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Odara

revista de arte e literatura [vol. 5 nº 5]


A Odara é uma publicação semestral.

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Faculdade de Letras da UFRJ - Sala D201

Av. Horácio de Macedo, 2151

Cidade Universitária - CEP 21941-917

Rio de Janeiro - RJ

Reitor

Roberto Lehrer

Diretora da Faculdade de Letras

Profa. Dra. Sonia Cristina Reis

Chefe do Departamento de Ciência da Literatura

Profa. Dra. Luciana di Leone

Substituto Eventual da Chefe do Departamento de Ciência da Literatura

Prof. Dr. Eduardo Guerreiro Brito Losso

Apoio Editorial

Prof. Dr. Ricardo Pinto de Souza

Equipe Odara

Amanda Dib, Bárbara Perez, Brena Azevedo, Camila Silva Mendes, Flávia
Natércia, Giulia Benincasa, Maria Júlia Santana, Paula Campello, Rafaela
Miranda de Oliveira e Vinícius Fialho.

Ilustradores

Ana Luisa Araujo, João Pedro Athayde (J Reis) e Marcela Almeida.

Agradecimentos

A todos que colaboraram com esse número da Odara. Em especial, a Pablo


Rodrigues e ao Prof. Ricardo Pinto. Também à Editora UFRJ, especialmente a
Valéria Baptista. Por último, mas não menos importantes, aos nossos
ilustradores: Ana Luisa Araujo, João Pedro Athayde e Marcela Almeida.
Odara
revista de arte e literatura [vol. 5 nº 5]
Direito à literatura,
direito ao grito
Sumário
Editorial  7
Equipe Odara

Poéticos
Cavalo  10
Deborah Gonçalves

Ainda que não seja onda  12


Eduarda Vaz

Espelho  14
Mahena Costa

Guarda-chuva Lilás  16
Renata Benicá

Claro Enigma
De escombros e sussurros: a Comala de Pedro Páramo como
entre-lugar  19
Alice Carvalho

A escuta de Conceição Evaristo  26


Amanda Dib

O corpo, abaixo do equador, no carnaval do Paraíso  36


Artur Vinicius Amaro ou Vanubia Close

Horacio Quiroga e a experiência dos textos no espaço do


entre-lugar  45
Brena Azevedo
As Margens de Guimarães em Nelson Pereira dos Santos  54
Carmosita Senna

Sobre “O direito à literatura” nas Orientações Curriculares


para o Ensino Médio  60
Carolina Fabiano de Carvalho

Juventude berlinense: um diário de leitura dos textos


benjaminianos dos anos 1910  68
Carolina Peters

Políticas do segredo: tensões entre o público e o privado em


três romances latino-americanos  77
Flavia Natércia da Silva Medeiros

O corpo nu e suas vestimentas simbólicas: uma leitura de


pratos-quadros de Adriana Varejão e dos úteros de Angélica
Freitas  86
Juliana de Assis Beraldo

Vozes esquecidas: o ser-animal de Vidas Secas e uma


comparação com A Hora da Estrela  95
Maria Júlia Santana Valério

Entre G e I  101
Rafaela Miranda

Modalidades de desprendimento: leitura de um poema de


Alberto Caeiro  107
Rafaela Lima

Normas de Publicação  114


Editorial
Equipe Odara

Parece que mais uma vez a nova edição da Odara ficou engavetada mais
tempo do que o desejado. Novamente passamos por imprevistos e desafios,
colocando à prova a nossa vontade de manter o projeto funcionando. Como é
difícil manter uma revista de graduação! Entre toda a pressão e as obrigações
que a vida acadêmica nos impõe, achamos uma pequena brecha na louca grade
horária da Faculdade de Letras para respirarmos um pouco na Odara. É isso que
a revista pretende ser, na medida do possível: um sopro de alívio entre a correria
natural do dia a dia.

Esse foi um semestre de perdas: três queridos integrantes da Equipe |7|


seguiram novos rumos. Erick, Pablo e Paula tiveram que nos deixar nessa
edição, ficamos com uma alegre saudade e cheios de gratidão pela dedicação
dos três. Em contrapartida, agora contamos com Bárbara, Giulia e Vinícius,
novos integrantes da equipe editorial da Odara. Além disso, temos a felicidade
de anunciar que a revista deu mais um passo, expandindo os horizontes
universitários para fora da Faculdade de Letras e, até mesmo, da UFRJ. Temos,
a partir dessa edição, uma equipe de ilustração composta por Aninha (EBA -
UFRJ/ Letras - Puc Rio), João (Jogos Digitais - IFRJ) e Marcela (EBA - UFRJ).
A arte da capa foi feita por eles. Estamos muito felizes com essa parceria e
damos boas vindas a todos. A saída de Erick, Pablo e Paula deixou um misto de
saudade e de necessidade de adaptação. Nos tirou de uma zona de conforto e
nos colocou em ação. Aos três dizemos um carinhoso até breve.

Outra parceria que fizemos, para esta edição, foi com o Claro Enigma,
evento organizado pelos monitores e monitoras do departamento de Ciência da
Literatura. Ambos, Odara e Claro Enigma, são projetos feitos por alunos de
graduação e para alunos de graduação. O tema do evento, ocorrido nos dias 7 e
9 de novembro de 2017, coincide com o tema da revista: Direito à Literatura,
Direito ao Grito, que foi pensado dentro da perspectiva de uma conversa entre o
texto “Direito à Literatura” de Antonio Candido e A Hora da Estrela de Clarice
Lispector (sim! mais uma vez estamos falando de Clarice!). Candido, por um

Editorial  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


lado, reflete sobre a literatura como um direito, e afirma que “negar a fruição da
literatura é negar a nossa humanidade”. Lispector, por sua vez, nos apresenta,
como um dos subtítulos de A Hora da Estrela, o direito ao grito. Sob esses
olhares, foi proposto um debate entre essas duas linhas de pensamento, no qual
os pesquisadores e as pesquisadoras da graduação foram convidados a
apresentar seus trabalhos, relacionando-os com o tema.

O evento contou com a presença, na mesa de abertura, da poeta Angélica


Freitas e da poeta e professora Tatiana Pequeno; houve um sarau de
encerramento com microfone aberto e com a participação da Oficina
Experimental de Poesia e trabalhos que abordaram desde produções
cinematográficas baseadas na obra de Guimarães Rosa até o samba-enredo da
Paraíso do Tuiuti. Música, cinema, literatura, diversas manifestações artísticas
foram contempladas pelos trabalhos apresentados e aqui publicados. Conceição
Evaristo, Carlito Azevedo, Clarice Lispector, Alberto Caeiro, Adriana Leitão,
Walter Benjamin foram alguns dos autores, artistas e teóricos abordados pelos
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pesquisadores.

Como ficaria, então, a parte criativa da Odara? Decidimos abrir chamada


para a submissão de contos, poemas, quadrinhos, resenhas e ilustrações.
Queríamos saber como o tema proposto seria apresentado através da ótica
artística. Foi assim que recebemos os poemas de Deborah Gonçalves, Eduarda
Vaz e Mahena, além do conto de Renata Benicá. Todas vozes femininas em
diferentes contextos, retratando diferentes gritos. Compomos a Odara com essas
vozes polifônicas, cada uma com sua própria melodia, embora juntas dentro do
mesmo tom.

Após meses do evento Claro Enigma e da abertura de chamada da revista,


uma importante voz feminina foi silenciada. Uma voz que gritava e lutava por
direitos daqueles que infelizmente são socialmente marginalizados: negros,
favelados, LGBTQ, periféricos, indígenas, mulheres, crianças. Uma voz
chamada Marielle, brutalmente silenciada em 14 de março de 2018. Digo aqui
silenciada, mas, na verdade, o assassinato de Marielle fez com que sua voz fosse
repercutida, como um eco que não cansamos de fazer chegar a todos os lugares.
Não nos esgotaremos de gritar até que seja feita justiça. A quinta edição da
Odara é em memória de Marielle Franco e Anderson Gomes. Por isso, gritamos:
Marielle, presente! Anderson, presente!

Editorial  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


Poéticos
CAVALO
Deborah Gonçalves

Mulher, nordestina, aquariana, 22 anos.


Gastróloga por formação, estudante de Letras por gosto e poeta por sina.

Nasci de pai e mãe


Um se foi com a morte
o outro
a vida é quem levou

Ganhei em troca um protetor

| 10 | e esse me apadrinhou

Com sua coroa de ouro


filha da pedreira me batizou

Trouxe nas mãos machado e corisco


e é quem nunca me deixou

A esse eu devo é muito


e pago com meu louvor

Justiceiro
Honrado
Dono do raio e do fogo iluminado

Rei que veste vermelho


Guerreiro nagô

Ele dá
mas ele cobra

KAÔ

Cavalo  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


KABECILÊ
MEU PAI, XANGÔ!

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Cavalo  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


Ainda que não seja onda
Eduarda Vaz

Eduarda nasceu em Volta Redonda (RJ), em 1997. Desde pequena, queria ser
escritora. Estuda Letras: Português/Espanhol na UFRJ, escreve em sua página
Eduarda Vaz / Poesia e na Revista Pólen. Também é contadora de histórias e
professora. Alguns de seus poemas já foram publicados em revistas - como a
Zzzumbido. Seu primeiro livro, Aresta, foi publicado pela Macabéa Edições em
dezembro de 2017.

talvez
a primeira libertação da voz

| 12 | criou-se pelo traço


tinta marcada vinda
da pena de pássaro
privilégio sorte recurso ínfimo
das moças guardadas
nos palácios

talvez
a primeira libertação da voz
esticou-se pelo canto
escondido nas beiras de rio
durante o esfregar
das roupas e dos panos
destino trabalho recurso necessário
das moças guardadas
nos campos

talvez
a primeira libertação da voz
acalentou-se pelas receitas
ao fogão à lenha e às panelas
tempero toque jeito

Ainda que não seja onda  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
dos caldos das tortas das comidas
acrescentados sempre de um
segredo
amor reza uma pitada a mais de sal
carinho ofício recurso característico
das moças guardadas
nas cozinhas

a voz sempre encontrou uma saída


escrita melodia profecia

| 13 |

Ainda que não seja onda  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
Espelho
Mahena Costa

Mahena Costa nasceu em 1997, em Aracaju-SE, onde cresceu e se desenvolveu


(ou nem tanto). Atualmente é estudante de Letras – Português e inglês na
Universidade Federal de Sergipe. Ainda não reproduziu e nem tampouco
morreu, o que considera grandes conquistas.

Tenho procurado
e ainda segurando a lupa
engulo a poeira de mim
pois quem quer que me veja me viu
| 14 | empoeirada
sei que somos duas e que as duas são iguais
compartilham
siamesas
segredos e travesseiros
amores
tristezas
nos separamos no ódio – uma de nós odeia
qual de nós é luz?
quem escreve? as duas escrevem
eu sei que na verdade nenhuma sozinha fez coisa alguma
pois uma delas rouba a doença da outra e inspira-se
perverso prazer em ver pesar
então a que dói
retorce e grita e faz pouco da que a segura
quem seria nesse ponto tão sádico
assim, expondo
exponho-me
quem é tão ruim?
– sou eu.
e exposta
nua

Espelho  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


torna-se ela mesma
uma e meia de si

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Espelho  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


Guarda-chuva Lilás
Renata Benicá

Milena. Cabelos longos, olhos amendoados, rosto fino. Milena. Com suas
bochechas rosadas, andava por Copacabana as três da tarde com uma
curiosidade que só os vinte e poucos tem. Lá pela esquina da Siqueira Campos
com a Barata Ribeiro ela para. Se distraí com as bugigangas de uma senhora
cubana expostas no chão em uma toalha desbotada. Fica ali parada, hipnotizada
com aqueles objetos antigos em plena calçada movimentada, do lado do pastel
chinês, de uma mãe com seu bebê, de um jovem de terno e de um senhor.

Um senhor. Seus setenta anos. Branco, de sardas. Um senhor. Que sem


| 16 | nenhum pudor, atitude normal, como se coçasse a cabeça, passa a mão nas
pernas de Milena. Apertando com força aquela lateral da curvinha. Na perna e
na bunda. Em cheio. Com força. Três da tarde, na esquina, perto do chinês,
homem, terno, mulher, bebê, uma porcelana com cisnes na toalha com manchas.
Um borrão... um borrão.. embaçando os olhos da menina. O ar entrando devagar
nos pulmões, um calor desesperado subindo pelo ouvido. E ela ainda parada.
Estática. Olhos fixos nos cisnes e nas flores lilás que eles tinham no dorso.

Atônita, ela vira para trás. Na tentativa de achar nos pés firmes do senhor o
seu ato falho. Mas ele afrontava Milena. Aquelas costas concurdas. Costas e pés
que a esmagavam na sua imobilidade. Como uma barata marrom de rua, de
cozinha de restaurante velho. Suja, fria. Cheia de cascas. Milena sentia raiva.
Impotência. Muita raiva. Xingava baixinho. Com vergonha. Pensava em todas
as vezes que foi objeto. Desejo. Carne. Cantada. Conquista. Um abandono. E
nunca percebeu. A mão daquele senhor descortinava a coisa toda violenta.

No meio de sua fúria estarrecida, viu, na mão do senhor um guarda-chuva


enferrujado. Um guarda-chuva lilás! A mesma cor da flor dos cisnes da cubana,
da lancheira antiga do irmão, da cortina da casa da sua vó. O tempo suspende. E
ela lembra do avô na janela escutando jogo de futebol no domingo depois do
almoço. Detrás da cortina daquela cor! A cor! Que agora dava uma família, uma
casa, talvez até um rádio de pilha de baixo do travesseiro para aquele estranho.

Guarda-chuva Lilás  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


Aquelas costas corcundas. “Será que ele torce pro Flamengo, meu Deus?” “Será
que ele come bolinho de chuva?” Meu Deus! Meu Deus! Deus! Ele é comum.
Um qualquer. Um homem. Uma pessoa. Um dogma. Uma verdade falsa
incrunhada na pele caucasiana de macho. Menino macho, agora homem, senhor,
velho, nojento.

Sentia náuseas de toda gente, do seu avô, da sua vó, de toda cruz no
pescoço das beatas, de toda vez que seu irmão podia chegar mais tarde do que
ela em casa, de toda vez que mandaram que ela cruzasse a perna. Teve cólera de
si. Do senhor. Cólera do mundo que aprisiona ela em uma bunda e ele em um
desejo. Quis gritar. Olhou para as pessoas ao redor. Todas em vitrines, horários,
compromissos, telefonemas. Imersos. Sem perceber a coisa toda violenta.

| 17 |

Guarda-chuva Lilás  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


Claro Enigma
De escombros e sussurros:
a Comala de Pedro Páramo como entre-lugar

Alice Carvalho

A proposta do presente texto é desenvolver uma leitura do romance Pedro


Páramo, do mexicano Juan Rulfo, a partir da ideia de entre-lugar cunhada pelo
intelectual brasileiro Silviano Santiago, que se mostra em diversos níveis da
obra. A proposta, mais especificamente, é observar os desdobramentos de tal
ideia dentro da narrativa – estruturalmente e também na relação que se
estabelece entre os próprios personagens.

O termo “entre-lugar” aparece explicitado pela primeira vez na obra de


| 19 |
Santiago – outros filósofos e intelectuais já haviam forjado o conceito
anteriormente, como Derrida e Foucault – no ensaio “O entre-lugar do discurso
latino-americano”, escrito em 1971 e incluído no livro Uma literatura nos
trópicos - ensaios sobre dependência cultural, de 1978. No entanto é importante
destacar que a ideia de entre-lugar permeia toda a obra de Santiago e, de certo
modo, está presente em outros textos. Nesse sentido, além do ensaio já
mencionado, também serão abordados no presente estudo “Apesar de
dependente, universal” e “Eça, autor de Madame Bovary”, ambos de Silviano
Santiago, reflexões e problematizações das relações culturais entre países
centrais e países denominados periféricos.

Fazendo uma análise que reconhece o etnocentrismo como eixo


determinante da relação entre Europa e América Latina, Santiago percebe, na
colonização da segunda pela primeira,

Uma operação narcísica, em que o outro é assimilado à imagem refletida


do conquistador, confundido com ela, perdendo, portanto, a condição
única de sua alteridade. Ou melhor: perde a sua verdadeira alteridade (a
de ser outro, diferente) e ganha uma alteridade fictícia (a de ser imagem
refletida do europeu) (SANTIAGO, 1980, p.).

A ocasião da colonização, que procurou uniformizar as culturas “outras”,


ocidentalizando-as, acabou por instituir “a classe dominante como detentora do

De escombros a sussurros  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


discurso cultural, discurso europeizante” (SANTIAGO, 1980, p.). Santiago
constata, portanto, a inescapável “dependência” latino-americana em relação à
cultura dominante, reconhecendo, porém, a possibilidade de originalidade do
produto criado pela colônia, desde que haja “contestação da erudição, quebra da
cronologia e busca de originalidade” (SANTIAGO, 1980, p.).

Feito este diagnóstico, Silviano aponta para a necessidade da busca pela


explicação da constituição latino-americana, não nas noções de originalidade e
começo, mas pensada através de um entre-lugar: a América Latina deve ocupar,
dentro do cenário ocidental, um lugar de desvio da norma, transfigurando os
elementos feitos e imutáveis que os europeus exportavam para o Novo Mundo.

Adotar a ideologia do outro, mas na forma da “falsa obediência”,


usando o termo de Santiago, uma vez que, segundo o intelectual:

A riqueza e o interesse da literatura não vem tanto de uma originalidade


do modelo, do arcabouço abstrato ou dramático do romance ou do
| 20 | poeta, mas da transgressão que se cria a partir de um novo uso do
modelo pedido de empréstimo à cultura dominante (SANTIAGO, 2000,
p. 56).

Silviano Santiago, ao reconhecer a dependência do chamado “Terceiro


Mundo”, aponta como sendo a destruição dos ideais de “unidade e pureza” a sua
maior contribuição, o que significa ir contra a ideia de herança e,
consequentemente, contra o patriarcalismo. E é exatamente isso que está na
base do conceito de entre-lugar: uma recusa à ideia de originalidade, fonte,
influência – daí o seu viés anti-paternal e antipatriarcal.

No romance de Rulfo, Pedro Páramo, é possível perceber várias maneiras


de problematização do modelo dominante, da lógica da herança e da
paternidade cultural. Pode-se vislumbrar, então, no romance de Rulfo, essa
“escrita contra” a respeito da qual fala Silviano Santiago. É possível notar,
ainda, que se poderia denominar “anti-paternidade” – como sendo um dos
sustentáculos da narrativa.

O romance de Juan Rulfo teve sua primeira publicação no ano de 1955.


Expoente não apenas da literatura latino-americana, mas também da literatura
mundial, sua narrativa, envolta em uma atmosfera espectral, é permeada por “la
fabulación y la desfabulación, la afirmación y la negación, y donde la vida y la
muerte no se niegan unas a otras, sino que coexisten” (VOLEK, 1990, p. 35).

De escombros a sussurros  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


No entanto, o que há de espectral na obra não se situa no domínio do onírico,
tampouco do absurdo ou do surreal como bem observa Guilherme Belcastro em
seu texto sobre a obra de Rulfo:

Os sonhos são vistos não como ilusões, mas como propriamente o que
se tem para dizer[...] Aqui, o sonho não tem um caráter diáfano,
imaterial. Ele é o que há de real, o que gera o movimento do narrador e,
portanto, da narrativa. As vozes que aparecem no romance são vazias
(BELCASTRO, 2015, p.).

O começo do romance sinaliza o início de uma busca: Juan Preciado, para


realizar o último pedido de sua mãe antes de morrer, sai em busca de seu pai,
sobre o qual ele sabe somente o nome – Pedro Páramo – e o lugar onde
supostamente estaria – Comala.

Antes mesmo de chegar exatamente a Comala, Juan Preciado já se


depara com o fato de que seu pai, na verdade, já está morto: “— E Pedro
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Páramo? — Pedro Páramo morreu faz muitos anos” (RULFO, 2008, p. 19).
Logo nas primeiras páginas, portanto, há uma ruptura na narrativa, e assim
como Juan Preciado, o leitor é pego de surpresa: se para o personagem
representaria o fim da sua mal começada viagem, para quem lê seria o fim da
possibilidade de desenvolvimento de uma história.

Não bastasse Pedro Páramo estar morto, Juan Preciado também é


advertido de que o vilarejo de Comala também estaria: “Aqui não mora
ninguém”. Mais uma vez, o contrário do que se espera acontece: o personagem
continua a sua busca. Mas busca pelo quê? No romance de Rulfo, explicações e
motivações detalhadas não parecem se fazer necessárias para o
desenvolvimento da narrativa.

Mais adiante, observamos outra quebra estrutural: sem explicação ou


aviso prévio, entra na história uma voz até então inédita: “No dia em que você
foi embora, entendi que não tornaria a vê-la [...]”. Tal reflexão estranha, que
aparece repentinamente ao leitor, só pode ser atribuída a Pedro Páramo, (que até
então nem sequer tinha surgido na história, senão pela fala alheia) pelo diálogo
– também, a princípio, desconexo – que vem em seguida, e termina do seguinte
modo: “Você e suas esquisitices! Sinto que você vai se dar mal, Pedro Páramo”.
Isso quer dizer que nunca é possível ter certeza de fato de quem está narrando.

De escombros a sussurros  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


Embora se perceba que não existe um narrador único, as passagens de um para
outro não ficam explicitamente delimitadas: não há divisão de capítulos e
nenhuma sinalização que situe o leitor confortavelmente. Pode-se ver, então,
que a estrutura narrativa do romance não segue os padrões de linearidade que
definiriam uma “história” prototípica.

O episódio da morte de Juan Preciado sinaliza uma virada no romance: até


então narrado em primeira pessoa, por Juan Preciado, a narrativa passa a ser
narrada em terceira pessoa:

Sentia o ar indo e vindo, cada vez menos; até que se fez tão fino que se
filtrou entre meus dedos para sempre. Digo para sempre. Tenho
memória de haver visto algo assim como nuvens espumosas fazendo
redemoinhos sobre a minha cabeça e depois enxaguar-me com aquela
espuma e me perder em sua nuvarada. Foi a última coisa que vi.
(RULFO, 2008, p. 41).
| 22 |
Mais uma vez, existe uma subversão da concepção tradicional de
“história” – além dos acontecimentos não se darem em uma ordem cronológica,
a narrativa não gira em torno de um personagem especificamente, não conta
uma única história: nem a de Juan Preciado, nem a de sua mãe, nem a do
próprio Pedro Páramo.

Agora já não se pode identificar um narrador, e a ideia de autoridade e


confiabilidade do mesmo são completamente desestabilizadas – tudo que chega
ao leitor são pedaços, sussurros, lamúrios, que nunca se completam ou
conduzem a alguma conclusão. Talvez possa se dizer, inclusive, que a cada
momento é “retirado” algo do leitor. Aliás, é impossível acessar, de fato,
qualquer personagem, por completo. Tudo que recebemos deles são “fiapos”,
fragmentos, que nos chegam por meio da palavra de mortos - o que confere à
narrativa um clima rarefeito.

O material narrado é fragmentado, o que remete, de certa forma, à narrativa


cinematográfica. Há uma série de cortes, reforçando a ideia de incompletude do
que está sendo contado. Tudo o que chega ao narrador é resultado de
lembranças e, como já observado, lembranças de mortos – o que pode
representar, de alguma maneira, a impossibilidade de narrar completamente.

Em primeiro lugar, a figura que de certa forma norteia a narrativa, Pedro


Páramo – da qual só nos aproximamos muito precariamente, a partir de

De escombros a sussurros  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


fragmentos e histórias soltas, quase sempre contadas por terceiros –, pode ser
considerado como um grande pai, não só por ter muitos filhos, como é revelado
no início por um dos personagens, mas também pelas relações que engendra em
Comala, povoado fantasma onde se ambienta a narrativa:

Estavam no curral. Pedro Páramo se esparramou numa manjedoura e


esperou:
— Por que não senta?
— Prefiro ficar de pé, Pedro.
— Como você quiser. Mas não se esqueça do dom. Dom Pedro. [...]
Começou a tirar os papéis para informar a quantas andava a sua dívida.
E já ia dizer: “Estamos devendo tanto”, quando ouviu:
— Para quem estamos devendo? Não me interessa quanto, mas a quem
(RULFO, 2008, p. 29).

A relação que Pedro Páramo cria com o povoado é, portanto, de


paternalismo, na qual toda a população é submetida a suas vontades, mandos e | 23 |
desmandos. Essa é, portanto, a economia de Comala, o modo como se articulam
os indivíduos e como se estabelecem suas relações materiais. Pedro Páramo, de
alguma forma, pode ser considerado a própria Comala e, no romance,
acompanhamos a trajetória de sua derrocada. Cabe perguntar, então, se não
estaríamos também observando a destruição e a negação dessa tal ideia de
paternidade?

Pedro Páramo e a ideia de paternidade são assassinadas de múltiplas formas.


Temos na figura de Susana San Juan um ponto desestabilizador: ela, a mulher
por quem Pedro é apaixonado, e apresenta total devoção, é absolutamente
inalcançável. Suzana representa com muita eficácia essa suposta “anti-
paternidade”. Não permite qualquer aproximação com Pedro Páramo (nem com
o leitor), e tampouco se deixa governar pelo mesmo.

Susana, vale ressaltar, não apenas recusa – e abala – o “grande pai” que é
Pedro Páramo, mas também o seu próprio pai, Bartolomé. É possível apreender
a força desta negação especialmente no seguinte diálogo entre ela e seu pai:

— Você é minha filha. Minha. Filha de Bartolomé San Juan.


Na mente de Susana San Juan começaram a caminhar as ideias, primeiro
lentamente, depois se detiveram, para depois começarem a correr de tal
maneira que só conseguiu dizer:

De escombros a sussurros  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


— Não é verdade. Não é verdade.
— Este mundo, que nos dilacera por todos os lados, que vai esvaziando
punhados de nosso pó aqui e acolá, desfazendo-nos em pedaços como se
regasse a terra com nosso sangue.
O que fizemos? Por que nossa alma apodreceu? Sua mãe dizia que pelo
menos nos restava a misericórdia de Deus. E você a renega, Susana. Por
que me renega, a mim, como seu pai?
Você está louca?
— Você não sabia?
— Você está louca?
— Claro que sim, Bartolomé. Você não sabia? (RULFO, p. 56).

É interessante notar que Susana não renega neste momento só o pai, mas vai
além: renega pretensões lógico-racionais e, mais ainda, “a misericórdia de
Deus”. Ela é, no romance, esse ponto inalcançável e responsável pela queda de
Pedro Páramo e Comala. Em sua única fraqueza, o seu amor por essa mulher,
| 24 |
Dom Pedro é contrariado: “Esperei trinta anos pelo seu regresso, Susana.
Esperei até eu ter tudo” (RULFO, 2008, p. 94). Ela, que, como os demais
moradores de Comala, podem ser considerados “filhos”, recusa.

Pedro, ao saber da morte de Susana, impõe luto à Comala. No entanto esse


luto se transforma em festa, não sendo concretizado e acatado pelos habitantes
do povoado. E é exatamente aí que de fato começam a desmoronar Pedro e
Comala – que podem ser considerados um todo. Agora, todos os habitantes,
todos os “filhos” enlouquecem, indo contra a vontade do grande “pai” que é
Pedro Páramo:

Começou a chegar gente de outras paragens, atraídas pelo repicar


constante[..] chegou um circo, trazendo acrobatas e trapezistas.
Músicos. Comala formigou de gente, festança e ruídos, igual nos dias de
quermesse, quando dava trabalho dar um passo pelo povoado[...] Os
sinos pararam de tocar; mas a festa continuou (RULFO, 2008, p. 129).

Por meio de uma ordem do próprio Pedro Páramo, os habitantes de


Comala, totalmente dependentes e subordinados, conseguem assassinar o elo de
dominação e paternidade que estaria na base da economia de Comala. Trata-se
de uma recusa da dívida, da herança, da continuidade.

Como é possível perceber, então, o romance como um todo gira em torno da


questão da anti-paternidade – seja no campo estrutural da narrativa, seja no do

De escombros a sussurros  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


enredo. Esta “transgressão como expressão" que se nota na obra de Rulfo,
estaria, então, bem próxima do que Silviano Santiago entendeu por entre-lugar.
Não está no domínio de uma pretensa “superação”: “entre o sacrifício e o jogo,
entre a prisão e a transgressão, entre a submissão ao código e a agressão, entre a
obediência e a rebelião”. A ordem para o badalar dos sinos pode ter vindo de
Pedro Páramo, mas a festa que dessa ordem deriva vem dos seus “filhos”. E é aí
que está o entre-lugar: o agir dentro da prisão.

Referências

BELCASTRO, Guilherme. A cena do luto e a ruína da cena em Pedro Páramo.


RULFO, Juan. Pedro Páramo. Rio de Janeiro: BestBolso, 2008.
SANTIAGO, Silviano. Apesar de dependente, universal. In: Vale quanto pesa.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência | 25 |
cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
VOLEK, Emil. Pedro Páramo de Juan Rulfo: Uma obra aleatória em busca de
su texto y del género literário. Revista Iberoamericana. Pittsburgh, vol. 41,
n.150

De escombros a sussurros  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


A escuta de Conceição Evaristo
Amanda Dib

No dia cinco de setembro, à noite, minha amiga Lizandra Barboza me faz


um convite: no dia seguinte, no colégio Pedro II de Realengo, haveria uma
palestra com a Conceição Evaristo. Entre compromissos já marcados sendo
desmarcados; a pressa de dar logo os documentos para fazer o cadastro
necessário para assisti-la e o entusiasmo de ouvir a autora mais uma vez,
rodeava aquele entorno do convite feito de última hora, como que improvisado
e como quem não muito sabia sobre o evento. Depois de ter dito sim àquele
movimento de correria e descobertas, chegando ao Pedro II, veio o primeiro

| 26 | impasse: o segurança me dizendo não. Afirmava que era apenas para alunos ou
ex-alunos, que para mim a entrada era não. Mas, minha amiga Lizandra, ex-
aluna, mais uma vez impulsionando que houvesse um sim, intercedeu para que
eu pudesse entrar. Por fim, conseguimos e fomos direto para o auditório
aguardar a escritora. No entanto, percebo, agora, a possível interpretação de um
breve erro no que intitulei este trabalho - A escuta de Conceição Evaristo. Esta
era, antes, nossa busca ao chegar ao Pedro II na manhã corrida do dia seis de
setembro, mas eu e ela não nos atentamos ao próprio nome do evento, chamado
Kizomba, entre vozes outras também convidadas a integrarem as falas, sem ser
somente a de Conceição Evaristo.

Ao sentar no auditório, vimos os cartazes de Kizomba, e já ao palco, a


Oficina Literária Ato Zero, organizada pelo professor Luiz Guilherme Barbosa.
Então foi o instante do segundo impasse: ali, acabamos dizendo sim à outras
vozes, e não só àquela inicial da qual tanto esperávamos. No palco, com alunos
vestidos de preto circulando descalços e com pouca luz, dois estavam à frente,
onde a iluminação dos dois destinava ao eco: "De que cor eram os olhos de
minha mãe?". Pergunta emblemática que fica ressoando no primeiro conto do
livro Olhos d'água, de Conceição Evaristo e, ali, na Oficina Literária Ato Zero,
experienciou-se essa voz lida pelo outro: uma aluna lia o conto inteiro, enquanto
outro aluno repetia pausadamente, durante a leitura dela: "De que cor eram os
olhos de minha mãe?", como um parafuso que não para de girar; como uma voz

A escuta de Conceição Evaristo  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
que não cessa nas memórias e nas cenas; como um resgate sempre a vir. As
vozes daqueles dois alunos, confundindo-se, enquanto os outros permaneciam
cíclicos, transformou em deles, e nosso, aquela comunhão de ancestralidade e
memória - que é a potência dos escritos de Conceição Evaristo.

A apresentação na Jornada de Iniciação Científica da aluna Patricia


Rogeria, orientanda do professor João Camillo, teve como título: Memória de
um Círculo de Fogo (poesia e Samba de Enredo como cultura negra). Patricia
trouxe um poema de Conceição Evaristo para pensar a questão da memória e
ancestralidade. O poema intitula-se "Vozes-mulheres" e, em seu trabalho,
Patricia ressalta a importância da palavra eco, tão repetida ao longo dos versos,
para a visibilidade da força ancestral; então, destes traços deixados e marcados
para a preservação de identidades. Eco, que não coincidentemente, é um registro
oral. Os escritos de Conceição Evaristo vêm dos ecos, dos gritos, da oralidade
pulsante de palavras que são memórias, experiências e também perguntas
incessantes: "De que cor eram os olhos de minha mãe?". O conto desta frase,
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"Olhos d'água", começa com a inquietação da narradora em uma noite quando
acorda e "(...) uma estranha pergunta explodiu de minha boca", ela diz. Esta
explosão que irá acompanhar o conto inteiro ao contornar as lembranças da
infância e adolescência vindas à tona; histórias que se misturavam, como a
narradora mesmo afirmou: "Às vezes, as histórias da infância de minha mãe
confundiam-se com as de minha própria infância". O confundir-se com a mãe
retrata o espelho da identidade; do reconhecer-se; do resgate das raízes e a
importância desse movimento. A narradora diz:

Mas eu nunca esquecera a minha mãe. Reconheci a importância dela na


minha vida, não só dela, mas de minhas tias e de todas as mulheres de
minha família. (...) Não, eu não esqueço essas Senhoras, nossas Yabás,
donas de tantas sabedorias.

Os ecos da mãe, da tia e da família, agora, ressoam na própria voz da


narradora: "Mas de que cor eram os olhos de minha mãe?". O conto termina
com o reencontro da mãe e filha, em meio a olhos emocionados, os olhos
d'água, e com a pergunta refeita pela filha da narradora: "Mãe, qual é a cor tão
úmida de seus olhos?". Estas palavras, vindas como herança da família, mais
uma vez fazem confundir-se as infâncias da mãe e filha, que se conectam a ecos
da história e à trajetória de cada uma dessas mulheres. Neste ponto que o poema
"Vozes-mulheres" aproxima-se do conto "Olhos d'água", que traz a pergunta

A escuta de Conceição Evaristo  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
incômoda, e incessante, sobre os olhos da mãe, como um eco retornando e
incorporando, por fim, a voz da filha.

A voz de minha bisavó ecoou


criança
nos porões do navio.
Ecoou lamentos
de uma infância perdida.

A voz da minha avó


ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.

A voz de minha mãe


ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
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debaixo das trouxas
roupagem suja dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.

A minha voz ainda


ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e fome.

A voz de minha filha


recorre todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem - o hoje - o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância

A escuta de Conceição Evaristo  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
o eco da vida-liberdade.

Entre os olhos da filha e os da mãe, há uma cumplicidade vinda de todos


esses ecos. Os olhos d'água surgem por toda resistência da identidade e todas as
memórias de uma realidade violenta superadas para vir a filha, recolhendo as
vozes destas mulheres - as Senhoras, as Yabás -, vozes tantas vezes engasgadas
nas gargantas. Então a pergunta explode na boca, nestas vozes, como quem
pergunta sempre: de que cor são os olhos das nossas mães? A importância de
lembrar-se dos olhos, metonímia para representar a vida da mãe, é a inquietude
e necessidade em preservar a memória, a identidade e a ancestralidade. A
narradora, no conto, não poderia esquecer da mãe passando e lavando as roupas
dos outros enquanto deveria brincar com as filhas, para que as brincadeiras
distraíssem a fome. No poema, as bisavós, avós, mães e filhas também estão a
lembrar-se dos olhos, ou seja, da trajetória de todas elas, e isto a partir da escuta
dos ecos. A voz da filha, por fim, recolhe e confunde-se a todas as outras vozes.
Os gritos ecoam para o ato. A escrita é o ato de Conceição Evaristo, numa
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segunda narração dos fatos. O livro Becos da Memória, surge como essa outra
filha de Conceição: recolhe e funde todas essas vozes, não só como becos da
memória, como o título sugere, mas como os ecos da memória. Conceição
escreve um prefácio intitulado "Da construção de becos".

Se a publicação de Becos da memória levou vinte anos para acontecer, o


processo de escrita do livro foi rápido, muito rápido. Em poucos meses,
minha memória ficcionalizou lembranças e esquecimentos de
experiências que minha família e eu tínhamos vivido, um dia. Tenho
dito que Becos da memória é uma criação que pode ser lida como
ficções da memória. E, como a memória esquece, surge a necessidade
da invenção.
Também já afirmei que invento sim e sem o menor pudor. As histórias
são inventadas, mesmo as reais, quando são contadas. Entre o
acontecimento e a narração de fato, há um espaço em profundidade, é ali
que explode a invenção. Nesse sentido, venho afirmando: nada que está
narrado em Becos da memória é verdade, nada que está narrado em
Becos da memória é mentira. Ali busquei escrever a ficção como se
estivesse escrevendo a realidade vivida, a verdade. Na base, no
fundamento da narrativa de Becos está uma vivência, que foi minha e
dos meus. Escrever Becos foi perseguir uma escrevivência. Por isso
também busco a primeira narração, a que veio antes da escrita. Busco a

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voz, a fala de quem conta, para se misturar à minha. Assim nasceu a
narrativa de Becos da memória.

Voltando ao evento Kizomba e, finalmente, à fala de Conceição Evaristo,


que integrava a mesa junto com o coletivo Papo Negro, ela nos faz um pedido:
que afinemos nossa escuta para a Literatura, e dá seu testemunho: "Eu não nasci
rodeada de livros, eu nasci rodeada de palavras". A escrevivência relatada por
Conceição Evaristo no prefácio lido, relata não só a experiência com a oralidade
e a valorização da vivência como força matriz para a segunda narração, mas
também partilha da realidade rodeada de palavras, ouvidas nos ecos mais
violentos e perturbadores. Da escuta para a escrita, Conceição não alivia a
experiência de sua vivência ao leitor; ela diz:

A nossa escrevivência não pode ser lida como história de ninar os da


casa-grande, e sim para incomodá-los em seus sonos injustos.

Maria-Nova, personagem principal de Becos da Memória, dizia que um dia


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escreveria todas as histórias que eram dela e dos outros. Ouvia atentamente às
falas dos familiares e dos habitantes da favela onde morava, ou então atentava-
se aos gestos, aos sussurros das mulheres nas torneiras lavando roupas das
patroas e os próprios molambos. Diz ter percebido que escreveria assim que
ouve a mãe dizendo que a Vó Rita dormindo embolada com ela. Conceição diz
que cresceu possuída pela oralidade, pela palavra. O som, o ritmo, como o de
um eco, permeia a escrita literária da escritora, que traz como traço àquilo do
qual nasceu rodeada e fez possível os primeiros instantes com a Literatura e da
Literatura. Esta frase: "Vó Rita dormia embolada com ela" é a primeira frase do
livro, frase também já mencionada no prefácio "Da construção de becos".

Assim nasceu a narrativa de Becos da memória. Primeiro foi o verbo de


minha mãe. Ela, D. Joana, me deu o mote: "Vó Rita dormia embolada
com ela". A voz de minha mãe a me trazer lembranças de nossa
vivência, em uma favela, que já não existia mais no momento em que se
dava aquela narração. "Vó Rita dormia embolada com ela, Vó Rita
dormia embolada com ela, Vó Rita dormia embolada com ela..." A
entonação da voz de mãe me jogou no passado, me colocando face a
face com o meu eu-menina. Fui então para o exercício da escrita. E
como lidar com a memória ora viva, ora esfacelada? Surgiu então o
invento para cobrir os vazios de lembranças transfiguradas. Invento que

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atendia ao meu desejo de que as memórias aparecessem e aparecessem
inteiras. E quem me ajudou nesse engenho? Maria-Nova.
Quanto à parecença de Maria-Nova, comigo, no tempo de eu-menina,
deixo a charada para quem nos ler resolver. Insinuo, apenas, que a
literatura marcada por uma escrevivência pode con(fundir) a identidade
da personagem narradora com a identidade da autora. Esta con(fusão)
não me constrange.

Becos da Memória faz construção de uma árvore genealógica e de um


cenário físico, emocional e social da favela onde nasceu Maria-Nova, menina de
treze anos, que escreve em homenagem aos marginais, quem ela intitula os
bêbados, as putas, os malandros, as crianças vadias que ficam à margem, todos
nos becos ecoando e amontoando-se dentro dela. Também escreve em
homenagem à família, muitos já póstumos, a eles por quem tinha uma dor de
banzo, palavra angolana que denota saudade; saudade em ouvir as histórias
violentas de Tio Totó, que guardavam pedras pontiagudas no fundo do coração
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da menina. Tio Totó, que se chamava Antonio João da Silva, mas ficava mesmo
com o apelido de cachorro, fazia-se sempre a pergunta: "Deus do céu, seria
aquilo vida?". Depois de ver Miquilina e Catita, sua primeira mulher e sua filha,
morrerem sendo arrastadas pelo rio, Totó sobreviveu sozinho em meio a
violenta perda alinhada em três palavras, que em sua vida estão sempre a
permutar e fundir-se: turbilhão, vida e morte. A rapidez, como o fluxo de um
rio, com que as perdas vão se repetindo na vida do personagem contorna a
desesperança em sua fala: "Assento e penso: para quê?". Ele, filho de escravos,
nascido na "Lei do Ventre Livre", tem por sina, e destino implacável, as
orfandades, partidas, labutas exaustivas e intermináveis. Os trabalhos pesados
acoplados entre a estrada e a roça, arrancava a estabilidade de Totó, que vagava,
mas, no fim, voltava para a favela, sem os pais - falecidos de tuberculose -, sem
Miquilina e Catita. Restava a herança das histórias de escravidão como marca e
repetição da própria história, e a busca pela sobrevivência na forte tentativa de
não ser derrubado pelo turbilhão da realidade.

Prisca Agustoni de Almeida, no livro Vozes além da África, escreve o


capítulo "Signos do atlântico negro em trânsito: algumas vozes da poesia de
língua portuguesa contemporânea", e ela diz:

É fundamental pensarmos o processo de escravidão e seus


desdobramentos como paradigma de uma herança cultural cujas marcas

A escuta de Conceição Evaristo  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
estão inscritas nos diferentes âmbitos que dizem respeito à cultura
brasileira.

O movimento dos negros vindos ao Novo Mundo para a escravidão, resulta


no que Ana Beatriz Gonçalves, no artigo Processos de (re)definição na poesia
de Conceição Evaristo, nomeou o "sujeito diaspórico". A pesquisadora pensa a
diáspora como experiência traumática, já que se instala um sentimento de perda
nesse sujeito deslocado e desmembrado, e como deformação da homogeneidade
de modelos fixos da identidade cultural brasileira. Totó, o nítido sujeito
diaspórico, casa-se depois com Maria-Velha, filha de Luisão da Serra - um dos
poucos sobreviventes dentre os irmãos nascidos na escravidão. Todos esses
sujeitos diaspóricos marcam Becos da Memória ao assinar as contínuas perdas e
dores e, de geração em geração, levar consigo os traços indissociáveis da
trajetória familiar. O avô de Maria-Velha chorava ao vê-la, pois lembrava-se de
Ayaba - sua filha; arrancaram-na dele quando ela rebelou-se contra o senhor de
escravos. Ayaba, que era a "mamãe preta" da criança branca, foi vendida e o pai
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nunca mais a viu. Ele, quando olhava Maria-Velha, sua neta, lembrava da filha
Ayaba, a quem pôde nomear como aquela que significa Rainha, mas que
perdeu, como tantos outros filhos. Maria-Velha, tia de Maria-Nova - a pequena
menina que ouvia todos os ecos atenta -, fazia parte da resistência por esta nova
identidade cultural, resultado de tantos processos de perda, mas que busca sair
"da invisibilidade para transformar marginalização em poder", como diz Ana
Beatriz Gonçalves.

O rosto de Maria-Velha confundindo-se com o rosto de Ayaba, é a confusão


mesma das vozes no poema "Vozes-mulheres", quando a filha recolhe todas
elas, e no conto "Olhos d'água", quando a mesma pergunta passa de mãe para
filha. Esta con(fusão) de vozes foi experienciada na Oficina Literária Ato Zero
na leitura simultânea dos dois alunos, e a memória representada pelos outros
alunos, circulando no fundo do palco. Apesar de toda manifestação de perda,
Conceição concilia passado, presente e futuro na voz da filha, que recolhe e
grita, por todas as Senhoras e Yabás, o fim dos ecos da escravidão. A escrita,
para Ana Beatriz Gonçalves, deve ser pensada como um processo constante de
auto(re)definição: os ecos da escravidão tornarem-se os ecos da liberdade e as
mulheres negras redefinirem-se dos retratos moldados pela sociedade. Sobre os
escritos de Conceição Evaristo, Eduardo de Assis Duarte, no artigo Mulheres
marcadas: literatura, gênero, etnicidade, diz:

A escuta de Conceição Evaristo  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
Suas personagens são negras e vivem como domésticas, mendigas,
faveladas, presidiárias. E são, sobretudo, mulheres de fibra, lideranças,
referências comunitárias.

Não há glamour nessas mulheres: há um registro da realidade pela qual as


personagens permeiam, percorrendo a miséria e a violência A maternidade
aparece, no livro Olhos d'água, como a veia pulsante para o resgate de forças e
esperanças, como se no leito fosse depositado todas as formas de sonho
impossíveis de serem sonhadas na realidade - fora das barrigas e dentro dos
barracos. Ana Davenga germinou a esperança no filho. A personagem, diante
dos policias arrombando a porta e apontando as armas para ela e o marido
traficante, preocupava-se em proteger "com as mãos um sonho de uma vida que
ela trazia na barriga", ela pensava. O fim do conto termina com a questão mais
trágica: a perda da expectativa, naquele bebê nem ainda nascido, de um futuro
diferente. O narrador diz que o futuro ali, na favela, chegava rápido. O filho dos
Davenga, entre as mãos da mãe tentando protegê-lo, mata a crença de mudança.
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Os pais metralhados, e o filho, também, ali - onde o futuro chega rápido, num
turbilhão ágil do deslocamento vida à morte.

A temática da violência e maternidade vão sendo recorrentes nos contos de


Olhos d'água. Esse registro da realidade marcado por perdas alcançam mulheres
de traficantes, como Ana Davenga, que perde o marido, a própria vida e a
esperança de um futuro diferente: o filho; alcançam prostitutas, como Duzu-
Querença, que também já tinha sido a filha - o símbolo de esperança dos pais
pobres. No fim, ainda criança, vai trabalhar num prostíbulo limpando os
quartos, sob a advertência da senhora em sempre bater nas portas antes de
entrar. Certo dia entrou sem bater, e o homem, não importando-se com a
pergunta: "Não estava vendo que ela era uma menina?", começa a fazer os
carinhos que renderam à Duzu-Querença dinheiro. A senhora depois
descobrindo tudo, deu um quarto à menina. O narrador diz:

Duzu morou ali muitos anos e de lá partiu para outras zonas.


Acostumou-se aos gritos das mulheres apanhando dos homens, ao
sangue das mulheres assassinadas. Acostumou-se às pancadas dos
cafetões, aos mandos e desmandos das cafetinas. Habituou-se à morte
como uma forma de vida.

Ela teve nove filhos e muitos netos. Um dos netos, o pequeno Tático de
treze anos, foi assassinado dando mais uma dor a Duzu-Querença, que agora

A escuta de Conceição Evaristo  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
tinha a neta Querença para retomar os sonhos perdidos. Quando Duzu-Querença
morreu, e ficou em vida a pequena Querença com treze anos, mesma idade que
Tático, habitando os sonhos de reinventar a vida, encontrar novos caminhos. O
registro de realidade marcado por perdas alcançam empregadas domésticas
como Maria, voltando para casa segurando as sacolas cheias dos restos da festa
da patroa - o osso do pernil e as frutas que tinham enfeitado a mesa. Assim que
ela entrou no ônibus, reconheceu o homem que era o pai de seu primeiro filho.
Maria sentiu mágoa pelo abandono, por todo aquele tempo do qual não
apareceu. O homem sentou-se ao lado dela e cochichou que sentia saudades,
perguntou também sobre o menino, seu filho. Maria tinha tido mais dois filhos,
e nos três ela apostava: "Eles haveriam de ter outra vida. Com eles haveria de
ser diferente". Assim que o homem levantou-se, anunciou o assalto, mas ele e o
comparsa não levaram nada de Maria. Ela só pensava nos três filhos. Os
homens saíram do ônibus e o motim começou contra Maria, acusada de
conhecer o assaltante e não ter sido roubada. Mas ela não conhecia o assaltante,
| 34 | conhecia o pai de seu primeiro filho, quem pediu baixinho para enviar um
abraço, um beijo e um carinho ao menino de onze anos. A violência dos
passageiros explodiu, mesmo com a fala do motorista intervindo por Maria,
mulher que todo dia encontrava indo trabalhar para sustentar os filhos. No fim,
Maria não conseguiu chegar em casa para enviar o que o pai do menino tinha
pedido, nem para saber se as crianças gostariam de melão ou como seria, agora,
a vida dos filhos sem a mãe, linchada com o corpo dilacerado, pisoteado,
odiado.

A valorização da identidade afro-brasileira e a preservação da memória


como resistência integrou o assunto discutido entre Conceição Evaristo e o
coletivo Papo Negro, no Kizomba. Os alunos reúnem-se para pensar em como
resistir aos discursos de ódio, ao preconceito e à realidade violenta da qual têm
que enfrentar todos os dias para continuarem sendo a esperança de um futuro
diferente, como todos os netos e filhos germinados na escrita e escuta de
Conceição Evaristo. Alunos que estão afinando a escuta para a Literatura e aos
ecos da história, e o principal: recolhendo em si todas essas vozes e libertando a
própria, nesta fusão e con(fusão). Este trabalho, repito, surge da escuta aos
alunos do colégio Pedro II de Realengo, por onde este trabalho surgiu pela
vivência e escuta, resultando na segunda-narração do dia seis de setembro. Por
fim, chegando ao terceiro impasse: sair, durante o evento, no meio da fala de
Conceição Evaristo porque as apresentações dos alunos ocorreram em peso,

A escuta de Conceição Evaristo  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
atrasando os horários de programação. No entanto, o convite para aquele dia
tinha, em todas as falas, o que aprendemos, sentimos e nos vemos, na
Literatura-palavra de Conceição Evaristo - e é a partir disso que intitulo meu
trabalho como A escuta de Conceição Evaristo, a recolher neles, e nela, todas
estas vozes em Kizomba.

Na minha bibliografia, afinando minha escuta à Literatura, agradeço o


convite de Lizandra Barboza, que permitiu que fosse possível a escuta do
evento Kizomba; a apresentação emocionante da Patricia Rogeria na JIC; a aula
do professor Paulo Tonani no curso de autoficção quando líamos Carolina
Maria de Jesus e se discutiu Literatura Marginal, ressaltando Conceição
Evaristo - nome que anotei no meio do caderno; e a Luana Marques, quem leu
para mim, no clube de mulheres da livraria Travessa, os primeiros trechos da
autora e me levou a Flupp, onde, depois de ler o livro, ouvi Conceição Evaristo
pela segunda vez.

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Referências

AGUSTONI DE ALMEIDA, Prisca. Vozes além da África


ASSIS DUARTE, Eduardo. Mulheres marcadas: literatura, gênero, etnicidade
BEATRIZ GONÇALVES, Ana. Processos de (re)definição na poesia de
Conceição Evaristo
EVARISTO, Conceição. Becos da memória
EVARISTO, Conceição. Olhos d'água
EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos

A escuta de Conceição Evaristo  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
O corpo, abaixo do equador, no
carnaval do Paraíso:
A relação do Carnaval, a Arte e a corrente
conservadora catequizadora.

Artur Vinicius Amaro ou Vanubia Close

Graduando em Letras: Português - Licenciatura, atualmente participa do


Laboratório de Experimentação de Design da Escola de Belas Artes, tem sua
escrita atravessada pelo alter ego, sua Drag Queen Vanubia Close, quase uma
antropofagia de duas escritas, duas vivências entre a academia e as ruas, entre o
samba e os livros, entre os bailes e teorias. Essa escrita contempla ritmos e
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culturas do povo, abarca o samba, o funk, das ruas e das favelas e tenta mostrar
o Brasil como ele é, um Brasil Canibal, capaz de conquistar o mundo com tudo
que ele tem.

Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval.


(ANDRADE, Oswald. 1928)

Agradecimento especial ao Carnavalesco da


G.R.E.S. Paraíso do Tuiuti, Jack Vasconcelos, pelas
grandes contribuições a este ensaio. Também
agradeço ao Prof. Dr. Milton Cunha, pela ajuda no
pensamento que guiou e atou várias pontas para que
esse texto tivesse fim. Ao Prof. Dr. Samuel Abrantes
por duvidar acreditando de minhas loucuras... E por
fim ao mais especial deles, Marlon A. Barbosa, por
sempre embarcar na Nau das minhas loucuras
acadêmicas.

Oswald de Andrade, em 1928 - ano de fundação da primeira Escola de


Samba, inicialmente como bloco, a "Deixa Falar" -, escreve o manifesto

O corpo, abaixo do Equador  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
Antropófago e faz inúmeras menções às diversas obras e autores da literatura.
Dentre eles, Machado de Assis - e seu “To Be or Not To Be” que dá origem a
expressão “Tupi or Not Tupi”, presente no manifesto - até José de Alencar -
com suas obras que falam de índios, mesmo que idealizados, como Iracema, que
curiosamente foi o enredo da G.R.E.S. Beija Flor de Nilópolis em 2017:
“Iracema A Virgem dos Lábios de Mel”. Oswald, então, instaura
inúmeras questões que perdurarão ainda por gerações, que tiverem a
sensibilidade de olhar sua obra, e a primeira e talvez maior delas seja:
“Nunca fomos catequizados?”.

O Corpo no Carnaval

Imensas vezes provamos, dia após dia, que fomos mais que colonizados:
fomos catequizados, ou talvez uma grande parcela de nós esteja se
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encaminhando a tal. Das inquietações que o Manifesto Antropofágico causa,
talvez essa seja a questão mais complexa de se responder: “Nunca Fomos
Catequizados. Fizemos Foi Carnaval.”. De fato, fizemos carnaval: aprendemos
no carnaval a viver com as dificuldades e a sermos felizes por quatro dias. Mas
aqui precisaríamos pensar que, mesmo com o sentimento de liberdade que o
carnaval nos traz, com esse sentimento de permissão, ele ainda é pensado
através de uma formação cristã: a ideia da festa da carne, da festa profana. A
nossa maneira de fazer carnaval é diferente, é única, já que aqui, no Brasil, a
terra tropical, talvez o pudor não existisse antes do colonizador Europeu, este
que a idealizava como a terra que não existe pecado, onde ele viu o índio
despido e que muitas vezes se reafirmou ser a terra abaixo do equador que não
existe pecado.

Vestir o corpo do componente da escola de samba é mostrar que há tempos


existe uma censura à arte, que tem se fortalecido nos últimos anos. O carnaval
tem vestido muito mais o folião. Desde 1989, o próprio regulamento dos
desfiles, organizados pela LIESA, proíbe a exposição de genitália - graças ao
caso mais comentado da musa da União da Ilha do Governador, Enoli Lara, que,
no ano de 1988, no enredo festa profana, exibiu a genitália desnuda em um
carro alegórico, o que gerou uma questão moral, já que o júri não gostou e
causou grande polêmica nos dias subsequentes. Outros nomes, como Jorge
Lafond, na Beija-flor, em 1985, também já causaram polêmica ao desfilar

O corpo, abaixo do Equador  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
apenas com um tecido de paetês por cima da genitália, que muitas vezes ficava
exposta, na Marquês de Sapucaí.

Joãozinho Trinta mostrou, também em 1989, uma nova maneira de libertar


esse corpo, quando “Ratos e Urubus Larguem minha Fantasia” mostra que do
lixo vem o luxo, que o mendigo pode ser rei e a Sapucaí pode ser repleta de
bumbuns e peitos de fora – o próprio corpo ganha certa liberdade, mesmo com a
imposição do regulamento que proíbe. João mostra, mesmo com as críticas, um
“cristo coberto”. Outro fato é o pudor no brincante que tem receio de mostrar o
corpo, como, por exemplo, mulheres que tem pudor com os seios.
Carnavalescos, como Jack Vasconcelos da Paraíso do Tuiuti em 2017, apontam
que tem sido cada vez mais difícil encontrar pessoas dispostas a minimamente
despir partes do corpo para compor o número de componentes em alegorias. Os
homens, que tem mais liberdade perante à sociedade, ponderam-se para expor
ou não seu corpo.

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O Corpo e os espaços condenados: A censura à
Arte

Essa noção de catequização não vem apenas de um cristianismo trazido nas


caravelas, mas das ideias que nesse “Cristo” são apoiadas e criam diversos
desconfortos. Com o crescimento das mídias sociais e o avanço da internet,
parece que isso se enraíza com mais facilidade. A internet ajuda na ideia cristã
de “evangelizar”, a ponto de fechar o Queermuseu, exposição sobre diversidade
promovida pelo Santander Cultural, e criar pela primeira vez uma exposição
com classificação etária de dezoito anos - arte sendo censurada, arte sendo
julgada, arte sendo jogada. Em ambas manifestações artísticas - exposição e
carnaval - parece que há um pressuposto moralizante em relação aos corpos
expostos à nudez. Pressuposto moral que advém sobretudo de um caráter
religioso cristão, que também se conforma nas correntes neopentecostais. Para
quem pensa na contracorrente da catequização, ainda há mais absurdos: há mais
pessoas que querem nos vestir, como fizeram com os índios, do que quem se
manifeste contra (mudança na ordem). Por mais que seja um desejo, há um
pudor tão entranhado entre nós que os atos sexuais são inibidos, de modo que as
pessoas se escondem em banheiros para fazer tais coisas. Um corpo que
moraliza do lado de fora, espera achar uma porta onde o prazer possa romper o

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limite do pensamento, possa ser curtido sem pudor e que lá fique, sem parecer
um fantasma que persegue. Romper essa barreira da liberdade do corpo é difícil.
É ruim o caminho dos que querem ser. O corpo na nossa sociedade parece um
objeto; sociedade essa que se diz tão decente, conservadora da “Moral e Bons
Costumes” e decide quais dos corpos importam.

Pensando no Queermuseu, que foi fechado por uma ideia moralista cheia de
palavras de “fé e moral”, como aconteceu com os colonizadores nas caravelas, é
possível notar uma força ditadora que impõe um corpo mais importante, , qual
integridade corporal deva ser mantida. De um lado, uma menina branca de
classe média-alta exposta a um homem nu; de outro, crianças negras, pobres,
moradoras de uma comunidade do Rio de Janeiro expostas a corpos (mortos)
nus, dilacerados por tiros, crianças dia após dia perdem conhecidos e entes
queridos . A menina envolta da polêmica do Queermuseu é a escolhida para
manter a inocência. Afinal, por causa disso, a exposição foi fechada e
bombardeada por críticas fundamentadas em “Deus, Família e Moral”. A arte
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passa por tempos difíceis. O mundo passa por tempos difíceis.

Parece que mesmo depois de quase 90 anos do manifesto, nada mudou. As


ditas “minorias” podem ter saído dos seus respectivos armários, caixas e prisões
para gritar seus desejos, seus direitos, As mulheres querem o domínio do
próprio corpo, sem ter que pensar nas normas da sociedade machista e
patriarcal; , a população LGBTTQIA+ cada dia descobre uma nova categoria, e
muitas vezes evita categorização, , mas se torna de extrema importância no
processo de liberdade do corpo e de autoconhecimento do seu próprio “Eu”.
Mesmo com a liberdade desses grupos minoritários e liberdades de pensamento
individual, ainda existe um poder proferido pela religião cristã.

Tanto não evoluímos que chegamos ao ponto de ter um prefeito bispo de


uma igreja evangélica. Seria esse o primeiro ou mais um dos indícios de que,
sim, fomos catequizados? No primeiro dos quatro anos do Prefeito-Bispo a
GRES Paraíso do Tuiuti traz em seu samba os versos: “No Pindorama todo dia
é carnaval,/ Brasil, riqueza da mãe Natureza,/ Meu chão, morada da felicidade”.
A escolha parece que foi feita intuitivamente, já que o enredo e o samba foram
escolhidos em 2016, antes das eleições terem acontecido e o prefeito ser eleito.

O samba enredo em questão parece uma espécie de manifesto de


exaltação ao próprio Brasil, mas com o mesmo sentido do manifesto
antropofágico de Oswald de Andrade em que a palavra “pindorama”, do tupi-

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guarani “Terra das Palmeiras”, é o próprio Brasil. O samba parece se apropriar
desse conceito e o ressignifica como um lugar mágico do sonho e da falta de
vergonha, onde não há pecados. Por um lado, em 1928, o manifesto traz várias
questões sociais do Brasil pertinentes à época , falando de uma nacionalidade e
definindo o Brasil como país da Antropofagia, Hoje,entretanto, depois de quase
90 anos, encontramos um novo manifesto por meio do carnaval da Paraíso do
Tuiuti, assinado por Jack Vasconcelos, . No que diz respeito ao formato e ao
conceito do enredo, a história da tropicália é contada e recontada, bebendo das
fontes do modernismo para fazer duras e veladas críticas à ditadura. Talvez essa
escolha não tenha sido arbitrária, vivemos tempos minimamente estranhos.
Talvez, em 2016, antes do Prefeito Bispo, tais críticas se direcionassem
diretamente ao presidente “Vampirão”, mas elas caem quase como uma luva, ou
cairão ainda mais ano após ano do bispo prefeito sobre a Cidade Maravilhosa do
Pindorama.

Há de se pensar que tentaram catequizar o Carnaval e que, de certa forma, já


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o fazem desde 1989, quando as genitálias desnudas foram impedidas, da mesma
forma que houveram pedidos para impedir os mamilos femininos . E que tal
pensar em uma pregação antes da final de um samba enredo? Isso deve ser
levado em conta, tentam se infiltrar de maneira amistosa, porém perigosa.
Devemos sempre nos lembrarmos que a escola de samba nasce dentro de
terreiros de cultos aos orixás africanos e caminha lado a lado com eles. Talvez
possamos dizer que a maior parte das escolas de samba (e para afirmar isso com
maior certeza exigiria uma pesquisa histórica profunda) já cantou algum Orixá,
já trouxe alguma figura de cultos africanos e sua influência no Brasil. Isso é
antropofagismo. Nos dá medo pensar em um enredo chamado “Deus é Fiel”,
com algum cantor gospel como “puxador”.

O Paraíso e o Brasil do Neoantropofagismo: A


favela

Pensando novamente no desfile de 2017 da Paraíso do Tuiuti,nas as várias


fantasias e as suas seis alegorias, pode-se lançar um olhar mais detalhado sobre
a segunda, que encerra o setor “Antropofagia: A Revolução Anticolonialista”,
intitulado “Brasil Canibal: Neoantropofagismo”. Fazendo uma breve descrição
desses setor, nota-se uma primeira referência ao morro da Mangueira graças aos

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tons de verde e rosa, uma planta Carnívora que deglute um “Abaporu”, um
brincante que simboliza “Macunaíma devorando a Arte”, fazendo referência ao
que o samba diz da obra de Oswald , e todo o setor de referências à sua frente
para formar o resto da escola que vem atrás. “Macunaíma”, o nosso anti herói, o
típico brasileiro e Tarsila e seu abaporu , “O Rei da Vela”, “Terra em Transe
serão deglutidos , sinais da nossa antropofagia cultural que se confirmam na
favela. Assim, vemos uma explosão de cores, de referências e de um
movimento que só confirma o quão antropófagos nós somos.

Vemos ali - nos vemos ali - o real retrato do que é o Brasil e do que é o
brasileiro, e percebemos que somos tupiniquins. Somos antropofágicos - isso é
inegável - conseguimos transformar em nosso tudo aquilo que nos é dado, e
fazemos isso com excelência Mas parece que nas comunidades, nas favelas,
“nos becos e vielas” isso ganha um novo sentido, uma nova maneira de se fazer.

“A favela é o maior antropofágico do Brasil”. Essa afirmação soa muito


pertinente se pensarmos que muito que sai dela vai para o mundo. Seja o samba,
| 41 |
que hoje é patrimônio cultural, produto de exportação, seja o funk, que vem
atraindo olhares, se tornando um molde para se expor pelo mundo (assim como
o samba) e ganhando novos espaços. Contudo o funk ainda tramita entre o céu
de ser amado por uns e o inferno de outros pensarem em instâncias legais à sua
proibição. O gênero arrasta multidões em bailes, faz grandes revoluções, se
populariza através da mídia, faz a “Malandra” dançar e cantar com um norte-
americano,torna o “Bum Bum Tam Tam” uma parceria em 3 idiomas. O funk
está presente e surgiu pela mixagem de vários ritmos por DJ’s que convidavam
Mc’s para cantar versos simples e que hoje gera grandes discussões dentro do
próprio movimento sobre a forma de se produzir e reproduzir o ritmo, sai das
favelas e morros do Rio de Janeiro e ganha as periferias de São Paulo, Minas
Gerais e outros estados do Brasil.

Há também uma exaltação ao poder paralelo das comunidades,


determinadas rotinas e uma autodescrição de atos sexuais, de liberdade do corpo
e despudor quanto à conveniência social do sexo. Se a sociedade prega o corpo
com pudor, o sexo em locais velados, o funk canta, dentre outros contextos,
uma realidade direta do sexo que acontece de forma explícita em ruas, becos, ao
simples desejo do corpo de uma transa. Um gozo e dois olhares que se
desencontram no som alto, em copos de bebida alcoólica ou envolvidos pela
“onda” de alguma outra droga. Sexo por sexo. Apenas por prazer . É na favela
que o antropofagismo ganha um significado cultural imenso e talvez seja a

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favela, assim como a do desfile do Tuiuti, este “Pacman” antropofágico que se
constrói através daquilo que ingere do que vê pela frente.

Há, também, dentro da favela, um embate muito grande entre a falta de


pudor das noites de baile funk e o desejo pela pureza, pregada pelas igrejas que
fazem seus cultos pela manhã, ou passam as madrugadas nos bailes tentando
“evangelizar” os que frequentam. A promiscuidade, dita pelos moralistas,
defensores da família tradicional e dos bons costumes, dos funks reflete a
liberdade sexual que tanto é condenada e a pudicícia das orações de joelhos nas
igrejas. Tanto o funk quanto os cultos trazem elementos externos; o primeiro
usa a batida de música norte americana e nasce da mixagem de LP’s de outras
músicas, se reinventa seguindo a linha das tendências na música eletrônica
criando a moda dos “150 BPM’s”, enquanto o segundo prega a castidade, que
não pertence a essa terra, ou seja, que não estava aqui com o habitante original
dela, uma vez que o colonizador propagou pela Europa a frase “Não existe
pecado abaixo da linha do Equador”. Parece que há um Deus perverso que não
| 42 |
quer a liberdade. Por mais que exista o tal “livre-arbítrio” eles insistem em
enfiar-nos goela abaixo suas crenças e maneiras de ver a vida sem que peçamos.

Se a antropofagia nos une, o tal “erro de português” nos separa, nos faz criar
discursos de ódio, traz até apedrejamento, ou naturalização da morte em alguns
casos. A colonização, as ideias conservadoras, o pecado imposto a nós , o véu
do medo que vestimos nos torna incapazes de aceitarmos as diferenças: raça,
cor, etnia, opção sexual. "Ser” é pecado, o travestido é condenado, a travesti
leva pedra de dia, mas a noite o corpo travestido é um objeto de desejo
sublimado, que se localiza à margem; a liberdade é a paixão que move a vida,
todos queremos ser livres de tudo, queremos ter nosso corpo, ser nosso, ter
pertencimento próprio, engrenar a liberdade do corpo, dar voz.

Somos consumidos, assimilados, padronizados, entramos em uma regra.


Querem nos colonizar novamente. Somos as flores em um jardim onde a
opressão nos pisa, expurga, nos demoniza, chama de doentes, expulsa com
chutes e pedras desse pindorama. Deixa de ser pindorama. Somos os não-
catequizados, fizemos foi carnaval, O CARNAVAL, carnaval diferente, o
carnaval livre, o carnaval que não tem o pudor do corpo, o que não aceita as
imposições do bispo. Brincamos o carnaval, somos o carnaval.

Vamos para o samba?

Alô povo brasileiro... Aquele abraço

O corpo, abaixo do Equador  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
Caminhando deixo o sonho me levar...

Ecoamos os gritos de liberdade, propomos o fim do pecado, no sentido de


um começo de pensamento no qual a liberdade do outro não interfira na minha
vivência . A liberdade precisa existir, entretanto, a catequização apresenta o
“livre-arbítrio” que nunca existiu de fato. Os versos do refrão, no fim ou no
início, são uma mensagem, quase como um manifesto, o manifesto
Antropófago, uma leitura sobre leitura, assim como na tropicália, que o povo
sonhe com o pindorama, mas não só que sonhe, que tente mudar, que ajude a
levar ao povo a liberdade, que ressignifique o “erro de português”. Se o
português vestiu o índio, necessitamos despi-lo, e ter carnaval todo dia, “não
esperar para ser vadia”, como afirmar o hit do carnaval de 2017, cantado pela
drag queen Pabllo Vittar Há, porém, quem realmente seja todo dia, encurralado
em banheiros sórdidos dos mais inusitados lugares. Esse corpo não pode ser um
corpo livre apenas nesses quatro dias, os gritos de liberdade e igualdade
precisam ecoar pelo longo do ano com essa mesma alegria e felicidade que
| 43 |
vivemos enquanto o “rei momo” nos governa.

Necessitamos sonhar, nos carnavalizar dia após dia e ver o quanto somos
capazes de delirar enquanto não-catequizados. O que perdemos jamais teremos
novamente, mas o novo, que, como antropofágicos, conseguimos construir deve
ser a engrenagem que vai nos mover para utopicamente pensar, delirar e
antropófagos ser.

Artur Vinicius Amaro

Ou

Vanubia Close, o Travesti

Em 2017

O ano da tal Crise, Do Prefeito Bispo,

Dos Cortes e do Quase, se não o próprio, “Retorno da Escravidão”

Resistido e “Com Dinheiro ou sem dinheiro, eu Brinco”.

E 2018 promete muito... Conta-se os dias para o carnaval!

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Referências

Livro Abre-Alas LIESA 2017 – Domingo 26/02/2017; Pág 03-


54.
ANDRADE, Oswald de. A utopia antropofágica I Oswald de
Andrade. São Paulo: Globo: Secretaria de Estado da Cultura,
1990. - (Obras completas de Oswald de Andrade)
SILVA, Beatriz Coelho. Negros e Judeus na Praça Onze – A
história que não ficou na memória. Rio de Janeiro: Bookstar,
2015.

Links Consultados:
https://oglobo.globo.com/rio/crivella-diz-que-corte-de-subvencao-para-
carnaval-decisao-complicada-mas-necessaria-21511122 - Noticia do Corte de
Verba da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro
https://www.youtube.com/watch?v=JcD9xakS3Bo – Entrevista em que Leandro
Vieria, Carnavalesco da GRESEP Mangueira, comenta sobre o enredo para o
| 44 | carnaval de 2018
https://www.youtube.com/watch?v=FF41_PGsZCw – Desfile de GRES Beija-
Flor de Nilópolis do ano de 1989

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Horacio Quiroga e a experiência dos
textos no espaço do entre-lugar
Brena de Azevedo da Silva Santos

Formada em Letras - Português/Literaturas pela UFRJ. Atualmente trabalha


com ensino fundamental e acredita fielmente que a educação é a única maneira
de mudar o país. Encontrou no texto A Metamorfose, de Kafka, uma sensação
de desconforto na medida em que, a cada página, a escritura a perturbava a
ponto de querer aprofundar ainda mais as obras do escritor. Viu em seus textos
um abrigo e desabrigo que foram fundamentais durante a sua graduação.

Não se conhece criador algum de contos campesinos,


mineiros, navegantes, vagabundos, que antes não | 45 |
tenham sido, com maior ou menor eficácia,
campesinos, mineiros, navegantes e vagabundos
profissionais.

Horacio Quiroga

A questão que percorre este trabalho é pensar como acontece a relação do


autor com a sua obra, interrogando onde ele está – se está - quando lemos um
texto. O interesse por este assunto foi acordado no segundo semestre de 2015,
em um curso de extensão intitulado A teoria da literatura em seus textos
fundamentais: apoio à formação de docentes da teoria literária organizado pelo
departamento de Ciência da Literatura. Ali, tive a oportunidade de refletir a
respeito de um texto de Franz Kafka, "A Metamorfose", onde o primeiro
contato com o texto foi desconfortável na medida em que, a cada página, a
escrita perturbava-me a ponto de querer aprofundar ainda mais nas obras do
escritor. A busca por uma particularidade na escrita de Kafka se seguiu com o
conto “Um artista da fome” e com o desejo de apresentar o limite "indecidível"
entre o literário e a biografia, além da tensa relação entre o autor e a sua obra,

Horacio Quiroga  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


cuja inquietude e a dificuldade de pertencimento de Kafka se transbordam para
a sua escrita.

Retomando a questão central deste trabalho, que é pensar como acontece a


relação do autor com a sua obra, foi possível observar que esta mesma questão
que aparece a partir dos textos de Kafka, aparece também a partir de outros
autores, entre eles, o uruguaio Horacio Quiroga, cuja vida foi marcada por
muitas tragédias, o que não escapa em seus contos, textos que em sua maioria
vão concluir também em cenas trágicas.

Assim, o trabalho será constituído em apresentar as discussões sobre o


autor, principalmente ao longo do século XX, mostrar como a crítica do
uruguaio lê a sua literatura e apresentar o conto "A galinha degolada" e como
essa relação com o autor pode aparecer.

Em seu texto "O que é o autor" de 1969, Foucault procura analisar a relação
do texto com o sujeito que escreve, mostrando como o texto vai apontar para
| 46 | essa figura que aparentemente é exterior e anterior a ele e inicia o ensaio com a
frase emprestada de Beckett: "Que importa quem fala, alguém disse que importa
quem fala" e continua mostrando que a ideia de apagamento do autor é para a
crítica um tema recorrente como já foi mencionado. E diz ainda que o essencial
não é mostrar mais uma vez esse apagamento do autor, mas sim descobrir como
lugar vazio – ao mesmo tempo indiferente e obrigatório – os locais onde sua
função é exercida.

Com o fragmento que foi retirado de Beckett, Foucault mostrará que a


indiferença dessa fala faz parte do princípio ético fundamental da escrita
contemporânea, essa indiferença não é o traço que vai caracterizar a maneira ou
a forma como se escreve, ela é "um princípio que não marca a escrita como
resultado, mas a domina como prática." (s.f.). A escrita passa a se desenrolar em
um jogo que vai para fora, não tem uma regularidade, ela é experimentada. Na
escrita, não é a exaltação do gesto de escrever ou da manifestação que
prevalece, mas sim da abertura de um espaço, onde o sujeito não para de
desaparecer.

Foucault, ao longo do seu texto, vai comentar sobre a relação de parentesco


da escrita com a morte, e critica a constatação da morte do autor na medida em
que apresenta duas noções que para ele são singularmente importantes: a noção
de obra e a noção de escrita, que afastariam o foco do autor, mas na verdade
acabam "bloqueando, escamoteando, o que realmente deveria ser destacado."

Horacio Quiroga  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


(s.f.). As noções de obra e escrita fazem parte, para Foucault, de um processo
falho para constatar a desaparição do autor: "É preciso localizar o espaço vago
deixado pela desaparição do autor, seguir atentamente a repetição das lacunas e
das falhas e espreitar os locais, as funções livres que essa desaparição faz
aparecer." (s.f.).

Para Foucault, o autor vai existir como “função autor”: um nome do autor
não é simplesmente um elemento no discurso, ele vai exercer certo papel em
relação ao discurso. E afirma que "os textos sempre contêm em si mesmos um
certo número de signos que remetem ao autor." (s.f.). Esse vazio deixado pela
"morte do autor" vai ser preenchido pela categoria "função autor" que se
construirá em diálogo com a obra.

Contemporâneo de Foucault, Barthes em seu texto "A morte do autor" vai


usar um fragmento retirado da novela de Balzac, Sarrazine, sobre um castrado
disfarçado de mulher: "Era a mulher, com seus medos repentinos, seus
caprichos sem razão, suas perturbações instintivas, suas audácias e sua deliciosa
| 47 |
finura de sentimentos." (BARTHES, 1988, p.57). Para depois lançar a pergunta
sobre quem seria a voz do texto 'Quem é que fala?' 'É o herói da novela?' 'É o
indivíduo Balzac dotado de sua experiência pessoal, de uma filosofia de
mulher?' 'É o autor Balzac, profanando ideias literárias sobre a feminilidade?'
(BARTHES, 1988, p.57). Em seguida, Barthes afirma que a escritura vem a ser
a destruição de toda a voz no texto, isto é, o afastamento do texto de uma voz
que estaria atrelada ao seu autor, que o tornaria presente.

Jamais será possível saber, pela simples razão que a escritura é a


destruição de toda a voz, de toda a origem. A escritura é esse neutro,
esse composto, esse oblíquo pelo qual foge o nosso sujeito, o branco – e
– preto em que vem se perder toda a identidade, a começar pelo corpo
que escreve. (BARTHES, 1988, p.57)

Para Barthes, a escritura começa quando ela não tem o objetivo de atingir
diretamente o real, e continua dizendo que "fora de qualquer função que não
seja o exercício do símbolo" (BARTHES, 1988, p. 58) o autor morre. A
escritura passa a gerir o papel performático e não o da genialidade.

A crítica e a teoria contemporânea passaram a ter como questão central a


presença-ausência do autor no seu texto, ambas desconfiam de abordagens
unicamente textualistas, mas que também não pretendem retornar a uma
concepção tradicional intencionalista ou biográfica. Exemplo disto é o estudo de

Horacio Quiroga  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


Diana Klinger, Escritas de si, escritas do outro. No primeiro capítulo do livro a
autora constata a necessidade de repensar a figura do autor na crítica e na teoria
contemporânea, já que se identificaria uma insistência forte de certos textos em
estabelecer um jogo entre a figura biográfica do autor e a voz que fala nos
textos. Klinger vai mostrar que uma primeira aproximação às escritas de si na
ficção contemporânea deveria ser inscrita no espaço interdiscursivo de textos
não literários, visto que o avanço da cultura midiática oferece um cenário que
vai privilegiar o sujeito, sua experiência e a vontade de falar de si. Para isso,
mostra que a escrita de si vem desde o final do século e acrescenta ainda que se
olharmos retrospectivamente ela tem uma presença forte na história latino-
americana, pontuando dois momentos importantes na história.

Refletir em torno do que se mostra como o retorno da problemática do autor


implicará justamente no debate sobre a produção da subjetividade em relação à
escrita. "A escrita performa a noção de sujeito." (KLINGER, 2007, p.27).
Klinger continua mostrando que, desde os anos 70, não encerram as perguntas
| 48 |
pelo lugar da fala e abre espaço para a citação de Beatriz Sarlo para evidenciar
tal fato: "Nós leitores ainda nos interessamos pelos escritores porque não fomos
convencidos, nem pela teoria, nem na nossa experiência, de que a ficção seja,
sempre e no primeiro lugar, um apagamento completo de vida." (SARLO, 1999,
p.11).

Neste sentido, o problema do autor ou o autor como problema, é observável


em outros textos ficcionais, por exemplo não é possível pensar no conto "Um
artista da fome", de Kafka, sem pensar no próprio Kafka também adoentado e
faminto. Muitos outros textos, a princípio ficcionais, nos colocam esse
problema.

O exemplo que tomarei neste trabalho é do escritor Horacio Quiroga, em


cujos textos é possível observar a forte presença de personagens que beiram a
loucura, muitas vezes produtos de doenças ou justificadas pela relação com um
meio selvagem e hostil, assim como o fato de que todos os contos concluem em
cenas trágicas. Paralelo a isso, é conhecida a dramática vida do autor, marcada
pela loucura, mortes acidentais, suicídios e doenças, e com uma produção que
traz uma temática profunda, cujos textos na maioria das vezes dialogam com a
morte, como comenta Abelardo Castillo:

"No hay casi cuento de Quiroga donde el protagonista no sea la muerte.


Otro es el miedo. Otro es la muerte. Otro es la voluntad. El drama entre

Horacio Quiroga  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


la transitoriedad del hombre y su búsqueda de algún absoluto – el amor,
un lugar en el mundo -, la fascinación y el horror de la muerte, son
grandes temas de Quiroga." (CASTILLO, 1996, p.25)

As críticas relacionadas ao escritor acendem um debate limitando a sua obra


por uma perspectiva biográfica/geográfica, já que Quiroga passou grande parte
de sua vida na selva misioneira argentina, onde teve uma vida trágica. Sendo
assim, procuro pensar em estabelecer uma relação entre o autor e sua obra, não
como (auto)biográfico, mas como essa relação pode influenciar na leitura do
texto.

Abelardo Castillo na abertura do livro sobre Horacio Quiroga começa


dizendo que "Seguramente no hay em la vida de un escritor un solo
acontecimiento, por opaco o circunstancial que sea, que no sirva para explicar
algún aspecto de su obra." (CASTILLO, 1996, p.21). Esta frase não pode passar
despercebida, e ainda é continuada em uma classificação: "Quiroga es el
suicidio de su padastro, la selva misioneira, la muerte de su mejor amigo, su | 49 |
fascinación por las mujeres más o menos infantiles y su propio suicidio."
(CASTILLO, 1996, pg.21)".

Castillo evidencia que Quiroga teve uma vida marcada pela morte e pela
tragédia, e data o ano de 1903 como um momento marcante para o escritor, ele
viajou com seu amigo Leopoldo Lugones às cataratas e decidiu abandonar seu
país e conhecer a "selva misioneira" argentina para encarar-se com sua obra e
seu destino. Quiroga revelou a nós, leitores, a selva não como paisagem, mas
como geografia espiritual.

O conto que será analisado adiante não tem como cenário a selva, mas
possui uma temática sombria, marcada pela loucura. O conto "A galinha
degolada" vai mostrar o cotidiano do casal Mazzini-Ferraz. Jovens, com pouco
tempo de casados e aparentemente saudáveis decidem ter um filho para
concretizar o momento mais feliz de suas vidas. Porém, pouco tempo depois do
nascimento, o primeiro filho apresenta uma série de convulsões e acaba por
ficar, segundo o narrador, “idiota”. “Tinham a língua entre os lábios, os olhos
estúpidos, e voltavam a cabeça com a boca aberta”. (QUIROGA, 2014, pg.61).
Após o nascimento do primogênito, o casal não perdia a esperança em dar a luz
às crianças mentalmente saudáveis, mas passados dezoitos meses, a história se
repetia. Após o nascimento do segundo filho, o médico que examinou o bebê
vai acender a discussão de que Mazzini ou Berta carregam um problema

Horacio Quiroga  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


genético que poderia ser então a razão dos filhos apresentarem problemas
mentais, o que ao longo da narrativa será o motivo das brigas. "Depois do seu
sangue, seu amor estava maldito! Seu amor sobretudo! Vinte e oito ele, vinte e
dois ela, e toda sua apaixonada ternura não era capaz de criar um átomo de vida
normal. Já não pediam mais beleza ou inteligência como no primogênito; mas
um filho como todos!". (QUIROGA, 2014, pg.63).

Passado o nascimento do segundo bebê e o anseio de terem uma criança


saudável, vieram os gêmeos, e novamente, aos dezoitos meses, repetiu-se a
doença dos mais velhos. "Não sabiam deglutir, mudar de lugar, nem mesmo
sentar-se. Aprenderam, por fim, a caminhar, mas se chocavam contra tudo, por
não se darem conta dos obstáculos. (...). Tinham por outro lado, certa faculdade
imitativa, mas não se pode obter nada mais." (QUIROGA, 2014, pg.63).

Por fim, depois de outra tentativa, o casal deu a luz a uma menina que
passou sadiamente pelos dezoitos meses de vida. Os pais depositavam nela toda

| 50 | complacência, negligenciando totalmente a atenção para os outros filhos. O


texto nos permite dizer que desde o nascimento do segundo filho já se notava a
falta de um cuidado materno e paterno, não havia qualquer relação de afeto com
os quatro meninos. E diante dessa distância afetiva relacionada aos filhos e as
recorrentes brigas do casal, o conto deixa entredito que essa ausência de afeto
também pode ter desencadeado as atitudes dos quatro irmãos, deixando para o
leitor esse possível questionamento.

Um dia, Berta ordenou que a empregada degolasse uma galinha.


Enquanto a empregada realizava tal ato o dia radiante tinha arrancado os
idiotas de seu banco. De maneira que enquanto a empregada degolava o
animal (...), achou que sentiu algo como uma respiração atrás dela.
Virou-se, e viu os quatro idiotas, com os ombros colados um ao outro,
olhando estupefatos a operação. Vermelho...Vermelho! (QUIROGA
2014, pg.66)

Mais tarde, depois do passeio, Bertita consegue fugir da atenção dos pais e
vai direto para o quintal, onde os seus irmãos estavam imóveis observando
fixamente os tijolos, mas de repente algo tinha chamado a atenção dos meninos,
Bertita estava tentando subir no muro. "Mas o olhar dos idiotas tinha se
animado, uma mesma luz insistente estava fixa em suas pupilas. Não tiravam os
olhos de sua irmã, enquanto uma crescente sensação de gula bestial ia mudando
cada linha de seus rostos." (QUIROGA, 2014, pg.67). A menina havia

Horacio Quiroga  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


conseguido apoiar o pé, porém sentiu ser agarrada pela outra perna. "Embaixo
dela, os oito olhos fincados nos seus lhe deram medo." (QUIROGA, 2014,
pg.67). Enquanto Bertita ainda tinha voz, gritava chamando pelos pais, mas foi
em vão, logo foi agarrada e caiu, não conseguindo chamar mais ninguém "um
deles lhe apertou o pescoço, apartando-lhe os cachos como se fossem plumas, e
outros a arrastaram por uma das pernas até a cozinha, onde naquela manhã a
galinha havia sido dessangrada, bem segura, arrancando-lhe a vida segundo por
segundo." (QUIROGA, 2014, pg.67).

Especificamente em A galinha degolada, a loucura vai aparecer como uma


herança genética, um mal do homem que o frustra e o destrói. Qual a causa de
as crianças terem ficado assim? "O médico o examinou com essa atenção
profissional de quem está visivelmente procurando a causa do mal nas doenças
dos pais." (QUIROGA, 2014, pg.62).

"A loucura aparece como algo súbito, a conversão do ser humano em


irracional e a alienação mental, são para o autor, uma transformação | 51 |
instantânea, sem processos intermediários e que pode acontecer a
qualquer um, em qualquer momento." (QUIROGA, 2014, pg.21).

No início da narrativa, o texto dá indício de que a doença dos meninos possa


ser algo genético, o médico diz "Quanto à herança paterna, já lhe disse o que
acho quando vi seu filho, com respeito a mãe, há ali um pulmão que não sobra
bem." (QUIROGA,2014, pg.62), mais adiante no texto, o narrador vai mostrar
que o pequeno primogênito pagava pelos excessos do avô, durante uma briga do
casal e com a necessidade de culpar o outro, o leitor descobre que o pai de
Mazzini morreu de delírio, fazendo com que Berta culpasse Mazzini pela
doença mental dos quatros meninos. Com as constantes brigas do casal e o
desejo de terem filhos saudáveis, Mazzini e Berta afastam qualquer afetividade
em relação aos meninos: a total falta de controle do casal acaba condicionando
para o trágico fim de Bertita.

Aristóteles, em A poética, diz que mimetizar é natural ao homem desde a


infância "e nisso se difere dos outros animais, porque é o mais propenso à
mimese, e os primeiros ensinamentos são feitos por meio da mímese, e todos se
comprazem com as mímeses realizadas." (2006, pg.40). O processo da mímesis
seria um processo de conhecimento, além de prazer:

A maneira como Bertita é brutalmente morta, assim como o degolamento da


galinha, abre espaço para outras observações. Poderíamos dizer que o tema

Horacio Quiroga  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


central do conto seja o da “imitação”, e as tensões entre uma imitação que
produz conhecimento e outra que não. Haveria uma imitação da genética doente
do pai para Mazzini, e dele para os quatros meninos; haveria uma imitação dos
dezoitos meses, todos os quatros meninos sofreram com as convulsões nos
meses de vida, todos os filhos como mostra o narrador são idiotas, suas
descrições são as mesmas e a morte que aparece no texto é consequência de
uma imitação, no caso, o degolamento da galinha e Bertita.

A questão que percorre todo esse trabalho é: onde está o autor quando lemos
um texto? Com o auxílio dos estudos críticos do autor foi evidenciado que
Quiroga é a selva, é o suicídio daqueles que estiveram com ele e é também seu
próprio suicídio. Seus textos apontam para essa direção, deixando aberto
espaços que possibilitam seu entre lugar. Horacio Quiroga apresenta em seus
contos acontecimentos que são ele. E neste conto, a loucura vai ser narrada por
meio das ações dos personagens, dialogando com o questionamento do porquê a
loucura acontecer de forma tão rápida sem avisar. Os contos reforçam o
| 52 |
fatalismo do autor. E Castillo comenta que os textos do uruguaio "Son
ejemplares singulares de um género autonomo que acata suas proprias leyes
estructurales y que se basta a si mismo." (CASTILLO, 1996, pg.24).

Considerado um conto de horror, "A galinha degolada" é um dos contos


mais cruéis e desconcertantes na medida em que a loucura é por um lado
explicada como um mal genético, passada de pai para filho, abrindo no conto o
questionamento a respeito do porquê da loucura acontecer de forma tão rápida e
sem avisar, mas também como uma questão de imitação. Os filhos não são as
cópias esperadas pelos pais: os quatro idiotas agem fora do seu controle mas,
paradoxalmente, imitando eles e sua linhagem, e imitando também a
empregada. Há semelhança em seus comportamentos, porém não há uma
imitação "tal pai, tal filho", problematizando ainda mais a lógica da imitação.
Os pais não controlam seus filhos, o narrador não pode controlar os personagens
e o autor que aparece como um gesto, segundo Agamben, não pode controlar
suas obras, mas não se pode se ausentar totalmente.

Diante de toda a discussão teórica que foi posta no início deste trabalho, é
possível caminhar para a afirmação de que o autor não morreu, mas que ainda
assim ocupa um lugar de morto. Não podemos dissociar o autor da sua obra e
nem limitar a obra pelo autor, mas é preciso perceber que há traços dentro do
texto, onde o autor desaparece, que fazem o autor (re)aparecer.

Horacio Quiroga  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


Referências

BARTHES, Roland. O rumor da língua. Tradução de Leyla Perrone Moisés.


São Paulo/Campinas: Brasiliense/ Ed. Da Unicamp, 1988 [1984].
CASTILLO, Abelardo. Liminar: Horacio Quiroga. In: Horacio Quiroga: Todos
los cuentos. Ed. Napoléon Bacino Ponce de León y Jorge Lafforgue. Madrid:
ALLCA XX, 1996.
Essencial Franz Kafka/ seleção, introdução e tradução de Modesto Carone;
tradução. — São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011.
FOUCAULT, Michel. O que é um autor?. In: ______. Ditos e escritos III:
Estética: literatura e pintura, música e cinema. Tradução de Inês Barbosa. Rio
de Janeiro: Forense, 2011.
GAZONI, F. M. A poética de Aristóteles: tradução e comentários. 2006. 132 f.
Tese (Mestrado em Filosofia). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2006.
KLINGER, Diana Irene. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a
virada etnográfica. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007.
QUIROGA, Horacio. Contos de amor de loucura e de morte. Tradução de | 53 |
Renata Moreno. São Paulo: Martin Claret, 2014.
RODRÍGUEZ MONEGAL, Emir. Genio y Figura de Horacio Quiroga. Buenos
Aires: EUDEBA, 1967.
_________________________ Las Raíces de Horacio Quiroga. Buenos Aires:
EUDEBA, 1961

Horacio Quiroga  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


As Margens de Guimarães em
Nelson Pereira dos Santos
Carmosita Senna

30 anos, graduanda em Francês, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro,


com iniciação científica em Cinema e Literatura, ênfase no autor brasileiro João
Guimarães Rosa. Trabalha de freelancer como roteirista e assistente de
produção executiva, em diversas produtoras brasileiras.

Este artigo apresenta resultados de uma pesquisa, iniciada em março 2017 e


dedicada às transposições de obras de João Guimarães Rosa para o meio
| 54 | audiovisual. Pensamos a relação entre obra literária e sua transposição conforme
os termos de Ismail Xavier em O olhar e a cena: “estará aqui em foco a
passagem do teatro e da literatura ao cinema num sentido amplo que ultrapassa
o caso da ‘adaptação’” (XAVIER – 2003, p.7). O ponto de partida foram
leituras de Sagarana (1946), Grande Sertão: Veredas (1956), Corpo de Baile
(1956) e Primeiras Estórias (1964), obras mais aproveitadas tanto no cinema,
quanto na televisão brasileira – como é o caso de Grande Sertão: Veredas,
transformado em 1985 por Walter Avancini em minissérie que será reexibida
em breve no canal de TV por assinatura Viva. Após as leituras, o trabalho
voltou-se para as narrativas que foram transpostas, com a finalidade de entender
a estrutura do roteiro, construção dos personagens e significações que ganharam
nessa mudança de linguagem.

Segundo Doc Comparato, “o roteirista está mais perto do diretor, da


imagem, do que do escritor” (COMPARATO, 2009, p. 28). Essa é uma
premissa compartilhada também Jean-Claude Carrière, e que se procura
problematizar aqui. O roteirista/adaptador é um leitor preso à narrativa, criada
pelo escritor, onde personagens, ambientes e sentimentos já estão prontos.
Dessa base, o roteirista tem de conseguir conjugar a sua imaginação e a
imaginação dos leitores que se tornam, na mudança das linguagens,
espectadores. Linda Hutcheon assinala que “adaptação sempre envolve
(re)interpretação, (re)criação”; pode-se então descrevê-la como: “um ato

As margens de Guimarães  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


criativo e interpretativo de apropriação” (HUTCHEON – 2013 p.29, 30). O
leitor já tem em sua mente seu próprio cinema, um cinema-imaginação, essa
imaginação tem margens que são comuns aos demais leitores e as mesmas
atingem os roteiristas/adaptadores. É justamente a possibilidade criativa que um
simples leitor não possui que aproxima o roteirista a um autor literário. Aqueles
que escrevem filmes a partir de romances têm de decidir que ponto de vista
adotar para replicar o olhar do leitor; o roteirista tem o controle e a escolha do
narrador, e nesse trabalho de garimpar o livro, ele traça a perspectiva e induz o
espectador à sua escolha, o qual, sem perceber, vê a leitura feita pelo roteirista,
agora novo autor, como se este fosse o verdadeiro autor da história. E isso leva
ao julgamento que o professor Robert Stam refuta na seguinte passagem de seu
artigo “Teoria e prática da adaptação: da fidelidade à intertextualidade”:

A linguagem convencional da crítica sobre as adaptações tem sido, com


frequência, profundamente moralista, rica em termos que sugerem que o
cinema, de alguma forma, fez um desserviço à literatura. Termos como
| 55 |
“infidelidade”, “traição”, “deformação”, “violação”, “abastardamento”,
“vulgarização”, e “profanação” proliferam no discurso sobre adaptações, cada
palavra carregando sua carga específica de descrédito. “Infidelidade” carrega
insinuações de pudor vitoriano; “traição” evoca um desserviço ético;
“abastardamento” conota ilegitimidade; “deformação” sugere aversão estética e
monstruosidade; “violação” lembra violência sexual; “vulgarização” insinua
degradação de classe; e “profanação” implica sacrilégio religioso e blasfêmia.
Embora seja fácil imaginar um grande número de expressões positivas para as
adaptações, a retórica padrão comumente lança mão de um discurso elegíaco de
perda, lamentando o que foi “perdido” na transição do romance ao filme, ao
mesmo tempo em que ignora o que foi “ganho”. (STAM, Artigo, 2006)

É importante afirmar que adaptar é amar sendo infiel. Adaptação não é


fidelidade, é recriação, e desta surge um novo. Com isso, faz-se necessário
aproximar roteirista e autor para assim desvendar quais conexões eles
estabelecem nessa mudança de signos.

Das obras de Guimarães Rosa, focou-se, neste início de pesquisa, na


adaptação feita por Nelson Pereira dos Santos, o filme A terceira margem do
rio, de 1994, baseado no volume de contos Primeiras Estórias, de 1962. Alguns
motivos em comum entre o livro e o filme chamam a atenção de saída.
Primeiras Estórias é escrito em momento de esperança de renovação e
desenvolvimento do país, tanto que logo no primeiro conto tem-se a viagem de

As margens de Guimarães  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


avião em que uma criança vai com os tios para o lugar que viria a se tornar
Brasília, anunciada nos anos 1950 como cidade-ícone do progresso no país.
Parece que comparece aí, subliminarmente, o slogan de Juscelino Kubitschek
“50 anos em 5” – o que não se realizou. E essa não realização de modernidade
se encontra décadas depois no longa de Nelson Pereira, que chega com a
retomada do cinema no Brasil, após um período de grande retrocesso no país,
quando medidas do governo Collor levaram quase a uma extinção da
cinematografia brasileira. Além disso, os contos de Primeiras estórias
apresentam uma relativa redução da violência da figura do jagunço, muito mais
intensa nos livros anteriores (Sagarana, Corpo de baile e Grande sertão:
veredas, 1956). Em Primeiras estórias, parece que a violência dos jagunços
perde espaço com o avanço da urbanização, a migração do sertanejo passa por
uma ilusão de civilidade. A violência permitida e em certa medida enaltecida
anteriormente já não é tão explícita, pois existem as leis, ainda que moldáveis e
adaptáveis. Esse tipo de situação é incorporado ao filme de Nelson Pereira dos
| 56 | Santos.

A terceira margem do rio é um longa-metragem que costura 5 contos do


livro Primeiras Estórias, “A menina de lá”, “Os irmão Dagobé”, “Sequência”,
“Fatalidade” e o conto eixo do filme, “A terceira margem do rio”. Para que
essas histórias se unifiquem, Nelson toma cena de outros contos, como a cena
do avião que presente em “As margens da alegria” e em “Os cimos”; o clarão
no aparecimento do caixão de Nhinhinha, que lembra a forma de como o
personagem de “Um moço muito branco surge”; o singelo pedido de um
bombom a menina “milagreira” que um menino dá a outra, remetendo à paixão
infantil do conto a “Partida do audaz navegante”; a festa de casamento de
Liojorge, que esboça um pouco a festa no final de “Tarantão, meu patrão”; a
fusão de Damastor Dagobé com Herculiano, personagem que persegue um casal
em “Lua de mel”, por estar loucamente apaixonado pela noiva.

Algumas dessas passagens podem ser discretas e pouco perceptíveis, mas


elas são perceptíveis para o leitor atento. Ao focar-se no conto principal, que dá
título ao filme, nota-se, para usar os termos de Stam, “ganhos e perdas”. Um dos
ganhos do filme é a transposição de parte das sequências para a cidade de
Brasília nos anos 1990, mais exatamente para a periferia de Brasília. Se, na obra
de Rosa, pobreza e violência se situam no chão seco do sertão, agora
acompanham a migração dos sertanejos para as grandes cidades, carregando
com melancolia as transformações sofridas em ambos os locais e pessoas

As margens de Guimarães  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


(sertão versus cidade e sertanejo versus pessoas da cidade). O roteirista/diretor
mostra uma Brasília degradada. Se, na época da criação de Primeiras estórias,
aquela cidade significava um salto para a modernização do Brasil, é possível
notar que isso não se concretizou. Ir para cidade não altera a pobreza, nem a
violência e outros fatores, que permanecem fazendo sofrer o morador de
periferia, onde a exploração é evidente, embasada em leis cruéis. Ao nos trazer
essa Brasília fracassada, o longa dialoga muito bem com o volume de contos,
um diálogo marcado pelo contraste (projeto de modernização versus a
degradação da nova capital do país). Mas o filme perde o vigor do conto
principal, pois ele é diluído nas costuras entre as cenas extraídas das outras
histórias. Para tratar dessa questão, podemos tomar novamente considerações de
Robert Stam sobre a noção de “fidelidade”, em seu livro A literatura através do
cinema: realismo, magia e a arte da adaptação:

(a) algumas adaptações de fato não conseguem o que mais apreciamos


no romance; (b) algumas adaptações são realmente melhores do que
| 57 |
outras; (c) algumas adaptações perdem pelo menos algumas das
características manifestas em suas fontes”. (STAM, 2008 p.20)

O conto que dá título ao filme e serviria como eixo principal perde a


potência da imagem da inércia e aceitação de estagnação. O sujeito que
encomenda uma canoa e vai morar no meio do rio, mas sem o intuito de se
movimentar, apenas de ali ficar, afirma uma negação, que se personifica na
força da frase da esposa dita no livro, que também se perde no longa: “– Cê
vai, ocê fique, você nunca volte!”. (JGR* Primeiras Estórias - 2005, p.77).

Aos poucos, na passagem do “cê” ao “ocê” e, por fim, ao “você” completo,


essa frase vai personificando um sujeito que se nega. Segundo Ana Paula
Pacheco, em seu estudo O lugar do mito, ela exprime “a veemência expressa
em negativo diante de uma decisão sem volta, anunciada quando já em curso”.
(PACHECO - 2006, p.146). A beleza contida na frase se funde ao
distanciamento que vai se estabelecendo com a dilatação do pronome: de inicio,
o “cê” mostra intimidade e proximidade, “ocê” tem o duplo sentido de “cê” e
“ou cê”, por fim, “você” define a distância estabelecida e o ponto final do não
retorno.

A inexplicada decisão que o Pai toma no conto, a atitude desse homem que
se afirma como negação, fica esvaziada no roteiro, exemplificando um caso da
proposição a) de Robert Stam: perde-se o que há de mais forte na obra de

As margens de Guimarães  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


origem. Devido às costuras com outras narrativas de Primeiras estórias, esse
homem no meio do rio que escolhe se ausentar da vida é esquecido pelo
espectador, já que o foco do enredo muda quando seu filho se casa e vai para
Brasília, deixando-o sozinho. Esse sujeito perde valor imagético na narrativa
cinematográfica.

Em compensação, as opções de linguagem cinematográfica adotadas por


Nelson Pereira dos Santos recuperam sentidos importantes de obra de
Guimarães Rosa. Principalmente nas sequências localizadas em a Brasília, onde
grande parte do filme se passa e nas quais se pode perceber grande influência e
uso assertivo das Eztetykas de Glauber Rocha; das quais destacam-se algumas
que parecem assumidas no filme de Nelson:

o povo é o mito da burguesia


nenhuma estatística pode informar a dimensão da pobreza
o ponto vital da pobreza é o misticismo (Eztetyka do Sonho - 1971)
| 58 |
Esse último tópico é especialmente importante quando se trata de
Guimarães Rosa, e relevante para pensarmos o modo como Nelson Pereira dos
Santos lida com o conto “A menina de lá”. Na história de Rosa, a menina,
Nhinhinha, tida como milagreira, mas na verdade participa de situações em que
seus desejos são cumpridos sem que nada de sobrenatural ocorra de fato – o que
ela quer são coisas miúdas que se realizam talvez por acaso. Já no filme, há, de
fato, diante dos olhos do espectador, magia, milagre, algo de fantástico – como
a casa da família que uma nuvem de poeira transporta do sertão para Brasília,
num passe de mágica e fé. Numa busca ao filme no IMDB
(http://www.imdb.com/title/tt0111396/?ref_=nv_sr_1), nota-se essa aura
fantástica no cartaz que confere ênfase à menina “milagreira” e no resumo
descritivo que atribui ao longa a especificação de gênero “drama/fantasy”.
Parece que fica assim reafirmada outra máxima de Glauber: “o sonho é o único
direito que não se pode proibir”.

Essa opção da adaptação – afirmar o milagre – é uma forma de especulação


em torno do misticismo visto e revisto pelos cineastas do Cinema Novo, que
percorre o imaginário do povo de rincões brasileiros. No caso de A terceira
margem do rio, o “milagre” ainda vem atrelado ao comércio da fé, pois os tios
da menina exploram de maneira midiática seus milagres. Em relação a isso, há
ainda a vantagem de o filme abordar um problema grave de nossa sociedade
atual, que ainda explora a fé das camadas sociais mais pobres, transformando-a

As margens de Guimarães  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


em moeda de modo perverso, para que ela se torne alimento, sonho e alento
para maioria da população brasileira.

Embora a pesquisa ainda não tenha chegado a conclusões sobre essa leitura
do conto, sobre a ótica explorada por Nelson Pereira dos Santos, sem dúvida, é
interessante esse desafio que o longa propõe, junto com a obra de Guimarães

Rosa: pensar o uso e a representação do misticismo no Brasil é um modo de


nosso cinema continuar sendo autoral ou um meio de atingir as massas para
consumo do produto? A terceira margem do rio, pondo à vista o milagre, nos
faz refletir sobre essa manipulação da fé ou a reafirma?

Referências

GUIMARÃES ROSA, João; Primeiras Estórias, Ed. Nova Fronteira, 2005 –


Rio de Janeiro;
| 59 |
PACHECO, Ana Paula; O Lugar do Mito – Narrativa e processo social nas
Primeiras Estórias de Guimarães Rosa, Editora Nankin, 2006 – São Paulo;
HUTCHEON, Linda; Uma teoria da adaptação, Ed. UFSC, segunda edição
2007 – Florianópolis/ Santa Catarina;
STAM, Robert; Introdução à teoria do cinema, Ed. Papirus, quinta edição, 2015
– Campinas/SP
STAM, Robert; A Literatura através do Cinema – Realismo, magia e a arte da
adaptação, Ed. UFMG, 2008 – Belo Horizonte/MG
STAM, Robert;, TEORIA E PRÁTICA DA ADAPTAÇÃO: DA FIDELIDADE
À INTERTEXTUALIDADE; Artigo: Ilha do desterro/ Florianópolis – Santa
Catarina, 2006 – original publicado na Nova York University;
BERNADET, Jean Claude; Cinema Brasileiro propostas para uma história –
capítulo: A Crise do cinema brasileiro e o plano Collor, pág. 182, Ed,
Companhia de Bolso, 2014 – São Paulo;
COMPARATO, Doc; Da Criação ao Roteiro – Teoria e Prática, Ed. Summus,
2009 – São Paulo.
ROCHA, Glauber; Eztetyka da Sonho¹ - seminário realizado em 1971,
Universidade de Colúmbia, Nova Iorque/EUA;
XAVIER, Ismail – Olhar e a Cena; Ed. Cosac & Naify, 2003 – São Paulo.

Filmografia
PEREIRA DOS SANTOS, Nelson – A Terceira Margem do Rio, 1994;
PEREIRA DOS SANTOS, Nelson – Vidas Secas, 1963;
PEREIRA DOS SANTOS, Nelson – Rio 40 Graus, 1955

As margens de Guimarães  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


Sobre “O direito à literatura” nas
Orientações Curriculares para o
Ensino Médio
Carolina Fabiano de Carvalho

Educadora no curso comunitário Elos Educação, onde ensina, pensa, escuta e,


sobretudo, ama. Mestranda no PPG de Ciência da Literatura (UFRJ)

Resumo

| 60 | O texto “O direito à literatura”, de Antonio Candido, é uma das principais


bases teóricas do currículo nacional para ensino de literatura hoje. Nas
Orientações Curriculares para o Ensino Médio, último documento publicado
pelo MEC e destinado a escolas públicas e particulares, a presença do texto de
Candido é evidente, tanto por citações diretas, quanto pelas ideias veiculadas.
Chamam atenção os conceitos de humanização e valor estético, recorrentes no
documento oficial, para justificar o ensino de literatura nas escolas e orientar as
escolhas dos livros a serem lidos. Com base na crítica de Natali (2006) e Avelar
(2009) a esses conceitos, e nas propostas de Araújo (2014) e Valle Neto (2016),
este trabalho pretende discutir os argumentos presentes nas Orientações
Curriculares para o Ensino Médio - Literatura e suas possíveis implicações para
o ensino de literatura na atualidade.

Palavras-chave: Ensino; Literatura; Antonio Candido; Crítica literária.

Publicado em 2006, o documento “Orientações Curriculares para o Ensino


Médio” é o mais recente publicado pelo MEC para direcionar o ensino de
literatura na escola básica. Essas orientações, doravante chamadas OCNEM,
tinham por um de seus objetivos atualizar e elucidar questões levantadas pela
crítica aos Parâmetros Nacionais Curriculares para o Ensino Médio (PCNEM) e

Sobre O direito à literatura  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
os Parâmetros Complementares (PCN+EM), estes publicados seis e quatro anos
antes, respectivamente. De fato, os documentos apresentavam contradições
importantes: criticavam o ensino tradicional, muito baseado na história da
literatura e na instrumentalização da teoria literária, para depois dizer que “o
aluno deve saber identificar obras com determinados períodos, percebendo-as
como típicas de seu tempo ou antecipatórias de novas tendências. Para isso, é
preciso exercitar o reconhecimento de elementos que identificam e singularizam
tais obras” (PCN+, 2002, p.65). Chamo atenção para o verbo “exercitar”, que
remete àquelas atividades enfadonhas de classificação e memorização das
escolas literárias. Outro aspecto problemático dos Parâmetros é sua
superficialidade ao tratar da escolha das obras a serem lidas, reduzindo a
discussão do cânone e da cultura a um jogo retórico.

Mas o que se mostrou mais grave aos pesquisadores e professores de


literatura foi a sua diluição em meio a outros gêneros textuais, ignorando suas
especificidades. A literatura nos PCNEM é tida como “conteúdo tradicional”,
| 61 |
subjugado à “perspectiva maior da linguagem como espaço dialógico”
(PCNEM, 2000, p.23). Não é à toa, creio eu, que logo de cara as OCNEM de
2006 procurem justificar a manutenção do ensino de literatura na escola básica,
suscitando tensões e autores caros à Teoria Literária para responder à pergunta:
Por que a literatura no Ensino Médio?

As OCNEM definem a literatura “stricto sensu” como “arte que se constrói


com palavras”; propõem que ela rompe com o trabalho alienado; afirmam-na
como meio de conhecimento, de sensibilidade, de crítica, de liberdade pela
fruição estética, e “meio, sobretudo, de humanização do homem coisificado”
(OCNEM, 2006, p.53). O documento postula ainda que a apropriação da arte -
da literatura - é um direito de todos, talvez mais daqueles que “têm sido
sistematicamente expropriados de tantos direitos, entre eles até o de pensar por
si mesmos” (p.53). Mas, para que fique claro de que literatura estão
efetivamente falando, as OCNEM também consideram o seguinte: não basta
que uma obra seja literária ou tenha valor cultural; é preciso que tenha
qualidade estética reconhecida e legitimada, capaz de propiciar uma “fruição
mais apurada” (p.70). Ao longo de suas páginas, a argumentação das OCNEM
seguirá estes dois eixos - a literatura como humanização e com alto valor
estético -, não só para justificar sua permanência no ensino médio, mas para
direcionar a escolha das obras, a formação de leitores, a mediação dos
professores e suas práticas em sala de aula.

Sobre O direito à literatura  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
Como dito, as OCNEM têm bastante embasamento teórico; entre suas
referências estão Hans Robert Jauss, Magda Soares, Umberto Eco e Ligia
Chiappini. Destaco aqui sua filiação a Antonio Candido, em particular ao texto
“O direito à literatura”, cujas ideias parecem protagonizar no documento.
Sabemos a importância deste texto para os estudos literários no Brasil; não é
fortuito que ele seja mote para um evento como o Claro Enigma. Sua afirmação
da literatura como direito humano inalienável me parece, hoje, ainda mais
importante do que nunca. Também não surpreende que seja base para o
currículo de literatura na escola; ao contrário, é possível dizer que “O direito à
literatura” é a própria contribuição da Teoria Literária para às pedagogias
críticas que surgiam nos anos 80, propulsionadas por Dermeval Saviani e José
Carlos Libâneo, dentre outros. Tais abordagens pedagógicas percebiam os
conteúdos culturais - inclusive a literatura - como bens universais apropriados
pelas elites para dominação das classes populares; o papel da escola seria
democratizar o acesso e a produção crítica desses conhecimentos,
| 62 | potencializando os alunos como agentes de transformação social. O texto de
Candido contribuiu para esta percepção, não só por apresentar a literatura como
uma “necessidade universal”, “bem incompreensível” e “instrumento consciente
de desmascaramento” das situações de restrição ou negação de direitos, mas
também por acusar sua inacessibilidade a um “homem do povo” que “está
praticamente privado da possibilidade de conhecer e aproveitar a leitura de
Machado de Assis ou Mário de Andrade” (Candido, 2004, p.188). Neste
sentido, a defesa de Candido ao acesso a essas obras eruditas pela classe popular
em muito dialoga com a ênfase dada pelas pedagogias críticas à socialização do
conhecimento erudito.

As OCNEM citam Antonio Candido e trechos de “O direito à literatura”


diversas vezes em seu texto; os conceitos de humanização e valor estético no
documento são claramente alusivos ao autor. Não são conceitos banais e isentos
de críticas. No ensaio “Além da literatura”, Marcos Natali sugere que Candido
incorreria em contradição lógica em sua defesa ao mesmo tempo da literatura
como “direito humano” e do acesso à literatura (uma literatura específica e
erudita).

No ensaio de Antonio Candido, a tensão interna vem do fato de ele


partir de um modelo performativo - todos têm literatura, tudo é literatura
- e terminar em um modelo pedagógico. Convivem, assim, a insistência
na universalidade daquilo que é defendido - o literário - e a defesa da

Sobre O direito à literatura  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
necessidade de levar algo específico - um certo conceito e tipo de
literatura - a todos os povos. (Natali, 2006, p.34)

De acordo com Natali, o anseio universalizante de Candido levaria à


negação da literatura mundial como um fenômeno historicamente situado,
decorrente da própria expansão capitalista; também acarretaria uma “violência
tradutora”, que enquadraria práticas discursivas culturais em um conceito
moderno, alheio ao seu contexto de criação e performance. Natali expõe a
vinculação do texto de Candido a um ideário ocidental, em que seria possível a
leitura do “adjetivo ‘universal’ como eufemismo para ‘moderno’, e a defesa da
‘humanização’ como uma convocação à modernização” (p.38); a inclusão no
sistema literário “erudito” seria, em realidade, a superação de produções
“folclóricas”, sejam elas culturais, rurais ou urbanas. Anita Moraes parece fazer
leitura similar: em “O direito à literatura”, a função humanizadora da literatura
corresponderia a uma função civilizatória da literatura, atestando a primazia da
cultura e da racionalidade sobre a natureza e a materialidade (Moraes, 2012,
| 63 |
p.8).

A humanização, informa-nos Candido, está estritamente ligada à qualidade


do texto literário: “a eficácia humana é função da eficácia estética” (Candido,
2004, p.184); não basta que o tema da obra seja a escravidão, por exemplo. É
preciso que ela seja esteticamente elaborada, construída, para assegurar o seu
efeito. Daí que se crie uma hierarquia valorativa dentro do sistema literário: há
obras que são eruditas porque possuem determinadas características; estas
devem ter seu acesso e produção “democratizados”; e há obras que são
populares, que não possuem tais características. É interessante perceber que, ao
se utilizar de fatores estéticos como fundamento para afirmar a superioridade da
literatura erudita, Candido incorra na tautologia apontada por Idelber Avelar.

Define-se o valor como a presença de certos traços formais (sejam quais


forem) ou a capacidade de produzir certas sensações. Esses traços ou
potencialidades passarão a ser apresentados como característicos da experiência
estética, sendo sua maior ou menor presença em cada obra o critério para sua
valoração. Ao enfrentar-se com a pergunta acerca de como se chegou a
delimitar o terreno propriamente estético, remete-se o interlocutor à existência
de obras que exibem… aqueles traços inicialmente característicos do estético!
Não é à toa que os alunos não aceitam isso facilmente. (Avelar, 2009, p.143)

Sobre O direito à literatura  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
Em seu ensaio, Avelar adentra o debate contemporâneo acerca do valor
estético, afirmando sua contingência: as obras que são consideradas de “alta
qualidade” estão dentro de um pacto valorativo histórica e socialmente
localizado.

O caminho até que se estabeleça o sistema valorativo vigente é conflituoso;


mas, afirma Avelar, depois de estabelecido, esse sistema vale-se de imaginário e
vocabulário transcendental que faz aparentar a imanência. O autor apresenta
esse processo como falácia desenvolvimentista, em que os juízos adequados ao
“pacto valorativo dominante” são lidos como naturais e óbvios, enquanto os
juízos desviantes serão taxados como deficientes. Ou seja: se alguém não
percebe a superioridade estética de, por exemplo, Graciliano Ramos sobre Jorge
Amado, trata-se de deficiência do sujeito valorador e que, se todo mundo for
bem educado, não haverá dúvidas sobre essa constatação. A retórica do
desenvolvimento está implícita no texto de Candido: a literatura que humaniza -
que civiliza, de acordo com Moraes - é a literatura esteticamente mais
| 64 |
valorizada; não parece haver dúvida para o autor de que, uma vez que deixe de
ser privilégio das elites, essa literatura erudita prevalecerá.

Retorno enfim às OCNEM. Como dito, o documento se filia claramente a


“O direito à literatura”, à sua função humanizadora como fundamento para
justificar sua presença nas escolas, e à eficácia estética como seu principal
critério de qualificação. Esta última me parece a questão mais controversa
dentro documento curricular. Para resolver a dicotomia entre conservadorismo
(representado por professores que insistem em trabalhar apenas o cânone e
textos críticos consagrados) e permissividade (cometida por aqueles que
trabalham “qualquer coisa”), é justo à fruição estética que o documento recorre.
Mas a contundência da crítica aos tais “permissivos” é evidente: estes
denotariam possível atitude “condescendente” e “paternalista”, mostrando
demasiada tolerância aos produtos “ditos culturais” (OCNEM, 2006, p.56). E,
logo depois, o texto cita o trecho já mencionado aqui em que Candido acusa a
“fruição segundo as classes” no país e menciona autores consagrados e
inacessíveis. A construção das OCNEM, apesar de considerar em inúmeros
momentos a importância na variedade das escolhas das obras literárias, parece
comprometer-se com certo imaginário valorativo que garante maior estabilidade
nessas escolhas. Ainda quando admite a contingência do pacto valorativo,
reafirma-o: “Mesmo apresentando dificuldades em casos limítrofes, entretanto,
na maioria das vezes é possível discernir entre um texto literário e um texto de

Sobre O direito à literatura  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
consumo” (p.57). Quando refere-se às escolhas das leituras feitas por alunos,
chama-as anárquicas, e as contrapõem às escolhas “sistematizadas e aferidas”
da escola. As preferências das OCNEM dentro do cenário de discussões caras à
Teoria Literária, se não reveladas apenas pela bibliografia, ficam bastante
evidentes ao longo de seu texto.

Cabe, aqui, fazer uma ressalva. A recepção das OCNEM pela comunidade
acadêmica, tanto do ensino básico, quanto do ensino superior, parece ter sido
positiva. O que se vem discutindo em torno das OCNEM não parece ser
propriamente seu conteúdo, mas sua peculiar ausência nas salas de aula. Acusa-
se um descompasso entre orientações e práticas; não pretendo entrar em
detalhes acerca das possíveis razões para isso, mas menciono a questão dos
livros didáticos e a formação continuada dos professores do ensino básico como
talvez as mais relevantes para os estudiosos. Algumas das perguntas às quais me
proponho nesta pesquisa daqui em diante dizem respeito a este descompasso.

Longe de chegar a soluções miraculosas para o ensino de literatura no


| 65 |
Brasil, tento seguir aqui um fio de novelo. Idelber Avelar, ainda em seu ensaio
sobre o valor estético, propõe o deslocamento do debate conservadorismo
versus permissividade para a análise histórica da construção do valor literário
no Brasil. Ele cita, inclusive, o papel relevante da internet no processo atual de
manufatura valorativa, haja vista sua potência de circulação e produção de
conteúdos literários. Neste sentido, Nabil Araújo e Júlio de Souza Valle Neto
ecoam tal proposta de deslocamento ao incorporarem a crítica literária nos
currículos escolares. Afirma Araújo - citando Candido, inclusive - que o ensino
de literatura deve ser considerado um aspecto da crítica; afinal, a preferência
por obras já aferidas esteticamente, valoradas e sistematizadas retira do aluno a
possibilidade de desenvolver um juízo sobre elas - trata-se de uma decisão
crítica já tomada, internalizada e reproduzida. Por outro lado, desconsiderar a
existência desses valores é igualmente redutor e limitante para este aluno
(Araújo, 2014, p.418).

Em recente publicação, Valle Neto complexifica essa proposta. Seu texto


começa com a seguinte ressalva: a crítica literária (julgamento ou avaliação, nas
palavras de Antoine Compagnon) sempre esteve presente nas aulas de literatura
no Ensino Básico; no entanto, ela costuma se dar de forma implícita, fantasmal,
nas escolhas de corpus para análise da Teoria Literária e na eleição das obras
que constituem a História Literária. Em breve análise de livros didáticos
presentes no Guia de Livros Didáticos do Programa Nacional do Livro Didático

Sobre O direito à literatura  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
de 2015, o autor percebe que tendências tradicionais do ensino de literatura
permanecem firmes e fortes - quase dez anos depois da publicação das
OCNEM, vale dizer. A apresentação do conteúdo (a literatura) segue critérios
cronológicos; as obras são vinculadas a escolas literárias generalizantes, sem
levar em conta autores transgressores; e os recursos para análise teórica resume-
se às figuras de linguagem e estudo do foco narrativo. Mesmo assim, trata-se
abordagens mais diretas do que recebe a Crítica Literária.

De acordo com o autor, “o juízo de valor comparece enquanto naturalização


de um dado tipo de conhecimento, mas não enquanto instância necessariamente
parcial da apreciação literária” (Valle Neto, 2016, p.69); lembra Avelar em sua
exposição do pacto valorativo transcendentalizado. O que Valle Neto sugere a
seguir diz respeito à Crítica Literária nos documentos curriculares: tanto a
História Literária quanto a Teoria Literária se prestariam mais docilmente ao
processo de escolarização; à tendência de fechar currículos e quantificar
saberes. A Crítica, por sua vez, configuraria uma zona de conflito a tais
| 66 |
demandas institucionais: ela pressupõe uma reflexão acerca do próprio currículo
e, por tabela, acerca da própria linguagem escolar. As OCNEM, como eu disse,
consideram o valor estético como fulcral na seleção e condução de leituras no
Ensino Médio; no entanto, falham em problematizar justamente a contingência
desse valor.

Valle Neto propõe que a Crítica Literária seja tomada como objeto cotidiano
do trabalho escolar, e para isso, afirma que deve-se lidar com casos específicos.
Ele traz como exemplo duas polêmicas: a de Jorge Amado (mencionado agora
há pouco) e seus críticos Alfredo Bosi, Eduardo de Assis Duarte e Anco Márcio
Tenório Vieira, e a de Machado de Assis em seu artigo sobre Eça de Queirós.
Levar esses juízos para as salas de aula evidenciaria a Crítica Literária como
ponto curricular; seus benefícios seriam: mostrar os processos da crítica e a
parcialidade do crítico; discutir aspectos da História Literária e as escolas nas
quais os autores “se encaixam”; e afirmar que o descompasso entre crítica e
público leitor é explicável, e não arbitrário ou inevitável. Em especial, trazer a
Crítica para a escola evitaria da percepção pelo aluno de que é incapaz de julgar
o valor de uma obra, simplesmente por colocar esse valor em cheque. Eis o que
configuraria um outro procedimento de ensino de literatura nas escolas.

Tanto a leitura das OCNEM e de Antonio Candido, quanto a exploração da


Crítica Literária dentro da escola são atividades de pesquisa sobre as quais ainda
pretendo me debruçar mais longamente. Por hora, encerro com palavras de

Sobre O direito à literatura  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
Barthes em sua Aula que me vêm ecoando desde a primeira vez em que as li: “O
que pode ser opressivo num ensino não é finalmente o saber ou a cultura que ele
veicula, mas as formas discursivas através das quais ele é proposto”. Obrigada.

Referências

ARAÚJO, Nabil. “Entre ‘educação estética’ e ‘estudos culturais’: a


problemática da pedagogia literária, do programa
schilleriano aos PCNs”. Remate de Males, Campinas, v. 34, n. 2, p. 397-420,
2014.
CANDIDO, Antonio. “O direito à literatura”. In: CANDIDO, Antonio. Vários
escritos. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul/São Paulo: Livraria Duas Cidades,
2004.
MORAES. Anita Martins Rodrigues. “Da natureza à cultura: literatura e
folclore no pensamento de Antonio Candido”. In: XI BRASA CONFERENCE,
2012. Urbana-Champaign. Disponível em
<https://www.academia.edu/4035155/Da_natureza_%C3%A0_cultura_literatur | 67 |
a_e_folclore_em_Antonio_Candido>. Acesso em set./2017.
NATALI, Marcos Piason. “Além da literatura”. Literatura e sociedade, São
Paulo, n. 9, p. 30-43.
ORIENTAÇÕES CURRICULARES PARA O ENSINO MÉDIO. Brasília:
MEC/SEB, 2006. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/book_volume_01_internet.pdf>.
Acesso em: out./2017.
PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS +: Orientações Educacionais
Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais. Brasília: MEC/SEB,
2002. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/linguagens02.pdf>. Acesso em:
out./2017.
PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS: ensino médio. Parte 2.
Brasília: MEC/SEF, 2000. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/14_24.pdf>. Acesso em: out./2017.
VALLE NETO, Júlio de Souza. “Crítica literária na escola: caminhos e
descaminhos”. Leitura: teoria e prática, Campinas, v. 34, n. 68, p. 65-78, 2016.

Sobre O direito à literatura  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito
Juventude berlinense:
um diário de leitura dos textos benjaminianos
dos anos 1910.

Carolina Peters

Graduanda em Letras - Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade


Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e monitora bolsista do Departamento de
Ciência da Literatura. Desenvolve pesquisa na área de Teoria da Literatura em
torno da obra de Walter Benjamin.

“Para o amador, basta o sentido geral e um domínio


ainda vago, que pode esclarecer por meio de leituras
| 68 |
atentas. Mas ele não sente a necessidade de
comprovar como tudo se afina no todo, e como se
afina pelas partes. A possibilidade de estabelecer esta
prova é fundamento da nossa ciência” (CANDIDO,
2006, p. 31).

Estas linhas recuperam a comunicação apresentada durante o Claro


Enigma 2017 – Direito à literatura, direito ao grito. Representam uma primeira
tentativa de, mais que expor o trabalho de pesquisa que sigo desenvolvendo ao
lado da professora Martha Alkimin1, torná-lo comunicável. Tirando proveito
das considerações do próprio Walter Benjamin acerca da figura do Narrador2, o
presente ensaio busca compartilhar o saber de um exercício – o da leitura
imanente – para o estudo de textos da juventude do autor. Agradeço
profundamente a Martha pela generosidade da escuta (e igual generosidade das

1
Martha Alkimin de Araújo Vieira, professora Associada do Departamento de Ciência
da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
2
Cf. BENJAMIN, Walter. O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov.
In.: ______. Magia e Técnica, arte e Política: ensaios sobre literatura e história da
cultura. Tradução de Paulo Sérgio Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, pp.
197-221.

Juventude berlinense  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


interdições, reconduzindo o pensamento ao objeto) e pela sugestão de fazê-lo
inicialmente na forma de um diário de leitura, registro das nossas primeiras
errâncias.

Mas por que voltar a Benjamin? E em particular, por que recorrer a esses
seus primeiros textos, da década de 1910? É tentador, quando confrontada por
essas perguntas, evocar a “atualidade de Walter Benjamin”, suprimindo as
distâncias temporal, geográfica e social que nos separam do autor e de seu
pensamento; exigindo deles respostas para dilemas de um tempo que não
conheceram, ou ainda pior, falsificando soluções a partir de suas palavras. A
cautela de formular a justificativa sem incorrer em uma presentificação
[Vergegenwärtigung] talvez exija explicitar o sujeito que indaga e a posição a
partir da qual o faz: qual seria, então, o interesse presente em recuperar essas
linhas já centenárias? E antes disso, que caminhos levam uma jovem
pesquisadora a se debruçar sobre a produção do jovem crítico?

Amparadas inicialmente por textos de comentadores, entre os quais


| 69 |
destaco os delicados ensaios de Lembrar, escrever, esquecer, de Jeanne-Marie
Gagnebin, as considerações benjaminianas sobre experiência [Erfahrung],
transmissão e conceito de História interpelaram minhas leituras da literatura
brasileira cujo tema são as ditaduras civis-militares na América Latina, tecidas
em um projeto que desejava se ocupar da resistência política e da escrita
histórica como matérias literárias. Desempenhando função coadjuvante na
análise e interpretação do romance A resistência, de Julián Fuks, as imagens do
narrador [Erzähler] e do historiador comprometido com a Revolução, aquele
aludido por Benjamin em suas teses “Sobre o conceito da História”3, pouco a
pouco assumiram o protagonismo, até o ponto em que tomaram o lugar de objeto
da reflexão. Esse deslocamento suscitou dúvidas acerca do escopo da pesquisa,
posto que a insígnia “Literatura e Engajamento” parecia já não dar mais conta de
responder aos (meus) anseios teóricos; alertou para o risco de incorrer em
impropriedades no manuseio de noções e categorias que, apesar de apreendidos
por fonte primária, foram até então articulados a partir de formulações de
3
Cf. BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da História. In.: ______. O anjo da história.
Tradução de João Barrento. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2016, pp. 7-20;
BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito da História. In.: ______. Magia e Técnica, arte e
Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Paulo Sérgio
Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, pp. 222-232. Há ainda uma terceira
tradução para “Über den Begriff der Geschichte” publicada no Brasil, feita por Jeanne
Marie Gagnebin e Marcos Lutz Müller em LÖWY, Michel. Walter Benjamin: aviso de
incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. Tradução de Wanda
Nogueira Caldeira Brant. São Paulo: Boitempo, 2005.

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terceiros; despertou a curiosidade pelas posições desse autor tão adorado, mas
tão pouco conhecido em profundidade; e assim orientou a adoção de uma
metodologia capaz de atravessar tais tensões.

O movimento da pesquisa anterior me conduziu ao novo projeto:


recompor o itinerário intelectual de Walter Benjamin no que tange essas duas
figuras – o narrador e o que chamou “historiador materialista” – demonstrando-
o sempre através de seu próprio texto (entendido aqui como sua formação
ideal). Se é verdade que o contato com comentadores permitiu traçar as
primeiras coordenadas desse percurso, nossa nova empreitada faz a opção
intransigente pela leitura imanente. Como aponta José Chasin sobre a obra de
Marx, considerações que têm se mostrado bastante pertinentes ao nosso
trabalho,

É decisivo, numa época devastada pelas “leituras”, ressaltar uma questão


fundamental: reproduzir pelo interior mesmo da reflexão [de um autor] o
| 70 | traçado determinativo de seus escritos, ao modo como o próprio autor os
concebeu e expressou. […] Tal análise, na melhor tradição reflexiva,
encara o texto – a formação ideal – em sua consistência
autossignificativa, aí compreendida toda a grade de vetores que o
conformam, tanto positivos quanto negativos: o conjunto de suas
afirmações, conexões e suficiências, como também as eventuais lacunas
e incongruências que o perfaçam. Configuração esta que em si é
autônoma em relação aos modos pelos quais é encarada, de frente ou por
vieses, iluminada ou obscurecida no movimento de produção do para
nós que é elaborado pelo observador (CHASIN, 2009, pp. 25-26).

O aprendizado do método, pouco corrente nas nossas universidades, impõe


uma série de dificuldades a serem vencidas, entre as quais a mais evidente
talvez seja a língua alemã. Apesar do sobrenome e ascendência germânicos, a
única palavra alemã no meu vocabulário até o início dessa pesquisa era
“schnell, schnell!”, que minha Vó Daize gritava aos filhos, e depois gritou aos
netos, ordenando que cumprissem com rapidez uma tarefa. Longe de representar
uma mostra de erudição, um capricho diletante, o contato com o texto original é
uma exigência do estudo. Não que não haja traduções e retraduções confiáveis,
amparadas por recentes investigações filológicas e projetos editoriais mais
robustos. Sobre o tema, Gunther Karl Pressler, responsável por um significativo
trabalho de mapeamento da recepção dos textos benjaminianos no Brasil,

Juventude berlinense  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


considera ter passado “o momento histórico das ações pioneiras [...], assim
como o momento do desespero cultural de acompanhar, ou melhor, de recuperar
a literatura crítica do ‘primeiro mundo’ por [meio de] traduções rápidas e, por
isso, superficiais” (2006, p. 41). Em que pese a observação, as edições de
Walter Benjamin no Brasil cobrem ainda parcela diminuta da extensa e
fragmentária produção do autor, especialmente dos seus primeiros escritos. E
mesmo aquelas traduções que se considere “rigorosas” carregam em si uma
dose de “renúncia”, como anotou Benjamin4, ele próprio um tradutor. É
importante para nós, nesse movimento investigativo, não só o que é dito, mas
como é dito; a forma através da qual um pensamento se objetiva textualmente.
Quando esse diário começou a ser escrito, as traduções brasileiras eram lidas
recuperando termos específicos dos originais, estabelecidos na edição da
Gesammelte Schriften, pela Suhrkamp5. Algumas lições de alemão mais tarde,
já percorremos hoje – ainda muito lentamente, com pouca destreza, mas um
tiquinho de ginga – a sintaxe benjaminiana, comparando-a às versões brasileiras
existentes, que se mantêm como nosso lastro. | 71 |

Um segundo desafio diz respeito à auto disciplina exigida pelos estudos;


às longas horas cronometradas de exposição ao texto, ao corpo curvado sobre o
papel, cerrando os olhos para as pequenas letras, empreendendo sucessivas
leituras. Um esforço corporal em algo iconoclasta, a fim de trincar a superfície e
arrancar ao invólucro aurático das publicações a dicção do autor. Como dito
anteriormente, trabalho e exercício: a escolha desses dois termos na
apresentação do ensaio não é arbitrária, e recorro a um contemporâneo de
Benjamin, também vítima do nazifascismo na Europa, o comunista italiano
Antonio Gramsci. Em um de seus Cadernos do cárcere, ele nos lembra que

Deve-se convencer muita gente de que o estudo é também um trabalho, e


muito cansativo, com um tirocínio particular próprio, não só intelectual,
mas também muscular-nervoso: é um processo de adaptação, é um
hábito adquirido com esforço, aborrecimento e até mesmo sofrimento
(GRAMSCI, 2011, p. 51).

4
Cf. BENJAMIN, Walter. A tarefa do tradutor. In.: ______. Escritos sobre mito e
linguagem. Tradução de Susana Kampff Lages e Ernani Chaves. 2. ed. São Paulo: Duas
Cidades; Editora 34, 2013, pp. 101-120.
5
Os Escritos Reunidos, organizados por Rolf Tiedemann e Hermann Schweppenhäuser,
sob a supervisão de Theodor W. Adorno e Gershom Scholem, publicados pela editora
Suhrkamp em seis volumes entre 1972 e 1985.

Juventude berlinense  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


Não se trata, portanto, de uma leitura ingênua que permita lançar mão das
citações do autor para justificar um ponto de vista, orientar a interpretação dos
dados ou amparar nossas conclusões. A leitura imanente empreende uma
escavação das palavras, erguendo do texto a arquitetura de um pensamento que
ali pulsa, independente dos nossos anseios teóricos e saltos interpretativos,
independente de nós, como aponta Chasin na citação supracitada. Talvez aí
resida a grande angústia, e diante dela, convém afirmar categoricamente
(inclusive para nós mesmas) que não nos cabe “redimir” nosso objeto em suas
eventuais falhas. O jovem Benjamin (ou qualquer outro autor de quem se ocupe
a leitura imanente) dispensa toda e qualquer intervenção redentora, toda e
qualquer tentativa de justificar seus escritos universitários em função de suas
formulações consagradas.

Ao longo do ano de 2017, nos debruçamos sobre dois textos produzidos


nos tempos em que o primogênito de Emil e Paula Benjamin frequentou a
Universidade de Berlim: “Experiência” (1913), no qual se detém pela primeira
| 72 |
vez ao termo que o acompanharia pelo resto da vida, demonstrando uma
acepção muito distinta daquela cristalizada no ensaio sobre a obra do ficcionista
russo Nikolai Leskov; e “A vida dos estudantes” (1915), que, redigido a partir
da conferência de posse como presidente da associação dos Estudantes Livres
de Berlim no ano anterior6, registra sua atividade como líder estudantil quase
uma década antes do primeiro contato com o marxismo, além de uma postura já
crítica ao historicismo e à ideia de progresso, marcas de suas famosas “teses”.
Buscamos nessa empreitada apreender em sua singularidade a primeira
elaboração de Benjamin para temas cruciais (e cativantes!) de sua produção
“madura”, ou antes, mais difundida, e aproveito o mote porque parece
importante dizer, não em nota de rodapé, mas em primeiro plano, que o
Benjamin que se possa chamar “maduro” era ainda muito jovem em seus 48
anos quando, tentando escapar do avanço das tropas de Hitler, cometeu suicídio
em Portbou.

Se empreendo a tarefa de recuperar seu pensamento, não é só por rigor


científico na compreensão e apropriação de categorias e imagens, mas também

6
Oposição às tradicionais corporações estudantis [Burschenschaften], surgidas no início
do século XIX, as Freie Studentenschaft, ou Associações de Estudantes Livres,
representavam uma tendência mais radical do movimento de juventude alemão do
começo do século XX. Em 1914, Benjamin se elege presidente da Berliner Freie
Studentenschaft, abandonando o cargo com a eclosão da Primeira Guerra Mundial. Cf.
WOLIN, 1982, p. 12; WITTE, 2017, p. 22; SCHOLEM, 2008, p. 21; KONDER, 1999,
p. 16.

Juventude berlinense  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


por declarada afinidade com essa figura e sua trajetória; com um projeto
filosófico e social que necessita ser acalentado. Encaro Walter Benjamin a partir
dos problemas e exigências presentes, como a crise por que passam as escolas,
universidades públicas e os órgãos financiadores de pesquisa, ou a crescente
conservadora contra nossos corpos e direitos – inclusive à literatura e ao grito –,
não como postura individual, mas metodológica, aceitando a proposição que já
nos anos 1910 o próprio autor manifestava nos testemunhos que nos legou. Essa
defesa não se fia na palavra da pesquisadora: acatando as recomendações de
Chasin, para quem “antes de interpretar ou criticar é incontornavelmente
necessário compreender e fazer prova de haver compreendido” (2009, p. 25), as
linhas que seguem buscam comprová-la através do movimento de leitura de “A
vida dos estudantes”. Escreve Benjamin, em 1915:

Há uma concepção de História que, confiando na infinitude do tempo,


distingue apenas o ritmo dos homens e das épocas que rápida ou
lentamente avançam pela via do progresso. A isso corresponde a
| 73 |
ausência de nexo, a falta de precisão e de rigor na exigência que ela faz
ao presente (BENJAMIN, 2009, p. 31).

Esse “assombroso exórdio”, para usar as palavras do pesquisador francês


Philippe Ivernel (2012, p. 6), que pode nos remeter perigosamente ao autor de
“Sobre o conceito da História”, nosso conhecido, localiza uma linha
historiográfica – o historicismo – para a qual a história da humanidade
transcorreria dentro de um continuum temporal, percorrido ora devagar, ora
aceleradamente. Confiando no progresso, tal concepção tem por consequência
um descompromisso com a ação presente dos homens. A consideração tecida
pelo então líder dos Estudantes Livres de Berlim, por outro lado, visa “[...] um
estado determinado, no qual a História repousa concentrada em um foco, tal
como desde sempre nas imagens utópicas dos pensadores”. Como contraponto,
portanto, à “infinitude do tempo”, Benjamin apresenta o “foco”, não como
certeza do progresso, mas como exigência do tempo e dos homens do presente.
Esse estado das imagens utópicas – “estado final” [Endzustand], como dirá na
sentença seguinte – é conformado não por elementos que “[...] afloram à
superfície enquanto tendência amorfa do progresso, mas se encontram
profundamente engastados em todo presente como as criações e os pensamentos
mais ameaçados, difamados e desprezados” (BENJAMIN, 2009, p. 31);
elementos, portanto, que não se mostram como tendência, mas pelo contrário,
são interditados pelo status quo. A percepção de interdição é reforçada pela

Juventude berlinense  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


gradação contida em “mais ameaçados, difamados e desprezados” ou, em
alemão, “[...] als gefährdetste, verrufenste und verlacht” (BENJAMIN, 1991, p.
75), onde o último termo carrega o radical do verbo lachen, “rir”, e poderia
ainda ser traduzido por “ridicularizados”7. Desse reconhecimento, diz ele,
decorre a tarefa histórica: converter, de forma pura, o estado imanente de
perfeição onde estão incrustadas as criações e pensamentos índice do estado
final, em estado absoluto. Em suas palavras, “torná-lo visível e soberano no
presente, esta é a tarefa histórica” (BENJAMIN, 2009, p. 31).

Mas do que se trata, para aquele universitário berlinense de 23 anos, esse


“estado final” que se deseja tornar absoluto? Quais seriam as suas
características? Não podendo “[...] ser parafraseado com a descrição pragmática
de pormenores (instituições, costumes, etc.), descrição da qual ele se furta”, o
Endzustand ao qual aqui se refere Walter Benjamin apenas poderia “[...] ser
apreendido em sua estrutura metafísica, como o reino messiânico ou a ideia da
Revolução Francesa” (BENJAMIN, 2009, p. 31). A fim de delineá-lo, a vida
| 74 |
dos estudantes, seu significado histórico e o significado histórico da
universidade alemã contemporânea a Benjamin são então mobilizados como
símile. Remetendo à sua textualidade:

O atual significado histórico dos estudantes e da universidade, a forma


de sua existência no presente, merecem portanto ser descritos apenas
como símile, como reflexo de um momento mais elevado e metafísico da
História. Somente assim ele se torna compreensível e possível. Tal
descrição não é apelo ou manifesto, que tanto um como o outro
permaneceram ineficazes, mas indicia a crise que, situando-se na
essência das coisas, conduz a uma decisão à qual os covardes sucumbem
e os corajosos se subordinam (BENJAMIN, 2009, pp. 31-32).

O estabelecimento do símile tem, portanto, a dupla função de tornar o que


seja “um momento mais elevado e metafísico da História” não somente
mensurável, mas possível, realizável. A busca por descrever tal momento não
configura um apelo ou manifesto, mas é índice/indício de uma crise que ocorre
“na essência das coisas” (mais adiante no texto, situada na sociedade e com

7
A título de curiosidade, essa é a escolha do francês Maurice de Gandillac, quem traduz
“[...] créations et idées en très grand péril, hautement décriées et moquées”
(BENJAMIN, Walter. La vie des étudiants. L’homme, le langage et la culture: De la
politique à la sémiologie. Traduction par Maurice de Gandillac. Paris: Denoël, 1971, pp.
7-22.).

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impacto particular sobre a organização do sistema universitário alemão),
conduzindo a uma decisão, qual seja: assumir a tarefa de tornar o Endzustand
“visível e soberano”; torná-lo absoluto no presente. Do ponto de vista teórico,
isso significa para o nosso jovem autor a assunção do “sistema”, herdado à
tradição romântica e idealista alemã, como sendo o “único caminho para tratar
do lugar histórico do estudantado e da universidade”. Contudo, a permanência
do estado imanente é para tanto uma barreira. Em face dessa dificuldade,
Benjamin circunscreve o papel da crítica: “Enquanto várias das condições para
isso continuarem vedadas, restará apenas libertar o vindouro de sua forma
desfigurada, reconhecendo-o no presente. Somente para isso serve a crítica”
(BENJAMIN, 2009, p. 32). Eis sua única função para o jovem Benjamin:
libertar o tempo futuro da forma desfigurada que assume enquanto os
pensamentos e criações rejeitados e encravados no presente; dito de outro modo,
aderir a tais pensamentos, fortalecendo-os.

Quando há alguns parágrafos sugerimos o “perigo” da remissão ao texto de


| 75 |
1940, é porque, ainda que não seja a proposta dessa breve exposição estabelecer
a differentia specifica entre ambos, é forçoso reconhecer e assegurar sua
autonomia; balizar nossa intervenção sobre o texto a partir daqueles parâmetros
que ele generosamente nos oferece. Em meio à Primeira Guerra Mundial, o
compromisso assumido pelo jovem Walter Benjamin é com um “momento mais
elevado da História”, que permita aos homens encontrar os próprios
mandamentos para sua existência no presente. Trata-se de um “engajamento”
puramente intelectual, sem preocupações pragmáticas; uma postura crítico-
filosófica fundamentada também sobre a rejeição da ideia de que o por vir esteja
aprioristicamente determinado, mas que, contudo não pretende se ocupar da
resolução de problemas políticos8. Longe de pretender esgotar o tema, o objetivo
deste diário, entre o relato íntimo e o relatório de pesquisa, não é outro senão
organizar o transcurso de uma investigação que ainda dá seus primeiros passos e
justificar escolhas metodológicas. Por fim, as proposições aqui levantadas estão
sujeitas ao confronto e reparo de colegas e professores, mas acima de tudo, às
demandas do próprio objeto.

8
Tive a oportunidade de expor mais detalhadamente essa postura intelectual em
dezembro passado, durante a Benjaminiana 2017, evento ocorrido na Faculdade de
Letras da UFRJ, com a comunicação “Juventude em Berlim por volta de 1915:
Universidade e sociedade em ‘A vida dos estudantes’, de Walter Benjamin”.

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Referências

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criança, o brinquedo e a educação. Tradução de Marcus Vinicius Mazzari. 2
ed. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2009, pp. 31-48.
______. Gesammelte Schriften. Unter Mitw. von Theodor W. Adorno und
Gershom Scholem hrsg. von Rolf Tiedemann und Hermann Schweppenhäuser.
Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1991, band II.
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Ivernel. Paris: Payot & Rivages, 2012.
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Boitempo, 2009.
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BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, arte e Política: ensaios sobre literatura e
história da cultura. Tradução de Paulo Sérgio Rouanet. 7. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1994, pp. 7-19. (Obras escolhidas – Vol. I).
| 76 |
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Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, volume 2.
IVERNEL, Philippe. Introduction. In.: BENJAMIN, Walter. Critique et utopie.
Organisation, traduction et présentation par Philippe Ivernel. Paris: Payot &
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Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
LÖWY, Michel. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses
“Sobre o conceito de história”. Tradução de Wanda Nogueira Caldeira Brant.
São Paulo: Boitempo, 2005.
PRESSLER, Gunther Karl. Benjamin, Brasil: a recepção de Walter Benjamin,
de 1960 a 2005: um estudo sobre a formação da intelectualidade brasileira. São
Paulo: Annablume, 2006.
SCHOLEM, Gershom. Walter Benjamin: a história de uma amizade. Tradução
de Geraldo Gerson de Souza, Natan Nobert Zins e J. Guinsburg. São Paulo:
Perspectiva, 2008.
WITTE, Bernd. Walter Benjamin: uma biografia. Tradução de Romero Freitas.
Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
WOLIN, Richard. Walter Benjamin: An aesthetic of redemption. New York:
Columbia University Press, 1982.

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Políticas do segredo:
tensões entre o público e o privado em três
romances latino-americanos

Flavia Natércia da Silva Medeiros

Introdução

Em 1971, Silviano Santiago elabora o conceito de entre-lugar para abordar,


em sua positividade, as especificidades da literatura latino-americana e dos
escritores latino-americanos, os quais não poderiam ter leituras inocentes da
cultura ocidental, da política, das relações de poder nem dos cânones literários. | 77 |
É possível interrogar se esse entre-lugar não coloca em tensão, além da relação
centro x periferia ─ central na intervenção de Santiago─, a dicotomia público x
privado.

Pois é possível pensar que as relações estabelecidas tradicionalmente nessa


dicotomia assumiram diversas formas, como Estado x mercado, comunidade
política x Estado, Estado x família. De um lado, fica aquilo que se considera
pertencer à/ocorrer na esfera doméstica, o que é invisível, o que é
individual/familiar. De outro se colocam atividades relativas a negócios,
políticas, legislação, governança, o que é visível, o que é coletivo. Apesar de ter
se naturalizado ou cristalizado no discurso político e econômico hegemônico,
essa dicotomia nada tem de natural ou inescapável e tem sido criticada por ser
liberal, branca, ocidental, além de favorecer a dominação masculina.

A separação das esferas tem relação com a emergência do capitalismo e a


consolidação do Estado burguês, em grande medida a partir do aparato legal que
os monarcas haviam utilizado para solapar a estrutura feudal. É uma oposição
que se construiu gradualmente, decorrente de um duplo movimento: um que é
da política moderna, outro que é do pensamento jurídico. Podemos dizer que é
recente a noção de uma esfera pública como parte de uma consciência jurídica e
política que se afasta das concepções medievais de propriedade (Horwitz,
1982).

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Foi também gradual o surgimento de doutrinas que desenvolveram a ideia
de uma esfera privada, que ficaria fora do alcance do poder público (Horwitz,
1982). Sob o liberalismo, essa distinção adquiriu grande relevância, com o
termo público designando aquilo que é suscetível de intervenção estatal e
deliberação política, enquanto a esfera privada seria aquela que é livre da
coerção do Estado (Peterson, 2000). E no mundo pós-Guerra Fria a autoridade
estatal se enfraqueceu, ao passo que o mercado internacional se unificou; com
isso, as grandes corporações se apropriaram do “espaço público”,
transformando-o em parte em um grande espaço publicitário (Dupas, 2005).

Este estudo tem como objetivo analisar cenas específicas de três romances
construídos sobre a ou em torno da tensão público x privado: Junta-cadáveres,
de Juan Carlos Onetti, Pantaleão e as visitadoras, de Mario Vargas Llosa, e O
veneno da madrugada, de Gabriel García Márquez. São textos de escritores que
integram a geração do boom latino-americano e não foram analisados por
Silviano Santiago. Comparando as formas como a tensão público x privado se
| 78 |
realiza nas cenas escolhidas, procura-se entender se e como os escritores as
utilizam para construir oposições, subversões, inversões do que nos é legado
como cultura ocidental e do lugar que nos é designado nela. Como se constroem
e quais os efeitos das políticas do segredo?

Cartas para endireitar o céu

Em Junta-cadáveres, lançado em 1964, a cidade fictícia de Santa María


finge receber com total indiferença a instalação de um prostíbulo em uma casa
azul celeste da orla local, como se o céu ficasse na terra. No entanto a chegada
do quarteto, formado por um cafetão e três prostitutas, deflagra um movimento
de resistência que envolve o padre local e duas associações, formadas,
respectivamente, por cidadãos e cidadãs zelosos da moral e dos bons costumes:
a Liga dos Cavaleiros e a Ação Cooperadora.

Prepara-se sem estardalhaço uma guerra ao prostíbulo que não tardará a


eclodir. Alguns meses depois, pessoas (sobretudo mulheres) começam a receber
cartas “anônimas” e azuis – como o céu e a casa da orla– que denunciam os
homens da cidade que frequentam o prostíbulo. Na narrativa construída sobre
múltiplos olhares e diversos tempos, é no capítulo XV (de um total de 33) que
se lê:

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Aquele foi o princípio da guerra e as cartas anônimas saltaram em
seguida para as sacolas dos carteiros para confirmar isso. Eram azuis,
com grafias uniformes e lentas; quase todas eram dirigidas a mulheres e
denunciavam a concorrência ao prostíbulo de filhos, irmãos, noivos,
escassos maridos. Não insultavam nem mentiam; naquele tempo, o que
se seguiu ao primeiro sermão ofensivo do padre Bergner, limitavam-se a
mencionar nomes, datas e horas, insinuavam apenas as represálias que
logo iriam dividir a cidade (Onetti, 2009, p. 178).

Nesse caso, as cartas escritas pelas moças, a maioria delas estudantes do


Sacré Coeur, juntamente com os sermões do padre Bergner e a vigilância da
Liga dos Cavaleiros, contribuem para que a licença para o funcionamento da
casa celeste, concedida em uma barganha entre os vereadores locais, seja
invalidada pelo governador e para que o cafetão e as três prostitutas se vejam
banidos da cidade. As moças, ao redigir e enviar as cartas com denúncias e
ameaças, acreditam agir com sinceridade e correção; dizem não querer provocar
| 79 |
“mais sofrimentos, mais brigas e separações que os que acreditavam
imprescindíveis para terminar com o prostíbulo, para limpar Santa Maria
daquela imundície” que desde a orla contaminava a cidade. Não agiriam por
vingança nem por estarem murchas pelo tempo, como a solteirona rancorosa
que muitos imaginam ser a responsável pela redação das cartas, e sim pela
necessidade de se defenderem do “inimigo que ameaçava seus princípios e seus
projetos, os futuros pessoais que lhes eram comuns” (Onetti, 2009, p. 181).

Esse recurso às cartas pode ser encarado como uma espécie de encenação da
intimidade, de uma solução discreta, secreta, privada para um problema, o sexo,
que é ao mesmo tempo público ─ relacionado, por exemplo, com as taxas de
procriação e a disseminação de doenças venéreas─ e privado. Além disso,
mesmo quando cartas são usadas na esfera privada, podem surtir efeitos
políticos, tanto dentro quanto fora do texto ficcional.

Missão secreta: Pantilândia

Já em Pantaleão e as visitadoras, publicado em 1973, o Exército peruano


tenta resolver, por meio de uma missão “secreta”, um problema que se alastra
pela selva amazônica: “[...] a tropa da floresta anda traçando as cholas” (Llosa,
2003, p. 11). “Violações por todo lado e os tribunais não estão dando conta de
julgar tanto safado [...]” (ibid., p. 11-12). “Todo dia nos bombardeiam com

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queixas e denúncias [...]” (ibid., p. 12). Para comandar essa missão, o Exército
convoca o mais correto, o mais caxias dos militares. "- Não fuma, não entorna,
não arrasta a asa" (ibid., p. 10) ̶ .

Pantaleão Pantoja, o oficial recém-promovido por unanimidade a capitão,


casado e, segundo o Serviço de Inteligência, desprovido de vícios, é
encarregado de criar o "Serviço das Visitadoras". "─ O Serviço das quê? ─ solta
uma gargalhada o general Scavino" (ibid., p. 11). Para aplacar o apetite sexual
dos soldados que servem na Amazônia e estupram uma série de mulheres,
desrespeitando qualquer interdição moral, legal ou social, prostitutas passam a
integrar o corpo do Exército, atendendo àqueles que trabalham em guarnições,
acampamentos e postos de fronteira. Mas o problema não estava somente nas
"mulheres derrubadas". "Servir na floresta é fogo, Pantoja, fogo" (ibid., p. 15).
"Nos povoados amazônicos todas as saias têm dono ─ comparece o coronel
López López. ─ Não tem boteco nem mocinhas festeiras nem nada do gênero"
(ibid., p. 15).
| 80 |
O texto começa na casa do capitão, que se arruma para uma reunião com o
alto comando do Exército. No lugar de descrições, as personagens são
introduzidas por uma apresentação cinematográfica: por suas próprias falas e
pelas intervenções na forma de narrações ou descrições do narrador, que nesse
primeiro capítulo só aparece entre os travessões. O primeiro diálogo é travado
entre Pantaleão, Pochita, sua esposa, e sua mãe, dona Leonor. Sem nenhuma
indicação, o leitor passa ao diálogo de Pantaleão com a secretária ou
recepcionista que lhe indica aonde deve ir para se juntar aos chefes. E assim
vamos conhecendo coronéis, generais, majores, algumas vítimas dos soldados, o
beato brasileiro (irmão Francisco), a cafetina Chuchupe, o radialista Sinchi.

É somente ao chegar a Iquitos e encontrar o general Roger Scavino que


Pantaleão passa a ter noção de todas as mudanças em sua vida que a missão
“secreta” exige: terá de viver como civil, totalmente afastado do quartel e das
cerimônias oficiais; mais que isso, terá de se fazer passar por empresário na
cidade nova; não pode contar a sua mãe e a sua esposa por que tiveram de se
mudar; passa a frequentar bares e bordéis e começa a beber. Tudo para fazer
nascer a "Pantilândia".

Por meio do capitão, quem se disfarça é o Exército, o que se oculta é o


caráter público e também o caráter político da intervenção, fazendo-a parecer
mercadológica. Podemos, porém, considerar frágil o dispositivo de ocultação.
Um dos problemas, que não tardará a emergir, é que os outros homens da
região, e não somente os militares, manifestarão uma demanda por sexo, não

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compreendendo por que o “serviço”, sendo pago, não poderia se estender aos
civis.

Vazamentos encenados

Por fim, no terceiro romance analisado, O veneno da madrugada, lançado


em 1962, Márquez narra um momento de um povoado sem nome no qual
pasquins com "segredos" e intrigas começam a ser afixados nas portas das casas
das pessoas durante as madrugadas. Uma dessas intrigas aparece no primeiro
pasquim: o clarinetista Pastor teria composto uma canção para a mulher de
Cesar Montero. Como afirma uma personagem, os pasquins dizem o que todo
mundo já sabe; mas, conforme diz outra personagem, a mãe de Montero, nem
tudo o que dizem é verdade, o que ela mesma constatara com boatos
envolvendo a própria família.
| 81 |
São diversos os indícios no texto de que as personagens prestam muita
atenção na vida alheia ou têm seus atentos informantes. Nutridos pelas
informações e pelos boatos em circulação, os pasquins ressuscitam fantasmas
do passado ─ infidelidades, enganos, fraudes ─ e em duas semanas conseguem
desestabilizar a paz precária que havia sido alcançada no povoado marcado por
conflitos, violência, desmandos do alcaide, guerrilha. O primeiro a saber dos
pasquins foi o padre Ángel, por meio da mulher responsável pela manutenção
das dependências da igreja, Trinidad. Mas o primeiro a encontrar um pasquim
pregado na própria porta foi um dos homens ricos do povoado, Cesar Montero,
que se preparava para partir rumo a uma jornada de caça enquanto uma pesada
chuva caía.

A única porta que estava aberta na praça era a da igreja. Cesar Montero
olhou para a cama e viu o céu espesso e baixo, a dois palmos de sua
cabeça. Fez o sinal-da-cruz, esporeou a mula e a fez gritar várias vezes
sobre as patas traseiras, até que o animal se firmou na lama,
escorregadia como sabão. Foi então que viu o papel pregado na porta de
sua casa.
Leu sem desmontar. A água havia diluído a cor, mas o texto escrito a
pincel, em grosseiras letras de imprensa, continuava legível. Cesar
Montero levou a mula até a parede, arrancou o papel e o rasgou
(Marquez, 1999, p. 12-13).

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Nós, leitores, não sabemos nesse primeiro momento o que estaria escrito no
pasquim. Sabemos, porém, que a reação de Cesar Montero não se esgota na
destruição do papel. Ele vai até a casa do clarinetista Pastor e o chama para
matá-lo com o fuzil que usava para caçar. "A casa estremeceu com o estampido,
mas César Montero não soube se foi antes ou depois da comoção que viu Pastor
do outro lado da porta, arrastando-se numa ondulação de verme sobre um filete
de penas ensanguentadas" (Marquez, 1999, p. 14).

A divulgação dos pasquins é usada pelo alcaide como pretexto para impor
um estado de exceção e se apropriar de bens, como o gado de Cesar Montero e a
herança da viúva Montiel. É também o que se observa ocorrer com vazamentos
não ficcionais: podem ser usados para normalizar as transgressões da ordem que
anteriormente eram (ou em outras circunstâncias seriam) mantidas em
“segredo” (Bail, 2015).

| 82 | O público, o privado e o entre-lugar

As três cenas têm em comum o fato de tensionarem a relação público x


privado por meio de segredos que só podem ser postos entre aspas por não
serem tão secretos quanto se pretendem. Cartas constituem um gênero que
somente a princípio é íntimo, próprio da esfera privada, mas, por serem
endereçadas a um destinatário, trazem em si mesmas a possibilidade de se abrir,
da mesma forma que podem nunca chegar, extraviar-se, ser interceptadas (como
ocorre nos regimes ditatoriais, por exemplo, o que se dá no livro de Milan
Kundera intitulado A brincadeira). Antes disso, inclusive, a própria linguagem
pode proporcionar uma abertura, bem como o ato de encenação em si. Cabe
lembrar, ainda, que escritores, políticos, jornalistas, por exemplo, escrevem
cartas públicas.

Também se pode questionar o quão secreta pode ser uma missão militar,
visto que tende a mobilizar, no mínimo, diversos agentes e várias unidades do
Exército. Até uma missão top secret tem de ser conhecida por membros do alto
comando e pelo Serviço de Inteligência; por isso, corre sempre o risco de vazar,
tornando-se publicamente conhecida. É o próprio segredo, secretum, que
secreta, ou seja, separa os que sabem e os que não sabem, instaurando a
possibilidade do vazamento. E, por fim, no caso dos pasquins afixados no
povoado sem nome, o que aparece escrito não é segredo ̶ já circulou pelo lugar
como fofoca.

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Propõe-se aqui considerar que em Junta-cadáveres e Pantaleão e as
visitadoras as políticas do segredo se fazem ao menos em parte de encenações
do privado, do íntimo, do confidencial, que têm caráter performativo, e não
substantivo. No primeiro caso, as cartas "anônimas" cumprem o que delas se
espera, ou seja, “endireitam o céu”: contribuem para o encerramento das
atividades da casa azul. No caso de Pantaleão, a ordem imposta pelo alto
comando e seu empenho no sentido da discrição não bastarão para manter
secretas as visitadoras. E, com o “segredo”, compromete-se também o sucesso
da empreitada e a reputação do Exército. O mecanismo de ocultação é frágil.
Apesar de o sexo ter se construído por diversos dispositivos de saber-poder
como o grande segredo a ser descoberto, situa-se na verdade em uma
confluência, um ponto de articulação entre as disciplinas individuais do corpo e
a regulação, o governo das populações (Foucault, 2012; 1988). Como afirma
Culler (1999): “A ideia de que o sexo está fora e em oposição ao poder oculta o
alcance do poder/conhecimento”.
| 83 |
Por último, em O veneno da madrugada, a política do segredo se constrói
por meio de uma encenação da publicação de informações supostamente
confidenciais; o resultado é não somente o restabelecimento do estado de
instabilidade, conflito e violência, como também a apropriação de bens alheios
por parte do alcaide, que como o povoado e o(s) autor(es) dos pasquins, não tem
nome próprio.

Fora do espaço literário, vazamentos encenados também servem como


recurso político: "Esta é uma carta pessoal. É um desabafo que já deveria ter
feito há muito tempo. Desde logo lhe digo que não é preciso alardear
publicamente a necessidade da minha lealdade. Tenho-a revelado ao longo deste
cinco anos" (Temer, 2015). Tal suposta correspondência privada se constrói em
parte sobre estratégias gramaticais que promovem a vitimização, afirmam ou
valorizam a lealdade inexistente e negam a "suposta conspiração". Com o
emprego da voz passiva, por exemplo, Temer em diversos trechos coloca a si
mesmo e seu partido como sujeitos que são na verdade os pacientes (vítimas) da
ação expressa pelo verbo. Usa o futuro do pretérito como suporte para a
afirmação de sua lealdade, mencionando o que deveria ter feito, mas não fez em
nome dela. Ele também usa verbos performáticos, que se caracterizam pela
coincidência entre o falar e o fazer (Austin, 1990), orações com verbos
impessoais e a alternância entre a primeira do singular e a do plural. Fala do
governo como quem não pertence a ele.

Políticas do segredo  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


O que vaza, nesse caso, supostamente, é o rompimento do vice e de seu
partido com a presidente. Mas, na verdade, o que vaza é a infantilidade do “vice
decorativo” que, por meio de um golpe de Estado, seria alçado à condição de
presidente; o que seria um grito se transforma num mero sussurro, porque sai
controlado. Esse caráter performativo das políticas do segredo é iluminado pelas
três cenas analisadas neste estudo. Da mesma forma que os romances dos quais
foram extraídas, elas parecem contribuir para a constituição de um entre-lugar
que é um lócus de questionamento e desestabilização e de exposição da
fragilidade da dicotomia público x privado.

Referências

Austin, John L. Quando dizer é fazer – palavras e ação. trad. de Danilo


Marcondes de Souza Filho. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
| 84 | Bail, Christopher A. The public life of secrets: deception, disclosure, and
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97-124, 2015.
Culler, Jonathan. Teoria literária: uma introdução. trad. Sandra Vasconcelos.
São Paulo: Beca Produções Ltda, 1999.
Dupas, Gilberto. Tensões contemporâneas entre público e privado. Cadernos de
Pesquisa, vol. 35, n. 124, p. 33-42, jan./abr.2005. Disponível em:
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Foucault, Michel. The mesh of power. Viewpoint Magazine, Issue 2: Theory
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______________. História da sexualidade I: a vontade de saber. trad. Maria
Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 13ª ed. Rio de
Janeiro: Edições Graal, 1988.
Horwitz, Morton J. History of the public/private distinction. University of
Pennsylvania Law Review, vol. 130, n. 6, p. 1423-1428, Jun.1982. Disponível
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http://scholarship.law.upenn.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=4677&context=pe
nn_law_ review. Acesso em: 7 nov.2017.
Llosa, Mario V. Pantaleón e as visitadoras. trad. Heloisa Jahn. Rio de Janeiro:
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Marquez, Gabriel G. O veneno da madrugada. trad. Joel Silveira. Rio de
Janeiro: Editora Record, 1999.
Onetti, Juan C. Junta-cadáveres. trad. Luis Reyes Gil. São Paulo: Editora
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SAIS Review, vol. 20, n. 2, p. 11-29, Summer-Fall 2000.

Políticas do segredo  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


Santiago, Silviano. O entre-lugar do discurso latino-americano. In: Uma
literatura nos trópicos - ensaios sobre dependência cultural. Rio de Janeiro:
Rocco, 2000.

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O corpo nu e suas vestimentas
simbólicas:
uma leitura de pratos-quadros de Adriana
Varejão e dos úteros de Angélica Freitas

Juliana de Assis Beraldo

É estudante de Letras - Português/Inglês na Universidade Federal do Rio de


Janeiro, membro do Núcleo Poesia do Programa Avançado de Cultura
Contemporânea (PACC) e desenvolve atividades de monitoria no Departamento
de Ciência da Literatura, da Faculdade de Letras/UFRJ. Realiza pesquisas sobre
poesia contemporânea brasileira, performance e artes plásticas.
| 86 |

Nos quadros e instalações de Adriana Varejão há uma aposta na tematização


de questões que dizem respeito à história do Brasil a partir do diálogo com as
tradições da arte e da literatura. Em uma dicção pictórica de repetição de
discursos alheios, a artista desloca narrativas hegemônicas que põem em jogo a
construção da nacionalidade e a contraposição de raças marcadas pela violência
e opressão. Em seus quadros, desenham-se inúmeras referências a outros
artistas, com ênfase em Debret, como vemos no conjunto de pratos Filho
Bastardo I (1992) e II (1995). Como uma colagem, figuras de quadros do pintor
francês ressurgem em obras de Varejão em contextos distintos. Uma repetição e
manuseio de discursos de outros marcados por um gesto fragmentário, que invés
de restituírem uma paisagem de continuum histórico, abrem, em lugar disso,
uma ferida.

O artista Jean-Baptiste Debret foi enviado ao Brasil no século XIX para uma
missão artística. Aqui, ficou conhecido por suas aquarelas sobre o que se
acreditava ser o cotidiano na colônia. Pinturas de índios, da vegetação, dos
escravos negros, de manifestações culturais e membros das elites formaram um
grande estudo que, entre outras coisas, serviu como ponto de diálogo para os
pratos de Varejão. Em Um jantar brasileiro (1827), por exemplo, é possível
observar que Debret parte de uma cena corriqueira para desenhar certa
hierarquia social. Na referida imagem: à mesa de jantar, um senhor e uma

O corpo nu  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


senhora se alimentam em um banquete farto enquanto três criados adultos e
duas crianças os rodeiam. Dos adultos, dois criados homens se encontram
próximos à mesa de braços cruzados. Atitude que possivelmente realçaria que
esses não teriam mais deveres naquele momento, em gesto que, para a
antropóloga Lilia Schwarcz (2014), parece reforçar a estrutura de divisão do
trabalho por gênero. As duas crianças negras, ao chão, são alimentadas pela
senhora, uma comendo sem talheres. Essa disposição das crianças pode
assinalar o nível hierárquico de submissão a que estão expostos, aproximados
de uma animalização. Há, ainda, uma mulher próxima à senhora que a abana e
olha para baixo. Schwarcz (2014, p. 164) assinala, ainda, que “tanto a mucama
como o senhor olham para baixo, numa mesma direção, como se fosse possível,
deveras, imaginar ali uma relação pessoal e carnal”.

Essa mesma escrava que abana a senhora reaparece nas pinturas de Varejão.
Em Filho Bastardo I (1992), a negra com ganchos no pescoço aparece sendo
estuprada por um religioso em uma paisagem bucólica. No Filho Bastardo II
| 87 |
(1995), a mulher mantém relações sexuais com o senhor da pintura de Debret
sobre a mesma mesa de Um jantar brasileiro (1827), que ressurge vazia e com a
mesma criança negra comendo ao chão. Já o homem branco que aparece em
Filho Bastardo I aparentemente duplicado – mesmo que um esteja atrás do
rasgo – parece ter saído de outra tela de Debret. Sobre a pintura Empregado do
governo saindo a passeio (1820-1830), Schwarcz (2014) aponta que a fila
indiana cumpriria o papel de mostrar o processo civilizado, evolutivo e ordeiro
vigente ou futuro no país (p. 164). O homem, que na tela oitocentista parece
olhar para a próspera posteridade, no prato de Adriana Varejão observa a forma
nua de uma mulher indígena amarrada em uma árvore. Vemos, portanto, a
ênfase em corpos nus, bem como nas relações curiosas com outros corpos – do
discurso, da tela.

A escolha de um outro corpo – o prato – como contrapartida à tela


tradicional propõe uma reflexão sobre a forma com que as narrativas históricas
são emolduradas. Os discursos sobre colonização são exportados como um
prato típico do que constitui o genuinamente brasileiro, em tom inquestionável
de verdade sobre a origem. Além disso, o formato do prato, como aponta a
artista em uma entrevista, sugere uma semelhança com a barriga grávida. Uma
gestação que guardaria, em seu útero de “Mãe Pátria”, a geração incestuosa,
estupradora e violenta que compõem as “raízes do brasileiro”. Trata-se da
barriga grávida do filho bastardo, o que não está nos documentos oficiais, o
contra-discurso.

O corpo nu  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


Com a imagética da gravidez, vem à tona outra faceta da repetição em suas
pinturas: estas aparecem como uma região limítrofe de corpos. A gravidez,
nessas obras, pode ser vista como essa narrativa que engloba, em seu ventre,
referências artísticas e históricas – como Debret, no caso. Em um corpo grávido,
como delimitamos, precisamente, os limites dos corpos do bebê e da mãe?
Existem órgãos e elementos compartilhados na gestação que se configuram
como zonas de indefinição desses limites. As figuras que aparecem no quadro
de Debret e são repetidas nos pratos de Varejão fazem parte desses corpos
limítrofes que borram noções de origem e originalidade. A implosão da ideia de
originalidade se projeta por todas as camadas dos pratos: na pretensa formação
do conceito de brasileiro, na tradição de arte ou na própria narrativa “originária”
da pátria. Há uma ruptura nos laços de continuidade e semelhança, alicerces de
uma tradição homogênea, sem contradições.

A intenção de delinear uma “identidade brasileira” na literatura, que se faz


presente em diversos projetos ao longo da história, reflete nada menos do que a
| 88 |
incessante procura de uma origem. Essa tentativa se desenvolve em diversos
aspectos na estética literária e no próprio exercício da crítica de arte. A busca do
crítico por relações de continuidade, tanto na obra completa de um artista
quanto dentro de uma narração particular, estabelece uma relação de
patriarcalidade na constituição do que se considera literatura ou arte brasileira.
Conforme Sussekind aponta em Tal Brasil, qual romance? (1984):

Se do filho exige-se um retrato fiel do modelo paterno, é com ênfase


idêntica que se costuma explicar uma obra em função de suas
semelhanças com aquele que a escreveu. Não apenas se exige do
escritor que sua produção se lhe assemelhe de alguma forma, como
também que, entre si, os seus textos guardem relações de continuidade e
semelhança. Na história literária, como na tradição familiar, também se
repete orgulhosamente a máxima: “Tal pai escritor, tal filho obra”
(SUSSEKIND, 1984, p. 29).

Na contramão do reforço de uma tradição sanguínea e paterna, e isto é claro


no diálogo da artista com Debret, um diálogo de ruptura, as narrativas sobre a
“miscigenação” são operadas por um investimento crítico e de denúncia. Sendo
assim, a repetição utilizada no procedimento de Varejão, em vez de ser
simplesmente uma repetição conservadora, no sentido de confirmar e fazer
ecoar uma “verdade”, pelo contrário, ressalta uma diferença na repetição das
narrativas históricas.

O corpo nu  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


Para Sussekind (1984), que postula sobre a ressurgência do naturalismo em
certos momentos da história brasileira, existem dois tipos de naturalismos. Um
que, para ela, se basearia em uma repetição de caráter conservador, ou seja, de
um compromisso ideológico com a nacionalidade sem rupturas, e outro que
permitiria uma fratura desse discurso de literatura ou arte como espaço
construção de identidades sem contradições. Da mesma maneira, haveria, com
estas repetições, uma tentativa de olhar para um lado avesso da História em uma
dissecação dos lugares comuns das origens do Brasil.

A preocupação que Adriana Varejão parece ter ao enfocar outro lado da


história e dos discursos se assemelha com a reflexão de Walter Benjamin em
suas teses “Sobre o conceito de História” (1942). Nestes pequenos textos, o
teórico contrapõe uma perspectiva historicista a uma materialista histórica em
relação à análise dos eventos da História. Benjamin defende que o historicismo
é pautado numa espécie de empatia que tem por elementos centrais, nas obras
aqui analisadas, o vencedor, os detentores de poder. Em trecho importante, o
| 89 |
escritor assinala:

Aqueles que, até hoje, sempre saíram vitoriosos integram o cortejo


triunfal que leva os senhores de hoje a passar por cima daqueles que
hoje mordem o pó. Os despojos, como é da praxe, são também levados
no cortejo. Geralmente lhes é dado o nome de patrimônio cultural.
(BENJAMIN, 2012, p. 12).

A obra de Varejão encena um afastamento da “transmissão da tradição” em


prol de uma escovação da “história a contrapelo”. Os despojos das narrativas
históricas se fazem centrais em quadros como Filho Bastardo I (1992) e II
(1995). O próprio investimento em pensar em uma imagética do filho que não é
legítimo, mas bastardo, como indica o nome da obra, ou seja, no que não entra
como principal, mas como sobra, reflete uma posição reflexiva de
deslegitimação de uma tradição sanguínea e familiar. Revela-se, desse modo,
uma aposta no laço de dessemelhança e descontinuidade que é desdobrado pelo
tom subversivo da obra – no sentido de subverter a representação de Debret
sobre o Brasil colônia nas pinturas aqui mostradas. Este desdobramento ganha
imagem escancarada no imenso rasgo que corta a tela e faz o espectador ter
contato com um avesso do quadro, com as vísceras sangrentas da História. O
avesso, parte não mostrada e interdita, a interioridade e, sobretudo, por onde se
certifica a qualidade de acabamento de um objeto, aparece cru, sangrento e em
formato de vagina. Não parece ser por acaso que em ambos os pratos a ênfase se

O corpo nu  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


recai sobre a exploração e a objetificação do corpo feminino bem como vemos
explicitamente nas relações tidas nos quadros.

Vemos, com isso, que o que impulsiona ainda mais a denúncia é a forma
com que os corpos femininos aparecem na pintura. Representações de corpos
que fogem à intenção secular de conferir à nudez feminina um caráter ideal e
celestial, ou o chamado “nu artístico”, chocam os espectadores e provocam
posturas moralistas como as que observamos ultimamente nos casos da
exposição Queermuseu, de Porto Alegre, que continha obras de Varejão.
Rechaços a obras de arte ocuparam os noticiários destes últimos meses
questionando, especialmente, a nudez que neste caso não foi considerada “nu
artístico”.

O paradoxo que se cria entre os tipos de nudez pode ser pensado a partir de
Didi-Huberman (1999) e suas definições de uma nudez (nakedness) que é de
cunho sexualizante, embaraçoso e ofensivo em contrapartida a uma nudez

| 90 | (nude) que projeta um corpo harmônico, ideal e, portanto, artístico. Pensando no


caso de O Nascimento de Vênus, de Botticelli, sabemos que o quadro se refere a
própria mitologia do nascimento da deusa. A esse respeito, Didi-Huberman
defende que a nudez da Vênus não é considerada ofensiva (nakedness), pois é
tratada como “representação” de um mito. Ou seja, neste caso, as fontes
literárias funcionam como uma vestimenta que isola a “ofensividade” do corpo
exposto. Sua nudez está justificada pela ilustração do mito, a figuração de uma
narrativa originária. Entretanto, o que faz o nu de Botticelli não ser considerado
ofensivo e os de Varejão sim?

A diferença determinante parece estar exatamente no caráter da narrativa


originária. Concluindo que os quadros Filhos Bastardos também apontem para
uma narrativa originária do Brasil, o “mito originário” de Adriana Varejão
escapa da concepção de originário ao apostar na fratura e enfocar, sobretudo, o
horror do relato. A leitura da dicção de Botticelli como não ofensiva, para Didi-
Huberman e Warburg, se daria pelo efeito de deslocamento do horror dos mitos.
Para estes

Botticelli parece não conservar em seu quadro senão o pudor, parece


ocultar todo o horror do relato originário cujo sistema íntegro de
polaridades míticas conhecia, no entanto, via Poliziano. Trabalho de
deslocamento, posto que unicamente os “elementos secundários”
guardam o pathos da cena. (DIDI-HUBERMAN, 1999, p. 49)1

1
Tradução minha.

O corpo nu  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


Enquanto Varejão toca exatamente no que há de violento dos mitos, na
ferida aberta, percebemos um outro lugar de enunciação. Os corpos nus de
Varejão aparecem vestidos de elementos simbólicos que expõe um gesto crítico
em relação a própria narrativa “originária” e a forma com que estas são
enunciadas. Um lugar que tensiona variáveis como o conceito de humano e
inumano, de discurso e contra-discurso e, sobretudo, de estéticas de olho e de
corpo. As pinturas parecem se estabelecer em posição diferente de certas obras
naturalistas cujo rigor científico e historicista por trás da narração era uma
preocupação, casos em que a própria narração é desvalorizada, em que vale
menos a linguagem e o trabalho com esta do que o teor de verdade, de
fatualidade, de extra-linguagem de um texto ou obra de arte. Ao desarticular a
representação estrangeira da colonização do Brasil em seu tom de verdade, o
que Adriana Varejão parece fazer é rearticular e produzir novas formas de
fotografia da História.

Não se trata exatamente de um enfoque para uma “verdade” da História,


| 91 |
mas percebemos mesmo assim uma tendência à visão. Mesmo assim, configura-
se uma nova forma de tentativa de “transparência”, de expor uma “verdade”, ou
seja, ainda se trata de “fazer ver” ou “retratar”. Se, por um lado, os pratos de
Varejão operam por uma repetição que rompe com certos lugares comuns e
instauram uma outra lógica, por outro podemos dizer que tal denúncia funciona
como um band-aid social, um conceito da própria Sussekind, apaziguando o
lado não mostrado da História e dando um conforto ao espectador.

Na poesia brasileira contemporânea, a poeta Angélica Freitas, em um


universo muito diferente, propõe, como Varejão, uma dicção pautada no
discurso dos outros. Um procedimento de cortar e colar que expõe lugares
comuns sobre a mulher e o corpo feminino sem, em contrapartida,
adquirir/assumir/adotar um tom prontamente reivindicativo. Podemos dizer que
a criticidade dos poemas de Angélica não se dá exatamente por um tom
feminista, mas justamente por uma questão de procedimento: um jogo de
repetição dos discursos e o humor ácido. Observemos alguns fragmentos de
poemas do livro Um útero é do tamanho de um punho (2012):

querida amiga, dicas para conservar


melhor o seu útero:
a gente nunca sabe quando vai precisar
do nosso útero –
em repouso
é tão pequeno e precioso

O corpo nu  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


por isso é bom mantê-lo
num lugar seguro
longe da luz
a uma temperatura
de 36 graus
se alguém insistir para vê-lo
diga: bem rapidinho
não faça barulho
(FREITAS, 2012, p. 64)

Vemos no trecho do poema “Um útero é do tamanho de um punho”, de


Freitas, que este remonta uma fala que nos remete ao tom das revistas femininas
(como em “querida amiga, dicas para conservar melhor o seu útero”). O útero
aparece como algo que deve ser tratado e conservado no lugar do que
normalmente seria a pele ou os cabelos. Aparece, no lugar dos elementos de
feminilidade, como um órgão que necessita cuidados referentes a melhor
| 92 |
performance de gênero. No entanto sua conservação implica também um
resguardo. Um paradoxo entre velar e desvelar que garante, ao mesmo tempo
sua boa forma – em caso de utilidade – e seu obscurantismo, como lugar do não
mostrado. E quando mostrado é por muita insistência e exige rapidez e silêncio.
O trecho explora uma dualidade a qual o feminino como um todo é exposto
através de um jogo com palavras que se dá pela repetição.

Trata-se, desta forma, de um trabalho com a linguagem que pode funcionar,


assim como os quadros de Varejão, como uma denúncia. Os lugares comuns são
trabalhados como uma colagem e as colagens carregam em si um deslocamento
de certa articulação de objetos para a montagem de uma nova disposição, de um
novo jogo. Nesta nova disposição a origem dos objetos já não é o ponto central.
Admitir que o poema se estabeleça como uma colagem é também neste caso
borrar a ideia de origem dos discursos. Realça-se, em contrapartida, um outro
jogo que se forma, uma outra composição. Há, tanto nas repetições de Freitas
quanto nas de Varejão, um gesto de corte que retira a petrificação e imobilidade
dos discursos hegemônicos e os abre a novos modos de interpretação e
significados.

No entanto, se os pratos de Varejão, demonstram continuar a apontar para


os fatos históricos e para o extralinguagem. Por outro lado, a poética corporal de
Freitas estaria na contramão, na dimensão do não vísivel e obscuro. Pensando,
então, na superfície da obra de Varejão como que tendendo ao “olho”, a um
paradigma óptico de conhecimento central para a modernidade, o contato com

O corpo nu  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


seus grandes pratos nas galerias de arte e museus permitem uma percepção
diferente de suas reproduções em um livro. Enquanto observava seus enormes
pratos em uma exposição na Carpintaria no RJ – chama-se atenção para o
tamanho, pois não se trata de um prato de tamanho usual (1,10 cm x 1,40 cm) –,
foi possível notar uma reverberação sonora que chama a atenção ao nos
colocarmos ao centro da pintura. Uma experiência que pode se relacionar com o
próprio gesto do prato: reverberar narrativas e chamar atenção por seu tom. Isto
é, apesar de um conteúdo que tende à visão pode ocorrer também uma
percepção da obra que vai ao caminho oposto dessa “transparência”, algo que
extrapola o visual partindo para uma dimensão também corporal ou táctil.

Se, de um lado, o olho de Varejão se arrasta para uma dimensão também


tátil, de corpo; de outro, o útero que atravessa os poemas de Angélica e a
palavra mulher ecoam ecoam ecoam até que seus significados preestabelecidos
sejam suspensos. As noções de corpo recuperadas e repetidas nos pratos ou no
poema ficam também suspensas e se abrem a uma possibilidade outra de corpo,
| 93 |
assim como uma possibilidade outra de experiência com a linguagem – de uma
linguagem sem garantias de significado. Esta ruptura no corpo, assim como o
rasgo na tela do prato se assemelham ao instante do grito, a uma enunciação que
ao mesmo tempo é eloquente e ao mesmo tempo silêncio e promove a
instabilidade dos lugares comuns – nos corpos dos discursos e nos discursos
sobre os corpos. Dessa forma, enquanto em Varejão o olho demonstra seu
toque, se explora um avesso do corpo, uma negativa da História, há também a
subversão de um corpo bem organizado, de um corpo fechado, de um corpo
humano. Há uma brecha para o grito.

Referências

BENJAMIN, Walter. O anjo da história. João Barrento (Orgs. e trad.). Belo


Horizonte: Autêntica Editorial, 2012.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Venus rajada: desnudez, sueño, crueldad. Trad.
Juana Salabert. Buenos Aires: Editorial Losada, 1999 [2005].
FREITAS, Angélica. Um útero é do tamanho de um punho. São Paulo: Cosac
Naify, 2012.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Pérola imperfeita: a história e as histórias na obra
de Adriana Varejão. Rio de Janeiro: Cobogó, 2014.
SUSSEKIND, F. Tal Brasil, qual romance? Uma ideologia estética e sua
história: o naturalismo. Rio de Janeiro: Editora Achiamé Ltda., 1984.

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Pinturas
DEBRET, Jean-Baptiste. Um jantar brasileiro. 1827. Aquarela. 15,7 x 21,9 cm
DEBRET, Jean-Baptiste. Empregado do governo saindo a passeio. 1820-1830.
Aquarela. 19,2 x 24,5 cm
VAREJÃO, Adriana. Filho Bastardo I. 1992. Óleo sobre madeira. 1,10 x 1,40 x
10cm
VAREJÃO, Adriana. Filho Bastardo II. 1995. Óleo sobre madeira. 1,10 x 1,40
x 10cm

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Vozes esquecidas:
o ser-animal de Vidas Secas e uma comparação
com A Hora da Estrela

Maria Júlia Santana Valério

Aluna de Português - Latim na UFRJ

“sou um monstro ou isso é ser uma pessoa?”

Estudar literatura é um grande desafio. Se optarmos pela literatura clássica


(entendendo “clássica” como um sinônimo de literatura canônica e deixando de | 95 |
lado, por um momento, toda uma discussão ao redor dessa palavra), corremos o
risco de repetir muito do que já foi dito, afinal, grandes críticos e críticas já se
debruçaram em estudos sobre Graciliano Ramos e Clarice Lispector, os dois
grandes autores de quem tratarei neste trabalho. Como já disse Ítalo Calvino em
seu texto Por que ler os clássicos?: “Um clássico é um livro que nunca
terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.” Um clássico é um livro que, a
todo momento, está sendo (re)lido e sempre colocado à mesa para novas
discussões.

Por isso, busco analisar Vidas Secas, um romance muito estudado, mas que
mesmo assim deve ser trazido à discussão novamente. A crítica social que o
romance carrega parece mais atual do que nunca. Em um momento no qual
diversos discursos de ódios estão cada vez mais presentes, se faz ainda mais
necessário trazer à tona discussões presentes no livro. O romance de Graciliano
Ramos nos faz pensar no que é ser um indivíduo capaz de se inserir na
sociedade e qual é a linha tênue que separa o humano do animal. Ele mostra
como condições extremas e miseráveis fazem as pessoas se (trans)formarem em
seres que habitam essa linha, sem saberem para que lado ir, sem serem
humanos, sem serem animais, graças à pobreza em que os personagens são
obrigados a viver. Assim, os personagens centrais do livro, Fabiano, sinha

Vozes esquecidas  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


Vitória, o menino mais velho e o menino mais novo, estão presos ao ambiente
inóspito em que nasceram: o sertão nordestino.

No entanto, a conjuntura atual nos pede mais: não basta olhar para o pobre,
o miserável, o ser-animal que está à margem da sociedade, mas parece distante
da nossa realidade, afinal, não é só o retirante nômade, que não tem lugar para
se estabelecer, que está sofrendo pela crescente onda de ódio que se espalha
pela sociedade. Precisamos, também, olhar para aquele que está ao nosso lado,
mas por algum motivo não conseguimos enxergar. Precisamos olhar para a
datilógrafa, para a alagoana moradora da rua do Acre que divide um quarto com
três Marias. Precisamos olhar para Macabéa, para as Macabéas.

Vilma Arêas já estabeleceu uma relação entre Vidas Secas e A Hora da


Estrela, como podemos ver em Clarice com a ponta dos dedos, livro de Vilma
Âreas: “Não deixa de ser curioso que Clarice comece sua história no momento
em que Graciliano, quatro décadas antes, em Vidas Secas, finalizara a sua, com

| 96 | seus personagens rumo à cidade grande.” (ARÊAS, 2005, p. 75). Ambos


romances parecem tratar, de formas distintas, daqueles que foram empurrados
para a margem da sociedade até estarem totalmente fora dela.

A relação de dependência entre o homem e a natureza física em Vidas Secas


tece um ambiente caótico e inóspito, que possibilita todas essas mudanças que
vão contra o considerado “normal” e “comum” na sociedade. Da mesma forma,
Macabéa está em um constante processo de apagamento, uma vez que não pode
ser encaixada em praticamente nenhuma categoria social; é uma datilógrafa com
pouco domínio da língua culta, que se perde com palavras difíceis; é uma
católica que não acredita em Deus, mas acredita “em tudo que existe e o que
não existe também”; sua cor é “encardida”: não é negra, branca ou parda; até
mesmo a sua condição como mulher é perdida: “Pois até mesmo o fato de vir a
ser uma mulher não parecia pertencer a sua vocação. A mulherice só lhe
nasceria porque até no capim vagabundo há desejo de sol.” (LISPECTOR,
1998, p. 28)

Vidas Secas é composto por cinco personagens centrais unidas por laços
familiares: Fabiano, sinha Vitória, o menino mais velho, o menino mais novo e
Baleia. A relação de cada personagem com a natureza é de extrema intimidade,
não havendo uma distinção clara entres os personagens a princípio humanos e
os personagens animais. Seria plausível que Baleia, por ser um cachorro, tivesse
uma relação mais íntima com a natureza do que os humanos em questão.

Vozes esquecidas  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


Contudo, por serem pessoas tão distantes da civilização, miseráveis e sem
perspectiva nenhuma de mudança, a distância entre o humano e o animal vai se
estreitando e, consequentemente, a distância entre o humano e a natureza física.
São pessoas que vivem o aqui e agora, não têm a capacidade de pensar em um
futuro distante, estão tão acostumadas a esse estilo de vida que não acreditam,
na maior parte do tempo, que haja algo de diferente esperando por elas. Essa
incapacidade de pensar no futuro de forma clara, de pensar além do instantâneo,
é comumente associada aos animais.

São pouquíssimas as vezes em que os personagens voltam o pensamento


para o futuro. Conforme a história segue, Fabiano se queixa de uma série de
perguntas que os meninos têm feito. De acordo com ele, os meninos poderiam
perguntar o que quisessem quando a seca acabasse. Até lá, eles deveriam se
ocupar com as coisas realmente importantes, coisas relacionadas a gente “da
laia deles”. “Um dia… Sim, quando as secas desaparecessem e tudo andasse
direito… Seria que as secas iriam desaparecer e tudo andar certo? Não sabia.
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Seu Tomás da bolandeira é que devia ter lido isso” (RAMOS, 1998, p. 24).
Nesses casos, há sempre algo que trava o pensamento. Isso está estreitamente
relacionado à visão limitada de Fabiano em relação ao futuro.

Eles procuram colocar-se no lugar que lhes pertencem, agindo como se eles
fossem diferentes de outros personagens do livro (e de fato são) como seu
Tomás da bolandeira ou o dono da fazenda onde Fabiano e a família se alojam.

Sinha Vitória desejava possuir uma cama igual à de seu Tomás da


bolandeira. Doidice. Não dizia nada para não contrariá-la, mas sabia que
era doidice. Cambembes podiam ter luxo? E estavam ali de passagem.
Qualquer dia o patrão os botaria fora, e eles ganhariam o mundo, sem
rumo, nem teriam meio de conduzir os cacarecos. Viviam de trouxa
arrumada, dormiriam bem debaixo de um pau. (RAMOS, 1998, p. 23).

Percebe-se que o questionamento aqui é sobre uma coisa considerada


simples, quase banal: o direito ou não a ter uma cama. A cama torna-se artigo
de luxo para os personagens, uma vez que seus pertences pessoais não podem ir
além do que cabe em um baú para que eles não precisem deixá-los quando a
seca chegasse novamente. Assim, sinha Vitória desenvolve uma obsessão pela
possível posse de uma cama que fosse diferente da cama de varas em que o
casal dormia. Ter uma cama significaria mais do que um conforto. Significaria
estabilidade e possibilidade de permanência em um só lugar.

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Olhou a catinga amarela, que o poente avermelhava. Se a seca chegasse,
não ficaria planta verde. Arrepiou-se. Chegaria, naturalmente. Sempre
tinha sido assim, desde que se entendera. E antes de se entender, antes
de nascer, sucedera o mesmo - anos bons misturados com anos ruins.
(RAMOS, 1998, p. 23).

Há a visão de que a seca faz parte do mundo assim como ele é. Não existe
sequer a possibilidade de que ela deixe de ocorrer. É algo determinado,
enraizado. “Sempre tinha sido assim, desde que se entendera” e não seria
diferente. De fato, para Fabiano e sua família, essa é a única realidade possível:
a realidade é estar confinado - no sentido de que não há saídas - em um
ambiente inóspito, um ambiente em que raras são as chances de sobrevivência.
Poucas são as vezes - talvez haja uma única vez - em que essa perspectiva é
deixada de lado, como é o caso do trecho a seguir:

Pouco a pouco uma vida nova, ainda confusa, se foi esboçando.


| 98 | Acomodar-se-iam num sítio pequeno, o que parecia difícil a Fabiano,
criado solto no mato. Cultivariam um pedaço de terra. Mudar-se-iam
depois para uma cidade, e os meninos frequentariam escolas, seriam
diferentes deles. (RAMOS, 1998, pag. 125-126).

Não à toa essa parte, destinada ao final do romance, fecha o ciclo construído
a partir dessa estrutura peculiar, no qual não há uma conexão clara entre os
capítulos, tornando o romance semelhante a um livro de contos, composto por
segmentos. É apenas no (re)início do ciclo da seca que sinha Vitória começa a
pensar sob uma nova perspectiva: a possibilidade de eles encontrarem um lugar
onde finalmente possam se estabelecer.

Iriam para diante, alcançariam uma terra desconhecida. Fabiano estava


contente e acreditava nessa terra, porque não sabia como ela era nem
onde era. Repetia docilmente as palavras de sinha Vitória, as palavras
que sinha Vitória murmurava porque tinha confiança nele. E andavam
para o sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas
fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias.
Eles dois velhinhos, acabando-se como uns cachorros, inúteis,
acabando-se como Baleia. (RAMOS, 1998, pag. 126).

É notável que o que os torna humanos vai se desfazendo. Essa constatação


de que eles são diferentes das outras pessoas citadas no romance, de que não

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podem prever um fim para a seca, como seu Tomás da bolandeira poderia, e,
por isso, não podem, quase nunca, pensar sobre o futuro, faz com que eles se
aproximem da animalidade: luta bruta e imediata pela sobrevivência. Ou seja,
os personagens têm a eterna preocupação de colocarem-se no lugar que lhes é
disponível. No lugar do sertanejo que, dentro do status quo brasileiro, nem
gente é, é bicho, e merece viver como tal. Pensando, é claro, na visão
tradicionalista do lugar do animal na sociedade.

Da mesma forma, Macabéa vive em um mundo em que não há perspectiva


de mudança em sua vida. Mais de uma vez, no decorrer do romance, o narrador
afirma que a nordestina sequer tem noção de sua existência. Ela apenas vive,
sem se questionar quem é, porque, caso o fizesse, “cairia estatelada no chão”.
“Não fazia perguntas. Adivinhava que não há respostas. (...) Por falta de quem
lhe respondesse ela mesma parecia se ter respondido: é assim porque é assim”
(LISPECTOR, 1998, p. 26-27). Essa conformidade está presente em todos os
personagens aqui mencionados, dando a sensação de que isso é um problema
| 99 |
social, da pobreza aparentemente inerente aos respectivos personagens.

Outra característica mais animal do que humana que está presente muito
claramente no romance é a falta das palavras. De alguma forma, ou os
personagens nunca aprenderam a falar como as outras pessoas ou, se
aprenderam, esqueceram-se, graças ao isolamento que sofrem. O papagaio, só
mencionado postumamente, só era capaz de imitar os sons da Baleia, isto é, os
latidos. Essa é uma constatação do comportamento da família, uma vez que é
característico do papagaio repetir tudo o que ouve. Se não há ninguém para
escutar, o animal não vai falar. “Resolvera de supetão aproveitá-lo como
alimento e justificara-se declarando a si mesma que ele era mudo e inútil. Não
podia deixar de ser mudo. Ordinariamente a família falava pouco.” (RAMOS,
1998, p. 8). “O pequeno sentou-se, acomodou nas pernas a cabeça da cachorra,
pôs-se a contar baixinho uma história. Tinha o vocabulário quase tão minguado
como o do papagaio que morrera no tempo da seca.” (RAMOS, 1998, p. 55)

Surge, então, uma questão narrativa. Como pode o narrador expressar-se em


um romance em que os personagens mal conhecem a linguagem oral? Ele vai
tentar adequar, através das palavras, a situação da família, de forma que o leitor
letrado entenda. Os personagens são incapazes de fazer mais do que alguns
sons, grunhidos e onomatopeias. Sendo assim, o narrador utiliza-se de um
vocabulário de um escritor bem preparado, mas não está presente nos
personagens - que têm um léxico quase nulo. Essas marcas estão tanto no texto

Vozes esquecidas  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


usual, uma vez que eles não são capazes de proferir palavra alguma, possuindo
pensamentos difusos, quanto em palavras de caráter um pouco mais científico
ou erudito, como “hidrofobia” - nome menos popular para a doença “raiva”.
Apesar disso, o texto é considerado limpo, sem muitos recursos estilísticos (ou
esse seria o próprio recurso estilístico) e seco assim como seu título, “tosco e
elementar” para utilizar as palavras de Antonio Candido. Essa é uma
contradição estruturante do romance: a inarticulação dos personagens e a
articulação do narrador. E o que as une é o estilo conciso, enxuto, seco.

Por isso este livro apresenta um passo além da simplicidade e pureza de


linhas, já plenamente realizadas em São Bernardo: vai ao tosco e ao
elementar. Paulo Honório e Luís da Silva (protagonistas de São
Bernardo e Angústia respectivamente) pensam, logo existem; Fabiano
existe, simplesmente. O seu mundo interior é amorfo e nebuloso, como
o dos filhos e da cachorra Baleia (CANDIDO, 2006, p. 64)

| 100 | Assim, vemos que ambos romances trazem a voz, mesmo que mínima,
daqueles que não tiveram oportunidade de se articular. Uma voz que não pode
ser articulada em palavras, é apenas um som, ou vários sons, já que esses
personagens são incapacitados de lidarem com as palavras. Seja por causa da
ignorância da fala, como Fabiano e a família, seja por causa da incapacidade de
pensar em si mesmos como seres humanos, como Macabéa. Permitir que essas
vozes sejam ouvidas é um ato político.

Vozes esquecidas  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


Entre G e I
Rafaela Miranda

Uma pequena introdução

Começo não com Monodrama – que é o foco desta apresentação – mas sim
com Livro das Postagens, o último lançamento de Carlito Azevedo. Se, por
acaso, fosse possível resumi-lo em uma frase ou em um verso, faria coro com a
personagem canina: O autor deveria estar aqui. Este pequeno enunciado em
repetição é o mote do livro. A presença dessa figura autoral é exigida a todo
tempo. Ela não deveria, por exemplo, se preocupar com as cartas do rabino ou
com falar ao telefone com a modelo, nem se espantar com as previsões do
| 101 |
astrônomo, que, segundo o cão, são tudo suposições. Ao autor é dada outra
tarefa: ter seu rosto desfigurado por causa de uma surra dada, nas palavras
caninas, por suspeitos na insuspeita colina.

O Livro das postagens veio de um hiato de sete anos sem publicações de


Carlito, pelo menos não ao que se diz a respeito do objeto livro. Ele viria a
publicar poemas diversos em revistas dispersas – mas insisto aqui em falar deste
em particular por entender a sua publicação como uma continuação à sua tarefa
de poeta. E também porque precisava adiantar para poder retornar. Um fluxo
regressivo do ano de 2016 ao ano de 2009, que foi o ano de lançamento de
Monodrama. Num texto sobre este, Gustavo Silveira Ribeiro diz que
Monodrama propõe uma complexa meditação sobre a catástrofe, experiência
fundamental do tempo presente, através da elaboração de imagens que
procuram dar conta, ao mesmo tempo, da dimensão social e coletiva da
destruição.

E é justamente a dimensão social e coletiva da destruição o ponto de


aproximação que tentamos aqui alcançar, trazendo para perto Livro das
postagens de Monodrama. Tentar ver nos poemas o ponto em que a mais ínfima
figuração da linguagem – que é o social e o coletivo – se encontre com o
privado, o particular, que é o caráter do poema que tem por nome uma letra: H.,
do livro Monodrama.

Entre G e I  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


Entre a G e a I

Nos estudos de aquisição da linguagem, entendemos que a criança nasce


dotada da capacidade de realizar um número infinito de sons, mesmo aqueles
que não estão presentes em sua língua materna ou os que estão fora da
linguagem, como o balbucio. Com o tempo, os dados linguísticos, que recebe ao
ser exposta a uma dada comunidade linguística, se cristalizam, e ela passa a
produzir apenas os fonemas que estão presentes em sua língua materna. A
aquisição se relaciona, assim, com uma perda. Adquirir uma língua é fixar esses
seus dados e perder outros que não a pertencem.

No primeiro capítulo de Ecolalias, Daniel Heller-Roazen trata dessa perda


surpreendente e paradoxal que é a aquisição da linguagem. Perdemos, ou diria
ele, esquecemos, (d)essa capacidade de realização de um punhado de fonemas
para aprendermos a executar um número finito de sons. A fixação dessa língua
| 102 |
corresponde também à fixação desse indivíduo na sociedade: ele tem seus
direitos (e deveres). Adquirir uma língua, assim, diz respeito, também, a se
incluir numa comunidade.

Agora, o que está nessa língua já fixada e já não se ouve é efeito da


aproximação excessiva e relacional que o falante nativo tem com sua língua
materna. Aquele que porta uma língua – ou seja, todos nós – distingue algo,
ainda que inconscientemente. E é dessa dificuldade de perceber o óbvio que
atentamos no pequeno comentário de Florência Garramuño sobre o poema H.,
de Monodrama. Na verdade, não seria errado dizer que ela, a princípio, fala da
letra h (em minúsculo) para partir para o poema H. (aqui maiúsculo e
pontuado). Sem mais digressão, ela diz dessa consoante: la letra muda del
portugués, la letra que no habla, la letra cuya lengua está trabada. A
observação é simples: em português, assim como em algumas línguas que usam
o alfabeto latino, a letra h é muda.

Dessa descrição de Garramuño pode-se ouvir a atividade/passividade da


letra: ao mesmo tempo que não é possível ser ouvida, ela encabeça palavras
(verbos, adjetivos, nomes comuns e próprios), vai à frente – enquanto trava a
língua – no silêncio. Dá nome a um poema.

Em Monodrama, H. narra as primeiras reações à notícia da morte de sua


mãe. De cara, é um telefonema de uma mulher cujo nome desconhecemos, que
avisa do estado de saúde da mãe. A mulher do telefone, a princípio, parece ser

Entre G e I  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


uma estranha ao poeta (pelo choro da mulher do outro lado da linha) mas, logo
depois, notamos que, na verdade, ela é alguém que faz parte do convívio dele
(ela me diz soluçando que está preocupada comigo, que ela tem seus maridos e
filhos junto dela o tempo todo, mas que eu agora estou sozinho como nunca
estive antes).

É importante ressaltar que esse poema é todo escrito em prosa, ele se alonga
de um lado a outro da pauta, sua extensão e seu corpo se assemelham a um rio
que saiu de seu leito, como diria Garramuño. Diferentemente de outros poemas,
em que o corte dos versos era visível. Aqui, em H., como também em Margens,
a escrita em prosa parece acentuar outro tom para o que o poeta irá dizer. A
falta dos cortes é a falta de controle sobre o pensamento, não é à toa que, numa
de suas rememorações, Carlito destaca seu gesto repetitivo e ansioso de dar
voltas pela casa e de dizer insistindo para si mesmo: onde há obra não há
loucura e onde há loucura não há obra e venho escrever. Como Hamlet – o
filho – que andava feito uma assombração pelo castelo aterrorizando seus
| 103 |
convivas e dizendo coisas desconexas do tipo: palavras, palavras, palavras,
Carlito tem seu próprio reino – a antiga casa em que passou a infância – e tenta
ordenar, com palavras, o caos que é a ideia apavorante da perda de sua mãe.

H. se desdobra em quatro partes, todas nomeadas de forma sintética, como


uma palavra que resumisse os tópicos. A primeira é H., depois Beijo, seguido de
Motores e Ritual. E cada uma dessas quatro partes se abre em outras quatro
partes enumeradas.

‘Beijo’ é uma palavra-recurso utilizada para nos despedirmos de alguém que


temos intimidade. Beijo, aquilo que ali no livro aprendemos a chamar de poema,
dá nome e inicia mais uma seção, mais um dos pontos altos do livro:

I.
Depois de encaminhar “H.” por e-mail para alguns amigos, no intuito de
avisá-los da morte de minha mãe e consciente de que não conseguiria
escrever outra coisa qualquer sobre o assunto, descobri que na pressa de
escrever para não enlouquecer, acabei revelando o que até o pequeno
Stephen Dedalus quando ainda vestia calças curtas já se envergonhava
de ser levado a admitir frente aos colegas de internato. Quando eu me
encontrava em casa à noite, mais precisamente no horário em que minha
mãe era posta por suas acompanhantes para dormir, lá pelas 20 horas, eu
costumava dar-lhe um beijo de boa noite, no qual ela parecia encontrar

Entre G e I  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


agora menos a continuidade de um costume antigo do que certa doçura
narcótica que eu não lhe sabia recusar. Dirigia-me ao seu quarto e
costumava encontrá-la já quase adormecida. À luz reduzida do abajur,
beijava a testa daquele imenso inseto preso no âmbar.

O poema ganhar nome de Beijo e, por isso, estar no espaço que cabe a um
título, desloca o lugar esperado de uma despedida. Ele já se inicia dando adeus e
quando chega ao fim esse poema esquisito, o poeta se prepara muito
emocionadamente para a despedida final do corpo físico da mãe: “Este é o
último, viu? Muito obrigado pela paciência. Te amo”. E beijei a lona.

Em Motores, a penúltima parte, a escrita continua como se fossem flashes


da memória do poeta. Aqui, ele relata como era escrever ao som da máquina de
hemodiálise e da lava-roupas antiga, presentes em sua casa. E há de se notar o
tom de endereçamento desse poema. Primeiro, o narrador está distante quando
fala do processo de escrita de figuras que só conhecemos através das iniciais de
| 104 | seus nomes: A., B., M. e W. Depois, a presença do pronome de tratamento
‘você’ nos faz lembrar com quem o poeta fala. E, se pudermos pensar junto da
lógica dos flashes de cinema, a câmera-olhar se volta para H. e fala através do
pronome: [...] advertir a enfermeira responsável por você [...] de que algo não
ia bem [...] com seu corpo.

Voltando ao livro Ecolalias de Daniel Heller-Roazen, o autor separa um


capítulo para falar da letra h. Logo no início, ele diz:

Una letra, como cualquier otra cosa, debe enfrentar, tarde o temprano,
su destino: com el paso del tiempo, todo signo escrito termina cayendo
en desuso. [...] Sin embargo, un grafema enfrenta más de una manera de
morir. (2008)

As formas de um grafema cair em desuso podem tanto ser de forma natural,


isto é, os falantes aos poucos vão deixando de lado até que ele desapareça, ou
pode ser por imposição. Como no caso da reforma ortográfica que sofreu a
língua russa no ano de 1708, Pedro o Grande decretou que uma série de grafias
gregas deveriam sair imediatamente do alfabeto cirílico. E não só: séculos mais
tarde, já no regime soviético, representantes linguísticos decidiram que mais
uma série de letras deveriam não mais aparecer impressas.

Motivos para o desaparecimento de um grafema podem ser tanto de cunho


político, como religioso ou filosófico. Alguns grafemas, inclusive, podem

Entre G e I  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


desaparecer diversas vezes, como é o caso da letra h. Os linguistas a
caracterizam como som aspirado ou como uma fricativa glotal, sendo ela
presente em quase todas as línguas que usam o alfabeto latino. Mas, como
salienta Heller-Roazen, o valor que ela tem pode variar de uma língua para
outra.

Na língua portuguesa, h pode ocupar três posições nos vocábulos. Na


posição inicial, que é conhecidamente muda, em que a grafia de uma palavra
que começa com h é preservada por motivos filológicos. Ela pode vir
acompanhada de uma consoante (como c, l, n) para a formação de dígrafos ou
no final de palavras para indicar acentuação, como no caso de sons
onomatopaicos e de interjeições.

Mas ainda que h seja muda, quando a transportarmos para o poema, ela
ganha um som próprio. H. em letra maiúscula carrega em si uma mensagem, ela
é o assunto do e-mail que Carlito envia a seus amigos avisando da morte de sua
mãe.
| 105 |
Voltando à parte que cabe à linguística, h tanto como som quanto como
signo, teve um caminho trilhado de obsolescência. Seus múltiplos tratamentos
em diversas línguas e seu desaparecimento ocasional em algumas delas, tiraram
de h seu estatuto de letra. Em grego antigo, h vira uma apóstrofe para a
marcação de espíritos. Ela ali não é uma letra, ela assinala a aspiração de um
sopro áspero para o diferenciar de um sopro suave.

Voltando ao poema, h é aquela que mesmo morta tem o que dizer. H., na
verdade, é Hilda e de sua voz (imaginária para nós) se ouve:

- Comparada com a larga eternidade de nada sentir, nada provar, nada


tocar, ver e ouvir que nos espera, a morte no sono, como dizem que
coube a Chaplin, vale o que valem as dez costelas partidas, as orelhas
arrancadas, os dedos decepados, a laceração horrível entre o pescoço e a
nuca, a equimose larga e profunda nos testículos, o fígado lacerado, o
coração lacerado, o rosto inchado irreconhecível, os hematomas, última
forma física assumida por Pasolini neste louco planeta que agora, para
você, gira também sem mim.

Ao término do livro, fica a exposição à violência indecente e vergonhosa


que conhecemos tão bem, mas de tão cotidiana a esquecemos.

Entre G e I  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


No alfabeto, se pudéssemos reverter a linearidade e consecutividade da
linguagem, diríamos abcdefg e um salto para i. Mas entre a ‘g’ e a ‘i’ ficaria um
vazio, nossos ouvidos resistiriam. Algo se viraria para nós e nos pediria que não
a esquecêssemos. Como não se pode esquecer por exemplo das palavras de
Nancy:

o som não possui face oculta, ele é todo adiante detrás e fora dentro,
sentido de ponta-cabeça com relação a lógica mais geral da presença
como aparecimento, como fenomenalidade, ou como manifestação [...]
o esquema teórico e intencional regulado pela ótica vacila. [...] Estar à
escuta é estar ao mesmo tempo no fora e no dentro, estar aberto de fora e
de dentro.

Nancy também diz: a partilha de um dentro/fora, divisão e participação,


desconexão e contágio. Da mesma forma que Carlito se pergunta ao perceber o
vazamento da água suja da vergonha. O que ele recebe? Ele mesmo responde:
| 106 | Algo cinético e fluido.

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Carlito. Livro das postagens. 1. ed. - Rio de Janeiro: 7Letras, 2016.
AZEVEDO, Carlito. Monodrama: edición bilingüe / comentado por Flora
Sussekind; con prólogo de Florencia Garramuño. - 1ªed. - Buenos Aires:
Corregidor, 2011.
GARRAMUÑO, Florencia. De abanicos abiertos y poesía en movimiento. In:
Monodrama: edición bilingüe
NANCY, Jean-Luc. À escuta. Edições Chão da Feira, Belo Horizonte, 2014.
RIBEIRO, Gustavo Silveira. A experiência da destruição na poesia de Carlito
Azevedo. In: O eixo e a roda, Belo Horizonte, v. 23, n.1, p. 69-81, 2014.
ROAZEN-HELLER, Daniel. Ecolalias - sobre el olvido de las lenguas. Primera
edición. - Buenos Aires: Katz Editores, 2008.

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Modalidades de desprendimento:
leitura de um poema de Alberto Caeiro

Rafaela Lima

Introdução

Em seu livro Fernando Pessoa, Aquém do eu, além do outro,capítulo


intitulado“Caeiro Zen”,Leyla Perrone Moisés estabelece um paralelo entre a
poética de Alberto Caeiro, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, e a
filosofia Zen budista. Nessa interpretação, Moisés se debruçou sobre vários
aspectos em comum entre a filosofia presente nas obras de Caeiro e o Zen,
inclusive sobre a prática do desprendimento, conceito produtivo para se pensar | 107 |
os dois extremos comparativos.

A aproximação entre Oriente e Ocidente foi proposta também a partir do


Oriente, através do livro Mística: Cristã e budista, livro em que Daisetsu
Suzuki, uma das figuras de maior importância no Zen budismo, explica as bases
dos principais ensinamentos do Zen budismo e expõe comparações entre o
pensamento oriental e um momento específico da teologia cristã.

A partir da leitura do poema “Deste modo ou daquele modo”, do livro O


guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro, pretende-se demonstrar a existência
de uma relação colateral entre o desprendimento na poesia de Caeiro e no Zen
budismo, levando naturalmente em consideração não só as afinidades, mas
também as diferenças entre uma obra poética e uma tradição religiosa milenar.

Aspectos do desprendimento

No Ocidente, o conceito de desprendimento deriva da palavra de origem


alemã Abgeschiedenheit cunhada pelo frade dominicano Johann Eckhart (p.
XII), que, devido ao seu título universitário, ficou conhecido como Meister
(mestre) Eckhart. Segundo a concepção Ocidental, o desprendimento pode ser

Modalidades de desprendimento  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


definido como um estado no qual o indivíduo se liberta do apego aos bens
materiais e de qualquer sentimento, vontade e pensamento, isto é, desvencilha-
se do “ego” (do narcisismo, em termos psicanalíticos), característico do ser
pensante. Com isso, a dicotomia entre sujeito e objeto seria anulada e o sujeito
alcançaria um estado que Eckhart (apud Suzuki 1976, p. 29) descreve da
seguinte forma: “a única coisa que deseja é ser um só e o mesmo, pois ser isto
ou aquilo é querer ser alguma coisa. Quem é isto ou aquilo é alguém; mas o
desprendimento não quer inteiramente nada”. No Oriente, como observado por
Suzuki, a noção de desprendimento para o Zen budismo encontra uma outra
terminologia, a Vacuidade. Para Suzuki, a própria filosofia budista da vacuidade
pode ser expressada de diversas maneiras, como “estado de identidade”, o
Nirvana, iluminação ou “existencialidade”, e pode ser conceituada como um
estado em que “o espírito está despido de todos os seus possíveis conteúdos,
exceto ele próprio” (1976, p.39-41). O estado que o indivíduo alcança na
Vacuidade é análogo ao estado que o indivíduo alcança através do
| 108 | desprendimento e, por isso, Suzuki afirma que o desprendimento Ocidental e a
vacuidade Oriental são somente duas formas diferentes de se referir a um
mesmo conceito. Esse conceito pode ser observado nos poemas de Caeiro, ao
propor um “não pensar e sim sentir”. Assim como no trecho:

Procuro despir-me do que aprendi,


Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,
Mas um animal humano que a Natureza produziu

Caeiro parece buscar “um outro modo” de viver, sentir e escrever nesses
versos.

Como observado por Perrone Moisés (1990, p.124), Caeiro se preocupa,


assim como os mestres Zen, em fornecer um caminho, uma salvação para seus
discípulos/leitores, para que sejam capazes de “fugir” do jeito de pensar
ocidental. Pensamento este que, segundo Moisés, “parte de pressupostos
racionalistas e abstratizantes” (p. 159). Porém, o que Caeiro pretende ensinar
depende primeiramente de um esvaziamento. Por isso, Moisés faz a seguinte
observação acerca do modo de ensinar de Caeiro: “Em Caeiro, o vazio se
reverte em pleno. ‘Não pensar em nada’ é abrir espaço para um Universo.”(p.

Modalidades de desprendimento  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


159) E esse caminho é suscitado por Caeiro através da exposição de seus
sentimentos e experiências. Assim como no seguinte trecho do poema:“o meu
pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado/ porque lhe pesa o fato de
que os homens o fizeram usar.” E é dessa forma que também os mestres do Zen
descrevem a experiência e o caminho necessário para alcançar a iluminação, e
com ela o desprendimento,como citado por Suzuki:

A experiência de iluminação significa ultrapassar o mundo da psicologia


abrindo os olhos-prajna (da sabedoria) e olhando dentro do reino da
Realidade Suprema, e aportando do outro lado do rio Samsara, onde
todas as coisas são vistas em seu estado de “identidade”, no caminho da
pureza. (1976,p.51)

Vê-se que a simbologia do rio, como caminho para atingir o


desprendimento, é comum em ambas as filosofias.

Seguindo os passos de um indivíduo que parece continuar buscando o


| 109 |
estado de “desprendimento”, Caeiro segue com seus ensinamentos nos versos:

E assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem sequer como um


homem,
Mas como quem sente a Natureza, e mais nada.
E assim escrevo, ora bem ora mal
Ora acertando com o que quero dizer, ora errando,
Caindo aqui, levantando-me acolá,
Mas indo sempre no meu caminho como um cego teimoso.

Observamos que o processo de despojamento não é simples e que somente


depois de muito percorrer o caminho é que este pode ser alcançado. Observa-se
ainda que o principal caminho para o desprendimento, para Caeiro, é o “sentir e
não pensar”, caminho este que é comum aos Zen budistas. E é justamente esse
“sentir e não pensar” uma das bases dos ensinamentos do Zen descritos por
Suzuki, que diz:

O conhecimento a não ser que seja acompanhado de uma experiência


pessoal, é superficial e nenhuma espécie de filosofia pode ser construída
sobre tão vacilante alicerce. [...] seja qual for o conhecimento que o
filósofo tenha, deve ele provir de sua experiência, e essa experiência
consiste em ver. (1976, p. 47).

Modalidades de desprendimento  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


Sob a ótica de Suzuki, e a partir da leitura dos versos já citados, podemos
observar a necessidade de Caeiro em usar suas experiências como alicerce de
seus ensinamentos, o que o possibilita transmitir seus conhecimentos através
dos versos. E, aparentemente, depois de passar pelas experiências, de trilhar o
caminho, de atravessar o rio a nado, este alcança uma nova percepção do
mundo, enxergando-o agora “de outro modo”, como nos trechos “Ainda assim
sou alguém,/ Sou o Descobridor da Natureza,/ Sou o argonauta das sensações
verdadeiras,/ Trago ao Universo um novo Universo/ Pois trago ao Universo ele
próprio”. Percebe-se através desse trecho ainda que o autor tem consciência de
que a mudança do mundo, esse “novo Universo” não se construiu a partir de
uma mudança externa, ou seja, do próprio universo, mas sim uma mudança que
ocorreu no próprio autor, que encontrou esse “novo eu”, “esse novo modo de
viver” ao, aparentemente, ter alcançado o desprendimento e, por conseqüência,
ter transpassando a barreira que separa o sujeito do objeto. Esse novo modo de
viver pode ser observado também nos versos que seguem:
| 110 |
Isto sinto, isto escrevo,
Perfeitamente sabedor e sem que não veja
Que são cinco horas do amanhecer
E que o sol que ainda não mostrou a cabeça
Por cima do muro do horizonte,
Ainda assim já se lhe vêem as pontas dos dedos
Agarrando o cimo do muro
Do horizonte cheio de montes baixos.

Neste trecho, que finaliza o poema, observa-se um Caeiro diferente daquele


do início. Ele já não se mostra dominado pelo pensamento racional e em uma
constante luta contra si mesmo e suas vontades, mas sim um novo Caeiro
vivendo, experimentando e,principalmente, sentindo. Neste momento, já é
possuidor de um “saber” adquirido após, aparentemente, alcançar o
desprendimento. Esse saber, que é comum ao iluminado Zen budista, não é
definitivo nem permanente, permitiu-o viver como “um ser natural”.

Encontrando as diferenças

A partir das semelhanças descritas acima, podemos agora encontrar a


principal diferença entre a poética de Caeiro e o Zen. E essa não está

Modalidades de desprendimento  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


relacionada necessariamente ao conceito de desprendimento, porém é
indispensável descrevê-la. A filosofia de Caeiro, encontrada no poema
analisado, não tem por objetivo forçar as pessoas a um novo modo de viver, mas
sim demonstrar que existe um “outro modo” de ver e viver, ficando como
escolha individual seguir os passos do mestre Caeiro ou não. Por outro lado, a
filosofia do Zen busca tornar os seus ensinamentos parte da própria existência
do indivíduo. Conclusão semelhante foi obtida por Perrone Moisés, que diz
respeito aos poemas de Caeiro: “As propostas de Caeiro não pretendem ser
argumentativas nem aliciantes. Seus poemas se propõem mais como um
exemplo de saída existencial, na postura pessoal”(p. 115). E sobre o Zen
budismo a afirma: “O objetivo do Zen é educar a nossa “mente cotidiana”(1990,
p. 120), isto é, levar-nos a praticar a arte da naturalidade existencial.

Desprendimento em forma
| 111 |

O desprendimento da filosofia de Caeiro pode ser encontrado inclusive na


própria forma do poema, a qual o autor não parece demonstrar preocupação em
relação a métrica, ritmo ou rima. Como nos trechos “Podendo às vezes dizer o
que penso,/ E outras vezes dizendo-o mal e com misturas,/ Vou escrevendo
meus versos sem querer...” Bem como o Zen budismo que, segundo Suzuki, tem
como preocupação primordial a experiência, e não os modos de expressá-la.
Neste ponto, Caeiro pode ser comparado a Eckhart, se olhado a partir do ponto
de vista de Suzuki que diz: “Seu pensamento não está, de modo algum, nas
palavras. Ele as transforma em instrumento para seus próprios objetivos”(1976,
p. 40).É isso que Caeiro parece fazer ao utilizar a sua sabedoria única para
compartilhar conosco uma proposta sobre outro modo de viver uma vida de
desprendimento. Tal desprendimento em relação a forma e ao “fazer sentido”
também foi observado por Moisés tanto nas obras de Caeiro quanto nos koan e
mondo – diálogos baseados em perguntas e respostas e que são utilizados como
forma de ensinar aos discípulos do Zen budismo a entender e alcançar a
iluminação. O esforço que Caeiro faz para alcançar esse desprendimento, ou
seja, alcançar o que seria como uma iluminação para os budistas, essa forma
única e desprendida de utilização das palavras no poema, está presente
principalmente nos seguintes versos:

Procuro dizer o que sinto

Modalidades de desprendimento  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


Sem pensar em que o sinto.
Procuro encostar as palavras a ideia
E não precisar dum corredor
Do pensamento para as palavras.

Nestes versos é possível identificar ainda um Caeiro em fase de transição


entre o pensamento analítico e o pensamento “livre”. Ele mesmo percebe que
ainda há muitos pensamentos críticos que funcionam como “um corredor do
pensamento para as palavras”, ou seja, algo que como ser analítico o impede de
comunicar a ideia que quer expressar. Ideia essa que, devido a limitações
linguísticas, por vezes torna-se inexprimível. Por isso Caeiro tenta, em seus
poemas transcender, as significações das palavras, tentando desprendê-las
inclusive de seus significados arbitrários.

Conclusão
| 112 |

Somando-se o referencial teórico a análise do poema “deste modo ou


daquele modo”, observa-se que, apesar da distância geográfica e temporal, foi
possível encontrar semelhanças entre a poética de Alberto Caeiro e a filosofia
Zen budista, como a ideia de “sentir e não pensar”, bem como, e
principalmente, o conceito de desprendimento, conceito este no qual se
fundamentam ambas as filosofias. Dito isto, ao expressar a sua “jornada” para
alcançar o desprendimento neste poema, Caeiro de fato consegue ensinar, assim
como os mestres do zen, um outro modo de viver.

Referências

Eckhart, Johann. Sobre o desprendimento e outros textos. 1ª ed. Alfred J. Keller.


São Paulo: Martins Fontes, 2004.
Manshi, Kiyozawa. O esqueleto de uma filosofia da religião. 1ª ed. Ricardo
Sasaki. Belo Horizonte: Nalanda, 2014.
Suzuki, Daisetsu. Introdução ao zen-budismo.10ª ed. Murillo Nunes de
Azevedo. São Paulo: Pensamento-cultrix, 2005.
Suzuki, Daisetsu. Mística: cristã e budista. 1ª ed. David Jardim. Belo
Horizonte: Itatiaia, 1976.
Watts, Alan. O que é o Zen?. 1ª ed. Verus editora. São Paulo: Verus, 2009.

Modalidades de desprendimento  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


Moisés, Leyla. “Caeiro Zen”. in Fernando Pessoa aquém do eu, além do outro.
2ª ed. São Paulo: Martins fontes editora, 1990, p.113-159.
Pessoa, Fernando. O Eu profundo e os outros eus: seleção poética. 1ª ed.
Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1980, p. 162-164.
Albuquerque, Eduardo Basto. Entre a história e a experiência: o budismo
japonês de DaisetzTeitaro Suzuki. Nures, São Paulo, Edição nº 10 - Ano 4,
2008.

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Modalidades de desprendimento  Odara | Vol. 5, nº 5, 2018: Direito à literatura, direito ao grito


Normas de Publicação

1) Você tem um texto que cabe na nossa revista?

Aceitamos contos, crônicas, resenhas, poemas, artigos acadêmicos,


ilustrações, fotografias, charges, quadrinhos e colagens!

Mas veja bem, seus textos devem seguir os padrões abaixo:

• Contos, crônicas e resenhas devem ter no máximo 5 páginas;

• Poemas devem ser apenas dois por autor(a);

• Artigos acadêmicos devem ter no máximo 10 páginas.


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2) Todos os textos devem ser enviados para o nosso e-mail, revistaodara@gmail.com, com o
título “Submissão de texto”.

3) Mande o seu texto num arquivo docx e junto com ele nos envie:

• 1 foto sua;

• 1 pequena biografia (até 280 caracteres, com espaços).

Nós, Odaras, agradecemos!

odara.labedicao.com

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