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OCIOSA
A FILHA
GODOFREDO
RANGEL
FALANGE
GLORIOSA
OS BEM-
-CASADOS
vol. 1
vol. 1
Belo Horizonte | MG, 2022
4 | 5
APRESENTAÇÃO
7 Tribunal de Justiça de Minas Gerais | TJMG
8 Escola Judicial Desembargador Edésio Fernandes | Ejef
9 Associação dos Magistrados Mineiros | Amagis
13 VIDA OCIOSA
127 A FILHA
237 CRONOLOGIA
6 | 7
A estrada
Ruínas
Acolhimento cordial
Um gênio enciclopédico
toques de Kardec, para não ser uma esposa vulgar e incapaz de sus-
tentar uma conversação instrutiva com seu científico marido.
Américo fora toda a vida o orgulho da família, o seu grande ho-
mem; e todos lastimavam que não houvesse seguido uma carrei-
ra superior. Desde criança revelara inclinações destoantes do seu
meio. Em pequenito, enquanto os outros fedelhos andavam a correr
pastos e pegar animais, ou brincavam de “tempo-será”, ele deixava-
-se ficar espichado, de queixo no chão, a passar figuras do Manual
de criador de galinhas. — Era um amor pelos livros! — dizia siá
Marciana ao marido, indo buscá-lo para vir de mansinho apreciar o
sério aplicado do pirralho. E os dois ficavam a cocá-lo com o olhar
repassado de comoção. E faziam planos: seria isto, seria aquilo. Mais
tarde, nos tempos de estudante, firmou-se a vocação. Tinha uma
memória para guardar as coisas! Depois que o mestre o deu como
preparado, e que pediu, aflito, que não lhe mandassem mais o “Mer-
quinho” (bons quinaus lhe pregara o pequeno!) este continuou a ser,
só consigo, bom estudante. Conservara sempre, e sempre manuseada,
a sua biblioteca de aluno, recapitulando, no intervalo de mais altas
cogitações, a matéria aprendida, com uma sede de conservar que
era quase avareza; e a conservara com tal aferro, que inda agora,
que dobrava os quarenta anos, tinha fresquinha na memória a exó-
tica onomástica das ilhas da Oceania e dos vulcões do México; sabia
de cor todas as definições da Gramática da infância, e traduzia cor-
rentemente os exercícios do Sevène. Se não encorpou esse cabedal,
também não desaprendeu o sabido. Às vezes pedia-me que abrisse
ao acaso um de seus livros escolares e lesse a primeira linha. Eu o
fazia. E Américo tomava-me logo o fio da frase, e desembestava por
ali abaixo sem uma hesitação; a matéria saía-lhe fluente, corredia,
sabidinha e em um nunca-acabar.
Depois de sair do colégio, nem tentaram os pais metê-lo na la-
voura: ele revelara uma aversão profunda por tudo o que não fosse
ciência pura e por isso também não aprendera ofício, nem ocupara
empregos; vivia na fazenda à espera de uma oportunidade para con-
tinuar os estudos fora, numa grande capital; mas o amor materno,
VIDA
OCIOSA
Ao café
O hóspede
minha vista, como quem se considera muito humilde para tão nobre
empresa. A verdade é que no cômodo de negócio, lugar das aulas,
eu via à hora da lição profusas bolas de tabatinga, de vários tama-
nhos, que representavam, talvez, os planetas conhecidos — o que
me fazia temer pelo miolo do seu catecúmeno.
Embora admitido grátis, era o José tratado com todas as conside-
rações. Américo trazia-o nas palminhas, como um bem mui valioso
que é necessário conservar. Se caía doente, velava-lhe à cabeceira,
em aflições maternais; queria-o consigo às refeições, como pensio-
nista semi-interno; e cedo eram inquietações de cada momento: o
negrinho viria? não viria? (José era da cor da noite.) Comigo mes-
mo batizei o discípulo amado: “o hóspede do Grande Hotel”. A his-
tória da alcunha dava pano para longa novela, cômico-sentimental.
Em poucas linhas passo a tracejá-la:
O Sr. Almeida vegetou trinta anos numas bibocas infrequentadas
do sul de Minas. Assim vegetara seu pai, seu avô, seu bisavô, e assim
vegetariam mais tarde os filhos, se os tivesse; mas era apenas pai
de nove filhas casadeiras, as mais velhas bem passadinhas e, as mais
moças, umas passando e outras no viço e frescor dos melhores anos.
Naquele desterro onde vivalma não estanciava, que valia, po-
rém, a graça, o viço, o desabrolhar de tantas louçainhas? Ai das nove
filhas solteiras! Ai dos ricos encantos que se fanavam na solidão!
Feiticeiros sorrisos, voluntariedades feminis, fanfreluches cheios de
encanto, momos caprichosos, tudo que faz da mulher um entezi-
nho apetecível, estavam ali como certas flores agrestes amoitadas
no ermo e que esterilmente perfumam o ar com suas delicadas ca-
çoilas aromais, sem um olfato que as aspire, nem olhos extasiados a
quem maravilhem. As nove flores agrestes do Sr. Almeida tinham-se
apenas, umas às outras, como espectadoras invariáveis de tanto en-
canto esperdiçado na solidão, e sabe Deus se se contentavam com
tão pouco! A melancolia daquele destino infecundo azedava-lhes o
gênio, ao ponto de passarem os dias a unharem-se umas às outras.
E o Sr. Almeida, por fim, coçava a barba, pensativo. Gostava de
passar os dias pitando seu cigarrão de palha, um toco babujado
que lhe filtrava doce quietude à alma, de envolta com a fumarada,
acocorado perto de uma bacia com brasas, a ralhar com os criou-
linhos e a gritar com as nove; compreendia agora, porém, que sua
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vida não podia cifrar-se naquilo. Esta ideia embutiu-se com tanto
aferro no seu cérebro, que um dia resolveu quebrar as tradições
da família, tomando uma grande resolução. O proprietário de um
grande hotel, numa vila de águas, desejava pôr lavoura; o Sr. Al-
meida deu o que tinha pelo hotel e freguesia, e despediu-se defini-
tivamente do ermo agrícola. Não vira solução mais acertada para
seu caso melindroso. Pois um hotel, em tal ponto, é frequentado
pelo escol da sociedade carioca e paulista, e ali, pondo à vista dos
pensionistas as nove virtudes guerreiras enrijadas na vida da roça,
não lhe seria difícil achar bons partidos matrimoniais.
E lá se foram. Infelizmente, porém, o Grande Hotel andava
desconceituado. O dono alienara-o para livrar-se do alcaide. Tinha
o prédio corredores imensos, quartos sem-conta, refeitórios am-
plos, era todo largueza e amplidão, mas não apareciam veranistas
que lhe viessem despertar o silêncio claustral, animando aqueles
corredores, longos e vazios como artérias cortadas, com um pou-
co de sangue corrente de gente viva. Mais cogitativo que nunca,
e a recoçar o queixo, o Sr. Almeida resolveu instalar a um canto
um fogareiro, para sentir acalentar-lhe a melancólica desilusão um
pouco de borralho, a cuja beira passava as horas intermináveis a
cuspir o sarro do toco.
Um dia, não se sabe como, surgiu lá o primeiro hóspede, homem
dos seus quarenta. Foi um rebuliço na casa. O Sr. Almeida gague-
java e atarantava-se, e as nove musas, passadinhas ou não, ficaram
num alvoroço de aleluias em tarde estiva, a trançar estonteada-
mente pela casa, numa boa vontade de servir e agradar, que era
para pôr um homem rendido. O Sr. Garcia (este o nome do hós-
pede) não podia queixar-se de mau tratamento. Verdade que pre-
feriria menos rebuliço e vaivém, pois, muito neurastênico, fora
para calma dos nervos irritadiços que escolhera aquele hotel des-
frequentado. Só encontrava um pouco de bem-estar no ambiente
sedativo dos lugares ermos, na convivência consigo mesmo em
infindáveis meditações, em que o ondeante mover do pensamento
parece fazer-se fora do tempo e do espaço, e o espírito flutua,
frouxamente, como uma penumbra de crepúsculo em nave aban-
donada. Com a sua chegada ao Grande Hotel, fez-se ali, na sua
paz morta e atmosfera de estupor, a vida que ele evitava. O toco
VIDA
OCIOSA
Manequinho
O Dr. Formiguinha
Bocejos e guloseimas
Tédio
eu; mas o enredo apagava-se como um rio sem foz que se evapora
no deserto e a dispersão concentrava-se no importuno vinco daque-
las impressões visuais.
Uma coisa pulou na arca. Era a gata predileta de siá Marciana,
muito dada, esfregadeira, ronronante. Coçou as pulgas no meu pé,
continuou a fricção perna acima, deixando na casimira um rastro de
pelos caidiços. Achei adorável aquela sem-cerimônia e, ajuntando
paciência, resolvi comigo:
“Vamos ver até onde chega o atrevimento”. Fez-me massagem
abdominal, coçou-se no meu cotovelo, encostou a bigodeira pruin-
te no meu rosto, rouquejando surdas catarreiras; fez menção de
beijar-me, fossou-me no ouvido…
“Vamos ver até onde vai!”, trocadilhei, fulo de raiva. Foi a dez
passos de distância, pois sem chamar mais paciência, apliquei-lhe
um tabefe centrífugo: siá Marciana não estava ali… Perto dela é que
eu tinha hipocrisias. Amimava o felino, tomava-o nas mãos, achava-o
bonito e tudo o mais que agradasse à dona.
Escafedeu-se a gata aos pinchos e bufos pela janela do terrei-
ro. Fez-me falta, porque então senti-me vazio. O vácuo pesava-me
como chumbo.
— Quantas redes? — perguntei.
— Quase duas.
E eram dez, ao todo! Busquei alhear a atenção pensando em coi-
sas da cidade. Evoquei a minha vida de homem civilizado…
O diabinho zombeteiro do tédio fez-me lembrar uma inquirição
marcada para aquele dia. Testemunhas de longe, crime sensacional,
com advogados, acusador particular… Pulei da caixa. E eu que me
havia esquecido! Maldito azar!
Dias e dias que passo às moscas em meu gabinete, sem uma
petição, um auto a despachar, sem um depoimento, apenas a en-
cabulação da visita do meirinho bexigoso, reverente e correto,
a perguntar-me inutilmente: “Senhor doutor, tem alguma coisa
para os cartórios?” — tão correto que, ao chegarem as onze, já
começo a enfezar: “Faltam cinco minutos… quatro, três, dois…”
VIDA
OCIOSA
Não ter a gente a vida toda quem assim nos embale, dando-nos
a carícia de macia mão que nos alisasse os cabelos, a dizer-nos his-
tórias de fadas e príncipes encantados e a chamar-nos filho, uma asa
imorredoura sob a qual nos pudéssemos fazer pequeninos, encolhi-
dos, escondidinhos…
Mal-organizada, esta complicação dolorosa da vida!
Mas naquele momento parecia-me quase perfeita.
“Viver é bom!”, murmurava sonolenta minh’alma, dissolvendo-se.
Longe, na estrada, rangia ainda o carro, interminavelmente; e
era como se o meio-dia se houvesse feito som e por essa voz ator-
porada e longa dissesse o desmaio voluptuoso dos grandes campos
adormecidos ao sol…
VIDA
OCIOSA
No barreiro
Horas de ócio
Faltava carne para o jantar; por isso, depois do café da uma hora,
meus amigos piraquaras aprestaram-se para a ida à beira-rio. Estava
pronto o samburá com os roletes de angu, debulhos de frango e
milho para rapar na ceva, como chamariz. Convidaram-me para
participar da pescaria.
— Outro dia… — respondi. — Venho com tenções de pescar,
e no entanto não me encorajo a arrostar sol e ladeira para satisfazer
meu desejo. E a vida assim é que me parece razoável: um perpétuo
aspirar, sem realizações.
— Tem graça, Dr. Félix! — aparteou siá Marciana. — Acha
mesmo que o melhor da festa é a espera?
— Sou assim, na verdade, e entendo que é o mais lógico meio de
evitar desilusões. É a causa de ainda estar solteiro. Não quero dizer
que condene o amor…
Perpassou-me aos olhos da memória a estampa do tal ex-futuro
cunhado, de marreta engatilhada: “Ou casar, ou…”. O desastrado es-
paventara-me uma vez por todas do casamento, com grande conster-
nação das amáveis pretendentes a sogras, pululante espécie que vive a
tecer redes de agrados para que se lhes carreiem as filhas do lar.
— Por exemplo: essa mata da outra margem, que não é como
esta margem praguejada de caatingas e pastos, exerce sobre mim
verdadeira fascinação. De contemplá-la a distância embriago-me,
perturbo-me, imprecando os fados que me fizeram nascer civilizado
e homem. A verdadeira vida é a da floresta, com os seus mistérios,
VIDA
OCIOSA
O aguaceiro
Pirata
Fumigações
A cavalo
O sentenciado Lourenço
Crescite et multiplicamini
A cachoeira
Dupla surpresa
— É como lhe digo, sô doutor: a linha da divisa passa por esta cova,
a vinte braças de um óleo pardo; por aqui vai descendo…
E o dedo do meu jurisdicionado ia descendo por um papel sujo,
esboço de mapa, de dobras rustidas de velhice.
— Sim, sim! Já me disse isso; mas não posso, absolutamente,
dar opinião; procure um advogado de sua confiança, exponha-
-lhe o caso…
— … vai descendo, até esbarrar no corgo do Zé Elias. Aqui
faz um bico…
Levantei-me, impaciente e pus-me a passear, agitado, pelo es-
critório. Forte maçada! Precisando ir ao Córrego Fundo e aquele
estupor a moer-me a paciência, com a história infindável de seus
litígios! Se o não despejei vinte vezes pela janela, é que me comovia
a humildade paciente com que acolhia meus frenesis. Desta vez ain-
da emudeceu, com o papel sujo estendido sobre a perna, à espera.
— Pois vá, vá perguntar a um advogado o que quiser. E olhe,
tenho serviço, não posso atender ao senhor toda a vida.
Malgrado estas palavras ásperas, meu consulente continuou
incrustado na cadeira.
Recomecei meu passear agitado, buscando divertir o pensa-
mento. Sobre a mesa vi, dobrado, o papel azul recebido de manhã.
Um doce calor de júbilo filtrou-se-me no espírito. Senti-me feliz.
Mas uns gordos autos de embargos, que avultavam logo adiante,
esfriaram-me consideravelmente a alegria. Diabo! Tanto atraso no
VIDA
OCIOSA
A FILHA
ROMANCE
A FILHA
GODOFREDO
RANGEL
A FILHA
LE BON
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A loucura de amar
“Ela era humana e mortal! Um ser frágil, sujeito como eu, como
uma ave, uma flor, às contingências da vida e da morte. Leila, o po-
bre amor meu, também possuía uma alma sequiosa do impossível
e sofria todas as torturas de uma aspiração incontestada. Possuía-a,
quiçá, o mesmo desejar violento e desordenado que morava dentro
em mim. Nosso desesperado e vão anseio eram duas gavinhas cegas,
a enrolarem-se no ar sobre si mesmas, na impotência de um desejo
inatingível. Sonhando o suporte da ventura, buscam-no perdida-
mente, a tatear o vácuo, e, na ânsia extrema, crispam, enovelando-
-as, suas fibrilhas verdes. Ela era humana e mortal!”
A piedade queria viçar na mole anestesiada de seus sentimentos,
como uma flor cujas pétalas fossem retalhos sangrentos do coração.
Mas a inconsciência submergia-lhe de novo o senso do real.
O enterro seguiu. Como meada que se desenrola, saíram, do
basto ajuntamento de homens lúgubres que enchiam a igreja, duas
fitas paralelas que vermiculavam molemente, picadas de luzes páli-
das, para o outeiro do cemitério. Entre elas, como um testudáceo
aprisionado entre duas serpentes e movendo-se com pés numero-
sos, ia um bolo negro, carregando uma coisa sinistra. Nas alas, pin-
celadas de opas rubras, as luzes tristes dos círios morriam na clari-
dade. Plangiam os sinos, cujos dobres lentos se arrastavam em ecos
remorados e quando se calavam, ouviam-se no silêncio atônito galos
roucos cocoricar. Os pés batiam o chão, ritmados, num trovoar en-
surdecido, e as coroas funerárias, amontoadas no caixão, tilintavam,
sacudidas pela marcha dos carregadores.
Sálvio seguia, sonambulicamente, a alma ainda insensibilizada
pelo excesso de sofrimento. Confusos pesadelos povoavam-lhe a
consciência adormecida. Sentia-se, num espanto, como pairando
além-túmulo, num mundo de ignoto horror. A espaços um trovão
surdo despertava-o em sobressalto: eram os pés da multidão baten-
do o chão duro, de envolta com o tilintar metálico das coroas sacu-
didas. Entre as alas o bolo sinistro tangava, como ébrio, avançando
com os seus numerosos pés.
Os olhos dilatados de Sálvio, saindo do horror do sonho, en-
chiam-se daquela realidade de pavor… E o fluxo da inconsciência
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A fuga
A repulsa
Só
A turvação de Caim
Noeme
Trevas…
Anoitecia.
O comboio corria, rumoroso e em seu ímpeto selvagem era
como um animal noturno, que exulta com a chegada das trevas.
Sálvio, a filha e a netinha formavam um grupo silencioso no re-
canto de um vagão.
Noeme, envolta em seu vexame, conservava-se quieta e humil-
de, com um vago receio de tudo e de todos.
Sálvio também estava mudo. No isolamento em que vivera, de-
sabituara-se do uso da palavra. Sua boca silenciara a vida toda, e ele
apenas conversava com a filha em pensamento. Tinha-a agora defini-
tivamente, mas seus lábios fechados como por um selo de chumbo,
ainda nada conseguiam dizer.
Suas almas, que se haviam aberto no instante do mútuo reconhe-
cimento, não se comunicavam mais; isolaram-se de novo, concen-
tradas em seus próprios sentimentos, fechadas, distantes…
Ele queria agradar-lhe, falar-lhe, fazer planos de futuro, mos-
trar a melhoria de situação que a esperava, desejaria, forçando o
próprio acabrunhamento, dizer-lhe ao menos frases triviais, que
rompessem o silêncio penoso. Não o conseguia. Se queria a boca
proferir alguma palavra, seus lábios, dolorosamente comprimidos,
negavam-se a pronunciá-la.
É que agora, vencidas tantas dificuldades, acalmada a exaspera-
ção da luta para reconquistá-la, volvia-lhe o senso da realidade, que
momentaneamente lhe fugira e uma onda negra de desespero, lento
e lento, voltava a senhorear-se de seu espírito.
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A aurora da ressurreição
O momento da felicidade
O despertar
e o júbilo de ter sido tão amada. Cada frase proferida era novo elo
unindo alma a alma. Noeme perto do pai já não se sentia ré em face
do julgador; sentia-se filha. E, na doçura dessa sensação, nunca sen-
tida, aconchegava-se mais contra ele, fazendo-se pequenina, tendo
a impressão de ser a criança cuja imagem adorada Sálvio conservava
no mais puro relicário da memória. Chamou-lhe pela primeira vez
“papai”. E, seu rosto, iluminado pela ventura, assumira uma expres-
são de contentamento infantil.
Sálvio, com a alma túmida de paternidade, encontrava nesse sen-
timento a violência e a doçura de uma paixão. Quando se calavam,
continuava no silêncio a comunicação das almas, multiplicando os
vínculos do afeto. Às vezes, Sálvio dizia: “Fala-me, Noeme… Dei-
xa-me ouvir a tua voz… Fala-me ainda… ainda…”.
O momento da felicidade prolongava-se e não findaria mais. Sál-
vio, todo de seu sentimento, não tinha mais acordo da realidade
exterior. Não sentia os solavancos do trem, cuja corrida louca pros-
seguia, nem o retroar do temporal.
Esboçou-se enfim no horizonte o primeiro albor azulado da ma-
nhã nascente. No caos negro em que tudo jazia, recomeçou de novo
a separação entre o céu e a terra, entre a luz e a sombra, como nos
dias da criação. Depois da morte do universo da angústia sem limi-
tes, ressurgia o mundo novo, de paz e de ventura incomparáveis.
A essa hora, sentindo frio, a criança vagiu. Noeme chegou-a ao
seio, aquecendo-a com o calor de seu corpo, que só esse era o aga-
salho que lhe podia dar. Ela também tiritava.
— Sente frio? — perguntou-lhe o pai.
Acenou que sim.
Sálvio relanceou em torno. Lembrou-se, porém, de que nada
tinha para a agasalhar. Então estreitou-a mais contra si, como ela
fizera com a criança.
Os três pareciam fazer um único ser.
E, reclinada contra o pai, que lhe acariciava as pálpebras cansa-
das, fazendo-se pequenina, como uma criança aninhada no regaço
materno, Noeme readormeceu.
A FILHA
A primavera voltou…
A cidade pouco se alterara com o passar dos anos; por isso, a chá-
cara era ainda num ermo agreste, na grande praça deserta, onde
as paineiras se alteavam, majestosas e vetustas, voltadas em medi-
tação para o infinito.
Mas agora, aquela melancolia de arrabalde, onde a sombra das
grandes árvores eram como a condensação das saudades de Sál-
vio, não despertava pensamentos tristes na alma do venturoso pai.
Em sua vida alvorecia. Havia uma doçura de amanhecer nas pró-
prias sombras noturnas, que dantes, espessadas com suas tristezas,
eram tão mais sombrias!
Com que alegria começou a reconstruir sua casinha em ruí-
nas! Aprumavam-se as paredes, brancas de cal, sorria a tinta fresca
nos portais. O que pudesse, Sálvio fazia com suas próprias mãos,
dispensando o auxílio de profissionais. Seu desterro fora-lhe um
aprendizado de todos os ofícios rudes… Dir-se-ia um noivo pre-
parando o seu ninho de amor, mas não haveria noivado tão cheio
de venturas!
A casinha, assim pequena e clara, emboscada entre festões de
videiras, lembrava, em verdade, um ninho entre a folhagem. E
que fazia ser pequena! Havia em seu âmbito espaço bastante para
a felicidade residir. Porque a felicidade não é como a dor, que,
quando borbota de uma alma, o mundo é pequeno para espraiar-
-se; deem-lhe um raio de sol, a graça de uns pâmpanos e um re-
canto de paz, que é tudo quanto pede… Falte-lhe ainda isto, e ela
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o céu via… E foi então que, num ímpeto de loucura, fiz num dia o
que aqueles homens fizeram em anos… Soou a hora da felicidade…
Parti e reconquistei-te, minha filha!
Noeme ouvia, rasos os olhos de pranto…
Havia, assim, em tudo, um testemunho de seu passado infeliz.
Agasalhava-se uma sombra em cada árvore, em cada acidente do
terreno. Mas essas sombras tristes iam-se aos poucos desprendendo
das coisas, como as névoas noturnas à luz do dia nascente.
À tarde, saindo a empregada que auxiliava na casa, admitida com
relutância de Noeme, que queria tudo fazer, saíam a passeio, per-
mitindo-o o tempo, pelas cercanias da cidade. Procuravam de pre-
ferência as estradas desertas, cuja paz bucólica não quebrava o rit-
mo de sua harmonia interior. Ora calavam, contemplando o poente
congesto de luz, espalmando no céu faixas suavemente coloridas,
espetáculo que era novo para eles, como se até então os olhos intro-
vertidos para o sofrimento não tivessem dado acordo da realidade
exterior; ora se falavam, e o silêncio da tardinha dava às suas frases
a ressonância e como a profunda significação das palavras de uma
prece. Assim em comunhão com a natureza, sentiam maior a comu-
nhão das almas. Sálvio, em seus passeios, mostrava-lhe, onde as vis-
se, as testemunhas do seu desespero e a cada confidência era maior
a aproximação de ambos. Uma vez dissera-lhe: “Uma das ideias que
mais me martirizavam em meu desterro era o receio de morrer sem
que conhecesses a teu pai. Eu devia ocultar-me dos homens, mas
desejaria que soubesses que havia num lugar remoto um pensamen-
to absorvido em ti, um coração que não tinha outra palpitação, que
não fosse seu transbordante amor por ti. Não me conformava com a
ideia de que, olhando o mundo em volta, te sentisses só. Por isso, a
ideia de acabar incutia-me horror. Mesmo na morte há felicidade e
desventura… Se morresse hoje, não me desse cuidados o deixar-te
só, eu acharia na morte uma suavidade infinita… É que afinal meu
coração se desoprimiu de seu grande pesadelo”.
A pompa do poente ia esmaecendo em azul e cinza. Baixava a me-
lancolia do crepúsculo e com ela se acentuava o resíduo de tristeza
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remanescente nas coisas. Mas era uma tristeza benfazeja, porque in-
clinava-lhes mais fortemente os corações à piedade e à ternura.
Noeme ouvia lacrimosa a narração do que sofrera o pai e Sálvio
comovia-se à evocação dos sofrimentos ignorados de Noeme. Se
um cavaleiro os cruzava e a criança confrangia-se de medo, ou se
o relento da noite punha Noeme cuidadosa pela saúde da filha, o
que os fazia abreviar o passeio, Sálvio lembrava-se de que em sua
infância Noeme não tivera um afeto a que pedisse proteção nem
a solicitude de um coração materno, zelando carinhosamente
pela sua saúde.
Outras tardes, se não podiam sair, sentavam-se ao portão
que dava para o largo. Turmas de crianças ainda animavam a
quietude do arrabalde. E Sálvio dizia à filha: “Quantas vezes
meus olhos não contemplavam a tua figura ausente, entre as
crianças das outras gerações que brincavam neste mesmo lugar
e que já são hoje homens-feitos ou mães de família… Quantas
vezes, ao cantarem, em roda, de mãos dadas, eu não prestava
atenção senão a uma voz de criança que ali faltava… E a mim
me parecia ouvir, nesse vácuo de som, a tua voz distante e tris-
te, a chamar por mim!”.
A noite, passavam-na a sós, no pequenino lar. Que suavidade a
de seu querido conchego, cuja quietação era embalada pelo estali-
dar da lenha no fogão e pelo cricrilar dos grilos em redor da casi-
nha! Seroavam na modesta saleta de jantar; e enquanto Noeme se
entretinha com seus infindáveis trabalhos de lã, ou consertava as
roupas do pai, conversavam tranquilamente, abaixando a voz, para
não acordarem a pequenita, que dormitava ao lado da mãe numa
caminha improvisada, a chuchurrear a chupeta. Mas a pequenita
não dormitava sempre: às vezes intervinha na palestra, reclaman-
do a atenção para sua minúscula pessoa. Para a verem satisfeita,
era indispensável que lhe dessem a chupar o ovo de madeira da
cesta de costuras, ou que o avô a pusesse nos joelhos e “conver-
sasse” com ela, fazendo-a rir… Olhando-a, Sálvio dizia a Noeme:
“Como se parece contigo, quando eras pequenina!”.
A FILHA
cujo nome a memória não guardou. Não posso dizer se era bom,
certamente era ruim, a única coisa que nele devia prestar era a
sombra de um grande escritor.
Perguntei a meu pai quem era Godofredo Rangel. É um es-
critor de grande valor, juiz aposentado, eu me dou com ele, você
quer conhecê-lo? disse meu pai, que também era juiz, embora não
fosse dado às letras. Não, é melhor eu conhecer os romances dele
primeiro, disse eu.
Foi então que li Vida ociosa e Falange gloriosa. Comecei pelo
primeiro. Tomado do maior entusiasmo pelo estilo conciso, pela
ironia difusa, pela correção da linguagem (eu me preocupava muito
então pela obediência aos cânones gramaticais, só mais tarde viria
a romper com eles, violentando-os em favor da expressão), passei
a Falange gloriosa, que me agradou menos do que Vida ociosa, pelo
seu tom satírico às vezes beirando a impiedade. Mas os dois me
tocaram muito, principalmente porque tratavam de matéria de
que eu tinha alguma vivência: a vida roceira e apagada de uma
pequena cidade, no primeiro, e o ambiente concentracionário de
um internato no sul de Minas, no segundo.
Numa tendência que é própria do meu espírito, passei a mitificar
o escritor Godofredo Rangel. Daí porque tive medo de conhecê-lo,
não pedi a meu pai que me apresentasse ao grande escritor minei-
ro. Continuei a escrever meus contos, bastante anacrônicos, com
forte influência de Rangel e dos naturalistas, quando o Brasil já se
distanciava do Modernismo, cuja literatura eu desconhecia. Foi na
década de 1940.
Aos dezessete anos eu tinha aprontado um livro de contos.
Mostrei-o a meu pai, que resolveu dá-lo a Rangel para ler. Mas
quis que eu mesmo fosse entregá-lo ao grande mestre. No dia
seguinte me disse que Godofredo Rangel esperava por mim às
oito horas da noite.
Às sete e quarenta e cinco eu estava na porta do escritor, numa
casa modesta no bairro da Floresta, perto da igreja. Fiquei andando
de um lado para o outro, as mãos úmidas, o coração pesado de
ansiedade e de medo. Ia finalmente ver um deus, era assim que
antecipadamente eu vivenciava aquele encontro.
Às oito e cinco eu apertava a campainha e me fazia anunciar.
Com a minúcia de ver as coisas com que procuramos vencer a
angústia, nos fixar num mundo real, fiquei vendo os quadros e
móveis da sala.
Quando surgiu Godofredo Rangel. Me pareceu muito velho e
doente, magro, as bochechas chupadas, os olhos fundos. Veio na
minha direção e me estendeu a mão fina e comprida. Era todo fra-
gilidade. Delicadamente, a voz baixa, quase um sussurro, mandou
que eu sentasse. Aqui deste lado, disse ele. Não estou ouvindo
bem do ouvido esquerdo.
Não tive de falar primeiro, o que me aliviava, me dava tempo.
E ele começou a falar. Se é verdade que estilo é o homem, ali
estava, como um espelho, o seu contrário — o homem era o seu
estilo. Apesar da voz baixa, o que ele dizia era límpido e perfeito,
as palavras precisas, a emoção delicadamente domada. Como a sua
forma literária, o estilo que ele alcançou.
Na primeira pausa que fez, eu disse que tinha relido há pou-
co o seu admirável Vida ociosa. Rangel esboçou um sorriso sem
graça, a menção do seu romance, sobretudo o adjetivo assim à
queima-roupa, parecia desagradar. Livro antigo e velho como
eu, um escritor e juiz aposentado, disse ele. É literatura que não
se pratica mais hoje em dia. O que está na moda é outra coisa, as
novidades extravagantes que costumam ser passageiras, vindas
pelo dernier bateau.
Não havia na fala de Rangel nenhum ressentimento, dizia
aquilo secamente, como fria constatação. Ele correspondia ao
retrato que eu fizera dele com o risco e as cores dos seus livros.
Os olhos tristes e apagados, as delicadas e sofridas feições de
quem tem um íntimo convívio com a dor, que ele disfarçara com
um meio-sorriso irônico.
Dê-me o livro, disse ele finalmente. Aqui está, doutor, disse
eu. Não me trate de doutor, afinal somos confrades… disse ele.
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Literatura caligráfica
Antonio Candido
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Cronologia
AMAGIS
Juiz Luiz Carlos Rezende e Santos
Presidente
Caio Boschi
Vice-Presidente
Luís Giffoni
Tesoureiro
Realização:
24 6 | 24 7
© Godofredo Rangel
© Antonio Candido
© Autran Dourado
© Carlos Drummond de Andrade
2 v.
ISBN: 978-65-87273-06-8
Inclui artigos sobre o autor de Rogério Faria Tavares; Autran Dourado; Antonio
Candido, Márcio Sampaio e Carlos Drummond de Andrade.
CDD: B869.3
CDU: 82.3(81)