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A PRECEPTORIA

NA ESCOLA

Uma estratégia pedagógica de


sucesso

JOÃO MALHEIRO
Rio de Janeiro - 2016
Índice

Prefácio........................................................................................................3
Introdução....................................................................................................9
1) A preceptoria na escola numa perspectiva histórica..................................16
I - Introdução.............................................................................................17
II – A pedagogia grega.................................................................................21
III – Os novos ventos do modernismo: Rousseau.............................................25
IV – Outros rumos do modernismo: a ética de Kant..........................................29
V – O fim do modernismo: Nietzsche..............................................................35
VI – A necessidade da preceptoria na pós-modernidade....................................41
2) Como realizar na prática a preceptoria na escola......................................52
I – Introdução.............................................................................................53
II – A formação das capacidades socioemocionais............................................56
III – Como realizar a preceptoria: instrumentos de trabalho..............................61
IV - Quem precisa da preceptoria?.................................................................82
3) As qualidades do preceptor. O zelo Educativo. Como formar preceptores.....85
I – Introdução.............................................................................................86
II – As qualidades do preceptor.....................................................................95
III – O Zelo educativo: o motor do preceptor...................................................99
IV – A formação de preceptores...................................................................108
4) Como envolver os pais no acompanhamento escolar...............................115
I -Introdução.............................................................................................116
II – Como os pais podem acompanhar melhor o desenvolvimento escolar..........120
III– As consequências da boa afetividade na Educação....................................125
IV– A Importância dos primeiros anos de vida................................................127
V – O problema do stress tóxico...................................................................131
VI–Algumas soluções práticas......................................................................134
VII – Considerações finais...........................................................................144

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Prefácio

Chega às minhas mãos -melhor dizendo à minha caixa de e-mails- o


amável convite do Prof. João Malheiro para escrever este Prefácio. E junto
com o convite, o formato digital do livro. Deixo de lado a minha natural
repulsa pelos livros digitais -eu gosto de sentir, cheirar, tocar os livros, como
Borges- e debruço-me sobre a tela para ler o conteúdo. Entendo que não
estando publicado, revisar provas datilografadas seria anacrônico, e concedo
que, neste caso, o formato digital ajuda.
Leio a Introdução e me pergunto o porquê do convite para rabiscar um
prefácio. Está tudo lá. O resumo, bem feito e elegante do conteúdo e, muito
importante, a motivação que levou o autor a escrever este livro. Uma
motivação diferente das anteriores. Porque -vai aqui a minha primeira
consideração, a modo de exegese do que encontro escrito- há basicamente
dois tipos de livros, quando se mergulha no infindável horizonte da
educação. O primeiro está representado por obras que expõem o marco
teórico, as hipóteses do autor, os referenciais filosóficos e estratégias
práticas que apoiam sua teoria, e as suas investigações. Parece-me que a
trilogia de que o Prof. Malheiro fala, seus três primeiros livros, situam-se
nesta categoria. Uma vez exposta, a missão de escritor teria acabado.
Mas há um segundo tipo de livros, inesperados, onde o autor se vê
compelido a escrever, porque são fruto de uma experiência vital. É como o
filho que já não se espera e que de repente aparece. A experiência vivida
fecunda a mente do autor, e uma nova obra clama por surgir à vida. Uma
necessidade de quem viveu a experiência e precisa escrevê-la. Sem dúvida
para compartilhá-la com os demais, mas, em primeiro lugar, para entendê-
la melhor. Porque ao falar, nos tornamos claros para os outros, mas
somente quando escrevemos fazemo-nos transparentes para nós mesmos.
Esse é o verdadeiro sentido das memórias que são, em primeiro lugar,
memórias para quem as escreve, embora outros acabarão lendo. Como dizia
Robin Williams naquele filme memorável e impactante para os educadores,

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Gênio Indomável, ‘você pode me falar tudo sobre Michelangelo, mas nunca
sentiu o cheiro da Capela Sistina’. Este livro que você, leitor, tem nas mãos,
carrega o cheiro da Capela Sistina, a experiência vital de quem respira a
educação.
Dois tipos de livros, por tanto. E os exemplos acodem à minha mente e
tenho que espantá-los como moscas que me distraem. Mas nem sempre
consigo. As Memórias que não são livros de História, mas a História vivida,
sofrida, incorporada. De um lado, outra mosca-exemplo, As Investigações
Lógicas de Husserl, sentando as bases da Fenomenologia, e do outro O
Problema de Empatia, fruto maduro da sua discípula e colaboradora, Edith
Stein, que viveu a experiência de ser também enfermeira durante a primeira
guerra mundial.
Mas igual que há dois tipos de livros, ocorre-me pensar enquanto
esboço estas linhas, que há também dois tipos de prefácios. Aqueles que
apresentam um bom resumo do livro e facilitam a leitura, e outros que são
um pulsar, um reflexo visceral dos efeitos que produziu a leitura em quem
se aventura a rabiscar o prefácio, e nele coloca ordem nos próprios
sentimentos. Lá se misturam pensamentos, conclusões, ideias despertadas,
estímulos, dúvidas e até projetos futuros. Visto que a Introdução do livro
funciona como perfeito prefácio do primeiro tipo, estas considerações
situam-se, claramente, na segunda categoria. Uma enxurrada de
pensamentos em voz alta.
Passo os olhos pelos dois primeiros capítulos e entendo que o Prof.
Malheiro emula o filósofo de Konigsberg, que também comenta
explicitamente. A teoria da Preceptoria -a razão pura- é complementada no
segundo capitulo pela dinâmica operacional, a razão prática. Mas é no
terceiro capítulo, quando mergulha no recado principal desta obra: as
condições necessárias para ser preceptor e o que ele batiza como zelo
educativo. É aí quando o cheiro da capela sistina se espalha como aroma
inspirador. A figura é mais do que simples linguagem, pois é sabido que o
olfato é o melhor despertador de lembranças. E as minhas surgem
desordenadamente, pedindo espaço, gritando para fazer ato de presença.

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A educação personalizada, o modelo que o autor postula, tem sua pedra
angular na Preceptoria. É o único modo eficaz de chegar no educando, de
ajuda-lo verdadeiramente, de extrair dele o que de melhor tem para dar. Os
comentários de um amigo que trabalha há muitos anos com qualidade
colocam-se em primeiro plano, após conseguir abrir-se passo aos empurrões
entre outras lembranças. Faz tempo -diz meu amigo- que superamos a
primeira onda da qualidade: a técnica que nos faz progredir. Seguiu-se a
segunda onda da qualidade: os processos, as medidas e as avaliações;
porque não basta incorporar a técnica, é preciso saber utilizá-la de modo
correto. Mas, existe a terceira onda da qualidade: aquela que é capaz de
chegar na pessoa e transformá-la. Algo difícil de medir, que requer uma
paciência análoga à educação na família, onde com o passar do tempo se faz
notar a diferença. Essa terceira onda está toda por construir.
Este livro sobre a Preceptoria, quer se adentrar nessa terceira onda da
qualidade. Ação que se apoia integralmente na pessoa. Na pessoa do
educando, e na pessoa do Professor-Preceptor. E aí vem o grande desafio
que, habitualmente, não se quer aceitar porque também não se sabe como
lidar com ele. Criam-se cursos de treinamento -outra das minhas repulsas
viscerais- e estabelecem-se sistemas de avaliação e medida. Uma
sofisticação da segunda onda da qualidade que, naturalmente, nem chega
perto da terceira, do cuidado e formação das pessoas. Treinamento?
Treinamos animais, mas as pessoas se educam. Onde está a diferença?
Muito simples: no treinamento o gestor sabe onde quer chegar com os
elementos treinados, tem uma meta clara que é também mensurável. Mas
na educação, o resultado surpreende, porque o educando deve chegar muito
mais longe, trilhar novos caminhos, ir além das metas mensuráveis, enfim,
crescer e amadurecer como ser humano. Quando se educa, o que se faz é
proporcionar uma alavanca para a liberdade, a criatividade, o
empreendedorismo no próprio aprendizado que, se bem feito, supera nossas
expectativas, e faz com que o professor também aprenda.
Bastaria ler este livro para se tornar um bom Preceptor? Evidentemente
não. Seria preciso usá-lo como roteiro de mudança e de melhora pessoal,

5
para que aqueles que se dedicam à educação incorporem o difícil
compromisso de tornar-se preceptores. Um dos meus livros favoritos 1
resume esta ideia de modo contundente: “Quase todos os professores se
perguntam o que têm de ensinar (conteúdos); alguns pensam em como
fazê-lo (técnicas) e a quem devem ensinar (público); mas poucos alcançam
a questão chave: quem está ensinando? Porque, afinal, ensinamos o que
somos”. Educar vai muito além dos conteúdos, ou das técnicas, depende
radicalmente de quem está ensinando, e de como cuidamos dele – quer
dizer, de nós mesmos professores. “A técnica é o que se utiliza até que
aparece o verdadeiro professor: um simples esquentamento”. Ensinamos o
que somos, e o aluno o sabe. Bem aponta a conhecido ditado: O que você
faz grita tão forte que não consigo escutar o que você me diz!
Compromisso decidido, cuidado individual. As palavras do educador
francês2, são um grito a modo de palavra de ordem para os que se
aventuram a trilhar este caminho: “Basta um professor – apenas um! - para
nos salvar de nós mesmos, e fazer-nos esquecer os outros professores que
atrapalham …. Os professores que me salvaram –e que fizeram de mim um
professor- não estavam formados para fazê-lo. Não se preocuparam das
origens da minha incapacidade, nem perderam tempo buscando as causas.
Sentiram urgência, foram atrás de mim, e me tiraram do fundo do poço.
Pescaram-me em tempo. ” Grito que encontra um belo complemento na
afirmação serena e de outro educador 3, também francês -sempre os
franceses, com a sua clareza e objetividade na escrita! – que situa a
questão: “Há dois tipos de mestres: aqueles que te fazem pensar que és
inteligente, apostam em você, e te convertem de fato em alguém capaz e
esforçado; e os que te cortam as asas”.
Querer ser esse professor que faz a diferença, não é tarefa asséptica,
nem simplesmente técnica. Complica a própria vida, exige melhora pessoal,
é permanente desafio e compromisso de melhora. Porque o exemplo é o
verdadeiro diferencial. O professor deve ser, antes de mais nada, um
1
Parker J. Palmer: The Courage to Teach. Jossey-Bass, S. Francisco, 1998
2
Daniel Pennac: Diário de Escola. Ed Rocco, São Paulo, 2008
3
Michel Barlow: “Diario de un profesor novato”. Ed. Sígueme. Salamanca. 1984.

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exemplo a ser seguido, inspirar emulação nos alunos. Diz Barlow: “Os
melhores professores são os que sabem confessar às vezes: ‘não sei’, e não
os que driblam o problema, saem pela tangente diante da pergunta. A alma
da cultura não está feita de certezas, mas de humildade; não consiste na
frase feita de impacto, mas na capacidade paciente de escutar, de se
maravilhar. Essa cultura é preciso vive-la diariamente. Quem se empenha
em cuidar da própria fachada, desfigura a cultura na alma dos seus alunos.
A primeira qualidade de um educador é compreender que não pode
compreender tudo (…) A educação é um encontro de mão dupla. Não quero
saber nada, e posso encontrá-lo tudo ao ritmo dos meus alunos. Não quero
impor minhas verdades, quero encontrá-las de novo rejuvenescidas,
ressuscitadas… Esta é a alegria de ensinar”.
As ideias e lembranças continuam pipocando, em permanente borbulhar
na cabeça, e os dedos tentam acompanhar esse ritmo enquanto digito e
procuro colocar uma ordem mínima, nos pensamentos. Mas é preciso
finalizar, para deixar o leitor adentrar-se no livro e ter suas próprias
vivências de leitura. Ocorre-me que uma leitura individual ajudará, sem
dúvida; mas o grande poder de fogo desta obra é servir como roteiro para
discussões em grupo -oficinas, workshop, reuniões de trabalho e reflexão-
entre os próprios professores. Um cenário de conhecimento construído, de
compartilhar experiências, dúvidas, fracassos e conquistas. Aquilo que os
anglofonos denominam faculty development, formação de formadores.
Esse é o modo de fabricar preceptores. Fabricar, sim, porque formar um
preceptor é tarefa que tem tanto de artesanal como a própria educação e o
exercício eficaz da preceptoria. Uma atividade -formar preceptores e exercer
a preceptoria- que não é um apêndice, algo a ser feito nas horas livres (que
nunca existem), mas núcleo essencial de um projeto educativo que requer
tempo contemplado no horário escolar e, naturalmente, a correspondente
remuneração. Um detalhe que deve ser advertido e que serve como
indicador do compromisso da instituição. Na minha área de educação médica
sempre digo que enquanto os gestores considerem a humanização da
medicina como tarefa de voluntariado e continuem focando o orçamento no

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investimento técnico, nunca sairemos da segunda onda da qualidade.
Somente se valoriza o que custa tempo e dinheiro.
É nesse contexto de projeto conjunto para construir e melhorar a
educação, onde se situa o tentador panorama que o professor novato de
Barlow descreve a modo de convite sedutor: “O bom aluno é um viajante
sem bagagem. Não é preciso equipá-lo, mas afiá-lo. Olhos para ver, ouvidos
para ouvir, uma cabeça bem-feita, disponível. O cérebro com recheio é um
ideal de cozinheira, não de professor (…) A cultura não consiste em inchar-
se apressadamente com conhecimentos que se destilam depois, em doses
homeopáticas. A cultura é um encontro. Todo homem que se cruza no meu
caminho modifica meu olhar sobre o mundo: me cultiva no sentido próprio
do termo. ”
O preceptor que se cruza no caminho do aluno, o cultiva, modifica a
vida dele, e a própria. E atinge a meta -de novo o professor de Barlow- que
é uma boa representação da atmosfera que respiramos quando lemos a
presente obra: “Ser feliz é isto: não conhecer as fronteiras entre o trabalho
e a alegria”. Um desafio tremendo, imenso, apaixonante.

Pablo González Blasco, MD, PhD


Diretor Científico
SOBRAMFA- Educação Médica e Humanismo
www.sobramfa.com.br

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Introdução

Quando terminei minha trilogia em 2014, com o livro Escola com corpo
e Alma, um manual de ética para pais, professores e alunos 4, confesso que
acreditei que minha missão de escritor tinha terminado. Minhas atividades
educacionais, a cada ano que passa, parecem que me absorvem cada dia
mais e conseguir um tempo de tranquilidade para escrever sobre educação
parecia algo que se tornaria impossível. Mas a vida também nos traz sempre
muitas surpresas e,às vezes, por mais que digamos para nós mesmos que
não aceitaremos novos compromissos, algumas oportunidades nos obrigam
a ultrapassar os nossos próprios limites, movidos por um ideal mais elevado.
Foi isso que aconteceu quando um colégio particular do Rio de Janeiro
me convidou para participar de um Projeto de implantação da preceptoria na
escola, em 2014. Tinham me escutado num curso de formação para
professores dessa escola sobre a importância dessa alternativa educacional,
perceberam seu valor pedagógico e decidiram implantá-la com rapidez no
ano seguinte.
O primeiro passo foi organizar um curso de três meses de duração,
para aproximadamente trinta candidatos a preceptor, quase todos
professores de português para o Fundamental II. Em seguida, selecionaram
dez futuros preceptores que iriam colocar a teoria em prática com os alunos.
Inicialmente, como costuma acontecer com qualquer novidade educativa, a
finalidade da preceptoria demorou a ser entendida e valorizada pelos
interessados, pelos próprios pais e professores, e exigiu um pouco de
paciência e perseverança por parte dos preceptores. Passou o tempo, e aos
poucos os alunos foram vivenciando os benefícios dessa ajuda personalizada
e comunicando-os aos colegas. Cada mês que passava, os agendamentos
iam aumentando e, no final do primeiro semestre, o ambiente escolar tinha
4
Os dois livros anteriores foram A alma da escola do século XXI (2010) e Fortalecer a
alma da escola (2012), todos publicados pela Editora CRV Ltda (Curitiba).
9
sido contagiado pelos seus frutos. Nos meses subsequentes, a disputa por
um horário era grande. As reclamações, por parte de alguns alunos que não
conseguiam horários para ser atendidos, aumentavam: queriam mais
preceptores. Podíamos dizer que ficou provado, empiricamente, que a
preceptoria era realmente uma necessidade na escola.
Diante desse fato, indagamos: essa necessidade foi criada pela escola
ou já estava latente na maioria dos alunos? Foi forçada ou somente
despertada? Estas foram algumas das primeiras questões que coloquei para
reflexão no Grupo de pesquisa entre os preceptores. Desde o começo,
percebi que essas discussões, individualmente ou em pequenos grupos, ao
longo desse primeiro ano, eram fundamentais, pois percebíamo-nos abrindo
um novo caminho educacional, talvez fechado faz muito tempo.
Precisávamos aproveitar essa imersão educacional para pesquisar como tirar
mais proveito dessa modalidade pedagógica e descobrir possíveis causas
desse indiferentismo ou averiguar, pelo contrário, como incentivá-la mais.
Voltando à questão: será que não seria de se esperar que um aluno
do 6º ano do Ensino Fundamental II sentisse a necessidade de buscar
orientação para melhorar suas técnicas de estudo, administrar com mais
eficiência o tempo livre em casa depois da escola, aprender a ganhar mais
força de vontade ou capacidade de amizade, buscar a própria identidade e
um sentido mais profundo na vida?
Nessas idades os jovens costumam atingir níveis mais elevados de
abstração e de socialização, segundo a teoria piagetiana, e por isso seria
normal que levantassem essas questões. Mas a realidade tem demonstrado
que a maioria dos alunos está demorando demais para levantá-las. Percebe-
se que estão muitos imaturos para a idade. Lançamo-nos então a investigar
o porquê desse fenômeno. Por que uma criança hoje demora muito para
buscar essas respostas essenciais? Por que só algumas conseguem chegar a
elas? Por que estão ficando cada vez mais atrasadas na idade psicológica
com relação à sua idade cronológica? Será que são questões somente
culturais, familiares, econômicas, sociológicas? O primeiro capítulo deste
livro foi se debruçar exatamente neste assunto. Depois de longo estudo,

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concluiu-se que além desses aspectos acima, a principal raiz do problema
era muito mais filosófica. Hoje é possível perceber com mais nitidez que a
ciência da educação teve um profundo terremoto e que suas estruturas
antropológicas básicas foram abaladas. Essa pesquisa detectou que o
primeiro abalo sísmico iniciou com o modernismo e depois vieram outros que
atingiram a educação até aos nossos dias. Procurou-se descrever esse
estrago educacional durante o capítulo inicial com algumas pinceladas sobre
alguns pensadores que marcaram a história da filosofia, mas mais
especificamente, a história da educação. Filósofos que aos poucos foram
influenciando negativamente o funcionamento da natureza humana. As
faculdades de educação, colégios, responsáveis pela educação, depois de
contagiados por essas correntes do pensamento, foram sendo desviados dos
verdadeiros fins da educação e hoje em dia se respira mais ideologias de
cunho materialista, do que princípios e verdades descobertas e guardadas
durante séculos. O “desmonte” do ser humano que hoje se vivencia é um
processo que dura já faz cinco séculos e continua se agravando.
Na minha perspectiva, o atraso que observamos na juventude do
século XXI, e que nos referimos anteriormente, reflete justamente esse
processo educacional defeituoso que a história da educação vem trazendo
consigo. Todos os desajustes educacionais que vemos em tantas famílias e
escolas, todos os exageros na superproteção dos filhos nas últimas
gerações, toda a ânsia desenfreada de consumo, todas as doenças
psicológicas que se espalham progressivamente na sociedade, são
sinalizadores evidentes que alguma coisa está errada e que precisa ser
consertada. Por outro lado, a experiência da preceptoria e a observação dos
seus ótimos resultados, de alguma maneira, talvez pelo contraste positivo
produzido, parece que deu uma pista por onde começar. Parece que o
caminho está em voltar a “remontar” a natureza humana, formando-anas
capacidades socioemocionais, também chamadas de virtudes éticas ou
morais. Quando elas são interiorizadas, a percepção da realidade muda e os
valores da vida reaparecem. Foi isso que se descobriu nas preceptorias
dessa escola.

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Foi com este intuito que aprofundei, no segundo capítulo deste livro,
como a preceptoria poderia contribuir para a formação dessas capacidades.
Efetivamente, foi observado que um aluno quando aprende na prática a se
organizar, a estudar de forma inteligente, a hierarquizar seus deveres, ele
melhora muito do ponto vista pedagógico. Mas, essa orientação não basta
hoje em dia para se tornar uma pessoa boa. Ele precisa de muito mais. Ele
pode melhorar academicamente, mas continuar egoísta, preguiçoso, tímido,
agressivo, orgulhoso, imaturo. Por isso, é preciso formá-lo também na razão
prática que orienta o jovem a buscar esses resultados escolares positivos
por motivos mais nobres: ser útil no futuro com os seus talentos e assim se
encontrar como pessoa. A formação das capacidades socioemocionais são as
principais responsáveis por essas mudanças profundas da maturidade
humana. Como elas podem ser ensinadas juntamente com os conteúdos
escolares, demonstrando a íntima relação entre a razão teórica e a razão
prática, foi um dos objetivos principais deste segundo capítulo. Procurou-se
mostrar ainda como a formação das virtudes éticas também favorecem a
superação de muitas apatias ou aversões diante de determinadas disciplinas
escolares ou ainda indisposições com relação a determinados professores ou
colegas. Elas são muitas vezes as responsáveis por gerar a inteligência
emocional necessária para superar todos esses bloqueios afetivos. Conclui-
se, no final desse capítulo, que todos os alunos precisam da preceptoria. Se
souberem utilizar alguns instrumentos ou estratégias apresentadas no
capítulo, com constância e sacrifício, os resultados serão surpreendentes.
Quando acabei este segundo capítulo, posso confessar que tive um
insight profundo e gozoso. Uma autêntica descoberta que não tinha
vislumbrado antes. De alguma maneira, a trilogia das três primeiras obras
escritas, aludida no início, tinha trazido ao mundo da educação duas
contribuições importante. Primeiro, uma advertência clara: uma escola que
não valorizar e ensinar as virtudes éticas na escola, com o tempo, poderá
perder, em parte, sua identidade, assim como os seus professores, matando
a “alma da escola”, realidade que já se comprova em tantos lugares; e ainda
uma segunda preocupação: como ensinar de forma concreta as virtudes no

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ambiente escolar, especificando qual a melhor estratégia para cada idade e
segmento. Quando terminei a trilogia nasceu uma preocupação: será que
essa teoria não poderia ficar meio enfraquecida ou vista como mais uma
teoria a ser ensinada na escola, sem conexão com a realidade dos alunos?
De alguma maneira, percebi que a implantação de um Projeto de virtudes,
com seus conteúdos e orientações pedagógicas em sala de aula, com o
tempo, poderia se tornar enfadonho e desaparecer. Percebeu-se, então, que
um Projeto de virtudes deveria estar intrinsecamente unido a um Projeto de
preceptoria. Um sem o outro, não funcionariam com facilidade. Diante dessa
constatação, tomei consciência que, efetivamente, este quarto livro deveria
fazer parte de uma tetralogia obrigatória e não como um mero anexo. De
fato, minha missão de escrever não tinha terminado e precisava deste
complemento necessário. Depois que o terminei, minha realização aumentou
consideravelmente ao descobrir esta realidade.

Mas comentemos, antes de fechar esta apresentação, o terceiro


capítulo, que tratou sobre uma questão relevante: todos os professores
poderão ser preceptores? A resposta foi não. Conforme podemos comprovar
na seleção de preceptores, não basta para motivar um aluno a mudar um
mero aconselhamento frio e teórico. Segundo um princípio de comunicação,
você comunica aquilo que você é, não o que você fala. Como afirmava Jutta
Burgraff, “existe uma linguagem não verbal que substitui ou acompanha
nossas palavras. É o clima que criamos ao nosso redor, ordinariamente por
meio de coisas muito pequenas, como, por exemplo, um sorriso cordial ou
um olhar de apreço. Mas o carinho tem que ser real. Não basta sorrir e ter
uma aparência agradável. Se queremos tocar o coração dos outros, temos
que mudar primeiro nosso próprio coração. As pessoas percebem quando
não se é querido, por muito que sorriam”. 5 Concordando com a filósofa
alemã, ao longo do capítulo fomos descrevendo como um preceptor pode
alcançar essa capacidade. O segredo está nesse espírito de luta por ser, em

5
https://www.aceprensa.com/articles/jutta-burggraf-quien-quiera-influir-en-el-mundo-
actual-tiene-que-amarlo/ - Aceprensa, 7 de junho de 2010.

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primeiro lugar, uma pessoa melhor. Esforçar-se por adquirir um coração
generoso, por mais que se demore por alcançá-lo. Quando existe esse
esforço interior, adquire-se além dessa autoridade moral para orientar, outra
capacidade imprescindível de um bom preceptor: o zelo educativo.

O zelo educativo está relacionado à verdade. À pesquisa honesta sobre


o ser humano. Quanto mais um educador se debruça sobre fontes seguras
de antropologia, filosofia, psicologia, mais vai descobrindo o que é preciso
viver na sua vida pessoal e depois ensinar na escola. E quando descobre que
viveu na mentira durante muito tempo, porque ninguém lhe mostrou
corretamente a verdade, nasce um sentimento de compensação para
ensinar tudo aquilo que não se ensina já faz décadas. Aparece também um
movimento de santa indignação diante da perversidade de alguns
educadores que se chamam sábios e ensinam teorias contrárias à natureza.
Um professor que estuda e aprofunda essas e outras dimensões da
ciência educativa e as coloca em prática, primeiro na sua própria vida, e
depois no seu alunado, aos poucos vai ganhando uma nova sabedoria
educacional que o impulsionará a entrar em sala de aula com outro olhar e
outra motivação profissional. Olhará para cada aluno com sincero zelo
educativo. Recuperará a sua verdadeira identidade de docente.

Quando o professor se habitua a perscrutar o rosto de cada aluno em


sala de aula brotará outra manifestação do zelo educativo: o amor por cada
um. Um amor penetrante, que se distancia e muito do mero abraço
sentimental ou afago carinhoso, mas que se aproxima e muito da verdadeira
amizade e esperança em todos. E quando o aluno detecta esse coração
sincero, sentem uma emoção imensa ao vivenciarem um amor que, em
muitos casos, não o experimentaram nem na própria família. E se sentem
motivados a abrir-se, a serem sinceros, e a pedir ajuda para mudar e ser
melhor.

Quando estava fechando o livro, comentei com um dos preceptores, que


tinha vivido essa experiência de acompanhar vários alunos desse colégio
particular, se ele não gostaria de me relatar alguma experiência relevante

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que, na sua visão, pudesse enriquecer as minhas ideias. Surpreendeu-me a
rapidez de sua resposta: “tenho uma que é essencial. Ensinar os pais a
acompanhar os estudos e os avanços de caráter do filho”. Diante de tal
reação apaixonada, tive a ideia de convidá-lo a colaborar com este livro,
escrevendo ele mesmo um artigo. E assim nasceu o quarto e último artigo
desta obra. Por isso, gostaria de aproveitar este momento para agradecer a
Ricardo Almeida por sua valiosa contribuição.

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1) A preceptoria na escola numa
perspectiva histórica

RESUMO: A preceptoria na escola é definida pelo autor como um


acompanhamento extraclasse de jovens (alunos), realizada por profissionais
qualificados, que deve ocorrer durante um certo período de tempo, com
objetivos específicos de alcançar: a) resultados positivos na aprendizagem;
b) melhoras nas capacidades socioemocionais; c) avanços na descoberta da
própria identidade; d) aumentos motivacionais. O autor defende que estas
necessidades apresentadas pelos alunos deveriam ser mais habituais, mas
não ocorrem pelo acúmulo de algumas deformações educacionais oriundas
de várias filosofias nascidas do modernismo e que hoje influenciam de forma
mais profunda e evidente. Sugere o ensino-aprendizagem da ética das
virtudes como forma de recuperar o Projeto Ser humano na educação e
resgatar nos docentes o amor à profissão e o verdadeiro zelo educativo.

Palavras-Chave: Preceptoria – aprendizagem –capacidades


socioemocionais – identidade - motivação

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I - Introdução

Tentar fazer um rastreamento histórico da preceptoria ao longo dos


séculos é sem dúvida um grande desafio. Primeiro, pela ausência de uma
literatura específica que aborde esta modalidade educativa, pelo menos no
seu sentido mais atual que queremos trazer para esta reflexão. Segundo,
porque quando defino a preceptoria na escola como um acompanhamento
extraclasse de jovens (alunos), realizada por profissionais qualificados, que
deve ocorrer durante certo período de tempo, com objetivos específicos de
alcançar: a) resultados positivos na aprendizagem; b) melhoras nas
capacidades socioemocionais; c) avanços na descoberta da própria
identidade; d) aumentos motivacionais; iremos constatar que essas
atividades educativas são necessidades que estão adormecidas faz muito
tempo na maioria dos alunos, que possivelmente antigamente eram reais e
vitais, mas que hoje parece que adormeceram. De alguma maneira, essas
necessidades sempre existiram, mas hoje sobrevivem de forma latente.
Tudo indica que hoje os alunos estão tendo dificuldade em acordá-las, em
identificá-las e em satisfazê-las, pelo menos sozinhos, ou então, somente as
satisfazem mais tarde e de forma incompleta. Ao longo deste primeiro
capítulo, nosso objetivo é examinar justamente o porquê desse fenômeno.
Consequentemente, tudo o que porventura se possa encontrar de
experiências escritas nesse campo é muito pobre ou difícil.
Tentaremos examinar, como ao longo da história da educação a figura
do preceptor sempre existiu em formas semelhantes, suprindo as lacunas
que os educandos sempre manifestaram em cada período histórico. De
alguma maneira, vamos tentar evidenciar que a figura do pedagogo, no seu
sentido mais amplo, desde os seus primórdios na Grécia antiga até aos fins
da idade média, já era muito próxima de um preceptor atual, e as suas
funções foram variando conforme a visão que se foi tendo da educação e da

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escola. Entretanto, somos da opinião que a revolução ocorrida no campo da
filosofia e, portanto, da educação, a partir do século XV/XVI, no final da
idade média, com as imensas transformações sociais, econômicas, políticas,
filosóficas e religiosas, foi causando aos poucos um autêntico “desmonte” da
pessoa humana. Os posteriores ventos rousseaunianos, somados aos
kantianos e nietzschianos foram provocando uma tragédia paulatina na
ciência da educação, causando estragos que somente nos inícios deste
século se percebem de forma mais aguda. Intuímos que as dificuldades
educacionais dos jovens de hoje, que são em parte diferentes dos de
antigamente, são o resultado desses estragos. O mais trágico deles foi a
desintegração das potências humanas da inteligência, vontade e afetividade
dentro da pessoa humana. A consequência mais imediata foi o
enfraquecimento do correto funcionamento da natureza humana e a sua
decorrente necessidade da preceptoria. De certa forma, ela foi
desaparecendo a partir da idade moderna, devido a uma concepção falsa do
que é o ser humano, como se desenvolve e qual a função real do educador e
da boa autoridade educativa, sem a qual não existe educação. Por isso,
parece-nos apropriado, para entender as diversas dificuldades de educar
hoje e a necessidade de relançar a preceptoria na escola, darmos algumas
pinceladas breves em alguns momentos históricos mais marcantes que
demonstrem de alguma maneira esse “desmonte” do Projeto Ser Humano.
Muitas pessoas se perguntam qual a diferença entre preceptoria,
mentoria, tutoria. Se realizarmos uma busca em diversas fontes, iremos
perceber que os significados se aproximam e muitas vezes se identificam.
Na própria legislação brasileira, não existem diferenças sensíveis.
Voltemo-nos, inicialmente, para a utilização do termo tutor, para
entender seu significado. Segundo Botti e Rego6, “tutor designava o
professor que se preocupava em ensinar o aluno a “aprender a aprender”,
principalmente na chamada Aprendizagem Baseada em Problemas (PBL ou
ABP)”. Nesse cenário, o tutor é considerado um guia, um facilitador que

6
BOTTI, S et al. Preceptor, Supervisor, Tutor e Mentor: Quais são seus papéis. Rio de
Janeiro, Revista Brasileira de Educação Médica, 2008; p. 367.
18
auxilia no processo de aprendizagem centrado no aluno. 7 Tutor (do latim
tutor, oris) é um termo do direito romano, atribuído àquele que se
encarregava de cuidar de um incapaz (como um órfão, por exemplo). Em
português, a palavra já era usada no século XIII e tinha o significado de
guarda, protetor, defensor, curador; significa também aquele que mantém
outras pessoas sob sua vista, que olha, encara, examina, observa e
considera; é o que tem a função de amparar, proteger e defender, é o
guardião, ou aquele que dirige e governa. Para os ingleses, pode significar
um professor para pequenos grupos, que presta atenção especial nesses
alunos; e pode significar, ainda, um professor para adultos ou com papel
especial na escola.8
Segundo o Dicionário de Português com Acordo ortográfico, mentoria
significa um sistema em que uma pessoa mais velha e experiente (mentor)
orienta e encaminha outra mais jovem e com menos experiência.
Normalmente, esta orientação se dá em pessoas que já chegaram na idade
adulta, mas ainda se encontram despreparadas para os principais desafios
da vida e da profissão. Mentor (do latim mentor, oris, do antropônimo grego
Mentor) seria hoje aquele que serve como experiente conselheiro, como guia
e sábio. É aquele que estimula, inspira, cria ou orienta ideias, ações,
projetos e realizações. A palavra é derivada (por metonímia) de Mentor,
personagem da Odisseia, poema escrito por Homero no século VIII antes de
Cristo. Esse poema conta a história do retorno do rei Ulisses (ou Odisseu) a
sua terra, Ítaca, após a vitória na guerra de Tróia. Mentor é amigo e
conselheiro do rei. Quando partiu para a guerra, Ulisses confiou sua mulher
Penélope e seu filho Telêmaco a Mentor. Passaram-se 20 anos; a família de
Ulisses está humilhada e cerceada pelos pretendentes ao trono de Ítaca. O
poema mostra o desenvolvimento de Telêmaco e a importância de Mentor
para o seu desenvolvimento.9

7
DOLMANS, LUIJK, WOLFHAGEN , SCHERPBIER. The relationshipbetween professional
behaviour grades and tutor performance ratings in problem-basedlearning. MedEduc
2006; 40: 180-186.
8
Oxford AdvancedLearner’sDicitionaryofCurrentEnglish. Oxford; Oxford University
Press; 2000
9
HOMERO. A Odisséia (em forma de narrativa). Rio de Janeiro: Ediouro; 1999.
[Tradução de Fernando C. de Araújo Gomes]
19
Oliveira10 define o exercício da mentoria como “um dos aspectos mais
importante do desenvolvimento humano, pois permite acelerar a maturidade
do indivíduo através de estímulos e reflexões direcionadas, proporcionando,
principalmente aos jovens, a identificação e ampliação dos talentos
pessoais”. Já o consultor Vicente Picarelli descreve o trabalho do Mentor
como “assessorar o profissional a buscar incessantemente o equilíbrio
possível e sintonizar seus pensamentos e ações com as novas
responsabilidades, os grandes desafios, a escassez de recursos, a melhoria
dos resultados, os estilos de liderança em crise”.
O conceito de preceptor, como dizíamos, se assemelha ao de tutor. A
palavra preceptor vem do latim praecipio, “mandar com império aos que lhe
são inferiores”. Era aplicada aos mestres das ordens militares, mas, desde o
século XVI (já aparece com este sentido em 1540) é usada para designar
aquele que dá preceitos ou instruções, educador, mentor, instrutor. Mais
tarde, passou a identificar alguém que educa uma criança ou um jovem,
geralmente na casa do educando.11 Tem um cunho mais personalizado.
Como vemos, as diferenças são mínimas e não iremos nos preocupar
mais em distingui-las neste livro. Adotaremos a palavra preceptoria porque
nos parece mais de acordo com a educação personalizada, que, segundo a
minha perspectiva, é a forma mais correta e moderna de enxergar a
educação.
Procuremos então, em rápidas pinceladas, ir passando por alguns
momentos mais marcantes da história da educação e tentaremos relacionar
as diferentes perspectivas com o “desmonte” do ser humano e, no final, o
porquê da definição que propusemos no início da introdução para o
preceptor do século XXI.

10
OLIVEIRA, S. Mentoria. São Paulo: Integrare Editora, 2015.
11
HOUAISS, V. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva;
2001
20
II – A pedagogia grega

A palavra Pedagogia tem origem na Grécia, paidós (criança) e agodé


(condução). A palavra grega Paidagogos era formada pela palavra paidós
(criança) e agogos (condutor). Portanto, pedagogo significava o condutor de
crianças, aquele que ajudava a conduzir o ensino. Este era o trabalho de um
escravo culto, que era encarregado também de dar formação (Paideia)12
intelectual, moral e cultural. Assim sendo, a pedagogia estava ligada ao ato
de condução do saber e da prática da virtude nos jovens.
O sentido etimológico da palavra educar vem do
latim educare, educere, que significa literalmente “conduzir para fora” ou
“direcionar para fora”. O termo latino educare é composto pela união do
prefixo ex, que significa “fora”, e ducere, que quer dizer “conduzir” ou
“levar”. O significado do termo direcionar para fora era empregado no
sentido de preparar as pessoas para o mundo e viver em sociedade, ou seja,
conduzi-las para fora de si mesmas, mostrando as diferenças que existem
no mundo.
A Grécia clássica pode ser considerada, portanto, o berço da
pedagogia, pois é nela que teve o começo das primeiras ideias acerca da
atuação pedagógica. A paideia buscava fundamentalmente formar cidadãos,
isto é, homens aptos para governar a polis, a vida da cidade. Para conseguir
essa aptidão, já o descrevia Platão na República, o primeiro passo a dar era
aprenderem a governar-se a si mesmo. A sociedade é sempre a expressão
comunitária do indivíduo. Política e ética guardam entre si uma relação de
analogia.
O conceito de paideia nos conduz a um primeiro questionamento: é
possível educar sem um projeto educativo? Parece que não. Na ação prática,
o fim é o princípio da ação. Aquilo que almejo construir é o que orientará e
dará motivação para levar à prática, custe o que custar, os seus processos

12
Cfr. JAEGER, W. Paideia, Os ideais da formação clássica. São Paulo: Ed. Martim
Fontes, 1973.
21
necessários. O sentido teleológico sempre terá que estar presente em toda a
ação educativa. O filósofo Sucupira definia educação como “as atividades
intencionalmente exercidas sobre o desenvolvimento de uma personalidade
com o objetivo de promover e ativar processos de aprendizagem que
conduzem a disposições, atitudes, capacidades, e formas de
comportamento, consideradas úteis e valiosas para a sociedade”. 13 Por isso,
a concepção de educação como processo, no qual estão envolvidos educador
e educando, inseridos em determinado contexto social, conduz à conclusão
de que o conceito de educação é inevitavelmente teleológico, valorativo e
normativo, pressupondo alguma concepção ideal de ser humano. A
pretensão de uma educação neutra, muitas vezes apregoada a partir do
Iluminismo, somente demonstrava uma concepção falsa da educação, com
certo viés ideológico, de duvidosas intenções.
Como dizíamos, os gregos com a paideia buscavam formar cidadãos
capazes de governar a polis. Que tipo de cidadão era esse? Se tratava de
um homem com um amplo elenco de habilidades e procedimentos, como a
álgebra, geometria, poesia, ginástica, filosofia e retórica. Mas não bastava
dominar conteúdos ou destrezas. A sofística grega buscava estimulá-lo à
descoberta de tudo aquilo que fosse valorativo. Buscava orientá-lo, no
fundo, a que amadurecesse sua liberdade, a fim de ir escolhendo cada vez
mais acertadamente. A aspiração educativa era, então, que aprendessem a
dominar suas paixões e a potencializar sua inteligência. Os sofistas surgem
exatamente nesse momento de passagem da tirania e da oligarquia para a
democracia. São eles que procederão a uma reflexão mais propriamente
sociológica da vida relacional dos homens, centrando suas atenções nos
âmbitos da moral e da política. A importância da sua função nesse contexto,
e a sua grande influência, se refletem na fortíssima oposição sofrida depois
por parte de Sócrates, Platão e Aristóteles. Aos sofistas lhes coube elaborar
teoricamente e legitimar o ideal democrático da nova classe em ascensão: a
dos comerciantes enriquecidos, pois esses pensadores eram os mestres da
retórica, a famosa técnica de convencimento do interlocutor, e também da

13
SUCUPIRA, N. Ética e Educação.Rio de Janeiro: Fundação Cesgranrio, 1996.
22
oratória: a arte de falar em público. Eles buscavam formar esses homens na
areté, termo que significava força, capacidade, vitalidade, virtude. Dele veio
depois a palavra aristocracia.
O bom aluno para os gregos não se identificava, portanto, com o
dotado de qualidades intelectuais que acumulava vastos conhecimentos,
mas aquele que otimizava suas capacidades e tirava o máximo proveito.
Quem conseguia essa excelência humana, recebia o nome de megalopsikos,
isto é, magnânimo.14 Aristóteles15 caracterizava ao homem de ânimo grande
como alguém dedicado a tarefas importantes e capaz de funcionar por si
mesmo, com certa independência. Essas eram as qualidades do líder. Ser
líder significava ser virtuoso, excelente, aquele que vive a vida de forma
mais humana, colocando todas as suas potências – inteligência, vontade e
afetividade – em tudo o que faz, num perfeito equilíbrio e integração. Para
que isso fosse possível, era necessário desde cedo ser educado nas virtudes
da temperança, fortaleza, justiça e prudência.
A filosofia grega acreditava então que quando se educa uma pessoa
nas virtudes desde a educação infantil, por meio de pequenos hábitos
diários, inicialmente imperceptíveis, os talentos e potências das pessoas vão
se integrando, tornando-lhes a vida mais fácil e mais prazerosa. Por isso já
alertava Kant que os educadores têm a grave obrigação de “não deixar que
seus pupilos oxidem os próprios talentos”, o que leva a crer que existe sim a
possibilidade de que eles se estraguem. Quando isso não acontece, os
jovens vão percebendo que as virtudes lhes capacitam para exercitar com
mais plenitude a própria liberdade. Vão se sentindo também mais
responsáveis pelo seu futuro. De alguma maneira, vão se dando conta que
continuamente a vida é uma resposta às diversas encruzilhadas diárias nas
quais numa direção está o sucesso e na outra o fracasso. Que em parte, o
sucesso da escolha dependerá da capacidade relacional que ele tenha
desenvolvido. Quanto mais sentir que ele é um ser relacional, que sua
sobrevivência, realização e seu sentido para a vida dependerá desse grau de
14
Cfr. ARANGUREN, J. Resistir en el bien, Razones de la virtud de la fortaleza em São
Tomás de Aquino, Pamplona: Eunsa, 2000.
15
ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Trad. Mário da Gama Kury. 4 ed.. Brasília:
Editora da UNB, 2001
23
dependência com os outros, mais buscará tudo aquilo que lhe capacite para
isso, como são as virtudes.
Um projeto humano de formação deverá ser dirigido à convivência e à
vida em sociedade. O trabalho educativo em qualquer instituição de ensino
deverá promover a doação, a generosidade. Um dos seus fins primordiais
deverá ser formar para que os vínculos que existam numa comunidade não
estejam fundamentados no medo ou na ameaça externa ou interna, mas sim
no íntimo convencimento de que a reação solidária deverá ser sempre a
mais enriquecedora. Se uma escola forma alunos isolados, encerrados na
própria bolha de um “eu” insaciável de prazeres materiais, egoístas e com
desejos de triunfar a qualquer preço, simplesmente é um projeto fracassado.
Nessa direção, foi, então, o trabalho pedagógico de tantos educadores
durante grande parte da história, transpassando a cultura romana, a idade
média até à modernidade, na qual novos ventos educativos apareceram.

24
III – Os novos ventos do
modernismo: Rousseau

Entre o século XV e XVI se sucedem uma série de fatos históricos que


indicam que um mundo se está esgotando - o medieval - e outro está
nascendo - o moderno -. O momento principal é a queda de Constantinopla,
em poder dos turcos a partir de 1453, colocando fim a uma continuidade
histórica milenária: o império romano. Dito acontecimento trouxe
consequências importantes que incidirão na nova configuração do mundo.
Numerosos filósofos, literatos, filólogos e teólogos bizantinos abandonarão
sua pátria e se transladarão à Itália, particularmente a Florença,
fortalecendo assim um movimento de regresso às fontes clássicas da
cultura, que se denominará Renascimento ou Humanismo. Com o
fechamento comercial para o Oriente, proibida pelos novos proprietários
turcos, o ocidente se obriga a pesquisar novos avanços técnicos,
principalmente no ramo da navegação. Com o avanço científico nessas
áreas, rapidamente a expansão marítima leva o homem à China, Índia e
finalmente à América, trazendo dessa parte do planeta novos pensamentos
que seriam o germe dos novos ares educativos. Em paralelo, outro
movimento marcante desses anos é realizado por um frade agostiniano:
Lutero inicia suas reivindicações inicialmente antiromanas e depois
religiosas.
Renascimento, descoberta da América e a reforma protestante
puseram a circular novas ideias que foram rapidamente espalhadas mais
ainda com um outro avanço tecnológico de peso: a descoberta da imprensa,
por Guttemberg.
Entre todas estas ideias, destacaríamos algumas que iriam
revolucionar a educação: a secularização nos seus dois principais aspectos:
a afirmação da autonomia absoluta do homem e a desclericalização (o
25
enfraquecimento do poder da Igreja e de sua herança cultural). Quebram-se
as tradições trazidas da antiguidade, desconfia-se da cultura, acusando-a de
destruidora da pureza do “bom selvagem” e causadora de uma sociedade
artificial que aliena o homem de sua autêntica natureza, e destrói-se tudo o
que seja autoridade. O grande expoente destas ideias foi posteriormente
Jean Jacques Rousseau.
Naturalmente, este pensador francês foi influenciado por inúmeras
correntes filosóficas que foram nascendo nos séculos anteriores – Descartes,
Spinoza, Leibniz, Locke, Hume, Bayle, Diderot, Maquiavel, Hobbes, Voltaire
e muitos outros que não podemos nos aprofundar – e que aos poucos foram
tendo um grande impacto nos espíritos revolucionários que se respirava em
toda essa época. Sua característica principal era a intensa subjetividade do
sujeito. Tratava-se de dissociar a teoria da prática. O importante era cada
um ser ele mesmo, ao invés de ser um “hipócrita”, fingindo ser aquilo que
não se era. Segundo Rousseau, era melhor ser “bom” (diga-se, espontâneo),
do que “virtuoso”, talvez refletindo com este pensamento sua revolta contra
o puritanismo calvinista que viveu a maior parte de sua vida. Seu ideal de
perfeição consistia em amar-se a si mesmo mais do que a qualquer coisa ou
a alguém. Pensava que o homem era bom por natureza – aqui se diferencia
de Maquiavel, Hobbes, Spinoza – mas a sociedade é o que o corrompe,
interferindo na sua liberdade e criando desigualdades. Por “natureza”
Rousseau entende o estado primitivo de inocência e felicidade. Confunde a
justiça (dar a cada um o que lhe é devido) com a igualdade, declarando que
o natural é a absoluta igualdade entre os homens. O homem nasce livre e
por isso não é natural que se submeta a uma autoridade. Esta ideia é no
fundo o nervo de toda a revolta de todos os enciclopedistas dessa época. E
se tornará a semente que depois gerará a revolução contra toda a
autoridade que vivenciamos hoje.
Com todas essas ideias fervilhando no berço do mundo fica fácil
entender como aos poucos foram penetrando também na área da educação.
Inclusive, uma das obras mais conhecidas do pensador francês – Emile – é
uma radicalização dessas ideias. Ele defende que a educação tem que se dar

26
por meio do desenvolvimento espontâneo e livre da natureza humana,
eliminando todos os dogmas, regras, preceitos. É o embrião do “é proibido
proibir” que nascerá mais tarde. Segundo Rousseau, não se deve ensinar a
religião às crianças. Deve-se, pelo contrário, permitir desenvolver seus
instintos e suas tendências, sem freios antinaturais: se esboçam aqui os
conhecidos “tabus” de algumas modernas antropologias e psicologias que
buscam “liberar” ao homem, fazendo-o esquecer sua inteligência, e
potencializando sua animalização.
Projetando todas estas ideias no decorrer dos séculos futuros, fica fácil
compreender porque no século XXI se discute a autoridade dos pais, dos
diretores e professores de escola e, consequentemente, de um preceptor. A
necessidade de qualquer tarefa educativa perde seu sentido mais profundo e
prático. Elucida-se ainda o porquê do relativismo – a desconfiança da razão
para abarcar o real e a verdade – e do emotivismo – doutrina para a qual -
segundo MacIntyre – “todos os julgamentos avaliativos e mais
especificamente todos os julgamentos morais não passam de (grifo do
Autor) expressões de preferência, expressões de atitude ou sentimento, na
medida em que são morais ou avaliativos em caráter”. 16 Por fim, dentro de
um contexto rousseauniano, fica explicado porque a exigência escolar foi
diminuindo aos poucos, chegando a níveis alarmantes de várias escolas
atuais nas quais os alunos escolhem o que querem estudar, quando e como
avaliar, como vestir, chegando até a aprovação automática.
Efetivamente, no imaginário coletivo de muitos responsáveis pela
educação nos dias que correm, a necessária exigência educativa está
associada a traumas, repressão, “camisas de força” com a perda da
liberdade e da autenticidade, tristeza, formatação e muitos outros
sentimentos que a mistura da psicologia com filosofias modernistas se
encarregaram de introduzir em nossa cultura. Por outro lado, nós,
educadores atuantes, percebemos que ter deixado nossas crianças vestir a
“camisa de força das próprias paixões irracionais”, que é o que acontece na
prática quando não se educa na exigência, foi muito pior e “escravizante”.
16
MACINTYRE, A. After Virtue (Depois da Virtude). Tradução de Jussara Simões,
Bauru (SP): EDUSC, 2001
27
Os alunos estão em geral completamente desmotivados, falta-lhes muitas
vezes capacidade de vislumbrarem ideais mais valiosos; sofrem de desamor
e solidão de forma precoce e por isso desrespeitam os demais; estão
imaturos para a idade; a preguiça e inconstância nos objetivos os
enfraquecem; não sabem o que fazer com a afetividade desgovernada e, ao
sentirem medo da vida e da realidade, se refugiam em diversas “bolhas”
cada vez mais densas e mais nocivas para a sua felicidade.

28
IV – Outros rumos do modernismo: a
ética de Kant

Contrastando com a perspectiva de Rousseau, não se pode deixar de


iluminar uma outra perspectiva da mesma época, totalmente diferente,
porém também fundamentada no subjetivismo exagerado do indivíduo, só
que desta vez com tons muito mais racionalistas do que afetivos: a ética de
Kant. Pode-se afirmar com segurança que o filósofo prussiano marcou
também profundamente a época modernista e é possível que parte de suas
ideias tenham influenciado a educação dos dias de hoje.
Maritain17 chama esta revolução kantiana, de ética acósmico-idealista,
construída independentemente de toda visão da condição do homem no
mundo e no universo e sem fundamentar-se na metafísica ou na filosofia da
natureza, como faziam os gregos. Essa ética tem um caráter dedutivo-
normativo. Seu estágio inicial é a razão como medida dos atos humanos, não
mais como instrumento de conhecer a realidade, mas no sentido de razão
pura, pura de toda a matéria cognoscível.

A ética grega estava fundamentada em dois princípios básicos: 1º)


existem coisas independentes do nosso pensar e do nosso querer; 2º)
conhecemos algumas destas coisas, mas não tudo. Segundo Maritain, Kant,
dentro de sua ética idealista, apesar de também afirmar o primeiro princípio,
nega o segundo de forma categórica. Vê a razão de modo puramente formal,
segundo o ponto de vista exclusivo das exigências da moralidade lógica.

O segundo estágio da ética kantiana é a lei. Não mais a lei natural,


mas a lei no sentido de imperativo categórico, isto é, o “tu deves” absoluto,
imposto em nome da Razão Pura, como forma a priori dos atos humanos. O
leitor talvez esteja se perguntando: “Eu devo, mas o que devo eu?”

17
MARITAIN, J. Filosofia Moral. Rio de Janeiro: Agir, 1973
29
Kant18 utiliza aqui, como Aristóteles19, a noção clássica de
conformidade à razão como medida do ato moral. Entretanto, em Kant, o
papel da razão é avaliado apenas em seu sentido formal, isto é, apenas
sobre o plano das propriedades e conexões que são objeto da lógica, já que
toda a possibilidade de determinação pela natureza ou pelo ser das coisas foi
suspensa. O caráter essencial que a razão oferece a Kant em seu puro
funcionamento formal é o duplo caráter de universalidade e o de não-
contradição.

A título de exemplo, vejamos a aplicação desta ética idealista,


utilizando uma das cinco fórmulas que Kant propõe como imperativo
categórico: “Age apenas segundo uma máxima, de maneira que possas, ao
20
mesmo tempo, vê-la erigida em lei universal”. É a fórmula da lei universal
–ou da universalização logicamente possível (não-contraditória) da máxima
do ato– da qual se aproxima muito a terceira fórmula (fórmula de
autonomia): “Age de tal maneira que tua vontade possa ser considerada, ao
mesmo tempo, como elaborando e promulgando, por sua máxima de ação,
uma lei universal”21. No caso de um ato tal como “não restituir um depósito
bancário” seria uma impossibilidade lógica, ou uma contradição, erigir sua
máxima em lei universal –“não se deve jamais restituir um depósito” – pois
se cada um não deve receber um depósito senão com a intenção de não
restituir, não existiria mais o depósito. Uma lei universal prescrevendo a não
restituição de um depósito recebido faria desaparecer seu próprio objeto.

Observemos, entretanto, um outro exemplo. Pensemos em um ato


como matar um homem que nos tenha ofendido. A transformação da

18
KANT, I Fondements de laMétaphysiquedesMoeurs, Paris: Delagrave, 1950
19
ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Trad. Mário da Gama Kury. 4 ed.. Brasília:
Editora da UNB, 2001
20
Fondements de laMetaphisiquedesMoeurs, Sec.II, t.IV, p. 421, 1.7. As outras
fórmulas do imperativo categórico são: 1º) Age como se a máxima do seu ato se torne por
tua vontade uma lei universal da natureza (estabelecendo uma harmonia racional entre
agentes morais); 2º) Age de tal maneira que tua vontade possa sempre, ao mesmo tempo,
valer como princípio legislador universal (ou se considerar como fazendo e promulgando por
sua máxima de ação uma lei universal); 3º) Age de maneira a tratar a humanidade tanto
em tua pessoa, como na do próximo, sempre como fim, jamais como simples meio; 4º) Age
como se tu fosses sempre, pelas máximas de teus atos, um membro legislador em um
reinado universal dos fins.
21
Critique de la Raison Pratique, 1ª parte, livro I, cap. I, parágrafo 7, t.V, p. 30, 1,38)
30
máxima desse ato em lei universal –“é preciso matar sempre aquele que nos
ofendeu”– não inclui contradição alguma, mas o que implicaria contradição e
impossibilidade lógica seria querer que a máxima em questão fosse
transformada em lei universal. Pois então quereríamos que aquele a quem
pudéssemos, por acaso, ofender, nos matasse. Há contradição em querer
uma lei que arraste o desaparecimento daquele que a quer. Por isso é que
Kant teve a preocupação de dizer: “Age de tal maneira que possas querer
que a máxima de teu ato se converta em lei universal”. Tanto no primeiro
exemplo quanto no segundo, Kant deduz o conteúdo da lei moral de sua
pura universalidade: um ato é proibido ou contrário à lei moral, por ser
logicamente impossível ou contraditório.

O último estágio de Kant é a retidão ou a moralidade (bondade moral)


da ação. Para o filósofo alemão, a ação é moral quando sua máxima é uma
máxima passível de ser universalizada, de ser erigida em regra que comande
universalmente o comportamento de todo o ser humano. Essa universalidade
da máxima do ato é que constitui a eticidade desse último ou sua bondade
natural. Bondade essa, que, ao contrário de Aristóteles, não depende da
bondade do objeto. Para Kant, não existe uma bondade intrínseca dos
objetos da qual dependeria a bondade do ato. A moralidade do ato é que faz
com que seu objeto seja moralmente bom. O bem moral já não se sustenta
na realidade extramental, mas apenas na universalidade da Razão Prática. O
conteúdo da ação moral deve ser deduzido dessa forma universal e das
exigências de universalidade essenciais à razão.

Esta ética kantiana “de valor único”, como a chama Maritain, com o
passar do tempo encontrou bastante controvérsias. Umas, de origem mais
teórica, e outras, a partir de perspectivas mais vitais.

Millán-Puelles22, referindo-se às dificuldades teóricas, afirma que, de


fato, o dever é uma exigência absoluta por sua forma e relativa por sua
matéria. Explicando melhor estas diferenças, o autor esclarece que não é o
22
MILLÁN-PUELLES, A. Ética e realismo. Madrid: Ediciones Rialp, 1996.

31
mesmo o dever, por exemplo, de um médico e de um farmacêutico, ainda
que possam estar próximos. Existe uma relatividade pela matéria, pelo
conteúdo do dever. O autor afirma que:

Chamo matéria do dever ao seu conteúdo. O conteúdo do


dever se determina em relação ao sujeito que tem de praticá-lo,
supondo sempre, evidentemente, uma base de princípios
universais, gerais, que valem o mesmo para o médico,
farmacêutico, astronauta, político, pedagogo. Mas a concretização
máxima desses princípios morais gerais é relativa às circunstâncias.
Por isso existe uma virtude que se chama prudência –phrónesis–
que tem a função de aplicar uns princípios morais absolutos,
imutáveis, incondicionados a circunstâncias variáveis. Ao variar as
circunstâncias, a forma de aplicação varia também. (Millán-Puelles,
p. 43).

Foi extraordinariamente nítida a forma com que Kant viu a


categoricidade do dever moral, a exigência absoluta do dever, a forma
imperativa do dever ético, mas seu raciocínio foi incompleto, segundo Millán-
Puelles, ao querer aplicar a todos os seres humanos o mesmo dever. O autor
salienta de forma bastante precisa:

Do ser, pura e simplesmente, sem mais, não se tira nenhum


dever. O ser reduzido à pura facticidade não justifica o juízo moral.
Mas o imperativo moral se baseia em um dever, e o dever é o que é
bom fazer. Isso é o devido, o que é bom fazer. “Bom” não seria nada
sem o “ser” que lhe antecede. Aqui se trata de ser efetivamente
bom, não de parecê-lo somente. Esse “é” é o que dá objetividade à
ética. Em definitiva, o dever é relativo ao ser, e como o dever
pertence ao homem, então é relativo ao ser do homem, à sua
natureza humana. (Millán-Puelles, p.81, grifos do autor).

Uma discussão ética desvinculada do ser verificou-se de difícil


aceitação por parte das pessoas, pois a natureza humana o que busca é
32
perfeição do ser. Uma ética onde o bom e o mau, necessários em si, nada
tinham que ver com o próprio ser, foi preparando o terreno para uma nova
revolução, da qual um dos principais mentores foi Nietzsche. Mas antes de
entrarmos nesta nova corrente filosófica, aprofundemos ainda nas questões
vitais que a filosofia kantiana provocou.

O “dever pelo dever” kantiano foi visto por muitas pessoas como uma
forma antivital de existir, de fomentar o desprezo por si mesmo, de tirar a
tendência natural do ser humano de ir à busca da felicidade e do prazer. Foi
traduzido como atributo principal de uma ética que, em definitiva, propunha
uma vida triste e carregada de ilusões teóricas.

De fato, o cumprimento do dever, à primeira vista, sempre apareceu,


como aparece hoje, como um inimigo da felicidade. Efetivamente, o
cumprimento dos deveres morais sempre acarretou e acarreta uma certa
dureza e exigência, apesar de constituir um bem. Quando se fala da
satisfação do dever cumprido, não se fala somente porque já se cumpriu o
que se devia –o que traz sempre satisfação– mas também porque, muitas
vezes, aquilo implicava um certo peso nada prazeroso, num primeiro
momento. Mas é sabido que a felicidade que se consegue, depois que se
vence esses primeiros momentos custosos, é muito mais profunda e
duradoura. Que é uma grande ilusão tentar conquistar a felicidade sem
esforço na vida. Entretanto, ao ser reduzida a suportar um sacrifício sem
enxergar uma felicidade futura, sem vislumbrar-se um bem maior e uma
maior perfeição do ser, nossa natureza tende a se rebelar, e a buscar outras
finalidades, conforme apontava muito bem Frankl23:

A felicidade tem que ser sempre um efeito, não um fim. O


efeito da posse do sentido da vida. Quando não existe sentido, ou se
frustra o sentido que havia, quando não existe mais um fim na vida,
os meios (poder e/ou prazer) se tornam o fim. (Frankl, 2003, p. 57).

23
FRANKL, V. Sede de Sentido. São Paulo: Quadrante, 2003.
33
Esta desordem, que a ética kantiana provocou, desvinculando a
vivência ética de um fim último, de uma felicidade a alcançar, como
propunha a ética de Aristóteles, causou um abalo nas suas estruturas
filosóficas. Foi a partir desta falha teórico-prática, além do que já falamos
anteriormente do ponto de vista teórico, que a filosofia de Nietzsche
encontrou condições, potencializando-se de forma rápida e extensa.

34
V – O fim do modernismo: Nietzsche

Para resumir de alguma forma a figura do pensador alemão e sua


contribuição permanente para a História da Filosofia, talvez possamos dizer
que foi o maior antikantiano e antihegeliano do século XIX. Como todos nós,
Nietzsche foi filho do tempo em que viveu. Na Alemanha da sua época, o
ambiente estava penetrado de alto a baixo pelo poderoso racionalismo, o
que quer dizer sistematização, ordem, peças perfeitamente encaixadas na
tentativa de formar um compacto edifício de ideias, capaz de explicar
exaustivamente o dinamismo dos processos naturais e sociais, e tudo isto
com base no domínio incontestável da razão. Nietzsche contempla essa
situação com grande lucidez. A sua aguda sensibilidade, os seus estudos e
as suas reflexões levam-no a erguer-se contra essa sistematização radical,
proclamando com fortíssima indignação o primado da vida e da liberdade.
Neste contexto, nasce a sua violenta crítica à moral e à religião. Na
Genealogia da moral Nietzsche24 sugere que a ideia de Deus teria sido
originada pelo medo: o medo primitivo dos antepassados e do seu poder
teria levado gradualmente à transfiguração desses antepassados em deuses.
Porém, o que verdadeiramente o filósofo não tolera não é um deus qualquer,
mas a noção do Deus cristão:

Um Deus onisciente e onipotente que não se empenha em que as


suas intenções sejam compreendidas pelas criaturas –poderá ser por
acaso um Deus de bondade? Um Deus que, durante milhares de
anos, tem permitido que continuem à solta inumeráveis dúvidas e
escrúpulos, como se não tivessem importância para a salvação da
humanidade, e que, no entanto, anuncia as mais terríveis
consequências para todo aquele que interprete mal a sua verdade–
não seria um Deus cruel? (Aurora, aforismo 91)

24
NIETZSCHE, F.W Aurora. Lisboa : Publicações Europa-América, 1978.

35
A principal objeção do pensador contra Deus é que seria contrário à
vida como afirmação de si próprio, como vontade de poder. Essa é a razão
mais profunda, a verdadeira causa de sua revolta: para o homem poder
afirmar a sua vida em todo o seu poder e liberdade, para ser capaz de
elaborar valores e de vivê-los, é absolutamente necessário, segundo
Nietzsche, suprimir Deus do horizonte da vida humana, de forma a garantir
que não mais influa nessa vida que é absolutamente nossa. Para que a vida
seja nossa, Deus não pode agir. Por isso, trata-se não apenas de esquecê-lo,
mas de aniquilá-lo, de matá-lo. Já na Gaia Ciência o autor fala nessa “morte
de Deus”:

Deus está morto; os nossos corações transbordam de gratidão, de


admiração, de pressentimento e de expectativa. O horizonte
aparece, finalmente, mais uma vez aberto, mesmo que tenhamos de
admitir que não é brilhante; os nossos navios podem, por fim, sair
para o mar, enfrentando qualquer perigo; todo o risco está agora ao
alcance daquele que for prudente; o mar, o nosso mar, está
novamente aberto diante de nós, e talvez nunca tenha existido um
mar aberto dessa natureza. (Nietzsche, 1983a, aforismo 343)

A notícia de que “Deus está morto” significa para Nietzsche, sem


dúvida, que a vida está desprovida de um sentido claramente determinado.
Daí a sua satisfação: podemos inventar os nossos próprios valores, podemos
exercer ao máximo a vontade de poder, estamos a sós com o nosso risco e
com a nossa liberdade; somos, finalmente, homens. Os que acreditam em
Deus desprezam a vida, são decadentes e blasfemos da terra.
Como já dissemos anteriormente, mais do que o ateísmo, o antiteísmo
de Nietzsche, radical e indiscutido nos anos em que foi professor
universitário, é o fio condutor de grande parte de suas ideias: crer em Deus
significa permitir que Outro me guie, que me diga o que devo fazer, que dite
as leis da minha vida, que marque o rumo dos meus passos. O pensador
dirá que isto anula a pessoa humana, que a impede de viver a vida, de
tomar as suas próprias decisões e de criar os seus próprios valores.

36
Segundo MacIntyre25, a importância histórica de Nietzsche foi entender
mais claramente do que qualquer outro filósofo que o que se fazia passar
por apelos à objetividade eram, de fato, expressões da vontade subjetiva.
Num trecho famoso de “A Gaia Ciência” (1983 a, aforismo 335),
Nietzsche zomba da ideia de fundamentar a moralidade em sentimentos
morais íntimos de consciência ou por meio de imperativos categóricos
kantianos. Em cinco parágrafos curtos ele combate toda a filosofia iluminista
e procura descobrir fundamentos racionais para uma moralidade objetiva.
MacIntyre, comentando esta tentativa de Nietzsche, afirma que o filósofo
alemão acabou criando um problema com esse ato de destruição da moral
iluminista. O problema poderia ser expresso assim: se a moralidade não for
nada mais que expressões da vontade, minha moralidade só pode ser o que
minha vontade criar. Não pode haver lugar para ficções como direitos
naturais, ou o que for mais útil ou ainda o que for mais feliz para o maior
número de pessoas. A solução está em eu mesmo criar “novas tabelas do
que é bom”. Em “A Gaia Ciência” se afirma que “nós, porém, queremos nos
tornar o que somos –seres humanos– que sejam novos, singulares,
incomparáveis, que se outorgam leis, que criam a si mesmos” 26 O racional e
o racionalmente justificado sujeito moral autônomo do século XVIII é para
Nietzsche uma ficção, uma ilusão. Então decide que a vontade de poder
substitua a razão e que nos tornemos sujeitos morais autônomos por meio
de um gigantesco e heroico ato da vontade. E se cria um novo problema:
como construir de maneira totalmente original, como inventar uma nova
tabela do que é bom e uma lei para cada indivíduo? É um problema para o
qual Nietzsche, dentro de suas pesquisas, nunca encontrou uma resposta
satisfatória.
Argumento que a intuição filosófica de Nietzsche estava certa, num
primeiro momento, ao identificar na ética kantiana uma ética rigorista, seca,
e alheia aos sentimentos humanos: uma ética desumana. Ao substituir a
razão pela vontade de poder, onde cada pessoa pudesse exercitar a

25
MACINTYRE, A. After Virtue (Depois da Virtude). Tradução de Jussara Simões, Bauru
(SP): EDUSC, 2001
26
NIETZSCHE, F.W. A Gaia Ciência . São Paulo: Editora Abril, 1983
37
liberdade de ser e de se aperfeiçoar, também vislumbrava uma ética mais
harmônica e alegre que uma vida moral sem um fim último de felicidade a
alcançar, a qual se torna assim uma ética sem sentido e destinada à revolta
e à tristeza. Porém, o que talvez tenha faltado precisar melhor foi quais
seriam os limites dessa liberdade individual, pois sem eles, acaba-se
perdendo a própria liberdade, e qual a sua razão de existir. A liberdade de
um ser humano é a liberdade de um ser limitado e, portanto, é limitada ela
mesma27. Só podemos possuí-la como liberdade compartilhada, na
comunhão das liberdades: a liberdade só pode desenvolver-se se vivemos,
como devemos, uns com os outros e uns para os outros. Necessitamos dos
demais, não só pelo que recebemos deles, mas sim também porque estamos
feitos para dar. Não existe crescimento pessoal com independência das
necessidades de quem nos rodeiam.
Um dos aspectos positivos de suas obras e que, de alguma maneira,
também justifica sua forte influência, nasce de sua sinceridade:
repugnavam-lhe a dissimulação, o faz-de-conta e as máscaras, que via
como horrendas falsificações dos covardes. Preferia ser odiado a passar por
omisso perante os problemas do seu tempo. A ideia que passava da moral
ideal como a de um homem enérgico, de certo modo implacável, se
contrapõe precisamente à moral da resignação, da passividade, da
compaixão condescendente, tão espalhada na sua época e também nos dias
de hoje.
A filosofia de Nietzsche atraiu muito nos anos que se sucederam à sua
morte, e interessa até hoje, entre outras muitas razões, porque perante o
descrédito das ideologias que esmagaram o indivíduo (por exemplo, com o
nazismo), muitos homens levaram o pêndulo até o extremo oposto –como
quase sempre acontece na história– e reivindicaram um individualismo
radical dono da verdade que nasce da vontade de poder, o que ele
considerou a aspiração essencial de todo o homem.
27
YEPES STORK, R..Fundamentos de Antropologia: Um Ideal de Excelência Humana.
Tradução de Patrícia Carol Dwyer. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência
“Raimundo Llull, 2005.

38
É possível, porém, que se Nietzsche vivesse hoje, talvez se
arrependesse de numerosos aforismos expressados nas suas obras e talvez
entendesse o porquê de um grafite aparecido nos muros de Berlim, em
meados dos anos 50“Gottisttot–Nietzsche.Nietzsche ist tot– Gott” (Deus
morreu–Nietzsche. Nietzsche morreu–Deus). Hoje, já somos capazes de
enxergar o século XX numa perspectiva razoavelmente abrangente para
entender melhor as consequências da “morte de Deus”. Se cada homem se
torna criador dos seus próprios valores, é inevitável a briga com o vizinho,
que também quer criar os seus. O próximo já não é próximo, mas
adversário, e então eclode uma necessária espiral de atos de violência,
porque os valores de uma pessoa só podem prevalecer se esta pessoa
eliminar os concorrentes. Este enaltecimento arbitrário e agressivo da
superioridade individual, transportado ao terreno social, político e
educacional, produziu as maiores convulsões da História, a ponto de muitas
pessoas, contemplando a catástrofe das duas guerras mundiais e o perigo de
uma hecatombe nuclear, se terem perguntado se a “morte de Deus” não
teria provocado a “morte do homem”, perdido e angustiado, que se depara
com um futuro sombrio ao mesmo tempo em que se vê mais e mais carente
de um sentido para sua vida.
Notei nas gerações nascidas nas décadas de 1950 e 60, uma forte
tendência a aderir a este espírito nietzscheano: o movimento político
estudantil de 1968, a revolução sexual, algumas tendências do rock’nroll,
certos movimentos artísticos e literários. Quando vemos em certas classes
sociais de nossa sociedade uma busca desenfreada pelo prazer a qualquer
custo, um esforço quase espartano em conseguir uma maior “visibilidade” (o
reconhecimento alheio), a corrupção nos costumes, na família, na política,
tudo leva a crer que é muito perigoso para uma comunidade de seres
humanos deixar-se conduzir por um certo subjetivismo radical, criador de
seus próprios valores, desprezando a sabedoria e o amadurecimento do
conhecimento que os séculos anteriores tentaram nos ensinar.
Um reflexo claro desta modanietzscheana aparece na educação. Pais e
professores acreditam que é melhor que seus filhos ou alunos aprendam

39
sozinhos e criem seus próprios valores; que façam suas escolhas
exclusivamente com base naquilo de que gostam e que sentem, no que é
autêntico e espontâneo, e não no que é racional, e se deixem levar pelos
seus impulsos, pois qualquer forma de limitá-los é tida como abominável
repressão. Desta maneira, acreditam, torná-los-ão mais felizes, realizados e
plenos. Entretanto, a realidade da nova geração tem demonstrado suspeitas
nesse modelo nietzschiano: jovens desmotivados, imaturos e tristes;
pessoas solitárias e sem perspectiva de vida, vivendo a “liberdade da
indiferença”28; rapazes e moças que não sabem explicar sua subjetividade,
afetividade e vazio interior, porque suas forças interiores estão
desorientadas; famílias desestruturadas e em eterno conflito, no interior das
quais se verificam não poucos gestos de violência tanto física como
simbólica entre pais e filhos; amigos que passam a se odiar; enfim, uma
sociedade cada vez mais tendente a estabelecer uma guerra de todos contra
todos.

28
PINCKAERS, S.T. La moral católica, Madrid: Ediciones Rialp, 2001.
40
VI – A necessidade da preceptoria na
pós-modernidade

Depois de termos analisado, de forma comedida, alguns momentos


históricos relacionados à história da filosofia da educação, já temos
condições de compreender um pouco melhor o que efetivamente aconteceu
com o ser humano ao chegar na pós-modernidade.
Conforme vimos, a filosofia grega detectava uma natureza humana com
funções bem definidas. Para Aristóteles29, a plenitude da vida humana se
encontrava na vida da inteligência. Segundo o autor, o que é próprio de
cada um por natureza, é também o mais excelente e o mais agradável para
cada um. Portanto, para o homem, definido como animal racional, o ser feliz
seria a vida conforme o pensamento, já que é isso o que caracteriza sua
natureza. Um homem feliz é, para o filósofo grego, aquele que consegue
progressivamente atingir a contemplação do bem. A plenitude da felicidade
(eudaimonia) ou o seu fim último seria a contemplação de um Bem
Absoluto.30
MacIntyre31, glosando estas ideias de Aristóteles, destaca a importância
da aprendizagem da virtude para viver de forma racional. A conceitua como
uma habilidade adquirida segundo critérios objetivos e provenientes da

29
ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Trad. Mário da Gama Kury. 4 ed.. Brasília:
Editora da UNB, 2001
30
A vida feliz para Aristóteles era a que possuía os bens mais apreciados: a família e
os filhos no lar, uma quantia moderada de riquezas, os bons amigos, boa sorte que afaste
de nós a desgraça, a fama, a honra, a boa saúde e, sobretudo, uma vida nutrida na
contemplação da verdade e a prática da virtude. Hoje ainda se pode manter que a posse
pacífica de todos esses bens constitui o tipo de vida que pode nos fazer felizes. (cf.
Aristóteles, 2001,II, 3-4; 1099b). Vejamos uma definição moderna de felicidade que nos
permite cotejar a definição anterior. Rojas diz que “a felicidade é constituída por quatro
elementos essenciais: ter uma personalidade que se encontrou a si mesmo, viver de amor,
trabalhar com um sentido na vida e possuir educação e cultura” (ROJAS, E. A educação da
Vontade, Madrid : Ed. Temas de Hoy, 1996).
31
MACINTYRE, A..AfterVirtue (Depois da Virtude). Tradução de Jussara Simões, Bauru
(SP): EDUSC, 2001
41
tradição cultural. O autor ressalta a necessidade de se pensar sobre quais
são e como são as virtudes para nossa época. Destaca a justiça como o
núcleo a partir do qual todas as outras virtudes surgirão e se interroga sobre
o que é Justiça e qual a Justiça32. Conceitua também virtude como:

Uma qualidade humana adquirida, cuja posse e exercício


costuma nos capacitar a alcançar aqueles bens internos nas
práticas e cuja ausência nos impede para todos os efeitos, de
alcançar tais bens. (MacIntyre, p. 321, grifo meu)

O autor é incisivo quando diz que “a função essencial das virtudes é


clara. Sem elas, sem justiça, coragem e sinceridade, o atuar dos homens
não resistiria ao poder corruptor das instituições” 33. É possível afirmar que
grande parte das desordens morais que se evidenciam diariamente em
diversas crises nacionais e mundiais sejam explicadas por esta falta de
virtudes.
Para que se viva plenamente a Ética, o autor enfatiza a necessidade da
existência de parâmetros objetivos que possam nortear a vida virtuosa. Ao
contrário do emotivismo, a vida ética é ressaltada segundo a indispensável
adequação do comportamento de cada indivíduo a critérios que são
provenientes da tradição cultural e que devem ser aprendidos de modo a
constituírem uma habilidade prática.
Segundo Aristóteles, existem dois tipos de virtudes: as virtudes
intelectuais, ou do pensamento, e as morais, ou do caráter. Aquelas
poderiam ser divididas em dois grupos: o primeiro compreende as virtudes
mais especulativas (razão teórica ou abstrata), das quais fazem parte a
Sophia (sabedoria) e a Ciência. Estas virtudes são também conhecidas como
competências intelectuais incluindo o conhecimento científico relevante; o
outro grupo abrange as virtudes mais práticas (razão prática), incluindo a
prudência, cuja função principal é a capacidade de discernimento e a técnica
ou um bom senso prático, fruto da experiência. Dentro do segundo tipo de

32
MACINTYRE, A. Whose Justice? Which rationality? University Notre Dame Press –
Indiana, 1988. trad. Marcelo Pimenta Marques Justiça de quem? Qual racionalidade? São
Paulo: Ed. Loyola, 1991.
33
MACINTYRE, A. After Virtue (Depois da Virtude). Tradução de Jussara Simões, Bauru
(SP): EDUSC, 2001
42
virtudes, Aristóteles indica que as virtudes do caráter ou morais são a
prudência, justiça, fortaleza e temperança, as quais se desenvolvem por
meio do hábito, da educação e da prática.
Vejamos abaixo um resumo para melhor entendimento:
FORTALEZA
(apetite irascível)
PRUDÊNCIA JUSTIÇA
PAIXÕES
(emoções)
P
R
INTELIGÊNCIA + VONTADE
> A
Z
SENTIMENTOS
E
R
GOSTO

RAZÃO RAZÃO
TEÓRICA PRÁTICA
(ñ contrad.) (sindérese)
TEMPERANÇA
SABEDORIA PRUDÊNCIA (apetite concupiscível)
CIÊNCIA TÉCNICA (know-how)

VIRTUDES INTELECTUAIS VIRTUDES MORAIS

Figura 1 - Mapa das virtudes em Aristóteles - Fonte: Elaborado pelo autor (2008)

Aristóteles afirmava que a natureza humana –o modo de ser próprio do


ser humano– e suas três potências (inteligência, vontade e afetividade) têm
um funcionamento débil, isto é, suscetível de erro, devido a uma tendência
exagerada do ser humano para a subjetividade. Segundo o autor, esta
natureza humana é um princípio ou mola propulsora das operações próprias
do ser humano (conhecer e querer, com o sentir de permeio) que o inclina –
mas não indefectivelmente– a possuir o bem supremo e, por conseguinte,
alcançar a felicidade. Por isso, para conseguir caminhar mais facilmente
rumo à felicidade, o homem precisa aprender a praticar as virtudes éticas ou
morais.
Segundo Aristóteles, as virtudes morais ou cardeais (chamam-se
“cardeais” porque a palavra “cardeal”, em latim –cardo–, significa eixo, no
qual girariam então todas as demais virtudes) aperfeiçoam o exercício das
potências do ser humano: inteligência, vontade e a afetividade. Sabendo
que estas potências se encontram no ser humano num estado de
dependência e complementaridade e são aperfeiçoadas pelas virtudes

43
cardeais, estes hábitos não poderiam ser vistos separadamente, não
poderiam ser praticados isoladamente, mas somente em uma mútua
dependência. As virtudes morais encontram-se internamente conectadas, de
maneira que, se o indivíduo não tem algo das quatro, não pode possuir
alguma delas completamente. Se um jovem não tem a virtude da
temperança, não poderá dizer que alcançará a virtude da fortaleza ou da
justiça com perfeição. Portanto, as virtudes são adquiridas, ao mesmo
tempo e indissociavelmente, como vasos comunicantes, mediante a
repetição reiterada dos atos próprios de cada virtude e da reflexão acerca da
bondade intrínseca que os atos virtuosos produzem, aperfeiçoando a
natureza humana.
Acompanhemos, na figura abaixo, o resumo esquemático da teoria
ética de Aristóteles:

Resumo esquemático da FINALIDADE NATURAL DA


teoria ética de Aristóteles EXISTÊNCIA DO SER
HUMANO
(porque deriva da sua
natureza)
PRUDÊNCIA RAZÃO
(Faz com que à razão lhe apeteça (Conhece a verdade, que é a BENS BEM FELICIDADE
conhecer a verdade) adequação da razão à OBJETIVOS SUPREMO
realidade do mundo exterior)
(São múltiplos. A (Basta a si (eudamoni
posse de um não mesmo e a, em
JUSTIÇA VONTADE
(Faz com que à vontade lhe (Quer o bem. “Bem” é o nome satisfaz a ânsia não grego
apeteça querer dar aos demais o dado à “verdade” conhecida racional-volitiva do aponta
ser humano e, por clássico)
bem objetivo que lhes pertence) pela razão enquanto querida para
pela vontade) isso, aponta para nenhum
a busca de outros. (Efeito da
outro; posse do
TEMPERANÇA CONCUPISCÍVEL O ser humano,
(Faz com que ao AC lhe apeteça (AC)
satisfaz a bem
com as suas
desfrutar os prazeres de modo APETITES (...atração pelo bem potências
ânsia supremo)
excelente ou objetivo) (Sentem…) prazeroso) aperfeiçoadas racional-
pelas virtudes, volitiva do
FORTALEZA IRASCÍVEL
está apto a ser
(Faz com que ao AI lhe apeteça (AI)
enfrentar os obstáculos que se (...atração pelo bem escolhê-los de humano)
antepõem ao alcance do bem difícil) maneira habitual
objetivo) ao longo da vida)

Figura 2 - resumo esquemático da teoria ética de Aristóteles Fonte: João Malheiro


(2008)

44
Como podemos observar na Figura 2, as virtudes morais, apesar de
estarem interligadas, nascem e são desenvolvidas em uma específica
potência humana.
A virtude da prudência, definida por Aristóteles como a reta razão do
agir, emerge da razão. Conforme podemos verificar na figura 1, esta virtude
é desenvolvida na razão prática –portanto uma virtude intelectual– fazendo
com que a potência intelectiva lhe apeteça conhecer a verdade, mas
também indica a medida correta para as demais virtudes morais, e, por isso,
é também chamada de virtude moral. Conforme já apontamos
anteriormente, Millán-Puelles define a prudência –phrónesis– como a virtude
que tem a função de aplicar princípios morais absolutos, imutáveis,
incondicionados a circunstâncias variáveis. Estas, ao variarem, a prudência
indicaria a forma de variar a sua aplicação. A sequência da vivência da
virtude consistiria de três movimentos subsequentes: reflexão (segurar os
impulsos, evitar as ações precipitadas), julgamento (buscar o conhecimento
ou a experiência no passado, em si e nos outros, além do aconselhamento)
e a decisão, que impera a agir imediatamente.
Para Aristóteles a justiça era dar ao outro aquilo que lhe é devido.
Nascia na potência da vontade, fazendo com que esta lhe apetecesse ser
justa consigo e com os outros. Em Aristóteles, todas as quatro virtudes
cardeais eram, ao mesmo tempo, individuais –beneficiam o indivíduo que as
possui– e sociais –beneficiam os demais indivíduos. Mas a justiça é a virtude
social por antonomásia, pois alguém só realiza um ato de justiça se, em
primeiro lugar, beneficia outro (como consequência, beneficiar-se-á a si
mesmo). Dela parte a teoria jurídica de Aristóteles. Algumas virtudes como
a generosidade (contra a avareza), o respeito (luta contra os preconceitos),
responsabilidade pessoal e social são algumas virtudes que se apoiam na
justiça.
Dentro do campo afetivo, Aristóteles salienta que as virtudes também
têm um papel importante. Dentro da dimensão dos sentimentos, o homem
tem dois apetites: o concupiscível, que move o homem a buscar o prazer ou
a afastá-lo da dor, de forma imediata. E o irascível que atrai e impulsiona o

45
homem para a conquista de bens difíceis, que exigem esforço, num futuro
próximo ou longínquo, mas que valem mais (produzem mais felicidade) que
os bens concupiscíveis, portanto bens maiores. Outro aspecto deste apetite
que complementa o anterior é a capacidade de suportar a perda de bens
menores ou a demora da conquista desses bens maiores. Para moderar o
primeiro apetite, já que o homem nem sempre tende para buscar o prazer
certo ou fugir da dor adequada, emerge na afetividade a temperança,
fazendo com que o apetite concupiscível apeteça à pessoa somente desfrutar
os prazeres ou suportar as dores que o levem à excelência. Para comedir o
apetite irascível, já que, muitas vezes, o homem tende a fugir do esforço e
do sacrifício que a conquista de um bem futuro exige ou ainda a se
aproximar de um mal que não é totalmente consciente, aflora a fortaleza,
fazendo com o apetite irascível lhe apeteça a suportar e a superar as
dificuldades que exigem a conquista do bem futuro.
Aristóteles desenvolve também algumas virtudes menores, que
colaboram ou constroem a temperança: a moderação, a sobriedade, a
continência, a modéstia (não se valorizar diante dos outros ou dominar a
avidez de comunicar-se), a estudiósitas (evitar a curiosidade exagerada),
entre outras.
Com relação à fortaleza, salienta a paciência e a perseverança como as
virtudes que facilitam suportar a perda de bens menores ou a demora de
bens maiores. A audácia, a coragem e a magnanimidade, entre outras, como
as virtudes que facilitam ultrapassar as dificuldades para a consecução do
Bem.
Concluindo o pensamento grego, pudemos examinar que as virtudes
morais são hábitos que devem ser desenvolvidos desde os primórdios do
processo educativo. Aos poucos, devem ir transformando as nossas
potências humanas –inteligência, vontade e afetividade– facilitando e
aperfeiçoando as nossas escolhas e ações. É importante destacar que o
conhecer, o querer e o sentir se encontram no ser humano num estado de
dependência e complementaridade e que, portanto, as virtudes morais não
podem ser vistas e estudadas isoladamente. Ou, o que seria pior, deixar de

46
ensiná-las e praticá-las, porque favoreceria certa independência ou
desvinculação das potências, desestruturando o ser humano.
Entretanto, foi isso que aconteceu a partir do modernismo. Com
Rousseau, a potência da afetividade foi desvinculada das demais potências.
A ilusão do “bom selvagem” nada mais era do que dar corda solta às paixões
humanas. Estas, desvinculadas da racionalidade, como já vimos, tornam-se
um veículo de alta potência, porém sem direção (inteligência) e sem freios
(vontade). A realidade educacional nos mostra atualmente quais são as
consequências de conduzir uma criança dessa forma. Efetivamente, mais do
que conduzir para fora de si para poder conhecer-se e conhecer a realidade
que a cerca, a aprisiona dentro de si, numa autêntica afetividade centrípeta.
Ao invés de desenvolver uma força centrifuga, em direção a um outro, que
precisará para ser ajudada, para amar e para desenvolver suas
potencialidades existenciais e profissionais, ela ficará escrava a um “eu”
autoreferencial, que só deixará uma herança de solidão, fraqueza e fracasso,
porque será conduzida e estimulada por falsas verdades impróprias da sua
natureza.
Com Kant, a potência intelectual foi desvinculada da afetividade. A
razão pura tornou-se fria e desumana, como percebeu Nietzsche. Cegou-se
para a verdadeira transcendência e seu fim verdadeiro, que é para o homem
a felicidade na realização de uma missão social única. Aquilo que era meio,
tornou-se um fim em si mesmo, desligando a natureza do seu fim
teleológico. Num contexto destes, a busca por um sentido na vida deixou de
ser um objetivo educacional. A vida se transforma numa satisfação
hedonista e imediatista, seja intelectual ou carnal, sem rumo ou ideais mais
elevados. Aqui está a explicação da falta de identidade de tantas pessoas e
da desmotivação existencial.
Com Nietzsche, a vontade se desvinculou da razão. A vontade de
poder, de forma autônoma e ilimitada, tornou o homem um ser soberbo e
perigoso. A incapacidade de vislumbrar o bem ou mal intrínseco dos objetos,
construirá uma natureza autodestruitiva. Quando vemos jovens acreditando
numa liberdade ilimitada, desprendida de uma verdade, achando-se super-

47
homens e vencedores, no fundo estão traduzindo aquilo que a cultura lhes
ensinou como certo.
Como podemos ir concluindo, o homem do século XXI é um ser
deformado e desnaturado, com imensa dificuldade para se encontrar e se
identificar como ser humano. Tudo está favorecendo o processo de
animalização. Suas potências superiores – inteligência e vontade – e sua
potência inferior – a afetividade – não estão sendo integradas, harmonizadas
e equilibradas pelas virtudes, como fizeram os gregos desde os primórdios,
hoje chamadas capacidades socioemocionais. Pelo contrário, faz cinco
séculos que vêm sendo incentivadas a funcionar cada uma por conta
própria.
Aqui está a explicação do porquê muitos educadores sérios estão
começando a valorizar o ensino-aprendizagem dessas capacidades
socioemocionais. De alguma maneira, estão percebendo que dedicar-se a
ensinar conteúdos técnicos sem antes saber explicar aos alunos o “por que
aprender” e o “para que aprender”, acaba sendo uma mentira educacional,
pois os levarão a buscar fins meramente materialista e o homem não é só
matéria. Depois de um certo tempo, a experiência de suas vidas os levará a
descobrir que vivem muito longe dos verdadeiros fins da existência humana.
Vão percebendo que não conseguem amadurecer. Que não conseguem se
encontrar e responder quem são, de onde vêm, para onde vão. A
desmotivação existencial é um reflexo do fracasso deste processo. A figura
abaixo descreve o fenômeno:

48
Figura 3: Relação entre Maturidade, identidade e motivação. Fonte: elaborado pelo
autor (2016).
Observação: quando um jovem aprende por meio das virtudes éticas a sair de si
mesmo, terá uma maior inclinação e força para se voltar para um outro quando chegar à
adolescência. Este é o processo normal da maturidade humana. Quando isto ocorre, terá
depois uma maior facilidade para explicar a própria existência, os próprios talentos, o
temperamento (modo de ser), e, consequentemente, descobrir a própria identidade: sua
vocação existencial e profissional. Esta descoberta será a grande força motivacional de sua
vida.

Com tudo o que já descrevemos acima, podemos justificar, então,


nossa definição de preceptoria na escola:

Um acompanhamento extraclasse de jovens (alunos), realizada por


profissionais qualificados, que deve ocorrer durante um certo período de
tempo, com objetivos específicos de alcançar: a) resultados positivos na
aprendizagem; b) melhoras nas capacidades socioemocionais; c) avanços
na descoberta da própria identidade; d) aumentos motivacionais.

De fato, essas quatro necessidades pareceque estão apenas latentes na


maioria dos estudantes hoje. Observa-se que estão demorando para
despertá-las.De alguma maneira, foi isso que descobrimos com o Projeto
Preceptoria na Escola. Tudo indica que só que um trabalho sério de
preceptoria será possível acordá-las e transformar os jovens alunos a serem
pessoas boas.
E as razões são as seguintes:

a) A imaturidade intelectual, volitiva e afetiva, oriunda de uma


educação ética bastante deficiente, tanto na família quanto na
escola, desde a mais tenra idade, provoca neles consequentemente
um atraso efetivo para se interessar por aprender com esforço e
profundidade. A consequência desse retardamentoé uma maior
dificuldade nas três etapas da aprendizagem: aquisição, retenção e
generalização do conhecimento. Têm dificuldade na aquisição do
conhecimento – capacidade cognitiva, de atenção, de concentração -,
na dificuldade de retenção – memorização curta e de longo prazo –
e, finalmente, na dificuldade de generalização do conhecimento –
relacionamento do conhecimento teórico com o mundo prático ou
real, capacidade indutiva ou dedutiva, entre outras. Por outro lado,
49
quando ajudadas e estimuladas na preceptoria, esse interesse
aumenta e a busca por mais conhecimento acorda;
b) Apresentam várias deficiências nas capacidades socioemocionais como
uma acentuada resistência ao esforço e acreditam que a felicidade é
sinônimo de bem-estar e prazer material, o que também é uma verdade
incompleta. Consequentemente, têm dificuldade para se submeter a um
horário de estudo, a uma disciplina de ordem material e temporal,
apresentam pouca resiliência perante as dificuldades, são pouco proativos e
persistentes, etc. Custa-lhes a socialização, a amizade verdadeira, a
generosidade, têm relacionamentos superficiais e descartáveis. Refugiam-se
nas novas tecnologias ou em livros. Porém, notou-se que quando aprendiam
as estratégias das virtudes, as rápidas transformações experimentadas
provocava neles uma forte esperança e espírito de superação;
c) Além disso, como já dissemos, essa imaturidade por estar
fundamentada num subjetivismo radical, dificulta-lhes o altruísmo, o serviço
aos demais, o compartilhar tempo, talentos, dinheiro, pré-requisitos
indispensáveis para a pessoa se encontrar – a nossa vida só pode se explicar
quando entendemos que tudo o que somos ou temos é para colaborar na
felicidade dos demais - e responder à pergunta mais importante da vida de
uma pessoa: “Afinal, quem sou eu? Por que existo? Para que sirvo eu? ”. A
descoberta da própria identidade é um dos momentos mais realizadores na
vida de uma pessoa, mas quando não se vislumbrar um futuro e uma
escolha acertada, produz muita angústia e ansiedade. Percebíamos que os
testes vocacionais associados às qualidades humanas despertavam luzes em
tantas sombras durante as preceptorias;
d) É muito comum nos dias atuais encontrar alunos bastante desmotivados
nos estudos, com baixa autoestima, sem perspectiva de vida, sem ideais
altos. Sem dúvida, tudo isso é provocado pelos vários aspectos descritos
anteriormente. Muitas vezes, a única motivação que existe é a material e em
alguns poucos a intelectual, mas enquanto não chegar na motivação
transcendental, tanto a motivação material quanto a intelectual irão
favorecer o descaminho e a falta de sentido na vida, provocando o vazio

50
existencial apontado por Frankl.34 Muitas vezes, essa desmotivação é
oriunda da ideologia marxista que vem das universidades que só sabe
mostrar uma parte da realidade, com a sua luta de classes, na qual os mais
desfavorecidos são sempre uns coitados que nunca poderão se superar nas
suas limitações, provocando mais baixa autoestima. Mas detectamos que
quando as crianças eram estimuladas a crescer nas capacidades
socioemocionais tinham forças para vencer essas ideologias.

Diante de todas estas constatações, comprovadas por grande parte


dos preceptores, e depois comunicadas a muitos professores, provocou uma
onda educacional positiva. Muitos professores estão com o desejo de dedicar
parte de seu trabalho pedagógico a suprir essas deficiências querendo se
formar como preceptores e relançar a preceptoria na escola como uma nova
perspectiva.
De alguma maneira, todos têm consciência que deve ser uma
modalidade emergencial enfrentar o enorme desafio de reconstruir o Projeto
do Ser Humano, pelo menos enquanto a Academia continuar impregnada de
certas ideologias duvidosas. É uma tarefa extremamente complexa e difícil.
Mas, sem dúvida, para muitos foi o que fez resgatar o amor à profissão e o
nascimento do verdadeiro zelo educativo.
Os próximos capítulos irão aprofundar quais os possíveis caminhos
para essa formação de preceptoria.

34
FRANKL, V.Sede de Sentido. São Paulo: Quadrante, 2003
51
2) Como realizar na prática a
preceptoria na escola

RESUMO: O presente capítulo tem como objetivo trazer para a


comunidade escolar uma nova forma de realizar a preceptoria na escola.
Esta modalidade educativa já é realizada por algumas escolas, mas com
perspectiva diversa, com foco principalmente nos problemas sociais, nos
desarranjos familiares, na diversidade e dificuldades de aprendizagem. O
autor propõe um novo tipo de preceptoria, na qual o preceptor-mestre
consiga contribuir efetivamente para o desenvolvimento social, afetivo,
cognitivo e acadêmico dos estudantes, assim como a sua formação integral
e a elaboração de um projeto de vida. Este capítulo traz ainda inúmeros
instrumentos de trabalho que já foram aplicados na preceptoria de outras
escolas e que demonstraram alcançar, quando bem aplicados, os sonhados
objetivos.

Palavras-Chave: Preceptoria na prática - Instrumentos de preceptoria


– capacidades socioemocionais – motivação no ensino-aprendizagem -

52
I – Introdução

No capítulo anterior, apresentou-se a preceptoria na escola num


contexto histórico de vários séculos. De alguma maneira, ao dar algumas
pinceladas nos momentos mais marcantes no âmbito educacional, procurou-
se compreender com mais profundidade porque esta modalidade pedagógica
é hoje uma das maiores necessidades em todas as escolas, sejam públicas
ou particulares. Infelizmente, a miopia de muitos educadores para os
verdadeiros fins da educação tem provocado em grande número de docentes
uma atividade incompleta, dentro e fora da sala de aula, quando não nociva,
causando no alunado, durante o processo educacional defeituoso, pessoas
despreparadas para elaborar e realizar de forma plena e feliz o seu projeto
de vida. Na minha perspectiva, deve ser este o fim último da educação.
Conforme tentamos elucidar, o conhecimento antropológico sobre a
pessoa humana, nos dias que correm, encontra-se bastante débil.
Consequentemente, muitas pessoas, tanto nas famílias quanto nas escolas,
não sabem já o que é educar realmente o ser humano. Existe como que uma
cegueira que impossibilita descobrir e valorizar um dos principais objetivos
educativos do momento: o desenvolvimento e integração das potências
humanas – inteligência, vontade e afetividade – para uma ação correta da
criança. Essas potências se encontram hoje nelas completamente soltas,
independentes, atrofiadas ou hipertrofiadas e uma grande maioria dos
educadores não sabe que uma das suas principais missões é voltar a juntá-
las e harmonizá-las. Quando isso não acontece, provoca-se o que eu chamo
de um “desmonte” da pessoa humana. Hoje busca-se educar não mais a
verdadeira e única natureza humana, mas uma nova natureza, “não
humana”, criada pelo homem pós-moderno, que leva a valorizar de forma
excessiva a parte afetiva. O fracasso educativo se comprova, depois, na
imensa maioria das pessoas nos dias atuais.

53
A solução que propusemos, em ritmo de “emergência educativa”, para
enfrentar essa grave crise, talvez para muitos ainda inconsciente, foi
oferecer para as escolas um Projeto de preceptoria que de alguma maneira
tentasse suprir as lacunas que hoje os alunos apresentam no ambiente
escolar. Qualquer professor que enfrenta hoje várias salas de aula, desde a
educação infantil até ao último ano do ensino médio, vivencia um aluno cada
vez mais imaturo para a série/ano, muitos apresentam um quadro de
desinteresse, desligamento, desconcentração ou ainda, o que é pior, de
fraca aprendizagem. Estão sem qualquer perspectiva futura. Não
aprenderam a estudar, a se organizar, a se esforçar, a ser proativos. Está
mais do que comprovado nos inúmeros estudos acadêmicos que existem
sobre essa temática, que este triste quadro, na sua grande maioria das
vezes, está associado à família desse alunado que não sabe priorizar esse
acompanhamento escolar, que não sabe fazê-lo, porque não teve essa
mesma experiência quando foi estudante (se é que foi), ou ainda, porque
realmente tem atitudes mais de indiferença do que compromisso educativo.
Quando aconteciam esses desajustes escolares antigamente, o colégio
chamava a família, procuravam encontrar alternativas que ambas assumiam
de comum acordo, havia o que eu chamo de zelo educativo. Infelizmente,
isto se foi perdendo nas últimas décadas, e a saída para essa situação
lamentável foi um enfraquecimento educacional em quase todos os âmbitos.
As escolas foram se adaptando ao fraco alunado e diminuindo a exigência, a
dedicação e o próprio papel de educadoras. Os objetivos se tornaram
imediatistas, materialistas – conseguir a aprovação nos diversos exames de
seleção universitários almejando no futuro somente um bom emprego – e
mercantilistas. Instala-se um processo de enganação educativo, onde pais,
professores e alunos vivem num disfarçado conluio.
Por outro lado, tem escolas que não se entregam à pressão do
mercado. Arregaçam as mangas e tentam reagir. Oferecem a preceptoria na
escola. O mais interessante é perceber que os alunos gostam dela. De
alguma maneira, aquela natureza humana que estava “adormecida” – talvez
nunca tenha sido acordada desde que nasceu – acorda e sente uma nova

54
sensação de esperança. Experimenta um frescor de humanidade. Começa a
perceber que pode ser capaz de mudar o quadro negro que vê todos os dias
quando vai para a escola. Novas luzes começam a brilhar e sua autoestima
começa a aumentar. Agradece sinceramente ao preceptor aquelas
orientações e no começo realmente se esforça por colocá-las em prática.
Depois desanima, porque não é fácil perseverar num esforço que nunca se
aprendeu a realizar. Mas, depois de um período de pessimismo, tenta
recomeçar. Se o preceptor consegue realmente ganhar sua confiança e
amizade, por elas consegue superar essa fase e avança. Os resultados são
quase sempre positivos na preceptoria. Este é o grande trunfo que os
preceptores têm na mão. Com esse trabalho preceptorial perseverante, o
aluno começa a aprender a se organizar, a fazer um horário de estudo, a
colocar umas metas semanais e mensais de tempo de estudo, aprende a
resumir uma leitura, a fazer exercícios das disciplinas de exatas. Os
resultados escolares começam a aparecer rapidamente e a motivarão a
crescer. O sentido de responsabilidade vai se consolidando.

55
II – A formação das capacidades
socioemocionais

Como também já aludimos no primeiro capítulo, as potências humanas


da inteligência, vontade e afetividade só de desenvolvem e se aperfeiçoam
quando a criança aprende na prática, desde a mais tenra idade, as virtudes
éticas, hoje chamadas por alguns estudiosos de capacidades
socioemocionais. Quando isto se dá, a ação do ser humano se torna mais
fácil e com mais facilidade para enfrentar as dificuldades. Dentro do âmbito
da preceptoria, é impressionante observar como os alunos absorvem com
estrema rapidez a aprendizagem dessas qualidades socioemocionais.
Inicialmente, esse Projeto das virtudes na escola – intrinsecamente
unido ao Projeto de preceptoria - sugere que os alunos tenham umas aulas
teóricas sobre como praticar essas virtudes em sala de aula. Normalmente,
ocupa-se um horário de outra disciplina, previamente combinado com o
professor da matéria, de maneira a apresentar a teoria dessa virtude e
trazer para a reflexão/discussão sua dinâmica no dia a dia do aluno. É
comprovado que uma palestra meramente teórica sobre esse assunto
tornará o conteúdo enfadonho e desinteressante. O professor terá que saber
usar os novos recursos audiovisuais na sua apresentação –imagens
atraentes e atualizadas, vídeos curtos, tiras de quadrinhos, recursos de
PowerPoint, etc. – de maneira a despertar a atenção e a interação com a
turma. É muito importante que esse conteúdo seja fortalecido por várias
parábolas, histórias, contos, fábulas, pois a criança tem mais facilidade para
memorizar conteúdos muitos abstratos por essa via mais imaginativa. Os
exemplos das virtudes também têm que estar sintonizados com as suas
atividades do dia a dia, que, nessas idades, circundam-se principalmente
entre a sua casa e a escola. A boa aula terá que provocar a discussão, a

56
reflexão e a descoberta das boas atitudes, num clima de amizade e
confiança.
Posteriormente, os preceptores, que deram ou já assistiram a essas
apresentações, deverão, dentro do horário de preceptoria, agora de forma
personalizada, concretizar melhor como levar à prática essas virtudes,
combinando por escrito pequenos exercícios práticos. Mais para a frente,
daremos alguns exemplos desses exercícios. É muito importante que se
compreenda que o processo de interiorização das virtudes segue uns passos
muitos precisos. O quadro abaixo mostra a sequência de aprendizagem
dessas capacidades socioemocionais:

Figura 1: O processo de interiorização das capacidades socioemocionais.


Observação: ele é lento e precisa respeitar a sequência dos seus passos. Uma
aula/palestra gera um conhecimento importante, mas é insuficiente. Sem um trabalho
posterior de mudança de atitude, o primeiro passo se perde com o tempo. Essa mudança de
atitude se consegue concretizando pequenos exercícios práticos. Por fim, essas qualidades
só se consolidarão quando essa repetição de atos virtuosos se tornar um hábito consciente.
Fonte: autoria do autor (2012)

O quadro da figura 1 deixa claro que o trabalhado de preceptoria, além


de se responsabilizar inicialmente com aspectos mais acadêmicos e
organizativos, tem um foco mais formativo. A ideia de formação não se
refere, portanto, somente a de se fomentar uma certa capacidade de
conteúdos escolares, nem se quer a incentivar uma destreza técnica que
alguém seja capaz de adquirir, mas sim impulsionar disposições e
capacidades naturais de uma pessoa, de cultivar os talentos e dons que cada
um leva dentro de si. Todo o educador tem que ser consciente que cada
57
aluno tem que ser ajudado a descobrir sua própria identidade. Já Píndaro,
filósofo do século V a. C., afirmava aos seus pupilos: “Torna-te o que és”. O
professor nunca terá, portanto, que começar do zero, mas terá que ajudar o
aluno a descobrir as virtualidades que tem dentro de si. Outro pensador
contemporâneo, Sócrates, chamava a esse processo de maiêutica, de fazer
nascer a escultura perfeita que cada ser humano tem dentro de si, mas que
é preciso ir desbastando com muita paciência, a golpe de cinzel.
Hannah Arendt afirmava que os seres humanos “são o paradoxa
pluralidade de seres únicos”35. Os homens pertencemos a uma espécie
comum, somos sujeitos de deveres e direitos similares, levamos um nome
que nos faz reconhecermo-nos como semelhantes, mas, ao mesmo tempo,
cada um de nós guarda em si a consciência de ser um eu, uma identidade
irrepetível, um ser que é único.
Que é nessa perspectiva, educar? Aranguren 36 sugere que “cada
educador deve mostrar ao seu educando que o se pretende em todo o
processo educativo é fazer de cada um o melhor de si”. Portanto, fomentar a
motivação educativa é plausível desde que seja capaz de apontar para o que
é essencial. Deve incentivar o alunado a fazer as coisas não somente pela
recompensa externa (passar de ano/concurso, ganhar um vídeo game, uma
viagem, uma festa), mas pela recompensa interna, porque ele consegue
perceber que o maior beneficiário da boa ação é ele mesmo. O aluno tem
que ir percebendo que na medida em que ele se enfrenta a si mesmo, vai se
tornando mais capaz.
Existe, portanto, uma diferença muito grande entre um professor e um
mestre. O primeiro, acredita que a sua missão educativa é ensinar somente
uns conteúdos técnicos, que ajudem o seu alunado a conquistar futuras
vagas na universidade e futuros postos de trabalho. O mestre, entretanto,
vislumbra mais longe. Ele oferece, junto com os seus conteúdos, uma
maneira de entender o mundo; uma virtude que entusiasme a conhecer-se e

35
ARENDT, H. A condição humano. Barcelona: Ed. Paidós, 1994, p. 202
36
ARANGUREN, J. La idea de formación. Madrid: Pensamento e Cultura. n⁰ 33, 2004,
p. 40.
58
a conhecer realidades mais elevadas; ou ainda, uma amizade que ajude a
idealizar ser uma pessoa honrada, solidária, generosa.
Daqui nasce mais uma vez a importância da preceptoria. A verdadeira
estrutura humana depende de como entendemos as coisas na sua vida real,
prática. Os seres humanos atraímo-nos pelo cinema, pela literatura, pela
poesia, pelo teatro porque precisamos de histórias que nos identificamos.
Por isso, o que acaba sendo verdadeiramente educativo acaba sendo o
exemplo, a conversa, a convivência, e não só a teoria, uma boa aula, um
bom livro. O aluno precisa de modelos para se espelhar, para se projetar. Os
primeiros a formar deveriam ser os pais, depois os professores e finalmente
os irmãos, amigos e colegas. Mas, infelizmente, com a falta de referências
éticas precisas no mundo relativista do século XXI, dentro desses modelos
às vezes fica difícil encontrar os verdadeiros modelos que estimulem essa
imitação. Por isso, acredito que o papel do preceptor nos dias que correm
poderá suprir em parte a ausência desses modelos necessários para o bom
desenvolvimento humano. Do que acabamos de dizer, já podemos antecipar
uma ideia que iremos aprofundar mais para a frente: nem todos poderão ser
verdadeiros preceptores. Uma condição sine qua non para exercer essa difícil
função educativa é querer assumir o papel de guia, de ponto de referência,
de modelo ético, portanto de “preceptor-mestre”. Tem que acreditar e viver
de forma habitual uns princípios morais que não lhe pertencem, mas que
estão escritos no coração.
Quando não existe a preceptoria, como ocorre na imensa maioria das
escolas, os alunos ao não terem modelos onde se espelharem, demorarão
para aprender a viver as virtudes éticas ou não chegarão a vivê-las de forma
correta. Não desenvolvendo e integrando as potências humanas da
inteligência, da vontade e da afetividade, terão dificuldade de viver para o
outro, para compreender-se, para encontrar-se, para explicar sua própria
identidade. Acreditarão que os fins da sua vida serão fins meramente
egoístas e seus dotes naturais, competências e habilidades deverão ser
utilizados para esses mesmos fins. A desmotivação, mais cedo ou mais
tarde, aparecerá na sua vida. A vida só consegue recuperar sua verdadeira

59
luz quando a pessoa consegue sair de si e automotivar-se a desempenhar
seu papel social para o qual foi criado.

60
III – Como realizar a preceptoria:
instrumentos de trabalho

Um primeiro princípio da preceptoria é que ela só funciona num clima


de confiança. A preceptoria é um processo que exige uma abertura e
confiança do educando, que deve ser conquistada pelo preceptor. Para
alcançar esse objetivo, é necessário no primeiro encontro, previamente
agendado, que tanto o preceptor quanto o aluno saibam dar-se a conhecer,
dentro dos limites do razoável. A confiança é uma qualidade que só se
conquista quando existe um mínimo de conhecimento mútuo, de forma a
gerar certa admiração mútua. A confiança é fruto da verdadeira amizade, e
seu primeiro elemento desta é uma misteriosa afinidade que nasce entre
duas pessoas, oriunda dessa admiração. Tem pessoas que têm mais
facilidade para se abrir e outras não, seja por temperamento seja por uma
educação hiperprotetora e deficiente. Por isso, o preceptor terá que ser
muito cuidadoso, nesse primeiro momento, a fim de “desbloquear” possíveis
desconfianças, medos, inseguranças.
Um segundo princípio diz que o preceptor deverá ter a maturidade e
prudência necessárias para não inibir o educando, talvez porque apresenta
um jeito pouco acolhedor, sério ou grosseiro. Por isso, cuidar da forma de
cumprimentar, de sorrir, de se vestir, de se colocar em sintonia com o
aluno, cuidando, por exemplo, da linguagem e das comparações que sejam
didáticas, entre outras, é importantíssimo, pois temos que lembrar que uma
criança, devido à sua inexperiência vital, somada às vezes aos maus tratos
familiares, tendo a ver as pessoas adultos de forma errônea ou deformada.
Portanto, a forma simpática e leve de se relacionar no primeiro encontro
definirá a continuidade da preceptoria ou o seu término.
Um último princípio básico da boa preceptoria é que deve fomentar a
descoberta do aluno. Não se trata de impor valores, regras, proibições, mas
61
de ajudá-lo a se questionar, a pensar e refletir sobre as suas atitudes e
condutas e a tirar as próprias conclusões. Assim se educa na verdadeira
liberdade.
É muito conhecido, no campo da psicologia, o modelo chamado Janela
de Johari37, que nos poderá ajudar a entender melhor como desenvolver
uma conversa de preceptoria com a prudência e sabedoria convenientes:

Figura 2: A Janela de Johari (o nome é devido aos dois criadores do modelo:


Joseph e Harrington) Fonte: Western Training Laboratory for GroupDevelopment,
1955.

Como podemos observar na figura 2, existem 4 áreas que podem ser


trabalhadas numa conversa de preceptoria. A primeira, chamada de zona
aberta, é aquela que tanto o preceptor quanto o aluno conhecem bem.
Nesta área, está por exemplo seu desempenho escolar, seus interesses e
objetivos extraclasse ou extraescola, que são públicos e notórios. Conversar
sobre estes temas, ajudará em crescer em amizade, descontração e
empatia.

37
LUFT, Joseph; INGHAM, Harrington, TheJohariWindow, a GraphicModelfor
Interpersonal Relations, Los Angeles, University of California,(UCLA), Western Training
LaboratoryforGroupDevelopment, 1955.

62
Numa segunda área, existe a zona cega, aquela que o preceptor
consegue enxergar ou vislumbrar, seja por informações recebidas, ou então,
pela própria experiência educativa, por intuição, observação, mas o aluno
não conhece. É importante que este saiba que qualquer processo de
crescimento pessoal leva consigo a necessidade de tomar consciência
daquilo que não se conhece sobre si mesmo (descobrir sua zona cega). Em
geral, qualquer ser humano tem dificuldade em conhecer-se bem com
objetividade, por diversos motivos: orgulho, vaidade, complexos, traumas,
invejas. Precisa então de uma mão amiga para desmascarar o autoengano.
Para se ter um bom resultado neste trabalho, tanto o preceptor quanto o
aluno têm que ter uma grande dose de humildade pessoal. O preceptor,
para saber falar com cuidado, escolhendo as melhores palavras, o melhor
momento, usando de muita compreensão. O aluno, para saber ouvir, com
paciência e bom humor, não se levando muito a sério.
A terceira área é chamada de zona oculta, aquela que o preceptor não
conhece, mas o aluno sim. Nem sempre é fácil chegar nesta zona.
Dependerá do grau de sinceridade e de confiança do aluno. De todas as
formas, muitas vezes, o preceptor poderá provocar o seu despertar, fazendo
algumas perguntas, contando algumas experiências do passado que o aluno
se sinta estimulado a se abrir também, contando algum case de outra
pessoa de outra escola, etc. Mas, aos poucos, o aluno terá que ir percebendo
que qualquer processo de crescimento pessoal leva consigo a necessidade
de mostrar-se como se é com sinceridade e fortaleza. O fato é que, neste
campo de atuação, o preceptor terá que viver o chamado segredo natural de
oficio, não revelando para ninguém esse conhecimento, caso graves
extremos, que a ética estuda.
Por fim, a área chamada zona inconsciente, aquela que nem o
preceptor e nem o aluno conhecem. O aluno tem que estar convencido
também que qualquer processo de crescimento pessoal leva consigo a
necessidade de descobrir sua zona inconsciente, uma vez que ela poderá
estar sendo responsável por vários problemas que muitas vezes não se
relacionam. Dificuldades de concentração em sala de aula podem estar

63
associados com molezas exageradas durante o dia ou excesso de
computador; complicações no relacionamento familiar poderão estar ligadas
ao desconhecimento dos diversos tipos de temperamentos; estados de mau
humor ou ansiedade costumam estar relacionados à desordem material ou
temporal, fruto de uma educação superprotetora. Diante destas relações de
causa e efeito, é muito importante que o preceptor saiba explicá-las para o
aluno de maneira que assim ambos se sintam interessados em identificá-las
e encontrem soluções cabíveis.
Depois de termos aprofundado a forma de uma boa preceptoria,
vejamos agora alguns aspectos mais relacionados ao conteúdo. Existe algum
“checklist” de temas, de que um preceptor esteja obrigado a seguir?
Segunda minha perspectiva, acredito que toda a formatação humana seja
contraproducente. Como aludimos anteriormente, cada ser humano é único
e suas necessidades são variadíssimas. Para uns, será mais interessante
simplesmente ficar somente escutando, sem ter que necessariamente dar
alguma orientação. Para outros, o mais difícil será que falem alguma coisa e
nesses casos, uma pauta mínima será interessante. Em algumas
temporadas, para uns os estudos será o tema mais importante, para outros,
o que fazer em casa depois da escola talvez seja a sua maior angústia. Por
isso, diria que, incialmente, cada preceptor terá que ter o que se costuma
chamar de dom de línguas, isto é, terá que saber como levar cada conversa,
que não deve passar de 30 min.
Deixando essa questão muito clara, coloco abaixo uma pauta que
poderá ajudar em alguma conversa inicial, sobre o que considerei os seis
temas principais de uma preceptoria:

1) Sobre o ESTUDO:

- Estudo muito em casa porque me agrada e sei que é importante ( )


- O motivo mais importante que tenho para estudar em casa é a
exigência dos professores e porque não quero ficar de recuperação ou
reprovar ( )
- Tenho um horário para estudar que habitualmente cumpro bem ( )
- Aproveito bem o tempo que dedico ao estudo sem me distrair ( )

64
- Disponho de um lugar donde estudar e conto com os meios
necessários para fazê-lo bem (mesa, luz, ordem no quarto) ( )
- Quando estudo, costuma haver barulhos e interrupções ( a TV, os
irmãos, som, etc.) que me distraem ( )
- Antes de estudar, planejo o tempo que tenho disponível para fazê-lo
( )
- Antes de estudar, reúno tudo o que vou necessitar para trabalhar bem
(apontamentos, livros da matéria, papel de rascunho, etc.) ( )
- Ao estudar, costumo saber se estou trabalhando bem ( )
- Geralmente, cumpro somente as tarefas encarregadas pelos
professores e não costumo complementá-las com outras atividades ( )

2) TEMPO LIVRE:

- Dedico uma parte importante do meu tempo livre à leitura de livros e


revistas ( )
- Leio o jornal ou revistas semanais com frequência para ficar por
dentro do que está passando no país e no mundo ( )
- Passo bastantes horas vendo todo o tipo de programas na TV ( )
- Seleciono bastante os programas que vejo na TV. Para me distrair,
prefiro outras atividades mais culturais ( )
- Gosto muito de esportes e dedico todo o tempo que posso a praticar
algum ( )
- Fico bastante horas no computador ( )
- Tenho um hobby semanal (uma atividade lúdica) que realizo bastante
bem e de que estou orgulhoso ( )
- Não tenho nenhum hobby especial. Prefiro experimentar um pouco de
tudo ( )
- No meu tempo livre, me agrada atividades de entretenimento que não
me custam muito esforço, como ouvir música, ir ao cinema, ir à praia, etc
( )
- Costumo ter o dinheiro suficiente para fazer o que quero no tempo
livre ( )

3) RELAÇÕES COM O COLÉGIO:

- Estou contente com o meu colégio porque acho ele diferente dos
demais ( )
- As normas de disciplina são bastante razoáveis ( )
- Estou à vontade na maioria das aulas e aprendo sempre bastante
nelas ( )
- Recebo sempre muitas e boas orientações na escola do que estudar
em casa ( )
- O horário das aulas está bom e acho que não falta nada ( )
- Considero as instalações do meu colégio ótimas e tenho orgulho dele
( )
65
- As aulas oferecem bastante material didático tornando as aulas
motivadoras ( )
- O colégio costuma levar em conta as opiniões dos alunos ( )
- A maioria dos professores dominam a disciplina que ensinam ( )
- Me sinto bem com todos os professores, estou à vontade com eles e
me tratam bem ( )

4. RELAÇÕES COM A FAMÍLIA:

- Estou contente com o relacionamento dos meus pais ( )


- Usamos a casa um pouco como uma pensão. Realmente, vamos ali
para comer, dormir e ver TV ( )
- Vejo que meus pais têm um modo de entender a vida e estou de
acordo com eles ( )
- Em geral, eu diria que minha família está bastante unida ( )
- Acredito que meus pais confiam em mim e posso lhes falar de
qualquer tema ( )
- De fato, conto bastantes coisas para os meus pais ( )
- Tento ajudar meus irmãos e pais nos serviços de casa ( )
- Não me sinto muito bem em casa. Prefiro estar mais com os meus
amigos.
- Meus pais me exigem demais ( )
- Acredito que meus pais me compreendem bastante ( )

5. RELAÇÕES COM OS MEUS AMIGOS:

- Tenho muito amigos. Acredito que sou bastante social ( )


- Prefiro estar com poucos amigos íntimos que em um grupo grande ( )
- Meus amigos são quase todos do colégio ( )
- Com frequência, meus amigos fazem e dizem coisas que eu acho que
estão erradas ( )
- Quando estou com os meus amigos, costumamos perder o tempo
fazendo besteiras ou simplesmente não fazendo nada ( )
- Falo muito com os meus amigos via facebook ou celular ( )
- Amizade para mim é ter interesses comuns com o outro ( )
- Meus amigos e eu costumamos passar muito tempo na casa de algum
de nós ( )
- O melhor é não ter amigos íntimos, porque logo você fica preso a eles
( )
- Quando estou com os meus amigos, buscamos lugares que exista
muita diversão/animação, como salas de jogos, discotecas, bares, shopping,
etc ( )

6. RELAÇÕES COM DEUS:

66
- Não tenho religião formada. Acho que ela não é necessária ( )
- Rezo à noite e costumo ir à Missa/Culto com minha família sempre ( )
- Não sei quase nada sobre religião ( )
- Acho que a Igreja esconde muitos segredos e só agora estamos
descobrindo com os filmes ( )
- Penso que o importante é cada um seguir a sua religião e não deve
haver dogmas ( )
- Com meus amigos nunca falamos destes temas ( )
- Tenho desejos de aprender mais, caso apareça uma oportunidade ( )
- Não acredito que se deva acreditar no que os líderes religiosos
ensinam ( )
- Acredito em santos e sou devoto de um deles ( )

Como podemos ver acima, esta pauta foi feita tendo em conta as
questões mais comuns que costumam aparecer nas primeiras preceptorias.
Ela poderá ser respondida pelo aluno num primeiro encontro, para que a
preencha de uma só vez, colocando sim (S) ou não (N) em cada questão, ou
então, o próprio preceptor poderá ele mesmo fazê-lo por partes, conforme
as necessidades de cada aluno, de maneira a tirar mais informações de cada
tema. O importante é perceber que as perguntas não são impositivas ou
fechadas, mas é importante que o jovem possa discordar, possa ser neutro,
de maneira a abrir uma boa reflexão. Elas ajudam o preceptor a abrir um
caminho para o diálogo. O importante é que a partir delas, se descubra
quais os dois ou três pontos que se irá registrar na ficha de preceptoria.
Uma preceptoria sem registro, é uma preceptoria perdida. Além de ser
praticamente impossível guardar-se na memória todas as orientações depois
de várias preceptorias com vários alunos, pode dar uma impressão de pouca
seriedade. Em geral, o próprio aluno também gosta de anotar o que foi
concretizado da conversa, para poder se lembrar depois e trazer para a
conversa seguinte. Hoje em dia, com a universalização dos telefones
celulares, parece ser o recurso mais prático para esse registro.
Aprofundemos, agora, como concretizar melhor a partir desses pontos de
discussão, alguns campos de luta.
Parece ser muito produtivo auxiliar o aluno a fazer um horário
semanal, no qual se inclua as atividades fixas e variáveis. De alguma

67
maneira, vamos ensiná-lo na prática a se preocupar com os dois primeiros
pontos da pauta anterior: o estudo e o aproveitamento do tempo livre.
Abaixo, apresentamos um esquema de horário que poderá ser muito
útil para explicar numa sala de aula ou numa conversa de preceptoria sobre
a importância de se viver uma agenda. Nessas idades, como as crianças têm
muito mais tempo livre do que coisas para fazer, pode lhes parecer que não
necessitam viver um horário semanal. Entretanto, depois dessa explicação,
costuma ficar mais fácil convencê-los que é nessa idade do fundamental II –
idade propícia para iniciar a preceptoria (a partir dos 10/11 anos) – que se
deve começar a fomentar o hábito de viver o horário. Quem inicia a luta por
organizar-se nesse período da vida, perceberá depois que parecerá natural
ter essa preocupação e realizá-la sem “vitimismo”. Caso contrário, depois se
verifica que existe uma enorme resistência para se limitar no tempo e uma
inclinação para fazer somente o que se gosta.
Pode ser mais eficiente fazer com que o aluno tente fazer o horário
sozinho em casa com mais calma, junto dos pais, mas também dá bom
resultado montá-lo junto com ele, numa conversa amigável na preceptoria.

IDEIAS PRÁTICAS PARA ORIENTAR UMA AGENDA SEMANAL


1. Vantagens de usar uma Agenda:

- Ter mais tempo (esticar o tempo)


- Ter tempo para tudo (não só para aquelas coisas que nós achamos
importante)
- Ter iniciativas: vencer a passividade e rotina
- Tirar tensões e stress: diluir preocupações; ser responsáveis (não
esquecer os compromissos e dar conta do recado)
- Fugir do sentimentalismo: só fazer o que se gosta e fugir (adiar) o que
custa
- É a forma mais eficiente de adquirir força de vontade
- Ser ordenado: Regra de ouro da ordem: “Tudo tem um quando. Faço já”
- Conseguir alcançar todos os objetivos propostos
- Achar a Deus no dia a dia: Deus vive no meio da paz e da serenidade e
não na bagunça

68
2. Regras de ouro do tempo

- Conforme o tempo passa teremos sempre menos tempo e mais coisas


para fazer: crise que costuma dar no início da faculdade.
- Trabalhar em “função das coisas” X trabalhar em “função do tempo”; “o
ótimo é inimigo do bom”; “trabalhar com a máxima perfeição possível”;
perfeccionismo
- Flexibilidade: saber julgar a prioridade das coisas em função do tempo
(futuro) X responsabilidade pessoal de dar conta das coisas; hierarquia
de valores
- Deus, os outros, e eu

3. Inimigos da Agenda

- Preguiça: exige esforço planejar, pensar, anotar, comprometer-se, viver o


planejado
- Egoísmo: tendemos a só pensar nas nossas coisas ou a dar prioridade
primeiro para as nossas coisas e só depois para os outros (e para Deus),
quando sobra tempo
- Frivolidade: viver sem rumo, sem objetivos, em função do gosto (andar
num deserto, sem estrada, para lugar nenhum)

4. Passos de uma boa Agenda

* 1º passo: horário fixo semanal: coloque todos os seus compromissos


fixos obrigatórios (aulas, trabalho, línguas, esportes, meios de formação,
momentos para Deus, refeições, horário para dormir e acordar, para
descansar, cultura, lazer) num horário escrito (tarefa que se faz
normalmente no início de cada semestre ou ano)
* 2º passo: liste obrigações variáveis: horário de estudo, dentista
(saúde), estar com os amigos, compras, barbeiro, responsabilidades
familiares, eventos profissionais e culturais, aniversários (comemorações),
etc
3º passo: encaixe as obrigações variáveis nas obrigatórias com
realismo: para isto são necessárias duas medidas:
1º) ter uma agenda semanal (que dê para olhar a semana toda)
2º) ter um dia e horário fixos por semana para sentar e planejar-se
escrevendo na agenda: é o momento mais importante da semana!
4º passo: Replanejar-se em função dos imprevistos, olhando muitas
vezes a agenda por dia, todos os dias da semana.

Acredito que valerá a pena exemplificar melhor como desenvolver


esses passos anteriores. A nível de exemplo, vou usar um aluno do ensino

69
fundamental II, que estuda no período da tarde, portanto, com mais tempo
livre que um aluno do ensino médio, que em geral tem aulas e laboratórios
em alguns horários dos dois períodos. Na figura abaixo, veremos como
algumas atividades fixas foram encaixadas numa semana:

Figura 3: Como fazer um horário fixo. Fonte: próprio autor (2014)


Observação: Como se pode observar, um aluno do fundamental II que estuda de
tarde, depois que fixou o horário para acordar e deitar, caso não faça nenhum curso de
línguas, ou de esportes, tem muito tempo livre antes e depois da escola, que é preciso
ajudar a administrá-lo.

Depois que se listam e encaixam as atividades fixas num horário


semanal, antes de se listar as atividades variáveis, é importante calcular
quantas horas livres se tem e como se vai distribuir essas horas nas
possíveis atividades. Chamamos a esta atividade de fazer um “orçamento de
horas”, isto é, colocar uns limites para cada atividade, como se deve fazer
habitualmente com o dinheiro, a fim de que não falte quando necessário.
Desta maneira, vai-se ganhando consciência do valor do tempo e da
hierarquia de valores na hora de escolher a atividade e quanto tempo se
deve dedicar para cada coisa.
O mais difícil, nesta fase, é provar para a criança que ela precisa
dedicar por semana umas metas de horas de estudo. Como a maioria das
crianças não sente a necessidade de estudar por livre e espontânea vontade,
mas somente quando é cobrada em lições de casa ou provas, é preciso
70
ajudá-la a estipular um mínimo de tempo de estudo, que varia por
série/ano.
Abaixo, temos um quadro que sugere esse mínimo de horas de estudo.
Esse mínimo foi calculado em função do bom desempenho dos bons alunos
de forma geral.

Figura 4: Tempo mínimo de estudo para conseguir um bom desempenho escolar.


Fonte: o próprio autor (2015).
Observação: Esse mínimo foi calculado em função do bom desempenho dos bons
alunos de forma geral.
Tendo claro, este mínimo de estudo, ficará mais fácil fazer o que
chamamos anteriormente de “orçamento de horas” para um aluno do
fundamental. Abaixo, apresentaremos um exemplo de como um excelente
aluno do 8º ano do ensino fundamental de um colégio distribuiu seu tempo:

71
Figura 5: “Orçamento de horas” do tempo livre Fonte: o próprio autor (2015)

Analisando a distribuição das atividades variáveis no tempo livre,


observamos que o nosso aluno soube garantir o mínimo de tempo de estudo
adequado para o seu ano (8º ano do fundamental II), soube valorizar um
tempo para fortalecer ou fomentar novas amizades – nessas idades ainda
confundem amizade com coleguismo, e lhes custa entender que a amizade
exige sacrificar o tempo do seu lazer para estar com os amigos, para fazer
novas amizades, para ajudar os demais nos estudos, etc – e ainda podemos
destacar o tempo que estipulou para investir na cultura (pesquisas extras e
leituras) ou no espírito de serviço no ambiente familiar. Vejamos como ele
distribuiu o tempo das atividades variáveis no meio das atividades fixas:

Figura 6: Horário semanal completo: atividades fixas e variáveis Fonte: o próprio


autor (2015)

Acostumar um jovem de 13 anos a viver um horário como o


apresentado acima pode parecer, à primeira vista, algo muito difícil e
complicado. Efetivamente, se antes dessa idade nunca foi ajudado a
elaborá-lo e vivê-lo, é de verdade exigente e pode custar um pouco, como
foi o caso desse nosso jovem. Entretanto, depois de 3 meses de esforço,
dedicação, várias conversas de preceptoria e de estímulo, como deve fazer
um técnico esportivo com o seu atleta, pode-se comprovar que nosso jovem
conseguia ir se acostumando a essa nova exigência que leva à maturidade.
Depois de um tempo, ele mesmo testemunhava para os amigos que tinha
72
ficado com uma sensação de estar rendendo mais o tempo, que tinha ficado
mais motivado, com mais energia para aplicar-se às tarefas mais árduas.
Outra forma de concretizar ações mais práticas em torno aos temas
que falamos anteriormente para a preceptoria, concretamente os ligados ao
relacionamento com a escola, com a família e com os amigos, é ajudarmos
os alunos a conhecerem-se melhor. Infelizmente, o desconhecimento sobre
o próprio temperamento é algo que comprovamos em todas as preceptorias
e em diversos cursos para professores. Os motivos que levaram a educação
a este afastamento da psicologia podem ser vários, e não iremos aprofundar
neste capítulo, tendo em vista o limite de espaço. Mas é fato que tanto as
crianças quanto os adultos quando estudam o seu modo de ser – se são
extrovertidos ou introvertidos, se são ativos ou passivos, se são secundários
ou primários, se são racionais ou sentimentais – sentem-se felizes. De
alguma maneira, nasce um sentimento de aceitação do próprio ser, que não
escolheram, mas o experimentam desde que nasceram. Rapidamente,
conseguem descobrir os porquês de algumas reações que sentem, de alguns
pensamentos que lhes incomodam, de alguns desgastes de relacionamento
com os pais, irmãos, namorados(as), amigos(as). Não poderemos
desenvolver neste capítulo alguns métodos que se podem utilizar 38, mas o
mais importante é saber que um fator que terá um peso considerável na
definição da própria identidade do aluno é o temperamento. Mas um
questionamento deverá ser provocado em algum momento da preceptoria:
Você escolheu o seu modo de ser? Você acha que ele existe por acaso ou
para facilitar a realização de determinada função/missão nesta vida? Será
que pode existir uma combinação entre o seu modo de ser e a sua futura
profissão?
Para efeitos de exemplificar essa reflexão e a sua importância na
preceptoria, mostramos abaixo a relação que pode existir entre alguns
temperamentos e as possíveis escolhas profissionais futuras.

38
Costumo sugerir fazer o teste do Método Keirsey pelo celular, por meio do seguinte
endereço eletrônico: http://www.16personalities.com/br/teste-de-personalidade. Para maior
interesse, cfr. Método Keirsey: http://www.keirsey.com; outro método, poderá ser
encontrado no livro de COSTA, A. M. Conheça o seu Filho. São Paulo: Ed. Quadrante, 1995;
73
Figura 7: Algumas opções profissionais relacionadas com alguns tipos de
temperamento39

Para entender um pouco melhor o que queremos mostrar na figura 7,


daremos algumas pinceladas rápidas sobre os 4 tipos de temperamento,
segundo o método Keirsey. O do tipo SP [Sensation (observador) /Probing
(sem limites)], costuma-se comparar ao artista, ator, pintor, jornalista,
enfim, pessoas que vibram com a ação, com a prática, com a rua, mas que
não gostam de se submeter a um horário, a uma rotina, a um esquema
predefinido. Naturalmente, as profissões expressas acima se adequam
perfeitamente a esse perfil SP. O do tipo SJ [Sensation / Judgement(gosta
de controlar tudo)], é conhecido por ser o cumpridor do dever. Pessoa
responsável, planejadora, serviçal, líder, abnegada, social.
Consequentemente, terá uma maior inclinação para profissões como
administrador, contador, alguns trabalhos de advocacia, gerências diversas,
educação, isto é, tudo o que envolva “dar conta do recado” e se sentir
confortável numa rotina de trabalho e liderança. Já o de temperamento NF
[intuition(avoado, pensador) / feeling (sentimental)] terá uma propensão
para ser mais empático, amigo e confidente das pessoas, elevada
inteligência emocional, investe em tudo o que é mais pessoal, idealista,
solidário, sofre pelos mais necessitados e excluídos, etc., mas não se

39
Cfr. SILVA, M.L.R. Personalidade e Escolha Profissional. Subsídios de Keirsey e Bates
para a orientação vocacional. São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária Ltda, 1992.
74
preocupa com os horários, compromissos, prazos, deveres mais rotineiros.
As profissões apontadas na figura 7 se encaixam melhor a pessoas com este
perfil. Por fim, o NT [intuition/ Thinking (racional)] é o que descansa
estudando, pesquisando, lendo, discutindo. Detesta improviso, pouco rigor,
conversa inútil, superficialidade. Sente-se superior aos demais, devido ao
elevado grau intelectual, mas tem enorme dificuldade de relacionamento.
Sua inteligência emocional é muito baixa e sofre com isto, porque acaba
tendo poucos amigos, quase sempre do mesmo jeito dele. Pessoas assim,
irão se destacar nos estudos, nos concursos, nos empregos que exigirão
pessoas competentes, inovadoras, visionárias. Terão que ser ajudadas a
conviver e aceitar as diferenças. Profissões mais técnicas parece que são as
que se adequam mais a este perfil, como apresenta a figura 7.
Um preceptor que sabe um pouco desta ciência, poderá,
evidentemente, orientar melhor os alunos em como descobrir, de acordo
com o seu perfil psicológico, as opções profissionais mais próximas aos seus
talentos e dons. Hoje em dia, com as inúmeras alternativas de trabalho e
com o atraso na chegada à maturidade, o aluno tende a ficar angustiado
com o seu futuro, causando muitas vezes desânimo e desmotivação nos
estudos. Além destas questões profissionais, conhecer com certa
profundidade os diversos tipos de temperamentos poderá ajudar ainda em
questões muito comuns nessas idades, como aceitar-se como se é,
compreender aos demais e respeitar a diversidade cultural e social, fazer
novos amigos diferentes do seu jeito de ser, valorizar a complementariedade
da vida social. Comprava-se com relativa frequência nas preceptorias que
muitos jovens não têm ninguém para conversar, para abrir-se, para tirar
suas dúvidas existenciais, sociais, culturais, políticas e quando encontram
alguém que esteja disposto a escutá-los e a querê-los de verdade, ficam
muito felizes e agradecidos.
Concluindo este item III, fomos percebendo que o seu campo é muito
vasto. Aos poucos, o leque de opções foi-se abrindo cada vez mais e na
medida que vamos tendo mais prática nesta modalidade educativa, iremos
ganhando mais rapidez para descobrir qual o melhor caminho a trilhar.

75
Fomos mostrando alguns instrumentos que facilitam muito tornar essas
conversas mais produtivas e transformadoras, como aprender a realizar um
bom horário semanal, fazer um teste de temperamentos, refletir como ter
um melhor relacionamento com os demais. Outras áreas que poderiam ter
sido aprofundadas, mas não temos espaço para desenvolver, seria abordar
como conseguir uma maior concentração, memorização e atenção em sala
de aula e no estudo, como fazer um resumo enquanto se estuda as matérias
mais “decorebas”, como escolher um bom livro de literatura, como escolher
a melhor estratégia para superar as dificuldades das matérias que exigem
mais exercícios no estudo em casa, entre outras.
Gostaria de terminar frisando um último instrumento que de alguma
maneira fortalece e engloba todos os anteriores: a lista de exercícios para
aumentar as capacidades socioemocionais, conforme já foi aludido na
introdução deste capítulo.
De acordo como já foi explicado, não basta ensinar teoricamente as
virtudes, mas precisa ensiná-las numa vivência prática, por meio de
concretizações personalizadas, até tornarem-se hábitos interiorizados. Todos
os campos apontados anteriormente – relações com o estudo, com o tempo
livre, com os familiares, amigos, etc. – são fontes de práticas de virtudes. O
preceptor, diante daquela pauta de temas de preceptoria, enquanto
conversa com o aluno deverá ir identificando alguns pontos que poderão ser
decisivos na formação do caráter do aluno. Depois, deverá junto com o
interessado, combinar alguns pontos que serão os seus pontos de luta
semanal. Abaixo, na figura 8, exemplificamos uma possível lista de
exercícios que poderão ser concretizados numa preceptoria:

76
Figura 8: exemplos de capacidades socioemocionais que poderão ser concretizadas
numa preceptoria. Dependendo da idade, podem ser escolhidos entre 3 (6º ano) e 10 (pré-
vestibular) exercícios diários de virtude. As quatro virtudes principais, chamadas cardeais,
são inspiradas na perspectiva Aristotélica. Fonte: o próprio autor (2008).

Para melhor entendimento da dinâmica das virtudes, aconselho a


leitura da tese do meu doutoramento 40. Mas como não temos espaço para
desenvolver essa temática, gostaria de comentar rapidamente os exercícios
escolhidos acima para captar mais uma vez a importância da preceptoria na
escola e como ela poderá efetivamente produzir profundas transformações
nos resultados escolares e existenciais dos alunos.
Como podemos comprovar na lista acima, buscou-se escolher alguns
pontos desde que a pessoa acorda até que vai dormir num único dia. O
primeiro exercício – “Acordar logo que o despertador toca” - é uma das
batalhas mais difíceis na medida que as crianças crescem. Quando são
pequenas, essa luta pode não custar tanto, mas com o despertar da
adolescência, a preguiça (aversão ao esforço) aumenta e na medida que vão
dormindo mais tarde e acordando mais cedo, essa luta costuma ser decisiva
para enfrentar com mais ou menos entusiasmo um dia de trabalho. Por isso,
essa pode ser uma ótima sugestão para iniciar uma luta pelas capacidades
socioemocionais. O mais interessante é que, depois, essa capacidade de
autodomínio matinal irá produzir reflexos positivos em outros horários ao

40
http://www.educacao.ufrj.br/ppge/ppge-teses-2008.html
77
longo do dia, porque se adquiriu uma maior capacidade de dizer “não” para
o prazer imediato. Esse é o efeito que as virtudes afetivas (temperança e
fortaleza) produzem com o aprendizado das virtudes. O segundo exercício
“Fazer a cama de manhã”, é também uma prova difícil de passar nessas
idades, quando ainda são muito protegidas e mimadas pelos pais. Mas é
experimentalmente comprovado que uma criança que vai se esforçando para
realizar esse tipo de serviço ganha uma maior independência afetiva e uma
maior força de vontade para se aplicar nos estudos e em outros serviços
caseiros. Quando se escolhe “ler o jornal todos os dias” almeja-se antes de
tudo provocar nos jovens maiores capacidades reflexivas e de juízo crítico.
Obviamente, hoje a leitura destes periódicos já se dão nessas idades pela
via eletrônica e não há problema nenhum disso. O que sim é importante é
que os preceptores saibam trazer algumas dessas leituras para a reflexão
semanal – caso seja uma preceptoria semanal, considerada ideal, para
existir maior acompanhamento e continuidade na luta -, pois, dessa
maneira, além de motivá-los a lerem, estarão ensinando a preparar uma
conversa mais séria e a estruturar o pensamento, coisa rara hoje em dia
entre os jovens. Quando se aponta para o exercício de “dedicar um tempo a
ajudar alguém” vislumbra-se fomentar e fortalecer aquele movimento
afetivo centrífugo em direção a um outro, já comentada anteriormente,
autêntica revolução copernicana nos dias de hoje, uma vez que educação
familiar promove muito mais uma força afetiva centrípeta, buscando
satisfazer um ego do que servir aos demais. O exercício cinco já foi muito
comentado – “fazer um horário de estudo” -, mas busca no fundo torná-lo
vivo, constante, pois da teoria à prática sempre existe uma grande
diferença. No ponto seis, o que se pretende é vencer a timidez, problema
crescente entre os jovens, devido talvez ao culto da imagem nos meios de
comunicação social. Muitos alunos não perguntam suas dúvidas em sala de
aula ou numa aula de reforço porque têm vergonha ou medo de serem
taxados de pouco inteligentes, ou atrasados. Esta inibição terá que ser
superada aos poucos, colocando este ponto de luta na lista diária. Moderar o
tempo de internet com todas as suas possibilidades parece ser uma

78
necessidade cada vez mais premente, pois existem estudos que comprovam
que o excesso dessa superestimulação pode afetar o desejo natural de
aprender e viciar a atenção para ligar-se somente para os impulsos mais
prazerosos, o que não acontece numa matéria escolar mais difícil ou pouco
didática. O oitavo exercício – “planejar o estudo” – é um degrau a mais na
exigência nos estudos, que deve ser fomentado com os alunos de ensino
médio. Deve existir um controle não só das horas de estudo semanal
(exercício 5, comentado anteriormente), mas das horas que se estudam por
disciplina, de maneira a poder se avaliar corretamente o esforço cometido e
os resultados posteriores. Se um aluno estuda 10 horas de matemática e
tira uma nota bimestral no boletim bem abaixo da média e tira uma nota
acima da média em português com também 10 horas de estudo ou menos,
esta performance indica que esse aluno terá que modificar sua estratégia de
estudo para obter outro resultado, talvez estudando 15 horas de matemática
e 5 em português. Obviamente, este acompanhamento do estudo diário
pode ser algo enfadonho para um aluno mediano, por isso é muito
aconselhado colocar este exercício para enfraquecer a resistência ao
esforço41. O nono exercício aponta para “pedir conselho aos mais velhos”. A
boa autonomia hoje é confundida com independência, libertinagem,
espontaneidade. É preciso nas preceptorias desmascarar mais este
autoengano de uma liberdade desvinculada da verdade. Infelizmente, muitas
correntes pedagógicas das últimas décadas, levadas mais por visões
distorcidas e ideológicas do que por estudos sérios de antropologia,
espalharam mentiras educacionais que desfiguraram a liberdade. Uma delas
é que a criança constrói melhor seu conhecimento se o educador fomenta
uma espontaneidade quase ilimitada no processo de aprendizagem. A
afirmação “o importante é deixá-la ser autêntica e fazer o que gosta, pois
assim obterá maior sucesso escolar” costuma ser a música sedutora. Outra
postura mais sedutora ainda é afirmar para os educadores que reprimir
sentimentos, corrigir assertivamente, castigar razoavelmente, podar

41
Existe atualmente um aplicativo para celular e para computador que já facilita este
acompanhamento. Cfr em www.aprovadoapp.com.br

79
iniciativas desmedidas poderá provocar desequilíbrios psicológicos
irreparáveis e afetar a aprendizagem e a autoestima da criança. Para
desmascarar estas mentiras, é preciso recordar os elementos básicos da
verdadeira liberdade humana. Ser livre é uma capacidade, é um poder
escolher, que poderá ser usado tanto para o bem quanto para o mal.
Portanto, exigirá sempre muitos cuidados e principalmente o uso da
racionalidade. Sendo um poder, a liberdade exige aquisição desse poder, de
forma tanto racional quanto volitiva. Quando deixamos o aluno ser
“autêntico”, isto é, espontâneo, o resultado poderá ser lindo e até proveitoso
em algumas ocasiões, mas na maioria das vezes será irracional e absurdo.
Os sentimentos espontâneos são como as teclas de um piano. Não existem
notas musicais boas ou más, mas as que se harmonizam dentro de uma
partitura. A criança tem que aprender que a verdadeira liberdade é aprender
a partitura da afetividade. Primeiro na teoria, com reflexão e
aconselhamento, e depois pelo aprendizado prático das virtudes éticas. É
isto que se aconselha neste nono exercício. Por fim, quando sugerimos no
décimo “mudar de programa de TV/Internet” estamos prevenindo o jovem
para uma das mazelas mais destruidoras do verdadeiro bem: a pornografia.
Se não houver um esforço para não olhar aquilo que lhe faz mal, com o
tempo, terá muita dificuldade para viver a ética do respeito. Não podendo
me estender neste assunto, aconselho a leitura da entrevista que dei para
um jornal do Paraná – A Gazeta do Povo – na qual aprofundo mais nesta
temática42.
O que espero que tenha ficado evidenciado ao descrever rapidamente
alguns dos exercícios que promovem e fortalecem as capacidades
socioemocionais é que a preceptoria abarca muitas facetas e preocupações
de um jovem. Não tem somente uma finalidade acadêmica, mas busca
também uma excelência humana. É por isto que costumo dizer que a
preceptoria não é útil somente para os que têm dificuldade nos estudos, mas
deve ser oferecida para todos os alunos que queiram sonhar com ideais mais
altos.

42
http://www.portaldafamilia.org/artigos/artigo826.shtml
80
81
IV - Quem precisa da preceptoria?

Existe um ditado que afirma que “Nenhuma pessoa é bom juiz em


causa própria”. Efetivamente, todos precisamos da ajuda de um conselheiro,
de um orientador, de um coaching, se queremos crescer humana e
psicologicamente. Muito mais uma criança que está em pleno processo de
amadurecimento em todas as suas potências. Por isso, como dizíamos, todos
precisam da preceptoria. Infelizmente, a grande maioria talvez não sinta
necessidade dela no início. Acredita que sozinho poderá superar as
dificuldades da vida. Entretanto, a implantação do Projeto de preceptoria nas
escolas comprova que o crescimento dos interessados é exponencial. Muitos
vão comunicando vantagens, novas descobertas, várias conquistas nas
capacidades socioemocionais, que aos poucos contagiam aos mais céticos. O
bem é difusivo e quando os alunos melhoram não só no rendimento escolar,
mas no relacionamento familiar, na preocupação cultural, na superação da
timidez, então extravasam de forma habitual e convincente para os demais
colegas seu valor.
Um grande inimigo da preceptoria é o que costumo chamar de
“anorexia espiritual”: as pessoas têm necessidade de ajuda, mas não a
sentem, como uma pessoa comum que sofre de anorexia biológica tem
necessidade de comer, mas porque se sente gorda, reprime o instinto
alimentar.
No meu livro anterior43 já apontava:

“Atualmente, diante de uma cultura materialista e relativista, na qual


reina um modus vivendi de falta de valores e da promoção de desvalores
ou antivalores, a descoberta e a conquista dos verdadeiros valores
humanos se tornou mais confusa para as novas gerações. Se, segundo a
definição acima exposta, os valores eram o fim da motivação, pode-se
43
MALHEIRO, J. Escola com corpo e alma. Um manual de ética para pais, professores
e alunos. Curitiba: Editora CRV, 2014
82
dizer que hoje, muitas necessidades ditas normais para todo o ser humano
podem estar se tornando apenas latentes, escondidas e reprimidas,
provocando uma complicação nova para a motivação humana. Chamo a
este fenômeno de “anorexia espiritual”. Devemos considerar que a
anorexia psicológica é uma síndrome muito comum, principalmente entre
os jovens, caracterizando-se como uma anomalia que os leva a não comer
por sentir que estão obesos, por mais que continuem tendo a necessidade
de alimentação. Da mesma forma, poderíamos dizer que muitos jovens nos
dias atuais continuam tendo necessidades espirituais, que são vitais para
todo ser humano, mas não as sentem suficientemente. São anoréxicos
espirituais. Têm necessidade de muitos amigos, mas, na prática, não
sentem realmente tal necessidade, porque sentem mais desejos de
conforto e de prazer, e por isso os buscam mais nas redes sociais. Têm
necessidade de verdade e de coerência, mas não a sentem
suficientemente, e facilmente desistem na hora de ler um livro um pouco
mais difícil ou a refletir sobre alguma acusação de consciência. Têm
necessidade de transcendência, de religião, mas não a sentem de modo tão
forte como para buscá-la, e sucumbem diante de uma pressão negativa
dos amigos ou dos meios de comunicação. ” MALHEIRO, J (2014), p. 112

Diante do que foi dito acima, a instituição de ensino que promover um


Projeto de preceptoria, pelo menos no seu começo, terá que contar com
uma certa dose de paciência para convencer os pais, os professores e os
próprios alunos da necessidade desta novidade educativa. Muitos no início a
confundirão com o reforço escolar, com aula particular, com aconselhamento
de autoajuda, com a monitoria de estudos. Penso que qualquer um que
tenha lido atentamente este capítulo terá percebido que o que se oferece é
muito mais do que isso.
A fim de driblar essas dificuldades de comunicação, é muito
aconselhado que se promova uma apresentação rápida para os pais, talvez
aproveitando uma reunião no colégio, a fim de expor suas vantagens. Outra
estratégia, alinhada com a anterior, será colocar no site do colégio o que se
faz na preceptoria, quem são os preceptores, depoimentos de outros pais e
alunos, testemunhando seus avanços e melhoras. Os professores também
têm que ser convencidos nas reuniões pedagógicas de suas vantagens, de

83
maneira que também possam estimular seus alunos a buscarem esse
recurso de veras eficaz. Por fim, a comunicação dos próprios preceptores em
sala de aula e nos corredores da escola também se demonstrou muito
eficaz, principalmente no início de cada semestre, colocando cartazes nos
corredores da escola, espalhando folhetos explicativos, entre outras
estratégias.
Concluindo, diria que, sem dúvida, a melhor propaganda em todas as
escolas que foram implantadas esta modalidade educativa de vanguarda foi,
como já foi dito, o “boca a boca” dos alunos que reconheceram profundas
melhoras em si mesmo. Quando eles encontram mestres que de verdade
demonstram verdadeira amizade, respeito, carinho, interesse, zelo
educativo, então comunicam rapidamente aos demais colegas e estes a
outros.
Surge então a temática do próximo capítulo: será que todo o professor
tem condições de chegar a ser um preceptor? Um mestre-preceptor? Um
professor com o verdadeiro zelo educativo? Como definir o preceptor ideal?
A capacidade de um preceptor será um dom ou um talento a desenvolver?

84
3) As qualidades do preceptor. O
zelo Educativo. Como formar
preceptores.

RESUMO: O presente capítulo traz para a reflexão quais são os pré-


requisitos de um verdadeiro preceptor. De forma categórica, o autor afirma
que nem todo o educador poderá ser preceptor, pois se a sua principal
função é iluminar, antes terá que recorrer à fonte da luz. O gerador dessa
luz são as virtudes, é o esforço ético por vivenciar as principais qualidades
éticas, também chamadas de capacidades socioemocionais. Quando esse
esforço existe, então nasce o zelo educativo, verdadeiro motor do preceptor
mestre. Em um segundo momento, o autor aprofunda nas virtudes
específicas da preceptoria e concretiza algumas formas práticas de exercitá-
las. Por fim, o presente capítulo fará uma costura com os dois capítulos
anteriores e esclarecendo melhor a definição de preceptoria da escola
apresentado no primeiro capítulo.

Palavras-Chave: capacidades socioemocionais – zelo educativo –


preceptoria na escola – virtudes do preceptor

85
I – Introdução

Existe um princípio que diz: “Ninguém dá o que não tem”. Se um


preceptor tem que ser um ponto de referência, assumir um papel de guia,
de modelo ético, portanto, tornar-se um “preceptor-mestre”, é inevitável
que comecemos este capítulo afirmando de forma categórica que nem todos
os educadores poderão ser preceptores. Um verdadeiro preceptor tem que
acreditar e viver de forma convicta, comprometida e feliz uns princípios
morais que não lhe pertencem, mas que estão escritos no seu coração 44.
Infelizmente, numa cultura relativista, que domina nossa sociedade já faz
muito tempo, na qual muitos não acreditam que existem esses valores
perenes, imutáveis e objetivos, ou são céticos diante de tantos valores em
crise, pode estar mais difícil de fato assumir esse papel de preceptor. Por
outro lado, qualquer ser humano que reflita um pouco com honestidade
diante do que ocorreu nesse período de desordem moral, comprovará que o
prejuízo social foi muito maior e incalculável. No momento que o homem se
colocou como um “deus”, determinador desses falsos valores, nesse mesmo
momento, o caos social foi implantado. Não se tornou mais feliz, mais
moderno, mais humano, mais amigo. Pelo contrário, tornou-se destruidor da
própria humanidade e do sentido da sua vida. Mas por que o homem não
quis assumir, reconhecer, valorizar aqueles princípios que de alguma
maneira lhe marcavam o limite da estrada que o conduziria com segurança,
com serenidade, com mais facilidade ao bem, à realização, à felicidade?

44
SÓFOCLES. Antígona. São Paulo: Editora L&PM Editores. 1999. Nesta obra, Antígona
desobedece ao Rei Creonte, e resolve enterrar seu irmão Polinície, que depois de tentar dar
um golpe de estado em Tebas é morto. Antígona, quando se defende diante do Rei, diz:
“Descumpri mesmo a tua lei. Quer saber por quê? Porque não foi Zeus que a proclamou!
Não foi a Justiça, sentada junto aos deuses inferiores; não, essas não são as leis que os
deuses tenham algum dia prescrito aos homens, e eu não imaginava que as tuas proibições
fossem assaz poderosas para permitir a um mortal descumprir as outras leis, não escritas,
inabaláveis, as leis divinas! Estas não datam nem de hoje nem de ontem, e ninguém sabe o
dia em que foram promulgadas. Poderia eu, por temor de alguém, qualquer que ele fosse
expor-me à vingança de tais leis? ”
86
Esta questão é muito antiga e exigiria muitas páginas para respondê-la
com profundidade. Por isso, coloquemo-la de uma outra forma, talvez mais
didática: por que o homem moderno, que andava numa estrada asfaltada,
sinalizada, segura, tranquila, certeira, com companhia e ajuda de outras
pessoas amigas, que levava para um destino que podia se vislumbrar ao
longe (a sua perfeição), preferiu um dia escondê-la, cobri-la de areia, e
trocá-la por um deserto, sem segurança, andando de forma solitária, com
muito mais dificuldade em todos os aspectos, desejoso de exagerada
independência, para lugar nenhum, sem qualquer sentido? Por que este
nonsense?
A resposta é multifacetada. Na minha perspectiva, por quatro motivos
principais que se relacionam e se complementam entre si: Porque o homem
nasceu livre, porém com uma liberdade estragada, facilmente enganável,
que lhe revolta ter que sofrer e humilhar-se para chegar nessa realização e
perfeição que sua natureza exige. Aprofundemos nesses aspectos que de
alguma maneira irão explicar muitos fenômenos educacionais que se
relacionam e explicam grande parte das aberrações que começaram já faz
cinco séculos e se estendem até aos nossos dias.
O ser humano nasce livre. Percebe que está muito acima do mero
instinto que obriga aos animais irracionais a escolher sempre em função de
leis pré-programadas pela sua natureza, com muito pouco espaço para
variações. O homem, pelo contrário, tem uma imensa potencialidade de
escolher aquilo que não deseja ou gosta ou ainda de adiar aquilo que lhe
agrada ou quer se for para o seu próprio bem. O ser humano percebe que
todos os seus talentos, capacidades, dons foram lhe entregues para a
realização de uma missão concreta, que precisa descobrir qual é se quiser
chegar à excelência humana. Obviamente, essa capacidade de escolha é
uma conquista que exigirá anos de educação e de esforço para que se possa
experimentar esse poder. O homem goza de um poder de escolha, que
surpreende e o satisfaz. Quando ainda não consegue vivenciar esta
capacidade, ele fica estranho, desfigurado, desajustado. Ainda não é
humano.

87
O primeiro passo de qualquer educador é conhecer e acreditar nesta
capacidade de escolha que existe em todo o ser humano. Infelizmente, tem
filosofias que pregam que não somos livres, mas condicionados pelas
estruturas sociais. Em parte, têm razão, pois não é fácil uma pessoa ser
bem desenvolvida quando o seu contorno é desfavorável e limitador. O fato
de não ser fácil, entretanto, não quer dizer que não seja possível lutar
contra essa contracultura. A história demonstra com relativa frequência que
tem gente que consegue. É mais cômodo, sem dúvida, optar por um espírito
derrotista e resignado. Pessoalmente, não defendo esta opção.
Quando no educador essa capacidade não foi bem desenvolvida é
natural que duvide que ela exista nos outros. É compreensível que sinta
certa resistência em querer despertá-la nas demais pessoas. Seria como um
mudo querer ensinar aos outros a falar. Mas por que essas pessoas não
foram bem formadas na liberdade? Porque a liberdade nasce estragada e se
não houver um “Projeto de conserto”, ela se tornará um inimigo perigoso de
si mesmo. É preciso saber de antemão que essa capacidade de escolha veio
defeituosa “de fábrica”. O motivo disto, é misterioso, e algumas religiões
explicam esse “acidente” por vias que não entraremos neste espaço 45. Mas é
comprovado que qualquer pessoa experimenta essa limitação com certa
frequência. Faz coisas que não quereria, por fraqueza intelectual ou volitiva,
e deixa de realizar outras, por mais que quisesse ou tivesse intenção, pelos
mesmos motivos. Existe um erro de avaliação na escolha – causada,
segundo Aristóteles, por um “bem aparente”, não real – ou, então,
simplesmente pela própria fraqueza das paixões, dos sentimentos ou
45
Algumas religiões alegam que o primeiro Homem se revoltou contra o seu Criador,
abusando desse poder de escolha em algum momento de sua existência, utilizando-o de
forma errada e nociva à sua natureza, causando um verdadeiro “terremoto” no seu
funcionamento. Essa desordem desgovernou suas potências intelectivas, volitivas e afetivas
de tal modo que tendem a se separar uma das outras, desequilibrando essa capacidade de
escolha, que só funciona bem quando essas potências estão unidades e cooperando entre
si. Esse desajuste da natureza seria passado depois para as demais gerações futuras. A
origem do mal no mundo viria dessa capacidade do homem de administrar mal sua
liberdade. “Se ele não pudesse escolher erradamente, não seria livre”, aponta Comarc
Burke. Refletindo sobre esta desordem aponta ainda: “Escolher erradamente, embora seja
um sinal da existência da liberdade na vontade, não é um ato ou afirmação da liberdade,
mas algo que se opõe a ela, assim como o erro é sinal da existência do conhecimento na
inteligência, mas não é um ato de conhecimento verdadeiro, mas do conhecimento falso”.
(BURKE, C. Somos livres? São Paulo: Editora Quadrante, 1991)

88
desejos que forçam a pessoa a escolher erradamente, desvinculada de
fundamentos racionais. O desejo de prazer suplanta a conveniência da ação.
A irracionalidade impera de forma estranha e desumana sobre a
racionalidade. O motivo para isso é simples: as potências humanas têm um
funcionamento incorreto, independente e desconexo. Constata-se uma
desordem nas três potências: a intelectiva, que leva a descobrir e buscar a
verdade -; a volitiva, que inclina a fazer as escolhas corretas e a querer; e a
afetiva, que gera satisfação sensitiva e entusiasmo. O grande problema é
que elas não estão interligadas. Quando não existe um processo educativo
desde cedo para voltar a unir essas potências pelas virtudes, de alguma
maneira, essas potências tendem a se separar uma das outras,
desequilibrando essa capacidade de escolha, que só funciona corretamente
quando estão unidas, integradas e cooperando entre si. Exemplificando esse
problema, eu consigo escolher (potência da vontade) estudar depois do
almoço, apesar de não estar com disposição (potência afetiva negativa),
porque minha inteligência reconhece o valor do estudo em si e ainda recorda
o dever de amar os pais que pagam esse estudo (potência intelectiva).
Outro exemplo ainda: eu conquisto uma disposição de ajudar minha mãe na
cozinha (potência da vontade), apesar de preferir ficar deitado no sofá
vendo a televisão (potência afetiva positiva), porque reconheço que o
verdadeiro amor se prova com doação e esquecimento próprio e a
experiência do passado me recorda que essa ação deixa os outros felizes.
Quando não se combate, como dizíamos, essa desordem no processo
educacional, provoca-se na criança uma hipertrofia afetiva a fazer só o que
se gosta, levando-a a amar-se a si mesmo de forma muito exagerada,
causando depois injustiças consigo mesmo, com a família e com os demais
membros da sociedade. Este amor doentio, chamado soberba, é o maior
causador de todas as desordens humanas. Aprofundemos como isso
acontece.
O ser humano, se tiver a sorte de ter educadores ao lado nos
primeiros anos de vida, permeada por bons exemplos e orientações,
conseguirá mais facilmente não ser enganada pelos bens aparentes e pelo

89
amor próprio. Quando isso não acontece, a pessoa se inclinará pela escolha
que lhe traga uma recompensa mais prazerosa e imediata, viciando-se
depois nesse mecanismo psicológico. Como esses bens são somente
aparentes, portanto, são efêmeros e não satisfazem as ânsias de felicidade
que o ser humano busca, inicialmente ela pensa que é uma questão de
quantidade e repete mais vezes essa mesma escolha errada. Depois, ela
buscará outros bens cuja as aparências lhe prometem mais prazer. A
enganação volta-se a repetir e esse mecanismo repetir-se-á novamente até
à autodestruição. Comprova-se na prática que esse amor próprio era
realmente exagerado e nocivo, pois leva o homem para a desgraça, solidão
e fraqueza.
Aristoteles, em Ética a Nicômaco, para evitar esta tragédia humana,
aconselhava aos educadores:

“As virtudes morais são decisivas nos prazeres e nas dores, porque
por causa do prazer, podemos escolher o mal (bem aparente) e por causa
da dor, podemos fugir do bem (mal aparente)”. (Aristóteles. Ética a
Nicômaco- 1104b)46.

Uma pessoa que não foi educada na virtude, dificilmente será uma
pessoa livre. Com grande probabilidade, só se moverá por motivos
egocêntricos e fugirá de tudo aquilo que exija sacrifício, esforço e doação.
Seus sentidos não estarão inclinados e preparados para superar ou adiar o
mero prazer sensível mais imediato, dificultando a descoberta para outros
prazeres intelectuais ou espirituais, muito mais duradouros e humanos. Aqui
já podemos responder porque os modernistas quiseram esconder a estrada
do bem real: porque nessa estrada o caminho é sempre “de subida”. O
“Projeto conserto” da liberdade no início exige à pessoa uma série de
renúncias, de sacrifícios, que inicialmente parecem contrários à natureza
humana. A necessidade de trocar o prazer imediato por algo mais prazeroso
no futuro provoca no orgulho uma sensação de perda de liberdade e de
revolta, apesar de falso. De fato, todo o sofrimento humano é um momento

46
ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Trad. Mário da Gama Kury. 4 ed.. Brasília:
Editora da UNB, 2001.

90
de diminuição de amor próprio – deixar de comer o que se gosta, de
divertir-se, de gozar a vida, de fazer a própria vontade –, porém pode-se
tornar positivo se a pessoa é educada desde cedo nas virtudes éticas a fazer
esse sacrifício pelos outros, transformando esse momento doloroso em
gozoso. Utilizando os mesmos exemplos acima, a criança poderá deixar de
comer o que gosta para deixar para os outros; deixará de ficar no
videogame, porque a mãe lhe explicou que ficar mais que duas horas fará
mal para ele e depois para ela, levando-o no médico; deixará de dormir fora
do horário previsto, porque precisará cumprir os deveres escolares que seu
pai e professor esperarão dele. Chamo a este mecanismo de troca de amor
próprio por amor a alguém, da ética da substituição. Quando a criança não é
educada dessa forma, essa perda ou diminuição de prazer sensível poderá
provocar ainda mais sofrimento no amor próprio e consequentemente mais
aumento de soberba e revolta. Freud tinha razão quando dizia que castigar
ou exigir um princípio ou regra sem uma explicação razoável pode
traumatizar a criança. Mas estava errado afirmar o mesmo quando os pais
ensinam a criança a descobrir o verdadeiro motivo desse castigo ou regra.
Um deles poderá ser a necessidade de viver a justiça, isto é, dar ao outro
aquilo que lhe é devido. Foi isso que aconteceu aos nossos modernistas dos
séculos passados: as exigências eram vistas somente como uma perda e
não como um ganho de amor, amizade e justiça. Não havia uma educação
para o verdadeiro amor, fundamento da verdadeira realização. Havia
obrigações, leis, regras, como se fossem um fim em si mesmo. É natural que
essas pessoas se revoltassem e quisessem encobrir a estrada que tinha uma
outra finalidade que um mero cumprimento de regras.
MacIntyre47 se questiona sobre o que poderia acontecer se numa
sociedade as pessoas não agissem de acordo com as virtudes. Buscando a
resposta em Aristóteles, MacIntyre afirma que:

Isso dependeria, em parte, de suas características e dos


talentos naturais; algumas pessoas têm uma disposição natural inata
de fazer, em certas ocasiões, o que determinada virtude requer. Mas

47
MACINTYRE, A. Depois da Virtude. Tradução de Jussara Simões, Bauru (SP):
EDUSC, 2001.
91
não se deve confundir esse feliz dom da sorte com a posse da
virtude correspondente, pois por não serem instruídos pela educação
sistemática e pelos princípios, até esses indivíduos afortunados serão
escravas das próprias emoções e desejos. (MacIntyre, 2001, p. 254)

Esta desordem afetiva provocada pelas emoções e paixões tomadas


como base, impõe à vontade, na maioria das vezes, caprichos irracionais, o
que causa duas consequências nocivas para o ser humano: em primeiro
lugar, uma dificuldade para decidir racionalmente quais emoções cultivar e
incentivar e quais inibir e reduzir; e, em segundo lugar, passam a faltar
aquelas disposições que orientemo desejo em tudo aquilo que não seja o
próprio bem, sem as quais, pelo contrário, se busca apenas o bem aparente
(Yepes Stork, 2005)48.
Tomás de Aquino (1955)49, em seu tratado sobre as virtudes 50 aponta
que “o primeiro germe emocional de toda a ação virtuosa e honrada pode
encontrar-se na Honestidade, inclinação conatural afetiva cujo resplendor
predispõe para a verdadeira bondade espiritual em que consiste o estado de
virtude”51. Por isso, uma educação com a intenção de ensinar a viver as
virtudes sempre facilitará distinguir os bens reais –aqueles que trazem a
verdadeira realização e, portanto, chamados também por Tomás (1955) de
bens honestos– dos bens aparentes, que satisfazem de forma imediata, mas

48
YEPES STORK, R..Fundamentos de Antropologia: Um Ideal de Excelência Humana.
Tradução de Patrícia Carol Dwyer. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência
“Raimundo Llull, 2005.
49
AQUINO, T. Suma Teológica, Madrid: Editora BAC, 1955. Tomás de Aquino é
reconhecido como um dos grandes filósofos (cf. Huisman, D., DictionnairedesPhilosophes,
1984, PUF) e colaboradores para o entendimento de Aristóteles. Quando a nova e integral
tradução latina da Ética a Nicômaco foi publicada por Roberto Grossatesta, em 1246-47,
Tomás de Aquino, com vinte anos recém cumpridos, começou a frequentar – em Colônia,
nos anos 1248-1252 – aulas e a recolher por escrito o primeiro curso havido sobre a nova
tradução, dado pelo mestre Alberto. Desde o início de sua carreira intelectual, Tomás pôde
conhecer a fundo aquele texto: logo advertiu a sua novidade, a sua importância; sentiu a
sua atração, mas também levou em consideração alguns aspectos que deveriam ser
aprofundados; estes só vieram à tona dezessete anos mais tarde, quando, em Paris, de
1269 a 1272, compôs a II Pars( cf.Abbá, G.Qualeimpostazione per la filosofia morale? ,
Roma : LAS, p. 57, 1996). MacIntyre argumenta que Tomás de Aquino teve a qualidade de
atualizar a ética de Aristóteles para um âmbito mais universal (MacIntyre, 2001, p. 311).
50
Parts prima-secunda et secunda-secunda da Suma Teológica.
51
Suma Teológica, 2-2. q. 145, a 1.
92
que depois se demonstram experimentalmente prejudiciais para a vida
humana. MacIntyre, concluindo sobre este aspecto da virtude, afirma que:

As virtudes são disposições não só de agir de determinadas


maneiras, mas também de pensar de determinadas maneiras. Agir
virtuosamente não é, como mais tarde pensaria Kant, agir contra a
inclinação; é agir com base na inclinação formada pelo cultivo das
virtudes. A educação moral é, portanto, uma educação sentimental
(MacIntyre, 2001, p. 255).

Já Aristóteles falava desta nova natureza ou segunda natureza que é


formada pelo cultivo da virtude. Com a sua forma concisa de expressar-se
afirmava que nem por natureza nem contrariamente à natureza a excelência
moral é engendrada em nós, mas a natureza nos dá a capacidade de
recebê-la, e esta capacidade se aperfeiçoa com o hábito. Na medida em que
a criança vai sendo educada pelos pais a incentivar ou a reprimir as
emoções e paixões que sente, esse exercício constante se tornará
inicialmente um hábito, ainda não totalmente livre, mas a caminho de
tornar-se assim e também virtuoso, resultando na vida moral. Faitanin 52
afirma que “sabe-se que um ato humano bom, mas isolado, não constitui
hábito bom, nem um ato humano mau, isolado, constitui hábito mau. O
hábito moral dá-se pela ação voluntária e, portanto, pela ação livre.
(FAITANIN, 2007, p.17).

Voltando à questão inicial, já podemos entender melhor o porquê nem


todo o educador poderá ser preceptor. Se um preceptor não foi bem
educado para viver as virtudes e não se esforça por viver conforme
recomenda a ética, dificilmente conseguirá educar-se a si mesmo em
primeiro lugar. Terá muita dificuldade para dizer “não” para os próprios
prazeres imediatos e facilmente se deixará iludir pelos bens aparentes. Sua
própria liberdade estará comprometida. Uma pessoa assim dificilmente
poderá depois orientar corretamente aos demais, porque faltará autoridade
52
FAITANIN, P. S. Educar: A arte de formar o intelecto na verdade, a vontade no Bem
e a Escolha na liberdade, segundo São Tomás de Aquino. Disponível em: <http://
http://www.aquinate.net/estudos >, nº 5, p.196-220, 2007. Acesso em 20-IX-07.

93
moral para encaminhar as pessoas para o bem. Seus conselhos não terão a
força do testemunho. Por outro lado, se esse mesmo preceptor, após um
aprendizado sério e exigente da dinâmica das virtudes, iniciar um processo
de resgate desses hábitos bons na sua vida, evidentemente poderá se tornar
um ótimo preceptor, porque conseguirá comunicar suas vitórias e derrotas
de forma mais vivencial do que aqueles que já acham conatural viver dessa
forma, porque as vivem desde a infância. Algumas vezes, estes últimos, por
terem mais dificuldade em compreender as dificuldades da interiorização da
virtude e a captar como é difícil aprender numa idade posterior a dinâmica
das virtudes, tornam-se mais rigorosos e tem dificuldade de entrar em
sintonia com o educando.

94
II – As qualidades do preceptor

Tendo ficado claro o ponto anterior, no qual afirmávamos que o


preceptor para poder ser um bom mestre terá que estar se esforçando por
viver todas as virtudes éticas, procuremos aprofundar em seguida em
algumas qualidades mais específicas do preceptor de maneira que possam
torná-lo mais capacitado, eficaz e atrativo.
Um bom preceptor terá que ser, em primeiro lugar, uma pessoa de
caráter. Terá que se esforçar para adquirir certa estabilidade de ânimo.
Mesmo que esteja cansado, deverá procurar ter uma afetividade estável e
mostrar-se alegre e otimista. Não desanimar quando os alunos não
aparecem ou quando não cumprem o que foi combinado. O bom preceptor
tem que exercitar de forma prioritária a virtude da paciência, pois os
avanços muitas vezes são demorados ou imperceptíveis. Deverá não se
cansar de insistir nas mesmas coisas uma e outra vez, buscando sempre
novas formas de expressar as mesmas ideias, buscando a maneira mais
positiva de motivar o aluno. Deverá encontrar estratégias que se encaixem
melhor em cada personalidade, respeitando, portanto, a singularidade da
pessoa humana.
Outro aspecto primordial do bom preceptor é mostrar apreço e
amizade pelo seu aluno. Nem sempre é fácil se entusiasmar com todos – é
normal que umas pessoas nos caiam melhor do que outras na convivência e
trato mútuo –, por isso deverá muitas vezes colocar um rosto
esforçadamente alegre e acolhedor, por mais que interiormente os
sentimentos não acompanhem. Quem se comporta assim, com o tempo
acabará alargando o coração e conquistando uma maior capacidade de
querer a todas as pessoas.
Um sintoma claro de deferência pelo aluno é exigi-lo para que seja
uma pessoa melhor. Quando não se exige, ou se exige pouco, por medo de
magoar ou de perder a amizade, faz-se um serviço deficiente e com o tempo

95
a pessoa percebe que está sendo enganada. Portanto, o preceptor deverá
aprender a falar a dureza da verdade com a suavidade da forma. Deverá
ainda aprender a querer-lhes como são, compreender as suas limitações, e
exigir pouco a pouco por um plano inclinado de melhora.
Outra qualidade imprescindível do preceptor-mestre é a ordem.
Deverá preparar muito bem cada encontro por escrito de maneira que as
reuniões não demorem muito e não se esqueçam os pontos essenciais. Para
encontrar soluções e empregar os meios mais oportunos é necessário refletir
antes em cima das necessidades do educando e muitas vezes faltarão luzes
mais precisas para orientar corretamente. Nesse caso, o mais aconselhado é
recorrer a pessoas mais experientes ou especializadas de maneira que se
possa encontrar o remédio mais adequado para cada situação concreta.
Outra vezes, será repassar alguns bons livros de educação do caráter ou
sobre métodos de estudo. Quase sempre, numa conversa não preparada,
perde-se o foco e se cai em futilidades menos importantes. Quando se
atende muitos jovens é importante que haja uma agenda na escola de
maneira que os interessados possam marcar o encontro com certa
tranquilidade. Quando o aluno não encontra um horário disponível nos
quinze dias seguintes é sinal que a oferta de horários de preceptoria terá
que ser maior. Um dos aspectos da logística da preceptoria que a torna mais
prejudicial é esfriar na criança aquele momento de esperança que adquiriu,
talvez, após um resultado positivo obtido na sua luta e que necessita
extravasar com o preceptor; ou ainda, quando conseguiu vencer o medo
inicial ou a insegurança para marcar pela primeira vez e não encontrou um
horário disponível para marcar essa conversa. Ainda neste aspecto da
ordem, vale a pena ressaltar a importância da virtude da pontualidade.
Quando por alguma eventualidade o preceptor não poder atender no horário
marcado, deverá desmarcar com antecedência ou pedir para algum
preceptor da sua equipe de preceptoria atender no seu lugar, mesmo que
nem sempre possa suprir todas as necessidades do aluno. Demonstrar
responsabilidade neste dever é meio caminho andado para obter apreço e
confiança do aluno.

96
Outra qualidade fundamental que o preceptor terá que fomentar para
que o aluno se sinta a gosto nessa conversa é o amor à liberdade. Existe
uma grande diferença quando o preceptor sabe estimular a reflexão do
aluno, mais do que impor regras, preceitos, obrigações ou, o que seria
péssimo, demonstrar impaciência, violência verbal ou psicológica. Quem
corrige de forma nervosa, em público ou humilhando, está provando que
não tem condições para ser um bom orientador. O preceptor deverá mandar
em forma de sugestão, aconselhando tal leitura, ou determinada estratégia
de estudo ou ainda um pequeno exercício para fortalecer a vontade.
Defender a verdade é uma caraterística do preceptor, mas outra inseparável
é respeitar uma opinião diferente, opinável ou até contrária. É muito
contraproducente entrar em discussões calorosas e tensas. Sem esse clima
de liberdade, a confiança rapidamente se enfraquece ou se perde.
Quando existe essa liberdade, outro aspecto que despontará no aluno
é a sinceridade, virtude fundamental no desenvolvimento sadio da criança.
Esta virtude também não se impõe, mas se conquista. Para chegar à
verdadeira confidência, deve-se aprender a escutar, a valorizar o que lhe
dizem, perceber as coisas nas entrelinhas, deixar que o aluno fale sem ser
interrompido. Muitas vezes, a melhor estratégia é não corrigir na hora
determinada travessura, próprias dessas idades, mas saber guardá-las para
depois, quando tenha que exemplificar determinado defeito ou dar alguma
nova sugestão de luta pessoal. O preceptor deverá evitar “dar lições” ou
pontificar sobre determinada virtude, como quem fala de cima para baixo,
mas deverá, sem perder a autoridade, rebaixar sua comunicação de maneira
que o educando consiga compreender do seu jeito e assimilar mais
rapidamente a sugestão ou orientação. Deve preocupar-se em exigir
aspectos que sejam razoáveis para a idade do aluno e em não ser muito
repetitivo naqueles conselhos que não obtém resultado.
Um defeito que o preceptor deverá evitar é mostrar-se dubitativo
sobre determinada consulta ou sem convicção, sem segurança no que
aconselha. Pior ainda é quando não existe coerência de pensamento e muda
com rapidez e frequência de parecer sobre determinado assunto. Talvez a

97
melhor coisa que deva fazer é assumir que não sabe orientar sobre alguma
questão que lhe perguntam, mas que irá procurar se informar com outras
pessoas mais experientes e que na conversa seguinte lhe trará uma resposta
mais precisa. Uma atitude humilde sempre atrai a criança e demonstrar que
não se sabe de tudo sempre provoca admiração do educando.
Enfim, como ficou evidenciado, não é fácil ser um preceptor. Exige
uma enorme vigilância e uma brava luta interior para estar à altura dessa
difícil missão de conduzir muitos jovens a alcançar a plenitude e a excelência
humana. Podíamos nos perguntar: o que motiva então que alguns
professores queiram corresponder a esta vocação educativa de alto nível?
Segunda a minha perspectiva, o zelo educativo, que trataremos em seguida.

98
III – O Zelo educativo: o motor do
preceptor

É muito conhecida a famosa parábola do filósofo Kierkegaard do


palhaço e da aldeia em chamas, que Harvey Cox recontou recentemente em
seu livro A Cidade do Homem 53. A história diz que certa vez houve um
incêndio num circo ambulante da Dinamarca. O diretor do circo mandou
imediatamente o palhaço, que já se encontrava vestido e maquiado a
caráter, para a vila mais próxima, para que buscasse ajuda, advertindo que
existia o perigo de o fogo se espalhar pelos campos ceifados e ressequidos,
com risco iminente para as casas do próprio povoado. O palhaço correu até
a vila e pediu aos moradores que viessem ajudar a apagar o incêndio que
estava destruindo o circo. Mas os habitantes viram nos gritos do palhaço
apenas um belo truque de marketing que visava levá-los em grande número
às apresentações do circo. Aplaudiam e morriam de rir. Diante dessa reação,
o palhaço sentiu mais vontade de chorar do que rir. Fez de tudo para
convencer as pessoas de que não estava representando, de que não era um
truque e sim um apelo da maior seriedade: tratava-se realmente de um
incêndio. Mas a sua insistência só fazia aumentar os risos, achavam
excelente a sua performance, até que o fogo alcançou de fato a vila. Aí já
era tarde, e o fogo acabou destruindo não só o circo, como também o
povoado.
Cox conta esta história para fazer um paralelo com a situação do
teólogo do século XXI. Eu vou reaproveitá-la para descrever o professor com
o verdadeiro zelo educativo e como ele se sente no atual ambiente escolar.
Um professor com o zelo educativo, em primeiro lugar, percebe
claramente a atual mentira educacional. Percebe o circo que montaram nas
escolas. Como dizia Unamumo, percebe a péssima transformação pela qual
53
COX, H. A Cidade do Homem, 2ª edição. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1971.
99
ela passou nos últimos anos, tornando-a um local apenas para ensinar
brincando e se divertir, e constata depois que o professor acaba só
brincando de ensinar. Repara que a escola ensina muito pouco e como opta
por apenas divertir, o objetivo principal acaba sendo, no final, simplesmente,
ganhar dinheiro e ensinar a ganhar dinheiro. O papel da escola e da
educação do ser humano é muito mais do que isso.
O verdadeiro zelo educativo leva a detectar o fogo que alguns falsos
educadores com aparência de filósofos colocaram no mundo acadêmico já
faz muitas décadas com ânsias niilistas, ensinando ideologias ultrapassadas
e visões de mundo que conduzem o ser humano para a animalização e à sua
autodestruição. Esse fogo vem se alastrando de forma avassaladora e rápida
já faz tempo, destruindo a maioria dos Cursos de Pedagogia e a esperança
dos alunos que ingressam na academia. Os professores que depois se
formam nessas universidades ao invés de saírem de uniforme elegante de
professor, orgulhosos de sua missão de formar pessoas humanas, saem
sentindo-se vestidos de palhaço. O que eles aprenderam tem pouca relação
com o que os futuros alunos precisam realmente aprender. Como o que eles
aprenderam foi que havia que tornar o ensino lúdico, gostoso, fácil, sem
exigência, de fato, sentem-se mais “palhaços educacionais” do que
educadores. Sentem-se desfigurados. Sem a verdadeira identidade. Ficam
sem zelo educativo.
Aqueles que percebem o engodo e conseguem preservar o zelo
educativo, tentam denunciar os órgãos competentes ou alertar os pais,
principais responsáveis da educação de seus filhos, que seus pupilos estão
sendo enganados, que a cultura educacional que domina é materialista e
nociva, que seus filhos não estão sendo preparados para o mundo e para
realizar o seu projeto de vida, mas, infelizmente, muitos riem da cara dele e
não o escutam, como na parábola. Se insistem, debocham. Se despem a
roupa e limpam a maquiagem, logo são chamados de fundamentalistas, de
retrógrados, de medievalistas e coisas piores. E o desespero aumenta
quando contemplam o fogo da mentira se espalhando depois por todas as
escolas, universidades, meios de comunicação.

100
Como reagir a tudo isto? Com zelo educativo, isto é, não se
entregando ao sistema atual, estudando mais, comunicando melhor,
arregaçando as mangas em novas frentes, buscando novos desafios,
perseverando nos seus ideais educativos.
O zelo educativo está relacionado, portanto, em primeiro lugar, à
verdade. À pesquisa honesta sobre o ser humano. Quanto mais um educador
se debruça sobre fontes seguras de antropologia, filosofia, psicologia, mais
vai descobrindo o que é preciso ensinar na escola. Nasce um sentimento de
compensação para ensinar aquilo que não se ensina já faz décadas. Aparece
também um movimento de santa indignação diante da perversidade de
alguns que se chamam educadores e ensinam teorias contrárias à natureza.
Perguntemo-nos então: O que é mais urgente recuperar na educação
quem tem ainda o verdadeiro zelo educativo ou quer recuperá-lo?
Primordialmente, a consciência transcendental da pessoa humana. Que não
somos meramente animais, mas sim animais racionais e relacionais 54. Que
temos potências superiores – inteligência e vontade – que precisam se
relacionar e unir às potências inferiores, mais animais – sentimentos,
emoções, paixões, gostos - de maneira que todas, de forma harmônica,
contribuam para o exercício da verdadeira liberdade. A liberdade não é a
mesma coisa do que o livre arbítrio, que pode escolher por escolher, sem
verdade, sem racionalidade, sem finalidade. É, pelo contrário, a capacidade
de escolher buscando a perfeição, sempre o melhor, para si e para os
outros. Nunca pode se esquecer que existe uma dependência mútua entre
os seres humanos no momento em que nascem. O ser humano é livre para
escolher não ser racional, desprezando todo o bom senso e lógica realista,
negando sua própria natureza, mas não é livre para deixar de depender dos
demais.
A verdadeira educação é afirmação do própria ser. É levar os
educandos a autoafirmarem-se na sua natureza. É assim que sua liberdade
os levará à própria plenitude e excelência humana. Para que este projeto
Ser Humano possa ser levado a cabo é imprescindível a educação das
54
Cfr. MACINTYRE, A. Dependent Rational Animals: Why Human Beings Need the
Virtues , The Paul Carus Lectures – 20 – 2nd printing. Illinois: Open Court Ed., 1999.
101
virtudes humanas. Quando o jovem desde dos primeiros anos de vida vai
aprendendo a desenvolver as capacidades socioemocionais de acordo com a
dinâmica da ética das virtudes55 vai despertando não só mais facilmente as
capacidades cognitivas, de acordo com a idade, mas também vai
potencializando as capacidades de escolha. Esta potência chama-se razão
prática. Ela dá à criança uma maior facilidade para, diante dos bens
aparentes, dizer “não”, sem se sentir reprimida, mas, pelo contrário, mais
livre. E diante dos males aparentes, porque lhe metem medo, despertam
preguiça (aversão ao esforço), consiga dizer “sim”, por mais que tenha que
passar um mau bocado de sofrimento pela negação do prazer imediato.
Além desse fortalecimento da capacidade cognitiva e do querer, as
virtudes capacitam também para o desenvolvimento de uma terceira
inteligência ou razão: a inteligência emocional. A pessoa humana vai tendo
mais facilidade para conhecer seus sentimentos, emoções, paixões e
inclinações e vai sabendo dar-lhes uma direção e um sentido. Esta carga
afetiva quando é bem direcionada pela razão cognitiva e prática – isto é,
pelo volante e pelos freios do “veículo” que movem o ser humano – esse
motor fica ajustado como mais lhe convém, tornando-o mais feliz. Mais uma
vez, constatamos como é importante a integração das três potências
intelectiva, volitiva e afetiva no ser humano.
Além dessa facilidade para administrar o seu mundo sentimental, a
inteligência emocional facilitará enormemente a convivência social. Quem
sabe administrar-se afetivamente, saberá depois captar melhor a afetividade
dos demais e ter mais facilidade de comunicação. Chama-se a esta
capacidade de empatia. Uma pessoa empática terá mais inclinação para
entrar rapidamente em sintonia com qualquer pessoa, principalmente com
aquelas que apresentam temperamentos diferentes 56. Um jovem que ganhe
esta facilidade de amizade, inevitavelmente terá muitos amigos e apoio para
superar as dificuldades da vida quando elas aparecerem. Recordemos
novamente abaixo um quadro resumo desta ética das virtudes:
55
Cfr. MALHEIRO, J. A Motivação Ética no Processo de Ensino/Aprendizagem na
Formação de Professores do Ensino Fundamental. Tese de doutorado, Universidade Federal
do Rio de Janeiro. 2008.
56
cfr. Método Keirsey: http://www.keirsey.com
102
Quadro 1: A Dinâmica das virtudes Fonte: Autor (2008)
Observação: Quando um educando vai sendo incentivado na família e na escola a
viver inicialmente (1-7 anos) a virtude da temperança (e suas respectivas virtudes
menores) e depois (7-14 anos) também a fortaleza (e seus partes integrantes), vai
amadurecendo corretamente a afetividade, de maneira a ter uma inteligência emocional
desenvolvida facilitando, depois, na adolescência (14-16 anos) valorizar a justiça e o amor
aos outros. Quando se educa nesta dinâmica o jovem amadurece também sua capacidade
prudencial, aumentando sua capacidade de aprendizagem e de escolha (razão prática).

Um educador que conheça com certa profundidade essa dinâmica do


desenvolvimento das virtudes, descrita acima, se realmente tem zelo
educativo, não poderá ficar indiferente diante do total descaso deste ensino-
aprendizagem na família e na escola. Quando percebe que projetos
pedagógicos ficam preocupados em ensinar somente conteúdos técnicos –
matemática, português, geografia, história, etc. – e não encontra a
valorização deste conhecimento ético no corpo docente é natural que fique,
como dizíamos, indignado e queira transformar esta forma de educar.
De alguma maneira sentirá este mesmo sentimento que expressei no
meu livro anterior57:

57
MALHEIRO, J. Escola com corpo e alma. Um manual de ética para pais, professores
e alunos. Curitiba: Editora CRV, 2014
103
A escola não deverá ser vista apenas como um local de aprendizado
técnico de jovens desde educação infantil até ensino médio, mas uma
instituição que construa um projeto comum de melhora integral de todos
os elementos do ambiente escolar. Um projeto que estimule a vivência dos
valores e virtudes éticas, tanto dentro do lar, quanto em cada espaço e
momento da escola, de forma que o resultado desse esforço de melhora
ética leve toda a comunidade acadêmica a tornar-se melhor. Não basta,
então, ter como ideal educacional apenas a conquista futura de bons
engenheiros, médicos, advogados, professores, mas é necessário
vislumbrar engenheiros, médicos, advogados, professores bons como
pessoas, que se realizem existencialmente. Para que isso seja possível, a
educação tem que ser vista com uma perspectiva mais profunda. Educar e
formar são duas ações que têm que voltar a se unir. Educar por meio dos
conteúdos escolares significará não somente que os alunos adquiram,
retenham e generalizem o conhecimento científico, mas que por meio
dessas ações educativas ajudem a formar e reintegrar os três “motores da
liberdade” -inteligência, vontade e afetividade - de cada jovem. Hoje essas
potências humanas estão desintegradas e autônomas, tornando o ser
humano incompleto e insatisfeito. Por outro lado, quando se investe nesse
aprendizado ético das virtudes durante todas as etapas da educação, a
alma da escola “ressuscita”. Respira-se unidade, motivação, alegria,
exigência, disciplina, afeto e muito respeito. A “cultura organizacional” da
escola será um reflexo da melhora espiritual de cada educador e de cada
educando, dentro e fora do ambiente escolar. É impressionante perceber
uma escola com alma: quando pais, professores, funcionários e alunos
estão se esforçando por viver, por exemplo, a mesma virtude do bimestre,
ou estão buscando exercitar-se na ética do respeito ou ainda fomentando
entre si a virtude da generosidade ou da responsabilidade. É outra vibração
educacional. Por outro lado, quando essa alma, esse princípio de operações
fica num segundo plano ou deixa de existir, a escola perde a sua
identidade, assim como todo o corpo diretivo e docente. A alma começa a
se separar do corpo e aos poucos a escola agoniza. Seus fins tornam-se
pobres. Busca-se somente um resultado acadêmico, uma avaliação externa
(como o ENEM) e, no futuro, que os educandos conquistem empregos
promissores. O fim educacional quase exclusivo consiste em satisfazer
unicamente as necessidades materiais e se desprezam as espirituais. O
filósofo Aquino lembra que, quando a alma abandona o corpo, não resta
nada nele de propriamente humano, a não ser a aparência, e dizer isto
significa que o cadáver não tem potência para atualizar nenhuma das
atividades próprias e distintivas do ente humano. (Malheiro, 2014, p.13-
14)

Podemos concluir, então, que, como dizíamos, um professor que


estuda e aprofunda estas outras dimensões da ciência educativa e as coloca
em prática, primeiro na sua própria vida, e depois no seu alunado, aos
poucos vai ganhando uma nova sabedoria educativa que o impulsionará a
entrar em sala de aula com um outro olhar e outra motivação profissional.
Olhará para cada aluno com sincero zelo educativo.
Quando o professor se habitua a perscrutar o rosto de cada aluno em
sala de aula brotará outra manifestação do zelo educativo: o amor por cada

104
um. Um amor penetrante, que se distancia e muito do mero abraço
sentimental ou afago carinhoso, mas que se aproxima e muito da verdadeira
amizade e esperança em todos. Aprofundemos um pouco nesses dois
aspectos.
Um professor que realmente se esforça por querer a cada aluno
procura tratá-los com muito respeito, captando a idiossincrasia dos diversos
contextos onde cada um está inserido. Quando alguém apresenta baixo
rendimento escolar, por exemplo, procura antes de tudo chamá-lo para
conversar com carinho e tenta descobrir o que está acontecendo por trás
daqueles resultados negativos. Possivelmente captará famílias
problemáticas, desestruturadas, que não estimulam ou cobram a lição de
casa, que não oferecem o mínimo de condições de estudo em casa. Talvez
perceba que seus pais estão brigando, se separando ou que o pai bate na
mãe. Ou então, serão pais que nunca ouviram um “não” quando eram
jovens e hoje reproduzem a mesma deficiência nos seus próprios filhos,
protegendo-os ou mimando-os exageradamente, de forma prejudicial.
Diante desse quadro desfavorável, procurará com urgência a coordenação
da escola e estudarão possíveis soluções viáveis. Todas elas exigirão mais da
escola, da família, do aluno, mas quando são apresentadas num contexto de
interesse, de apoio, de amizade, na maioria das vezes, produzem resultados
positivos. Nesses casos, o professor terá que aproveitar cada pequeno
avanço para parabenizar o pupilo, elevando sua autoestima. Tem
professores que alegam que tratar a todos os alunos desta forma é
impossível, principalmente quando se trabalham várias turmas e ainda se
leciona em várias escolas. Concordo que é humanamente impossível quando
se dão esses casos estremos. Porém, penso que para a grande maioria dos
docentes é possível uma maior dedicação, que sempre exigirá muito mais
um sentido de missão, que motivações financeiras ou outras recompensas.
O que é inconcebível num professor é fazer um comentário com certo
desdém de qualquer aluno. Atitudes deste feitio além de roubar toda a
esperança do aluno em aprender, provoca bloqueios emocionais, chamados
atualmente de “estresse tóxico”. Muitos alunos apresentam resistências com

105
determinadas disciplinas porque foram influenciados negativamente com
comentários “intoxicantes” em anos/séries anteriores.
Aqui entramos no segundo aspecto desse amor pelo aluno: uma real
esperança em que todos os alunos podem e devem aprender. No fundo, é
isto que toda a criança espera dos pais e professores. Essa é a verdadeira
vocação do real educador. Alguns alunos, de fato, aprendem mais rápido;
outros, mais lentos. Alguns têm inteligência mais lógico-matemática; outros,
inteligência mais social58. Alguns exigem mais tempo. Outros são mais
rápidos. Por isso, um professor que tenha zelo educativo é um defensor da
educação personalizada.
A educação personalizada é uma visão diferente da educação. O
modelo tradicional acredita mais na formação do professor e na sua
qualidade didática em transmitir uma série de conteúdos, do que na
capacidade do aluno em aprender com autonomia. A educação
personalizada, pelo contrário, aposta na singularidade de cada um. Acredita
que o aluno deverá ser o protagonista do seu aprendizado. Ele deverá ser
estimulado pelo professor a buscar o conhecimento em zonas de trabalho
(pequenos grupos), ou por meio de guias de trabalho autônomo (deveres
dirigidos em sala de aula), ou ainda realizando trabalhos de pesquisa em
casa, que de alguma maneira não só o motivem a aprender por conta
própria, mas também, que despertem nele o interesse para assistir depois
uma aula mais teórica, uma vez que foi preparado nessa contextualização
prévia.
Por fim, um conselho que nunca é demais recordar a todos os
educadores, principalmente quando se reflete em como aumentar esse zelo
educativo, é que devem recorrer com frequência à oração.
Independentemente da fé que professem, é preciso alimentar-se com
frequência nas fontes da fortaleza do espírito. Educar sempre exigiu muita
fortaleza. Hoje, penso, que talvez mais, porque o relativismo ético
enfraquece a força cultural que sempre era uma aliada das famílias. Todo o

58
GARDNER, H. Inteligências múltiplas. A teoria na prática. Rio de Janeiro: Artmed
Editora, 1995

106
educador experiente, já sentiu muitas vezes a incapacidade para iluminar a
liberdade de uma criança. Por mais que se tente argumentar, é frequente
que o professor se sinta impotente para transformar um aluno com
dificuldades. Mais do que desistir, uma solução que sempre surpreende é
recorrer à força que vem do Alto. Tenho a certeza que em muitas ocasiões
irá vivenciar uma saída feliz de forma inesperada para determinado
problema desesperador; perceberá uma serenidade de espírito para
comandar uma reunião exaltada com pais ou professores; ou ainda, receber
um novo fôlego para perseverar nesta difícil missão de educar.

107
IV – A formação de preceptores

Chegou o momento de costurar os três primeiros capítulos deste livro.


No primeiro capítulo defini a preceptoria na escola como um
acompanhamento extraclasse de jovens (alunos). Isto quer dizer que a
preceptoria não consiste apenas numa preocupação isolada em sala de aula
ou numa conversa esporádica de corredor. Ela exige um trabalho constante
e abnegado de professores que estejam dispostos a exercer sua docência de
outra forma e com um outro olhar. Professores que queiram ensinar os
alunos primeiro a ser para só depois fazer e ter. O agir segue o ser, diziam
os filósofos antigos. Hoje, muitos educadores esquecem esta regra infalível e
se preocupam somente com a ação, com a técnica, com o resultado. Depois,
a frustração educativa aparece mais tarde com jovens que não sabem para
que serve o dinheiro, ou por que não conseguem formar uma família, ou
ainda por que existem. É preciso desmascarar a mentira da cultura
materialista que prega que o importante é ter ou parecer que se tem.
Continuando a definição, afirmava que essa preceptoria teria que ser
realizada por profissionais qualificados. Ao longo deste capítulo, fomos
vendo como é difícil encontrar preceptores que estejam prontos para ser
mestres de jovens alunos. O relativismo ético das últimas décadas camuflou
o caminho que conduzia com segurança não só os antigos preceptores para
a sua realização pessoal e trabalho de preceptoria, mas também os alunos.
Hoje o que se encontra nas faculdades de pedagogia são conhecimentos
ultrapassados de ideologias destruidoras da natureza humana, com ânimos
niilistas e visões distorcidas da realidade. Este falso conhecimento destrói
todo o preceptor em potencial. Por outro lado, pude ter uma experiência que
encheu meu espírito de otimismo para virar este jogo. Quando fui
contratado por um colégio do Rio de Janeiro para formar 10 preceptores que
seriam depois encarregados dessa tarefa de preceptoria nas quatro unidades

108
da rede, inicialmente fui um pouco cético. Depois, ao perceber o rápido
aprendizado desses profissionais (todos eles professores de português para
o Ensino Fundamental e médio), o crescente entusiasmo desses profissionais
para aplicá-lo em inúmeros alunos e, principalmente, o enorme sucesso nas
suas vidas familiares e acadêmicas, então pude acreditar que era possível
qualificar futuros preceptores. Essa qualificação consistiu num curso de 30
horas sobre os temas mais importantes da antropologia filosófica: Afinal:
quem é o ser humano? Como ele é formado por dentro? Como ele deve
funcionar corretamente para ser feliz? Quais os limites da liberdade
humana? Por que temos um modo de ser específico e quais são esses
diversos modos de ser? Como construir uma personalidade sólida? Como
desenvolver as capacidades cognitivas, volitivas e afetivas na criança? O que
são virtudes, quais são elas, qual sua dinâmica de acordo com a idade da
criança? Como organizar-se no tempo? O que é e para que temos o tempo?
Como saber que estamos aproveitando bem o tempo? Como desenvolver
uma correta socialização? Quais são os caminhos para a construção das boas
e saudáveis amizades? Qual o papel da família na educação? A inteligência
emocional. O verdadeiro zelo educativo. Os diversos níveis de amor.
Como podemos perceber, todos esses temas abordados são para
muitos dos atuais docentes totalmente inéditos. Minhas pesquisas nos
últimos 5 anos apontam para a seguinte descoberta: apenas 10% de uma
sala de aula com professores recém-formados já aprendeu alguma noção
sobre esses temas acima. Efetivamente, assusta que professores recém
egressos das faculdades de pedagogia ou de diversas licenciaturas tenham
uma visão superficial do que seja educar uma pessoa humana.
Naturalmente, fica fácil compreender, como vimos ao longo deste capítulo,
porque os professores nos dias atuais não possuam o zelo educativo, aquela
força propulsora para conduzir a criança ao pleno desenvolvimento de todas
as suas capacidades.
A preceptoria deverá ser ocorrer durante um certo período de tempo,
diz também a definição. Conforme já refletimos em vários momentos, a
aprendizagem das capacidades socioemocionais, que favorecerá depois as

109
capacidades cognitivas, exige tempo e paciência. Diferentemente do que
sucede no campo técnico ou econômico, donde os progressos atuais podem
somar-se aos do passado, no âmbito da educação e da formação e
crescimento ético das pessoas não existe essa mesma possibilidade de
acumulação. A liberdade do homem sempre é nova e, portanto, cada pessoa
e cada geração deverá recomeçar a aprender a tomar pessoalmente suas
próprias decisões e para isto o educador deverá respeitar os tempos de
desenvolvimento da criança. Não bastará falar apenas uma vez, para que os
atos se tornem virtudes. Não será suficiente uma única conversa de
preceptoria para que o esforço da virtude suplante o domínio do vício.
Conforme foi aludido anteriormente, é normal que uma criança,
principalmente nas idades pré-adolescentes, se desanime ao perceber a
demora nos resultados de suas privações. Por isso, será preciso contar com
o tempo para que se interiorize as virtudes e os demais hábitos escolares.
E como medir que esse trabalho de preceptoria está alcançando os
seus objetivos? Em primeiríssimo lugar, pelos resultados na aprendizagem,
também apontado na definição. Uma criança que aprenda a organizar os
estudos, por meio de um horário, e a controlar o tempo de estudo das
diversas disciplinas, com certeza melhorará sensivelmente sua performance.
Existem crianças que têm uma inclinação para o estudo e desde muito cedo
descobrem rapidamente como se organizar e como estudar. Mas a maioria
das crianças não possui essa facilidade. Se não tiver um pai ou um amigo
para auxiliá-las, dificilmente desenvolverão a aptidão para aprender
sozinhas. A presença de um preceptor se torna, portanto, imprescindível
para grande parte dos alunos. Além desses aspectos organizativos, parece
ser também muito importante para um maior rendimento cognitivo aprender
a estudar. Nem todos sabem fazer um resumo de um texto, um mapa
mental, uma pesquisa aprofundada, uma lista de exercícios adequada à sua
capacidade. Por isso, a experiência comprova que auxiliar um aluno no
desenvolvimento dessas habilidades favorece enormemente o seu
desempenho. Atualmente, já existem alguns aplicativos educativos que
medem as deficiências de aprendizagem dos alunos com dificuldades, o que,

110
em parte, poderão, de forma mais estratégica, orientar tanto os professores
quanto os alunos a decidir como e o que recuperar do aprendizado e assim
preencher várias lacunas de conhecimento. Mas quase sempre a presença de
algum orientador mais experimente jamais substituirá a tecnologia, por mais
moderna que possa ser.
Outra forma de avaliar o trabalho de preceptoria da escola é o que
está expresso na definição como segundo objetivo desse trabalho
orientador: a melhora nas capacidades socioemocionais. Em todos os três
capítulos iniciais deste livro, foi desenvolvido de forma aprofundada o que
são essas capacidades, como se podem desenvolver no ambiente escolar e
na família. Foram exemplificados vários exercícios que as crianças a partir
da educação infantil podem vivenciar. A experiência demonstra que quando
o período sensitivo – aquela idade que natureza inclina a criança a aprender
mais facilmente a virtude – é bem aproveitado pelo preceptor, o crescimento
nessas capacidades acontece de forma muito rápida e os próprios pais ficam
admirados com as rápidas transformações nas atitudes do seu filho, como
melhoras na ordem material, espírito de serviço, companheirismo,
generosidade, entre outras.
É preciso salientar que o desenvolvimento das capacidades
socioemocionais promove também de maneira significativa o conhecimento
cognitivo expresso anteriormente. Quando uma criança aprende na idade
correta a se exercitar na ordem dos brinquedos (ordem material),
futuramente terá mais aptidão para adaptar-se a um horário de estudo. Uma
criança que aprendeu a capacidade de resiliência terá, quando for maior,
mais capacidade para suportar e superar a perda ou demora de uma
recompensa escolar. Um adolescente que tiver uma base de temperança,
que souber dizer não para os seus prazeres imediatos, saberá depois adiar
certas tentações de mediocridade ou vida fácil que outros colegas lhe
propõem.
Além do fortalecimento da razão (inteligência) prática, aquela que
inclina a fazer as escolhas corretas e melhores, como exemplificamos acima,
as capacidades socioemocionais também favorecem uma maior inteligência

111
emocional. Muitas vezes, alunos têm dificuldades na aprendizagem de
determinada disciplina porque não souberam administrar corretamente
algum comentário mais pejorativo de um professor desmotivado ou
grosseiro, porque sentem medo de que não vão conseguir aprender parte da
“difícil” matemática, ou ainda porque não conseguem manter a atenção por
mais do que 10 minutos de uma aula desinteressante. Entretanto, quando
existe a figura do preceptor, é possível ensinar a direcionar os sentimentos,
não deixando que lhe dominem para a tomada das boas decisões. Sentir é
uma coisa, consentir é outra, A inteligência emocional em parte é o
resultado do fortalecimento e união da inteligência teórica com a prática.
Quando o aprendizado das capacidades socioemocionais vão se
consolidando no aluno, duas descobertas se dão de forma quase que
conatural no estudante. A primeira é a resposta à principal questão que todo
o aluno um dia se faz: afinal, por que tenho que estudar, por que tenho que
ir para a escola? Perceberá que o fim primordial do seu estudo é a sua
própria perfeição como ser humano. Não tanto, portanto, os resultados
financeiros, como acreditam a maioria dos jovens nos dias atuais, mas o
desenvolvimento de sua liberdade responsável como ser humano. A segunda
descoberta será a resposta à segunda indagação que qualquer estudante
racional também um dia se faz: afinal,para que tenho que estudar? Com o
desenvolvimento das capacidades socioemocionais o aluno adquirirá uma
suficiente maturidade para permitir a descoberta do sentido da sua vida.
Este só se iluminará quando tiver uma afetividade centrífuga, isto é, uma
inclinação natural a viver voltada para os demais, suplantando a velha
tendência adolescente de só pensar em si ou sempre primeiro em si. A
demonstração mais evidente que o processo do ensino-aprendizagem foi
bem executado, que a ética da substituição foi bem interiorizada, é quando o
jovem começa a descobrir que os seus talentos, capacidades, dons e
potencialidades têm que ser colocados ao serviço dos demais. Para isso esse
aparato humano foi colocado dentro de si e foi aperfeiçoado durante o
processo educativo. Quando o jovem chega a este grau de maturidade então
ele descobre a sua própria identidade existencial e, em seguida, profissional.

112
Ele descobre quem ele é. Uma grande maioria dos estudantes do pré-
vestibular, nos dias atuais, sofre de verdadeira angústia por não conseguir
descobrir o seu futuro. A resposta, na minha perspectiva, não é, como
alegam muitos educadores, o aumento das alternativas oferecidas no mundo
moderno. Esta poderá vir depois. A principal resposta é esta: os jovens
ainda estão muito imaturos para se encontrar. Para se identificar quem são
realmente. Diante de um quadro de imaturidade, a tendência é sempre a
insegurança, o medo de errar, a covardia para tomar decisões definitivas.
Por isso, colocávamos na definição da preceptoria que um dos grandes sinais
que a preceptoria está dando bons frutos é que os jovens começam a ter
mais facilidade para descobrir o seu futuro, não só existencial, mas também
profissional. A vocação profissional sempre deverá fazer parte da vocação
existencial, não ao contrário, como fazem tantos profissionais hoje,
substituindo sua família já constituída por um mero projeto empresarial ou
político. Depois, sentirão muita frustração e vazio existencial.
Quando um jovem é levado durante a preceptoria para se encontrar,
e, de fato, um dia se encontra, sua motivação existencial e escolar explode.
Esta é a última faceta da preceptoria que pode ser observada para avaliar a
preceptoria na escola. De fato, como já dissemos em vários momentos, o
que se observa hoje em sala de aula são jovens desmotivados,
desinteressados, desconectados do aprendizado. Muitos culpam o professor,
o método, o conteúdo, e, em parte, têm razão. É preciso partir para novas e
inovadoras técnicas de didática em sala de aula, superando as mais
tradicionais. Mas, na minha concepção, não são esses os motivos principais
para explicar o porquê de os alunos manifestarem essas anomalias
educacionais. A raiz de fundo se encontra em não haver um norte, um ideal.
Quando essa luz da descoberta da própria identidade nasce num jovem,
aquelas forças que se encontravam apenas latentes no interior de sua força
de vontade brotam com tanta energia que são capazes transformá-lo
completamente. É isso que qualquer educador que tem zelo educativo terá
que conseguir provocar na maioria dos alunos. Quando o aluno está

113
motivado ele suporta um qualquer como estudar, mesmo que não goste da
disciplina, do conteúdo ou do professor.
Terminemos este capítulo, então, com a seguinte reflexão: qual seria o
verdadeiro desafio da preceptoria na escola nos dias atuais? Na minha
concepção, a grande façanha seria despertar nos alunos algumas reflexões
que, infelizmente, estão adormecidas, na sua grande maioria. O motivo
disso foi demonstrado no primeiro capítulo deste livro. A primeira é ajudá-
los a encontrarem as verdadeiras respostas às perguntas que poucos se
fazem nos dias atuais: Por que estudar? Para que estudar? Como estudar?
Enquanto os jovens não forem ajudados a encontrarem as respostas
corretas para essas questões, facilmente se desinteressarão pelos estudos e,
consequentemente, pelo menos num primeiro momento, pela preceptoria na
escola. A segunda reflexão é mostrar-lhes como a cultura relativista reinante
é enganosa e como não lhes traz na prática a prometida felicidade. Por fim,
que somente a luta diária por conquistar as capacidades socioemocionais,
com muito esforço, perseverança e amor aos demais, na sua dinâmica e
momento correto, lhes trará a verdadeira liberdade que sempre se traduzirá
em escolher os meios mais adequados para se tornarem verdadeiros seres
humanos responsáveis.

114
4) Como envolver os pais no
acompanhamento escolar59

RESUMO: A atuação dos pais na educação de seus filhos possui uma


importância mais significativa do que parece. Dela se depende em grande
parte para se alcançar o êxito educacional de (nossas) muitas crianças e
jovens. O presente artigo pretende analisar o panorama difícil em que se
encontram os pais e as crianças devido à carência da participação dos
primeiros na educação dos seus filhos, os motivos que tem levado a isso,
bem como as suas consequências. Além disso, verifica-se a relevância desse
tema para a realidade educacional em que nos encontramos e busca
contribuir para as famílias que procuram alternativas e ferramentas para
exercerem seus papéis de pais perante as dificuldades que encaram no seu
cotidiano.

Palavras-Chave: Família – formação de pais – educação da afetividade


– rendimento acadêmico – capacidades socioemocionais – preceptoria

59
Este capítulo é uma colaboração do Prof. Ricardo Almeida, atualmente Coordenador
pedagógico e professor do fundamental I do Colégio Porto Real (Rio de Janeiro). Ele foi um
dos professores que foi preparado para ser preceptor no colégio aludido no capítulo
anterior.
115
I -Introdução

A ausência da família e a perda (voluntária ou imposta) de sua primazia


durante todo o processo escolar de uma criança podem gerar danos
irreversíveis para a aquisição de uma educação de qualidade. Essas
consequências se caracterizam tanto pelo aspecto socioemocional, como
pelo próprio desenvolvimento acadêmico do aluno. De fato, urge em nossos
dias a retomada do conceito de Educação associada à participação ativa dos
pais no cotidiano escolar.
Frente a essa situação educacional, encontramos duas grandes
dificuldades no cenário atual. Podemos observar o que conhecemos por
terceirização da educação das crianças por parte dos seus responsáveis, ou
seja, os próprios pais – os quais deveriam ser os mais preocupados com a
educação dos seus filhos – negligenciando essa grande e nobre oportunidade
e entregando a outros agentes, tais como professores particulares, a escola
(exclusivamente), a cuidadores, etc. Trata-se de uma constatação
infelizmente cada mais presente na sociedade em que vivemos, um
abandono velado, com pais muitas vezes presentes apenas em corpo ou na
certidão de nascimento, mas não na sua real função, um jeito diferente de
orfandade.

“Sua orfandade é de outro tipo, embora seu futuro


(geralmente acolchoado por promessas) não seja menos sóbrio do
ponto de vista existencial. A imensa maioria deles tem pai e mãe,
encontra-os, convive com eles (das várias maneiras como se convive
em uma sociedade que passa por uma transição dos modelos
familiares). A totalidade deles frequentam colégios e escolas, tem
acesso a tecnologias de comunicação, vive em contextos nos quais as
necessidades básicas são cobertas. (...) Ainda assim, esses meninos
e adolescentes são órfãos funcionais. (SINAY, 2012)60

Assim encontramos uma variedade de instituições – até muito “bem”


conceituadas no mercado – com uma proposta pedagógica reducionista, seja

60
SINAY, Sérgio – A sociedade dos Filhos órfãos: Quando pais e mães abandonam
suas responsabilidades. Ed. Best Seller. Rio de Janeiro, 2012.
116
através dos seus métodos ou pela sua disposição em assumir essa
terceirização que nos referimos em troca de recompensas financeiras. Estão
prontas para atender a uma clientela de pais e alunos cada vez mais
crescente e assim assumir suas funções desde que lhes paguem o valor
cobrado.
Não é novidade que muitas instituições não se preocupam em
fomentar um tipo de parceria com os pais por diversas razões. Isto se dá,
principalmente porque possuem uma proposta pedagógica voltada para o
viés conteudista, considerando a escola como uma mera transmissora de
conteúdos das diversas disciplinas, através de um ensino, dito, preparatório,
que podem até ajudar seus alunos a atingirem algum resultado nos exames
e concursos, mas que negligenciam o papel fundamental de parceria com as
famílias, o qual todas as boas escolas estão obrigadas a assumir. Como
essas situações são cada vez mais comuns, pais e educadores
compromissados devem procurar instituições que se encaixem minimamente
nessa concepção mais abrangente da educação, a qual nossas crianças
necessitam com muita urgência, conforme falaremos mais a frente.
Não se deve, porém, desconsiderar outro desafio. Boa parte dos
profissionais da educação, isto é, os diretores, coordenadores e professores,
carecem de uma maior formação para, consequentemente, desempenharem
um bom auxílio aos pais nesse processo. Este zelo educativo que se espera
dos pais, também deveria ser compartilhado pelos profissionais da escola.
Entretanto, tal conhecimento e dedicação não são ensinados nas
universidades de licenciaturas, onde infelizmente estão mais preocupadas
com aspectos ideológicos da educação.
A boa notícia que podemos dar sobre o panorama até agora relatado é
que se observa que a grande maioria desses profissionais possuem essa
preocupação em ajudar da melhor maneira possível aos pais na tarefa de
educar seus filhos, mas se sentem um pouco desorientados em relação a
como fazê-lo, já que sua formação universitária foi deficiente e a realidade
profissional que encontram na maioria das escolas, não fomenta esse tipo de
trabalho mais voltado para a formação completa de seus alunos. Ao

117
contrário, na maioria das vezes, desde o início de suas carreiras, se deparam
com as realidades educacionais desanimadoras que mencionamos
anteriormente. Por isso, precisamos também dirigirmos nossas palavras a
estes que podem pensar que estão à deriva, com um sentimento de
esfacelamento do que realmente é importante em suas profissões ou que se
sentem pressionados a cair na tentação do desânimo e do comodismo que
rondam as salas de professores de nossas escolas.
Por tudo isso, é importante considerar que a presença dos pais nesse
acompanhamento constante não se trata apenas do caráter da
responsabilidade legal que se assume ao gerar uma vida, nem tão pouco de
um apego afetuoso saudável que se cria na relação com os seus filhos, mas
principalmente em compreender que a participação familiar ativa na
educação influencia diretamente no processo de aquisição e assimilação de
ideias e conhecimentos por parte daquela criança e que sua ausência é
prejudicial pelos mesmos motivos.
É nesse sentido que a atuação familiar na vida escolar das crianças,
antes de ser uma obrigação, constitui-se uma necessidade para o
desenvolvimento de suas capacidades cognitivas e intelectuais. Quando pais
e mães investem tempo e dedicação nessa missão, os ganhos para seus
filhos são extraordinários e os benefícios adquiridos poderão fazer a grande
diferença em diversas situações quando os mesmos já estiverem bem
amadurecidos.
De fato, tal tarefa demanda tempo e esforço a ser desempenhado e
num mundo onde as exigências, sobretudo do trabalho, parecem sufocar a
grande maioria dos pais bem-intencionados em desenvolver essa educação
de qualidade, fica sempre o questionamento sobre como conciliar uma rotina
exaustiva, ao bom acompanhamento da educação dos filhos. Naturalmente,
não se trata de uma pergunta fácil de responder, no entanto, é preciso
verificar que muitas vezes temos uma dificuldade em estabelecer
prioridades, bem como de nos organizarmos adequadamente para dispensar
o tempo devido a determinadas atividades, incluindo os momentos de
acompanhamento das atividades escolares das crianças.

118
A chave para empreender a difícil missão que estamos narrando
consiste justamente na justaposição das duas orações que compõem o título
desse texto, isto é, em compreender que a construção dessa boa afetividade
em nossos alunos ocorre, em grande parte, através do acompanhamento
dos pais na vida dos filhos e, principalmente, na vida escolar. São nas boas
e sadias experiências vividas, sobretudo no ambiente familiar, que as
crianças poderão construir as bases sólidas em seu desenvolvimento
neurológico e cognitivo que as capacitarão a serem bons alunos no sentido
pleno da palavra.
É nesse contexto que os pais, através de sua participação nos
processos de aprendizado e do acompanhamento constante, estarão
estimulando diretamente, por exemplo, a capacidade de aprendizagem de
seus filhos, além de aspectos do comportamento e da saúde. Tal perspectiva
vem sendo cada vez mais estudada e confirmada pela ciência nos dias, no
entanto, apesar de ser compreensível com certa facilidade, carece ainda de
ser colocada em prática tanto pela escola quanto pelas próprias famílias.
É preciso que família e escola saibam explorar essa oportunidade,
considerando sua importância desde os primeiros anos de vida. Nesse
sentido, os pais possuem um protagonismo ainda maior, pois podem iniciar
essa atividade ainda antes de colocarem seus filhos no colégio. Interagindo e
reagindo a ações instintivas das crianças, de modo que comecem a lançar as
primeiras bases para isso e posteriormente a escola, através dos
profissionais capacitados, poderá dar continuidade a esse processo, sempre
contando com a atuação dos responsáveis no ambiente familiar.
119
II – Como os pais podem
acompanhar melhor o
desenvolvimento escolar

“Educar constitui uma ciência e uma arte. Como arte, não existem regras fixas já que cada
caso é diferente; mas, por sua vez, é uma ciência e como tal é necessário conhecê-la, tem
que estudá-la e dedicar-lhe horas de trabalho.”(COROMINAS, 2005)61

Com esta citação podemos conduzir as primeiras instruções para


aqueles pais que desejam ter um melhor acompanhamento no
desenvolvimento escolar dos filhos e, consequentemente, oferecer-lhes uma
melhor educação em todos os aspectos. Desse entendimento, decorre três
dos principais elementos indispensáveis aos pais: ciência, arte e horas de
trabalho.
Dentro da perspectiva que estamos analisando, educar enquanto
ciência não significa necessariamente acompanhar os avanços científicos na
área de Educação, nem muito menos compreender os desafios da Educação
Brasileira, por exemplo. Significa entender que, baseados em pesquisas
empiricamente comprovadas, há algumas atitudes e ações das famílias e das
escolas, principalmente desde os primeiros anos de vida, que facilitam uma
série de funções neurológicas e cognitivas ainda em formação na criança e
que tais ações podem resultar na obtenção de melhores desempenhos tanto
do ponto de vista acadêmico intelectual, como no aspecto socioemocional.
Dessa forma, podemos entender que aspecto científico que levantamos
aparecerá como consequência de uma boa educação oferecida, através de
um acompanhamento oportuno de pais e educadores.
Já a arte de educar exclui qualquer tentativa de se propor um manual
de regras a serem seguidas, garantindo sua eficácia caso cada passo
daquele seja seguido. Seja qual for a proposta nesse sentido seria como

61
COROMINAS, Fernando – Educar, Hoje: Coleção Ser Família. Quadrante. São Paulo, 2005.
120
decepar o caráter único de cada pessoa humana, por isso, com os nossos
filhos não poderia ser diferente. Cada filho, cada criança, adolescente ou
jovem possui uma forma própria de enxergar a vida e tudo o que o rodeia. É
por isso que não é raro que ouçamos nas conversas populares o espanto de
alguns pais por supostamente terem oferecido a mesma educação para seus
filhos e os mesmos demonstrarem reações tão diferentes diante de uma
mesma situação de vida.
Eis o primeiro mito que os pais que buscam esse zelo educativo
precisam esquecer. Por mais difícil que se possa entender, devemos aceitar
que não devemos achar que nossas crianças sejam educadas da mesma
maneira. Por isso a necessidade de “dedicar-lhe horas de trabalho” (terceiro
ponto). Essas horas devem constituir, em primeira instância, para conhecer
bem as característica, os gostos e os defeitos de cada filho e trabalhar em
cima dessas condições para que o mesmo possa se desenvolver de forma
harmônica e saudável.
Conhecer bem os filhos não é uma tarefa tão fácil quanto parece.
Exige uma boa quantidade e qualidade de tempo em que dedicamos a eles.
Em outros tempos, geralmente as mães obtinham mais sucesso nesse
conhecimento, sobretudo porque geralmente estava delegada a elas a
função de permanecer mais tempo com as crianças. Nos dias de hoje, como
boa parte das famílias possui pai e mãe inseridos no mercado de trabalho, o
fator qualitativo dessas horas e a constância em que é dedicado são
fundamentais para essa boa formação.
Só para entendermos um pouco mais dessa realidade, em duas
pesquisas feitas recentemente, foi constatado que a maioria das famílias já
consegue perceber as dificuldades nesse sentido. A primeira delas foi feita
com mais de cinco mil mães inseridas no mercado, que foram questionadas
a respeito dessa relação trabalho e família, nesse caso um percentual de
72%62 dessas mães afirmaram que gostariam de dedicar mais tempo aos
seus filhos e sentem um pesar por não corresponder bem nessas

62
Revista CRESCER, link: http://revistacrescer.globo.com/Revista/Crescer/0,,EMI276473-
18514,00-MAE+OU+PROFISSIONAL+ESCOLHA+OS+DOIS.html acessado em 03 de abril de
2016.
121
expectativas. Por outro lado, em um levantamento feito apenas com os pais
inseridos no mercado de trabalho, observou-se que pouco mais de 58% 63
dos entrevistados acreditam que não passam tempo suficiente com suas
famílias em razão de suas atividades profissionais. Ora, diante de dados tão
significativos, é possível supor que haja uma grande dificuldade em
conhecer realmente os filhos que têm, principalmente quando, não raro, há
uma intercessão desses dois grupos de homens e mulheres na mesma
situação.
Diante dessa realidade, não restam dúvidas de que aqueles pais que
desejam ser protagonistas na formação dos seus filhos precisam ser
constantes no tempo dedicado a estarem com eles. Ou seja, dedicar, se
possível, algumas horas diárias para permanecer junto ao seu pupilo
ajudando-o nas diversas atividades em que ele estiver inserido, conhecendo
intimamente a sua personalidade e gostos através de suas reações. Esse
tempo, não precisa necessariamente ser apenas um determinado momento
para essa finalidade, pois nas próprias tarefas cotidianas podem servir de
grandes oportunidades para pôr o plano em prática.
É preciso resgatar aquela figura do pai que chega do trabalho muitas
vezes exausto, mas que realiza o bom sacrifício de conversar com seus filhos
sobre as coisas que fez durante o dia na escola, no esporte ou com os
amigos e talvez ajudá-los naquelas disciplinas onde possuem maior grau de
dificuldade.
Além disso, nossas famílias devem retomar um hábito tão simples, que
é o sentar-se à mesa para as refeições, sobretudo para o jantar, onde se
encontra uma grande oportunidade tanto para conhecer os filhos, como para
eles conhecerem seus pais.
Por mais avanços que a televisão possa ter trazido, é necessário que
as famílias deixem de utilizá-la como único meio de lazer principalmente
durante os dias úteis. O tempo que passam todos de modo passivo
assistindo à novelas, filmes e programas, muitas vezes de péssimo conteúdo
63
Jornal O GLOBO, Caderno BOA CHANCE, Edição do dia 05/08/2014, versão digital
em: http://oglobo.globo.com/economia/emprego/pesquisa-revela-que-os-homens-tambem-
gostariam-de-trabalhar-menos-para-ficar-com-os-filhos-13492370 acessado em 03 de abril
de 2016.
122
formativo, podem ser utilizados de formas muito mais dinâmicas e
saudáveis. Para isso, é necessário ter criatividade e selecionar outras
atividades que ocupem o tempo que seria dedicado a isto. Os resultados
nesse sentido são surpreendentes para a família e para as crianças.
Outro aspecto que é indispensável ser destacado é a importância do
esforço e da exigência familiar e escolar para que seus filhos e alunos
obtenham resultados significativos e duradouros. Esta cobrança – seja dos
professores, ou dos próprios pais – é algo que chama a atenção e precisa ser
recuperado no ambiente familiar e escolar.
Nesse tema, há dois grandes riscos que pais e professores precisam se
prevenir. O primeiro relacionado à cultura hedonista em que vivemos, que
propaga que o esforço, a cobrança, as exigências e os pequenos sacrifícios
são algo que devem passar longe da educação oferecida às crianças. Já o
segundo diz respeito aos perigos que o excesso de pressão sobre bons
resultados pode exercer de forma negativa na construção do caráter da
pessoa. No entanto, esses dois extremos não podem ofuscar a importância
da saudável exigência familiar na obtenção de bons rendimentos
acadêmicos.

Apenas para exemplificarmos, já foi verificado 64 que os países onde há


culturalmente essa exigência por parte das famílias possuem as melhores
pontuações nas principais avaliações mundiais de desempenho em
matemática, ciências e leitura. Ainda nessa pesquisa, constatou-se o caso
dos Estados Unidos e da Coréia do Sul, ambos com boa participação da

64
RIPLEY, Amanda – As crianças mais inteligentes do mundo e como elas chegaram lá.
Ed. Três Estrelas. São Paulo, 2015.
123
família no âmbito das atividades escolares dos seus filhos, sendo que no
caso americano o foco dessa participação foi paulatinamente ao longo das
últimas décadas sendo mais direcionado às atividades esportivas e eventos
sociais promovidos pela escola, o que acabou por coincidir com a queda do
país no ranking dessas avaliações e no caso coreano o foco cada vez mais
intenso no resultado acadêmico levou o país a ser uma das principais
potências educacionais em poucos anos, no entanto, têm gerado alguns
problemas de sociabilidade em sua juventude. Esse paralelo nos permite
entender, por um lado a necessidade de uma cobrança da família com foco
no desempenho acadêmico e, por outro, a importância do equilíbrio e do
investimento na educação das capacidades socioemocionais da pessoa.

124
III– As consequências da boa
afetividade na Educação.

Não podemos negar que há um encantamento quando conhecemos


pessoalmente ou pela mídia aquelas instituições cujo padrão de estrutura
curricular e de qualidade acadêmica que oferecem, apresentam resultados
acima da média em quase todos os quesitos intelectuais. Causa certo
deslumbramento verificar que existem colégios onde o aluno sai tendo
aprendido dois ou três idiomas distintos, além de técnicas apuradas de
raciocínio lógico e capacidades que hoje estão na moda no mundo
empresarial.
Todos queremos que nossos filhos e alunos sejam bem-sucedidos
profissionalmente e quanto a isso não resta a menor dúvida. No entanto, a
pergunta que se faz diante dessa realidade é acerca de que preço isso deve
acontecer. Ou ainda, a velha pergunta sobre o que é mais importante a se
oferecer na educação para eles para que obtenham uma formação
intelectual de qualidade e, ao mesmo tempo, um bom desenvolvimento do
seu caráter e de sua socialização.
Talvez com o avanço dos meios tecnológicos e da comunicação, nossa
geração pôde constatar uma realidade não tão evidente até bem pouco
tempo. Refiro-me a profissionais de altíssimo nível, mas que são péssimas
pessoas em relação ao seu caráter, ou que vivem frustradas e sem
motivação no cargo que exercem, mesmo possuindo grande remuneração
financeira para isso. Infelizmente eles estão por toda parte. Políticos que
utilizam a verba pública em benefício próprio, médicos que negligenciam
atendimento em postos públicos ou simplesmente não cumprem com seu
dever, professores militantes que utilizam sua sala de aula para defender um
partido ou ideologia.

125
Poderíamos aqui dar outros vários exemplos, mas o que podemos
constatar de modo evidente é que uma boa formação acadêmica não é
garantia de uma educação de sucesso. A prova disso é que conhecemos
pessoas muito bem educadas, mas que precisaram batalhar, diante de
condições precárias, para chegarem onde estão e pessoas que passaram
pelas melhores instituições de ensino, mas que demonstram através de suas
atitudes que são infelizes e vazias por dentro. Certamente não é esse fim
que pais e professores desejam para seus jovens.

126
IV– A Importância dos primeiros
anos de vida.

É na fase inicial da vida da criança que os pais devem investir seu


tempo e energia de maneira mais incisiva. Em suas pesquisas, Jack
Shonkoff, economista e pesquisador da Universidade de Harvard, defende
que se deve investir na educação de uma criança o mais cedo possível e não
deixar que esses estímulos comecem apenas após os 3 ou 4 anos de idade,
quando a criança entrar para a escola. Isso porque as experiências da
primeira infância influenciam de modo decisivo o desenvolvimento
arquitetônico do nosso cérebro constituindo os principais alicerces para a
capacidade de aprendizagem, desenvolvimento comportamental, além da
saúde física, psíquica e emocional. Para o pesquisador, “discutir a educação
infantil é também discutir o desenvolvimento infantil, porque é preciso
entender que não se trata apenas de educação. Não colocamos crianças de
um ano sentadas nas carteiras para aprender a ler. Estamos falando da
formação de pessoas.”65 Ou seja, mesmo para quem está preocupado com
aspectos econômicos da educação, se verificou que existem dois
fundamentos que precedem qualquer método educativo: a educação infantil
nos primeiros anos de vida e a formação de pessoas.
Essa percepção acerca mente da criança já vem sendo destacada há
algumas décadas por grandes educadores. Maria Montessori, considerava
essa fase tão crucial para a sociedade como um todo, que em seu clássico
livro “Mente Absorvente”, faz uma afirmação ao mesmo tempo perigosa e
coerente afirmação.
“Portanto, hoje, a criança deve ser considerada ponto de
ligação, anel de conjunção entre as diversas fases da história e os
diversos níveis de civilização. A infância é um período realmente
importante, pois quando se deseja infundir novas ideias, modificar ou
65
Entrevista dada à REVISTA VEJA em 28/04/2011, publicada no link:
http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/investir-em-educacao-infantil-e-investir-em-
capital-humano. Acesso em 01 de abril de 2016.
127
melhorar hábitos e costumes do país, acentuar com mais vigor as
características de um povo, deve-se tomar a criança como
instrumento, de vez que pouco se consegue agindo sobre os adultos.”
66

Desse modo, os primeiros três anos de vida de uma criança funcionam


com incrível harmonia e velocidade, as quais jamais se voltará a repetir na
vida daquela pessoa. Esse desenvolvimento tão peculiar é fundamental para
se lançar os principais alicerces das capacidades de linguagem que o
indivíduo irá construir, bem como da sua formação psicomotora. Essa
formação funciona como uma espécie de orquestra, cujo palco é o cérebro e
os instrumentos vão sendo introduzidos nas experiências que a criança vem
recebendo desde o seu início de vida. Trata-se de uma complexa e delicada
movimentação que jamais voltará a acontecer de forma tão intensa,
configurando-se assim um período fundamental para a introdução de uma
educação verdadeiramente oportuna, que aproveite essa espécie de chance
única para solidificar e – podemos dizer – preparar bem o terreno das
capacidades psíquicas, sociais e intelectuais.
Por isso, é importante que pais e educadores em geral entendam que
os estímulos externos recebidos por seus pupilos durante esse período
sensitivo são fundamentais para a boa estruturação da arquitetura cerebral
e poderão favorecê-los de modo muito significativo em uma perspectiva de
aprendizagem futura.
Para entendermos como isso funciona, é preciso compreender um
fenômeno que ocorre em nossos cérebros conhecido como Plasticidade
Cerebral, também chamado de Plasticidade Neuronal. Embora não possua
uma definição única para esse conceito, podemos compreendê-lo,
resumidamente, como a capacidade adaptativa e formativa que nosso
cérebro possui para aprender coisas novas e adaptar-se a essas novas
informações recebidas. Através das neuro-conexões desencadeadas pelos
estímulos de ordem afetiva, física, intelectual etc, formam-se diversos
circuitos estruturantes, de modo que nosso cérebro seja capaz de capacitar-

66
MONTESSORI, M. Mente Absorvente, Ed. Nórdica, Rio de Janeiro, 1987.
128
se para que aquela informação permaneça e se solidifique na mente. Tal
consolidação se multiplica rapidamente e se fortalecem pelo estímulo
constante. Diante disso, a qualidade e a quantidade de informações que as
crianças nessa fase são estimuladas serão fundamentais para a formação de
suas habilidades intelectuais e comportamentais.
Assim ocorre qualquer processo de aquisição de conhecimento de
qualquer natureza no ser humano, ou seja, através da capacidade que o
cérebro possui de reestruturar-se, por meio de sua plasticidade neuronal, a
cada estímulo recebido, é que irá se configurar numa nova aprendizagem.
Baseado nisso, devemos compreender que todos os estímulos
recebidos pela criança nos primeiros anos de vida serão aqueles que
possuem um impacto mais duradouro e isso se dá basicamente por dois
motivos. O primeiro, como já dissemos, é pelo fato de que experiências
vividas pela criança dirão se o cérebro formou uma base sólida não apenas
para uma boa aquisição de aprendizagem, mas também com impactos para
a saúde e o comportamento. Já a segunda razão, consiste no fato de que é
nesse momento da vida que ocorrem com muito mais intensidade os
processos cognitivos da plasticidade cerebral. De fato, é cientificamente
verificado que esse processo ocorre com uma força muito superior a
qualquer outro momento da vida de um indivíduo, sua capacidade de
fortalecimento mediante o estímulo e velocidade de formação é maior até
mesmo que o período da puberdade, onde também ocorrem uma série de
transformações psíquicas e hormonais em nossos jovens quando adentram
na fase da adolescência.
As experiências e os ambientes onde vivemos será o que mais
influenciará a estruturação cerebral e quais circuitos formados serão mais
utilizados pelo nosso cérebro. Conforme a maior quantidade de
determinados estímulos e experiências, se construirá uma espécie de vias
expressas, que consequentemente fará com que hajam circuitos mais
fortalecidos por serem justamente aqueles que são utilizados de modo mais
frequentes, enquanto que os menos usados tenderão ao desaparecimento
por meio de um processo natural conhecido como poda. Isso indica, por

129
exemplo, o porquê de nós possuirmos determinadas habilidades em certos
quesitos, em detrimento da falta delas em outros.
Considerando a ênfase que ressaltada para todo esse processo,
podemos concluir positivamente que essa fase trata-se de uma grande
oportunidade que, mediante uma boa dose de investimento e esforço por
parte das famílias e das escolas, podemos ajudar significativamente as
nossas crianças com uma boa educação em aspectos afetivos e intelectuais,
que resultarão em ganhos extraordinários na aquisição de novas
informações e na organização dos conhecimentos, que durarão pelo resto de
suas vidas, se cultivados corretamente.

130
V – O problema do stress tóxico

Considerando todos os efeitos positivos de uma boa educação da


afetividade proporcionados pela doação generosa de pais e educadores às
crianças nos anos iniciais, não podemos negligenciar o outro lado desse
período fundamental, o qual esses mesmos responsáveis precisam estar
atentos e comprometidos em não deixar espaço para que ele ocorra. Trata-
se do perigo causado pelo chamado stress tóxico.
O stress propriamente dito é algo inevitável e faz parte da vida de
qualquer ser humano e, guardada as devidas proporções, naturalmente
deverá fazer parte também da vida de nossos filhos e alunos desde os
primeiros anos de suas vidas.
Pesquisas científicas recentes67 revelaram que, ao contrário do que
muitos pensam, o stress não é algo somente negativo. Na prática, é
necessário fazer uma distinção, e compreendermos que, segundo tais
pesquisas, na vida de qualquer ser humano existem basicamente três tipos
distintos de stress, sendo um tipo positivo à pessoa, outro negativo e
prejudicial e um terceiro considerado tolerável. O acontecimento de qualquer
um dos tipos de stress desencadeia em nosso metabolismo uma série de
reações e estímulos de ordem hormonal, química e psíquica.
Assim, podemos compreender, por exemplo, que o chamado stress
bom trata-se daquele que, além dos seus impactos serem toleráveis a
qualquer pessoa, será capaz de resultar num impulso a reagirmos diante de
uma situação de perigo ou dificuldade, isto é, seu processo atua como
estímulo que funcionará de modo análogo a um incômodo causado por um
acontecimento ou instabilidade, que impulsionará uma reação que busque
solucionar certa dificuldade ou problema. Além disso, é através desse tipo de
stress que, segundo outra pesquisa recente 68, guardadas as devidas
67
Center onDevelopingChild, HavardUniversity.
Endereço eletrônico http://developingchild.harvard.edu/ acessado em 02 de maio de
2016.
68
Bruce McEwen, Universidade Rockefeller.
131
proporções, pode ajudar as pessoas – crianças e adultos – a serem mais
atentas, ágeis e competitivas em nível sadio.
Já o stress tolerável pode ser compreendido como simplesmente o
conjunto de acontecimentos que se dará muitas vezes de forma cotidiana,
onde seus impactos na vida daquela criança podem ser contornados
facilmente através do apoio necessário, ainda que seja algo difícil de
suportar num primeiro momento. Seus efeitos são remediáveis na medida
que se atue rapidamente.
No entanto, após essa resumida explicação, é o chamado stress tóxico
ruim que mais deve preocupar os pais. Suas consequências podem gerar
graves lacunas neurológicas que irão afetar, dentre outras coisas, os
principais alicerces da futura aprendizagem que os filhos se submeterão ao
longo de suas vidas. Como o próprio nome sugere, esse tipo de situação
pode provocar reações extremamente prejudiciais às nossas crianças, uma
vez que seu organismo ainda se encontra em pleno processo de
amadurecimento, não tendo ainda desenvolvido minimamente parte das
capacidades psicoafetivas para suportá-lo, deixando assim marcas em
diversos pontos importantes do seu sistema neuronal, incluindo a região
responsável pela aprendizagem.
O risco de desenvolvimento do stress tóxico ocorre na perigosa
mistura de repetidas e intensas situações de stress vivenciadas pela criança,
somada à falta de um adulto acolhedor que a ajude nesses momentos,
aliviando assim toda carga de tensão hormonal, química e psíquica
produzida e acelerada em seu organismo gerada pela vivência do stress.
Quando ocorrem tais situações extremas, seja pela falta constante de
um adulto, principalmente dos pais, que os acolham e os protejam, ou – pior
ainda – quando sofrem situações severas, tais como abusos ou negligência,
muitas vezes originadas por esses mesmos que deveriam oferecer o conforto
necessário, acontece que toda a resposta biológica natural dada ao stress
permanece ativada, sem voltar à estabilidade normal. Ou seja, a ativação
constante à resposta ao stress e a falta de alívio, faz com que o sistema de

Entrevista no link http://super.abril.com.br/comportamento/o-estresse-faz-bem


132
resposta permaneça constantemente em alerta, gerando como consequência
imediata uma sobrecarga na formação do sistema neuronal ainda em
desenvolvimento, provocando assim o stress tóxico, que poderá, como já
dissemos, afetar partes importantes de seu cérebro, reduzindo conexões
neuronais em regiões importantes do cérebro como, por exemplo, aquelas
responsáveis pela aprendizagem, raciocínio, emoções, etc., justamente por
serem as mais frágeis.69
Portanto, para o stress tóxico seja evitado, é importante que os pais
assegurem a seus filhos um ambiente acolhedor, onde a criança sinta-se
verdadeiramente amada, muito além de um mero sentimentalismo ou da
realização de suas vontades, mas que percebam a atenção e o tempo que
recebem de seus pais. Além disso, outro ponto importante é que sejam
educados em ambientes estáveis e seguros, através de um clima de
harmonia e alegria que tem como maior exemplo a relação amorosa dos pais
entre si e com os outros. A força desse espelho para ela contribuirá para que
seja uma criança mais segura e propensa a arriscar-se em aprender coisas
novas.

69
Cfr. https://www.youtube.com/watch?v=dZazltqAti0, acesso em 04/05/2016.
133
VI–Algumas soluções práticas.

É preciso partir para a prática! Ofereceremos algumas ideias


especialmente para os pais, que podem ser desenvolvidas cotidianamente
com os seus filhos e que não requerem um conhecimento científico ou
pedagógico tão profundos para serem aplicadas. Na realidade, está
comprovado que através de estímulos simples, mas constantes e oportunos
é que se consegue gerar inúmeros benefícios futuros de aprendizagem para
nossas crianças.

Ações práticas nos primeiros anos

Nos primeiros meses, a conversa e o cantar são de muita ajuda, já que


a voz da mãe proporciona prazer e tranquilidade para o bebê. Além disso,
como se sabe, a fase da amamentação é muito significativa não apenas para
a questão física, mas também pela oportunidade de ser um período de
carinho entre mãe e filho que proporcionará como consequência imediata
aquela segurança tão necessária que nos referimos anteriormente, por isso,
esta prática deve ser estimulada o maior tempo possível que as mães
possam disponibilizar.
Mais adiante, quando a criança está próxima ou completou primeiro
ano, já está mais madura em seus sentidos e na sua estrutura física, ficando
de pé e aguçando o interesse por sons e imagens de todo o tipo.
Inicialmente, o uso objetos musicais e chocalho, servirão para demonstrar
que o som vem de fontes distintas e o uso de cubos ou objetos que se
encaixam, os ajudarão a obter a noção espacial. Mais adiante, é importante
que os pais comecem a demonstrar livros com ilustrações, pronunciando o
que elas estão observando, uma vez que, apesar da aparente falta de
resultado dessa atividade, sua plasticidade neuronal já estará sendo formada
134
com o início de uma associação significativa daquele som ao objeto ou
imagem apresentada. Além disso, brinquedos de puxar e empurrar, como
carrinhos, ou brinquedos que favoreçam a imaginação da criança, tais como
fantoches, bonecos e bonecas, pequenos animais, facilitarão ainda mais esse
processo de aquisição de linguagem e facilitará futuramente na
aprendizagem e na decodificação da escrita daquele signo.
Já quando estão em torno de dois anos, é a fase onde estão se
desenvolvendo de modo mais intenso suas funções cognitivas avançadas. É
nesse período que elas solidificam seu andar, além de desenvolverem
respostas mais contundentes a ordens, brincadeiras, coordenação de
palmas, entre outros estímulos, por isso, atividades como o conto de
pequenas histórias, nomeando claramente as figuras presentes nos livros, o
contato mais contínuo com outras crianças em parques e pracinhas e até
mesmo o contato com outro idioma, facilitarão, respectivamente, a
compreensão e interpretação, a socialização e interação e a aquisição de um
outro idioma de forma mais eficaz.
Por fim, entre três e quatro anos de idade, ativam-se mais
intensamente as áreas de capacidade executiva avançada e da linguagem. É
nesse momento crucial que as crianças começam a brincar mais ativamente,
com verdadeiras explosões de sentimentos, tais como alegria, tristeza e
raiva, além de serem mais curiosos e capazes de melhor compreender e
controlar certos impulsos. Por isso, nessa fase é importante que os pais
falem de modo correto e até mesmo formal, para que é o período onde
começa a facilidade em aprender a falar sem erros, nesse quesito, a leitura
de bons livros clássicos, com uma linguagem menos coloquial possível
ajudará bastante. Ainda nesse sentido, se verificará que a criança possui
uma capacidade imaginativa muito boa, que pode ser desenvolvida deixando
que as mesmas contem suas histórias e se pergunte detalhes sobre o que
está sendo relatado por elas. Também é nessa fase que se devem
intensificar a imposição de limites na educação, através do estabelecimento
de algumas normas e, principalmente, do exemplo, uma vez que é aqui que
o comportamento das crianças começa a ser lapidado. Nesse quesito, pode

135
ser útil aos pais realizarem programas individuais e em família com as
crianças, tais como viagens, passeios, visitas a locais culturais e o fomento à
piedade religiosa.

A influência do ambiente de leitura

Um fator que deve ser bastante ressaltado na educação, já que


favorece significativamente a aprendizagem com excelência por parte das
crianças, é a criação de um ambiente de leitura dentro de casa. Quando os
pais procuram fomentar esse tipo de hábito em seus lares e o colégio
estimula e procura formar os pais para que leiam em casa, nota-se
claramente que se obtém resultados significativos na aprendizagem.
Vale ressaltar, conforme pesquisa desenvolvida por Alice Sullivan e
Matt Brown da Universidade de Londres70, que os bons resultados não
ocorrem apenas em matéria de leitura ou ciências humanas, conforme se
pode supor, mas também que esses alunos investigados por essa
investigação apresentaram grande desempenho no aprendizado de
matemática e raciocínio lógico, por exemplos. Os pesquisadores afirmam
que é possível entender que o estímulo ao ambiente de leitura desde cedo
tenha ajudado os alunos a terem uma melhor compreensão e assimilação
das informações recebidas de uma maneira geral.
Obviamente são necessários esforços por parte dos pais, além de uma
certa bagagem cultural e intelectual, de modo que possam promover essa
prática através do estímulo e também do exemplo, demonstrando como a
leitura e o estudo em si ao invés de serem um fardo, são fontes de alegria e
de crescimento humano.

70
Alice Sullivan e Matt Brown, «Social inequalities in cognitive scores atthe age 16:
The Role of Reading» Center for Longitudinal Studies, Instituto de Educação da Universidade
de Londres. CLS WorkingPaper 2013/10
136
A boa referência familiar

Outro ponto fundamental é a influência do tipo de família em que a


criança vive no desenvolvimento escolar. Como afirmamos, um ambiente
familiar luminoso e alegre, cujos pais procuram viver uma harmonia
conjugal, transmite aos filhos uma segurança e carinho que os favorecerá
tanto no seu aspecto psicoafetivo, como também no desempenho escolar.
Para ilustrar tais efeitos, foi analisado 71 recentemente na Espanha
possíveis relações nesse aspecto, comparando a taxa de repetição e o
desempenho em Matemática de umgrupo de alunos na faixa etária de 10 a
14 anos, divididos em famílias nucleares (quando os filhos vivem com pais e
mães biológicos ou adotivos) e famílias não nucleares* (onde os filhos não
convivem com seus pais simultaneamente). Nessa pesquisa com mais de
27.000 alunos, verificou-se, por exemplo, que alunos de 14 anos que vivem
em “famílias não nucleares” possuem uma taxa de repetição de 45,2% em
escolas públicas e 32,7% em escolas privadas; ao passo que os alunos
inseridos em “famílias nucleares” corresponde a 33% em escolas públicas e
22% em privadas.
Obviamente, não se trata de afirmar que pais e mães que vivem nessa
situação não oferecem o amor necessário para seus filhos, nem tão pouco
levantar generalizações acerca das crianças que se encaixam nesse grupo.
No entanto, é preciso compreender que a melhor forma de enfrentar essa
realidade é quando marido e esposa se esforçam em lutar por seus
matrimônios, principalmente por amor aos filhos, que são aqueles que mais
sofrem tanto no ponto de vista afetivo e emocional, como também muitas
vezes em seu desempenho escolar quando ocorrem possíveis separações.
Ainda nesse ponto, é preciso defender os ataques que a família vem
sofrendo nos dias atuais, já que não são poucas as estratégias maliciosas

71
Daniel Santín González y Gabriela Sicilia Suárez. “Tipo de familia y rendimiento
educativo de los hijos en España”. Acción Familiar. Documento de trabajo nº 01/13. Em “El
legado educativo en los distintos tipos de familias: El modelo de familia repercute en el
aprendizaje” Aceprensa, 5 de novembro 2013.

* Tradução do autor.

137
para subverter o valor de um ambiente familiar saudável e fecundo na vida
de nossas crianças. Não faltam políticas públicas e, infelizmente, escolas que
estimulem os pais a terceirizarem seus compromissos ou permitir a
penetração de falsos valores em seus lares, contaminando assim seus ideais
mais transcendentais. O elemento básico para enfrentar todos os efeitos
educacionais negativos de uma família sem estrutura sólida é compreender
que só através desse alicerce que nossas crianças podem desenvolver de
modo completo a maturidade, a liberdade e a descoberta de sua identidade.
Mesmo com todas as dificuldades próprias de seu cotidiano, quando o
relativismo e o egoísmo não penetram no espaço familiar, observamos
claramente que os filhos conseguem crescer para a vida.

A influência de uma boa escola

Talvez a principal dúvida que paira na cabeça de pais que


compreendem a necessidade de oferecer uma boa formação socioemocional
concomitante a uma excelência acadêmica, é a escolha de uma boa escola
para os filhos. Portanto, essa escolha “deve basear-se em se seu ideário
oferece o tipo de educação que desejamos para os nossos filhos”72. Embora
já tenhamos colocado alguns pontos a esse respeito, é fundamental reforçar
a ideia de que não se pode renunciar o dever/direito 73 de se exigir para seus
filhos uma instituição de ensino que se possua realmente uma concepção de
educação completa em todos os níveis, que sua proposta educativa seja
voltada para a formação humana e que, enfim, não transmita a seus alunos
uma visão de homem descaracterizada da verdadeira.
Um ambiente escolar sadio deve ser aquele que, através de sua
proposta pedagógica, procure oferecer às famílias os três pilares básicos
para uma educação verdadeiramente de qualidade: formação/participação
dos pais, educação socioemocional (virtudes) dos alunos e, quase como
consequência, a excelência acadêmica.

72
CERVERA, José M. e ALCÁZAR, José A. – As relações Pais-Colégio, Col. Fazer Família,
Ed. Rei dos Livros, Lisboa, 1996.
73
Declaração Universal dos Direitos Humanos, art. 26, §3º
138
Para sabermos se a escola ao menos procura viver essa proposta,
muito além de uma teoria utópica ou propagandista, devemos observar se
esse espírito educacional é traduzido em práticas concretas e cotidianas,
contando com uma equipe pedagógica que esteja igualmente munida de um
zelo educativo associado a uma boa formação profissional. Aqui, o
protagonismo dos pais ao invés de interferir, contribui para a autonomia da
escola e esta, por sua vez, não assume o lugar que cabe aos primeiros, mas
os auxilia e os forma no aprofundamento de temas importantes para eles.
A formação para pais através de palestras é algo que muitos colégios
têm adotado nos últimos anos e são, de fato, o primeiro passo para ver que
se busca uma primeira aproximação das famílias durante o ano. Mas o
simples oferecimento dessas reuniões não é uma garantia real de que é um
grande diferencial, já que muitas vezes as instituições de ensino oferecem
esse serviço apresentando temas desconexos e sem objetivos específicos e
não é difícil que gerem nos pais uma certa repulsa na participação. Por isso,
muito além das palestras em si, é preciso verificar se os temas que se
oferecem possuem objetivos práticos para a educação de nossos filhos e não
se prendam a assuntos genéricos demais, muito comuns quando os assuntos
envolvem abordagens ditas sociais. Uma boa referência é quando as
palestras se orientam na formação de virtudes dos alunos ou quando se
direcionam a práticas no ambiente familiar, onde os pais podem desenvolver
ainda mais as habilidades intelectuais e afetivas das nossas crianças.
Além das palestras, a leitura é algo fundamental para formação dos
pais, por isso, é indispensável que as escolas fomentem a leitura de livros e
artigos educacionais de qualidade. Com o avanço da tecnologia, o volume de
informações duvidosas sobre temas educacionais e familiares passaram a
ficar em contato direto com pais e professores, por isso, uma escola de
qualidade deve se propor a orientar a leitura dos bons livros que existem à
disposição de todos nós, bem como de artigos científicos ou periódicos, cujo
conteúdo possa contribuir na formação desses educadores e a leitura seja de
fácil compreensão. Esses materiais devem estar disponíveis tanto em

139
plataforma virtual, como fisicamente, se possível na entrada da escola, para
que os pais possam ver e pegar a qualquer momento.
A utilização da tecnologia também deve ser bastante considerada.
Muito se fala sobre sua utilização na educação e já se percebe que os
avanços nesse setor trouxeram malefícios e benefícios para pais, escola e
alunos. Entretanto, aqui importa observar como esses recursos podem
auxiliar dentro da temática que abordamos, ou seja, como é que as
ferramentas tecnológicas disponibilizadas pelas escolas podem contribuir
para as famílias no acompanhamento educacional de seus filhos.
De antemão, deve-se analisar se as ferramentas utilizadas se
encaixam na proposta pedagógica do colégio, ou seja, se sua utilização está
inserida nas atividades em sala de aula, proporcionando uma continuidade e
aprofundamento, bem como uma séria avaliação da realização dos
conteúdos elaborados pelos alunos naquele ambiente. Caso contrário,
podem ser apenas ser apenas “parafernalhas tecnológicas” que possuem um
objetivo muito mais mercadológico e de marketing, a fim de seduzir os pais
e que não acrescentam em nada na formação dos seus filhos.
O mais importante na utilidade desses recursos a ser oferecido pelo
colégio é que eles sirvam como rápido e eficaz instrumento de
acompanhamento daquilo que seus filhos realizam quando estão na escola.
Esse diferencial consiste em ir além do simples acesso ao desempenho nas
avaliações que os alunos se submetem, e chegar principalmente às
informações sobre empenho e postura nas diferentes disciplinas, bem como
observações feitas pelos professores tais como elogio ou algo que precisa
ser melhorado pelo aluno, além do acesso ao que está sendo ensinado aos
seus filhos por meio do plano de curso que vem sendo desenvolvido pelo
professor.
Naturalmente isso exigirá que a instituição de ensino ofereça a seu
corpo docente uma estrutura material e funcional para que esse sistema
seja bem alimentado. Aliás, o fato do colégio oferecer uma estrutura nesses
termos a seus professores já consiste, por si só, em outro ponto positivo, já

140
que isso exigirá uma equipe docente qualificada e empenhada em sua tarefa
educacional, indo muito além de simples transmissores de conteúdo.
Por fim, um grande diferencial a ser buscado pelos pais, já
amplamente abordado, é a tutoria. Como se pôde verificar, esse tipo
trabalho, inserido no contexto da educação personalizada, possui grandes
benefícios para os alunos que vão muito além do desempenho acadêmico.
Através do acompanhamento individualizado com cada pessoa, por meio de
encontros periódicos, os alunos são guiados de forma humana e inteligente
no crescimento de suas principais potências e na busca em melhorar nas
suas dificuldades.
O professor-tutor estabelece um vínculo de amizade e respeito, torna-
se referência para o aluno, preocupa-se com as dificuldades próprias de sua
fase de vida, principalmente o desempenho acadêmico e contribui com os
pais na orientação de pequenas metas e objetivos que devem ser
alcançados. Os encontros periódicos, de breve duração (não mais que trinta
minutos), previamente preparados e oportunamente trabalhados naquele
momento, fazem com que os alunos se sintam mais seguros, empenhados e
acompanhados em suas tarefas.
Tal trabalho perpassa o que hoje se chama de reforço escolar, muito
oferecido em várias escolas que, embora possa ter alguma importância,
jamais poderá substituir a tutoria, uma vez que nada mais é do que um
paliativo para dificuldades acadêmicas que o aluno possa ter. Nesse sentido,
a tutoria, se não supre, diminui significativamente a necessidade de pais e
colégios de “apagarem incêndios” devido ao baixo rendimento dos seus
alunos, além de proporcionar um número maior de alunos atentos em sala
de aula, diminuir a ocorrência de indisciplina tanto em casa como no colégio
e – o mais importante – não dá o peixe, mas ensina nossos jovens a pescar,
isto é, ajuda-os a buscar por si próprios a melhorarem na luta por realizar
aquilo que não gostariam tanto de fazer, mas que é o mais importante
naquele momento, por meio do esforço em sair de suas comodidades, além
de se organizarem melhor no seu cotidiano, conjugando o lazer e a
responsabilidade de forma harmônica.

141
Um caso de sucesso foi observado num colégio particular no Rio de
Janeiro, o qual tive oportunidade de atuar como coordenador pedagógico e
acompanhar esse trabalho de forma muito próxima. Nesse cargo
desempenhado, o contato com todos os agentes envolvidos na educação
ocorreu de forma muito intensa e contínua. Dentre outras funções, cabia ao
coordenador estabelecer uma ponte entre direção, famílias, professores e
alunos. Por essa razão, pude verificar um divisor de águas na vida de muitos
alunos quando começaram a serem acompanhados pela tutoria.
Na ocasião em que o projeto foi implantado, os professores
previamente selecionados passaram meses em um processo de formação
para esse tipo de trabalho, sendo orientados nos aspectos acadêmicos,
socioemocionais e pedagógicos para realizarem a tutoria de forma eficaz, já
que obviamente não foram formados para isso na universidade, apesar de
serem oriundos das principais instituições de ensino de suas carreiras. Esse
aspecto formativo do professor consiste em um dos principais diferenciais do
serviço de tutoria, já que sinaliza para os pais que seus filhos terão
professores preparados para função que exercem e que o colégio em que
estão confiando investe na formação seus docentes, algo de extrema
raridade hoje em dia.
Os resultados na realidade escolar foram rapidamente perceptíveis.
Como coordenador, quando me deparava com pais e alunos em situações de
dificuldade, percebia que em boa parte dos casos, um trabalho coordenado
com o professor-tutor poderia ajudar aquele aluno no problema que se
encontrava. Como a base da tutoria é a liberdade, procurava orientar esses
casos de forma que o aluno se sentisse livre, mas responsável, em se dirigir
ao tutor, que poderia lhe ajudar muito naquele momento. Contando com a
agenda dos horários disponíveis, na grande maioria das vezes o aluno
marcava o atendimento com o tutor e, por meio de um sistema de
informática, os principais pontos pedagógicos do encontro eram registrados,
bem como as metas estabelecidas e, consequentemente, os progressos e
objetivos alcançados.

142
Aqueles alunos que perseveravam nos encontros mudavam de postura
em sala de aula. Os próprios professores muitas vezes se surpreendiam com
algumas evoluções. Mesmo aqueles que demoravam mais a apresentar
alguma melhora visível no rendimento acadêmico, claramente cresciam
paulatinamente e se sentiam mais motivados a enfrentar as dificuldades que
outrora lhes pareciam algo entediante e sem solução visível.
De outro lado, os pais que abraçavam essa ideia se sentiam mais
acompanhados em sua missão educacional, conseguindo ver que os filhos se
esforçavam mais em casa, que não perdiam mais tanto tempo com coisas
inúteis, que procuravam passar mais tempo estudando, que falavam com
mais frequência sobre temas profundos como profissão, estudos e objetivos
de vida e que estavam mais atenciosos e respeitosos no trato do dia a dia.
Por isso, o trabalho de tutoria em conjunto com a formação nas
virtudes consiste ainda hoje num grande vetor dessa instituição de ensino,
já que tem formado muitos alunos com uma autoestima mais elevada, que
buscam ser melhores em todos os aspectos, com desempenho acadêmico
muito significativo e crescente nos principais exames nacionais, além de um
ambiente escolar de excelência e confiança para as famílias.

143
VII – Considerações finais

A atual geração de pais e demais educadores veem nas dificuldades do


mundo moderno o grande vilão na formação de nossas crianças e, de fato,
por um lado estão certos. A alegação de que a complexidade da sociedade
em que vivemos dificulta muito mais a formação de um filho/aluno do que
no período de nossos ancestrais é verdadeira e inegável. Infelizmente esse
jargão tem servido para justificar desde as mazelas educacionais que
verificamos em nosso dia a dia, até as políticas anti-natalidade que são
propagandeadas aos quatro cantos do mundo por muitos organismos
internacionais.
Todavia vivemos uma espécie de paradoxo nesse sentido. Se por um
lado essa complexidade dificulta o trabalho dos educadores, por outro nunca
se teve tanto acesso a informações nesse campo e nunca se partilhou tanta
experiência positiva em pouco espaço de tempo. Além disso, não é difícil
encontrar pais de boa vontade, dispostos a lutar pela boa formação de seus
filhos e que sofrem por não saber como e onde encontrar respostas para as
suas dúvidas naturais.
Por isso, para formar nossos filhos e enfrentar os desafios que
encontramos, é preciso saber que estamos lutando contra um projeto
cultural que vem ao longo de séculos contaminando todos os aspectos
educacionais e na fase em que vivemos, visa como principal intuito a
redução– e até mesmo destruição – do papel da família na formação da
pessoa humana.

“Para esta visão, não importa mais que os valores culturais


sejam transmitidos. O mais importante é, na verdade, a sua completa
destruição. Para que isto não tenha uma aparência despótica e
violenta, várias teorias “demoníacas” foram nascendo ao longo do

144
século XIX e XX, de modo a justificar a implosão de todo o processo
educativo.”74

Não devemos cair no erro de “escolher e avaliar a melhor escola para


os seus filhos/alunos, trabalham com critérios incompletos: boas e
modernas instalações, altas taxas de aprovação nos melhores vestibulares, a
nota no ENEM, destaque nos esportes”75, pois as consequências desse
engano poderá formar pessoas frustradas, ainda que bem sucedidas do
ponto de vista material, distantes do verdadeiro fim a que se configura sua
existência. Como já se nota atualmente, crescerá ainda mais o número
pessoas que vivem esse vazio existencial, um sentimento de falta de
sentido76 e, pior ainda, um desses poderá ser um de nossos filhos, um de
nossos alunos.
Diante de uma perspectiva desafiadora, a postura não é de uma
pseudo defesa como, por exemplo, a restrição da abertura à vida ou ao
desespero diante das dificuldades. Pelo contrário, se faz necessário que
aumente o número de famílias que gerem filhos bem formados, através do
esforço e da generosidade dos pais, que devem estar atentos a cada fase
que vive seu filho, dispensando o tempo e as práticas necessárias para que
o mesmo seja bem formado. A busca por formação por parte dessas famílias
deve ser algo constante e fazer parte do seu estilo de vida.
Quanto aos profissionais da educação, estes não devem se acovardar
diante desse bombardeio ideológico muito difundido pela mídia e pelo
ambiente universitário. Na realidade, devem buscar uma formação que
conceba a educação como projeto de formação integral da pessoa humana
em todas as suas potencialidades. Obviamente isso requer desses
profissionais o aprofundamento e a pesquisa, no entanto, sabemos bem que
qualquer profissional que deseje se qualificar plenamente naquilo que
realiza, precisa dispensar um esforço que num primeiro momento parece

74
MALHEIRO, João. Escola com corpo e alma: Manuel de ética para pais, professores e
alunos. P. 16 Curitiba-PR: Ed. CRV, 2014
75
Idem, p. 122.
76
FRANKL, Viktor E. Sede de Sentido, 3ª Edição. São Paulo: Ed. Quadrante, 2003.
145
estar distante de suas possibilidades, mas que com o passar do tempo vai se
concretizando através do acúmulo de conhecimento gerado.
Por fim, quando se observa o investimento na influência da boa
afetividade da criança, principalmente desde os primeiros anos de vida, de
um acompanhamento familiar e escolar oportuno, que explore positivamente
as potencialidades próprias de cada fase de sua vida e transmita estímulos
adequados e valores profundos, vemos quase que como consequência
natural uma formação da pessoa humana sólida. O esforço dos pais e da
escola ganha sentido transcendental e os resultados educacionais possuem
verdadeiramente uma excelência. O retorno a práticas que considerem com
maior amplitude esse conceito é mais do que necessário, é algo urgente a
todos nós.

146

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