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Imagens: Reprodução

Pintura

O olhar mágico de
Escher: exposição mostra
relação íntima entre
ciência e arte
Metamorfoses, construções impos‑ dos visitantes,
síveis, flutuar no nada, explorações recriando alguns
do infinito, imagens se desman‑ dos efeitos utili‑
chando no espelho. As obras de zados por Escher.
Mauritius Cornelius Escher são um Ao total, são seis Artista gráfico holandês, Maurits Cornelis Escher (1898-1972)
verdadeiro desafio à lógica que in‑ ambientes inte‑
trigam e seduzem um público que rativos em que o público pode, li‑ a pessoa parecerá um gigante ou um
vai desde crianças até renomados teralmente, experimentar as obras. pigmeu. O visitante ainda poderá
matemáticos e críticos de arte. Por Esses ambientes estão reunidos na passear por um labirinto, observar
conta de tal leque variado, a expo‑ galeria Sala dos Enigmas. “Quero um buraco sem fundo ou admirar
sição O mundo mágico de Escher, a que as pessoas parem para pensar cenários que viram de cabeça para
mais completa já realizada no Brasil o que estão vendo. Questionem o baixo dependendo de onde partir o
dedicada ao artista gráfico holandês, conceito, voltem para trás para re‑ olhar. “As perspectivas arquitetôni‑
foi um sucesso em sua temporada no ver a obra, depois de terem parti‑ cas de Escher se misturam e causam
Rio de Janeiro, entre janeiro e mar‑ cipado das instalações”, explica o um efeito de combinações isométri‑
ço, chegando a São Paulo em maio. curador Pieter Tjabbes. Cada insta‑ cas e fazem o olhar não conseguir se
A primeira parada foi Brasília, para lação discute um efeito que pode ser fixar num só lugar. O olhar passeia
comemorar os 10 anos de existência observado em suas obras, como o de sem descanso pela obra”, declara a
do Centro Cultural Banco do Brasil uma imagem “plotada” no chão que historiadora da arte Sandra Hitner.
(CCBB), onde recebeu cerca de 250 se completa em um espelho cur‑ A ideia das instalações é traduzir os
mil pessoas. No Rio de Janeiro, só vado, numa divertida mistura das princípios usados por Escher para a
nas três primeiras semanas, mais de três dimensões; ou então em uma realidade. Para isso, Tjabbes reuniu
150 mil visitantes. brincadeira em que o visitante pode um time de especialistas: arquitetos,
mexer para modificar os efeitos da técnicos em iluminação, especialis‑
Magia, enigma e interação O acervo obra, como num programa touchs‑ tas em espelhos e vídeos tridimen‑
de 95 obras, entre gravuras origi‑ creen; ou ainda um quebra‑cabeça sionais que, juntos, criaram os atra‑
nais, desenhos e fac‑símiles, com‑ gigante, com imagens geométricas tivos extras da mostra.
põe a exposição, incluindo todos ou figurativas que se unem umas às Os originais trazidos da Holanda
os trabalhos mais conhecidos – e outras para criar gravuras que reme‑ estão reunidos em outra galeria, a
enigmáticos – do artista, como Dia tem ao infinito. Sala Multiuso. Nesse mesmo espa‑
e Noite (1938) e Metamorphosis II Também foi montada uma casa ço acontece a exibição permanente
(1940). Para explorar esse “mundo com duas janelas em tamanhos di‑ de um documentário sobre Escher,
mágico” do artista, a mostra brin‑ ferentes, com teto e piso inclinados. de uma hora de duração. Além de
ca com os sentidos e a percepção Nessa casa, dependendo da posição, outros vídeos de animação inspira‑

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Obras do pintor, que se inspirou no pensamento lógico
matemático: Dia e noite, acima, à esquerda; Relatividade,
acima; e Côncavo e convexo, à esquerda

Ciência e arte Es‑ amplamente explorados pelo artista.


cher ficou mundial‑ “O interessante em Escher é que ele
mente famoso por parte do espaço cúbico e o relativiza.
sua capacidade de Ele cria movimentos perpétuos, de
gerar imagens com modo que a eternidade e o infinito se
impressionantes visualizem. Ele destrói o espaço pela
dos em suas obras, apresentados em efeitos de ilusão de ótica, sem dei‑ impossibilidade de sua existência na
sete monitores espalhados pelo am‑ xar de lado as regras geométricas do possível concepção de sua realidade”,
biente. Para completar, os visitantes desenho e da perspectiva e com uma diz Angela Ancora da Luz, historia‑
poderão assistir um filme em 3D de notável qualidade técnica e estética. dora, crítica de arte e professora da
nove minutos que possibilitará um Considerado um artista único, foi Escola de Belas Artes da Universida‑
divertido passeio por dentro das quem melhor conseguiu reunir arte de Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
obras do artista. A fundação que e ciência para transformar o pensa‑ Fascinado por matemática e intriga‑
cuida do acervo de Escher comprou mento matemático moderno em do com as limitações do olho huma‑
os direitos autorais para reproduzir imagens. Atualmente, suas obras es‑ no, Escher passou a vida a investigar
no museu holandês algumas das tão em alta, pois serviram de inspi‑ como transpor para as duas dimen‑
instalações criadas pela exibição ração para o filme Origem (Inception sões da folha de papel as perspecti‑
brasileira. “Fizemos uma mistura – 2010), dirigido por Christopher vas imperceptíveis à visão humana.
total de obras originais, ampliações Nolan e protagonizado por Leonar‑ O artista brincava com a tridimen‑
e instalações interativas, para que o do Di Caprio. No filme, construções sionalidade do espaço e a bidimen‑
público tenha surpresas a cada mo‑ inteiras se desmancham para criar sionalidade do papel, em imagens
mento. Acho que assim se consegue outras novas, escadas sem fim levam distorcidas, e outras que jogam com
entender melhor a obra e também ao mesmo lugar, jogos de espelho a percepção enganosa do olhar. Esse
se mantém a atenção ligada o tempo criam corredores infinitos, numa tra‑ processo invariavelmente levava a
todo”, afirma Tjabbes. dução cinematográfica dos conceitos representações distorcidas e enig‑

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máticas. “Ele pensava a realidade
como um conjunto de correlações, CIN E M A
um emaranhado de núcleos interco‑
nexos que trocam permanentemen‑
te energia e informação. A subdivi‑
O mundo
são dos espaços, em algumas de suas do trabalho
obras, pode ser descrita ou explicada
como se a descontinuidade pudesse retratado
ser reconduzida a uma continuidade
que compreende, ao mesmo tempo, nas telas
tanto a causa quanto os efeitos na
gênese das formas. É como se dos O trabalho sem fronteiras, que
conflitos formais, redundasse uma permita ao indivíduo usufruir da
nova alternativa de perspectiva ae‑ liberdade de ir e vir a locais geográ‑ Cenas de filmes que retratam
roespacial”, aponta Hitner. ficos onde a mão de obra seja bem a perda da identidade com o
Desprezado pela crítica da época paga e as condições de emprego e desemprego, como a ficção
por conta do caráter decorativo das remuneração assim como de reali‑ Segunda-feira ao sol (acima), e e
a precarização e exploração do
gravuras, Escher ganhou a simpatia zação pessoal e profissional sejam trabalho na economia globalizada,
dos cientistas, especialmente dos mais atraen­tes, é o sonho contem‑ caso do documentário China Blue
matemáticos, antes mesmo de con‑ porâneo. Infelizmente, esta não é a
quistar os críticos de arte. Em uma realidade que vivemos: fronteiras núncia do problema, em especial
de suas frases mais conhecidas, ele caem para produtos e serviços, o ca‑ os que conseguem ser veiculados
brincava que tinha mais em comum pital circula onde lhe é mais lucrati‑ pelas TVs abertas ou pagas. Recen‑
com os matemáticos do que com os vo e com melhores condições de se temente incluído na programação
outros artistas. “O trabalho de Es‑ multiplicar, mas a extensa massa de da TV Cultura, China Blue é um
cher não está em nenhum dos mo‑ trabalhadores do planeta, sem espe‑ dos casos: retrata a realidade de
vimentos das vanguardas históricas, cialização e sem postos qualificados, operárias chinesas numa pequena
por exemplo. Suas obras não podem oscilam à mercê da decisão dos in‑ fábrica têxtil de jeans, cuja produ‑
ser classificadas ou nomeadas por vestidores. Essa é uma questão eco‑ ção globalizada as joga num mun‑
uma ou outra corrente. O que se po‑ nômica e sociológica que, além de do escravizado do trabalho a baixo
de afirmar é que sua arte se caracte‑ fomentar teses acadêmicas e artigos custo para as grandes marcas inter‑
riza por uma afinidade construtiva. de especialistas, tem sido habilmen‑ nacionais. Embora trabalhadoras
Trata‑se de um artista figurativista, te tratada por vários cineastas, não urbanas, sofrem exploração como
que busca recursos na matemática, só nas obras de ficção – em clássicos nos modelos rurais mais arcaicos:
pela divisão de planos, pelo uso de como o espanhol Segunda‑feira ao refeições e moradia são deduzidos
espirais, rotações, inversões de figu‑ sol, o norte‑americano Pão e rosas, de seus salários que, no caso, não
ras, rebatimentos, espelhamentos, o francês O corte ou o indiano Sob chegam a um dólar diário. China
enfim, uma gama rica de critérios a luz da América – mas, principal‑ Blue mostra o cotidiano dessas fá‑
exatos para criar o insondável, o im‑ mente, nos documentários produzi‑ bricas do sudoeste da China, com
possível, materializando o imaterial, dos nas últimas décadas. adolescentes retiradas de suas al‑
sem fronteiras que separem dentro e Mesmo o documentário não sendo, deias para sobreviver em cruéis
fora, acima e abaixo, luz e opacidade, ainda, um gênero de apelo popular condições de trabalho. Feito sem a
verdade e ficção”, pontua Angela. como grandes produções cinema‑ permissão das autoridades chinesas
tográficas, diversos deles acabam é exemplar ao retratar a realidade
Chris Bueno por cumprir melhor o papel de de‑ da produção nos países emergentes.

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