culpa dos homens e sim pela
sua ignorância. Procurando saber tanta coisa, descuravam-se de
aprender a viver. Postos em organização social em que não podiam
ser bons, embora o desejassem, porfiavam, numa falsa compreensão
das coisas, em torturar-se uns aos outros. Ignorância, rotina, erro
nefasto… Condenando Noeme, a pobre filha que vivera sem viver,
ele pensava como os outros, acompanhava a sugestão das ideias ela-
boradas pela razão do homem medíocre. Devia vê-la por si, julgá-la
à luz da sua razão, repelindo a influência das ideias feitas, que eram
a resultante grosseira de raciocínios de cérebros espessos, rudimen-
tares, de inteligências em ser.
E agora ele não via que ela fosse mais maculada do que as cons-
ciências que se arvoravam em juízes. Dissera-o Cristo, à multidão,
em defesa da pecadora: “Quem se sentir sem nódoa, atire a primeira
pedra”. E a onda humana estacou, pois todos se sentiram infames…
Ela era, certo, composta, em seus elementos mais puros, de homens
pacíficos, que venciam pela astúcia receando empregar a força, de
ricos honestos, cujos tesouros eram a cristalização das lágrimas dos
necessitados, de esposas fiéis, que não tiveram o ensejo de pecar…
Aos olhos de Sálvio, a humanidade não era mais que um sórdido
mostruário de vilezas.
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Lançada a semente à terra — meditou ele —, se esta for ge-


nerosa, o gérmen desenvolve-se, rebenta em haste, frondeja em
árvore, floresce e frutifica. Ele deitara ao chão da vida aquela se-
mente preciosa — a filha, e dela fizeram uma árvore de miséria
que fruteou em lágrimas e desonra. É que, adubado de torpeza,
o solo era maldito, esvurmando a seiva corrupta com que se ela-
boram as abominações. Se em verdade era a vida os sete círculos
da dor, também era os sete círculos da opressão iníqua, do crime
impune, da perfídia vitoriosa… Círculos ascendentes, em espiras
gigantescas, torrejando em monumento sinistro de apoteose da
Corrupção e do Mal.
E instantaneamente, assim refletindo, viu cair todas as barreiras
que o separavam da filha. No coração do pai viçava agora unicamen-
te a piedade. Noeme não era culpada e sim uma vítima. E, enquanto
contemplava a filha adormecida, humilde mesmo em seu sono, com
a cabeça reclinada sobre o peito e achegando de seus andrajos a fi-
lhinha, como que para aquecê-la com o calor de seus braços e de seu
seio, que era todo o agasalho que sua penúria lhe poderia dar, a flor
da piedade vicejou maravilhosamente, tomou-lhe todo o âmbito do
coração, que parecia prestes a romper-se…
Reviveu então o passado da filha, imaginando como ele devera
ter sido, em seu desconforto e abandono. Seu esforço obstinado, o
sacrifício obscuro de toda a sua vida, foram inúteis, não concederam
a Noeme o sorriso de um instante. Em benefício de estranhos luta-
ra até a exaustão física e moral. Somente agora, pela primeira vez,
lhe valia, não por um ato deliberado, mas em consequência de um
impulso irreflexivo do desespero. Que longa e triste lhe devera ter
corrido a infância! Não sentir reclinado sobre si o desvelo do cora-
ção dos pais, palpitante de cuidados e pródigo de carinhos, em suas
moléstias e desventuras, invejando os outros que os possuíam…
Tanto confiara nele! Dissera-lho o seu olhar de doentezinha, quan-
do o reconhecera, convalescendo do sarampo… Esperara que ele
voltasse. Esperara-o talvez longos anos. E depois a esperança amor-
teceu-se. “Meu pai esqueceu-me”, dissera consigo. E, com o tempo
A FILHA

a esperança fanou-se e esqueceu-o também. E assim cresceu, entre


seres indiferentes e hostis. Em sua nubilidade a Natureza, mãe afe-
tuosa, baixara até ela e ornara-a com as graças da mocidade. E então
os seres indiferentes e hostis sorriram-lhe falsamente e macularam
a sua pureza. E quando a falta não se pôde encobrir, foi a expulsão
impiedosa e a filha arrancada de seus braços…
Era uma vida truncada, falha. Oh! ele devia ter compreen-
dido o sonho pressago em que a vira, através de duzentas lé-
guas, estender-lhe os bracinhos, implorando socorro. Deveria
ter adivinhado tudo! Fora imprevidente e demasiado confiante.
Para resgatar a própria falta acariciou um momento a ideia da
vingança… Mas da vingança ainda poderia resultar a separação.
Tornaria a perder Noeme. Agora que reouvera o seu tesouro, de-
via coser-se avaramente com ele, fugir, escondê-lo e nada mais…
Nesse momento sentiu ao ombro uma leve pressão. Era a cabeça
da filha adormecida, que se reclinara contra ele. Oh, que ânsia mal
sopitada lhe veio de abraçá-la, de acariciá-la delirantemente, beijar-
-lhe os olhos, os cabelos, chamando-lhe os mais carinhosos nomes!
Mas, receando acordá-la, ficou imóvel, retendo a respiração, no
recanto obscuro do vagão, enquanto os arrebatava através da noite
o ímpeto alucinado do comboio…
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O momento da felicidade

Cerrara-se de todo o velário negro do céu. O comboio, resfolegan-


te, trepidava num planalto. O olhar, que não encontrava ao longe
pontos de referência, no empastamento uniforme das trevas, pres-
sagiadoras de tempestade, tinha a ilusão de que ele se conservava
imóvel. O céu e a terra morreram. Era como se o único remanes-
cente das vidas e das coisas se tivesse ilhado no interior daquele
carro, iluminado pelos vasquejos mortiços de uma lâmpada de gás.
E parecia que toda a felicidade do universo morto se tivesse ido
refugiar ali, num recanto do vagão, no coração do velho pai.
Aquele momento ia ficar indelevelmente gravado na memória
de Sálvio, como um momento de felicidade absoluta. Ao evocá-lo,
ia rever sempre as trevas, o bruxuleio da lâmpada, e sentir aque-
la trepidação ruidosa, parecendo-lhe ter ainda contra o ombro a
suave pressão da cabeça adorada. Era Noeme! sua filha! — re-
petia-se. E ele, imóvel, sem ânimo de fazer o menor gesto, con-
templava-lhe as feições adormecidas e concentrava-se a ouvir o
brando sopro de sua respiração… Era um êxtase religioso em que
sua alma, como o corpo, também se imobilizara. Oh, ele desejaria
que o mundo se detivesse eternamente, naquele momento, para
não findar a emoção incomparável!
A FILHA

O despertar

Quando Noeme abriu os olhos, pintou-se neles a surpresa.


Olhou em torno, viu o pai, e, então, tendo acordo da realidade,
seus olhos surpresos baixaram-se, exprimindo vexame e temor.
Sálvio reteve-a contra si, cingindo-a brandamente, e, levantan-
do-lhe o rosto, osculou-lhe a fronte.
Noeme fitou-o de novo, e desta vez seus olhos exprimiam uma
surpresa feliz. Era verdade que tinha um pai que a amava, e que es-
tava consigo a filhinha que lhe tomaram?
— Minha Noeme… minha filha… — murmurou Sálvio.
E desde esse momento reaprendeu a falar. E enquanto na noite
prosseguia a fuga rumorosa do comboio, Sálvio desoprimiu-se da
confidência há tantos anos recalcada: “Desejaria que ela soubesse
quanto a amava!”. E a esse momento a alma aliviou-se-lhe, fazendo-
-lhe longamente a narração do seu passado, em todos os seus dolo-
rosos transes. Fez-lhe sentir a melancolia dos longos anos envoltos
em sombra funérea, a infinita saudade na amargura do desterro, a
áspera luta contra a terra e contra a sorte, para fazê-la feliz. Cada
ato seu, cada um de seus pensamentos, fora uma dádiva completa de
seu ser à filha abandonada. Narrou-lhe a agonia mortal de seus so-
nhos, nada lhe esqueceu dizer do que lhe fizesse compreender que
sua vida era totalmente, exclusivamente dela. E, enquanto falava,
estreitava-a contra si, como para ter bem viva a sensação da posse e
evitar que lha tomassem de novo.
A filha ouvia-o, presa de suas palavras, e, na expressão com que
o fixava, liam-se a revezes, o pesar de saber-lhe os padecimentos
198 | 199

e o júbilo de ter sido tão amada. Cada frase proferida era novo elo
unindo alma a alma. Noeme perto do pai já não se sentia ré em face
do julgador; sentia-se filha. E, na doçura dessa sensação, nunca sen-
tida, aconchegava-se mais contra ele, fazendo-se pequenina, tendo
a impressão de ser a criança cuja imagem adorada Sálvio conservava
no mais puro relicário da memória. Chamou-lhe pela primeira vez
“papai”. E, seu rosto, iluminado pela ventura, assumira uma expres-
são de contentamento infantil.
Sálvio, com a alma túmida de paternidade, encontrava nesse sen-
timento a violência e a doçura de uma paixão. Quando se calavam,
continuava no silêncio a comunicação das almas, multiplicando os
vínculos do afeto. Às vezes, Sálvio dizia: “Fala-me, Noeme… Dei-
xa-me ouvir a tua voz… Fala-me ainda… ainda…”.
O momento da felicidade prolongava-se e não findaria mais. Sál-
vio, todo de seu sentimento, não tinha mais acordo da realidade
exterior. Não sentia os solavancos do trem, cuja corrida louca pros-
seguia, nem o retroar do temporal.
Esboçou-se enfim no horizonte o primeiro albor azulado da ma-
nhã nascente. No caos negro em que tudo jazia, recomeçou de novo
a separação entre o céu e a terra, entre a luz e a sombra, como nos
dias da criação. Depois da morte do universo da angústia sem limi-
tes, ressurgia o mundo novo, de paz e de ventura incomparáveis.
A essa hora, sentindo frio, a criança vagiu. Noeme chegou-a ao
seio, aquecendo-a com o calor de seu corpo, que só esse era o aga-
salho que lhe podia dar. Ela também tiritava.
— Sente frio? — perguntou-lhe o pai.
Acenou que sim.
Sálvio relanceou em torno. Lembrou-se, porém, de que nada
tinha para a agasalhar. Então estreitou-a mais contra si, como ela
fizera com a criança.
Os três pareciam fazer um único ser.
E, reclinada contra o pai, que lhe acariciava as pálpebras cansa-
das, fazendo-se pequenina, como uma criança aninhada no regaço
materno, Noeme readormeceu.
A FILHA

A primavera voltou…

A cidade pouco se alterara com o passar dos anos; por isso, a chá-
cara era ainda num ermo agreste, na grande praça deserta, onde
as paineiras se alteavam, majestosas e vetustas, voltadas em medi-
tação para o infinito.
Mas agora, aquela melancolia de arrabalde, onde a sombra das
grandes árvores eram como a condensação das saudades de Sál-
vio, não despertava pensamentos tristes na alma do venturoso pai.
Em sua vida alvorecia. Havia uma doçura de amanhecer nas pró-
prias sombras noturnas, que dantes, espessadas com suas tristezas,
eram tão mais sombrias!
Com que alegria começou a reconstruir sua casinha em ruí-
nas! Aprumavam-se as paredes, brancas de cal, sorria a tinta fresca
nos portais. O que pudesse, Sálvio fazia com suas próprias mãos,
dispensando o auxílio de profissionais. Seu desterro fora-lhe um
aprendizado de todos os ofícios rudes… Dir-se-ia um noivo pre-
parando o seu ninho de amor, mas não haveria noivado tão cheio
de venturas!
A casinha, assim pequena e clara, emboscada entre festões de
videiras, lembrava, em verdade, um ninho entre a folhagem. E
que fazia ser pequena! Havia em seu âmbito espaço bastante para
a felicidade residir. Porque a felicidade não é como a dor, que,
quando borbota de uma alma, o mundo é pequeno para espraiar-
-se; deem-lhe um raio de sol, a graça de uns pâmpanos e um re-
canto de paz, que é tudo quanto pede… Falte-lhe ainda isto, e ela
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se aninhará no pequenino espaço de um coração, que lhe parecerá


imenso como o universo, porque ela traz todo o universo conden-
sado em si.
Ninguém suspeitava o que ia de ventura na “tapera do velho
louco”. Mesmo alindada, conservava no bairro a denominação
que designava a um tempo a ruína da moradia e a do morador.
Fora talvez para a velar, recatando-a dos motejos do vulgo, que as
videiras, vegetando em assomos vigorosos, porfiaram em desdo-
brar-se em pâmpanos, recobrindo-lhe as paredes. De seu surto
indisciplinado Sálvio conservara o que aumentava o pitoresco da
vivenda. As janelas e portais emolduravam-se em folhas verdes;
“saborosas” carnudas debruavam-lhe o telhado; e, metendo-se de
colaboração, o melão-de-são-caetano recobria-lhe largos panos
de paredes, com sanefas de folhagens entremeadas de ásperos
frutos amarelos.
Noeme sentia-se feliz e achava o mundo completo, estando
entre a filhinha e o pai.
Cada dia os numerosos elos que cria a vida em comum tor-
navam-lhes mais suave a convivência. As relações com estranhos
eram escassas; mas a repulsa instintiva que inspirava o velho, ate-
nuava-se, porque sua fisionomia iluminara-se; procurava os vi-
zinhos, mostrando-se-lhes afável; e os próprios pequenitos, de
quem era o espantalho, tomavam-lhe amizade, porque lhes dava
frutos do pomar.
Sálvio tornara-se outro. Seu espírito já não se projetava longe,
sempre ausente do lugar e do momento atual; sua felicidade, ti-
nha-a agora ali, ao alcance da mão, na hora presente e nos limites
de seu pequenino lar. Nem lhe faltava saúde. Talvez pelo efeito tô-
nico da alegria, aligeiraram-se-lhe os anos e a enfermidade esque-
cia; e a lembrança dos sofrimentos idos, o recordar a miséria nel
tempo felice, requintava, pelo contraste, sua incomparável ventura.
Não o preocupava mais a avareza da terra, que continuava a
regatear-lhe as colheitas mesquinhas, pois, vivendo com simpli-
cidade, sem as exorbitantes exigências do ex-provedor, tinham o
A FILHA

suficiente para passar. E dava-se ao trabalho com renovado ardor,


na esperança de que a terra, afinal reconciliada com ele, se desen-
tranhasse em abundantes messes.
Todos os dias, despedindo-se de Noeme com um saudoso
“até logo”, saía de casa e acompanhava os enxadeiros até o eito,
a orientar-lhe o serviço e auxiliá-los. E a breve separação cus-
tava-lhe. Exigia-lhe o esforço preciso para afastar um corpo grave
do centro de atração. Enquanto podia, volvia o olhar, pousando-o
no querido ninho que se distanciava. Perdido de vista, era como se
a desolação caísse em tudo o que seus olhos alcançavam. Não po-
dia afastar-se muito tempo. Os mínimos pretextos faziam-no tornar
a casa. Faltando-lhe aqueles, tornava do mesmo modo… Chegava
anelante, com um ar atarefado, e procurava a filha. Se não a visse
logo, chamava: “Noeme!”. Ela deixava o que estivesse a fazer, indo
ter com o pai. Sorrindo, fixava-o interrogativamente, como per-
guntando por que a chamara. E ele desconcertava-se, não sabia o
que dizer; por fim, sorrindo, confessava: “Nada… Era só vontade
de te ver, filhinha”. Ela mostrava-se contente de ser assim amada; e
Sálvio, tomando-lhe a cabeça entre as mãos, beijava-lhe a fronte. “Já
aplaquei minha sede, dizia… Agora, torno à tarefa”. E, venturoso,
partia de novo, a cuidar da lavoura.
Às vezes, estivesse o tempo firme e o sol não causticasse muito,
Sálvio levava-a consigo. Escolhia uma sombra de arvoredo perto
da lavoura, onde deixava a filha e a netinha. Para não estar ociosa,
Noeme levava a cesta de costuras; e quando a criança se aquietava,
sua agulha ia ponteando agasalhos para a pequenina ou meias de
lã para o pai.
Nesses dias não havia pretextos bastante fortes que fizessem Sál-
vio tornar a casa. Com frequência Noeme levantava os olhos do
trabalho e volvia-os cuidadosos ao pai, receando para sua saúde a
canícula, o cansaço… A qualquer momento que lhos volvesse, era
certo encontrar os dele a contemplá-la. Não só a contemplar: a
adorá-la… Noeme, ao abrigo daquela sombra, figurava, aos olhos
do pai, uma das antigas divindades agrestes, com que os lavradores
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povoavam os seus ermos, a fim de não se sentirem ali tão sós. E um


fruto saboroso que se lhe deparasse, ou uma bela flor ou avença, ia
levá-los, singelas oferendas, propiciatórias, à divindade de seu culto.
E Sálvio dizia-lhe: “Quantas vezes, filha minha, no lugar em que
te encontras, meus olhos viam um vazio doloroso, o mesmo vazio
que eu notava em todo o circuito deste vasto horizonte!”.
Malgrado sua felicidade atual, ele se entristecia. Todas as coisas
ficaram tão impregnadas de seus sofrimentos, que nela restava ainda
um obscuro resíduo de melancolia. Sofria retrospectivamente…
Certa vez, conduziu-a dali a um ponto mais alto, donde lhe
apontou um sítio distante.
— Vês, Noeme, além, aquela depressão? Nela erguia-se, há anos,
uma montanha de granito. Como escasseasse a pedra muitas léguas
em torno, turmas de cavouqueiros, numerosos e pequenos como
formigas, ali trabalhavam do nascer ao pôr do dia. A espaços, uma
detonação surda atroava nas entranhas da rocha; e um eco doloroso
e longo, como o lamento de um gigante, soluçava muito tempo, de
encosta em encosta. Hora a hora, o gigante ferido reboava novos
brados de dor… A cada detonação desprendiam-se moles de pedra
e o formigueiro fervilhava, apossando-se dos destroços da explosão.
Passava-se o ano nessa faina incansável e a montanha de pedra
era ainda a mesma. Novos anos volviam-se e a obra de destruição
fazia-se apenas perceptível… E essa lentidão acabrunhava-me, dan-
do-me a sensação da pequenez da vida para a realização das obras
colossais… e porque encontrava não sei que analogias entre aquela
montanha e minha dor infinita. Tinha como o pressentimento de
que o arrasamento da pedreira era o relógio que marcava o tem-
po da separação, o tempo em que eu te deveria reconquistar…
Oh, lentidão desesperadora a dos ponteiros desse relógio impla-
cável… E que melancolia imensa a das horas sem-número que
ecoavam gementes, de quebrada em quebrada…
Enfim, o colosso de pedra nivelou-se… O formigueiro humano
retirou-se, levando em carretadas as últimas lascas do rochedo. E meu
desespero, ao contrário, avolumando-se, era a mais alta montanha que
A FILHA

o céu via… E foi então que, num ímpeto de loucura, fiz num dia o
que aqueles homens fizeram em anos… Soou a hora da felicidade…
Parti e reconquistei-te, minha filha!
Noeme ouvia, rasos os olhos de pranto…
Havia, assim, em tudo, um testemunho de seu passado infeliz.
Agasalhava-se uma sombra em cada árvore, em cada acidente do
terreno. Mas essas sombras tristes iam-se aos poucos desprendendo
das coisas, como as névoas noturnas à luz do dia nascente.
À tarde, saindo a empregada que auxiliava na casa, admitida com
relutância de Noeme, que queria tudo fazer, saíam a passeio, per-
mitindo-o o tempo, pelas cercanias da cidade. Procuravam de pre-
ferência as estradas desertas, cuja paz bucólica não quebrava o rit-
mo de sua harmonia interior. Ora calavam, contemplando o poente
congesto de luz, espalmando no céu faixas suavemente coloridas,
espetáculo que era novo para eles, como se até então os olhos intro-
vertidos para o sofrimento não tivessem dado acordo da realidade
exterior; ora se falavam, e o silêncio da tardinha dava às suas frases
a ressonância e como a profunda significação das palavras de uma
prece. Assim em comunhão com a natureza, sentiam maior a comu-
nhão das almas. Sálvio, em seus passeios, mostrava-lhe, onde as vis-
se, as testemunhas do seu desespero e a cada confidência era maior
a aproximação de ambos. Uma vez dissera-lhe: “Uma das ideias que
mais me martirizavam em meu desterro era o receio de morrer sem
que conhecesses a teu pai. Eu devia ocultar-me dos homens, mas
desejaria que soubesses que havia num lugar remoto um pensamen-
to absorvido em ti, um coração que não tinha outra palpitação, que
não fosse seu transbordante amor por ti. Não me conformava com a
ideia de que, olhando o mundo em volta, te sentisses só. Por isso, a
ideia de acabar incutia-me horror. Mesmo na morte há felicidade e
desventura… Se morresse hoje, não me desse cuidados o deixar-te
só, eu acharia na morte uma suavidade infinita… É que afinal meu
coração se desoprimiu de seu grande pesadelo”.
A pompa do poente ia esmaecendo em azul e cinza. Baixava a me-
lancolia do crepúsculo e com ela se acentuava o resíduo de tristeza
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remanescente nas coisas. Mas era uma tristeza benfazeja, porque in-
clinava-lhes mais fortemente os corações à piedade e à ternura.
Noeme ouvia lacrimosa a narração do que sofrera o pai e Sálvio
comovia-se à evocação dos sofrimentos ignorados de Noeme. Se
um cavaleiro os cruzava e a criança confrangia-se de medo, ou se
o relento da noite punha Noeme cuidadosa pela saúde da filha, o
que os fazia abreviar o passeio, Sálvio lembrava-se de que em sua
infância Noeme não tivera um afeto a que pedisse proteção nem
a solicitude de um coração materno, zelando carinhosamente
pela sua saúde.
Outras tardes, se não podiam sair, sentavam-se ao portão
que dava para o largo. Turmas de crianças ainda animavam a
quietude do arrabalde. E Sálvio dizia à filha: “Quantas vezes
meus olhos não contemplavam a tua figura ausente, entre as
crianças das outras gerações que brincavam neste mesmo lugar
e que já são hoje homens-feitos ou mães de família… Quantas
vezes, ao cantarem, em roda, de mãos dadas, eu não prestava
atenção senão a uma voz de criança que ali faltava… E a mim
me parecia ouvir, nesse vácuo de som, a tua voz distante e tris-
te, a chamar por mim!”.
A noite, passavam-na a sós, no pequenino lar. Que suavidade a
de seu querido conchego, cuja quietação era embalada pelo estali-
dar da lenha no fogão e pelo cricrilar dos grilos em redor da casi-
nha! Seroavam na modesta saleta de jantar; e enquanto Noeme se
entretinha com seus infindáveis trabalhos de lã, ou consertava as
roupas do pai, conversavam tranquilamente, abaixando a voz, para
não acordarem a pequenita, que dormitava ao lado da mãe numa
caminha improvisada, a chuchurrear a chupeta. Mas a pequenita
não dormitava sempre: às vezes intervinha na palestra, reclaman-
do a atenção para sua minúscula pessoa. Para a verem satisfeita,
era indispensável que lhe dessem a chupar o ovo de madeira da
cesta de costuras, ou que o avô a pusesse nos joelhos e “conver-
sasse” com ela, fazendo-a rir… Olhando-a, Sálvio dizia a Noeme:
“Como se parece contigo, quando eras pequenina!”.
A FILHA

Em certo momento Noeme aproveitava o repouso da filha, e ia


tirar o que quer que fosse na gaveta da cômoda; e, ocultando as mãos
nas costas, perguntava: “Adivinhe o que é, meu pai…”.
Sálvio sorria-se. Bem sabia que era a cartilha. Chegara a hora da
lição… E um tanto vexada de começar a aprender tão tarde, Noeme
sentava-se conchegadinha ao pai, na mesma banqueta em que este
costumava ficar. Encostava-lhe a cabeça ao ombro, e auxiliada por
ele, ia decompondo as palavras em sílabas e as sílabas em letras…
Num desses momentos, Sálvio dissera-lhe um dia, acariciando-lhe
os cabelos: “Quantas vezes, longe de ti, quando eras pequenina, não
desejei ser eu quem te ensinasse a ler! Realizou-se meu desejo…
Quando estás junto de mim, estudando a cartilha, vejo-te ainda
criança… Parece-me que estamos a reviver nosso passado… Nossa
vida recomeça do ponto em que nos separamos. Tornamos a essa
encruzilhada depois de haver errado em atalhos dolorosos e agora
nada nos separará”.
Gostava de vê-la assim, através dessa ilusão, sempre criança,
como a figurinha radiosa que dia e noite vivera em seu espírito,
operando-se desse modo a identidade entre a Noeme do passado e
a Noeme atual… Como adorava o seu riso claro e infantil, que lhe
cavava covinhas nas faces, quando ele lhe fazia uma de suas habituais
surpresas! Às vezes, chegando da cidade, entregava-lhe um embrulho,
dizendo-lhe muito sério: “Trouxe-te esta lembrança…”. Noeme, to-
mando a dádiva, mirava-a, curiosa, desdava o nó do atilho, abria o invó-
lucro… Uma caixeta. Que conteria? Erguia a tampa: “Uma boneca!”.
Ela ria-se, dizendo: “Vou guardá-la, para quando a filhinha crescer…”.
Assim dizia, mas às vezes o pai surpreendia-a, quando se julgava só,
enlevada com a boneca, fazendo-a abrir e fechar os olhos… Havia tam-
bém serões em que a agulha se cansava de pontear sapatinhos e toucas e
entretinha-se a fazer vistosos vestidinhos para a boneca. “Quando a filhi-
nha crescer já o enxoval está pronto”, explicava. Mas seria também para
o prazer de seus próprios olhos e como um disfarçado modo de brincar
também… Porventura lembrava-se da inveja com que vira outrora, em
mãos de outras crianças, bonecas bonitas como aquela…
206 | 207

Sempre trazia-lhe os bolsos cheios de balas e outras guloseimas,


que ela recebia com satisfação infantil, exclamando: “Oh, que bom
paizinho eu tenho!”.
E um dia a satisfação culminou, a uma nova surpresa: dentro de
uma caixeta, uma boneca viva, que miava e arranhava o papelão para
fugir. Um gatinho, para empelotar-se-lhe ao colo, servir de brinco à
filhinha e postar-se ao fogão, a contemplar, ronronando, com os olhos
jalde, as labaredas serpenteantes e assustá-los um poucochinho, com
as suas correrias noturnas. Era mais uma nota de “lar” que trazia à
antiga tapera… Noeme logo o apelidou “Mimi”, como o gatinho da
lição do dia antecedente.
O coração de Sálvio exultava com as expressões de ingênua alegria
da filha. Entretanto, essa ventura ia despertar-lhe n’alma uma melan-
colia. É que, não estava em seu poder influir no passado de Noeme,
fazê-la reviver aqueles anos perdidos, amparada a ele. Bem compre-
endia que cada um de nós é uma sucessão de pessoas que se revezam
no tempo. Em cada época da vida somos diferentes do que éramos na
época anterior. A carne muda-se, as ideias transformam-se, evoluem
os sentimentos. É um incessante morrer e renascer, dando-nos, pela
lentidão com que se operam, a ilusão de uma continuidade. Como
herdam os filhos as tendências e os traços paternos, transmitem-se
também, essas “pessoas” sucessivas, similitudes de forma e os senti-
mentos e ideias fundamentais. E ele desejaria fazer feliz não só aquela
Noeme do presente, mas a todas as Noemes do passado… O seu
anseio de infinito amor queria que estivessem ali em torno dele as
Noemes todas, de todas as idades, trêfegas e ridentes, e a chamar-lhe
“paizinho”, tão numerosas, que não poderia cingir a todas, como um
feixe humano, no mesmo abraço… Oh, não poder o passado voltar!
A tristeza ensombrava-lhe o espírito. Era porém uma nuvem efê-
mera. Bastava fitar a filha e instantaneamente todas as Noemes se fun-
diam naquele doce ser, que lhe sorria com meiguice.
Muitas vezes, naqueles serões em que as almas se comunicavam es-
treitamente fundidas na mesma profunda afeição, vendo Noeme entre-
tida a acalentar a criança, com a paciência infinita que a natureza só dá
A FILHA

às mães, ou a esmerar-se a alindar os vestidinhos com que embonecava


a filha, Sálvio descerrava a penumbra triste do passado longínquo e evo-
cava a esposa morta. E dizia a Noeme: “És para a menina como Leila era
contigo. Parece-me que a vejo ainda, inclinada sobre teu berço, cantan-
do cantigas de embalar, ou absorta a enfeitar teus vestidinhos”.
Mostrou-lhe um dia sua relíquia querida, a roupinha vermelha que
tantas vezes vira em sonhos. E a Noeme marejaram-lhe os olhos, da
alegria de sentir-se integrar em sua família, no passado e da tristeza
de não ter conhecido a mãe.
Já tarde, Noeme lembrava ao pai que devia repousar. Acomodada a
filhinha, ia a seu quarto preparar a cama e ver se não faltava nada. Em
seguida pedia-lhe a bênção e separavam-se, desejando-se boa-noite.
Mas de seu quarto, que era contíguo, ainda Noeme ficava atenta, pre-
ocupada com o pai. Quando Sálvio a supunha adormecida, ela ainda
perguntava se não sentia frio, se havia agasalhado bem os pés. Sálvio
submetia-se docilmente a seus cuidados maternos, vendo o prazer
de Noeme em dar-lhos. Às vezes, fazendo que dormia, ouvia ainda
a filha conversar baixinho com a criança que espertara; depois a casa
aquietava-se e no silêncio apenas se ouvia fora o cricrilar amortecido
dos grilos e o tique-taque pausado do relógio da sala de jantar.
Sálvio, habituado às longas insônias melancólicas, dormia pouco,
por isso lamentava ser o dia tão breve e a noite tão longa de passar.
Ter que estar só, tantas horas, ouvindo tantas vezes cantar os galos!
Mas ainda encontrava prazer em escutar, do outro lado da parede, o
brando ressonar da filha, ou em refletir no que poderia fazer no dia
imediato, para lhe dar prazer.
Noeme levantava-se alegre como um passarinho. Certo, ao des-
pertar, tinha a sensação de sua liberdade. Ninguém estava ali para
ralhar-lhe… Tagarelava com a pequenita, fazendo-a rir, e, em segui-
da, deixando-lhe a chupeta na boca, abria as janelas da casa, onde
entrava a carícia da viração, coada com a luz matutina entre as corti-
nas de pâmpanos, e abelhava-se em pôr tudo em muita ordem, com
exigência de zelosa dona de casa, satisfeita em ter, pela primeira
vez, um lar seu.
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Quando o pai aparecia, já encontrava no atoalhado novo da mesa,


esperando-o, sua xícara ladeada de uma fatia de pão. Ela saudava-o
risonha e corria à cozinha a buscar a cafeteira.
Se o serviço desse folga, saiam após o café a dar uma volta pelo
pátio das criações e pela horta, tirando os ovos nos ninhos e colhen-
do as verduras para o dia.
Às vezes, nesses passeios, Noeme não se continha, que não ex-
clamasse alegremente: “Como nós somos ricos, paizinho!”.
As riquezas eram as novas arredadas de pintos, os coelhinhos
ariscos que guinchavam da porta de suas tocas, reclamando a ração
de couve, eram as ervilhas granadas, os repolhos que fechavam…
“Eram ricos, sim, muito ricos”, concordava Sálvio, ouvindo-lhe
enlevado o tintinar do riso claro, seu opulento tesouro de felicidade.
Mas uma vez, num desses passeios habituais, um sentimento de
saudade pungiu a Sálvio, que se postou pensativo diante de alguns
palmos de chão conservados incultos, em um recanto da horta. “Mi-
nha filha”, disse ele, indicando o lugar, “aqui repousa o único amigo
que tive em minha soledade. Era um cão. Apareceu-me um dia em
casa e aqui ficou comigo, elegendo-me seu dono. Conservou-se-me
fiel toda a sua curta vida. Morreu a meus pés, dando-me o seu der-
radeiro e magoado olhar, que exprimia a um tempo a tristeza de
deixar a vida e a tristeza de deixar o dono… Fui-lhe ingrato, tole-
rei-o apenas, não lhe aceitando a afeição, que para meu desconsolo
era como a piedade importuna dos que não nos podem remediar
o mal… Por isso, na recordação que dele guardo, há um tanto de
amargor, que é saudade e que também é remorso…”.
Noeme ouvia-o comovida. A ambos, marejaram-se-lhe os olhos.
Pouco tempo volvido, tornando ao mesmo sítio, Sálvio notou
uma mudança: sobre a cova do cão, piedosa lembrança de Noeme,
viçava em canteiro de violetas.
Apraziam-se tanto naquele ermo povoado de afeto, que raro iam
à cidade. Certo compreendiam também que a felicidade é planta
melindrosa, cuja fragilidade ama o recolhimento, a sombra discreta,
esquivando-se à aspereza do contato social. O próprio círculo de
A FILHA

suas relações, restringiram-no à amizade de algumas pessoas boas e


simples. Quando, porém, sucedia saírem juntos para ir à missa ou
fazer compras, Sálvio, observando disfarçadamente a filha, bem via
quanto se sentia orgulhosa de ir assim a seu lado. Parecia dizer seu
ar resplandecente de ventura: “Eu não sou só, tenho por mim meu
paizinho, que me ama e me protege”.
Sálvio procurava adivinhar o que pudesse dar-lhe prazer, para sa-
tisfazê-la. Adivinhar, sim, porque a filha mostrava-se contente com
tudo, em sua nova existência, nada mais parecendo desejar.
Em vão esperava que ela exprimisse um desejo, uma fantasia… E
sua atitude reportada, sua perene docilidade entristeciam-no. Dizia
consigo que a vida na opressão lhe mutilara a vontade; em pequenina
veria sempre recalcados os ímpetos de voluntariedade e caprichos,
com que os seres apenas entrados na existência afirmam a sua indi-
vidualidade; abafando essa eclosão espontânea, habituaram-na à sub-
missão e humildade… E lembravam ao pai esses moldes de bronze,
com que os fazedores de monstros deformam as figuras humanas.
Mas não! A consciência da liberdade avivava-se em Noeme cada
vez mais. Sentindo-se filha, reconhecia-se senhora… Sua doce au-
toridade de dona de casa começaria a impor-se… Por isso, com um
misto de timidez e de meiguice, dissera um dia:
— Sabe, paizinho? acho nosso jardim tão pobre… Gostaria de
que tivesse rosas, muitas rosas…
Ele a ouviu jubiloso formular o modesto desejo. Pouco depois
saiu. Demorou-se fora. Voltando a casa, sobraçava um feixe de
ramas de roseiras.
Plantou-as em torno da vivenda. E nesse dia e nos seguintes trou-
xe ainda novos feixes de varas. Confiava-as à terra com carinhoso
cuidado, para que nenhuma deixasse de viçar.
Desse-lhe vagas o serviço, lá estava a plantar com suas próprias
mãos outras mudas ainda. Arcadinho, a cavar incansavelmente o
chão, dava ares de monomaníaco…
“Minha filha quer rosas, muitas rosas”, murmurava. E inclinado
sobre a terra parecia sussurrar as palavras de misteriosa prece, dita
com todo o fervor de coração.
210 | 21 1

Noeme, agradecida, batia as palmas, exclamando: “Que bom! Va-


mos ter tantas flores!”.
Sálvio regava-as às tardes e pelas manhãs, não deixando haste
alguma esquecida. Conhecia-as a todas uma a uma, como o avaro a
seus vinténs e cada qual dava desvelos de quem houvesse confiado ao
solo, em vez de plantas, suas mais mimosas esperanças. E, nos tempos
que se seguiram, contemplando os ponteiros hirtos a crivarem o chão
em hoste inumerável, impacientava-se, exprobrando-lhe a tardança
em rebentar em festões de folhas e de flores.
Mas quando as roseiras viçaram e veio a primavera, foi um lindo
estendal de rosas em torno à casinhola. Como que as mudas todas,
infiltradas do desejo de Sálvio, porfiavam em ofertar a Noeme as mais
ricas dádivas de corolas. E as ramas em que se desdobravam semelha-
vam outros tantos braços a oferecer-lhe, às mãos cheias, seus primo-
rosos dons. Como que no plantá-las se transfundira nelas a alma do
velho pai, e fosse aquela florescência todo seu coração que se mostra-
va transfeito em flores e perfume.
A casinha rústica era um batel de pâmpanos a vogar num mar de
flores. E, Sálvio, à porta, tendo a seu lado a filha sorridente e feliz, dizia:
— A primavera voltou, voltou contigo, Noeme…
A aragem, arfando brandamente, envolvia-os em uma onda
de fragrância.
E Sálvio dizia:
— Vê, minha filha — assim é que te quero… — O que as pa-
lavras não dizem, roguei à terra que o dissesse por mim; e a terra,
ouvindo-me, descerrou o seio, desabrochando nesse mar de flores.
Vê, minha filha! Assim é que te amo… com essa abundância… com
essa profusão…
A filha, reclinando a cabeça ao ombro de Sálvio, contemplava ex-
tasiada. E o velho louco, exultando, repetia:
— A primavera voltou… A primavera voltou…
212 | 21 3
O meu mestre Rangel
Autran Dourado

Entre as muitas pessoas que colaboraram para a minha formação,


duas foram decisivas e a elas devo o que sou: Artur Versiani Veloso
e Godofredo Rangel — o filósofo e o escritor. A Veloso, o orde-
namento que procuro dar à minha mente e a minha iniciação; a
Rangel, o aprendizado literário, a seriedade diante da obra,
a humildade, a certeza de que ela é muito maior do que a nossa
pessoa, que exprimimos para criar e não criamos para nos exprimir.
Quando o escritor se sobrepõe à obra, estamos diante de um homem
de letras, de um homem público, melhor seria dizer; quando se dá
o contrário, estamos diante de um verdadeiro artista. Foi essa a
primeira lição que recebi do escritor Godofredo Rangel.
A Veloso e a Rangel procurei deixar assinalada a minha dívida de
gratidão dedicando-lhes o meu romance Um artista aprendiz, do qual
são, com pouco disfarce e alteração, personagens.Veloso, junto com
as aulas de Filosofia, me despertou o amor pelos clássicos; Rangel
me ensinou que o simples amor pela literatura não basta, se ele não
se apoia no aprendizado da técnica literária.
A primeira vez que vi o nome de Godofredo Rangel impresso
num texto literário foi na biblioteca de meu pai, eu devia ter uns
dezesseis anos. Folheando uma revista literária dei com um conto
de Rangel, “Os óculos de vovô”, se não me engana a memória. Me
impressionou a precisão do estilo, a simplicidade exemplar. Pequeno
e conciso, bastante sentimental, é a lembrança que dele guardo.
Procurei imitar o grande mestre e produzi o meu primeiro conto,
214 | 21 5

cujo nome a memória não guardou. Não posso dizer se era bom,
certamente era ruim, a única coisa que nele devia prestar era a
sombra de um grande escritor.
Perguntei a meu pai quem era Godofredo Rangel. É um es-
critor de grande valor, juiz aposentado, eu me dou com ele, você
quer conhecê-lo? disse meu pai, que também era juiz, embora não
fosse dado às letras. Não, é melhor eu conhecer os romances dele
primeiro, disse eu.
Foi então que li Vida ociosa e Falange gloriosa. Comecei pelo
primeiro. Tomado do maior entusiasmo pelo estilo conciso, pela
ironia difusa, pela correção da linguagem (eu me preocupava muito
então pela obediência aos cânones gramaticais, só mais tarde viria
a romper com eles, violentando-os em favor da expressão), passei
a Falange gloriosa, que me agradou menos do que Vida ociosa, pelo
seu tom satírico às vezes beirando a impiedade. Mas os dois me
tocaram muito, principalmente porque tratavam de matéria de
que eu tinha alguma vivência: a vida roceira e apagada de uma
pequena cidade, no primeiro, e o ambiente concentracionário de
um internato no sul de Minas, no segundo.
Numa tendência que é própria do meu espírito, passei a mitificar
o escritor Godofredo Rangel. Daí porque tive medo de conhecê-lo,
não pedi a meu pai que me apresentasse ao grande escritor minei-
ro. Continuei a escrever meus contos, bastante anacrônicos, com
forte influência de Rangel e dos naturalistas, quando o Brasil já se
distanciava do Modernismo, cuja literatura eu desconhecia. Foi na
década de 1940.
Aos dezessete anos eu tinha aprontado um livro de contos.
Mostrei-o a meu pai, que resolveu dá-lo a Rangel para ler. Mas
quis que eu mesmo fosse entregá-lo ao grande mestre. No dia
seguinte me disse que Godofredo Rangel esperava por mim às
oito horas da noite.
Às sete e quarenta e cinco eu estava na porta do escritor, numa
casa modesta no bairro da Floresta, perto da igreja. Fiquei andando
de um lado para o outro, as mãos úmidas, o coração pesado de
ansiedade e de medo. Ia finalmente ver um deus, era assim que
antecipadamente eu vivenciava aquele encontro.
Às oito e cinco eu apertava a campainha e me fazia anunciar.
Com a minúcia de ver as coisas com que procuramos vencer a
angústia, nos fixar num mundo real, fiquei vendo os quadros e
móveis da sala.
Quando surgiu Godofredo Rangel. Me pareceu muito velho e
doente, magro, as bochechas chupadas, os olhos fundos. Veio na
minha direção e me estendeu a mão fina e comprida. Era todo fra-
gilidade. Delicadamente, a voz baixa, quase um sussurro, mandou
que eu sentasse. Aqui deste lado, disse ele. Não estou ouvindo
bem do ouvido esquerdo.
Não tive de falar primeiro, o que me aliviava, me dava tempo.
E ele começou a falar. Se é verdade que estilo é o homem, ali
estava, como um espelho, o seu contrário — o homem era o seu
estilo. Apesar da voz baixa, o que ele dizia era límpido e perfeito,
as palavras precisas, a emoção delicadamente domada. Como a sua
forma literária, o estilo que ele alcançou.
Na primeira pausa que fez, eu disse que tinha relido há pou-
co o seu admirável Vida ociosa. Rangel esboçou um sorriso sem
graça, a menção do seu romance, sobretudo o adjetivo assim à
queima-roupa, parecia desagradar. Livro antigo e velho como
eu, um escritor e juiz aposentado, disse ele. É literatura que não
se pratica mais hoje em dia. O que está na moda é outra coisa, as
novidades extravagantes que costumam ser passageiras, vindas
pelo dernier bateau.
Não havia na fala de Rangel nenhum ressentimento, dizia
aquilo secamente, como fria constatação. Ele correspondia ao
retrato que eu fizera dele com o risco e as cores dos seus livros.
Os olhos tristes e apagados, as delicadas e sofridas feições de
quem tem um íntimo convívio com a dor, que ele disfarçara com
um meio-sorriso irônico.
Dê-me o livro, disse ele finalmente. Aqui está, doutor, disse
eu. Não me trate de doutor, afinal somos confrades… disse ele.
216 | 2 17

Muito desajeitadamente eu disse um “você”, ele sorriu do meu


acanhamento. É um longo caminho de pedras este nosso, disse ele.
Me lembro até hoje do seu sorriso, desta vez sem nenhuma iro-
nia: era o meio-riso de um homem bom, bondade que a vida lhe
obrigara a cobrir com o véu da ironia. Ficou de telefonar quando
tivesse lido o meu livro.
Cheguei em casa possuído de forte emoção. Afinal conhecera
um escritor, e o escritor que eu mais admirava depois de Machado
de Assis, aquele que soubera transformar em obra de arte que eu
achava perfeita uma experiência de vida. Não voltei a ler Rangel,
tenho horror aos ídolos partidos, sobretudo quando a sua figura
se entranha na nossa alma.
Naquele tempo eu usava ter diário. Nele escrevi: “Godofredo
Rangel não é apenas um grande escritor, mas um grande homem.
E o homem é o que importa, a literatura passa”. Eu não estava sen-
do sincero, para mim o que importava era a obra, o escritor sendo
apenas um escriba da Ideia, como platônico gostava de dizer.
Vivi dias na maior ansiedade, Rangel custava a dar sinal de
vida. Com certeza o autor de Vida ociosa não vira no meu livro
nenhum talento excepcional, como eu, na minha ambição juvenil
desmedida, me considerava.
Não foi através de meu pai que ele me mandou chamar. Pelo
telefone ele mesmo falou comigo. Se desculpou da demora, ando
muito apertado de costura, disse ele ironicamente. É o trabalho de
traduzir, com que procuro completar o meu salário de aposenta-
do. Eu não o conhecia, não sabia que era meticuloso, como riscava
e mudava as palavras, como se a tradução fosse obra literária sua;
uma tortura, foi o que ele disse. Aliás sempre fora assim, escre-
via com muita dificuldade, o que não tinha a menor importância,
disse; o que importa é o produto e não o suor, a obra realizada. O
escritor medíocre tem o mesmo trabalho e o mesmo sofrimento
do grande escritor, só que não é um grande escritor.
Desculpe-me, estou loquaz demais hoje, continuou depois de
tossir. Acho que é um remédio que ando tomando, deixa-me
muito excitado. Disse que estava parecendo um velho maluco,
aquilo não era conversa para telefone. Se você não tiver o que fazer,
venha aqui em casa hoje à noite.
Fui recebido pela sua filha, que me levou ao escritório. Ali vivia
o velho escritor no seu tugúrio. As paredes cobertas de estantes
repletas de livros, a máquina de escrever numa mesa. Na máquina
uma folha batida pela metade, devia ser a tradução em que vivia afo-
gado. Um escritor como ele obrigado a se matar numa máquina de
escrever, para traduzir livros com certeza sem nenhuma importân-
cia. Certamente mal pago pela qualidade da sua prosa. Quem sabe
não tinha sido isso que o fizera parar de escrever romances? Naque-
le escritório se mortificava um romancista de verdade. Noutro dia
lhe perguntei por que não publicara mais romances. Perdi o fôlego,
disse ele. Ando penteando um romance há anos. Penteando? disse
eu. Sim, cortando uns “quês” e possessivos desnecessários.
O velho estava mais animado, os olhos brilhantes, devia ser o tal
remédio. As mãos magras e um tanto trêmulas brincavam com as
folhas do meu livro, o que me dava um grande desconforto.
Vou dizer-lhe toda a verdade, como você merece, começou ele.
Se eu não tivesse achado em você talento e embocadura, não diria
nada de pessoal, usaria frases formais, você sairia daqui satisfeito
comigo, mas eu não o teria ajudado. Pode ser franco, se quiser seja
duro, cruel. Rangel sorriu, disse para eu não exagerar; não fosse
masoquista, que ele não era sádico.
Li bem o seu livro, não o publique, continuou ele. Graças a Deus
você não é precoce, posso fazer alguma coisa por você.Você escreve
bem, escorreitamente, mas escrever bem é obrigação de todo bom
escritor. Você parece ter boa formação escolar, obedece rigorosa-
mente à gramática, o que me agrada. Foi nessa escola de respeito
às normas gramaticais que fui criado, era como se usava escrever
quando eu era jovem. Hoje os tempos são outros, outra a estética, o
que não deixa de estar certo.
Rangel parou um pouco, tossiu ofegante. Perguntei se ele não
estava se sentindo bem, eu voltaria outro dia. Ele me pediu que lhe
218 | 219

passasse um remédio sobre a mesa. É para a dispneia que às vezes


me ataca, perrenguice de velho, disse.
Assinalei apenas uma coisa, continuou. Onde foi que você apren-
deu este arcaísmo “tanto que” em vez de “quando”?, nesta frase que
começa “Tanto que o despertador tocou…”? Eu disse que em Fer-
não Lopes. Meu Deus, você foi longe demais, exatamente ao pai da
prosa portuguesa! disse ele. Você lê essas coisas? Leio e gosto, disse
eu. Mas isso não é leitura para a sua idade, disse ele. Eu também
frequento de vez em quando os clássicos, principalmente frei Luís
de Sousa, de cuja prosa precisa, límpida e seca eu me aproximo. Mas
eu sou um velho, você é jovem. Devemos ler os clássicos no final da
vida, no arrastado tempo da velhice. É quando a gente pode melhor
compreendê-los e amá-los. Toda a minha formação foi muito ruim,
disse eu. Ele me disse que eu devia aprender duas ou três línguas de
densidade cultural literária como o francês e o inglês. A literatura
de língua portuguesa é muito pobre, disse.
Saquei do bolso um caderno, perguntei o que me aconselhava a
ler. Vejo que você é aplicado, o que é bom, disse ele. Sem aplicação
e disciplina não se faz nada, principalmente romance. Dizem que
os gênios não têm disciplina, mas os gênios não são modelos para
ninguém. Eles criam a sua própria disciplina, que só serve para eles.
Preparei aqui uma lista, vou explicar como e o que deve ler.
Em seguida perguntou se eu conhecia Machado de Assis. Res-
pondi afirmativamente: todo ele, até as crônicas. Supõe-se que o
escritor conheça bem os grandes escritores da sua língua, disse
ele. Literatura é linguagem, e linguagem escrita só se aprende
mergulhando na língua em que nascemos, em que escrevemos.
Quando um jovem escritor está escrevendo, ele não está sozinho,
como costuma pensar. Atrás dele, de sua mão apressada, estão todos
os grandes escritores que escreveram antes dele e fizeram a sua
língua literária. Portanto, todo respeito, todo cuidado é pouco.
Seja metódico nas suas leituras, depois é que se permita leitura
vadia, o puro prazer. Não perca o seu tempo com livros que, já
pelas vinte primeiras páginas, você vê que não prestam. Não leia
romance policial nem mesmo para se distrair, o romance policial
é uma máquina, pura racionalidade, lógica e dedução. A única
emoção que há nele é o suspense e o enredo, mas o enredo e o
suspense são coisas muito secundárias no romance, servem apenas
para manter presa a atenção do leitor.
Rangel voltou a tossir, eu me sentia incomodado por estar per-
turbando a vida do velho escritor. Fiz uma seleção de autores, continuou
ele. Dois ou três de cada grande literatura, que deve estudar bem.
Veja por exemplo na França. Escolhi apenas dois autores que você
deve estudar, Stendhal e Flaubert. Você há de me perguntar por que
não Balzac? É evidente que você deve ler Balzac, se já não o leu. Mas
tente seguir ordenadamente a minha lista. Procurei ser metódico,
sucinto, e atender à sua finalidade, que é aprender a escrever ficção.
Não se aprende com gigantes, mas com os bons artesãos, com os
que conhecem bem o ofício. Não há nada mais ridículo do que um
anãozinho procurando imitar os passos de um gigante.
Godofredo Rangel ainda me aconselhou a buscar depois a
companhia dos escritores que, como eu, estavam começando a
escrever. O aprendizado coletivo ajuda muito, disse ele. Perde-se
menos tempo em procurar descobrir sozinho os livros importantes
que merecem realmente ser lidos.
Muito do que escrevi acima é adaptação de um passo do meu
romance Um artista aprendiz, em que o personagem João da Fonseca
Nogueira é em parte eu e Sílvio Sousa, Godofredo Rangel.
Termino com as mesmas palavras com que acabei um dos
capítulos daquele livro:
“Quando João saiu da casa de Sílvio Sousa, respirou fundo a noite
fria e estrelada. Sabia que o caminho era duro e difícil, de pedras,
mas se sentia confiante. Pela primeira vez desde que chegara a Belo
Horizonte era um homem inteiramente feliz.”

Prefácio publicado originalmente emVida ociosa


(Ed. Casa da Palavra/Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, 2000)
VIDA
OCIOSA
222 | 223

Literatura caligráfica
Antonio Candido

Entre as ideias feitas, há uma que atribui a Minas e à Bahia certa


preeminência entre os cultores do vernáculo — mineiros e baianos
aparecendo não apenas como latinistas seguros, mas escritores de-
purados e corretos, cérberos da língua, intransigentes na colocação
dos pronomes e na caça aos galicismos… O fato é que realmente há
um pouco da voz de Deus na voz do povo, e no caso presente (da
literatura, em geral, de Godofredo Rangel, em particular), é fora
de dúvida que no último quarto de século, ou pouco mais, Minas
forneceu alguns dos melhores exemplares de escritores apurados
no estilo, medidos na composição, discretos na psicologia, um tanto
fascinados pela miragem da correção impecável dentro de uma sim-
plicidade voluntariamente construída. Escritores não machadianos,
todavia, se estabelecermos que Machado de Assis foi por excelência
homem de abismos interiores, enquanto esses de que falo — não
obstante a densidade humana que atingem — são antes homens de
profundidade demarcada, sem as infindas aberturas para o irracio-
nal e o drama. Léo Vaz seria em São Paulo o autor mais chegado à
maneira deles, formando todos uma família de espíritos finos e me-
didos, cujo maior defeito estaria em certa propensão para rebuscar,
ora a frase, ora o conceito, cujo maior encanto consiste na sábia
modéstia da observação e no harmonioso equilíbrio da forma.
Em Minas, cabe citar como paradigmas Amadeu de Queiroz,
Eduardo Frieiro, Ciro dos Anjos e o autor dos livros desta série,
Godofredo Rangel. Um farmacêutico, dois funcionários, um
magistrado: homens de ordem e medida na vida exterior, de
“inquietude e melancolia” nas disposições do espírito.
É claro que são diferentes uns dos outros, desde o mais cortante
e desencantado, Eduardo Frieiro, até o mais ameno e otimista que é
o seu decano, Amadeu de Queiroz. Mas assentam naquele terreno
comum de consciência do estilo e decoro da composição — terreno
bastante rico para dar às frondes das suas obras elementos da mesma
seiva que harmoniza e alimenta certas formas comuns.
Talvez seja o caso de dizer que a esta contensão formal corres-
ponde outra, no plano do espírito — formando ambas as duas par-
tes daquelas botinas de tortura a que Mefistófeles comparava, ante
o Estudante boquiaberto, os preceitos estritos da lógica formal. Se-
riam escritores algo esmagados pela norma excessiva, peando as
expansões da sensibilidade, recalcando desavisadamente riquezas
interiores sob a pressão de uma regra fria, quando não despistan-
do o leitor, partido ao seu encalço, com lantejoulas de estilo que
chamam para outro campo e arrefecem a busca do que há neles de
profundo, mas fugidio.
Convenhamos que há de fato um pouco disto nalguns deles. Não
em Amadeu de Queiroz, por certo; mas já em Ciro dos Anjos, apa-
rentemente risonho e todo confidências, há certos refolhos d’alma
cuidadosamente ocultos pela cortina de fumaça da narrativa em
zigue-zague, do estilo guindado que chama sobre si a atenção do
leitor e o desvia de certas zonas mais íntimas e sombrias da alma
do escritor. Verdadeira técnica de bandarilheiro, que esses homens
discretos praticam em parte inconscientemente, e por meio da
qual procuram esbater dramas que pressentimos, e se dissolvem na
fita clara das garrochas.
Vale a pena acentuar que nessa literatura de escritores bem-
-dotados, mas que evitam falar de si (embora fascinados pelo que
trazem em si de diferente e estranho), é frequentemente no conto,
não no romance, que encontramos a marca mais clara e ostensiva
desta riqueza. Parece que a explicação é a seguinte: exigindo menos
confidência, menos derrame de personalidade, o conto é uma forma
224 | 225

objetiva, posta geralmente fora do escritor; forma na qual ele se


coloca em frente, não dentro do assunto. Ora, justamente por isto
os escritores discretos e pudicos, marcados por “esse alheamento a
tudo que na vida é porosidade e comunicação”, empregam-no sub-
-repticiamente como instrumento de uma penetração psicológica e
moral menos comprometedora que no romance, onde tudo envolve
mais de perto a confidência ou a opinião pessoal. Daí encontramos
em Minas a equipe porventura mais sólida do conto contempo-
râneo no Brasil, dando a este gênero aparentemente objetivo e
impessoal aquelas capacidades de sondagem que o transformaram
nas mãos de Machado de Assis, João Alphonsus, Rodrigo M. F. de
Andrade, Aníbal Machado.
Voltando aos romancistas, podemos talvez dizer, à vista do su-
gerido, que a sua maneira literária se diria caligráfica. Sob muitos
aspectos semelham de fato um grupo de calígrafos, profundamente
sensíveis à beleza formal da página, trazendo à escrita uma aplica-
ção minuciosa, caprichando os traços, embelezando as palavras pelo
talhe elegante da letra. Os seus livros parecem revelar a cada passo,
sob a monotonia tipográfica, um original amorosamente traçado
a mão, segundo a velha arte que se foi perdendo com a imprensa,
depois com a máquina datilográfica, e subsiste em espírito no estilo
deles, animando, como a folha perdida mas estuante de um palimp-
sesto, o molde impessoal da letra de forma.
Nessa atmosfera de homens mentalmente ricos e apaixonados
pelo mister de escrever, é que nos devemos colocar para compreen-
der a obra de Godofredo Rangel.

***

Para o público e para a crítica ele é o autor de Vida ociosa e o tra-


dutor consciencioso de milhares de páginas. Pode-se mesmo dizer
que o seu nome se propagou nos últimos tempos graças a esta fun-
ção, mas o lugar discreto e seguro no apreço da boa opinião literária
veio-lhe daquele livro. A presente edição terá com certeza a impor-
tância, rara em literatura de trazer elementos para rever a fundo
a sua obra e a posição, em face dela, dos críticos e do público. O
aparecimento de um romance inédito mostrará que ele não pode
caber doravante no nicho limitado e familiar que lhe tocou; será
preciso abrir-lhe outro, porventura menos polido e regular, mas
sem dúvida mais amplo e sólido.
Com efeito, para o leitor ainda lembrado das aquarelas pi-
torescas e lavadas de Vida ociosa, Os bem-casados revelam um ro-
mancista novo e vigoroso, em que as qualidades ali manifestadas
se encontram no plano mais alto duma visão novelesca surpre-
endente pela densidade humana, o equilíbrio da fatura e a nítida
linha diretora da concepção. Na literatura brasileira, Godofredo
Rangel não será mais daqui por diante (penso eu) o autor pláci-
do e humorístico de Vida ociosa, mas sobretudo o autor amargo
e destemido de Os bem-casados.
Dos três romances desta edição, foram publicados parcelada-
mente em 1917 Vida ociosa, na Revista do Brasil, e Falange gloriosa,
n’O Estado de São Paulo, permanecendo inédito Os bem-casados. O
primeiro saiu em volume em 1921 e houve projeto não realizado
de dar igual destino aos outros.
Depreende-se das cartas de Monteiro Lobato (A barca de Gleyre)
que a ordem cronológica foi: Os bem-casados antes de 1910, tendo
os dois amigos cogitado, ao que parece, fazê-lo de colaboração;
por voltas de 1914, Vida ociosa, que Lobato aprecia numa carta de
fevereiro de 1915; pouco depois, Falange gloriosa.
No entanto, depois de lidos, fica-nos a impressão de que a
ordem literária é inversa. O primeiro apresenta, com efeito, tal
amadurecimento artesanal e humano, um modo tão mais adulto
de encarar o mundo e as pessoas, que estranha ter sido anterior,
e preterido pelo próprio Lobato, mais entusiasta, nos seus juízos,
dos dois outros. É provável que a explicação se encontre no fato
de a versão atual ser praticamente outra, beneficiada por longo
trabalho literário que incorporou toda a experiência subsequente,
de vida e de pensamento. O rascunho inicial ter-se-ia deste modo
226 | 2 27

enriquecido com uma firmeza de traços e um discernimento psi-


cológico muito superiores aos dos outros dois livros.
Se for todavia o caso de esta ser a versão inicial, estaremos ante
uma interessante regressão artística. Porque se há realmente em
Vida ociosa mais polimento e finura, Os bem-casados não lhe ficam
atrás quanto ao estilo, superando-o sem dúvida como romance,
isto é, como estrutura literária, como criação de personagens,
como atitude em face da vida. Do mesmo modo, a tendência ca-
ricatural é nele muito mais ponderada que em Falange gloriosa, o
menos valioso dos três. Imaginemos uma outra ordem de com-
posição, e tracemos um roteiro de leitura que mostrará melhor o
verdadeiro perfil literário de Godofredo Rangel.

***

Falange gloriosa, praticamente inédito, não trará por certo acrés-


cimo à sua glória, mas interessa como exemplo de vezos literários
sublimados nos outros romances.
É uma sátira sobre um colégio feito para lucro e vaidade, onde
se deforma o espírito das crianças sob uma fachada aparatosa de
ciência e pedagogia. Como tema, liga-se a uma tradição rica, ilus-
trada por Dickens e, entre nós, Raul Pompeia e José Lins do Rêgo.
Mas Rangel se afasta da linha destes autores, e mais ainda do Coru-
ja, de Aluísio de Azevedo, deixando de lado a vida do aluno pela
descrição do estabelecimento. Perspectiva mais pobre, pois a outra
se presta admiravelmente a analisar o modo por que o menino e o
adolescente interpretam o mundo dos adultos — que lhes pare-
ce um sistema iníquo e sufocante, imposto pela força, ignorante
dos problemas específicos da idade, e contra o qual reagem, surda
ou ostensivamente, pelas rebeliões da conduta e da sensibilidade.
É uma elaboração própria do imaturo o seu modo de ajustar-se ao
mundo, que hesitamos em qualificar de deformada, mesmo quando
aparece pelas lentes fantasmais de um Jean Vigo, cineasta cujo Zéro
de conduite é talvez a obra de arte mais expressiva deste problema.
Rangel preferiu, contra a tradição literária, o ângulo menos rico,
melhor ajustado, porém, ao seu evidente desígnio de sátira social,
crítica moralizante e grossa caricatura punitiva — que nos faz pen-
sar, numa curiosidade risonha, que modelos teria eleito entre os
quatro ou cinco famosos colégios sul-mineiros, que certo tempo
atraíram alunos de toda parte…
Esta veia caricatural, puxando estilo sobrecarregado, pode ser
considerada como o estrato primitivo e a manifestação literária me-
nos elaborada do nosso autor. Parece entroncar-se na sua experiên-
cia paulista, isto é, na vida de estudante, no Minarete e as ingênuas
paródias de Daudet, evocadas pelo prefaciador de Vida ociosa; na
admiração exaltada de todo o grupo por Camilo; na leitura dos na-
turalistas franceses. Por este costado aparenta-se de perto a Montei-
ro Lobato e Hilário Tácito, que gostavam de pintar a realidade com
tinta espessa e pinceladas carregadas, parecendo traçar contornos
menos de personagens que das sombras destes, grossamente defor-
madas por um foco de sarcasmo e pesada ironia.
Esta tendência é sensível, embora refinada, em Os bem-casados,
atenuando-se em Vida ociosa; é pois um elemento vital da sua per-
sonalidade artística, que funciona bem quando subordinado a uma
concepção ampla, não se mantendo por si, desajudada dos meios-
-tons, do senso de medida, duma visão menos esquemática da reali-
dade — coisas que faltam em Falange gloriosa.

***

O título Vida ociosa exprime não apenas o conteúdo, mas a pró-


pria composição do livro. Há nesta uma certa divagação caprichosa,
uma busca de pretextos para digredir, que fogem à ordem mais ou
menos regular do romance esboçado no início, preferindo outra,
fluida e impressionista, de descrições, cenas e perfis ligados pelo fio
tênue das associações afetivas.
O capítulo inicial é dos mais belos trechos da nossa literatura des-
critiva — “A estrada” —, onde a caminhada matinal do narrador,
228 | 229

primeiro no escuro da madrugada, em seguida à luz do sol, vai des-


cobrindo, quase suscitando pela evocação, um roteiro balizado por
seres e coisas organizados na seleção poética da fantasia; cruzes vo-
tivas, chocalhos de tropa, a porteira enramada, borboletas, o marco
desolado dos cupins. Como o admirável princípio de Inocência, este
tem um valor musical de prelúdio que prepara a sensibilidade para
o tipo de paisagem humana descrita, por meio da interpretação pré-
via da paisagem natural. Mas enquanto Alfredo de Taunay constrói
um largo panorama entre geográfico e psicológico — onde perpas-
sam ainda em broto certos tons do drama subsequente —, o nosso
autor apenas sugere uma atmosfera, propõe uma tonalidade plástica
e emocional que predispõe o leitor para as coisas rústicas que des-
creverá tão bem daí a pouco.
Descreve com bonomia e apuro. Um grande apuro na língua, um
trabalho cuidadoso de redação que faz fluir docemente a narrativa,
a ponto de confundi-la com o desenvolvimento fácil de um coló-
quio, não fora o exagero de elegância vernacular. Já aqui reponta
o pecado da literatura caligráfica: tendência para o rebuscamento,
a que Rangel não escapa. E escapa tanto menos, quanto a própria
frouxidão na economia do livro — não subordinada a uma linha
definida de composição — propicia aquelas digressões em que o
autor, dispersando-se, concentra-se em cada cena, cada episódio,
cada diálogo, como se fossem peças autônomas, desligadas do con-
texto. Em escritor doutra índole, ou menos pulso, esta composição
lassa poderia levar ao desalinho da forma e à confusão do assunto.
No calígrafo, leva sobretudo a certa miopia novelesca, ao desconhe-
cimento da estrutura em benefício dos pormenores, que avultam
deste modo como pretexto de um lavor caprichoso e aturado. Daí,
em Vida ociosa, o alinho excessivo, o rebuscamento de frase que tur-
va a sua simplicidade campestre.
Outro pecado frequente entre os calígrafos é o referido pendor
de abusar da caricatura.Vejam-se neste livro as descrições algo pueris de
almoços arrasadores, digestões lentas e botões que cedem. Veja-se,
na fazenda do Quim Capitão, a galeria de brutamontes e gestantes,
evocados com graça um tanto demasiada. Nestes passos, o calígrafo
entrevê uma série de efeitos a tirar da caricatura e agrava a página
de incisões, risonhas e risíveis, é certo, mas também vulgares: as
pirâmides de arroz, as mandíbulas diligentes, frituras e pamonhas
deliciosas, sestas pesadas.
Há em tudo isso candura de romancista acanhado, que procura
oferecer ao gosto médio compensações para uma possível decep-
ção. Mais autocomplacência encontra-se, porém, na tendência tan-
to ou quanto moralizante de certas páginas, tendência felizmente
ocasional e constrangendo no fundo o próprio autor — que após
fazer o protagonista perorar em tiradas tão castiças quando banais,
para edificação de Siá Marciana, colhe depressa o voo sentencioso
na provida rede da ironia. Com menos tato, porém, do que faria um
Léo Vaz, mestre perito desses negaceios em que as páginas disserta-
tivas são corrigidas a cada linha pela própria arrière pensée maliciosa
que atenua incessantemente o seu inchaço.
Estas falhas não invalidam a obra; apenas comprometem a sua
tonalidade geral, simples e amena. Mas o fato é que a bonomia sal-
va tudo — a graça leve que freia o sentimentalismo e o patético,
recobrindo-os com uma branda camada de ironia; e, de outro lado,
amortecendo o sarcasmo, dissolvendo-o em simpatia piedosa.
Quando fechamos o livro não nos fica no espírito a lembrança
dalgum episódio, o traço firme de um personagem, ou a suges-
tão de uma cena desenhada com vigor, mas um estado de alma;
um sentimento brando e algo melancólico, preparado sabiamente
pelo autor ao aplainar todas as quinas, ao nivelar todos os tipos, ao
dissolver a narrativa num ritmo. O que sobreleva é este ritmo, este
compasso de vida sugerido pela modorra das fazendas decadentes,
os trabalhos lentos da pesca e da tocaia, a invariável rotina dos dias
iguais, a memória amável do passado. Um livro de tonalidades,
portanto, que certamente não é grande, mas penetra na sensi-
bilidade do leitor, conquistando-a sorrateiramente sob o aspecto
duma narrativa sem consequência.

***
230 | 231

Em Os bem-casados mais do que a intenção satírica expressa no


título, há principalmente o trabalho profundo de definir e explanar
uma situação humana, através dum sistema de personagens organi-
camente ligados e traçados com singular maestria novelesca. É pre-
ciso, como propus, ler Falange gloriosa primeiro, Vida ociosa depois,
para sentir o amadurecimento deste romance — no sentido de que
o autor valoriza as suas qualidades, atenua os seus defeitos, superan-
do as posições dos outros dois livros.
O que há nele de mais visível desde logo é o contraste com Vida
ociosa no tocante à concepção da existência. Falange gloriosa revela
certo pessimismo e amargura, mas de tal modo envoltos nos traços
pesados da caricatura que mais parecem atitudes literárias, condi-
cionadas pelo assunto, do que propriamente sentimento verdadei-
ro. Aqui, porém, encontramos fundamente arraigados em cada pá-
gina traços exatamente contrários aos do ameno livro que lhe deu
fama. Amargura, pessimismo, sarcasmo, certos traços de sadismo,
em lugar da bonomia otimista, da piedosa ternura que desabrocha
lá num sorriso franco e puro.
É a história de um pusilânime, filho duma pobre viúva estoica
de quem é a última esperança, e que se deixa pescar para genro dos
graúdos locais, de capitulação em capitulação, até ficar totalmente
à mercê da família da mulher — renegada a mãe, traída a vocação,
abdicados os brios mais elementares. Tudo isto, expresso com um
desencanto profundo, embora medido, um interesse pelo sofrimen-
to, de que vislumbramos apenas os germes nos outros romances.
Com efeito, o narrador de Vida ociosa é um juiz romântico e
desajeitado, amigo duma formiguinha que todos os dias vem à sua
mesa e deste modo se torna indispensável à sua sensibilidade, até
não voltar mais certo dia, deixando-o saudoso e desamparado. Os
outros três personagens que importam são pobres-diabos, peque-
ninos e frágeis, que um repelão mais brusco do fado poderia anu-
lar. Mas o autor corrige este “gosto humilde da tristeza”, porfiando
em arrimá-los, terminando o livro num congraçamento amorável
e comovido. Aí se revela, como nos contos d’Os humilhados, pendor
pelos fracos, os humildes, os seres à mercê da sorte — que apa-
rece em Falange gloriosa na história incidental do par de velhos, a
melhor coisa do livro.
N’Os bem-casados, não amparava mais os fracos, como Licínio,
nem os bons, como sua mãe: abandona-os completamente ao des-
tino, que os tritura, não sem haver primeiro macerado fibra por
fibra a sua dignidade e os seus sentimentos. Os humildes dos outros
livros tornam-se aqui “humilhados e ofendidos” de corte dostoie-
vskianos. Foi como se ele achasse inócuo protegê-los, pois a vida se
desenvolve de maneira a fazer pagar mais caro justamente o inerme,
o puro de espírito, o fraco de vontade, o que não faz mal a ninguém.
Fundamentalmente doloroso neste livro, constituindo uma das suas
forças dramáticas, é justamente este afinco em trazer aflição ao afli-
to, em concentrar sofrimento no que sofre.
E os que não sofrem, os que fazem sofrer? Estes são aqui os vi-
toriosos; mas de vitórias pequeninas, mesquinhas, destilando a cada
passo uma torpeza irremediável. E em face disto, o autor, contra-
riamente ao que faz nos outros romances, não toma partido ostensi-
vo. Casado à força, escravizado pela sogra tirânica, ameaçado pelos
cunhados brutais, humilhado em toda a vila, incapaz de voltar-se
para a mãe que vai finando aos poucos — o protagonista acaba por
se acomodar com certo prazer na vida que o destino lhe deu. Do-
bra a cabeça diante de tudo, nada há que não suporte, de tal forma
que tudo acaba por entrar nos eixos e o livro termina como se o
romancista estivesse sugerindo um trecho perfeitamente comum da
existência como ela é.
Quando o fechamos, e nos lembramos dele em seguida, não
nos vêm ao espírito tonalidades ou manchas impressionistas. Fica-
-nos um conjunto entrosado de personagens, uma série de cenas
bem-traçadas, todo um enredo admiravelmente bem-conduzido.
É um romance.
Nele, com efeito, o esquema lírico de Vida ociosa e o esquema
caricatural de Falange gloriosa cedem lugar a personagens comple-
xos, embora descritos com a mesma técnica, entre humorística e
232 | 233

simplificadora. Rangel mostra aqui singular maestria em sugerir


a vida moral pelas manifestações exteriores — o tique, a morfo-
logia corporal, os pequenos detalhes que traçam na vida diária,
em torno de cada em de nós, a atmosfera inconfundível que é o
nosso modo de ser.
Muito mais que nos outros livros, os personagens são expressi-
vos e bem-delineados — entre todos a sogra, a formidável sogra,
espécie de sol doméstico, à cuja roda, em órbitas diferentes mas
igualmente submissas, perfazem o circuito de suas vidas dirigidas
os filhos, a avó, o estupendo marido, médico sem clientes, chefe
de família sem iniciativa, concentrando todas as suas faculdades no
esmero exemplar com que faz, a duas cores, a escrita da fazenda. A
dinâmica da narrativa provém dos movimentos que vão absorvendo
neste sistema planetário o protagonista, após havê-lo destacado da
mãe, pobre foco de luz toda interior que se consome numa tragédia
silenciosa e comovente.
Para esta forte história de sofrimento e crueldade (dissolvidos
afinal numa crueldade maior: a rotina que tudo nivela, desvanece
e extingue), Rangel não abandona os processos de calígrafo. Nem
drama, nem patético, nem agitação vã. Tudo se resolve entre meias-
-tintas e meios-tons, num estilo polido e irônico, ataviando como
sempre a simplicidade com os meneios antiquados de frase e voca-
bulário, que em certas páginas despertam em nosso espírito uma
tensão quase intolerável, pelo contraste entre a dose de sofrimento
exposto e o humor compassado da escrita.

***

São estes os três romances postos agora pela primeira vez em


conjunto ao alcance do leitor. Diferem um do outro, e diversa é a
experiência proporcionada em cada um; mas se adotarmos a ordem
de leitura sugerida, veremos que compõem o traçado nítido e as-
cendente de uma evolução — iniciada com a charge meio primária
de Falange gloriosa, desvendando a seguir o mundo plácido e algo
melancólico de Vida ociosa, para chegar finalmente ao livro den-
so, humano e artisticamente bem-estruturado que é o inédito, Os
bem-casados. Nos três, subjaz como lençol subterrâneo a consciência
artesanal do calígrafo; um tanto derramada no primeiro; contida e
elegante no segundo; seca, em plena posse de todos os recursos no
último. Este, redigido na verdade antes dos outros, mas sem dúvida
modificado essencialmente depois, vem realizar o que se esperou,
em vida, do grande talento de Godofredo Rangel, e se manifestara
mais como possibilidade na obra publicada. Nele se equilibram fi-
nalmente o apuro impecável do estilo, a segurança da composição,
a compreensão psicológica e a coragem moral de enfrentar com
decisão os aspectos pouco amáveis da vida.
Esta retificação que certamente se fará, renovando o conceito do
seu nome e o sentido da sua obra, ele não poderá mais vê-la, morto
que está fisicamente desde há alguns anos. Na memória dos seus
leitores viverá todavia com mais intensidade através dos seus livros,
sobretudo o inédito, onde fixou na categoria da arte, com a sua
maneira sutil e precisa, o sofrimento humano, que não o pode mais
fazer sofrer, pela palavra escrita, que não pode mais traçar. Nos seus
livros está doravante a sua vida, que foi, na terra, de homem justo e
bom; nos livros, símbolos da ressurreição de quem não mais existe,
como os de Bergotte.

Prefácio publicado originalmente em Falange gloriosa


(Ed. Melhoramentos, São Paulo, 1955)
Godofredo Rangel com a primeira neta, Sandra,
personagem de seus livros infantis.
Fotografia, sem data. Acervo Márcio Sampaio.
236 | 236
237 | 237

Cronologia

José Godofredo de Moura Rangel

Nasce na cidade de Três Corações (MG), a 21 de no-


vembro de 1884. É o quinto dos oito filhos de João Sil-
vio de Moura Rangel e Clara Augusta Gorgulho Rangel.
Alfabetizado muito cedo, logo demonstra interesse
pelos muitos livros disponíveis na biblioteca domésti-
ca — literatura, ciências, geografia, história, religião.
Procura decifrar textos literários em inglês e francês,
leitura preferencial de seu pai, o que o leva a procurar
aprender esses e outros idiomas.
Vivendo a liberdade própria de menino de cidade
do interior mineiro, divide seu tempo entre brincadei-
ras, estudos escolares, experiências científicas. Cria um
teatrinho de bonecos para encenar suas histórias. Parti-
cipa de peças teatrais encenadas por grupos locais. Aos
10 anos começa a editar um jornalzinho manuscrito, no
qual é redator, diagramador, ilustrador. Além disso, é
ele também o distribuidor. O noticiário pescado nos
jornais e em conversas familiares, as charges e comentá-
rios críticos fazem parte da pauta do periódico, no qual
demonstra verve humorística e atenção para com os
acontecimentos sociais e políticos, para além do âmbito
local. Publica contos e poemas. Esse empreendimento
tem a duração de 11 números, que são mostrados aos
familiares e amigos, em tiragem de um único exemplar.
Reside com a família nas cidades de Três Corações e
Silvestre Ferraz (Carmo de Minas).
Seu pai, que fora próspero comerciante, sofre re-
veses financeiros e vem a falecer em 1896. Godofredo
tem, então, 12 anos.
Em 1902, transfere-se para São Paulo, a fim de con-
tinuar os estudos. Mora por uns tempos com a irmã
Lavinia, já casada.
Concluídos os estudos preparatórios, matricula-se
na Escola de Direito. Para custear os estudos, passa a
trabalhar como escrivão da subdelegacia de um posto
policial no Brás. Em um de seus plantões, conhece o
jornalista e poeta Ricardo Gonçalves. Estabelece-se en-
tre os dois uma forte camaradagem. Ricardo sugere-lhe
uma pauta de leitura, orientando-o na escolha da me-
lhor literatura disponível à época.
Transferido para o posto da delegacia no Belenzinho,
Rangel aluga o sótão de um chalé que vai se transformar
no ponto de encontro de diversos jovens estudantes.
Com Ricardo Gonçalves, chegam Monteiro Lobato,
também estudante de Direito, José Antônio Nogueira,
Cândido Negreiros, Hilário Tácito, Lino Moreira, Tito
Lívio Brasil, Albino Camargo, Raul de Freitas, todos as-
pirantes a escritor. Dadas as particularidades da arqui-
tetura do chalé, o espaço recebe o nome de “Minarete”
e passa a ser local de grandes e prolongadas conversas,
fantasias, aspirações, em torno da literatura e da vida. A
essa confraria dão o nome de “Cenáculo”, e Rangel, por
suas qualidades de liderança, se torna o natural coorde-
nador do grupo.
É nesse estimulante espaço de criatividade que se
estende para outros locais da cidade que se dá início a
238 | 239

uma reformulação estética, protomodernista, que lan-


ça um olhar mais realista para a terra, para questões
sociais e políticas.
Em 1903, criam em Pindamonhangaba, interior de
São Paulo, o Minarete, um jornal de feição política e
literária no qual publicam seus contos, crônicas, poe-
mas e artigos.
Ao mesmo tempo, outro jornal alternativo, O
Combatente, abre suas páginas para o grupo, que irá
ter uma atuação mais incisiva e com maior liberdade
para a manifestação política, humorística e literária.
O jornal, bastante irreverente, acaba sendo fechado
pela polícia.
Concluído o curso de Direito, Lobato vai residir
em Taubaté e pouco depois é nomeado promotor em
Areias (SP).
Inicia-se entre Rangel e Lobato uma correspondência,
que se prologará por 43 anos.
Com o tempo, o grupo do Minarete vai se disper-
sando. Rangel inicia carreira como professor, parale-
lamente aos estudos do curso de Direito, que conclui
em 1906.
Trabalhador compulsivo, nessa época já havia pro-
duzido e publicado muitos de seus contos e iniciava a
elaboração de romances e novelas.
Em 1904, regressa a Minas, fixando-se em Sil-
vestre Ferraz.
Em 1906, casa-se com Bárbara Pinto de Andrade,
com quem terá quatro filhos — Nello, Túlio, Caio e
Duse. Nessa época sua atividade principal será a de pro-
fessor de português no colégio local.
Em 1907 visita Monteiro Lobato em Areias, e esse
será um dos poucos encontros que terão ao longo da
vida. Serão “amigos escritos”, como definiu Lobato,
pois a amizade permanece ao longo dos mais de 40 anos
de assídua correspondência.
Nomeado juiz municipal, atua, entre 1909 a 1918,
em Machado e Santa Rita do Sapucaí.
Entre 1918 a 1937, exerce as funções de juiz de di-
reito das comarcas de Três Pontas, Lavras, Estrela do
Sul e Passos, continuando suas atividades como profes-
sor. Publica a obra didática Estudo prático de português,
como apoio às suas aulas.
Mantém relações com o meio intelectual de São
Paulo e publica contos e artigos na imprensa paulistana.
Inicia atividades como tradutor, tornando-se conhe-
cido por essa atividade, trabalhando por muitos anos
para a Companhia Editora Nacional, de Lobato, a Edi-
tora Globo, de Erico Verissimo, a José Olympio e a Ci-
vilização Brasileira.
Em 1917, o “Estadinho”, edição vespertina do jornal
O Estado de São Paulo, publica em capítulos seu romance
Falange gloriosa, que obtém ótima repercussão. Da mes-
ma forma, o jornal publica capítulos de Vida ociosa, que
sairá em livro em 1920, em edição da Revista do Brasil,
de Monteiro Lobato & Cia. Editores.
Em 1922 a mesma editora publica o livro de contos
Andorinhas, bela edição em formato de bolso.
Em 1924, em Três Pontas, recebe visita do escritor
Milton Campos, então advogado em Boa Esperança,
cidade próxima.
Em 1929 sai a novela A filha, em edição da Imprensa
Oficial de Belo Horizonte.
Em 1937, Rangel aposenta-se como juiz de direito
de terceira entrância da comarca de Lavras (MG) e pas-
sa a residir em Belo Horizonte, onde é recebido com
muito apreço pela intelectualidade local.
24 0 | 24 1

Em 1939 é eleito para a Academia Mineira de Le-


tras (AML), ocupando a cadeira de número 13, cujo
patrono é Xavier da Veiga.
Em 1943 lança os livros infantis Um passeio à casa de
Papai Noel, Histórias do tempo do onça e A banda de música
do onça pela Companhia Editora Nacional (SP).
Nesse mesmo ano, Rangel e Lobato decidem devol-
ver as cartas que escreveram, nas quais registram, em
vivo diálogo, substancioso panorama da vida e do tem-
po de dois amigos intelectuais. Não os perturbam as
diferenças de personalidade e os diferentes modos de
conduzir a vida. Lobato, inquieto, pragmático e corajo-
so, mobilizado por diferentes demandas profissionais e
existenciais; Rangel, aquietado em sua vida no interior
mineiro, imobilizado pelas circunstâncias da profissão
em meio de modesta contextura intelectual, mas com-
pensando a irredutível vocação de escritor com traba-
lho incessante e pesquisa.
No ano seguinte, depois de uma revisão crítica, Lo-
bato publica em dois volumes as suas cartas para Ran-
gel, com o título A barca de Gleyre. A repercussão dessa
obra suscita interesse pelas cartas de Rangel, como o
contraponto necessário para a melhor compreensão do
diálogo mantido pelos dois amigos. Mas Rangel recu-
sa-se a publicar suas cartas, alegando que elas não pos-
suíam outro mérito senão o de provocar as de Lobato.
Em 1944, sai o segundo livro de contos de Godofre-
do Rangel, Os humildes, pela Editora Universitária, de
São Paulo, com prefácio de Lobato.
O período em Belo Horizonte, apesar das dificulda-
des financeiras e das doenças que o acometem, é muito
estimulante. Continua escrevendo contos e artigos, que
são publicados em diversas revistas e jornais de Minas,
do Rio e de São Paulo. Muitos dos textos passam a inte-
grar antologias do conto brasileiro.
Continua sua atividade de tradutor, atendendo à de-
manda de várias editoras.
Recebe escritores que lhe solicitam opinião sobre
sua produções, mantendo com eles longas conversas.
Acolhe com a mesma simpatia jovens autores que bus-
cam sua orientação, entre os quais Mário Garcia de
Paiva, Autran Dourado e Guimarães Rosa, os quais
viriam a dar depoimentos sobre a influência exercida
pelo velho escritor sobre suas obras. Mantém corres-
pondência com outros escritores de São Paulo, ofere-
cendo-lhes também aconselhamento e fazendo revisão
de suas obras, como foi o caso de Menotti del Picchia.
Em 1948 falece Monteiro Lobato. Rangel publica
artigos em sua homenagem, lembrando a amizade de
toda uma vida.
No dia 4 de agosto de 1951, três anos após a mor-
te de Monteiro Lobato, Godofredo Rangel falece em
Belo Horizonte, aos 66 anos, deixando para seu filho
Nello Rangel um acervo de centenas de manuscritos,
com anotações, diários, um dicionário em cinco volu-
mes, rascunhos de romances e as cartas que escreveu
para Lobato, com a recomendação de que só fossem
publicadas depois de uma seleção rigorosa e destruição
do que não fosse de interesse literário.
Em 1955, a Editora Melhoramentos, de São Paulo,
publica edições póstumas dos romances Os bem-casados
e Falange gloriosa, junto com Vida ociosa, obras integran-
tes da série Ficção Nacional.
O escritor Edgar Cavalheiro descreve com preci-
são os primeiros tempos de Rangel em São Paulo, e o
24 2 | 243

historiador Décio de Vasconcelos elabora a primeira


biografia de escritor.
O escritor catarinense Enéas Athanázio vem se dedi-
cando à divulgação e revisão da obra de Rangel, tendo
publicado vários ensaios, entre os quais Godofredo Ran-
gel (1977) e a biografia crítica O amigo escrito (1988).
O professor Lutiane Marques é outro pesquisador
persistente, que tem feito descobertas em arquivos no
país e no exterior, recuperando e restaurando docu-
mentos fundamentais para o conhecimento mais amplo
do escritor e de sua obra. Em sua dissertação de mes-
trado estudou a correspondência entre Rangel e Loba-
to. Em O visitante, executa uma montagem surpreen-
dente de textos de Lobato e Guimarães Rosa, como um
diálogo entre os dois escritores, no qual o autor revive
visitas efetivamente acontecidas.
Em 1984, o Suplemento Literário de Minas Gerais pu-
blica edição especial, em comemoração do centenário
de nascimento de Rangel e é feita uma exposição no
Palácio das Artes, em Belo Horizonte.
Em 2000, a Editora Casa da Palavra e a Fundação
Casa de Rui Barbosa, do Rio, publicam Vida ociosa, com
introdução de Autran Dourado, prefácio original de
Hilário Tácito, posfácio de Enéas Athanázio e estabele-
cimento de texto por Adriano da Gama Cury.
Nas duas últimas décadas, a obra de Godofredo Ran-
gel tem despertado maior interesse no âmbito acadê-
mico, reconsiderando sua posição no quadro da litera-
tura brasileira do século XX, por sua obra literária e
por sua influência sobre outros escritores.
VIDA
OCIOSA

Godofredo Rangel com a esposa, D. Bárbara, e a


família, em foto de 1946. Acervo Márcio Sampaio.
24 4 | 24 5
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Desembargador Gilson Soares Lemes
Presidente

Desembargador José Flávio de Almeida


1º Vice-Presidente

Desembargador Tiago Pinto


2º Vice-Presidente
Superintendente da Escola Judicial Desembargador Edésio Fernandes

Desembargador Newton Teixeira Carvalho


3º Vice-Presidente

Desembargador Agostinho Gomes de Azevedo


Corregedor-Geral de Justiça

Desembargador Edison Feital Leite


Vice-Corregedor-Geral de Justiça

AMAGIS
Juiz Luiz Carlos Rezende e Santos
Presidente

Juíza Rosimere das Graças do Couto


Vice-Presidente Administrativa

Juíza Roberta Rocha Fonseca


Vice-Presidente Financeira

Juiz Jair Francisco dos Santos


Vice-Presidente de Saúde

Juiz Lourenço Migliorini Fonseca Ribeiro


Vice-Presidente do Interior

Desembargador Maurício Pinto Ferreira


Vice-Presidente Sociocultural-Esportivo

Desembargadora Aposentada Heloísa Helena de Ruiz Combat


Vice-Presidente dos Aposentados e Pensionistas

Juíza Ivone Campos Guillarducci Cerqueira


Diretora-Secretária

Juiz Evandro Cangussu Melo


Diretor-Subsecretário

Juiz Jorge Paulo dos Santos


Diretor de Projetos Culturais Especiais

ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS


Rogério Faria Tavares
Presidente

Caio Boschi
Vice-Presidente

Jacyntho Lins Brandão


Secretário-Geral

Luís Giffoni
Tesoureiro

Realização:
24 6 | 24 7

© Godofredo Rangel
© Antonio Candido
© Autran Dourado
© Carlos Drummond de Andrade

COORDENAÇÃO EDITORIAL Márcio Sampaio & Rogério Faria Tavares


PREPARAÇÃO E REVISÃO Leonardo Mordente
DIGITALIZAÇÃO DE TEXTOS Tiago Mozer de Moura Rangel
PRODUÇÃO EXECUTIVA Bruno Gontijo
DIREÇÃO DE ARTE E DESIGN Marconi Drummond
PROJETO GRÁFICO Gladston Costa

Nesta edição, respeitou-se o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

R154v Rangel, Godofredo, 1884-1951.

Vida ociosa / Godofredo Rangel -- Belo Horizonte: Tribunal de Justiça do


Estado de Minas Gerais: Associação dos Magistrados Mineiros (Amagis) :
Academia Mineira de Letras (AML); 2022.

2 v.
ISBN: 978-65-87273-06-8

Conteúdo: v.1: A filha . – v.2: Falange gloriosa. Os bem-casados.

Inclui artigos sobre o autor de Rogério Faria Tavares; Autran Dourado; Antonio
Candido, Márcio Sampaio e Carlos Drummond de Andrade.

1.Ficção brasileira. 2. Rangel, Godofredo 1884-1951 - Autobiografia.


I. MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. II. Associação dos Magistrados Mineiros.
III. Academia Mineira de Letras. IV. Título. V. Título: A filha. VI. Título: Falange
gloriosa. VII. Título: Os bem-casados.

CDD: B869.3
CDU: 82.3(81)

Ficha catalográfica elaborada pela Coordenação de Biblioteca (COBIB)


Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais

ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS


Rua da Bahia, 1.466 – Lourdes
Belo Horizonte – MG – 30160-011
(31) 3222-5764
contato@academiamineiradeletras.org.br
VIDA
OCIOSA

Tipografia: Perpetua e Cera


Papéis: Supremo Alta Alvura 250 g/m2 e Pólen Bold 70 g/m2
Tiragem: 500 exemplares
Impressão e acabamento: Gráfica Rede
Impresso em Belo Horizonte (MG), em junho de 2022.

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