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Rio de Janeiro - RJ
Reitor
Roberto Lehrer
Apoio Editorial
Equipe Odara
Amanda Dib, Bárbara Perez, Brena Azevedo, Camila Silva Mendes, Flávia
Natércia, Giulia Benincasa, Maria Júlia Santana, Paula Campello, Rafaela
Miranda de Oliveira e Vinícius Fialho.
Ilustradores
Agradecimentos
Poéticos
Cavalo 10
Deborah Gonçalves
Espelho 14
Mahena Costa
Guarda-chuva Lilás 16
Renata Benicá
Claro Enigma
De escombros e sussurros: a Comala de Pedro Páramo como
entre-lugar 19
Alice Carvalho
Entre G e I 101
Rafaela Miranda
Parece que mais uma vez a nova edição da Odara ficou engavetada mais
tempo do que o desejado. Novamente passamos por imprevistos e desafios,
colocando à prova a nossa vontade de manter o projeto funcionando. Como é
difícil manter uma revista de graduação! Entre toda a pressão e as obrigações
que a vida acadêmica nos impõe, achamos uma pequena brecha na louca grade
horária da Faculdade de Letras para respirarmos um pouco na Odara. É isso que
a revista pretende ser, na medida do possível: um sopro de alívio entre a correria
natural do dia a dia.
Outra parceria que fizemos, para esta edição, foi com o Claro Enigma,
evento organizado pelos monitores e monitoras do departamento de Ciência da
Literatura. Ambos, Odara e Claro Enigma, são projetos feitos por alunos de
graduação e para alunos de graduação. O tema do evento, ocorrido nos dias 7 e
9 de novembro de 2017, coincide com o tema da revista: Direito à Literatura,
Direito ao Grito, que foi pensado dentro da perspectiva de uma conversa entre o
texto “Direito à Literatura” de Antonio Candido e A Hora da Estrela de Clarice
Lispector (sim! mais uma vez estamos falando de Clarice!). Candido, por um
| 10 | e esse me apadrinhou
Justiceiro
Honrado
Dono do raio e do fogo iluminado
Ele dá
mas ele cobra
KAÔ
| 11 |
Eduarda nasceu em Volta Redonda (RJ), em 1997. Desde pequena, queria ser
escritora. Estuda Letras: Português/Espanhol na UFRJ, escreve em sua página
Eduarda Vaz / Poesia e na Revista Pólen. Também é contadora de histórias e
professora. Alguns de seus poemas já foram publicados em revistas - como a
Zzzumbido. Seu primeiro livro, Aresta, foi publicado pela Macabéa Edições em
dezembro de 2017.
talvez
a primeira libertação da voz
talvez
a primeira libertação da voz
esticou-se pelo canto
escondido nas beiras de rio
durante o esfregar
das roupas e dos panos
destino trabalho recurso necessário
das moças guardadas
nos campos
talvez
a primeira libertação da voz
acalentou-se pelas receitas
ao fogão à lenha e às panelas
tempero toque jeito
Ainda que não seja onda Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
dos caldos das tortas das comidas
acrescentados sempre de um
segredo
amor reza uma pitada a mais de sal
carinho ofício recurso característico
das moças guardadas
nas cozinhas
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Ainda que não seja onda Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
Espelho
Mahena Costa
Tenho procurado
e ainda segurando a lupa
engulo a poeira de mim
pois quem quer que me veja me viu
| 14 | empoeirada
sei que somos duas e que as duas são iguais
compartilham
siamesas
segredos e travesseiros
amores
tristezas
nos separamos no ódio – uma de nós odeia
qual de nós é luz?
quem escreve? as duas escrevem
eu sei que na verdade nenhuma sozinha fez coisa alguma
pois uma delas rouba a doença da outra e inspira-se
perverso prazer em ver pesar
então a que dói
retorce e grita e faz pouco da que a segura
quem seria nesse ponto tão sádico
assim, expondo
exponho-me
quem é tão ruim?
– sou eu.
e exposta
nua
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Milena. Cabelos longos, olhos amendoados, rosto fino. Milena. Com suas
bochechas rosadas, andava por Copacabana as três da tarde com uma
curiosidade que só os vinte e poucos tem. Lá pela esquina da Siqueira Campos
com a Barata Ribeiro ela para. Se distraí com as bugigangas de uma senhora
cubana expostas no chão em uma toalha desbotada. Fica ali parada, hipnotizada
com aqueles objetos antigos em plena calçada movimentada, do lado do pastel
chinês, de uma mãe com seu bebê, de um jovem de terno e de um senhor.
Atônita, ela vira para trás. Na tentativa de achar nos pés firmes do senhor o
seu ato falho. Mas ele afrontava Milena. Aquelas costas concurdas. Costas e pés
que a esmagavam na sua imobilidade. Como uma barata marrom de rua, de
cozinha de restaurante velho. Suja, fria. Cheia de cascas. Milena sentia raiva.
Impotência. Muita raiva. Xingava baixinho. Com vergonha. Pensava em todas
as vezes que foi objeto. Desejo. Carne. Cantada. Conquista. Um abandono. E
nunca percebeu. A mão daquele senhor descortinava a coisa toda violenta.
Sentia náuseas de toda gente, do seu avô, da sua vó, de toda cruz no
pescoço das beatas, de toda vez que seu irmão podia chegar mais tarde do que
ela em casa, de toda vez que mandaram que ela cruzasse a perna. Teve cólera de
si. Do senhor. Cólera do mundo que aprisiona ela em uma bunda e ele em um
desejo. Quis gritar. Olhou para as pessoas ao redor. Todas em vitrines, horários,
compromissos, telefonemas. Imersos. Sem perceber a coisa toda violenta.
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Alice Carvalho
Os sonhos são vistos não como ilusões, mas como propriamente o que
se tem para dizer[...] Aqui, o sonho não tem um caráter diáfano,
imaterial. Ele é o que há de real, o que gera o movimento do narrador e,
portanto, da narrativa. As vozes que aparecem no romance são vazias
(BELCASTRO, 2015, p.).
Sentia o ar indo e vindo, cada vez menos; até que se fez tão fino que se
filtrou entre meus dedos para sempre. Digo para sempre. Tenho
memória de haver visto algo assim como nuvens espumosas fazendo
redemoinhos sobre a minha cabeça e depois enxaguar-me com aquela
espuma e me perder em sua nuvarada. Foi a última coisa que vi.
(RULFO, 2008, p. 41).
| 22 |
Mais uma vez, existe uma subversão da concepção tradicional de
“história” – além dos acontecimentos não se darem em uma ordem cronológica,
a narrativa não gira em torno de um personagem especificamente, não conta
uma única história: nem a de Juan Preciado, nem a de sua mãe, nem a do
próprio Pedro Páramo.
Susana, vale ressaltar, não apenas recusa – e abala – o “grande pai” que é
Pedro Páramo, mas também o seu próprio pai, Bartolomé. É possível apreender
a força desta negação especialmente no seguinte diálogo entre ela e seu pai:
É interessante notar que Susana não renega neste momento só o pai, mas vai
além: renega pretensões lógico-racionais e, mais ainda, “a misericórdia de
Deus”. Ela é, no romance, esse ponto inalcançável e responsável pela queda de
Pedro Páramo e Comala. Em sua única fraqueza, o seu amor por essa mulher,
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Dom Pedro é contrariado: “Esperei trinta anos pelo seu regresso, Susana.
Esperei até eu ter tudo” (RULFO, 2008, p. 94). Ela, que, como os demais
moradores de Comala, podem ser considerados “filhos”, recusa.
Referências
| 26 | impasse: o segurança me dizendo não. Afirmava que era apenas para alunos ou
ex-alunos, que para mim a entrada era não. Mas, minha amiga Lizandra, ex-
aluna, mais uma vez impulsionando que houvesse um sim, intercedeu para que
eu pudesse entrar. Por fim, conseguimos e fomos direto para o auditório
aguardar a escritora. No entanto, percebo, agora, a possível interpretação de um
breve erro no que intitulei este trabalho - A escuta de Conceição Evaristo. Esta
era, antes, nossa busca ao chegar ao Pedro II na manhã corrida do dia seis de
setembro, mas eu e ela não nos atentamos ao próprio nome do evento, chamado
Kizomba, entre vozes outras também convidadas a integrarem as falas, sem ser
somente a de Conceição Evaristo.
A escuta de Conceição Evaristo Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
que não cessa nas memórias e nas cenas; como um resgate sempre a vir. As
vozes daqueles dois alunos, confundindo-se, enquanto os outros permaneciam
cíclicos, transformou em deles, e nosso, aquela comunhão de ancestralidade e
memória - que é a potência dos escritos de Conceição Evaristo.
A escuta de Conceição Evaristo Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
incômoda, e incessante, sobre os olhos da mãe, como um eco retornando e
incorporando, por fim, a voz da filha.
A escuta de Conceição Evaristo Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
o eco da vida-liberdade.
A escuta de Conceição Evaristo Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
voz, a fala de quem conta, para se misturar à minha. Assim nasceu a
narrativa de Becos da memória.
A escuta de Conceição Evaristo Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
atendia ao meu desejo de que as memórias aparecessem e aparecessem
inteiras. E quem me ajudou nesse engenho? Maria-Nova.
Quanto à parecença de Maria-Nova, comigo, no tempo de eu-menina,
deixo a charada para quem nos ler resolver. Insinuo, apenas, que a
literatura marcada por uma escrevivência pode con(fundir) a identidade
da personagem narradora com a identidade da autora. Esta con(fusão)
não me constrange.
A escuta de Conceição Evaristo Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
estão inscritas nos diferentes âmbitos que dizem respeito à cultura
brasileira.
A escuta de Conceição Evaristo Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
Suas personagens são negras e vivem como domésticas, mendigas,
faveladas, presidiárias. E são, sobretudo, mulheres de fibra, lideranças,
referências comunitárias.
Ela teve nove filhos e muitos netos. Um dos netos, o pequeno Tático de
treze anos, foi assassinado dando mais uma dor a Duzu-Querença, que agora
A escuta de Conceição Evaristo Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
tinha a neta Querença para retomar os sonhos perdidos. Quando Duzu-Querença
morreu, e ficou em vida a pequena Querença com treze anos, mesma idade que
Tático, habitando os sonhos de reinventar a vida, encontrar novos caminhos. O
registro de realidade marcado por perdas alcançam empregadas domésticas
como Maria, voltando para casa segurando as sacolas cheias dos restos da festa
da patroa - o osso do pernil e as frutas que tinham enfeitado a mesa. Assim que
ela entrou no ônibus, reconheceu o homem que era o pai de seu primeiro filho.
Maria sentiu mágoa pelo abandono, por todo aquele tempo do qual não
apareceu. O homem sentou-se ao lado dela e cochichou que sentia saudades,
perguntou também sobre o menino, seu filho. Maria tinha tido mais dois filhos,
e nos três ela apostava: "Eles haveriam de ter outra vida. Com eles haveria de
ser diferente". Assim que o homem levantou-se, anunciou o assalto, mas ele e o
comparsa não levaram nada de Maria. Ela só pensava nos três filhos. Os
homens saíram do ônibus e o motim começou contra Maria, acusada de
conhecer o assaltante e não ter sido roubada. Mas ela não conhecia o assaltante,
| 34 | conhecia o pai de seu primeiro filho, quem pediu baixinho para enviar um
abraço, um beijo e um carinho ao menino de onze anos. A violência dos
passageiros explodiu, mesmo com a fala do motorista intervindo por Maria,
mulher que todo dia encontrava indo trabalhar para sustentar os filhos. No fim,
Maria não conseguiu chegar em casa para enviar o que o pai do menino tinha
pedido, nem para saber se as crianças gostariam de melão ou como seria, agora,
a vida dos filhos sem a mãe, linchada com o corpo dilacerado, pisoteado,
odiado.
A escuta de Conceição Evaristo Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
atrasando os horários de programação. No entanto, o convite para aquele dia
tinha, em todas as falas, o que aprendemos, sentimos e nos vemos, na
Literatura-palavra de Conceição Evaristo - e é a partir disso que intitulo meu
trabalho como A escuta de Conceição Evaristo, a recolher neles, e nela, todas
estas vozes em Kizomba.
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Referências
A escuta de Conceição Evaristo Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
O corpo, abaixo do equador, no
carnaval do Paraíso:
A relação do Carnaval, a Arte e a corrente
conservadora catequizadora.
O corpo, abaixo do Equador Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
Antropófago e faz inúmeras menções às diversas obras e autores da literatura.
Dentre eles, Machado de Assis - e seu “To Be or Not To Be” que dá origem a
expressão “Tupi or Not Tupi”, presente no manifesto - até José de Alencar -
com suas obras que falam de índios, mesmo que idealizados, como Iracema, que
curiosamente foi o enredo da G.R.E.S. Beija Flor de Nilópolis em 2017:
“Iracema A Virgem dos Lábios de Mel”. Oswald, então, instaura
inúmeras questões que perdurarão ainda por gerações, que tiverem a
sensibilidade de olhar sua obra, e a primeira e talvez maior delas seja:
“Nunca fomos catequizados?”.
O Corpo no Carnaval
Imensas vezes provamos, dia após dia, que fomos mais que colonizados:
fomos catequizados, ou talvez uma grande parcela de nós esteja se
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encaminhando a tal. Das inquietações que o Manifesto Antropofágico causa,
talvez essa seja a questão mais complexa de se responder: “Nunca Fomos
Catequizados. Fizemos Foi Carnaval.”. De fato, fizemos carnaval: aprendemos
no carnaval a viver com as dificuldades e a sermos felizes por quatro dias. Mas
aqui precisaríamos pensar que, mesmo com o sentimento de liberdade que o
carnaval nos traz, com esse sentimento de permissão, ele ainda é pensado
através de uma formação cristã: a ideia da festa da carne, da festa profana. A
nossa maneira de fazer carnaval é diferente, é única, já que aqui, no Brasil, a
terra tropical, talvez o pudor não existisse antes do colonizador Europeu, este
que a idealizava como a terra que não existe pecado, onde ele viu o índio
despido e que muitas vezes se reafirmou ser a terra abaixo do equador que não
existe pecado.
O corpo, abaixo do Equador Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
apenas com um tecido de paetês por cima da genitália, que muitas vezes ficava
exposta, na Marquês de Sapucaí.
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O Corpo e os espaços condenados: A censura à
Arte
O corpo, abaixo do Equador Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
limite do pensamento, possa ser curtido sem pudor e que lá fique, sem parecer
um fantasma que persegue. Romper essa barreira da liberdade do corpo é difícil.
É ruim o caminho dos que querem ser. O corpo na nossa sociedade parece um
objeto; sociedade essa que se diz tão decente, conservadora da “Moral e Bons
Costumes” e decide quais dos corpos importam.
Pensando no Queermuseu, que foi fechado por uma ideia moralista cheia de
palavras de “fé e moral”, como aconteceu com os colonizadores nas caravelas, é
possível notar uma força ditadora que impõe um corpo mais importante, , qual
integridade corporal deva ser mantida. De um lado, uma menina branca de
classe média-alta exposta a um homem nu; de outro, crianças negras, pobres,
moradoras de uma comunidade do Rio de Janeiro expostas a corpos (mortos)
nus, dilacerados por tiros, crianças dia após dia perdem conhecidos e entes
queridos . A menina envolta da polêmica do Queermuseu é a escolhida para
manter a inocência. Afinal, por causa disso, a exposição foi fechada e
bombardeada por críticas fundamentadas em “Deus, Família e Moral”. A arte
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passa por tempos difíceis. O mundo passa por tempos difíceis.
O corpo, abaixo do Equador Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
guarani “Terra das Palmeiras”, é o próprio Brasil. O samba parece se apropriar
desse conceito e o ressignifica como um lugar mágico do sonho e da falta de
vergonha, onde não há pecados. Por um lado, em 1928, o manifesto traz várias
questões sociais do Brasil pertinentes à época , falando de uma nacionalidade e
definindo o Brasil como país da Antropofagia, Hoje,entretanto, depois de quase
90 anos, encontramos um novo manifesto por meio do carnaval da Paraíso do
Tuiuti, assinado por Jack Vasconcelos, . No que diz respeito ao formato e ao
conceito do enredo, a história da tropicália é contada e recontada, bebendo das
fontes do modernismo para fazer duras e veladas críticas à ditadura. Talvez essa
escolha não tenha sido arbitrária, vivemos tempos minimamente estranhos.
Talvez, em 2016, antes do Prefeito Bispo, tais críticas se direcionassem
diretamente ao presidente “Vampirão”, mas elas caem quase como uma luva, ou
cairão ainda mais ano após ano do bispo prefeito sobre a Cidade Maravilhosa do
Pindorama.
O corpo, abaixo do Equador Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
tons de verde e rosa, uma planta Carnívora que deglute um “Abaporu”, um
brincante que simboliza “Macunaíma devorando a Arte”, fazendo referência ao
que o samba diz da obra de Oswald , e todo o setor de referências à sua frente
para formar o resto da escola que vem atrás. “Macunaíma”, o nosso anti herói, o
típico brasileiro e Tarsila e seu abaporu , “O Rei da Vela”, “Terra em Transe
serão deglutidos , sinais da nossa antropofagia cultural que se confirmam na
favela. Assim, vemos uma explosão de cores, de referências e de um
movimento que só confirma o quão antropófagos nós somos.
Vemos ali - nos vemos ali - o real retrato do que é o Brasil e do que é o
brasileiro, e percebemos que somos tupiniquins. Somos antropofágicos - isso é
inegável - conseguimos transformar em nosso tudo aquilo que nos é dado, e
fazemos isso com excelência Mas parece que nas comunidades, nas favelas,
“nos becos e vielas” isso ganha um novo sentido, uma nova maneira de se fazer.
O corpo, abaixo do Equador Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
favela, assim como a do desfile do Tuiuti, este “Pacman” antropofágico que se
constrói através daquilo que ingere do que vê pela frente.
Se a antropofagia nos une, o tal “erro de português” nos separa, nos faz criar
discursos de ódio, traz até apedrejamento, ou naturalização da morte em alguns
casos. A colonização, as ideias conservadoras, o pecado imposto a nós , o véu
do medo que vestimos nos torna incapazes de aceitarmos as diferenças: raça,
cor, etnia, opção sexual. "Ser” é pecado, o travestido é condenado, a travesti
leva pedra de dia, mas a noite o corpo travestido é um objeto de desejo
sublimado, que se localiza à margem; a liberdade é a paixão que move a vida,
todos queremos ser livres de tudo, queremos ter nosso corpo, ser nosso, ter
pertencimento próprio, engrenar a liberdade do corpo, dar voz.
O corpo, abaixo do Equador Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
Caminhando deixo o sonho me levar...
Necessitamos sonhar, nos carnavalizar dia após dia e ver o quanto somos
capazes de delirar enquanto não-catequizados. O que perdemos jamais teremos
novamente, mas o novo, que, como antropofágicos, conseguimos construir deve
ser a engrenagem que vai nos mover para utopicamente pensar, delirar e
antropófagos ser.
Ou
Em 2017
O corpo, abaixo do Equador Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
Referências
Links Consultados:
https://oglobo.globo.com/rio/crivella-diz-que-corte-de-subvencao-para-
carnaval-decisao-complicada-mas-necessaria-21511122 - Noticia do Corte de
Verba da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro
https://www.youtube.com/watch?v=JcD9xakS3Bo – Entrevista em que Leandro
Vieria, Carnavalesco da GRESEP Mangueira, comenta sobre o enredo para o
| 44 | carnaval de 2018
https://www.youtube.com/watch?v=FF41_PGsZCw – Desfile de GRES Beija-
Flor de Nilópolis do ano de 1989
O corpo, abaixo do Equador Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
Horacio Quiroga e a experiência dos
textos no espaço do entre-lugar
Brena de Azevedo da Silva Santos
Horacio Quiroga
Em seu texto "O que é o autor" de 1969, Foucault procura analisar a relação
do texto com o sujeito que escreve, mostrando como o texto vai apontar para
| 46 | essa figura que aparentemente é exterior e anterior a ele e inicia o ensaio com a
frase emprestada de Beckett: "Que importa quem fala, alguém disse que importa
quem fala" e continua mostrando que a ideia de apagamento do autor é para a
crítica um tema recorrente como já foi mencionado. E diz ainda que o essencial
não é mostrar mais uma vez esse apagamento do autor, mas sim descobrir como
lugar vazio – ao mesmo tempo indiferente e obrigatório – os locais onde sua
função é exercida.
Para Foucault, o autor vai existir como “função autor”: um nome do autor
não é simplesmente um elemento no discurso, ele vai exercer certo papel em
relação ao discurso. E afirma que "os textos sempre contêm em si mesmos um
certo número de signos que remetem ao autor." (s.f.). Esse vazio deixado pela
"morte do autor" vai ser preenchido pela categoria "função autor" que se
construirá em diálogo com a obra.
Para Barthes, a escritura começa quando ela não tem o objetivo de atingir
diretamente o real, e continua dizendo que "fora de qualquer função que não
seja o exercício do símbolo" (BARTHES, 1988, p. 58) o autor morre. A
escritura passa a gerir o papel performático e não o da genialidade.
Castillo evidencia que Quiroga teve uma vida marcada pela morte e pela
tragédia, e data o ano de 1903 como um momento marcante para o escritor, ele
viajou com seu amigo Leopoldo Lugones às cataratas e decidiu abandonar seu
país e conhecer a "selva misioneira" argentina para encarar-se com sua obra e
seu destino. Quiroga revelou a nós, leitores, a selva não como paisagem, mas
como geografia espiritual.
O conto que será analisado adiante não tem como cenário a selva, mas
possui uma temática sombria, marcada pela loucura. O conto "A galinha
degolada" vai mostrar o cotidiano do casal Mazzini-Ferraz. Jovens, com pouco
tempo de casados e aparentemente saudáveis decidem ter um filho para
concretizar o momento mais feliz de suas vidas. Porém, pouco tempo depois do
nascimento, o primeiro filho apresenta uma série de convulsões e acaba por
ficar, segundo o narrador, “idiota”. “Tinham a língua entre os lábios, os olhos
estúpidos, e voltavam a cabeça com a boca aberta”. (QUIROGA, 2014, pg.61).
Após o nascimento do primogênito, o casal não perdia a esperança em dar a luz
às crianças mentalmente saudáveis, mas passados dezoitos meses, a história se
repetia. Após o nascimento do segundo filho, o médico que examinou o bebê
vai acender a discussão de que Mazzini ou Berta carregam um problema
Por fim, depois de outra tentativa, o casal deu a luz a uma menina que
passou sadiamente pelos dezoitos meses de vida. Os pais depositavam nela toda
Mais tarde, depois do passeio, Bertita consegue fugir da atenção dos pais e
vai direto para o quintal, onde os seus irmãos estavam imóveis observando
fixamente os tijolos, mas de repente algo tinha chamado a atenção dos meninos,
Bertita estava tentando subir no muro. "Mas o olhar dos idiotas tinha se
animado, uma mesma luz insistente estava fixa em suas pupilas. Não tiravam os
olhos de sua irmã, enquanto uma crescente sensação de gula bestial ia mudando
cada linha de seus rostos." (QUIROGA, 2014, pg.67). A menina havia
A questão que percorre todo esse trabalho é: onde está o autor quando lemos
um texto? Com o auxílio dos estudos críticos do autor foi evidenciado que
Quiroga é a selva, é o suicídio daqueles que estiveram com ele e é também seu
próprio suicídio. Seus textos apontam para essa direção, deixando aberto
espaços que possibilitam seu entre lugar. Horacio Quiroga apresenta em seus
contos acontecimentos que são ele. E neste conto, a loucura vai ser narrada por
meio das ações dos personagens, dialogando com o questionamento do porquê a
loucura acontecer de forma tão rápida sem avisar. Os contos reforçam o
| 52 |
fatalismo do autor. E Castillo comenta que os textos do uruguaio "Son
ejemplares singulares de um género autonomo que acata suas proprias leyes
estructurales y que se basta a si mismo." (CASTILLO, 1996, pg.24).
Diante de toda a discussão teórica que foi posta no início deste trabalho, é
possível caminhar para a afirmação de que o autor não morreu, mas que ainda
assim ocupa um lugar de morto. Não podemos dissociar o autor da sua obra e
nem limitar a obra pelo autor, mas é preciso perceber que há traços dentro do
texto, onde o autor desaparece, que fazem o autor (re)aparecer.
A inexplicada decisão que o Pai toma no conto, a atitude desse homem que
se afirma como negação, fica esvaziada no roteiro, exemplificando um caso da
proposição a) de Robert Stam: perde-se o que há de mais forte na obra de
Embora a pesquisa ainda não tenha chegado a conclusões sobre essa leitura
do conto, sobre a ótica explorada por Nelson Pereira dos Santos, sem dúvida, é
interessante esse desafio que o longa propõe, junto com a obra de Guimarães
Referências
Filmografia
PEREIRA DOS SANTOS, Nelson – A Terceira Margem do Rio, 1994;
PEREIRA DOS SANTOS, Nelson – Vidas Secas, 1963;
PEREIRA DOS SANTOS, Nelson – Rio 40 Graus, 1955
Resumo
Sobre O direito à literatura Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
os Parâmetros Complementares (PCN+EM), estes publicados seis e quatro anos
antes, respectivamente. De fato, os documentos apresentavam contradições
importantes: criticavam o ensino tradicional, muito baseado na história da
literatura e na instrumentalização da teoria literária, para depois dizer que “o
aluno deve saber identificar obras com determinados períodos, percebendo-as
como típicas de seu tempo ou antecipatórias de novas tendências. Para isso, é
preciso exercitar o reconhecimento de elementos que identificam e singularizam
tais obras” (PCN+, 2002, p.65). Chamo atenção para o verbo “exercitar”, que
remete àquelas atividades enfadonhas de classificação e memorização das
escolas literárias. Outro aspecto problemático dos Parâmetros é sua
superficialidade ao tratar da escolha das obras a serem lidas, reduzindo a
discussão do cânone e da cultura a um jogo retórico.
Sobre O direito à literatura Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
Como dito, as OCNEM têm bastante embasamento teórico; entre suas
referências estão Hans Robert Jauss, Magda Soares, Umberto Eco e Ligia
Chiappini. Destaco aqui sua filiação a Antonio Candido, em particular ao texto
“O direito à literatura”, cujas ideias parecem protagonizar no documento.
Sabemos a importância deste texto para os estudos literários no Brasil; não é
fortuito que ele seja mote para um evento como o Claro Enigma. Sua afirmação
da literatura como direito humano inalienável me parece, hoje, ainda mais
importante do que nunca. Também não surpreende que seja base para o
currículo de literatura na escola; ao contrário, é possível dizer que “O direito à
literatura” é a própria contribuição da Teoria Literária para às pedagogias
críticas que surgiam nos anos 80, propulsionadas por Dermeval Saviani e José
Carlos Libâneo, dentre outros. Tais abordagens pedagógicas percebiam os
conteúdos culturais - inclusive a literatura - como bens universais apropriados
pelas elites para dominação das classes populares; o papel da escola seria
democratizar o acesso e a produção crítica desses conhecimentos,
| 62 | potencializando os alunos como agentes de transformação social. O texto de
Candido contribuiu para esta percepção, não só por apresentar a literatura como
uma “necessidade universal”, “bem incompreensível” e “instrumento consciente
de desmascaramento” das situações de restrição ou negação de direitos, mas
também por acusar sua inacessibilidade a um “homem do povo” que “está
praticamente privado da possibilidade de conhecer e aproveitar a leitura de
Machado de Assis ou Mário de Andrade” (Candido, 2004, p.188). Neste
sentido, a defesa de Candido ao acesso a essas obras eruditas pela classe popular
em muito dialoga com a ênfase dada pelas pedagogias críticas à socialização do
conhecimento erudito.
Sobre O direito à literatura Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
necessidade de levar algo específico - um certo conceito e tipo de
literatura - a todos os povos. (Natali, 2006, p.34)
Sobre O direito à literatura Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
Em seu ensaio, Avelar adentra o debate contemporâneo acerca do valor
estético, afirmando sua contingência: as obras que são consideradas de “alta
qualidade” estão dentro de um pacto valorativo histórica e socialmente
localizado.
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consumo” (p.57). Quando refere-se às escolhas das leituras feitas por alunos,
chama-as anárquicas, e as contrapõem às escolhas “sistematizadas e aferidas”
da escola. As preferências das OCNEM dentro do cenário de discussões caras à
Teoria Literária, se não reveladas apenas pela bibliografia, ficam bastante
evidentes ao longo de seu texto.
Cabe, aqui, fazer uma ressalva. A recepção das OCNEM pela comunidade
acadêmica, tanto do ensino básico, quanto do ensino superior, parece ter sido
positiva. O que se vem discutindo em torno das OCNEM não parece ser
propriamente seu conteúdo, mas sua peculiar ausência nas salas de aula. Acusa-
se um descompasso entre orientações e práticas; não pretendo entrar em
detalhes acerca das possíveis razões para isso, mas menciono a questão dos
livros didáticos e a formação continuada dos professores do ensino básico como
talvez as mais relevantes para os estudiosos. Algumas das perguntas às quais me
proponho nesta pesquisa daqui em diante dizem respeito a este descompasso.
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de 2015, o autor percebe que tendências tradicionais do ensino de literatura
permanecem firmes e fortes - quase dez anos depois da publicação das
OCNEM, vale dizer. A apresentação do conteúdo (a literatura) segue critérios
cronológicos; as obras são vinculadas a escolas literárias generalizantes, sem
levar em conta autores transgressores; e os recursos para análise teórica resume-
se às figuras de linguagem e estudo do foco narrativo. Mesmo assim, trata-se
abordagens mais diretas do que recebe a Crítica Literária.
Valle Neto propõe que a Crítica Literária seja tomada como objeto cotidiano
do trabalho escolar, e para isso, afirma que deve-se lidar com casos específicos.
Ele traz como exemplo duas polêmicas: a de Jorge Amado (mencionado agora
há pouco) e seus críticos Alfredo Bosi, Eduardo de Assis Duarte e Anco Márcio
Tenório Vieira, e a de Machado de Assis em seu artigo sobre Eça de Queirós.
Levar esses juízos para as salas de aula evidenciaria a Crítica Literária como
ponto curricular; seus benefícios seriam: mostrar os processos da crítica e a
parcialidade do crítico; discutir aspectos da História Literária e as escolas nas
quais os autores “se encaixam”; e afirmar que o descompasso entre crítica e
público leitor é explicável, e não arbitrário ou inevitável. Em especial, trazer a
Crítica para a escola evitaria da percepção pelo aluno de que é incapaz de julgar
o valor de uma obra, simplesmente por colocar esse valor em cheque. Eis o que
configuraria um outro procedimento de ensino de literatura nas escolas.
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Barthes em sua Aula que me vêm ecoando desde a primeira vez em que as li: “O
que pode ser opressivo num ensino não é finalmente o saber ou a cultura que ele
veicula, mas as formas discursivas através das quais ele é proposto”. Obrigada.
Referências
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Juventude berlinense:
um diário de leitura dos textos benjaminianos
dos anos 1910.
Carolina Peters
1
Martha Alkimin de Araújo Vieira, professora Associada do Departamento de Ciência
da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
2
Cf. BENJAMIN, Walter. O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov.
In.: ______. Magia e Técnica, arte e Política: ensaios sobre literatura e história da
cultura. Tradução de Paulo Sérgio Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, pp.
197-221.
Mas por que voltar a Benjamin? E em particular, por que recorrer a esses
seus primeiros textos, da década de 1910? É tentador, quando confrontada por
essas perguntas, evocar a “atualidade de Walter Benjamin”, suprimindo as
distâncias temporal, geográfica e social que nos separam do autor e de seu
pensamento; exigindo deles respostas para dilemas de um tempo que não
conheceram, ou ainda pior, falsificando soluções a partir de suas palavras. A
cautela de formular a justificativa sem incorrer em uma presentificação
[Vergegenwärtigung] talvez exija explicitar o sujeito que indaga e a posição a
partir da qual o faz: qual seria, então, o interesse presente em recuperar essas
linhas já centenárias? E antes disso, que caminhos levam uma jovem
pesquisadora a se debruçar sobre a produção do jovem crítico?
4
Cf. BENJAMIN, Walter. A tarefa do tradutor. In.: ______. Escritos sobre mito e
linguagem. Tradução de Susana Kampff Lages e Ernani Chaves. 2. ed. São Paulo: Duas
Cidades; Editora 34, 2013, pp. 101-120.
5
Os Escritos Reunidos, organizados por Rolf Tiedemann e Hermann Schweppenhäuser,
sob a supervisão de Theodor W. Adorno e Gershom Scholem, publicados pela editora
Suhrkamp em seis volumes entre 1972 e 1985.
6
Oposição às tradicionais corporações estudantis [Burschenschaften], surgidas no início
do século XIX, as Freie Studentenschaft, ou Associações de Estudantes Livres,
representavam uma tendência mais radical do movimento de juventude alemão do
começo do século XX. Em 1914, Benjamin se elege presidente da Berliner Freie
Studentenschaft, abandonando o cargo com a eclosão da Primeira Guerra Mundial. Cf.
WOLIN, 1982, p. 12; WITTE, 2017, p. 22; SCHOLEM, 2008, p. 21; KONDER, 1999,
p. 16.
7
A título de curiosidade, essa é a escolha do francês Maurice de Gandillac, quem traduz
“[...] créations et idées en très grand péril, hautement décriées et moquées”
(BENJAMIN, Walter. La vie des étudiants. L’homme, le langage et la culture: De la
politique à la sémiologie. Traduction par Maurice de Gandillac. Paris: Denoël, 1971, pp.
7-22.).
8
Tive a oportunidade de expor mais detalhadamente essa postura intelectual em
dezembro passado, durante a Benjaminiana 2017, evento ocorrido na Faculdade de
Letras da UFRJ, com a comunicação “Juventude em Berlim por volta de 1915:
Universidade e sociedade em ‘A vida dos estudantes’, de Walter Benjamin”.
Introdução
Este estudo tem como objetivo analisar cenas específicas de três romances
construídos sobre a ou em torno da tensão público x privado: Junta-cadáveres,
de Juan Carlos Onetti, Pantaleão e as visitadoras, de Mario Vargas Llosa, e O
veneno da madrugada, de Gabriel García Márquez. São textos de escritores que
integram a geração do boom latino-americano e não foram analisados por
Silviano Santiago. Comparando as formas como a tensão público x privado se
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realiza nas cenas escolhidas, procura-se entender se e como os escritores as
utilizam para construir oposições, subversões, inversões do que nos é legado
como cultura ocidental e do lugar que nos é designado nela. Como se constroem
e quais os efeitos das políticas do segredo?
Esse recurso às cartas pode ser encarado como uma espécie de encenação da
intimidade, de uma solução discreta, secreta, privada para um problema, o sexo,
que é ao mesmo tempo público ─ relacionado, por exemplo, com as taxas de
procriação e a disseminação de doenças venéreas─ e privado. Além disso,
mesmo quando cartas são usadas na esfera privada, podem surtir efeitos
políticos, tanto dentro quanto fora do texto ficcional.
Vazamentos encenados
A única porta que estava aberta na praça era a da igreja. Cesar Montero
olhou para a cama e viu o céu espesso e baixo, a dois palmos de sua
cabeça. Fez o sinal-da-cruz, esporeou a mula e a fez gritar várias vezes
sobre as patas traseiras, até que o animal se firmou na lama,
escorregadia como sabão. Foi então que viu o papel pregado na porta de
sua casa.
Leu sem desmontar. A água havia diluído a cor, mas o texto escrito a
pincel, em grosseiras letras de imprensa, continuava legível. Cesar
Montero levou a mula até a parede, arrancou o papel e o rasgou
(Marquez, 1999, p. 12-13).
A divulgação dos pasquins é usada pelo alcaide como pretexto para impor
um estado de exceção e se apropriar de bens, como o gado de Cesar Montero e a
herança da viúva Montiel. É também o que se observa ocorrer com vazamentos
não ficcionais: podem ser usados para normalizar as transgressões da ordem que
anteriormente eram (ou em outras circunstâncias seriam) mantidas em
“segredo” (Bail, 2015).
Também se pode questionar o quão secreta pode ser uma missão militar,
visto que tende a mobilizar, no mínimo, diversos agentes e várias unidades do
Exército. Até uma missão top secret tem de ser conhecida por membros do alto
comando e pelo Serviço de Inteligência; por isso, corre sempre o risco de vazar,
tornando-se publicamente conhecida. É o próprio segredo, secretum, que
secreta, ou seja, separa os que sabem e os que não sabem, instaurando a
possibilidade do vazamento. E, por fim, no caso dos pasquins afixados no
povoado sem nome, o que aparece escrito não é segredo ̶ já circulou pelo lugar
como fofoca.
Referências
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O artista Jean-Baptiste Debret foi enviado ao Brasil no século XIX para uma
missão artística. Aqui, ficou conhecido por suas aquarelas sobre o que se
acreditava ser o cotidiano na colônia. Pinturas de índios, da vegetação, dos
escravos negros, de manifestações culturais e membros das elites formaram um
grande estudo que, entre outras coisas, serviu como ponto de diálogo para os
pratos de Varejão. Em Um jantar brasileiro (1827), por exemplo, é possível
observar que Debret parte de uma cena corriqueira para desenhar certa
hierarquia social. Na referida imagem: à mesa de jantar, um senhor e uma
Essa mesma escrava que abana a senhora reaparece nas pinturas de Varejão.
Em Filho Bastardo I (1992), a negra com ganchos no pescoço aparece sendo
estuprada por um religioso em uma paisagem bucólica. No Filho Bastardo II
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(1995), a mulher mantém relações sexuais com o senhor da pintura de Debret
sobre a mesma mesa de Um jantar brasileiro (1827), que ressurge vazia e com a
mesma criança negra comendo ao chão. Já o homem branco que aparece em
Filho Bastardo I aparentemente duplicado – mesmo que um esteja atrás do
rasgo – parece ter saído de outra tela de Debret. Sobre a pintura Empregado do
governo saindo a passeio (1820-1830), Schwarcz (2014) aponta que a fila
indiana cumpriria o papel de mostrar o processo civilizado, evolutivo e ordeiro
vigente ou futuro no país (p. 164). O homem, que na tela oitocentista parece
olhar para a próspera posteridade, no prato de Adriana Varejão observa a forma
nua de uma mulher indígena amarrada em uma árvore. Vemos, portanto, a
ênfase em corpos nus, bem como nas relações curiosas com outros corpos – do
discurso, da tela.
Vemos, com isso, que o que impulsiona ainda mais a denúncia é a forma
com que os corpos femininos aparecem na pintura. Representações de corpos
que fogem à intenção secular de conferir à nudez feminina um caráter ideal e
celestial, ou o chamado “nu artístico”, chocam os espectadores e provocam
posturas moralistas como as que observamos ultimamente nos casos da
exposição Queermuseu, de Porto Alegre, que continha obras de Varejão.
Rechaços a obras de arte ocuparam os noticiários destes últimos meses
questionando, especialmente, a nudez que neste caso não foi considerada “nu
artístico”.
O paradoxo que se cria entre os tipos de nudez pode ser pensado a partir de
Didi-Huberman (1999) e suas definições de uma nudez (nakedness) que é de
cunho sexualizante, embaraçoso e ofensivo em contrapartida a uma nudez
1
Tradução minha.
Referências
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Por isso, busco analisar Vidas Secas, um romance muito estudado, mas que
mesmo assim deve ser trazido à discussão novamente. A crítica social que o
romance carrega parece mais atual do que nunca. Em um momento no qual
diversos discursos de ódios estão cada vez mais presentes, se faz ainda mais
necessário trazer à tona discussões presentes no livro. O romance de Graciliano
Ramos nos faz pensar no que é ser um indivíduo capaz de se inserir na
sociedade e qual é a linha tênue que separa o humano do animal. Ele mostra
como condições extremas e miseráveis fazem as pessoas se (trans)formarem em
seres que habitam essa linha, sem saberem para que lado ir, sem serem
humanos, sem serem animais, graças à pobreza em que os personagens são
obrigados a viver. Assim, os personagens centrais do livro, Fabiano, sinha
No entanto, a conjuntura atual nos pede mais: não basta olhar para o pobre,
o miserável, o ser-animal que está à margem da sociedade, mas parece distante
da nossa realidade, afinal, não é só o retirante nômade, que não tem lugar para
se estabelecer, que está sofrendo pela crescente onda de ódio que se espalha
pela sociedade. Precisamos, também, olhar para aquele que está ao nosso lado,
mas por algum motivo não conseguimos enxergar. Precisamos olhar para a
datilógrafa, para a alagoana moradora da rua do Acre que divide um quarto com
três Marias. Precisamos olhar para Macabéa, para as Macabéas.
Vidas Secas é composto por cinco personagens centrais unidas por laços
familiares: Fabiano, sinha Vitória, o menino mais velho, o menino mais novo e
Baleia. A relação de cada personagem com a natureza é de extrema intimidade,
não havendo uma distinção clara entres os personagens a princípio humanos e
os personagens animais. Seria plausível que Baleia, por ser um cachorro, tivesse
uma relação mais íntima com a natureza do que os humanos em questão.
Eles procuram colocar-se no lugar que lhes pertencem, agindo como se eles
fossem diferentes de outros personagens do livro (e de fato são) como seu
Tomás da bolandeira ou o dono da fazenda onde Fabiano e a família se alojam.
Há a visão de que a seca faz parte do mundo assim como ele é. Não existe
sequer a possibilidade de que ela deixe de ocorrer. É algo determinado,
enraizado. “Sempre tinha sido assim, desde que se entendera” e não seria
diferente. De fato, para Fabiano e sua família, essa é a única realidade possível:
a realidade é estar confinado - no sentido de que não há saídas - em um
ambiente inóspito, um ambiente em que raras são as chances de sobrevivência.
Poucas são as vezes - talvez haja uma única vez - em que essa perspectiva é
deixada de lado, como é o caso do trecho a seguir:
Não à toa essa parte, destinada ao final do romance, fecha o ciclo construído
a partir dessa estrutura peculiar, no qual não há uma conexão clara entre os
capítulos, tornando o romance semelhante a um livro de contos, composto por
segmentos. É apenas no (re)início do ciclo da seca que sinha Vitória começa a
pensar sob uma nova perspectiva: a possibilidade de eles encontrarem um lugar
onde finalmente possam se estabelecer.
Outra característica mais animal do que humana que está presente muito
claramente no romance é a falta das palavras. De alguma forma, ou os
personagens nunca aprenderam a falar como as outras pessoas ou, se
aprenderam, esqueceram-se, graças ao isolamento que sofrem. O papagaio, só
mencionado postumamente, só era capaz de imitar os sons da Baleia, isto é, os
latidos. Essa é uma constatação do comportamento da família, uma vez que é
característico do papagaio repetir tudo o que ouve. Se não há ninguém para
escutar, o animal não vai falar. “Resolvera de supetão aproveitá-lo como
alimento e justificara-se declarando a si mesma que ele era mudo e inútil. Não
podia deixar de ser mudo. Ordinariamente a família falava pouco.” (RAMOS,
1998, p. 8). “O pequeno sentou-se, acomodou nas pernas a cabeça da cachorra,
pôs-se a contar baixinho uma história. Tinha o vocabulário quase tão minguado
como o do papagaio que morrera no tempo da seca.” (RAMOS, 1998, p. 55)
| 100 | Assim, vemos que ambos romances trazem a voz, mesmo que mínima,
daqueles que não tiveram oportunidade de se articular. Uma voz que não pode
ser articulada em palavras, é apenas um som, ou vários sons, já que esses
personagens são incapacitados de lidarem com as palavras. Seja por causa da
ignorância da fala, como Fabiano e a família, seja por causa da incapacidade de
pensar em si mesmos como seres humanos, como Macabéa. Permitir que essas
vozes sejam ouvidas é um ato político.
Começo não com Monodrama – que é o foco desta apresentação – mas sim
com Livro das Postagens, o último lançamento de Carlito Azevedo. Se, por
acaso, fosse possível resumi-lo em uma frase ou em um verso, faria coro com a
personagem canina: O autor deveria estar aqui. Este pequeno enunciado em
repetição é o mote do livro. A presença dessa figura autoral é exigida a todo
tempo. Ela não deveria, por exemplo, se preocupar com as cartas do rabino ou
com falar ao telefone com a modelo, nem se espantar com as previsões do
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astrônomo, que, segundo o cão, são tudo suposições. Ao autor é dada outra
tarefa: ter seu rosto desfigurado por causa de uma surra dada, nas palavras
caninas, por suspeitos na insuspeita colina.
É importante ressaltar que esse poema é todo escrito em prosa, ele se alonga
de um lado a outro da pauta, sua extensão e seu corpo se assemelham a um rio
que saiu de seu leito, como diria Garramuño. Diferentemente de outros poemas,
em que o corte dos versos era visível. Aqui, em H., como também em Margens,
a escrita em prosa parece acentuar outro tom para o que o poeta irá dizer. A
falta dos cortes é a falta de controle sobre o pensamento, não é à toa que, numa
de suas rememorações, Carlito destaca seu gesto repetitivo e ansioso de dar
voltas pela casa e de dizer insistindo para si mesmo: onde há obra não há
loucura e onde há loucura não há obra e venho escrever. Como Hamlet – o
filho – que andava feito uma assombração pelo castelo aterrorizando seus
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convivas e dizendo coisas desconexas do tipo: palavras, palavras, palavras,
Carlito tem seu próprio reino – a antiga casa em que passou a infância – e tenta
ordenar, com palavras, o caos que é a ideia apavorante da perda de sua mãe.
I.
Depois de encaminhar “H.” por e-mail para alguns amigos, no intuito de
avisá-los da morte de minha mãe e consciente de que não conseguiria
escrever outra coisa qualquer sobre o assunto, descobri que na pressa de
escrever para não enlouquecer, acabei revelando o que até o pequeno
Stephen Dedalus quando ainda vestia calças curtas já se envergonhava
de ser levado a admitir frente aos colegas de internato. Quando eu me
encontrava em casa à noite, mais precisamente no horário em que minha
mãe era posta por suas acompanhantes para dormir, lá pelas 20 horas, eu
costumava dar-lhe um beijo de boa noite, no qual ela parecia encontrar
O poema ganhar nome de Beijo e, por isso, estar no espaço que cabe a um
título, desloca o lugar esperado de uma despedida. Ele já se inicia dando adeus e
quando chega ao fim esse poema esquisito, o poeta se prepara muito
emocionadamente para a despedida final do corpo físico da mãe: “Este é o
último, viu? Muito obrigado pela paciência. Te amo”. E beijei a lona.
Una letra, como cualquier otra cosa, debe enfrentar, tarde o temprano,
su destino: com el paso del tiempo, todo signo escrito termina cayendo
en desuso. [...] Sin embargo, un grafema enfrenta más de una manera de
morir. (2008)
Mas ainda que h seja muda, quando a transportarmos para o poema, ela
ganha um som próprio. H. em letra maiúscula carrega em si uma mensagem, ela
é o assunto do e-mail que Carlito envia a seus amigos avisando da morte de sua
mãe.
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Voltando à parte que cabe à linguística, h tanto como som quanto como
signo, teve um caminho trilhado de obsolescência. Seus múltiplos tratamentos
em diversas línguas e seu desaparecimento ocasional em algumas delas, tiraram
de h seu estatuto de letra. Em grego antigo, h vira uma apóstrofe para a
marcação de espíritos. Ela ali não é uma letra, ela assinala a aspiração de um
sopro áspero para o diferenciar de um sopro suave.
Voltando ao poema, h é aquela que mesmo morta tem o que dizer. H., na
verdade, é Hilda e de sua voz (imaginária para nós) se ouve:
o som não possui face oculta, ele é todo adiante detrás e fora dentro,
sentido de ponta-cabeça com relação a lógica mais geral da presença
como aparecimento, como fenomenalidade, ou como manifestação [...]
o esquema teórico e intencional regulado pela ótica vacila. [...] Estar à
escuta é estar ao mesmo tempo no fora e no dentro, estar aberto de fora e
de dentro.
REFERÊNCIAS
AZEVEDO, Carlito. Livro das postagens. 1. ed. - Rio de Janeiro: 7Letras, 2016.
AZEVEDO, Carlito. Monodrama: edición bilingüe / comentado por Flora
Sussekind; con prólogo de Florencia Garramuño. - 1ªed. - Buenos Aires:
Corregidor, 2011.
GARRAMUÑO, Florencia. De abanicos abiertos y poesía en movimiento. In:
Monodrama: edición bilingüe
NANCY, Jean-Luc. À escuta. Edições Chão da Feira, Belo Horizonte, 2014.
RIBEIRO, Gustavo Silveira. A experiência da destruição na poesia de Carlito
Azevedo. In: O eixo e a roda, Belo Horizonte, v. 23, n.1, p. 69-81, 2014.
ROAZEN-HELLER, Daniel. Ecolalias - sobre el olvido de las lenguas. Primera
edición. - Buenos Aires: Katz Editores, 2008.
Rafaela Lima
Introdução
Aspectos do desprendimento
Caeiro parece buscar “um outro modo” de viver, sentir e escrever nesses
versos.
Encontrando as diferenças
Desprendimento em forma
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Conclusão
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Referências
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