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Entretien avec Raquel Varela

Revue Travailler, Numéro Spécial sur «Syndicalisme, Clinique du Travail et


Critique Sociale»

Duarte Rolo

1) Fez a sua tese de doutoramento sobre o papel do Partido Comunista Português na


Revolução Portuguesa de 25 de Abril de 1974. Subsequentemente, também produziu
inquéritos científicos sobre segurança social e o sistema público de saúde português. Mais
recentemente, o seu trabalho tem-se concentrado mais no estudo de diferentes categorias
socioprofissionais (estivadores, enfermeiros, professores etc.). Diria que seus interesses de
pesquisa têm evoluído ao largo do tempo? De que modo se fez a transição entre a análise
da Revolução dos Cravos e os estudos sociais do dito “mundo contemporâneo do trabalho”?
Há um fio condutor vermelho no que publiquei durante os anos, e que no fundo se resume
nisto – como se transformam as sociedades humanas? Como, afinal, mudam as relações sociais?
E isto numa perspectiva europeia e global, a partir de um certo internacionalismo metodológico.
É o que me interessa compreender e explicar. Há quem estude como se conservam os Estados
e as estruturas sociais, vistos de cima (a “estabilidade política”), que dinámicas e mecanismos
que fazem perdurar as instituições, o modo de vida, como os hábitos e os valores se prolongam?
Eu desejo estudar e compreender as rupturas, como se operam, enfim, as mudanças. Não como
as pessoas se adaptam a um contexto social em torno delas, mas como elas mudam esse ambiente.
E para tal é preciso atentar para as agências e o movimento social como um todo, vistos de baixo.
Eu estou já plenamente convencida de que há uma centralidade axiológica do/no trabalho para
se produzir conhecimento a respeito tanto das mudanças quanto das continuidades do ser social.
O eixo central tem a ver com como transformamos, a nós mesmos e ao mundo ao redor, com e
através de uma concepção ampliada do trabalho, como autêntico espectro da autodeterminação.
Para além e aquém de tudo isto – um dado é crucial: eu sou historiadora global do trabalho. A
História é a minha principal cartografia (e bússola) ao navegar os mares do conhecimento social.
Há ao menos três tipos básicos de métodos para mudanças, mas eles não são todos iguais.
O insight advém duma prolífica polémica histórica entre Edward Thompson e Perry Anderson.
Há tipos de mudança com intenções privadas (e.g. escolha conjugal ou desenho dum plano),
objetivos públicos (e.g. conflitos armados e iniciativas diplomáticas) e, ao fim e ao cabo, há os

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projectos colectivos (e.g. macrorreformas ou revoluções sociais). As mudanças que se operam
no seio das quatro paredes ou das comunidades políticas não alteram o todo das relações sociais.
Já nas revoluções alarga-se um horizonte de possíveis, mudança esta que nenhuma família ou
pequenos grupos logram realizar. Eu posso dar uma boa educação aos meus filhos, e criá-los
num milieu onde tenham acesso a bens essenciais e qualidade de vida, que vai determinar por
exemplo como eles casam e onde eles vivem; mas não posso dar-lhes trabalho livre e autónomo,
democracia política, um Estado social universal, tudo fatores que ampliam a sua liberdade a
sério, em que esses sim vão ampliar o seu espectro de autodeterminação – a forma como amam,
como trabalharão de forma criativa, como viverão uma esfera pública e sociabilidades densas,
como serão felizes ou não. Isto é, a conquista da emancipação política e humana nas revoluções
sociais totais muda nossa vida colectiva, de forma que os núcleos ou os millieux não conseguem.
Grande parte das ciências sociais estuda microcosmos – importantes, não quero desprezar
essa dimensão social – mas esses espaços dizem-nos pouco sobre como se operam mudanças
estruturais (se nos restringirmos a eles, diferentemente do que faz por exemplo a etnografia do
trabalho de Michael Burawoy – e o seu “método do estudo de caso ampliado”, por exemplo).
Por isso me interesso pela revolução e pelo trabalho – em Portugal e no mundo. Porque é aí que
tudo se decide, tudo se joga. Ou ao menos é onde tudo pode vir a decidir-se. O mundo do capital
– da produção para o lucro, da competição e poder armado, da força e da dominação social –
não pode ser combatido por criarmos um nicho familiar ou uma comunidade alternativa à parte,
por melhor que seja – na verdade, a tendência é justamente o contrário. Fechar-nos num bairro,
aldeia, família, ou seita, só nos fará mais conservadores, ainda quando sejamos formalmente
progressistas ou à esquerda. A nossa capacidade de mudar (e, portanto, de ser mudado) diminui.
Começamos a reproduzir rotinas, e tornamo-nos herméticos, porque nós vivemos fechados. O
retorno à família, sem espaço público, ou à pequena aldeia, atrasada, é uma reação defensiva.
Portanto no fundo estudar revoluções e trabalho é, assim, estudar como se cria a liberdade e se
expande o indivíduo. Interesso-me por revoluções porque me interesso pela máxima liberdade
e desenvolvimento do indivíduo. Quero espantar-me com o mundo – onde ele mesmo se espanta.
Para tal, é preciso compreender do ponto de vista global o que chamamos a “sociedade”,
isto é, como se dão as revoluções na tríade proposta pela teoria da revolução permanente: i)
como reinvindicações quotidianas e democráticas se transformam em radicais (como destapar
o cabelo no Irão se transforma numa greve contra a propriedade no sector petrolífero e questiona
o tipo de regime político); ii) como de regionais ou nacionais as revoluções ganham um caráter
internacional (como as primaveres árabes geraram contestação ao capitalismo em Nova Iorque,
fazendo regressar a palavra “socialismo” à América), iii) e como as lutas sociais e económicas

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políticas colocam em cima da mesa a transformação do dito modo de vida e das pessoas, a sua
subjectividade. Como um estivador ou um mineiro, o clichê do macho-alpha, passa a admirar
a mulher que faz um piquete com ele, e como ultrapassa o núcleo familiar estrito, onde pensava
ser feliz, e salta para a esfera pública e a ação política – de longe, este último tema é o que mais
me apaixona, as questões do modo de vida – como as pessoas mudam, quando mudam os países.
Por isso, insistir que há 50 milhões de “fascistas” no Brasil – sejam apoiantes de Bolsonaro
ou detratores de Lula – ou que o “povo europeu está todo resignado”, porque ganha melhor,
além de superficial é não compreender que a esfera da política e do político não é só sobre como
as pessoas são, mas como elas podem vir a ser. E devo confessar que ainda não cheguei de todo
a dominar a esfera da política ou da cultura tal como manejo a esfera do social e do económico...
A política, isso eu sei, é sobre dinâmicas – sejam de continuidade ou mudança, de cima ou
de baixo. Como Guimarães Rosa eu acredito que “a cabeça da gente é uma só, já as coisas que
há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores e diferentes, a gente tem de de
aumentar a cabeça, para o total” (in: Grande Sertão: Veredas). É sobre pessoas que fazem coisas
más, com ideias equívocas, e que, em circunstâncias sociais de mudança, fazem coisas boas,
mudam elas mesmas, ao mesmo tempo que mudam o mundo ao redor, tornando-o um lugar
mais humano. Essas pessoas – gente comum – criaram juntas – em ações políticas – um mundo
onde se expandiu como nunca na história este mesmo espectro da autodeterminação nos últimos
250 anos (antes sequer existia a ideia de transformação do mundo justamente porque este tipo
de agência histórica só foi inaugurada a partir da revolução norte-americana, francesa e russa):
direitos, liberdades e garantias; os direitos humanos, as liberdades sociais, as garantias laborais,
só são o que vieram a ser a partir dos ditos “projectos colectivos”. Nesse espaço-tempo as
organizações, os dirigentes tiveram um papel determinante, claro, e os partidos foram decisivos.
As pessoas nascem e morrem na mesma forma social em geral – e quiçá por isso se sobre-
valora o papel do código genético nos comportamentos em geral. Mas, quando há revoluções
sociais os mais arraigados hábitos, instituições, crenças e valores, mudam, com uma aceleração
histórica fenomenal. Ferdinand Braudel apaixonou-se pelo substrato granítico da permanência.
Trotsky, na inesquecível História da Revolução Russa – um dos melhores livros de sempre sobre
consciência e mudança social –, demonstrou a capacidade de mudança global produzida num
curto momento histórico em que a grande massa da população intervém conscientemente. Uma
revolução social é isso – quando milhões de pessoas passam a exercer a política diretamente.
A capacidade de transformação desse acto coletivo é única na história. É extraordinária, enfim...
Mas atenção! Há persistências e rupturas, ninguém o nega, a história é isso, mas a mim
interessam-me as rupturas revolucionárias. Acho fascinante que em 1974 uma mulher atrasada

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e semi-analfabeta faça um piquete de greve noturno e por isso durma fora de casa, contra os
pais, pela primeira vez; que um professor de temperamento discreto, temeroso, faça uma greve
aos exames e enfrente a polícia para ocupar a escola privada e católica que passa a ser pública
e laica; que um médico individualista, em concorrência permanente com os colegas, se junte
numa assembleia para impor urgências abertas num hospital, que passa então a público e
gratuito. O que acabei de dizer são exemplos verdadeiros da Revolução dos Cravos. E com isso
eles todos mudaram o país e mudaram-se a eles próprios – ela tornou-se pela dinâmica numa
defensora da emancipação feminina e da liberdade sexual, foi mais longe; eles ousaram
construir a escola pública, o SNS, ganharam coragem, sabedoria, enfim, aprenderam a cooperar.
Claro que agora há uma esquerda “politicamente correta” para quem todos os heróis da
classe trabalhadora são personagens planas, sem contradições, são vítimas e não-sujeitos
sociais. Bonzinho ou mauzinhos... Desde quando ficamos tão pobres?!? Isso não é património
das ideias de esquerda, mas da ausência de ideias de esquerda na sociedade. Na verdade, a crise
das organizações de trabalhadores é tão profunda que há toda uma ausência de pensamento de
esquerda, não há um pensamento independente do capital (e do seu mundo de produção e lucro).
Ora, estudar o Partido Comunista na Revolução de Abril era estudar uma das questões
vitais, se não mesmo a mais vital, da transformação da sociedade – o papel das organizações
políticas. Nos momentos-chave de confronto social decisivo (quase) tudo se resume a isto –
quem está politicamente organizado e como se decide o rumo das escolhas colectivas. Uma
revolução é um rio imparável – os Partidos decidem, nas lutas, para onde corre o rio, em resumo.
Vivemos tempos de grande desmobilização política. É difícil para as pessoas pensarem
que os partidos definem a nossa vida social, mas de facto definem. Também eu não me revejo
hoje em dia num partido – porque os partidos que lutam efetivamente pela transformação social
radical, onde eu gostaria de estar a valer, são algo próximo do irrelevante, e isso arrasta-os no
dogmatismo e sectarismo, é-me insuportável estar numa organização onde não se pode criticar,
questionar, negar. Tenho, porém, plena consciência de que os partidos realmente existentes
condicionam a minha vida e que se militasse num teria mais escolha do que tenho sobre os
destinos sociais. Só que os que existem não têm autênticas políticas radicais, isto é, de raiz. E
os que supostamente têm políticas radicais não tem densidade política e capilaridade social para
tal. O problema não é só do “reformismo sem reformas” – como afirmaram Chris Harman ou
Valerio Arcary décadas atrás – mas, já também, o de um “revolucionarismo sem revoluções”.
A militância não pode ser reduzida ao praticismo fetichizado, à fé de que a ação persistente ou
a intervenção directa guiar-nos-á inexoravelmente a um triunfo determinante. Não há nenhuma
rodovia aberta em direção ao socialismo que requeira colocar-se em um convulsivo movimento.

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Se a vida dos sujeitos é de circuito cíclico, não há hora ou lugar para mais nada – sequer pensar.
Consumir energias e repetir rotinas não gera nada de novo. A celeridade da prática tem o efeito
ilusório de rapidez na movimentação, mas de que serve a via calcorreada quando não se sai de
facto do lugar? Um dia frenético chega ao final e é sucedido por um que há de se repetir amanhã.
E depois vamos nos transformando em gente perigosamente igual: se falamos todos de maneira
parecida e agimos da mesma forma, os tiques de seita, como vamos conectar com a sociedade?
“É que Narciso acha feia o que não é espelho”, cantou Caetano Veloso. Passa-se a amar, atrair
e juntar só o mesmo tipo de pessoa. Se só estamos com quem pensa e age como nós a nossa
vida subjectiva, o mapa dos nossos afetos, a coordenada de referências, entra em parafuso. Girar
em torno de si mesmo não tem nada de revolucionário, a não ser que tenhamos uma concepção
algo astrológica de “revolução”. Sem o desafiante e desconhecido do Outro, não há identidade...
Voltando agora ao PCP. Este partido foi fundamental... para travar a revolução social, para
canalizar um rio de autodeterminação social para o Estado capitalista – esse movimento, para
mim um caminho totalmente contrário (socialismo é autoemancipação, não reforço do Estado),
é fascinante como questão científica e social. Como uma das maiores revoluções de sempre, a
dos Cravos, que mobilizou 3 milhões de pessoas em 10 milhões, numa democracia participativa
quase diária, um experimento político quase único na história da humanidade, foi derrotado por
dois Partidos, um de nome Socialista, outro de nome Comunista. Estudei o segundo. Temos
que lidar, como cientistas sociais, com a dialética viva, o principio da contradição. Publiquei o
livro História do PCP na Revolução dos Cravos, pondo abaixo o mito fundador, popularizado
pelo PS e em parte pelo PCP, de que o PCP queria “sovietizar” Portugal, pelo contrário, o PCP
foi contra as comissões de trabalhadores, de moradores e de lutas (os “sovietes” portugueses).
O PCP queria Angola, Portugal era da NATO e o seu papel era conter os movimentos sociais e
levá-los para o colo do Estado, onde disputava com o PS influência. O seu objetivo não era a
autoemancipação dos trabalhadores, mas disputar influência nos sindicatos, municípios e no
Estado liberal-parlamentar. Mas essa não é a versão oficial que irá se ouvir durante o que vão
ser as comemorações de Estado do 25 de Abril. Justamente porque os vencedores que contam
esta narrativa são aqueles que fizeram o 25 de Novembro. São, por isso, contra-revolucionários.
Em resumo, diria que os meus interesses de estudos demonstrados durante o Mestrado e o
Doutoramento – as transições ibéricas e a Revolução de Abril –, num momento em que se gera
o início da autonomia intelectual, foram sendo galvanizados e interpelados com novas questões,
novos desafios postos pela massa (Troika, burnout etc.) que precisavam duma História Pública.
Findei a Bolsa num período de grande crise, crise a qual carecia de se haver com a crítica social.
A atualidade dos problemas sociais, que deram lugar a Abril, foram tornados visíveis e densos...

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2. Como e por que se tornou uma historiadora global do trabalho? E qual é o seu
interesse pela questão do trabalho em particular?
Parte disso já respondi acima, veja: quando terminei o Doutoramento (2010), percebi que
algo estava por explicar – como um partido político que abafou a autonomia dos trabalhadores
ganhou a confiança social destes? Essa questão é muito mais difícil. É algo muito assombroso.
E, por isso, tinha que estudar os trabalhadores e como esse se comportam, como eles se
transformam, como ganham e perdem a chamada consciência de classe autoadjudicada (e como
ganham e perdem consciência de si mesmos) – foi o me propus fazer na História do Povo na
Revolução Portuguesa (“Un Peuple un Revolution”, Paris, Agone, 2021) – em que propus uma
visão do Estado e dos trabalhadores em que sinto que consegui iniciar uma dança entre a teoria
científica e investigação empírica, e propor algo novo como hipótese. Em toda a historiografia
da revolução as instituições estatais comandam – na minha há dualidade de poderes. Há Estado,
sindicatos e MFA. E há comissões de trabalhadores e moradores e soldados. Daí que proponho
mudar de cabeça para baixo a cronologia da revolução. Se uma greve não acontece via “decreto”
por que razão uma revolução poderia ser compreendida, historicamente, através das suas “leis”?
Tirei – bem espero! –, a revolução da camisa-de-força dos decretos e das leis, e devolvi-a
ao movimento real social. Isso foi mal-recebido, porque em Portugal domina a história política
e institucional e há um desconhecimento profundo da teoria da história – profundo e espantoso...
Trabalho em vários países, Portugal é de longe o lugar onde há mais ignorância de Teoria Social.
Fazem-se teses contando dia a dia algo e não se explica o movimento. É positivista. E, claro,
anti-marxista. Despreza as classes sociais, desconhece as classes trabalhadoras e capitalistas e
centra-se na história dos governos e instituições. É a história ao contrário – não logra explicar
de onde vimos, para onde vamos. Porque começa e acaba no telhado. O povo, as classes
trabalhadoras, os grupos subalternos são uma entidade inexistente ou anódina, só conta nas
eleições, legitimando as decisões políticas dos de cima. Ou então, entra-se na narrativa pós-
moderna, e só a “memória”, sem história, interessa. O povo ou é demonizado ou canonizado...
Ora, o povo votou mais nos locais de trabalho em 1974 e 1975 do que em qualquer momento
até hoje na história de Portugal, o mesmo povo que “sequestrou” a Assembleia Constituinte
eleita pelo povo... As pessoas repetem, ‘ad nauseam’, o oráculo de Churchill e outros sobre a
democracia liberal “ser péssima, mas o melhor dos sistemas”, é algo incrível que não nos
questionemos que outras formas de democracia podem existir no real, muito mais dialéticas,
cooperativas. E que não estudemos os seus exemplos – como o da democracia dos locais de
trabalho – para ajudar a pensar como enfrentamos a “crise das democracias” de hoje no mundo.

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Basicamente há duas teses hoje em confronto hoje sobre a revolução portuguesa (e que dizem
respeito à disputa política de hoje em Portugal, França, EUA...). A de Boaventura Sousa Santos,
que diz que os trabalhadores disputaram dentro do Estado direitos e conseguiram pressionar a
burguesia a aceitar reformas. E a outra, a que defendo, e que propõe-se a demonstrar que os
trabalhadores conquistaram esses direitos de forma democrática... contra o Estado, através da
sua auto-organização em comissões de trabalhadores, moradores, soldados. De baixo para cima.
Por dentro ou por fora do Estado, eis a questão. Boaventura não demonstra, faz uma
proposta que não tem sustentação empírica ou desenvolvimento teórico. Fiz empiria e teoria de
10 anos, apoiada em milhares de documentos, 8 arquivos internacionais, investiguei o
movimento social da revolução com detalhe: quase sector a sector, cidade a cidade, fábrica,
hospital, escola, empresa a empresa. Dia a dia. E submeti às mais desenvolvidas teorias da
revolução que existem, desenvolvendo um modelo com centralidade no dito controlo operário.
Não vi na realidade nada do que sustenta Boaventura. Boaventura diz que o Serviço Nacional
de Saúde nasceu em 1979, das exigências da sociedade; eu demonstro que foi imposto pelas
assembleias de médicos a exigir carreiras médicas, serviço médico à periferia, abertura de vagas
e urgências, ocupações reais de hospitais, expropriação no seguimento das ocupações, também
por utentes e profissionais da saúde, dos hospitais privados das Misericórdias, e organização da
gestão democrática. Fiz isto para as esferas da educação escolar, da produção fabril, do trabalho
de serviços, do sector da cultura etc. Estudar a dinâmica dos trabalhadores (operários, médicos,
professores, um amplo conjunto) é estudar a revolução. Fiquei muito feliz com o livro, é o meu
maior orgulho. Contribuí para devolver aos trabalhadores o que é deles e não sabem – o sentido
do que fizeram e do que eles mesmo muitas vezes atribuem não a si mas a outros (políticos,
governos, decretos!). Tinha demonstrado que a revolução é dos trabalhadores e são eles que
constroem o que de melhor este país conseguiu. Mas ficava outra grande questão por explicar...,
como tudo isto foi derrotado? Como os trabalhadores se “desmobilizaram” – tão rápido e tanto?
Como os trabalhadores perderam a confiança em si, deixaram o Estado (pós-25 de
Novembro) “tomar conta” da sociedade, sem que eles nada façam a não ser um voto de 4 em 4
anos, deslavado, desfidelizado, e claro, como perante a força política do neoliberalismo e da
força económica da reestruturação (que é a única forma possível de capitalismo nesta fase)
tinham sido historicamente derrotados. Não é possível explicar tudo isto “num só país”. Tanto
a revolução quanto a contra-revolução são vagas globais que se fertilizam reciprocamente. Não
é possível explicar os Pactos de la Moncloa, a transição política brasileira, sem aludir ao que se
passou em Portugal. Mas também não é possível contar a história da revolução portuguesa sem

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reconstituir as rebeliões do Maio de 1968 e as revoluções anti-coloniais que tiveram lugar em
África. Não à toa, escrevemos um livro que tem por título: “O 25 de Abril Começou em África”!
Tentei responder a isso a partir do lugar que me pareceu mais importante. A Lisnave e os
operários navais à escala global – o neoliberalismo para se impor teve um duplo movimento
(derrotar sindicatos combativos, como os mineiros e impor a concertação social, e cooptar os
dirigentes sindicais para as reformas antecipadas, e para assinarem as contratações dos
precários, substitui-se pleno emprego por subsídio de desemprego, direito ao trabalho por
assistencialismo social). A isso dediquei o projeto global de estudos dos operários navais no
renomado Instituto Internacional de História Social (Amsterdam), onde fui fazer o meu pós-
doutoramento. Onde aprendi graças, ao meu mentor, Marcel van der Linden, coisas fulcrais
para sempre – debater sem medo de discordar e estudar, mais a fundo, as interligações mundiais.
No caso português impor o neoliberalismo era, enfim, derrotar a Lisnave e o sindicalismo
combativo que os trabalhadores dessa representavam, impor a concertação social, aderir à UE
e prender Otelo – que era o único capaz de politicamente reagrupar a esquerda à esquerda do
PCP. Três anos de salários em atraso na Lisnave e impedir Otelo de concorrer nessas eleições,
foi essa a dinâmica do que se passou desde um processo global que implicou de facto a derrota
dos sectores combativos e aceitação de um novo regime de acumulação, muito semelhante ao
Século XIX – trabalho inseguro, longos horários de trabalho, grande concentração de capital
(com subcontratações) e crescente defesa pelo Estado dos acionistas (com a dívida privada
transformada em pública). Isto é o capitalismo tardio na sua fase de decadência – alta
concentração de riqueza, crescente pauperização geral – e expectativas cada vez mais em baixa.
Então veio a Troika, depois de 2011. E aí voltei as baterias para uma questão que a
sociedade (os trabalhadores e reformados) nos faziam – não era eu a fazer questões, era a
realidade a impor-nos uma questão, com a conversa dos “PIGs” e dos preguiçosos que só
gastam em “copos e gajas”. O Estado social é sustentável? E a Segurança Social, quem a paga?
Depois, com a derrota dos movimentos anti-Troika, pós-2013, e a Geringonça (2015-2019) -
que sedou o pouco que havia de lutas sociais (então na TAP e na Carris, e nos professores, entre
outros) – a pergunta veio também “de fora”. Estamos adoecidos e nós queremos saber o porquê.
Veja, sou uma historiadora marxista, uma das tradições historiográficas mais fecundas no
mundo (bastaria pensar no mundo de fala inglesa: Edward Thompson, Raymond Williams,
Christopher Hill, Eric Hobsbawm, Perry Anderson, Maurice Dobb, Rodney Hilton etc. etc. etc.)
e isso significa mais do que um slogan que me foi dado conhecer e estudar teoria social crítica
– sabemos muito bem os fundamentos da sociedade, os mecanismos elementares. Ninguém
inventou nada tão fundamental como Karl Marx sobre isso – afinal, como funciona a sociedade?

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Toda a origem do valor é o trabalho, pelo que é óbvio que o Estado social é pago pelos
trabalhadores. A metodologia que aplicámos é “keynesiana”, diz que há rendimentos do capital
e do trabalho, mas não há. Toda a riqueza produzida vem do trabalho, pelo que sim, o Estado
social é sustentável e pago pelo trabalho humano vivo. Mas fazer as contas, certas, foi
importante simbolicamente para os trabalhadores do país, perceberem aí, com cálculos oficiais
(keynesianos), que não deviam nada ao Estado, foi mobilizador. Mas claro, isso é parte das
insuficiências políticas dos trabalhadores – precisam de um “saber técnico”, um “especialista”,
que confirme o que eles sabem bem – é poder simbólico, é um capital cultural. É evidente que
o que entregamos ao Estado cada vez mais é desviado para acumulação de capital e menos para
serviços públicos. Mas ter “especialistas” a prová-lo parece essencial, em tempos de perda de
poder – por falta de organização – dos trabalhadores. Os trabalhadores têm que desenvolver os
intelectuais orgânicos no interior do próprio processo de produção social, e também tem de nos
perceber aos intelectuais – não como uma só e mesma “categoria social” – mas nas contradições.
Os intelectuais não são um sector à parte, há intelectuais em todas frações e classes sociais reais.

3. Nos últimos anos, foi solicitada por vários sindicatos, autarquias e ordens para
realizar inquéritos científicos sobre desgaste profissional e “job burnout”. Qual é o seu
entendimento acerca do interesse, dos sindicatos de trabalhadores, por estas formulações?
Agora chegou-nos a questão social do sofrimento no trabalho, que os sindicalistas e
trabalhadores, nomeiam burn-out, cansaço, exaustão. Haverá algo de novo? É evidente que o
que os trabalhadores sentem é o resultado da alienação e da reificação, da concorrência e da
mercantilização, não estão organizados contra isso, e isso deixa-os sós e, por isso, deprimidos.
A isto junta-se exaustão, porque o horário de trabalho no mundo e na Europa também está a
aumentar de facto, como demonstram os trabalhos do Professor Pietro Basso. E a solidão geral,
o esboroamento das famílias e comunidades, que é padrão na modernidade, não encontra, no
capitalismo global, alternativas sociais comunitárias ou esfera pública plebeia (sindicatos,
partidos, associações de trabalhadores, moradores). Ou seja, os nossos inquéritos ao mundo do
trabalho de facto não trazem nada de novo teoricamente sobre o sofrimento no trabalho (penso,
já lá irei, que trazem sobre as soluções) o que fazem sim é uma enorme sustentação empírica
deste fenómenos (o volume de dados que temos são raros, incluindo quando comparados com
outros projetos na Europa) e uma visão transdisciplinar, essa sim preciosa, sobretudo com o
casamento, maravilhoso, da história e das ciências sociais com a psicanálise e a medicina social.
Há novas formas e um imenso campo de estudo subjectivo sobre o sofrimento no trabalho
(quem mais luz lança sobre isso é do meu ponto de vista a da tradição marxista (lukacsiana,

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gramsciana e trotskiana) e a psicodinâmica do trabalho com Dejours e seu grupo de pesquisa
(com os estudos da organização do trabalho, gestão, sofrimento ético). Se lembrarmos da
tradição do intelectual colectivo formado pela chamada Teoria Crítica da Sociedade, e seu
intuito de relacionar marxismo crítico, sociologia académica e estudos psicanalíticos não seria
o caso de pensar na reinvenção da roda. Mas saber que os trabalhadores sofrem e que isso se
expandiu, aos sectores médios, proletarizados, para nós nada tem de novo, de forma substantiva.
Fizemos um trabalho conjunto sobre isto – e isso creio foi do que de melhor eu fiz como
investigadora nessa fase – aprender a trabalhar colectivamente, da qual nasceu o Observatório
para as Condições de Vida e Trabalho. É fascinante – e contra o neoliberalismo na academia –
termos construído num país semiperiférico um espaço-tempo onde trabalhamos conjuntamente,
sem padrões quantitativos de avaliação, apenas preocupados pela qualidade, sem concorrência
entre nós. Construímos algo como uma ilha de investigação cooperativa, talvez a metáfora não
seja adequada pois não estamos isolados, no meio de uma universidade-empresa, que trabalha
para um novo Deus-Mercado, com critérios quantitativos de avaliação dos investigadores. Nós
construímos em Portugal um campo de investigação de crítica independente do Estado e do
mercado, e apenas com critérios de qualidade do trabalho, autonomia, e cooperação. Já fizemos
mais de 15 projectos colectivos de fôlego com este padrão. Isso para mim é tão impressionante
como os objetos em si de trabalho. Devo dizer que o mérito é de alguns dos colegas que trazem
os métodos, do Brasil e da França, do “collective worker” – a ideia do “intelectual colectivo”
e do trabalho de cooperação (tão importante como o resultado é como chegamos lá em matéria
da forma social como trabalhamos uns com os outros). Ou seja, assinamos conjuntamente os
trabalhados, e divergimos, e colocamos e assumimos as divergências, e trabalhamos de forma
cooperativa, construindo, a pouco e pouco, um colectivo de trabalho. É muito difícil, e o mérito
não é meu – eu vinha de uma tradição de trabalho individual – ficar meses sozinha num arquivo.
Estamos agora a trabalhar em questões que colocamos nós. Como pode Portugal mudar?
Que classe trabalhadora é esta e como nós podemos, ao compreendê-la, ajudar a que tenha
confiança em si? De antemão afirmo, o país per se não é viável. A única saída para este país,
como para a Europa, sem guerras, não é a EU, mas um novo internacionalismo com inspiração
na AIT – ou os trabalhadores constroem novas formas de solidariedade internacional, ou
seremos todos esmagados. Não tenho dúvidas nenhumas que a invasão de Putin na Ucrânia é a
mesma da NATO – ambos disputam matérias primas. A “transição verde” é uma restruturação
de capitais, nada tem de realmente ecológico; a reconversão digital é a apoteose distópica,
precisamos de relações reais, próximas, afectos, humanizar-nos, diminuir o horário de trabalho,
ter professores reais e não Ipads, cidades pequenas sem carros, não de carros “verdes”;

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revolucionário hoje não é luta por uma nova casa de banho trans ou até sem género, é a luta
pelo emprego para que qualquer indivíduo ou casal (de qualquer orientação) possa sonhar em
ser independente e ter uma vida, comum, feliz. O direito a ter cônjuges está posto em causa não
principalmente pelos preconceitos, mas pelo capital – não há emprego seguro. Revolucionário
é defender professores magistrais, face a face, e não dinheiro para ipads. Revolucionário é
defender tempo para pensar na universidade e não as “aplicações para o mercado” – banalizantes.
A construção do Observatório, este colaboratório interdisciplinar representa esse encontro
– e aquilo que Georges Sorel chamou “espírito de cisão”. Contra o Estado e o mercado, ou
seja, a razão crítica e a ciência social contra o poder e o dinheiro. Essa é a função da ciência,
questionar o poder, indagar a autoridade, derrubar dogmas e Deuses, Igrejas ou Bancos. É uma
felicidade termos conseguido em Portugal esta junção de massa crítica, porque o país está a
perder quadros. Precisamos uns dos outros para trabalhar – eu diria, ao contrário do que dissera
Sartre, que o Paraíso são os outros. O inferno é a solidão. Em tudo. Estamos, cada vez mais, sós.
Ver hoje as Universidades Públicas afirmarem que têm que se voltar para o mercado, fazer
doutoramentos em empresas, quando a Universidade foi o lugar onde se criticou o poder divino
e hoje teria que ser o lugar de onde se criticam o despotismo do Estado e a tirania do mercado.
O que é mais interessante nos nossos estudos é o mais óbvio – a centralidade do trabalho.
Dejours explica-o de forma didática – o trabalho, como trabalhamos, onde, quem, para
produzir o quê, em que condições, é aquilo determina as sociedades e a nossa formação – diz-
me como trabalhas, dir-te-ei quem és; trabalho, logo existo – é aí que se exerce o nosso sentido
de existência social, na criação/produção de algo, e desde a linguagem, ao pensamento, dos
sentimentos à própria postura física, tudo é mediado por relações, e formado no próprio labor.

“A tese conhecida como 'centralidade do trabalho' mostra que o trabalho desempenha um papel essencial de
formação da esfera pública, pois trabalhar não é tão-só produzir: trabalhar é ainda viver-junto. Ora, viver-junto
não é produto de geração espontânea; pressupõe uma atenção em relação ao outro, um respeito pelo diferente e
contribuições extremamente complexas por parte de todos, na luta contra o poder dos interesses privados. O
trabalho é mesmo, certamente, o locus principal em que se realiza o aprendizado da democracia. Mas se a
renovação do viver-junto fracassa, então o trabalho pode se tornar uma perigosa força de destruição da democracia
e de difusão do cinismo, do cada-um-por-si.(...) O individualismo é uma derrota e não um ideal.” (Dejours, C. A
loucura do trabalho. Cortez Editora, São Paulo, 1993, p.23).

O saudoso Coimbra de Matos dizia que no princípio não foi o verbo, foi a relação – e
compreendeu, esse nosso mestre, que a relação do local de trabalho tinha-se tornado central,
tanto quanto a relação com os pais, nos primeiros anos de vida, ou na adolescência ou juventude.

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As sociedades todos os dias respondem, através do trabalho, a esta questão vital – como
produzimos e nos reproduzimos. Mas o trabalho no sistema capitalista é alienado – produz-se
valores de troca e não de uso (coisas lucrativas e não importantes), com pouca qualidade
(obscolescência programada), sem criatividade (padronização serializada), e somos nós que
estamos a produzir estas autenticas porcarias – isso aliena-nos, faz-nos zangar com o trabalho.
Se eu produzo um produto ou serviço mau fico mal comigo mesma. Se eu sou professora numa
escola, educo os meus alunos mas pelas condições que me dão não lhes entrego a melhor da
educação que a humanidade pode dar então eu fico mal comigo. Aqui entramos em questões
fulcrais do brio, reconhecimento, e, no limite, sofrimento ético. Tudo se envolve numa mentira
gigantesca – e podemos mentir acordados, ao nosso inconsciente não podemos mentir. Já vi
professores a dizer que os alunos é que são ignorantes, médicos a dizerem que os doentes são
chatos, se for a um serviço público, ineficiente e injusto, respondem-lhe “só cumpro ordens”,
numa empresa privada estamos à mercê do poder total – uma companhia aérea, a Ibéria, deixou-
me mais de 4 horas a espera de um voo, aterrei numa capital africana às 3 da manhã, morta de
medo, até hoje não consigo contactar com eles, só existe um formulário online, respondem que
não há sequer um e-mail, e respondem-me que por “motivos alheios” à empresa não podemos
compensar. Não é no público, é no público e no privado – há uma degradação geral do que
produzimos. O que produzimos é lucro. O que produzimos é também como produzimos, claro...
O que as pessoas comuns, deixadas na ignorância económica e política – graças ao
economês das Business Schools e aos Media, que representam interesses, lá está – não
percebem é que lucro não é riqueza social. Nós temos que produzir riqueza social, e o lucro
impede a produção de riqueza social. É uma riqueza social atender bem os doentes, ensinar bem
os alunos, isso enriquece a sociedade que produz cada vez melhor, mas se eu corto nos salários
e os obrigo as horas extraordinárias eu vou engordar o lucro de quem investe na dívida publica.
Vou perder riqueza para a sociedade. Esta forma de defasagem ou torcicolo ideológico faz mal.
Ora, o que Dejours explica é inequívoco, mas contraintuitivo. Se não há democracia no
local de trabalho, que é o lugar mais importante, não há democracia na sociedade. Se no trabalho
estou 8 horas a obedecer, sem decidir, sem pensar no que faço, executando ordens de quem já
as pensou, isso vai me tornar alienado, e sacana, e em casa, no bairro, serei uma continuidade
disso – um alienado e um sacana. É uma farsa pensar que existe democracia porque se vota de
4 em 4 anos. É um delírio. Mais, essa centralidade do trabalho, como demonstra Lukács, entre
outros, é a nosso autêntica ontologia do ser social – somos como trabalhamos. Na humanidade
inventamos instrumentos para produzir e nomes para os classificar, a linguagem. E educação

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para os ensinar às crianças que vinham, e com isso desenvolvemos o cérebro, o pensamento,
pensamos o que fazemos e com o que fazemos desenvolvemos o cérebro. E legamos ao jovens.
Por isso é incrível que hoje a esquerda aceita o subsídio de desemprego e o assistencialismo
social como panaceia contra a barbárie social. O trabalho é essencial, o desemprego é, já o dizia
Engels, o máximo da alienação (Rosa, Trotsky, e agora Bellamy Foster tocaram muito nestas
questões da subjetividade social, que em geral os partidos da esquerda radical desprezam). Há
um debate grande, raramente feito, sobre o sentido do trabalho. Muitos acreditam que devemos
libertar-nos do trabalho para o ócio – eu acho que o trabalho é fundamental para nos definir –
“diz-me como trabalhas, dir-te-ei quem és”. Senti sempre, desde a minha formação política
marxista, que o trabalho era o central na sociedade, e que por isso mesmo quem trabalha (a
classe trabalhadora organizada) teriam uma força social autônoma para mudar a sociedade
moderna capitalista que nenhum outro sector poderia ter... É um poder real, mas ainda potencial.

4. Pode dizer-nos algo sobre os resultados destes inquéritos? Que revelam eles sobre
a situação da classe trabalhadora em Portugal?
Revelam níveis brutas de exaustão laboral. Em média entre 50 a 80% dos trabalhadores
dizem-se esgotados, querem fugir do trabalho, não queriam que o filhos seguissem os seus
passos e, com 30, 40 ou 60 anos, é indiferente a idade, sonham em reformar-se, mais de 50%;
70% estão endividados ao Banco, em geral com um bem essencial, a casa, mais de metade teme
perder o emprego e ao mesmo tempo quer fugir do emprego; entre 25 a 50% dizem-se alvo de
assédio moral. Há uma ditadura nos locais de trabalho, a gestão quando não é democrática e
exige altos níveis de produtividade para destruir a concorrência está a levar aquilo que nós
viemos a denominar “obscolescência programada da força de trabalho”. Os governos permitem
laboração contínua, de sábado a sábado, horários noturnos regulares, trabalhos extra,
intensidade acrescida (obrigam os que estão a fazer o trabalho dos despedidos e/ou reformados),
e cada vez menos salário real – o resultado é a gestão pelo chicote. É isso que hoje se passa nos
locais de trabalho. Uma barbaridade. É uma epidemia de mal-estar e sofrimento generalizado.
Isto em médicos, enfermeiros, professores, motoristas, estivadores, pessoal de cabine,
operários... Mais de 20% está medicado para isto – ora, como se houvesse medicamento para a
infelicidade no trabalho! O remédio para a infelicidade laboral passa pela reorganização laboral.
Achamos que todos contamos o mesmo, mas socialmente não é assim. Aquilo que é
determinante no rumo das sociedades é a organização da Pólis. A burguesia domina porque tem
poder e organização – são poucos e a sua opção económica é devastadora – vivemos a maior
crise económica, social e política de sempre do capitalismo, com metade da humanidade a

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passar fome, a ameaça de uma Terceira Guerra Mundial, milhões de trabalhadores sem trabalho
ou vida, migrações forçadas, desesperança no futuro. Putin, NATO, inflacção, confronto com
China, nada disto é causa da crise, mas já sintoma da crise. O capitalismo é a guerra. Uma
guerra e contra-revolução permanente. Não à toa as conferências bianuais da Historical
Materialism tiveram títulos tão eloquentes como, este ano, “Facyng the Abiss”. Tudo isto tem
um denominador comum – o mais-valor. Uma sociedade assente na competição entre Estados
e entre empresas leva à competição entre pessoas, no limite, à guerra. Todos contra todos. Este
caos e irracionalidade, não sobrevive porque tem apoio social. Sobrevive porque tem o Estado
a apoiar esta classe e porque ela se organiza em partidos políticos (que tomam a forma oficial
de partidos, ou de grupos, associações, jornais etc.). E conta com a desorganização e crise do
campo de esquerda, socialista, alternativo. Os trabalhadores, na sua maioria, não se veem sequer
como alternativa. Nos estudos fica claro, creio, que a maioria se acha vítima, e não um “sujeito”.
Falta o “sujeito do trabalho” que se traduza enquanto “agente da sociedade”. E isso é da política.
Estive em Londres, onde vi uma peça no Teatro Nacional, baseada numa história real, de
uma família afegã a fugir da morte, levaram 1 ano e meio na mão de traficantes para atravessar
a Europa, com 3 filhos, quase sufocaram num camião; estive em Budapeste, os ciganos
perderam o emprego depois de 1989 e são tratados como animais, ficam no chão a pedir; fui
depois para Hamburgo, onde estive com uma imigrante portuguesa que desistiu de Portugal
pelos salários baixos, era ajudante de enfermagem veterinária, ganha mais como empregada de
mesa na Alemanha, uma mulher altiva, determinada, mas que representa este exilio a que os
governos chamam orgulhosamente “diáspora”; estive no Senegal, percorri 300 km entre Dakar
e St. Louis, não vi um prédio intacto a não ser o da polícia, milhares de pessoas catatónicas nas
ruas, sem nada para fazer; vou ao supermercado em Portugal e sofro horrores – vejo as pessoas
comprarem alimentos maus, e poucos, com um olhar triste, infinito; em Cuba estive com um
empresário médio que foi à Arábia Saudita beber um vinho qualquer da Nova Zelândia de jacto
particular; há na Europa milhões de pessoas exaustas com horários de trabalho do século XIX
e milhões de desempregados a vegetar à espera de nada. Vivemos num manicómio… A única
maneira de não enlouquecer é lutar contra isto. É um pouco como nos locais de trabalho – a
única forma que os trabalhadores têm de não enlouquecer é se desligarem completamente do
trabalho (ficando deprimidos, alienados, desvinculam-se dos doentes, dos alunos, dos objectos,
das matérias, tudo lhes é alheio); ou – a versão vinculada – organizar e lutar contra as condições
de trabalho e vida (em que re-ganham confiança e sentido colectivo, companheirismo etc. etc.).
Quando lutamos em colectivo juntamo-nos de novo com as pessoas, voltamos a pertencer
ao género humano. A luta contra a competição, feita de forma cooperativa, faz-nos regressar ao

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género humano. Lembro-me de um estivador me ter dito que na greve até se esquecia da doença
grave que tinha – era uma forma de dizer que na greve, junto, se tinha reconciliado com os seus
pares – o dia a dia de trabalho impõe a competição, a luta pela sobrevivência, mas a luta impõe
a cooperação. Os locais de trabalho hoje só fazem sentido como locais de luta contra as
condições de trabalho e vida. Há uma urgência mundial para acabar com o capitalismo. O que
não sabemos é como acabar e o que fazer depois. Que não funciona é evidente. Não há um
governo, um único no mundo, que vagamente esteja fora deste barco, que é uma nau de loucos.
A onda de greves nos EUA e no Reino Unido, a qual ameaça agora nesta ser greve geral;
os motores, em tempos distintos, do capitalismo global, debatem agora a palavra socialismo e
a expressão classe trabalhadora, sem medo; os novos movimentos sindicais um pouco por toda
a Europa, de Portugal à Holanda; na Índia todos os dias marcham dezenas de milhar de pessoas
contra o governo; as manifestações que acabaram em 2 dias com a política medieval de 3 anos
de confinamentos cíclicos na China. Pese embora o discurso neoliberal de que ou aguentamos
isto ou tudo o que questione é dar espaço ao fascismo – como a sopa capitalista porque se não
vem lá o papão –, o que se sabe da história é que estes tempos de encruzilhada são também os
tempos em que movimentos sociais populares, de baixo, democráticos, do mundo do trabalho,
emergem. E obrigam a colocar a humanidade, a paz, a cooperação no centro da política do
mundo. Este ano milionários foram ao espaço, ao mesmo tempo que milhares de trabalhadores
fizeram greve na terra onde constroem e produzem a fortuna ignóbil desta gente. O mundo
transforma-se para melhor quando os trabalhadores se movem, e transforma-se para pior
quando os trabalhadores são derrotados, disso não tenho dúvidas. A questão, porém, muito mais
difícil, é como se movem e para onde se movem os trabalhadores, entendidos claro numa
perspetiva ampla – os que vivem do trabalho, hoje em dia, esmagadora maioria das sociedades?
A burguesia era uma força transformadora no século XVIII e inícios do século XIX. O seu
enfrentamento revolucionário contra a nobreza fundiária arrastou a sociedade para avanços
extraordinários no campo da política, mas também das ciências, das artes, da cultura, da
literatura. Hoje é fundamentalmente uma força conservadora – pese embora o deslumbre das
pessoas com avanços tecnológicos a verdade é que há muitos poucos avanços e em muitos casos
retrocessos. Isto porque é a burguesia que está no poder e o seu movimento é conservar o poder.
Isso arrasta uma atitude conservadora. A quimioterapia e o tratamento do cancro é o mesmo
(mudam apenas as combinações) de-há 50 anos, cruzar o Atlântico leva o mesmo tempo; se
entramos no campo das artes ou das humanidades é deprimente – comparar hoje qualquer
pintura com o impressionismo ou as vanguardas soviéticas; acho incrível que hoje se afirmem
como inovadoras descobertas (deslumbrados com a tecnologia das ressonâncias magnéticas...)

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no campo da neuropsicologia que Luria, Leontiev ou Vigótski fizeram depois da Revolução de
Outubro... sem sequer traço da RM; no campo da história somos uma pálida imagem da
capacidade analítica da primeira e da segunda geração do marxismo ocidental, de Lenine a Rosa
– alguém explicou melhor, em milhares de universidades, sobre como funciona o imperialismo,
o militarismo, o expansionismo? O melhor exemplo ilustrativo talvez seja o da pandemia, a
solução proposta pelos governos do mundo foi medieval – não lhes ocorreu uma biopolítica
verdadeiramente democrática, de baixo para cima, com profissionais de saúde de comunidade
a monitorizar os doentes, transformação de hotéis em lares para proteger os idosos, que foram
a grande fatia dos mortos – fecharam as pessoas em casa e ligavam-lhes com um algoritmo a
perguntar se o som que faziam era de falta de ar. Recomendo fortemente os trabalhos de
Panagiotis Sotiris a este respeito. Alguém poderá dizer, sim, há a Internet, que mudou e
intensificou o trabalho e as comunicações, mas tirando essa, que aliás remonta ao militarismo
do pós-guerra, o que existe de inovador na sociedade é mínimo. São as revoluções dos
trabalhadores que colocam em marcha a inovação cientifica e cultural mais avançada.
Seguiram-se em muitos casos contra-revoluções – uma farsa que de socialismo só tinha o nome.
Mas não se pode baralhar a obra da revolução social com a lavra da contra-revolução estalinista.
É preciso distinguir historicamente aquilo que nomeia a emancipação e aquilo que nomeia o
assujeitamento – aquilo que dá o nome ao movimento activo das classes trabalhadoras e aquilo
que é nomeado por Stalin, Tito, Mao Zedong, Pol Pot, Ho Chi Minh ou mesmo Fidel Castro.
Há uma profunda descontinuidade entre essas duas instâncias. É preciso chamar o mal pelo seu
próprio nome, e – de resto – pelo seu nome próprio... Só assim será possível falar em revoluções.

5. Sente que o aumento dos problemas de saúde mental no trabalho está a levar os
sindicatos a alterar as suas estratégias de ação?
Há um novo sindicalismo, que é mais basista, organiza plenários, fundos de greve,
envolve-se nas comunidades, faz greves de solidariedade dos fixos com os precários, abraça
causas políticas e sociais, debate a subjectividade, tenta formar quadros, envolve-se com os
movimentos sociais (coletes amarelos, movimento climático, feminista, etc). Mas as pessoas
estão muito desconfiadas e aderem pouco – embora esteja em alguns sectores e em alguns países
a mudar (nos EUA e na Inglaterra). Os sindicatos têm sido empurrados pelos seus trabalhadores
para uma situação nova, com as quais os dirigentes sindicais na sua maioria ou não sabem lidar,
ou não querem, ou ambos casos. Mas é preciso verificar, caso a caso, o que se passa nos sectores.
Primeiro é preciso compreender que o pacto social erodiu todas as lideranças. Conheço
sindicatos que querem renovar líder e não têm como, não se formaram quadros. Mas na maioria

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não querem novos líderes porque os dirigentes sindicais sabem que se apoiarem lutas radicais,
nessas lutas urgem novas lideranças, que os destronam a eles. E a maioria dos dirigentes
sindicais não quer voltar para o local de trabalho, quer eternizar-se na direção do sindicato. Ora,
se não há lutas e ganhos há desvinculação sindical e política, este é o nó górdio. E um desastre.
O sindicalismo está a atravessar uma fase de mudança, na verdade perecimento do meu
ponto de vista. Ou mudam ou morrem. Fiz um ensaio depois da Troika (Para onde vai Portugal?)
onde errei profundamente numa ideia e acertei, bastante, na outra. A que errei foi não ter em
conta a “válvula de escape” da imigração – os países exportam e importam mão de obra, e esta
é politicamente desorganizada – é um verdadeiro “dumping social”, que rebaixa os salários em
todo o mundo. Não só por racismo, mas por ausência de organização política. A imigração já é
em si uma saída individual, de milhões, mas individual, se não há organização politica os
migrantes tornam-se pressão para baixar os salários, mercadoria, à escala de milhões. Em Itália
há um belo exemplo de uma central sindical, Ci.Cobas, dirigida por bordiguistas e trotskistas
que conseguiu ganhos enormes ao sindicalizar mirantes e nativos e com ações combativas. Mas
é por agora caso raro. Em Portugal meio milhão de pessoas abandonaram o país depois das
grande manifestação anti-Troika – lutaram, perderam (porque os partidos canalizaram tudo para
eleições, como se aí se mudasse algo...), desistiram e ainda mandam divisas. É o paraíso dos
governos. Choram lágrimas de crocodilo com a diáspora no dia da Nação, mas adoram
desenvencilhar-se da pressão interna. Enfim, falhei, não percebi que a imigração ia dar um
balão de oxigénio ao regime por mais dez anos. E deu. Mas acertei, perfeitamente, na outra –
escrevi que o sindicalismo do pacto social morreu, sem regresso, encerrou o seu ciclo histórico.
Não há, argumentei nesse livro, capacidade para migalhas de pacto social – a burguesia
portuguesa vendeu dedos e anéis. Nada funciona, nem o público nem o privado, nem casa uma
pessoa da chamada classe média alta consegue pagar. As classes dirigentes nada têm a oferecer
para conseguir captar uma parte dos trabalhadores. O sindicalismo da concertação social, sem
pacto social, não pode sobreviver. Nisso acertei. Percebi que havia um vazio que ia ser
preenchido por um novo sindicalismo, combativo, democrático, com base em plenários, fundos
de greve, independente dos partidos do Estado. E surgiu: nos estivadores, enfermeiros,
trabalhadores da AutoEuropa, motoristas de matérias perigosas, e professores secundários.
Claro, quando surgiram muitos cometeram erros de palmatória, não sabem organizar-se e o
Governo caiu em cima deles com medidas ignóbeis como a requisição civil e militar. Mas o seu
aparecimento e fortalecimento é inevitável. Os próximos anos serão de novos sindicatos,
partidos e o Estado vai reagir cada vez mais com medidas bonapartistas – os confinamentos da

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pandemia, que nada fizeram pela saúde pública, porque 70% da população nunca se pode
confinar porque trabalha – foram um ensaio das medidas autoritárias e bonapartistas pelo globo.
Ora, todo o raciocínio dos Medias, acompanhados por investigadores que defendem a
concertação social (modelo dos anos 80 do século XX, já eu defendo o sindicalismo
revolucionário como do século XIX, democrático e internacionalista), é que ou há concertação
social ou a extrema direita toma conta do descontentamento social, os “movimentos
inorgânicos”. É ridículo; são os chamados “sicofantas”. O que se está a ver é justamente o
contrário – a aparecer um tipo de sindicalismo que esse sim faz frente a extrema direita: defende
emprego, salários, direitos, igualdade e combate, sem se apoiar no Estado – não nos esqueçamos
que a extrema-direita é e sempre foi um braço do Estado – por isso o seu sector mais forte são
as forças armadas e policiais.
Não me preocupa particularmente a extrema direita nos sindicatos, nunca vai ter força aí,
a extrema direita tem força no Estado, nas polícias se elas deixarem, ela nasce da barriga dos
partidos neoliberais de direita, e à sombra do desastre político que são os partidos neoliberais
de esquerda. Nunca vai ganhar o coração dos trabalhadores, a extrema direita vive da proteção
do Estado, e da base social dos pequenos empresários, ameaçados de ruís, que financiam estes
jagunços. Cuja função é atacarem líderes sindicais. E depois tem guarida, diria Gramsci, em
diferentes sectores estatais: juízes, policiais, administradores, procuradores, etc. etc. etc. São os
“guardas de esquina” que se agigantam e se amesquinham nos seus micropoderes intersticiais.
A sociedade é passível de um estudo social científico. E a política séria só pode ser feita
com isso, com ciência social crítica e séria. “No politics withount inquiry” já disse Ed Emery.
E a ciência social crítica, sem política, é vazia, estéril. Nós somos nós e as nossas circunstâncias.
Estes temas, da alienação, do sentido, do brio, são altamente mobilizadores mas os
sindicatos não os debatem, não fazem formação, não discutem – só falam de contratos de
trabalho. O que é super importante, mas é digamos, o mínimo do mínimo. Há que tratar as
pessoas não como meros assalariados, mas como seres pensantes, com humanidade vivente.
Sabe o que mais aprendi nos nossos estudos – confirmei a maravilha da inteligência do trabalho
vivo, dos trabalhadores. Aprendi mais sobre plano ferroviário, plano do metro, educação, saúde
com os que “têm a mão na massa” do que com os planificadores políticos, que se escudam em
trabalhos técnicos. Não estou a defender o obreirismo – é claro que precisamos de saber
especializado. Mas – quero explicar isto bem – um trabalhador naturalmente quer fazer um
plano ferroviário que sirva as pessoas e faça sentido para o território, os políticos, que pagam
os estudos técnicos, querem um plano, no caso, que sirva exportações baratas para as empresas
alemãs; querem um metro circular que serve os turistas em Lisboa e não as classes trabalhadoras

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das periferias – os trabalhadores do metro chamam-lhe a “Linha Madona” porque a cantora
viveu lá para atrair especuladores imobiliários. Já ouviu um médico e enfermeiro falar como
deveria ser um hospital – digo, dos que estão no dia a dia a exercer? É maravilhosa a quantidade
de ideias que têm, e agora imagine esta gente toda, em colectivo, a pensar junto e decidir junto
– é a revolução. A revolução social é fazer as coisas bem para produzir bem – e de forma justa.

6. Como caracterizaria a situação do sindicalismo hoje?


Depois da guerra, e da Revolução dos Cravos, a forma de conter os trabalhadores foi
propor-lhes um pacto – deixam de lutar politicamente pelo poder e contra o capitalismo global.
E os empresários e Estados aceitam 8 horas de trabalho, 1 mês de férias pagas, e emprego
seguro, garantido por altas indemnizações. Este é o pacto social, nascido da derrota do nazi
fascismo e das revoluções dos cravos/transição espanhola e grega no sul da Europa (medo de
uma revolução dos cravos nesses países).
A concorrência do capitalismo levou à grande crise de 1964/66 que vai terminar no choque
petrolífero de 1970/73. As ondas de choque abriram o Maio de 68 e a onda de revoluções até
ao Irão, 79. A partir daí os capitalistas (Estados e empresários, organizados em partidos e
associações) impuseram o (mal chamado) modelo neoliberal. Empresa enxuta, só 5, a 10% dos
trabalhadores têm direitos; todos os outros tendem à precariedade, fim da segurança no
emprego; sub contratações – miríada de pequenas empresas inviáveis dependentes da grande
casa mãe; divida pública (o Estado sempre a injetar dinheiro nas empresas privadas); fim do
estado social, substituído pelo estado assistencial; direito ao emprego substituído pelo subsídio
de desemprego ou apoios sociais. E atenção, estes “apoios” sociais aos trabalhadores mais
pobres e às empresas vêm dos impostos cobrados aos sectores médios – os ricos não pagam
impostos. Isto não foi feito por causa do fim da URSS. Como argumentei no meu livro sobre o
estado social este modelo foi feitio antes do fim da URSS, nos anos 80. Não era a URSS, uma
ditadura, que garantia direitos, eram os trabalhadores na Europa organizados.
Foi preciso derrotar os sindicatos combativos (mineiros ingleses, operais navais em
Portugal e Alemanha, Espanha etc, do aço, das comunicações e dos transportes) e cooptar a
maioria dos sindicatos para a concertação social. Como? Oferecendo-lhes pré-reformas e
reformas antecipadas e indemnizações. Por isso usei a fórmula “os pais venderam os filhos”.
Os sindicatos que aceitaram este modelo, em toda a Europa, venderam os filhos para o mundo
precário, em troca das indemnizações e pré-reformas. Estavam sob a chantagem da
deslocalização para a Ásia, mas a verdade é que a maioria foi vencido sem lutar, com pré-
reformas. Nesta altura, com o fim do pacto social, nasceu a concertação social – ou seja, quando

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realmente acabou o pacto nascido da guerra entre capital e trabalho - que se chama concertação
social – no capitalismo quase sempre os nomes significam o seu contrário. É aí que se negoceia
a garantia de paz social por parte dos sindicatos, em troca, em geral, de direitos para os mais
velhos, e ausência de direitos para os novos trabalhadores.
O resultado foi previsível: a crescente insustentabilidade da segurança social, a deslocação
das lutas entre patrões e trabalhadores para a família e o Estado – os desempregados ou quem
tem baixos salários não luta, pedem ao Estado ou à família ajudas. Isto tem grandes
consequências sociais – mal estar dentro das famílias, que se têm que apoiar, passar mal na
reforma para ajudar filhos e netos etc.; ligações de dependência, que criam relações tóxicas;
uma subserviência perante o Estado, em que as pessoas ficam sempre passivas e não como
cidadãos, sujeitos, a exigir diretos e claro um agravamento do aumento do mal estar social,
porque as pessoas naturalmente percebem o que é a justiça – e algo de podre se passa quando
há pessoas a trabalhar até á exaustão e milhares no desemprego, sobretudo os mais fortes, os
jovens, há entre 20 a 40% de desemprego jovem, entre Paris e Senegal. Enquanto a esquerda
não defender que todos temos que trabalhar, que o trabalho é um direito humano, e aceitar o
assistencialismo vai dar algum espaço à extrema direita, que critica a preguiça – é uma coisa
nazi – devem trabalhar ao chicote se for preciso. Ora, o que a esquerda tem a dizer? Que o
capitalismo mantém os salários abaixo a conta da ameaça do desemprego – e que com a
automação vai gerando uma super população relativa. Crianças, idosos e deficientes não devem
trabalhar, todos os outros devem o trabalho que existe tem que ser dividido por todos. Se não
criam se situações de injustiça, uns pendurados nos outros. Se o capitalismo não consegue
garantir trabalho e independência a todos então não serve a humanidade.
Se o sindicalismo não rompe com o assistencialismo não sobreviverá. Estão em crise
profunda, os trabalhadores abandonaram os sindicatos e os que ficaram é por razões jurídicas,
não confiam nos dirigentes em média (há novas formas de sindicalismo onde isso está a mudar).
Os sindicatos têm que responder ao direito ao trabalho e à exaustão (as duas faces da mesma
moeda, emprego e desemprego), ao sofrimento no trabalho e às justas aspirações de quem quer
ser feliz e independente; têm que perceber – como se fosse preciso mais, depois da pandemia e
da Ucrânia, que só a organização internacional solidária os salva, as redes de interdependência
são irreversíveis. Para mim, têm que ler e estudar as actas e congressos da AIT, de há 150 anos
– está lá tudo – como constitui fundos de greve internacionais, combater o trabalho noturno, as
doenças, a educação de qualidade, igualdade de gênero etc. etc. etc. É preciso se retomar o fio.
Pode parecer algo como uma ideologia profissional de uma historiadora do trabalho e dos
conflictos sociais, mas, acredito – piamente – que nada de novo pode surgir da falta de memória.

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