Você está na página 1de 17

ISSN 0103-9466

380

Olavo de Carvalho
e a onda conservadora contemporânea

Eduardo Barros Mariutti

Maio 2020
Olavo de Carvalho e a onda conservadora contemporânea
Eduardo Barros Mariutti *

Resumo
A preocupação básica deste texto é tentar entender o que explica a aderência das ideias de Olavo de Carvalho
em um expressivo setor do campo conservador que, principalmente por estímulo dos filhos do presidente, possui
ampla participação no alto escalão da administração pública federal.

Introdução
Embora o cenário contemporâneo não seja nada claro, não é difícil divisar o fortalecimento
do conservadorismo em escala mundial. Mas há uma peculiaridade que permite marcar uma diferença
cada vez mais saliente entre o conservadorismo moderno e o contemporâneo. A aceitação de que as
sociedades de fato mudam é a grande peculiaridade do conservadorismo moderno, isto é, aquele que
surge da reação à Revolução Francesa. Como autores de diversas orientações ideológicas já
ressaltaram1, é a partir de 1789 que o conservadorismo como ideologia se emancipa do pensamento
reacionário e, por conta disto, torna-se capaz de assumir uma postura mais pragmática, fundada na
combinação entre ceticismo e prudência. Isto atenuou significativamente a inclinação utópica de se
tentar restaurar uma era de perfeição situada em um longínquo passado (que nunca existiu) ou,
alternativamente, em buscar no futuro uma sociedade perfeita, fundada na regeneração das tradições
e valores considerados absolutos e fundamentalmente verdadeiros e corretos. É precisamente essa
amarra que começou a ser desatada desde a revolução mundial de 1968. Frente à radicalização das
demandas por liberdade e a politização do corpo, o caráter reativo do conservadorismo passou a ceder
lugar a um ímpeto transformador, colérico e intransigente, divisado por alguns profetas como a única
forma de reverter a suposta degeneração da sociedade em curso. Trata-se, portanto, da algo muito
diferente do tradicional revanchismo reacionário. Envolve a criação de uma grande expectativa,
geralmente mística, que se contrapõe a um mundo cada vez mais marcado por expectativas
decrescentes2.
Esta dimensão que visa transformações substancias na realidade – mesmo que não haja
nenhum consenso sobre as finalidades – colidiu frontalmente com a monótona alternância entre a
centro esquerda e centro direita que tem caracterizado a política desde o Annus Mirabilis de 1989: a
política institucional centrada na perpétua oscilação entre uma política econômica mais distributiva e
outra mais “ortodoxa”, que não é fundamentalmente diferente, embora proclame da boca para a fora

* Professor Associado do Instituto de Economia da Unicamp e do Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas.
Pesquisador do INCT/INEU e membro da Rede de Pesquisa em Autonomia Estratégica, Tecnologia e Defesa (PAET&D).
E-mail: mariutti@unicamp.br.
(1) Cf. João Pereira COUTINHO. As Ideias Conservadoras explicadas a revolucionários e a reacionários. São
Paulo: 2013 p. 9-12; Immanuel WALLERSTEIN. The Modern World-System IV. Berkeley: Univ. of California Press, 2011
p. 11.
(2) Sobre o tema da regressão das expectativas, ver Paulo ARANTES. O Novo Tempo do Mundo. São Paulo:
Boitempo, 2014

Texto para Discussão. Unicamp. IE, Campinas, n. 380, maio 2020.


Eduardo Barros Mariutti

a necessidade de encorajar o “empreendedorismo” e a proteção dos direitos de propriedade.3 Mas a


esquerda parece não querer tirar os olhos da superfície e insistir em um golpe imaginário e nas fake
news (que substituiu a clássica conspiração midiática capitaneada pela Globo) como a causa da
derrota do “progressismo”. Isto abriu o flanco para que uma vaga conservadora capitaneada por uma
confusa e heterogênea extrema direita passasse para a ofensiva e ganhasse não apenas as ruas, mas,
também, o governo federal. Parte deste bloco se inspira nas ideias de Olavo de Carvalho. É isto que
ocupará o centro da discussão neste artigo. Antes, contudo, é necessário situar este tema particular
dentro de um movimento mais amplo, que concerne a dimensão mundial conservadora que tem como
epicentro os EUA.

A onda conservadora e a eleição de Donald Trump


Em um brilhante texto destinado a pensar a peculiaridade do conservadorismo nos EUA no
final da década de 1950, Samuel Huntington propõe uma espécie de tipologia do pensamento
conservador.4 Ele trata este fenômeno como uma ideologia5 e, desta perspectiva, propõe uma
classificação das teorias do conservadorismo levando em conta como cada uma delas explicita as
características distintivas, a substância e as condições que favorecem a ascendência deste fenômeno.
A “teoria aristocrática” identifica o conservadorismo com a ideologia de um setor específico da
sociedade em um evento histórico singular como, por exemplo, a reação das classes feudo-
aristocrático-rurais à Revolução Francesa, ao liberalismo e à ascensão da Burguesia (final do XVIII
e início do XIX). Como não houve feudalismo nos EUA, esta variante não se propagou por lá e,
portanto, pode ser deixada de lado. Ele foca a sua análise em duas outras variantes: a “teoria
autônoma” e a “definição situacional do conservadorismo”.
A teoria autônoma questiona a tese de que o conservadorismo esteja ligado aos interesses de
algum grupo particular e, portanto, seu aparecimento não depende de nenhuma constelação particular
de forças sociais. Deste ponto de vista o conservadorismo é considerado como um sistema autônomo
de ideias definido em torno de valores alegadamente universais como justiça, ordem, equilíbrio e
moderação. Uma ideologia que, portanto, independe de grupos, classes ou ocupações específicas: é
uma questão de convicção pessoal. Já a definição situacional entende o fenômeno como uma
ideologia que ascende quando um desafio fundamental às instituições estabelecidas. Os defensores
destas instituições – que podem ser bastante heterogêneos – se erguem para a defendê-las. A sua base
é afirmação apaixonada do valor das instituições existentes, mas a sua tática é mundana: para garantir
as instituições fundamentais é necessário ceder em assuntos secundários. Isto abre espaço para
alianças pragmáticas que congregam muitas vezes um grande arco de grupos muito distintos.
A base da diferenciação repousa, portanto, na relação da ideologia conservadora com o
processo histórico. A teoria aristocrática tem como fundamento a tese de que o conservadorismo

(3) Delirantes chamam isso de “neoliberalismo”. Nunca houve neoliberalismo no Brasil. Nenhuma burguesia
aprecia uma ordem realmente competitiva. Especialmente a nossa, que não sobreviveria a uma abertura à concorrência
internacional.
4) Samuel P. HUNTINGTON. Conservatism as an Ideology. The American Political Science Review, v. 51, n. 2,
Jun. 1957.
(5) Ele entende ideologia como um sistema de ideias relacionadas à distribuição de valores políticos e sociais que
tem o consentimento de um grupo social significativo.

Texto para Discussão. Unicamp. IE, Campinas, n. 380, maio 2020. 2


Olavo de Carvalho e a onda conservadora contemporânea

ocorre apenas em uma classe particular em uma sociedade particular. A teoria autônoma, ao contrário,
assume que o conservadorismo pode surgir em qualquer época da história e, por fim, a definição
situacional restringe um pouco o quadro, ao afirmar que o conservadorismo como ideologia só se
manifesta quando os grupos defensores e os desafiantes de uma ordem se posicionam em um claro
antagonismo. Neste sentido, o conservadorismo se converte em uma ideologia quando precisa reagir
a contra as políticas utópicas que fazem da fuga para o futuro (ou para o passado) um programa de
ação no tempo presente. Trata-se de uma ideologia que só emerge “quando os fundamentos da
sociedade são ameaçados”. E é precisamente isto que começou a ser percebido pelos conservadores
no mundo todo, sobretudo depois que o impacto de 1968 se fez sentir na vida cotidiana. A despeito
desta raiz comum, as temporalidades e as características dos levantes locais são muito diferentes. A
ofensiva conservadora que alimentou as “guerras culturais” eclodiu primeiro nos EUA logo ao final
da década de 1980 e muito depois no resto do mundo.

O sinuoso movimento do conservadorismo nos EUA: a “revolta jacksoniana” e a guerra


cultural
A grande expansão econômica dos anos 90 nos EUA gerou um efeito curioso: amorteceu as
tensões sociais ligadas mais diretamente à economia e, ao mesmo tempo, ampliou as divergências
ligadas aos costumes e às questões raciais e de gênero. Se atentarmos para o debate púbico no período,
aparentemente, a América tinha superado mais uma vez o “problema econômico”, fato que deslocou
as linhas de cisão para a dimensão cultural e religiosa: como a prosperidade era novamente dada como
certa, a questão envolvia definir quais eram os valores genuinamente “americanos”, e isso gerava
uma tensão que tendia a posições irredutíveis. Foi neste cenário que os conservadores começaram a
se organizar precocemente nos termos de uma “guerra cultural” 6. Em certo sentido, tratava-se de uma
reação tardia às transformações postas em marcha sobretudo depois de 1968, onde a contracultura, o
ecossocialismo, o feminismo, o movimento negro e o movimento LGBT mudaram o eixo da sua
atuação: se concentraram na promoção de transformações significativas nas relações interpessoais e,
inclusive, no próprio entendimento do significado do homem e de sua relação com o meio ambiente,
visando combater a tradição cartesiana. As mudanças foram relativamente bem-sucedidas,
especialmente na academia, na grande imprensa nas artes e nos circuitos considerados por seus
membros como “mais arejados”. E foi este sucesso relativo que despertou os conservadores
americanos logo no final da década de 1980 que, em nome de uma suposta ameaça a valores
fundamentais, passaram a se engajar de forma mais organizada no campo de batalha cultural7.
No entanto, a eleição de Donald Trump representou um divisor de águas: ao lado de uma
postura “jeffersoniana” sobre a política externa, a “guerra cultural” esteve na base de sua campanha
e assumiu uma proeminência ainda maior desde a sua vitória que, de certo modo, sinaliza a

(6) Esta expressão ficou imediatamente célebre após James Davidson HUNTER publicar Culture wars: the struggle
to define America. Nova York: Basic Books, 1991.
(7) Cf. Pablo ORTELLADO. Guerras Culturais no Brasil. Le Monde Diplomatique Brasil, n. 89, 2014, em particular
essa passagem: “Estamos vendo no Brasil e em outros países uma expansão mundial das guerras culturais que tomaram os
Estados Unidos a partir do final dos anos 1980. A antiga polarização entre uma direita liberal que defendia a meritocracia
baseada na livre iniciativa e uma esquerda que defendia intervenções políticas para promover a justiça social passa a ser não
substituída, mas crescentemente subordinada a um novo antagonismo entre, de um lado, um conservadorismo punitivo e,
de outro, um progressismo compreensivo.”

Texto para Discussão. Unicamp. IE, Campinas, n. 380, maio 2020. 3


Eduardo Barros Mariutti

preponderância da “revolta Jacksoniana”8 e da Alt-Right. Como se sabe, o período conhecido como


a era jacksoniana foi marcado por um conjunto de transformações muito aceleradas que envolveram
praticamente todas as dimensões da vida social. O isolamento das comunidades que caracterizava os
EUA até o início do século XIX foi brutalmente rompido por uma tensa conexão entre os novos
sistemas de transporte, o comércio em maior escala e o reforço de um sistema político que fazia com
que todas as questões locais e regionais desembocassem em Washington. Novas relações de
autoridade e interesses mais remotos se impuseram sobre a esfera de intimidade que marcava as
relações econômicas e políticas das comunidades. O que singularizava a posição jacksoniana é que
eles rejeitavam o pendor tradicionalista dos seus adversários mais diretos (reunidos principalmente
no partido Democrata) mas, ao mesmo tempo, não se sentiam à vontade com a defesa mais enfática
feita pelos Whigs das relações impessoais típicas de uma sociedade comercial moderna regulada por
contratos. Lawrence Kohl ilustra bem as tensões deste movimento:
Paradoxically, the Jacksonian’s persistent demands for freedom and equality could sound quite
modern. And they were sincere in their rejection of hierarchy and deference. Yet, their liberation
rhetoric was particularly intense precisely because their traditional social character inhibited
their accommodation to society’s demands. The bristly independence of their writings and
speeches revealed a certain desire to respond to these demands, but it also disclosed their
frustration in the attempt. Even more telling is the fact that Jacksonians frequently used the
concepts of freedom and equality to liberate them from the impersonal social ties which frustrated
and exploited them. Their political policies which embodied these ideals were often defensive
reactions to the emergence of individualistic institutions, attempts to protect more traditional
relationships from the transforming effects of modernity9.
Em certo sentido, a atual “revolta jacksoniana” expressa uma tensão formalmente similar,
porém reconfigurada e embebida por um conjunto distinto de forças sociais.
A ameaça é dupla. Em uma ponta o “globalismo” (sic.) das elites que se julgam cosmopolitas
corrompe e dissolve os costumes das comunidades locais e, ao mesmo tempo, internaliza tensões
internacionais que pouco tem a ver com o interesse do cidadão americano, desperdiçando tempo,
recursos e a vida de soldados engajados em guerras e ações militares que não correspondem às
questões genuinamente nacionais. Esta mesma elite apoia um discurso multiculturalista que reforça
“artificialmente” a demanda de imigrantes não adaptados aos valores americanos, minorias e grupos
de identidade definidos em torno de questões culturais, raciais e de gênero. É precisamente neste
ponto que a “revolta” jacksoniana entra em sinergia com boa parte das inclinações e das demandas
da Alt-Right10. A convergência é quase absoluta na questão da posse de armas e no controle sobre as

(8) Cf. MEAD, Walter Russell. The Jacksonian Revolt: American Populism and the Liberal Order. Foreign Affairs,
v. 96, n. 2, 2017.
(9) KOHL, Lawrence F. The Politics of Individualism: parties and the American character in the Jacksonian Era.
Nova York: Oxford U. Press, 1989, p. 16.
(10) Trata-se de um movimento difícil de ser caracterizado, por conta de seu caráter amorfo e, em grande parte,
anônimo. É um movimento claramente conservador, embora radicalmente crítico do que eles consideram como o
“conservadorismo mainstream”, isto é, a combinação entre tradicionalismo moral, liberdade econômica e ênfase na defesa
nacional que ganhou proeminência na era Bush. Cf. George HAWLEY. Making Sense of The Alt-Right. Nova York:
Columbia U. Press, 2017, p. 4; 11-18. Este conservadorismo é considerado por eles como parte do establishment. Por conta
disto a Alt-right se manifesta predominantemente nos canais digitais, tanto na esfera visível (Youtube, Twitter, Facebook,
etc.) quanto em grupos de mensagem como o 4chan e na zona opaca da deep web. Cf. Angela NAGLE. Kill all Normies:
the online culture wars from Tumblr and 4chan to the alt-right and Trump. Washington: Zero Books, 2017. A sua tática
básica envolve interromper o debate público com mensagens ofensivas e, também, destruir reputações mediante
linchamentos on line. Neste sentido, o “Gabinete do Ódio” bolsonarista é herdeiro direto destas táticas.

Texto para Discussão. Unicamp. IE, Campinas, n. 380, maio 2020. 4


Olavo de Carvalho e a onda conservadora contemporânea

imigrações. No primeiro caso, a posse é defendida como um direito fundamental para defesa pessoal
e para, eventualmente, resistir a governos tiranos.
O aspecto curioso é que a defesa das liberdades individuais não está necessariamente
associada à defesa do Laissez-faire no plano da economia: a tendência dominante é a defesa do
protecionismo. Isto é, Fair Trade ao invés de Free Trade, o que gera atrito com a curiosa variante
estadunidense que importamos por aqui: conservador nos costumes e liberal na economia11. No
entanto é importante destacar que a ênfase no controle sobre as fronteiras e no combate aos imigrantes
ilegais, ao contrário do que geralmente se destaca, não tem como motivo fundamental o receio de
uma hipotética desvalorização dos salários por conta da pressão dos estrangeiros no mercado de
trabalho, embora isso seja importante. O motivo é muito mais perturbador, pois está radicado na
percepção de que as políticas identitárias protegem e prestigiam diversas minorias, mas deixam de
fora o branco que se identifica simplesmente como “americano” (plain american). E, frente a isto,
brotam teorias conspiratórias fundadas no temor de que existe uma iniciativa deliberada da oligarquia
bipartidária de reduzir e marginalizar a população branca tanto no plano demográfico como no
cultural e no político. Esta política só pode operar pelo reforço do multiculturalismo que, portanto,
impede que os valores americanos – o compasso moral dos pais fundadores – exerçam o papel que,
até então, tinha garantido a grandeza da América: a combinação entre migrantes com costumes muito
distintos em uma única nação. Desse ponto de vista a questão, portanto, é diretamente político-social
e indiretamente econômica.

Uma Revolução Conservadora?


Mas seria possível pensar em uma revolução conservadora? Infelizmente a resposta é sim.
Ela se desdobra em dois fronts. No front civilizacional o objetivo é deter o colapso do civilização
judaico-cristã tanto das causas internas – o individualismo irresponsável da modernidade – quanto do
cerco proveniente das demais civilizações (a islâmica e a ameaça chinesa). No front interno os
revolucionários se insurgem contra o establishment, explicitado pela zona de consenso entre o Partido
Republicano e o Democrata. Este bipartidarismo é considerado uma das principais fontes da
decadência dos “valores americanos” que, deste ponto de vista, se manifesta em uma curiosa mistura
entre o empreendedorismo e um senso de responsabilidade cristão ancorado no nacionalismo (fair
trade.). A traição das elites esteve na base deste acordo contra o cidadão médio americano. Ao se
converter em uma plutocracia cosmopolita com tentáculos transnacionais, a cúpula da sociedade
americana criou um corrupto capitalismo de compadrio que combina o “socialismo para os ricos” que
protege os plutocratas blindando-os do risco e da competição com o “socialismo dos miseráveis”, isto
é, a rede de assistência pública que garante mão de obra e votos baratos, uma chusma heterogênea
que só tem como traço comum a dependência do Estado e aversão ao empreendedorismo e à
meritocracia. As classes médias e, especialmente, os americanos genuínos ficam de fora deste acordo.
Steve Bannon representa o arquétipo deste tipo de discurso, uma figura que já era muito notória nos
EUA, mas que ficou mundialmente conhecido após tornar-se um dos principais estrategistas da

(11) A ala olavista, como se sabe, sequer é liberal na economia: ataca sistematicamente Paulo Guedes.

Texto para Discussão. Unicamp. IE, Campinas, n. 380, maio 2020. 5


Eduardo Barros Mariutti

vitoriosa campanha de Donald Trump para a presidência (que o descartou em 2018, fato que
intensificou o seu “radicalismo”)12.
Não o resta dúvida de que esta figura sombria rapidamente se converteu em um dos principais
porta-vozes da “revolução mundial conservadora” que, em sua visão, é a única alternativa para salvar
a civilização judaico-cristã. Requentando de forma idiossincrática e empobrecedora a ideia de
“choque de civilizações” proposta por Huntington em 199613, Bannon alega que estamos defronte
uma guerra existencial global que opõe a tradição judaico-cristã ocidental como o que ele chama por
vezes de “fascismo islâmico”. Bannon é muito menos “global” do que imagina, pois a extrema direita
europeia o vê com muita desconfiança. No entanto, a sua influência é grande nos EUA e, infelizmente,
no Brasil pela via de Olavo de Carvalho e sua seita de fanáticos. O ponto de contato evidente entre
os dois é a reverência ao perenialismo que, contudo, é muito mais saliente em Olavo do que em
Bannon. O ódio à China é outro ponto de aglutinação importante.14 A “ameaça do islã” é o terceiro
embora, como veremos, Olavo não tenha aversão ao islamismo per se e, inclusive, frequentou a tariqa
sufi de Frithjof Schuon. O fato é que depois da eleição de Jair Bolsonaro as pretensões de Olavo
aumentaram significativamente. Até então ele tinha apenas a modesta pretensão situar o “lugar do
Brasil na história espiritual do mundo” e, a partir deste diagnóstico, reformar radicalmente a cultura
brasileira15. Com Bolsonaro no poder ele ficou ainda mais ambicioso e se autoproclamou o líder da
“revolução brasileira”. Uma liderança tragicômica já que ele continua morando nos EUA e parece
que nunca irá pisar de novo no Brasil16.

A insurgência da Ralé e a onda conservadora no Brasil


O patrimônio e a renda não são as principais fontes de privilégio social, especialmente no
caso das classes médias. O acesso a boas escolas desde a tenra infância é um elemento crucial de
diferenciação social. Mas por detrás do abismo que separa as elites da grande massa há muito mais
do que isso. Uma família de classe média lega de forma invisível a seus filhos um conjunto de
habilidades cognitivas e sociais que geram distinção social. Isto reitera, portanto, na própria vida
familiar as hierarquias do “gosto” que perenizam a desigualdade também no plano subjetivo.17 Essa
herança imaterial gera identificações subjetivas – e quase inconscientes - que reforçam a endogenia
nas classes médias e, reversamente, tende a perpetuar e naturalizar a desigualdade. Logo, por conta

(12) Após ser defenestrado por Trump, Bannon passou a atacar sistematicamente as lideranças do partido
republicano, em uma clara tentativa de rachar o partido.
(13) Samuel HUNTINGTON. The Clash of Civilizations. Nova York: Touchstone, 1996.
(14) Cf. Benjamin R. TEITELBAUM. War for Eternity: inside Bannon’s far-right circle of Global Power Brokers.
Nova York: Harper Collins, 2020.
(15) Cf. O Futuro do Pensamento Brasileiro. Rio de Janeiro: Faculdade da Cidade, 1997, parte I.
(16) E neste sentido ele fez escola. Como noticiou Fábio Zanini na Folha de São Paulo, 10 de Maio de 2020, os
criadores do ZapBolsonaro (uma ferramenta que gerenciava uma rede com mais de 15000 pessoas engajadas na campanha
de Bolsonaro) romperam após a saída de Sérgio Moro do governo. Mas continuam remotamente a ajudar na “revolução”.
Carlos Nacli defende agora Moro e quer viabilizar a sua candidatura em 2022 (provavelmente como vice de Janaina
Paschoal). Mora em Portugal...Já Newton Martins mudou para Boston e, de lá, continua a defender Bolsonaro e sua
“revolução”. Usa a marca ZapBolsonaro no Twitter e no Youtube para, em uma distância segura, insuflar os ânimos por
aqui.
(17) Cf. Pierre BOURDIEU. A Distinção: crítica social do Julgamento. São Paulo e Porto Alegre: Edusc & Zouk,
2007.

Texto para Discussão. Unicamp. IE, Campinas, n. 380, maio 2020. 6


Olavo de Carvalho e a onda conservadora contemporânea

disto, a desigualdade não pode ser eliminada apenas pelo crescimento econômico, mesmo que
combinado com um complemento de renda e a provisão de competências técnicas para as camadas
inferiores da sociedade. O imbricamento entre a escassez de recursos e de acesso aos hábitos e padrões
de sociabilidade dos “vencedores” condena de antemão os inferiorizados. Neste sentido, para a ralé,18
o capital cultural e simbólico é uma barreira social muito mais difícil de ser rompida do que a renda.
E, para agravar a situação, além do habitual desprezo das elites, a ralé começa a sentir os valores
tradicionais que geralmente norteiam a sua vida ameaçados diretamente pelo “progressismo” dos
privilegiados.
É precisamente este amorfo setor social que constitui um pilar importante na insurgência
conservadora que alimenta a polarização social em nossos dias. Em um livro interessante, mas
exageradamente empolado, Martin Vasques de Souza – o intelectual, porém não idiota – enxerga esta
polarização como o choque entre a tirania dos especialistas e a “revolta do subsolo”, isto é, a titânica
colisão entre dois tipos distintos de totalitarismo. De um lado se situam os intelectuais19 que, isolados
da realidade, mas munidos de ideais abstratas, acreditam que possuem a solução para todas as tensões
da realidade social. Logo, de acordo com o seu próprio julgamento, são os únicos que possuem
sabedoria para conduzir as políticas públicas e, sobretudo, o projeto de moldar as relações
interpessoais da massa. Neste sentido, como advertem os conservadores mais céticos, eles encarnam
a recorrente revolta voluntarista contra a realidade que sempre naufraga. A despeito dos eventuais
floreios à liberdade e à democracia, tais intelectuais não passam de déspotas ilustrados. Na outra ponta
se situa a revolta do subsolo. Isto é, o levante de uma massa invisível e ressentida – que também
compreende a ralé, na definição de José Souza aqui apresentada – que contra-ataca os tiranetes da
elite em todas as frentes, combinando o anti-intelectualismo com uma extremada convicção redentora
de cunho religioso. Para ele – em flagrante exagero – este tsunami é comandado por Olavo de
Carvalho20. Embora propositalmente folclórico21, ele não tem toda essa força e penetração popular.
Mas não resta dúvida que, como já foi apontado, Olavo é uma das figuras mais proeminentes na
dimensão conservadora da revolta da ralé.
Parte dos estímulos à esta insurgência provém de determinações mais gerais. Em grande
parte, este recuo místico ao passado toma carona no mesmo processo que produziu a pletora de pós-
modernismos: a crise da modernidade. A dissolução das fronteiras entre natural e artificial, vivo e

(18) Neste caso, sigo a definição de Jessé SOUZA: “O processo de modernização brasileiro constitui não apenas as
novas classes sociais modernas que se apropriam diferencialmente dos capitais cultural e econômico. Ele constitui também
uma classe inteira de indivíduos, não só sem capital cultural nem econômico em qualquer medida significativa, mas
desprovida, esse é o aspecto fundamental, das precondições sociais, morais e culturais que permitem essa apropriação. é
essa classe social que designamos neste livro de “ralé” estrutural, não para “ofender” essas pessoas já tão sofridas e
humilhadas, mas para chamar a atenção, provocativamente, para nosso maior conflito social e político: o abandono social e
político, “consentido por toda a sociedade”, de toda uma classe de indivíduos “precarizados” que se reproduz há gerações
enquanto tal.” (A Ralé Brasileira. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2009, p. 21).
(19) Ele entende este termo em sentido lato: qualquer um que seja capaz de exercer influência cultural sobre a
sociedade (professores, cientistas, jornalistas, comunicadores, etc.).
(20) VASQUES DA CUNHA. A Tirania dos Especialistas: desde a revolta das elites do PT até a Revolta do Subsolo
de Olavo de Carvalho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.
(21) As suas declarações despropositadas – o adoçante da Pepsi é feito com fetos humanos, cigarro não faz mal à
saúde, etc. – são uma tática de guerrilha. Tentar desqualificá-lo nestes termos só reforça a sua mensagem para os olavetes:
vejam, estes “intelectuais” mordem a isca, rebatem minhas provocações com ataques pessoais, mas não entendem a “minha
filosofia”.

Texto para Discussão. Unicamp. IE, Campinas, n. 380, maio 2020. 7


Eduardo Barros Mariutti

inerte, homem e máquina, natureza e cultura trouxe um conjunto de perturbações adicionais a um


indivíduo que já se sentia estilhaçado e desprovido de sentido. Isto pode empurrar os homens para o
niilismo – o que é muito raro – ou para experiências místicas, ao estilo das que oferta Olavo. A pós-
modernidade é algo que seduz apenas as elites extremamente educadas, exatamente o alvo da ira da
ralé e dos olavetes. A esmagadora maioria, frente ao fim das ilusões progressistas da modernidade,
prefere um retorno ao mundo mágico da religião e as certezas dos valores “tradicionais”. Mas não se
trata de qualquer religião: é necessário que ela lhe traga não apenas conforto espiritual, mas, também,
alguma vantagem palpável e, sobretudo, que seja compatível com a sua experiência de vida. As
comunidades religiosas configuram uma rede de contatos importante, que gera oportunidades de
negócios e, também, mecanismos informais de proteção social. Esta é uma brecha importante para
recrutar novos combatentes dispostos a defender a tradição nas guerras culturais contra a degeneração
identificada aos “progressistas”.
A despeito do exagero e das distorções promovidas pela máquina clandestina de propaganda
por detrás do governo Bolsonaro capitaneada pela ala olavista, uma coisa é verdadeira: as ideias
“progressistas” – multiculturalismo, ecossocialismo, sexualidade não-binária, etc. – são proferidas
pela parcela mais branca, escolarizada e rica da sociedade brasileira22. Exatamente por isto não fica
difícil direcionar a ira da ralé contra “os socialistas de iPhone”. A tarefa ficou ainda mais fácil a partir
do segundo governo Lula que cooptou a quase totalidade da esquerda no imenso aparelho burocrático
comandado pelo PT que, como ficou patente, se baseia numa mescla de compadrio com corrupção
estrutural23. Frente a essa máquina o “gabinete do Ódio” é um dispositivo amadorista, que ainda está
engatinhando. Mas a direita avançou a passos largos em outros planos. Paulo Arantes já chamava a
atenção para algo que agora é cada vez mais evidente: a esquerda abandonou a política no sentido
forte, isto é, como luta social em todos os planos norteada por grandes expectativas. Em seu lugar
assumiu uma mentalidade essencialmente burocrática, centrada na governabilidade e salpicada por
discursos inflamados que não passam de jogo de cena. Isto abriu espaço para que a extrema direita
tomasse a iniciativa, fazendo a política ressurgir. Frente a isto, em uma divertida tirada, Arantes
salienta que foi a direita que encarnou de forma inusitada as estratégias leninistas de combate social.
Isso posto, podemos dar mais um passo. A definição situacional do conservadorismo que foi
apresentada a pouco é útil apenas para dar início à discussão. Quando se desperta uma vaga
conservadora nunca se sabe qual dimensão do conservadorismo irá preponderar: aquele arraigado na
prudência e no ceticismo (Burke) ou uma perigosa visão messiânica e redentora que, mediante um
líder carismático comandando uma seita de fanáticos, crê na possibilidade de utilizar o Estado para
destruir os obstáculos à regeneração da nação. O primeiro tipo de conservador crê que a sociedade é
o produto de múltiplas sedimentações e, sobretudo, da lenta consolidação de hábitos que levam um
período longo de tempo para se cristalizar. É difícil desconstruí-los: as grandes instituições e práticas

(22) Pablo Ortellado tem insistido com veemência nesta ideia em suas pesquisas e numerosas intervenções no debate
público. Além de muito mais ricos e escolarizados, os grupos que se auto definem como “progressistas” tem posições
extremamente coesas sobre questões morais referentes ao feminismo, drogas e ao racismo. Já os conservadores não
apresentam a mesma coerência: se definem enquanto grupo principalmente contra as políticas e as posições morais dos
progressistas. Precisamente por isto alegam – fantasiosamente, é claro – serem contra o establishment.
(23) O antipetismo é o elemento preponderante na reação conservadora e o único elo que perpassa forças sociais e
grupos de pressão muito heterogêneos que compreendem desde o MBL à movimentos pela restauração da monarquia. Olavo,
de forma sempre oportunista, pegou uma carona neste turbilhão.

Texto para Discussão. Unicamp. IE, Campinas, n. 380, maio 2020. 8


Olavo de Carvalho e a onda conservadora contemporânea

que resistem à prova do tempo geralmente conseguem se regenerar. Mas um abalo significativo pode,
de fato, por tudo a perder. Um conservador deste tipo pode se levantar frente ao que considera uma
ameaça fundamental aos seus valores e tradições, mas sempre de forma prudente e moderada, e
demarcando esferas onde ninguém – e muito menos e Estado – poder invadir. Logo, esta reação nunca
ocorre ao estilo dos conservadores que acreditam na possibilidade de uma sociedade perfeita: se
julgam os portadores diretos de valores transcendentais que, pela sua pureza, podem ser
implementados a qualquer custo. Pior: como estes valores são considerados naturais, uma política de
terra arrasada iria por si só destruir o artificialismo imposto à sociedade pelos “progressistas” e, deste
modo, abrir espaço para a regeneração espontânea dos valores conservadores. Esta é a verdadeira
ameaça. E, neste sentido, ao exercer influência no governo Bolsonaro, Olavo de Carvalho consegue,
de fato, estimular e dar alguma direção a essa dimensão da revolta conservadora.

As Garras da Esfinge: a missão salvífica de Olavo de Carvalho


O diagnóstico básico de Olavo é que testemunhamos um enfraquecimento generalizado do
espírito cristão no mundo. Isto, dentre diversos outros fatores, sinaliza uma crise civilizacional. A
própria modernidade tardia, ao desaguar em um niilismo deformado que concorre com um mundo
fragmentado de identidades, seria uma das expressões mais salientes do colapso da civilização. Contra
a noção de temporalidade reinante – que ele qualifica como um preconceito “cronocêntrico que faz
do hoje o umbigo e o topo das épocas” – Olavo visa restaurar o senso de eternidade vislumbrado pelos
grandes luminares do pensamento humano e, sobretudo, por algumas religiões e confrarias místicas.
Sentido, finalidade, valor e verdade são “uma só e mesma coisa”:
Mas como poderia o microcosmo cognoscente compreender o seu objeto, isto é, o fato histórico
tomado em sua singularidade, se este também não fosse uma imagem microcósmica do
cognoscível, uma mônada em cujas faces reverbera, sob uma forma particular e datada, o sentido
universal de todas as ações e pensamentos humanos possíveis? E o que se aplica aos fatos
singulares, com tanto mais fundamento se aplicará às culturas e civilizações: podemos
compreendê-las porque temos em potência, dentro de nós, os valores universais que as moldaram;
podem ser compreendidas, porque, na singularidade da sua forma historicamente dada, se abriga
um sentido universalmente compreensível, o que é o mesmo que dizer: um sentido válido, em
última instância, para todos os homens do mundo 24.

Logo, o alicerce do pensamento de Olavo, em sua faceta mais secular, repousa na aposta de
que existe um sentido universal que precede e garante a unidade do humano, e que ele pode ser
apreendido apenas por uma ascese individual.
Mas o seu projeto é, na realidade, messiânico. Para restaurar a civilização cristã ocidental é
necessário, primeiro, identificar os adversários. Um deles é a maçonaria, embora esta ameaça seja
apenas relativa25. Outro, mais ameaçador, são as intrusões islâmicas. E um terceiro, que não é

(24) Ibid, p. 22-23.


25 Cf. Olavo de CARVALHO. O Jardim das Aflições, p. 154-164. Algumas passagens são pitorescas. “Em primeiro
lugar, a religião do Novo Mundo é maçônica. Todos os signatários da Declaração da Independência, sem exceção, pertencem
a alguma loja maçônica. Desse momento em diante, ninguém, mas absolutamente ninguém faz carreira política nas três
Américas sem ter de entrar para a Maçonaria, prestar satisfações à Maçonaria ou enfrentar a Maçonaria. O fato é demasiado
notório para que seja preciso demonstrá-lo. A carreira de Fernando Henrique Cardoso – o político ruim de voto que,

Texto para Discussão. Unicamp. IE, Campinas, n. 380, maio 2020. 9


Eduardo Barros Mariutti

incompatível com o anterior: o famigerado projeto globalista organizado pela ONU e patrocinado por
alguns milionários que tem como objetivo criar um Estado mundial e destruir a tradição. Estas forças
têm um elemento comum: postular a equivalência entre todas as religiões tanto em dignidade quanto
em valor, como se todas partissem de uma mesma revelação fundamental. Neste sentido, à primeira
vista, há uma compatibilidade entre a “Nova Era” e a escola perenialista, da qual ele é um fervoroso
adepto. O fato é que Olavo se insurge com fúria contra qualquer tentativa de expandir o escopo desta
tradição e, sobretudo, em romper o dique entre os grandes mestres da espiritualidade e os seus
praticantes mais vulgares. Esta temática é recorrente em O Jardim das aflições26 e é reiterada com
veemência em “As Garras da Esfinge: René Guénon e a islamização do Ocidente”27, texto que
ocupará o primeiro plano neste momento. A constituição desta “religião biônica mundial, com todas
as características de uma paródia satânica” estaria no centro da guerra cultural contemporânea. Contra
esta blasfêmia, apoiando-se sobretudo em Frithjof Schuon (e usando René Guénon como uma muleta
provisória), Olavo busca marcar a diferença entre este falso universalismo28 e o universalismo
esotérico da escola tradicionalista ou perenialista, entendido como única salvação para a crise
civilizacional que nos aflige.
A primeira grande diferença é a pronunciada hierarquia que separa os grandes mestres dos
meros fiéis que, exatamente por conta da sua pobreza de espírito, devem se resignar a seguir
resignadamente a “lei religiosa obrigatória para todos”. Contra a “mixórdia sincretista” da Nova Era
e seus congêneres, os gigantes da escola perenialista – dentre os quais Olavo julga ser um dos mais
destacados – são os únicos genuinamente universalistas:
temos aqui um universalismo no sentido forte da palavra, uma visão abrangente e
ordenadora que não somente apreende com extrema agudeza os pontos comuns entre as
várias cosmovisões espirituais, mas dá a razão e fundamento da sua diversidade, de
modo que a essa articulação do uno e do múltiplo se subordina, na verdade, toda a
história universal das ideias e das crenças, das teorias e práticas, numa palavra: tudo o
que o ser humano fez e pensou na sua caminhada sobre a Terra. Não há praticamente
nada, nenhum fenômeno, nenhum pensamento, nenhum acontecimento fausto ou
infausto, que de algum modo não encontre alguma explicação “perenalista” eficiente e
persuasiva, quando não irrefutavelmente certa.
Dentre as diversas cosmovisões em luta, a escola perenialista está no topo, pois é “a mais
abrangente, que absorve e explica todas as outras”. Mas para atingir este patamar, além de uma rotina
infatigável de estudos, é fundamental promover uma revolução pessoal totalmente individual, onde
sozinho, contra todas as resistências, o fiel poderá encontrar em si mesmo, pelo “centro de sua

recebendo a iniciação maçônica, em poucos anos chega à presidência vencendo a candidatura aparentemente imbatível de
Luís Inácio Lula da Silva – ilustra-o novamente” (Ibid, p. 153-154).
(26) Que ele mesmo reputa como a sua terceira obra de combate (as duas primeiras: A Nova Era e a Revolução
Cultural e O Imbecil Coletivo). Cf. Ibid, p. 27.
(27) Verbum, Ano I, n. 1 e 2, Jul./Out. de 2016 (Mimeo.).
(28) “Grosso modo, a ideologia que gruda uns nos outros esses elementos heterogêneos e inconciliáveis é o
universalismo low brow da “Nova Era”, que, copiando mal e mal a linguagem da tradição hindu, proclama serem todas as
religiões nada mais que aspectos locais e acidentais assumidos por uma Revelação Primordial única, donde se conclui que,
por este ou aquele caminho, todo mundo chegará mais dia, menos dia, aos mais altos estágios da realização espiritual humana
ou mesmo sobre-humana.”

Texto para Discussão. Unicamp. IE, Campinas, n. 380, maio 2020. 10


Olavo de Carvalho e a onda conservadora contemporânea

existência” uma forma de aderir “ao senhor de toda a verdade”. Trata-se, portanto, de uma luta
interior que se expressa em uma batalha tenaz pela unidade do conhecimento na unidade da
consciência, decifrando deste modo o sentido primordial do ser29. E, insiste Olavo, raríssimos chegam
a este ponto. Mas os que chegam, isto é, quem tem sucesso neste processo de “seleção espontânea”
passa a fazer parte da verdadeira “elite intelectual” que deveria conduzir a humanidade.
Há, de fato, uma única “realidade suprema” ou uma única revelação primordial. Mas “a
unidade transcendente das religiões é mesmo transcendente, não imanente”. Elas estão unificadas
somente pelo topo, isto é, “pelo cume e núcleo vivo das suas concepções doutrinais, e não pela
variedade irredutível das suas liturgias, dos seus códigos morais e das suas diferentes ‘vias’ de
realização espiritual.” Logo, a convergência está nas concepções metafísicas30 das únicas religiões
legítimas (ou verdadeiramente tradicionais, por oposição à pseudotradição e a antitradição). Somente
os poucos que passaram pela seleção espontânea são capazes de compreender a Verdade Primordial
e, portanto, são os únicos capazes de superar as diferenças entre as religiões e, deste modo, perceber
a sua unidade. Isto é, deste ponto de vista privilegiado, “os vários exoterismos refletiriam, nas suas
diferenças, a unidade de um mesmo esoterismo primordial.”
No entanto, afirma Olavo, além da diferenciação horizontal entre as diversas tradições, é
importante marcar a distinção vertical, ou seja, entre as partes inferiores e superiores de cada tradição.
A parte inferior – exotérica – é suscetível demais às perturbações contingentes da vida popular e,
portanto, podem promover o afastamento e hostilidade entre as demais variantes legítimas. Já as
partes superiores, esotéricas, “refletem a eternidade imutável da Verdade, onde as tradições
convergem e se encontram”. Há a religião das massas, permeada de ritos e danações, e outra de elite,
os únicos capazes de apreender o “sentido último” da revelação universal. Os homens do povo, se
seguirem as normas ditadas pelos pastores, estão qualificados para obter a salvação post mortem de
suas almas. O cenário é distinto para os grandes homens:
Por meio de ritos de iniciação, os membros da elite obtêm já em vida, e muito acima da mera
“salvação”, a realização espiritual que os arrebata do simples “estado individual” de existência
para transfigurá-los na própria Realidade Última, ou Deus31.

Estes homens são os únicos que podem transitar entre as verdadeiras religiões32,
particularmente ao entraram em estado de “arrebatamento místico”. Após dizer que não se deve
explicitar muito isto ao público em geral, “que poderia escandalizar-se ante a decifração de um
mistério que deve permanecer opaco para a sua própria proteção espiritual”, ele destaca um problema:
apenas no islamismo a distinção entre exoterismo e esoterismo é constitutiva da doutrina. Nas demais
religiões esta distinção não está claramente fundamentada e, muitas vezes, é hostilizada, como é o
caso do cristianismo, que passou muito cedo a proibir as sociedades secretas.

(29) Cf. Martin VASQUES DA CUNHA. A Tirania dos Especialistas. Op. cit., p. 108-109.
(30) “Que é uma metafísica? É a estrutura da realidade universal, que desce desde o Primeiro Princípio infinito e
eterno até os seus inumeráveis reflexos no mundo manifestado, através de uma série de níveis ou planos de existência”
(Olavo de CARVALHO. As Garras... Op. cit.
(31) Ibid.
(32) A rigor, são apenas seis: cristianismo, islamismo e judaísmo, hinduísmo, budismo e zoroastrismo. A lista é, na
verdade, aberta. Nenhuma outra religião, além destas, chegou ao cume. Se chegar, a lista aumenta.

Texto para Discussão. Unicamp. IE, Campinas, n. 380, maio 2020. 11


Eduardo Barros Mariutti

É isto que, e, seu julgamento, é capaz de fazer “balançar” o edifício do perenialismo. Aí


começa a sua crítica à Guénon. Para este a Igreja Católica perdeu qualquer contato com a Tradição
Primordial e se converteu em uma instituição aduladora das massas.33 A sua crise é inevitável e tal
situação só poderia ser revertida de fora para dentro. O Ocidente, portanto, teria uma única via para
a salvação: o catolicismo só poderia se conectar novamente com a Tradição Primordial se se
permitisse ser guiado pelos mestres islâmicos. “Ou isso, ou a ocupação do Ocidente pelos
muçulmanos. Tertium non datur”. Aqui transparece a missão pessoal de Olavo. Libertar o catolicismo
não apenas do globalismo mas, também, dos agentes do islamismo, dentre os quais Guénon foi o
principal. Ele, com sua peculiar falta de modéstia, afirma que decifrou o enigma da esfinge: expôs o
projeto guenoniano de islamização do Ocidente, tirou os seus ensinamentos válidos e, portanto, “a
Esfinge não tem remédio senão soltar gentilmente a presa, que sairá das suas garras não somente
livre, mas fortalecida”.

A decadência da Inteligência brasileira e seu redentor: Olavo contra o “marxismo cultural”


Olavo de Carvalho foi um notório simpatizante do governo de Fernando Collor de Mello.
Notório e folclórico. A sua obsessão pelo “marxismo cultural” teve início durante o movimento pela
ética na política que favoreceu o seu impeachment. Esta falsa pela ética não passou de uma manobra
para garantir a conquista da hegemonia da esquerda na mídia, no sistema educacional e nos meios
artísticos34. No entanto, a fábula que Olavo construiu para se autovalorizar é ainda mais exótica do
que este diagnóstico. É bem sabido que mentes conspiratórias gostam de produzir fantasias sobre suas
próprias virtudes. Isto fica claro no capítulo 1 de O Jardim das Aflições, intitulado “A Nova História
da Ética”. Depois de dizer no primeiro parágrafo que um escritor educado “não deve ir logo de entrada
falando de si mesmo” ele logo pede desculpas: irá se auto congratular, ferindo as boas maneiras, mas
somente porque a ocasião era grave demais. Em uma espécie de arrebatamento – lendo o texto parece
mais um transe estimulado por alucinógenos – ele percebeu, em uma tarde de maio de 1990, os sinais
apocalípticos que anunciava o fim da inteligência brasileira.

(33) Até este ponto, Olavo não só endossa como, inclusive, atualiza a crítica de Guénon: “Não precisamos endossar
por completo a tese de Guénon para admitir o fato patente de que o cristianismo, malgrado sua imensa força de renovação
espiritual, não estava muito bem dotado para reorganizar a sociedade civil e política.”(...). “O cristianismo era
essencialmente uma “via de salvação”, que voltava as costas para este mundo, concentrando todos os esforços na busca da
Cidade Celeste. Para transformar-se numa força organizadora da Cidade Terrestre, ele teve de sofrer adaptações que
arriscaram deformá-lo profundamente. Não existe, em toda a História das Religiões, outro caso de uma moral religiosa que
tenha passado por tantas mudanças e transformações. A moral social cristã, com efeito, não emerge pronta e óbvia da letra
das escrituras, como a islâmica ou a judaica, mas se elabora aos poucos, ao fio de tremendas disputas dialéticas, por obra
dos teólogos e dos concílios, crescendo, não como a progressão linear de uma simples dedução lógica, mas como um
organismo vivente, entre dores e contradições”. (O Jardim... op. cit. p. 131-132). O reinado de Carlos Magno foi o único
período em que se manifestou um verdadeiro império cristão. “No restante da história europeia o Império é apenas uma
ideia unificadora, pairando no abstrato sobre um caos de principados e ducados perpetuamente em guerra uns com os outros.
De outro lado, e em função mesma do fracasso do Império, surge a transformação do papado num poder temporal
concorrente, com todo o seu cortejo de consequências nefastas. A principal, evidentemente, foi a mundanização do culto, o
rebaixamento da moral cristã a um receituário de exterioridades tão opressivo e falso quanto o moralismo estatal romano, a
cristalização progressiva da doutrina num formalismo lógico-jurídico deprimente e, por via de consequência, a politização
completa da religião na época pós-renascentista, como um conservadorismo monárquico, de início, que aos poucos iria se
transformando no seu contrário: num ativismo republicano, liberal e socialista” (Ibid, p. 132).
(34) Cf. Olavo de CARVALHO. O Jardim das Aflições. Op. cit., p. 24-25.

Texto para Discussão. Unicamp. IE, Campinas, n. 380, maio 2020. 12


Olavo de Carvalho e a onda conservadora contemporânea

O sinal que lhe perturbou a alma se manifestou ao assistir a conferência de José Américo
Motta Pessanha sobre a ética em Epicuro no MASP, patrocinado pela Secretaria Municipal da
Cultura. Ele, o único lúcido no recinto, percebeu o que ninguém podia:
Um público de quinhentas pessoas submetera-se à intoxicação com sonsa alegria, numa
deliquescência mórbida, como crianças a seguirem um novo flautista de Hamelin, sugestionadas
pela voz melíflua, pelo jogo de imagens que dava às lorotas mais óbvias um intenso colorido de
realidade. Puro feitiço, no melhor estilo Lair Ribeiro 35.

Jurando não querer parecer “um fanático, a espumar de cólera ante a opinião adversária”, ele
destacou a gravidade do que presenciara:
O que mais me impressionava, na trama de erros tecida por Pessanha, era a sua densidade. Não
havia ali uma única brecha por onde pudesse se introduzir uma discussão inteligente. Cada
palavra parecia calculada para desviar a atenção do ouvinte, impedi-lo de olhar o assunto de
frente, fixá-lo num estado de apatetada passividade ante o fluxo de sugestões, hipnotizá-lo e
arrastá-lo delicadamente pela argola do nariz até uma conclusão que ele já não estaria mais em
condições de julgar e à qual se curvaria com um sorriso de felicidade idiota e um mugido
voluptuoso. O grumo compacto de absurdidades exalava uma radiação debilitante sobre as
inteligências, produzia a acomodação progressiva a um estado de penumbra, de lucidez
diminuída, até que, perdida toda vontade de enxergar, a alma da vítima se amoldasse às trevas
como num leito fofo, aspirando o adocicado perfume do esquecimento 36.

Não se trata de um mero sofista. É muito mais grave do que isso. Para Olavo – talvez
personificando o finado Padre Quevedo – parece que os esquerdistas deram um salto e desenvolveram
o perigoso poder da mesmerização:
Não sei se me faço compreender. Há uma grande diferença entre o doutrinador que mete
simplesmente na cabeça das pessoas uma ideia errada e o feiticeiro que as adoece, debilitando
suas inteligências para que nunca mais atinem com a ideia certa. O primeiro move-se no reino
das palavras, que podem ser enfrentadas com palavras. O segundo exerce uma ação quase física,
produzindo feridas num estrato profundo que os meros argumentos não atingem. Feridas
insensíveis, que só começarão a doer quando for tarde para curá-las – e quando a lembrança de
sua origem estiver demasiado apagada para que se possa identificar o rosto do agressor 37.

Ele nos conta que a cena não era inédita, pois já tinha visto algo similar, mas nunca por
alguém abrigado pelo Estado e pelo prestígio da autoridade acadêmica. Só tinha presenciado essa
“ação quase física” sobre a mente produzida apenas por feiticeiros, clínicas psiquiátricas e em seitas
obscuras38.
O curioso é que estes feiticeiros das ideias, a crer na própria obra de Olavo, só podem ser
combatidos por um “filósofo” místico como ele. Um dos poucos que foi capaz de perceber um projeto
de global de dominação que atua pelo embotamento da mente das pessoas:

(35) Ibid, p. 22.


(36) Ibid, p. 22-23.
(37) Ibid, p. 23.
(38) Nunca vi nenhuma referência de Olavo ao filme Scanners: sua mente pode destruir. Acho que ele iria gostar.
Desenvolver a habilidade de destruir a distância a mente dos adversários seria a arma final da esquerda.

Texto para Discussão. Unicamp. IE, Campinas, n. 380, maio 2020. 13


Eduardo Barros Mariutti

A culminação de cem anos de pesquisas sobre o domínio psíquico do homem pelo homem é
alcançada no momento em que todas as elites – as que estão momentaneamente no poder e aquelas
que lutam para conquistá-lo – se unem num pacto contra a liberdade da consciência individual,
consagrando as técnicas de manipulação psicológica e de estimulação contraditória como armas
legítimas e aceitáveis na luta das ideias. A partir desse momento, pouco importa quem ganhe a
disputa: a humanidade perderá39.

E, um pouco depois desta frase ele enumera as forças que produzem os grilhões que
convertem os homens em cães de Pavlov: o pragmatismo, o neopositivismo, o marxismo (sem o
adjetivo cultural, que é recente), a pseudo-religião e a Nova Era.
Mas, como se sabe, para Olavo a figura mais perniciosa é Antonio Gramsci, o verdadeiro
fundador do “marxismo cultural” e artífice da estratégia que, em sua visão fantasiosa, fundamenta
toda a esquerda brasileira:
Gramsci ficou, dizia eu, meditando na cadeia. Mussolini, que o mandara prender, acreditava estar
prestando um serviço ao mundo com o silêncio que impunha àquele cérebro que ele julgava
temível. Aconteceu que no silêncio do cárcere o referido cérebro não parou de funcionar; apenas
começou a germinar ideias que dificilmente lhe teriam ocorrido na agitação das ruas. Homens
solitários voltam-se para dentro, tornam-se subjetivistas e profundos. Gramsci transformou a
estratégia comunista, de um grosso amálgama de retórica e força bruta, numa delicada
orquestração de influências sutis, penetrante como a Programação Neurolinguística e mais
perigosa, a longo prazo, do que toda a artilharia do Exército Vermelho. Se Lênin foi o teórico do
golpe de Estado, ele foi o estrategista da revolução psicológica que deve preceder e aplainar o
caminho para o golpe de Estado40.

Logo, por conta do cárcere, Gramsci teria percebido que era necessário amestrar o povo para
o socialismo antes da revolução. Isto é: fazer com que todos pensassem, agissem e se sentissem como
membros de um Estado comunista enquanto viviam em um quadro externo capitalista. Só depois de
assegurada esta hegemonia sobre os sentimentos e percepções do povo – o senso comum: o
“aglomerado de hábitos e expectativas, inconscientes ou semiconscientes na maior parte, que
governam o dia-a-dia das pessoas.” – poderia ocorrer a tomada formal do Estado.

O Pastor e Seus Discípulos: a salvação pela filosofia e a regeneração do Brasil


Coerente com a sua filiação à escola perenialista, Olavo de Carvalho afirma que a sua filosofia
só pode ser uma atividade esotérica, isto é, circunscrita a um grupo limitado de iniciados. No seu
caso, de clientes: todos os que estão dispostos a pagar pelo seu Curso Online de Filosofia, no qual ele

(39) Ibid, p. 65. Em outra obra ele diz algo similar: “No século XX, a consciência individual sofreu, das
pseudociências emergentes, os mais violentos ataques, que pretenderam negá-la, reduzi-la a um epifenômeno dos papéis
sociais introjetados, a uma projeção do instinto de sobrevivência, a uma ficção gramatical, a mil e uma formas do falso e do
ilusório. De outro lado, no campo das técnicas psicológicas, nunca se investiu tanto na busca de meios para subjugar a
consciência individual, quebrar sua autonomia, forçá-la a repetir mecanicamente o discurso coletivo. Se o nosso é o século
do marxismo, da psicanálise, do estruturalismo, é também o da hipnose, o das técnicas de influência subliminar, o da
lavagem cerebral, o da “modificação de comportamento” e o da Programação Neurolinguística. Se, por um lado, tudo se faz
para demonstrar teoricamente a inanidade da consciência individual, de outro lado não se poupam esforços para reprimi-la
e subjugá-la. Ora, estas duas séries de fatos, quando confrontadas, sugerem uma pergunta: para que tanto empenho em
derrotar na prática algo que, em teoria, não existe? Se o cavalo está morto, para que açoitá-lo com tanta fúria?” (A Nova Era
e a Revolução Cultural. Vide Editorial, 2017, p. 82).
(40) Ibid, p. 36.

Texto para Discussão. Unicamp. IE, Campinas, n. 380, maio 2020. 14


Olavo de Carvalho e a onda conservadora contemporânea

é o pastor e seu rebanho precisa renunciar a qualquer tipo de opinião ou de crítica até estarem prontos
para andarem com os próprios pés. E quando o discípulo está pronto? Somente o mestre pode saber.
Mas, adverte o libertador das almas, o curso pode durar até 5 anos e, contudo, nada garante que o
pupilo poderá estar entre os eleitos. No entanto, somente a leitura e as aulas on line não são suficientes.
A chave para quem pretende penetrar no âmago do seu ser e descobrir a verdade é a confissão:
A confissão, para Olavo, é aquele momento em que o aluno está disposto a mostrar a sua alma
com absoluta sinceridade, sem a suas máscaras sociais, sem os maneirismos e, o mais importante,
sem os tiques verbais impostos por uma existência histórica na qual todos vivem em um mundo
culturalmente devastado, cujas maiores representações são as universidades (em especial a USP)
e a grande mídia41.

Trata-se, portanto, da criação de uma seita, onde o iniciado faz um voto de “abstinência em
matéria de opinião”, entrega a sua interioridade ao mestre que irá moldá-lo em um homem novo.
Somente depois disto o indivíduo adquire a faculdade de pensar por si próprio e, assim, perceber a
verdade42 e, portanto, apto a fazer parte de uma “nova intelectualidade nacional” que opera
espontaneamente como uma espécie de fiscal da inteligência coletiva43.
Logo, como destacou com precisão Martins Vasquez da Cunha, o que Olavo propõe não é
exatamente um método formal – embora ele se arrisque de forma atrapalhada nesta direção também44
– mas a criação de uma nova comunidade de iniciados sob a liderança firme de um portador do saber
genuíno, a única forma de se chegar efetivamente à verdade – uma verdade que é, em seu julgamento,

(41) Martins VASQUES DA CUNHA. A Tirania... Op. cit., p.164-165.


(42) Na apostila “Inteligência e Verdade” – transcrição das duas primeiras aulas do seminário de filosofia em
Curitiba em agosto de 1994 – o guardião da inteligência nacional define o que por verdade: “Inteligência, no sentido em
que aqui emprego a palavra, no sentido que tem etimologicamente e no sentido em que se usava no tempo em que as palavras
tinham sentido, não quer dizer a habilidade de resolver problemas, a habilidade matemática, a imaginação visual, a aptidão
musical ou qualquer outro tipo de habilidade em especial. Quer dizer, da maneira mais geral e abrangente, a capacidade de
apreender a verdade. (...)”. Disponível em: https://olavodecarvalho.org/inteligencia-e-verdade/.
(43) Cf. Martins VASQUES DA CUNHA. A Tirania... Op. cit., p. 118.
(44) Para Olavo o método é sempre uma espécie de ascese interior operada por analogias que só podem ser
construídas intuitivamente, fato que torna estéril a tarefa de construir grandes sistemas filosóficos fechados (tarefa que ele
refuta, ao afirmar que isto correspondem o ofício dos burocratas do saber encastelados na Universidade). Essa passagem
ilustra bem isto: “Tendo encontrado o princípio superior que organiza os vários planos de uma sequência analógica, parece
que nada mais há a conhecer nesse domínio. Podemos ter aí a ilusão de ter alcançado, de uma vez, a verdade suprema. Na
prática, porém, quanto mais nos aproximamos de um princípio universal, mais vão ficando para trás e cada vez mais longe
as realidades concretas cuja explicação buscávamos. E, perto do topo, às vezes parecemos ter perdido de vista o propósito
da viagem. O momento do reencontro passa, e nada nos resta nas mãos senão o enunciado abstrato e sem vida de um
princípio lógico, que é a recordação melancólica de uma universalidade perdida. É preciso, portanto, descer novamente do
princípio às suas manifestações particulares, e depois subir de novo, e assim por diante. De modo que a alternância sim/não,
verdade/erro, que constitui para nós o início da investigação, é finalmente substituída, num giro de noventa graus, pela
alternância alto-baixo, universal-particular. Passamos da oscilação horizontal para a vertical. E é justamente o despertar da
capacidade de realizar em modo constante a subida e a descida, que constitui o objetivo de toda educação espiritual, sem a
qual a perspectiva que nos é oferecida pela dialética simbólica se torna para nós apenas miragem. Compreendemos assim
quanto é vão e pueril todo ensino da filosofia que permaneça no nível da pura discussão e não inclua uma disciplina da
alma. Que a filosofia tenha descido da condição de ascese interior para a de mero confronto de doutrinas num ambiente de
tagarelice mundana, é um mal de que o Ocidente, talvez, jamais poderá recuperar-se” (Olavo de CARVALHO. A Dialética
Simbólica. Campinas: Vide Editorial, 2015, p. 27).

Texto para Discussão. Unicamp. IE, Campinas, n. 380, maio 2020. 15


Eduardo Barros Mariutti

supratemporal. Neste sentido ele tende a ser percebido45 como a encarnação da revolução
conservadora, aquele tipo de conservadorismo otimista que rompe com a prudência por se julgar o
portador de valores fundamentais que devem preponderar sobre tudo e sobre todos.46 E, sem o
controle do Estado, é impossível fazer isso.

Considerações finais
Não há dúvida que Olavo de Carvalho possui erudição e tem muito talento com as palavras.
Entende a fundo – no espírito e na letra – a tradição perenialista que, na realidade, é o único
fundamento sólido em sua verborragia pseudofilosófica. É exibicionista, mal-educado e autoritário:
basta ver os seus vídeos mais recentes e, sobretudo, os testemunhos dos ex-olavetes que abandonaram
a seita47. A alcunha de Aiatolavo criada por Reinaldo Azevedo é, portanto, perfeita. Se esconde por
detrás de formulações enigmáticas e dúbias que, no fundo, não são muito diferentes das palestras
motivacionais dos coachs quânticos. A despeito da aderência de suas ideias em boa parte da onda
conservadora, Olavo e sua seita não passa de uma emulação barata dos milenarismos do século XII e
XIII: o líder carismático – geralmente um vigarista – agita a sociedade ao mobilizar os párias e os
ressentidos, mas sem trazer maiores consequências de longo prazo. O olavismo é apenas uma
ilustração da total ingovernabilidade do país, especialmente nos velhos termos. A ruptura é estrutural.
Não adianta mais olhar para 1988, para o marasmo do jogo de cena entre PT e PSDB. Essa era acabou.
Saudosismos e sebastianismo não resolvem nada. Padim Lula não salvará ninguém: sua mística
acabou e sua única preocupação é salvar a sua biografia. A estreiteza do debate público atual – o
“retorno do Estado”, como evitar a reeleição de Bolsonaro em 2022, etc. – é outra ilustração da
tragédia.

(45) Saliento a palavra percebido. Acho que Olavo só está interessado em clientes e em quem financie a sua vida na
Virgínia. Penso que, de fato, por algum momento ele desejou mesmo ser o embaixador do Brasil nos EUA, mas como até
mesmo Bolsonaro deve ter achado o pedido extravagante, ele desistiu da ideia.
(46) Francisco Razzo – que também pulou do barco olavista – escreveu um texto muito esclarecedor sobre isto na
ilustríssima: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/06/cruzada-conservadora-de-bolsonaro-so-faz-sentido-no-
twitter-diz-autor-conservador.shtml.
(47) Martins Vasquez da Cunha é um deles. Parte dos demais relatos podem ser encontrados aqui:
https://blogdacidadania.com.br/2019/01/ex-seguidores-de-olavo-de-carvalho-contam-o-que-os-fez-parar-de-admira-lo/.

Texto para Discussão. Unicamp. IE, Campinas, n. 380, maio 2020. 16

Você também pode gostar