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A

GARGALHADA DE SÓCRATES

Como o maior filósofo do Ocidente desvendou


o intrigante caso do assassino em série ateniense,
com a improvável ajuda de seu desafeto Aristófanes.

Nelson Moraes Alves

A Cynthia,
pela paciência, dedicação,
valiosíssimas sugestões e,
como se não bastasse,
por tudo.
Não esperem de nós nada de muito elevado; não esperem também uma
gargalhada à maneira dos megáricos. Não temos escravos que joguem sobre os
espectadores nozes tiradas de suas cestas. (...) Minha fala tem uma intenção;
sem menosprezar a sagacidade de vocês, há mais sentido em minhas palavras
que um truque banal de comédia.

Aristófanes, AS VESPAS,
trad. de Mário da Gama Kury.

Não, os manuscritos a seguir jamais chegaram às mãos de alguém,


nem foram remetidos a qualquer destinatário; tampouco foram
encontrados até o presente momento. Jazem em uma arca de madeira
de cedro, numa embarcação que naufragou em 379 a.C., a cerca de 41
milhas do porto da ilha de Ortigia, em Siracusa, na Sicília, seu
provável destino.

O conteúdo dos mesmos, composto de vários livros sequenciados contendo


diálogos entre Aristófanes, o maior autor cômico da Grécia antiga, e seu filho
Filipos, foi gravado em papiro, no dialeto ático, reproduzindo a tradição da
época (e repetida em eras posteriores) de registrar conversas entre duas ou mais
pessoas a respeito de filosofia, ciência, ética, religião e outros assuntos de
interesse variado, e onde o autor costumava referir-se a si próprio também na
terceira pessoa.
Graças ao fato de haverem sido embalados em um recipiente cilíndrico de
vidro, somado à miraculosa vedação da arca – o que denota bastante cuidado
com o armazenamento dos rolos de papiro – e ao baixo nível de oxigênio na
profundidade em questão, os manuscritos ainda se mantêm relativamente
intactos. Entretanto, o acidentado e praticamente inacessível relevo submarino
no ponto do naufrágio, uma zona de fossa oceânica de mais de 8 mil metros de
profundidade, torna bastante improvável que estes escritos venham a ser
conhecidos algum dia.

E apesar do fato não possuir ligação direta com os manuscritos, um pedaço


do casco do navio traz a inscrição com o nome da embarcação, ainda legível:
“Moira”.
PERSONAGENS

SÓCRATES – O maior filósofo grego de todos os tempos e definidor do


modo ocidental de questionamento e raciocínio, além de elaborador da
maiêutica, método de perguntas e respostas onde o mentor faz com que o
indagador chegue por si só à resposta. Na época aludida nesta narrativa, ainda
não gozava de tanto prestígio fora de Atenas.

ARISTÓFANES – Não é por ser o pai do autor destes livros, mas trata-se de
um dos grandes responsáveis pela expansão do teatro grego para além dos
limites de Atenas, tendo sido o maior comediógrafo de sua língua. Satirizou e
ridicularizou os costumes, os vícios, os desmandos e a corrupção de sua época, e
demonstrou que humor só tem serventia quando não tem lado.

FILIPOS – Filho de Aristófanes, e autor destes livros, como já foi dito.

XANTIPA – Esposa de Sócrates e, claro, figura feminina essencial no


desenrolar da narrativa.

EUDOXO – Um dos dez astínomos de Atenas, o que correspondia ao cargo


de comissário de polícia. Foi quem cuidou dos casos narrados nestes livros.

LAQUES – Arconte-chefe de Atenas. Cargo máximo do Poder Executivo da


cidade, a quem era atribuída a coordenação das atividades religiosas e civis, e
que tinha ascendência sobre os encarregados da manutenção da ordem pública,
inclusive os astínomos.

CRÍTON, FÉDON, APOLODORO, LÍSIAS, CEBES, SÍMIAS e outros –


Discípulos de Sócrates, que não tinham Aristófanes em muito boa conta.
EURÍSTENES, ARISTEU, ÁULITO e ODILARDO – Sofistas de Atenas, e
a quem coube a nada invejável sina de fazer parte da seleta lista de vítimas do
assassino citado nestes livros.

ARQUÍDAMO – Investigador espartano, inusitadamente chamado a pretar


seus serviços no caso policial mencionado nesta narrativa.

AGÁTOCLES – Carcereiro da cela onde Sócrates foi mantido preso.

ARQUEIROS CITAS – Escravos estrangeiros, responsáveis pelo


policiamento de Atenas, trabalhando sob ordens diretas dos astínomos.

PLATÃO – O principal dos discípulos de Sócrates, estranhamente ausente


desta narrativa, e não por intenção do narrador.

ATENIENSES, ESPARTANOS, MEGÁRICOS, TEBANOS, ILÍRIOS e


demais personagens representantes de povos da Ática, da Hélade e de suas
cercanias.
PRÓLOGO

Onde Aristófanes, já idoso, conversa com Filipos, seu filho e autor destas
linhas, ambos sentados nas arquibancadas do Anfiteatro de Dioniso, na
Acrópole de Atenas. Aristófanes comenta sobre os últimos momentos de vida de
Sócrates, antes deste falecer por ingestão de cicuta, em virtude de sua
condenação pela justiça ateniense, décadas antes. Diante da pressa de Filipos
para embarcar para Siracusa, onde mora, Aristófanes adianta que contará pela
primeira vez ao filho os perturbadores, sangrentos e até então secretos
acontecimentos passados em Atenas justamente durante os 30 dias em que
Sócrates permaneceu no cárcere. Na verdade Aristófanes pretende também
utilizar a inquietante história como pretexto para que Filipos adie
indefinidamente sua viagem. Verificamos aqui, portanto, como a filosofia, a
comédia e a tragédia combinam perfeitamente com a chantagem emocional
paterna.

– Agátocles.

– Agátocles?

– Era assim que ele se chamava. Mesmo depois de tantos anos o nome não
me sai da memória. Agátocles, o carcereiro. Aliás, nunca entendi o motivo de
haverem lhe confiado o cargo: coxeava da perna direita – é, a direita, que
deslizava pelo chão, seguindo trôpega os passos da perna boa (imagina Platão
arrastado enquanto se agarra aos bagos de Sócrates, que caminha altivo à frente:
era isso que essa perna lembrava), e sempre me perguntei o porquê de um
carcereiro coxo. Será que eles queriam deprimir ainda mais os pobres
prisioneiros, geralmente encarcerados por causa de dívidas? “Vê, te sabemos tão
incompetente para fugir que pusemos a te vigiar um carcereiro que manca de
uma perna. E tem mais: os guardas lá fora são, pela ordem, um cego, um surdo e
um paralítico, e ainda dormem o dia inteiro, e...”

– Mas dizias…

– Ah, sim. Agátocles, o carcereiro. Coxo. Pois então. E a ele coube também
trazer a cuia de cicuta. Ouviste por aí que foi uma taça? Baboseira. A Justiça de
Atenas enviara tão somente uma cuia, dessas de meia cabaça, provavelmente
porque as taças eles reservavam para outro tipo de veneno: as combinações
regadas a vinho, durante as reuniões da Eclésia, onde as leis de cobrança de
impostos eram elaboradas, e sabe Zeus como eram elaboradas, porque...

– Meu pai. Sabes que chega a hora de minha embarcação partir. Não podes ir
mais direto ao assunto?

– Ah. Juventude efêmera, afobada. Sabes que se a plateia de minhas peças


tivesse sido formada por semelhantes teus elas não teriam duração superior a dez
minutos? Seria o tempo do coro entrar, o corifeu anunciar o prólogo e pronto,
apresentação encerrada. Sairíeis desembestados atrás da próxima corrida de
cavalos, ou de jogos de azar na Ágora, e eu não teria o que fazer de minhas
piadas. Talvez prostituí-las, no porto do Pireu, para ver se dos marujos
desclassificados elas arrancariam algum riso e poucas moedas. “Olá, marinheiro.
Estás afoito por diversão?” “Quem és tu?” “Sou uma piada de Aristófanes!” “Por
Poseidon... Quanto te conheci eras mais graciosa – o que te ocorreu para vires
parar aqui, tão decaída?” “Ah, fui aposentada à força por plateias mais jovens,
e...”
– Sabes que venho me aprimorando nas artes da comédia também, em
Siracusa. Não igual a ti, ou não tão bem como tu, mas a cidade já conhece bem e
aprecia minhas comédias de costumes. Tu bem o sabes!

– Ah, sim, imagino que hoje em dia as comédias não passem de agridoces
tentativas de arrancar risos educados de uma plateia cada vez mais comportada.
Aposto mil dracmas que em tuas peças tu chamas os magistrados ladrões – e que
sempre abundaram nas minhas – de, quem sabe, legisladores de moral flexível.
Os que eu chamava de estrategos filhos da puta tu deves nomear, digamos,
dirigentes sem paternidade definida. Os…

– Não, meu pai. São apenas comédias de costumes. Centro-me em famílias,


não em comunidades ou em política. Falo da graça e dos dissabores que regem
os laços de família, das situações que...

– Comédias de situação familiares?!? Por Zeus, que futuro terá isso, Filipos?
Não fazes mais que adocicar tua veia satírica. Isso é obrigar teu sarcasmo a
evaporar-se na ânsia pelo agrado à plateia. Plateia não tem que ser agradada.
Tem que ser ultrajada, desafiada, posta a pensar! Ó, Dioniso, vede a que fim tua
arte se encaminha, e...

– Pai. Não falavas do carcereiro perneta?

– Coxo.

– Que seja. Dele e da cuia de cicuta?


– Pois bem. Pois bem. Agátocles, o carcereiro coxo. Creio ter sido bisonho
vê-lo caminhar – coxear – com a cuia transbordante de cicuta. A cada passo e
meio, uma emborcada e um tanto do líquido caindo da cuia. Aliás lembro de
haver cogitado, tempos depois, o que não teria acontecido se ele finalmente
chegasse a Sócrates com a cuia vazia: a pena seria comutada por desvio no
transporte do veneno? O que Sócrates diria diante de uma cuia vazia de cicuta?
“Certo, Atenas, agora me rendo. Me deixaste um mês aqui, entre a condenação e
a execução, tempo suficiente para eu me safar, e aqui permaneci. Puseste um
carcereiro coxo para me facilitar a fuga, e aqui permaneci. Fingiste não ver
Críton arranjar mais de uma forma de eu escapar, me exilar, e, mais uma vez,
aqui permaneci. Mas agora, diante de uma cuia vazia de cicuta, que há dois
minutos estava repleta do líquido, é demais. O deboche chegou ao máximo. Sim,
agora aceito a liberdade!”

– Disseste-me que viste Sócrates várias vezes na prisão... mas estavas lá, no
momento da morte dele?

– Não. Tentei o mais que pude, mas não consegui. Porém, ao contrário de
Platão, minha ausência se deu inteiramente contra a minha vontade.

– Ao contrário de Platão? Bem, até onde sei, ele também se ausentou contra
a vontade. Uma doença, parece-me, que...

– Sim, eu sei a doença que acometeu Platão: cagaço! Desde que Meleto
apresentou a denúncia contra Sócrates, no Tribunal, Platão já tratou de
escafeder-se. Quando o cerco apertou, ele disparou, veloz como a flecha de
Aquiles! Inventou uma doença, depois uma viagem inadiável – justo quando
Sócrates já estava encarcerado – e só retornou a Atenas depois que tudo já tinha
se passado! Assim é bem fácil ser o discípulo disseminador do pensamento!

– Bem, em Siracusa cheguei a ler uma cópia do diálogo que ele escreveu
recentemente – Fédon, creio – narrando em detalhes a morte de Sócrates, onde…

– ...onde ele dá a versão dele. Onde ele coloca na boca de Sócrates as


aleivosias que ele, Platão, professa. Que desplante utilizar o pobre Fédon como
narrador! Sim, Fédon estava lá, mas fiquei sabendo que ele chorou tanto que
duvido que tenha prestado atenção em uma palavra do que Sócrates disse. Aliás,
todos choravam: Fédon, Críton, Cebes, Símias… Ouvi dizer que era tanto choro
e soluço que Sócrates, irritado, chegou a perguntar se aquilo era uma cela de
prisão ou um gineceu de garotinhas desmamadas.

– Chegaste então a ler o Fédon?

– Não, mas ouvi o suficiente a respeito dele. E te asseguro: mesmo se eu


estivesse lá na ocasião, junto a Sócrates, Platão não mencionaria minha presença.

– Por quê?

– Ele me detesta.

– E qual o motivo?

– Simples. Imagina que trazes desde jovem a pretensão de ser um


dramaturgo. Ao nível de Ésquilo ou Eurípides. Mas, por mais que tentes, não
consegues comover o ovo da traça que rói a tira das sandálias de qualquer um
deles. Imaginai também que tens um tio que é ninguém menos que um dos
piores tiranos que já passaram por Atenas (Crítias, tu o sabes) e que, para somar
o insulto à injúria, foi imposto por Esparta, durante o tempo em que ficamos à
mercê daquele governo clandestino, que…

– Pai, sem querer apressar-te… Meu barco zarpa em uma hora, e eu já...

– Ah, claro. Sempre me esqueço que contigo as histórias sempre têm que ser
curtas. Novos tempos, ritmo novo.

– Não é isso. É que...

– Pois bem. Voltando aonde eu estava: imaginai isso tudo, e pior ainda. Além
de não passares de um dramaturgo de merda e possuíres laços espúrios na
família, só obténs alguma projeção à sombra de um mentor superior a ti em
todos os sentidos. Aí pensas: “Por Zeus, eis-me filósofo!” Pois com a relação
quase filial que passas a ter com Sócrates, o teu mentor, apagas simbolicamente
os laços de consanguinidade com o tirano teu tio – e depois, com a morte de
Sócrates, passas a recriar, para a posteridade, tudo o que ele já disse, em diálogos
que finalmente darão vazão a teu frustrado pendor para a dramaturgia! Aliás,
pendor para a ficção, se fores levar em conta o teor destes diálogos. Tens aí
portanto Arístocles, o ateniense. Ou, se preferires, Platão.

– Mas não explicaste a razão dele detestar-te.

– Por quatro razões simples. Ao contrário dele, desde jovem sou um autor
consagrado e premiado. Minhas comédias correm por toda a Ática. Segundo,
jamais precisei pendurar-me nas bolas de algum mentor ou ficar à sombra de
alguém. Terceiro, porque fustiguei Sócrates sem dó; aliás, lembro-me muito bem
de Platão na plateia de As Nuvens, claramente segurando o riso diante de meu
retrato sarcástico de Sócrates, mas publicamente ele me repreendia, anunciando
que eu pintava seu mentor com cores cruéis, injustas, e por quê?, porque eu
praticava abertamente o que nele não passava de um tíbio e inconfessado
impulso: a crítica ao método de Sócrates, com toda a licenciosidade que a sátira
naturalmente permite!

– Disseste que eram quatro as razões.

– Ah, sim. A quarta é que eu sempre fiz troça daquela cara dele de “Quem
peidou aqui?”

– Meu pai...

– Sim?

– Tua cara também nunca foi das mais simpáticas.

– Que seja, mas a minha é de “Peidei, sim, e daí?”

– Certo, certo. Mas e o perneta?

– Que perneta? Platão não era perneta.

– Digo, o coxo.
– Perneta coxo?

– Desculpa. Só coxo.

– Ah. Sim. Agátocles. Pois bem. Se me deixasses prosseguir, eu já estaria no


sepultamento de Sócrates. Aliás, na chegada de Sócrates ao Hades, onde, depois
de percorrer o Estige no barco de Caronte e encher os ouvidos do barqueiro com
sua maiêutica (imagino o pobre Caronte pensando “Por Netuno, se essa criatura
já não estivesse morta eu a afogava agora no Estiges!”), ele...

– Pai...

– Certo, certo. Pois bem. O que ouvi foi que Agátocles manqueou em direção
a Sócrates, com a cuia, enquanto todos devem ter ficado apreensivos, calculando
o quanto de cicuta cairia no chão e se Sócrates acabaria precisando lamber o
fundo da cuia para tentar pegar o quase nada de veneno que restara. Mas ao fim
daquela interminável jornada coxa a cuia ainda chegou com cicuta suficiente. E
pronto.

– Pronto?

– Sim. Querias mais?

– Era o que tinhas a dizer?

– Por Zeus, o que mais eu teria a dizer? Que Sócrates entornou todo o
conteúdo da cuia, deitou-se, foi coberto com o manto e em poucos instantes
começou a tremer, jogou o manto para o lado, ergueu-se, pôs-se de pé no catre e
passou a executar uma dança a Dioniso, tirando Críton para bailar enquanto os
demais acompanhavam remexendo as ancas, ondulando os braços no ritmo e...
Ora, Filipos, é claro que Sócrates entornou a bendita cicuta e em cinco minutos
estava mais frio que uma carpa da Tessália! O resto foi pranto, luto e
sepultamento. Foi o que eu fiquei sabendo: nada mais!

– Sim, foi o que ficaste sabendo... Mas por que não estavas lá, também? Se
viste Sócrates tantas vezes enquanto ele ficou preso, por que te ausentaste
justamente no dia em que ele bebeu o veneno? O que ocorreu, contra a tua
vontade, que não te deixou ir?

– É isso que quero contar-te.

– Pois conta.

– Se me deixares.

– E porventura estarei eu te atrapalhando? Até aqui só tu falaste, e eu


pacientemente fiquei...

– Bem. Eu estava preso, na ocasião.

– Como?
– Preso.

– Tu também?!? Em uma cela?

– Não.

– Como assim, preso... mas não em uma cela? Como eu nunca soube disto?
Que crime cometeste?

– Calma, Filipos. Uma coisa de cada vez.

– Meu pai, o barco está para partir, e só agora resolves contar-me uma
história que nunca ouvi em toda a minha vida?

– Ela envolve muito, muito mais do que pensas, Filipos. Na verdade quase
ninguém sabe dela até hoje. E dos poucos que a testemunharam na época, boa
parte já morreu. E nem estou contando os cadáveres das vítimas.

– Vítimas? Cadáveres?!? Pai... Isso é mais uma de tuas comédias, e a testas


comigo como plateia para...?

– Por Dioniso, se eu imaginasse uma comédia assim eu iria à falência com


tanta tinta vermelha no palco, Filipos. Eurípides e Ésquilo não economizariam
em sortilégios de inveja contra mim. Mas agora vai, que a tripulação de teu
barco já deve estar ansiosa por deixar o Pireu. Parte.
– Como assim, “parte”?

– Teu barco não vem te buscar aqui, meu filho. Se não partires agora ao
Pireu, não verás Siracusa tão cedo.

– Quer dizer... que ficaremos assim? Zarpo rumo à Sicília sem conhecer a tal
história, e volto a ver-te somente no ano que vem, quando porventura já nem
lembrarás de haver-me prometido a narrativa, e isso se a história houver mesmo
acontecido?

– Parte, pois. E boa viagem. Que Poseidon te dê proteção durante o trajeto e


que Dioniso guie tuas mãos na criação das tais novas comédias. E lembra
também de incluir nas histórias a menção a teus patrocinadores, de forma
subliminar mas convincente, pois não é outro o futuro da poesia cômica, ainda
mais em uma cidade tão mercantil como Siracusa: deixar a política de lado,
tornar-se cada vez mais vendável, cada vez mais...

– Aristófanes, meu pai. Tu foste o melhor autor cômico de toda a Ática.


Chegaste a ser um razoável ator e um convincente corifeu. Mas demonstras uma
rara incompetência no papel de pai ressentido. Deixa deste teatro, eu peço, retira
a máscara da pirraça. Ou é assim que ficaremos: uma história prometida e não
contada?

– Não tem que ser assim. Podes...

– Posso...?
– Tu sabes. Cancelar a viagem, ficar e ouvir minha narrativa.

– Então assumes ter uma história.

– Fica e descobre.

– Não posso.

– Por Zeus, não podes por quê? O mundo irá acabar se ficares algum tempo
mais? Tua megalópole irá inchar tanto em poucos dias que não irás reconhecê-la,
ao voltar? Te perderás, entre as docas, avenidas e quarteirões que não param de
crescer em Siracusa, e logo te verás reduzido a um recitador de rua, que deixará
as comédias de lado para tecer sofismas edificantes em troca de alguns dracmas
de comerciantes cretenses, egípcios, bárbaros?

– Pai, dá ouvidos ao bom senso! Sabes que a próxima embarcação para


Siracusa só sai daqui a três meses, e isso...

– Tempo suficiente para que teu pai morra e não ouças mais nem sua voz,
suas histórias nem tampouco suas pirraças. Vai em paz, pois, e bom descanso a
teus ouvidos.

– Tu não cansas meus ouvidos, meu pai, eu jamais disse que... Como assim,
antes que teu pai morra?

– O terceiro ato, não sabes? No primeiro, recebes a vida sem pedir. No


segundo, decidem tua vida sem que consintas. E no terceiro, deixas a vida sem
seres consultado. Aliás, minto – até que consultado fui: o médico me consultou
se desejo partir com ou sem dores.

– Pai. Não comeces. Que história é essa, agora?

– Não é história, Filipos. Nem narrativa. Talvez uma má comédia. Sabes que
minhas crescentes dores abdominais indicam não menos que algum tumor, e isso
nada tem a ver com a idade. Ou apenas com a idade. Ésquilo tinha mais ou
menos a minha quando o gavião lhe largou a tartaruga na careca, rachando na
hora o cocoruto: morreu gozando de perfeita saúde. Mesmo gozando também
dos privilégios da calvície, não ando vendo gaviões nas proximidades, então
acho que o que vai me levar são essas dores mesmo.

– Exageras, tenho absoluta certeza.

– Tua mãe não comentou contigo sobre isso?

– Sim, mas... imaginei também que seria um certo excesso de zelo a teu
respeito, já que ela se preocupa...

– Que ela se preocupa além da conta comigo?

– Não foi o que eu disse.

– Mas é verdade. Só que desta vez ela não se excedeu. O médico confirmou,
Filipos. Não paira dúvida alguma. Não deverei testemunhar o próximo mês de
Poseidon.

– Meu pai. Isso é...

– Chantagem. Eu sei, Filipos. Chantagem, mas embasada em fatos concretos.


Apelo à tragédia quando rogo que fiques mais um tempo, e recorro à mais
certeira das profecias quando afirmo que não estarei vivo quando retornares.

– Não. Eu iria dizer que isso é... terrível. Essa doença.

– Discordo. Terríveis são as condolências antes da morte. Ah, como as


abomino. Pior que as carpideiras são as carpideiras em vida, deitando-nos aquele
olhar ensaiadamente condoído enquanto recitam “Enquanto os deuses derem
vida haverá esperança”. Ou então “Para os deuses nada é impossível”. Por Zeus.
Por isso sei que entendes quando eu digo que mantenho minha doença em
segredo absoluto.

– Mas e as dores, meu pai? Elas não hão de piorar, com o passar do tempo?
Elas não haverão de prostrar-te, inutilizar-te e depois...

– Filipos, és ou não um homem do teatro? Não sabes que sempre apelamos à


mecânica das cordas e roldanas para, na falta de um final decente para nosso
enredo, fazer descer de repente ao palco um deus qualquer para fornecer ele
próprio o desfecho que melhor lhe convier, e acabar com aquela falação toda?

– Como? O que queres dizer com isso, meu pai?


– Sempre fazendo as perguntas erradas, Filipos. O que deverias questionar
agora é algo tão mais simples.

– Diz do que se trata, pois. O que devo perguntar?

– “Aristófanes, meu pai. Mediante tudo o que acabas de contar, é de tua


inteira vontade que eu abdique de partir a Siracusa e fique?”

– E se... E se eu fizer tal pergunta?

– Ora, caberá a mim responder “Filipos, meu filho, já que tanto insistes, eu
mentiria se dissesse que não quero”.

– Meu pai. Se é para garantir-te o mínimo conforto em tuas últimas


semanas...

– Por Zeus, Filipos! Não morrerei amanhã! Pode até ser que ainda esteja vivo
por ocasião de tua volta, mas tão debilitado que não saberei mais identificar teu
tão peculiar açodamento e nem poderei manifestar minha velha rabugice!

– Eu... eu fico, meu pai.

– Que seja. Mas para ouvir minha narrativa, não para prestar-me uma
comiseração inútil e constrangedora, com a máscara consternada que te cobre a
cara nesse momento. Porque se for por isso, vai. Parte agora.
– Minha consternação se deve à notícia de tua moléstia, meu pai. Nada mais.

– E que de nada me adiantará.

– Eu fico... para ouvir tua história.

– Histórias.

– Histórias?

– Cinco, Filipos. Ouvirás cinco histórias de mistério. Mas não se engane: são
igualmente divertidas. Ou divertidas se parecem hoje, tantos anos depois. Ou,
ainda, soam mais divertidas quando contadas por quem não representou o papel
de morto. De qualquer maneira, as cinco histórias – e as respectivas mortes
associadas a cada uma – foram elucidadas com genialidade e, forçoso é dizer,
com minha ajuda.

– Morte, dizes... assassinatos?

– Sim. Que se deram no período de trinta e poucos dias em que Sócrates


esteve preso, até sua morte. Aliás, o primeiro se deu perto de nossa casa, se
queres saber.

– Perto de nossa casa... Meu pai, por que isso nunca veio à luz? Por que em
Atenas nunca se falou nestes assassinatos? Por que só agora me contas? Quem
morreu, quantos foram os assassinos? Quais as causas, as circunstâncias? Houve
punição, os culpados pagaram pelos crimes?

– Filipos, Filipos. Calma! Tudo a seu tempo. Se eu te prestar agora os


esclarecimentos capitais e já dissipar o mistério que, durante trinta dias, fez
borbulhar meus miolos e os do gênio que os desvendou, desmerecerei todo o
processo que nos encaminhou e o esforço que nos foi exigido.

– O gênio que os desvendou... Falas de...?

– Ninguém senão Sócrates. Claro.

– Sócrates.

– Sócrates.

– O mesmo Sócrates que fustigaste em tuas comédias, denunciando seus


sofismas, seu desleixo no vestir, seu desmazelo na higiene, sua tendência a
engambelar a juventude e a arrastar consigo um bando de cabeludos
desocupados, todos desvinculados da responsabilidade com a cidade e com as
obrigações familiares?

– O mesmo Sócrates que eu tanto fustiguei.

– E o reputas como gênio?


– Filipos, se entre uma comédia de costumes e outra tu te debruçasses sobre
os escritos e ensinamentos de Pitágoras, conhecerias bem mais sobre teoria
musical.

– O que a teoria musical tem a ver com isto, meu pai?

– Série harmônica, já ouviste falar? A relação entre uma corda, o som que ela
produz e suas subdivisões. Se uma corda, inteira, oferece um som grave, suas
subdivisões proporcionais – um terço, um quinto – oferecerão notas cada vez
mais agudas. Foi o que Pitágoras ensinou: quanto mais subdivides a corda, mais
nuances do som que ela produz consegues captar.

– E...?

– Aplico ao que falamos aqui: quanto mais observas Sócrates sob o prisma
unívoco, consensual, monótono, mais ele se parecerá com o que dizem dele: um
falastrão inconsequente. Mas subdivida Sócrates – o pensador, o debatedor, o
provocador, o orador, o beberrão, o glutão, o peidorreiro – e tomarás
conhecimento das notas mais inesperadas e inusitadas a seu respeito. Pessoas
não têm que ser observadas. Têm que ser conhecidas em todos os quadrantes de
sua vida e principalmente na proximidade de sua morte.

– E com isso dizes que o Sócrates que tanto criticaste também era objeto de
tua admiração?

– Por Dioniso, Filipos, és autor e não sabes que a comédia só vale quando
lança suas flechas por igual, sem poupar nem privilegiar ninguém? Deus, deusa,
amigo, inimigo, eupátrida, meteco, escravo, arconte, estratego, soldado, rico,
pobre, homem, mulher; a comédia não pode levantar estandarte, não deve bater-
se por uma causa, ela precisa – deve – tão somente instigar o riso, filho meu! Ela
não tem que adular, não tem que defender nem poupar. Se desconfortável,
constrangedora e inconveniente ela não for, não tem por que ela sequer ser! Não
existe comédia a favor, Filipos. A comédia ou é contra ou é fraude. Lembra o
quanto desanquei Eurípedes em As Rãs sem jamais, jamais deixar de privar de
sua amizade verdadeira, porque sabes que aos amigos cabe irritar, aos
conhecidos fofocar e aos inimigos caluniar! O mesmo se deu entre Sócrates e eu,
porque...

– O Sócrates que agora reputas como gênio? Que, em As Nuvens, tu...

– Que em As Nuvens eu achincalhei e que, no caso que irei te narrar


demonstrou sua genialidade com todo o poder de dedução – aliás, não dedução,
mas suas artes de maiêutica, que me induziram a elucidar tudo – e o sangue frio
de um homem que sabia que iria morrer dali a poucos dias. Acompanha, pois,
com desvelo, os detalhes que irei te narrar, e faz valer tua verve de poeta,
aguardando a hora certa os atos apropriados para os esclarecimentos que forem
necessários. Tudo te será revelado, a seu tempo. Se concordaste em ficar e ouvir,
então contenta-te em ouvir, e deixa o açodamento de lado.

– Meu pai, isso é...

– Eu sei. É muito para absorveres em tão pouco tempo. Mas terei o critério
de contar-te na ordem certa, e no que minha memória ajudar. Serei pela última
vez o corifeu de...

– Em verdade eu ia dizer que isso é um paradoxo: há quinze minutos foste


sarcástico a respeito da maiêutica de Sócrates, dizendo que Caronte o afogaria
no Estiges por causa dela, e agora a exaltas...
– Mantenho o que disse, antes e agora. Em breve entenderás tudo. Mas agora
escuta. Preciso colocar tudo isso para fora e tu precisas te entreter, já que
insististe em ficar.

– Eu tive que ficar. Tu mesmo disseste que se eu não...

– Não me venhas com tuas chantagens.

– Minhas chantagens?!?

– E digo mais: morrerei com a alma leve por finalmente ter podido narrar
isso a alguém, e tu terás material de sobra com o que te ocupares pelo resto de
tua ainda longa vida. Agora relaxa, aceita que só verás tua Siracusa daqui a três
meses e prepara-te para conhecer o que eu e pouquíssimos atenienses
mantivemos em segredo até hoje.

– Eu... Eu ainda me esforço por compreender – tu e Sócrates...

– Certo. Compreendo, Filipos. Deixa-me então, antes da narrativa, falar do


Sócrates que eu, Aristófanes, conheci naqueles trinta dias, para que entendas
melhor o que me levou a unir esforços a ele e decifrar o que havia por trás destes
cinco crimes – aliás, já que mencionei Pitágoras, adianto-te que o método
pitagórico foi o grande inspirador de um destes crimes, com o requinte e a
sutileza que acabamos descobrindo no modo de agir do assassino. Mas não nos
percamos nem nos precipitemos. Do que eu ia falar mesmo? Sim. De Sócrates.
Esquece o que soubeste dele por Platão, ou mesmo Xenofonte. Vais conhecer
então o Sócrates de Aristófanes.
– Um retrato confiável?

– Não importa. É o retrato do Sócrates que eu conheci. Se anseias por


conhecer o Sócrates verdadeiro, dirige-te ao Templo de Delfos e consulta o
oráculo.

– Não foi o que... Meu pai, te levantaste por quê? Aonde vais?

– Deixa-me. Tantas e tantas vezes fui usuário, locatário e regente neste palco,
não é agora que, aos oitenta e três anos, não conseguirei subir nele sozinho.

– Cuidado, olha os degraus, e também as...

– Deixa-me, Filipos. Minha bengala me apoia agora mais do que os


patrocinadores atenienses durante toda a minha vida. É curioso, depois de mais
de cinquenta anos entrando e saindo deste proscênio, ver hoje que toda a
estrutura do teatro – os assentos, o altar, o próprio palco – me parece bem menor.
Deve ser verdade mesmo que a idade diminui o tamanho das coisas ao nosso
redor. Não que nos agigantemos: elas é que se apequenam com o desgaste do
convívio cotidiano e a perda do revestimento mítico. Será que é assim que os
milenares deuses nos enxergam, e riem de nós?

– Que dizes, meu pai? Não te ouço bem. Vais ficar aí, de pé?

– Vem mais para perto. Senta-te aqui, ao pé do proscênio.


– Sim, mas o que pretendes aí?

– Filipos. Assim como fui meu próprio corifeu e abusei das parábases em
tantas oportunidades, interrompendo as encenações, faço aqui a apresentação de
Sócrates, como se Sócrates eu fosse. Encenarei minha última comédia, sozinho,
tendo unicamente a ti como plateia. Porque foi este o pretexto que eu utilizei
para aproximar-me dele, naqueles trinta últimos dias de sua vida: conhecê-lo a
fundo, desenvolver uma peça sobre ele e sua estada pelo mundo, porque é como
comédia que dissecamos a tragédia, é pelo riso que purgamos a dor, é pelo
ridículo que reparamos a injustiça, a inacreditável injustiça que levou à sua
execução. E ele concordou, e forneceu-me material para que eu
transubstanciasse tudo nessa apresentação. Apresentação que nunca houve,
Filipos, porque jamais encontrei a oportunidade apropriada. Pois verás agora do
que é capaz um octogenário que ainda confia em sua memória e em seu longo
aprendizado como autor, ator e corifeu. Apenas ouve, filho. A partir de agora, e
pelos próximos minutos, farei diante de ti uma singular comédia ateniense. Se
Téspis criou o monólogo, eu o reinvento para falar de Sócrates. Serás minha
plateia, e tomarás pé do homem que não conheceste.

– Certo, pai. Mas não te exaltes.

– Por ora não sou teu pai.

– Entendo.

– Filipos, filho de Aristófanes, permita apresentar-me. Sou Sócrates, filho de


Sofronisco.

LIVRO PRIMEIRO - O SÓCRATES DE ARISTÓFANES


Onde Aristófanes, antes de iniciar a tão aguardada narrativa, descreve a
Filipos um perfil diferente de Sócrates, personalidade fundamental na trama.
Diferentemente dos perfis mais conhecidos do filósofo, compostos por Platão e
Xenofonte, o Sócrates de Aristófanes traz traços tão peculiares que alguns
podem imaginar tratar-se de uma típica construção aristofânica, enquanto
outros terão certeza disso. De qualquer modo, verdadeiro ou não, o Sócrates de
Aristófanes é merecedor de ser conhecido para a devida compreensão do
restante desta narrativa. O leitor mais açodado poderá pular este tomo e partir
direto para o relato dos crimes. Mas terá perdido algo concreto. No caso,
aproximadamente meia hora de leitura.

– O que posso dizer-te, jovem Filipos, filho de Aristófanes? Sofronisco, meu


pai, era um escultor em mármore. Desde muito cedo eu me perguntava se eu
poderia ser algo além de filho de um escultor de mármore, e o melhor jeito de
descobrir isso era tentar aprender seu ofício. O máximo que consegui esculpir foi
um talho na testa do pobre Sofronisco, quando uma lasca de mármore escapuliu
do meu cinzel depois de uma marretada com a empunhadura frouxa. Minha mãe,
Fainarete, segurou o riso na ocasião, mas não conseguiu deixar escapar o
comentário de que o marido a partir dali ficou parecido com um ciclope. A coisa
só não piorou porque o que meu pai exibia em aptidão na escultura faltava-lhe
no conhecimento dos mitos gregos, de modo que o comentário de minha mãe –
esta sim, versada e lida – , se não lhe passou despercebido, pelo menos não
desencadeou uma fúria, digamos, ciclópica contra ela. Já de minha parte tive o
cinzel e a marreta decisivamente arrancados de minha mão: tenho a impressão de
que àquela altura Sofronisco já havia percebido minha absoluta falta de destreza
com relação a, bem, para sermos concisos, qualquer coisa.

“A verdade é que eu já havia tentado o que estava a meu alcance, o que,


naquele vilarejo da Alopécia, nos arredores de Atenas, não queria dizer quase
nada. Arar, plantar, colher, rebocar uma ou outra parede e consertar telhas; não
mais que isso. Podes acreditar, Filipos, que nem nesses ofícios eu me mostrei
especialmente prendado, e me abstenho de entrar em muitos detalhes. Certo,
talvez uma exceção: uma vez cismei de consertar o telhado de palha da casa
vizinha à nossa, que padecia com a infiltração sempre que chovia. Ao invés de
trabalhar primeiro na parte interior, ajustando primeiro as ripas de madeira que
sustentavam a palha, trepei na parte externa e fiquei a procurar onde fazer o
reparo. O que eu não sabia era que minha mãe, que era parteira, ajudava
justamente a esposa do proprietário a trazer o oitavo filho do casal à luz, e
exatamente no cômodo abaixo do revestimento onde eu me encontrava. Claro
que o telhado, já danificado pela infiltração e sobrepesado por mim, começou a
ceder, acabou se rompendo e aconteceu de eu cair rigorosamente em cima do
leito da parturiente, praticamente entre suas pernas, no momento seguinte ao que
ela tinha acabado de expulsar sua cria – àquela altura já a salvo nos braços de
minha mãe. Pois bem, naquela mistura de palha, lençóis, sangue uterino e um
susto monumental, levantei minha cabeça e ela, provavelmente ainda nos
estertores e desatinos hormonais, mas já divisando mal e mal o que acontecia,
viu minha cabeça se erguendo entre suas coxas, com meus olhos arregalados e os
pelos da rala barba já espalhados em tufos por meu queixo, e gritou,
descompassada: “Por Hera, todos nasceram enormes, mas esse filho da puta já
veio crescido! Eu sabia, nunca a barriga tinha me pesado tanto em uma prenhez!
Eu sabia! Parir já velha dá nisso, por Hera!” Posso te afiançar, Filipos, que eu
nunca mais me aventurei nas artes do reparo e minha mãe jamais voltou a pôr os
pés naquela casa.

“Aliás, se cicuta já existisse na Alopécia como punição para crimes contra o


patrimônio, eu já teria morrido muitas décadas antes. Por isso decidi contribuir
em definitivo para o bem daquele vilarejo – saindo dele, adentrando as muralhas
de Atenas e por aqui ficando de vez. Sofronisco arranjou-me algumas economias
com tanta rapidez que fiquei indeciso entre julgar a ação paterna como prestativa
em relação a meu novo empreendimento ou como empenhada em livrar-se o
quanto antes de mim.

“De posse de algumas moedas, mudei-me para Atenas e dividi um


alojamento nas proximidades do Cerâmico com meu amigo de infância
Querofonte, o qual, ao contrário de mim, nunca teve dificuldade em arranjar
bicos para sobreviver. Mas a pulga não me saía detrás da orelha: para o que eu,
Sócrates, filho de Sofronisco e Fainarete, serviria, além de passar o tempo todo
perguntando para que eu serviria? Eu não queria dinheiro, eu não queria
emprego, Filipos. Eu queria respostas.

“Foi quando eu passei a procurar as respostas nos sofistas.

“Boa parte de minhas últimas moedas foram para eles. Era curioso: eles
cobravam, me ensinavam as artes da oratória e da dialética, mas nada que eu não
soubesse ou pelo menos já não tivesse intuído. Frases feitas de
autoaconselhamento, truques retóricos, fórmulas de motivação, sempre com o
indiscutível gosto de artimanhas já utilizadas, gastas e requentadas, que
poderiam servir para qualquer um: ‘Se tu queres, tu consegues.’ ‘Segue teus
sonhos.’ ‘Querer é poder.’ Acreditas, Filipos, que uma vez Querofonte e eu
procuramos o mesmo sofista, em ocasiões diferentes, fizemos perguntas distintas
e o danado nos deu a mesmíssima resposta, utilizando os mesmos termos e as
mesmas preleções didáticas? Não tivemos dúvida: voltamos lá e exigimos o
reembolso do pagamento, ou pelo menos metade. Pois como bom sofista, ele
alegou que a mesma resposta a ambos tinha o propósito de fazer com que
buscássemos com afinco nossa vocação, para descobrir a qual de nós a
recomendação realmente havia servido – e de qualquer modo o outro também
sairia beneficiado, porque o que vale é a busca, não a descoberta. E ainda nos
cobrou por esta terceira resposta! Sabes o que fizemos? Claro, pagamos. Éramos
jovens e burros.

“A experiência serviu para que eu concluísse que, de todos os atenienses que


eu tivesse que procurar para trazer-me alguma luz, os sofistas seriam os últimos.
Aliás, nem os últimos. Eu preferiria aconselhar-me com as cabras leiteiras
vendidas na feira da Ágora. Então, um belo dia, quando eu já contava minhas
últimas moedas e, deprimido, começava a considerar a hipótese de aperfeiçoar-
me no reparo de telhados de parturientes, Querofonte, retornando de uma de suas
viagens de negócios (era como ele as chamava), e portando grande quantidade
de azeitonas, uma bela posta de peixe e um generoso naco de polvo, entrou em
casa esfuziante, com um brilho particular nos olhos, afirmando que trazia algo
em que eu não acreditaria nem se vivesse dez vidas: a resposta ao que eu
procurava! Na hora, deduzindo que os víveres que ele carregava haviam sido
comprados na Ágora, pensei ‘Por Zeus, não digas que consultaste as cabras
leiteiras, e ainda por cima elas responderam’, mas limitei-me a deixá-lo falar.

“ ‘O Oráculo de Delfos!’, disse ele, ainda entusiasmado. ‘Certo, o que tem o


Oráculo de Delfos?’, perguntei, e ele, já acendendo o fogo para cozinhar o polvo,
contou. Viajara a Tebas e, na volta, resolvera esticar o itinerário mais um pouco
até Delfos, à procura do Oráculo do Templo de Apolo. Sim, o Oráculo, que
profetizara inúmeros acontecimentos determinantes na história de toda a Hélade,
e agora, veja só, era visitado por Querofonte em busca de resposta a um
questionamento dos mais prosaicos, constrangedor de tão comezinho: ‘Qual o
homem mais sábio de Atenas?’ Sim, Filipos, a intenção de Querofonte era saber
quem em nossa cidade seria o depositário da sabedoria suficiente para me dizer o
que eu seria na vida. Deixemos que o próprio Querofonte relate:

“ ‘A pitonisa, depois de descer à câmara subterrânea do templo e aspirar, a


intervalos, os vapores sagrados que subiam das fendas do chão, alimentados sabe
lá por que tipos de incensos e ervas, entrou em um transe apolíneo, e então, com
os olhos vidrados e a voz pastosa e inebriada, passou a sussurrar sortilégios de si
para si, em uma linguagem incompreensível, talvez em algum dialeto arcaico,
talvez no fechado vocabulário dos deuses, não sei. De repente ela arregalou os
olhos e disse, separando bem as sílabas, para não haver dúvidas: Só-cra-tes.
Perguntei novamente – qual o homem mais sábio de Atenas? – e ela repetiu a
resposta, da mesma forma inebriada e compassada: Só-cra-tes. Não sei se é
porque um pouco dos vapores inalados por ela acabou chegando a mim,
perifericamente, mas pus-me a rir, a princípio devagar e discretamente, mas
depois passei a gargalhar freneticamente, enquanto ela repetia Só-cra-tes (pelo
menos era o que eu entendia) e eu rindo cada vez mais. Não me entenda mal,
companheiro: credito o ímpeto à euforia que de alguma forma me tomou, com a
inalação dos tais vapores. Os seguranças do templo me encaminharam à saída,
talvez alarmados por minha reação, e só sei que em pouco tempo lá estava eu, do
lado de fora do Templo de Apolo, em plena luz do dia, com a barriga doendo de
rir, sem saber o porquê (teria o deus me concedido a graça temporária do
regozijo, porque de qualquer forma eu pagara pela consulta?). Em pouco tempo
eu pegava carona com alguns negociantes de Corinto que se encaminhavam para
cá. Passei antes na feira, porque durante a curta viagem uma estranha e abissal
fome apossou-se de mim, como nunca antes, e resolvi selar esta descoberta com
um cozido de polvo com azeitonas e caldo de peixe: comamos, pois, e depois
reflitamos. Ah, sim, a consulta custou duas moedas de prata.’

“Pois bem, Filipos, assim Querofonte me narrou, e durante nossa silenciosa


refeição – eu em silêncio, ele com a boca cheia e contorcendo-se em gargalhadas
–, a única coisa que me ocorreu, e que expressei enquanto meu conviva se servia
do segundo prato, foi ‘Não existirá outro Sócrates em Atenas?’, ao que ele,
quase expelindo fragmentos de polvo cozido, de tanto rir, replicou: ‘Imagina,
que formidável seria uma comunidade de vários Sócrates atenienses, todos
compartilhando tanto esse nome quanto a dúvida sobre se existiriam outros
Sócrates em Atenas?’ E aí ele ria mais e mais.Crendo que Querofonte ainda se
encontrava sob o efeito dos tais eflúvios do templo, só pude arrematar: ‘Mas
como poderei eu ser o homem mais sábio de Atenas, se não conheço nem a mim
mesmo?’ Neste momento Querofonte parou de comer, olhou-me com a
fisionomia grave, dando a entender que, se algum sintoma da euforia provocada
pelos vapores ainda houvesse, naquele momento ela acabara de cessar. Pegando
em meu braço ele disse, sóbrio e sereno: ‘Repete o que acabas de dizer’. Repeti,
e ele: ‘Como é possível que tenhas adivinhado isto? No pórtico do templo estava
justamente escrito isso: Conhece-te a ti mesmo! Sócrates, tu és justamente o
homem que procuras! Tudo se esclarece! Ah, e já te falei que a consulta custou
duas moedas de prata?’

“Passei os dias seguintes na mais completa desorientação, ciente de que o


destino me presenteava com mais uma irônica guinada. Como seria eu o homem
mais sábio de Atenas, se a única coisa que eu sabia era justamente que eu nada
sabia? Embalado por esta angústia espiritual, vi-me regressando à Alopécia, não
apenas para pedir mais dinheiro a meu pai, mas principalmente para ouvir de
minha sábia mãe a confirmação ou a refutação de todos aqueles palpites que
fervilhavam em meus ouvidos e desarranjavam minha cabeça. O plano foi bem-
sucedido pela metade: Sofronisco terminara de entregar duas ou três peças em
mármore para um templo em Mégara e, tendo recebido a quantia mediante a
entrega, repassou-me algumas moedas, como se com aquilo estivesse comprando
o prosseguimento de minha permanência longe do vilarejo. Embolsei as moedas
sem o menor constrangimento e perguntei por Fainarete. Ele franziu a cicatriz
resultante do talho que eu lhe esculpira anos atrás, na testa, e resmungou: ‘Tua
mãe está realizando dois partos hoje, a meio estádio daqui. Ou seja, fazendo o
que nessa casa sempre se reputou como imperativo – ajudar os outros.’ Descartei
do comentário o peso da provocação, despedi-me e retornei a Atenas.

“Foi no caminho que tudo se esclareceu.

“Martelava-me na memória, junto à provocação paterna, o episódio de


quando invadi sem querer – e pelo telhado – o quarto onde Fainarete amparava a
mulher do vizinho no trabalho de parto, e inundou-me a certeza de que, de
alguma forma, houvéramos sido, eu e minha mãe, mais do que parceiros
involuntários na arte de trazer luz. Eu causando um rombo no telhado, ela
ajudando a fazer brotar uma nova vida. Mas, muito mais do que isso, havíamos
sido cúmplices – e o seríamos pelo resto da vida – no ofício. O de fazer os outros
parirem. Ela, bebês áticos. Eu, ideias. A luz verdadeiramente se fazia.

“Sim, Filipos – eu, qual uma parteira, não poderia gerar ideias, já que eu
sabia que nada sabia. Mas poderia ajudar os outros no trabalho de parto dessas
ideias, induzindo-os a dar à luz pensamentos que, sem uma dedicada assistência,
jamais viriam ao mundo. Fazendo as perguntas certas. Abordando os temas
pertinentes. Questionando – com ironia, se necessário fosse – certezas pétreas.
Até que a verdade finalmente brotasse, pela boca do meu interlocutor. Ah,
Filipos, naquele momento eu senti que meus pés mal tocavam o chão, e quando
atravessei as muralhas de Atenas a leveza do alívio me embalava. Eu faria nesta
cidade o contrário dos sofistas: obrigaria as pessoas a pensar. E não cobraria
nada por isso, óbvio; até porque, se o fizesse, teria que repartir com Fainarete os
lucros, por justiça poética.

“Ao chegar ao alojamento no Cerâmico, acordei Querofonte, que dormia


após uma madrugada de bebedeira com as prostitutas do bairro, o que deveria ter
dissipado todos os dividendos de sua recente viagem a Tebas. Apesar da óbvia
má vontade, ele concordou em levantar-se para que conversássemos, e travamos
o seguinte diálogo. Ali comecei a testar meu método:

“– Querofonte, serás a primeira cobaia do meu método maiêutico.

“– Maiêutico? Como assim, maiêutico? Serás parteiro, é isso?

“– De certa forma.

“– Sócrates, queres-me de parceiro para partos? Nas redondezas onde


moramos só circulam prostitutas, boêmios e artistas da cerâmica. Tirando as
duas últimas categorias, por questões óbvias, ficamos com as primeiras. É o que
faremos? Trazer à luz os filhos das putas?

“– Vou creditar à ressaca e ao sono teu mau humor. Apenas me responde: o


que é a justiça, para ti?

“– O que dizes?

“– Apenas responde. O que é a justiça, para ti?

“– Bem. O ato de ser justo.

“– E quem é justo?
“– Aquele que pratica a justiça.

“– E o que é a just... Bem. Tentemos de outra forma. Qual a principal


qualidade do justo?

“– Ora. Viver de acordo com sua consciência.

“– Então o justo é aquele que está em paz com a própria consciência?

“– Por certo.

“– O justo então é o que não sente remorsos?

“– Com certeza.

“– E em não sentindo remorsos, o justo portanto é aquele que vive com a


mente sossegada?

“– Eu não diria melhor. Sócrates.

“– Então consideras a mim justo?

“ – Penso que não.


“– E por quê?

“– Porque me deves duas moedas de prata, então não é possível que vivas
com a consciência tranquila.

“Tendo dito isso, Querofonte voltou a dormir.

“Bem, Filipos, eu ainda teria muito o que praticar. Mas não tardou para que,
em constantes conversas na Ágora, eu começasse a aperfeiçoar o método com os
mais diversos tipos de interlocutores. Comecei com os vendedores da feira, no
sentido de fazê-los ver que os preços que cobravam não eram justos. Ora, se eu
precisava pechinchar para comprar víveres e outros artigos, nada mais justo do
que isso. Mas logo o boca-a-boca se encarregou de fazer minha minúscula fama
extrapolar as barracas da feira e a não só se espalhar entre os compradores como
a se estender aos demais frequentadores da Ágora. Nunca tantos se
surpreenderam tanto com detalhes sobre si mesmos que até então desconheciam
completamente. Nunca tantos experimentaram com tal intensidade o sabor da
manifestação de propensões ocultas. Nunca tantos eupátridas ameaçaram me
bater (“Que história é essa de meu filho mais velho chegar em casa dizendo que
quer abandonar o ofício de domar cavalos e especializar-se em penteados
femininos?”), nunca tantos sofistas me coagiram – não sem violência – a
abandonar meu exercício maiêutico (“Como assim, ensinar sem cobrar? Acaso
queres nos falir?”).

“Pelo sim, pelo não, achei mais prudente ingressar na escola que Anaxágoras
havia acabado de fundar em Atenas, pensando em ao menos adquirir a bagagem
erudita suficiente para retrucar as artimanhas sofísticas. Tu sabes, Filipos, que
citar autores, mencionar disciplinas e reverberar conteúdo docente, com dados e
demonstrações, impressionam mais que convencem, e desta forma eu alicerçaria
minhas argumentações diante destes mercenários do conhecimento. Meu pai, ao
saber, assegurou a remessa das mensalidades da escola – mais uma forma de
manter-me a uma segura distância da Alopécia.
“Confesso que as preocupações de Anaxágoras com a constituição da
matéria e a composição dos corpos celestes, apesar de fascinantes, iam um pouco
contra minha natural tendência a fixar-me no comportamento humano. Sim,
claro, estudamos os grandes filósofos até então – Tales, Pitágoras, Parmênides,
Demócrito, o próprio Anaxágoras, óbvio –, e vejo-me obrigado a dizer que, no
decorrer do curso, o que eu aprendia sobre ar, água, terra, fogo, abóbada celeste,
movimento, devir, permanência e impermanência, metempsicose, átomos e
homeomerias deixava claro que, por mais elevados e deslumbrantes que fossem
estes conceitos, meu interesse prosseguiria com o pé no chão, no homem que
pisa esse chão, e que é composto de carne, sangue e ossos, e age de acordo com
os ditames de sua alma e sua consciência. Por outro lado, Filipos, eu seria um
hipócrita se afirmasse que ser versado nas disciplinas ensinadas por Anaxágoras
não contribuiu para consolidar meu sucesso na Ágora, principalmente entre os
jovens robustos, saudáveis e viçosos.

“E assim como me veio a celebridade, veio também a guerra do Peloponeso.

“Aliás, guerra é uma merda, Filipos, mas a guerra, assim como a merda,
parece precisar ver a luz do dia para só assim esgotar os conflitos internos que a
forjaram. Por mais que as batalhas do Peloponeso se diversificassem e
envolvessem outras regiões e nações, o conflito sempre – sempre – foi entre
Esparta e Atenas: duas comadres vizinhas que não se suportam, vivem
envenenando a vizinhança com mexericos e se culpam o tempo todo pelo mau
cheiro das fossas que ambas têm no quintal. O pior é que o marido de uma vive
pulando a cerca para dormir com a outra há tanto tempo que ninguém se lembra
mais com quem ele é casado.

“Bem, os estrategos de Atenas não pouparam ninguém do alistamento. Fui


convocado e quando dei por mim me vi no cerco de Potideia, em plena
infantaria, brandindo atarantado um gládio afiado e percebendo, a duras penas,
que as artes da maiêutica não se mostrariam muito úteis nem entre as tropas
atenienses nem junto aos inimigos. Mas pelo menos ali, entre rios de sangue,
vísceras e cabeças decepadas, percebi minha queda por salvar pessoas, se não de
seus conflitos interiores, pelo menos do fio da espada adversária. Foi quando
conheci o belo Alcibíades – na verdade ele é que estava a ponto de conhecer o
Hades, quando apareci do nada e assustei o cavalo do espartano que iria mandá-
lo navegar com Caronte. O cavalo empinou, o espartano caiu no precipício ao
lado e Alcibíades caiu em meus braços, o que iria despertar a ira de Xantipa anos
mais tarde, mas logo chego lá.

“Cinco anos mais tarde, eis-me novamente no campo de luta, eis-me mais
uma vez numa batalha do Peloponeso, eis-me de novo salvando vidas de
improviso – e uma vez mais assustando cavalos. Desta vez foi na batalha de
Délio, onde vi Xenofonte cair do cavalo à minha frente. Melhor dizendo, o
cavalo caiu sobre ele, e impossibilitou sua fuga dos furiosos beócios que
chegavam cada vez mais perto. À minha aproximação o cavalo subitamente
ergueu-se (nunca descobri o que diabos em mim fazia os equinos se
sobressaltarem; ou minha feiura física, àquela altura já bem definida, ou meus
odores corporais, já que eu não era um adepto radical do protocolo rotineiro e
sem imaginação dos banhos diários – e sabemos que os cavalos possuem um dos
olfatos mais apurados do mundo animal). Sei que carreguei Xenofonte nos
ombros pelo campo de batalha, desviando-me das flechas, das ferozes investidas
de gládios e do opressor tropel dos cavalos que, óbvio, abriam passagem à minha
fuga. Alguma vantagem eu tinha que obter nisso.

“E, sim, Filipos, minha última batalha do Peloponeso: a de Anfipólis, onde,


próximo aos cinquenta anos de idade, tive que reunir forças para – graças à
minha popularidade cada vez mais crescente na Ágora, durante os longos
intervalos entre uma batalha e outra – aceitar o cargo de oficial da infantaria. Ou
foi esse o motivo ou o fato de ninguém mais ter aceito, mas de qualquer forma o
massacre foi memorável. Sim: o massacre promovido pelos espartanos sobre
nosso exército, traduzido por um assombroso banho de sangue. Na apressada
retirada que ordenei ao nosso já combalido e reduzido pelotão, acabei salvando
mais uma vida. Só que, numa escala decrescente de notoriedade – na primeira
batalha eu socorrera um general, na segunda um amigo –, agora eu não tinha a
menor ideia de quem se tratava. A feroz chuva fazia da onipresente lama uma
presença tão sufocante e nociva que a tornava outra adversária, e assim
corríamos dos espartanos feito os bonecos de barro de Prometeu fugindo da ira
de Zeus. Reparei que um dos nossos havia ficado para trás, caído, totalmente à
mercê do inimigo que avançava de lanças e espadas em riste, salivando como
cães em jejum. Ordenei então que o já minguado pelotão continuasse a marcha e
retornei, sob os desesperados gritos de “Perdeste o juízo, Sócrates?!?” Corri até
o soldado caído e, já sem quase força alguma, comecei a arrastá-lo, sabendo que
nisso eu poderia matá-lo mais lenta e agoniantemente do que os espartanos, a
poucos passos de nós, o fariam. Acabei conseguindo alcançar o pelotão e o
coitado viu-se amparado e carregado com mais eficiência pelos colegas de
armas. Ainda assim, uma feroz reprimenda aguardava-me em Atenas. Fui levado
a ferros à corte dos estrategos e obrigado a explicar-me sobre o porquê da
retirada, já que o espírito de caserna exigiria nossa permanência no campo de
batalha para sepultar os mortos. Foi-me trabalhoso – mas não difícil – aplicar a
lógica excludente para fazer as autoridades concluírem, por si mesmas, que
diante do risco de morrermos todos, numa tentativa estúpida de prestar honras
fúnebres aos que já haviam irremediavelmente tombado, a alternativa de poucos
retornarem, feridos mas vivos, se fazia razoavelmente mais sensata.

“O que posso dizer desse período, Filipos, é que as três batalhas mostraram e
o conflito inteiro comprovou que guerras são tão úteis a uma nação quanto
torresmo na boca de um banguela: só provocam dor, lágrimas e ranger de
maxilares, além de verter mais sangue que o necessário. Ou, se preferires uma
figura mais sofisticada e pertinente, é como um jogo de tabuleiro onde, na
iminência de se poder fazer a última e complexa jogada que irá desestabilizar de
vez o adversário, o jogador prefere pegar o tabuleiro e quebrar na cabeça dele.
Mas, de qualquer modo, depois de minha altiva réplica aos estrategos, saí do
inquérito de cabeça erguida. A partir dali eu era Sócrates, o ateniense. Seja o que
for que isso significasse.

“E era disso que eu precisava para me impor não apenas na praça aberta de
Atenas, mas também nos recintos fechados, nas cortes, entre os eupátridas. Meu
exercício maiêutico, salpicado com a ironia que punha por terra as convicções
mais aferradas de qualquer vivente, e ornado eventualmente pelos
conhecimentos das ciências naturais adquiridos com Anaxágoras – para fazer-me
respeitado pelos adversários (e, reforço, admirado pelos belos e bronzeados
efebos da Ágora) – volta e meia resultava na constatação de que, se eu
continuava a nada saber, era justamente isso que levaria os outros a saberem e
conhecerem por si próprios. Porém, Filipos, no momento em que imaginei que
estivesse imune à maledicência dos sofistas e demais contendores, toda essa
autoconfiança foi por terra.

“Porque foi aí que eu conheci Xantipa.

“Releva os adjetivos ressentidos e os relatos exagerados que meus desafetos


– e principalmente meus amigos – dedicaram a ela, Filipos. Xantipa não era uma
mulher de gênio difícil, irascível e intratável. Era uma mulher de gênio difícil,
irascível, intratável e coberta de razão. O que esperar de uma moça de vinte e
poucos anos desposada por um errante com bem mais que o dobro de sua idade e
que lhe inocula três filhos, praticamente um atrás do outro, os quais não
recebiam de forma devida os cuidados paternos? Posso dizer também que o
dinheiro colocado em casa por mim sempre foi igual à paz entre Atenas e
Esparta: um artigo tão sonhado quanto inatingível.

“Acho que o que me atraiu mesmo em Xantipa foi sua capacidade de não se
deixar arrebatar facilmente pelo que eu considerava meu poder de sedução
verbal. Da vez em que lhe expliquei sobre a maiêutica, ela foi incisiva: ‘Já te
ocorreu que alguns de seus discípulos tendem a ser tão estúpidos que, ao invés
de esperar que eles venham a parir ideias, seria melhor induzi-los ao aborto?’ E,
ao contrário das apáticas esposas atenienses, ela nunca deixou de expressar
abertamente seus ciúmes de minhas amizades: ‘Se, em meio a nossos folguedos
noturnos de esposo e esposa e no calor da hora me chamares de Alcibíades, fica
sabendo que não só vou expulsar teu membro da minha intimidade como ainda
vou presenteá-lo com tal joelhada que chorarás desesperado de saudades da
guerra do Peloponeso’.

“Não penses, Filipos, que as obrigações do casamento chegaram a tirar-me


dos simpósios e banquetes gentilmente oferecidos pelos amigos para debates que
iam até o romper da madrugada. Para evitar chegar em casa e ouvir por horas
intermináveis as destemperanças sobre matrimônio desrespeitado, eu
simplesmente amanhecia na rua e por lá ficava, às vezes esticando em até dois
dias o regresso ao lar, onde – aí sim – eu encontraria o ambiente bem mais
sereno. E eu acertava: não foram poucas as vezes em que, ao chegar, eu me
deparava com meus pertences serenamente reunidos e empacotados junto à porta
de entrada.

“Mas as coisas iam andando, Filipos. O problema é que a trilha que elas
seguiam fatalmente as levaria rumo à areia movediça que a história de Atenas
sempre foi. Não, ainda não te divertirei falando de minha morte (minha
rocambolesca morte). Sei que Aristófanes já deve estar padecendo dos efeitos da
fadiga em representar-me, e ainda de pé, mas devo alongar-me mais um pouco e
falar da nova investida de Esparta, que resultou no governo dos Trinta Tiranos. É
necessário. É imperativo, para entenderes o que levou aquela cuia de cicuta a
meus lábios, tantos anos atrás. Sem falar que me divirto sobretudo em cansar
ainda mais teu pai, mas não digridamos.

“Sim, a guerra do Peloponeso foi se fechando cada vez mais até chegar ao
confronto direto: a militarista, utilitária e oligárquica Esparta finalmente cara a
cara com a democrática, filosófica e verborrágica Atenas. A comadre rabugenta e
a comadre fofoqueira, agora olho no olho, sem precisar mais envenenar as
redondezas ou influenciar os vizinhos – e a rabugenta venceu. Como deves ter
aprendido na escola, Filipos, não satisfeitos em meter o aríete em nossas
muralhas e tomar posse da cidade, os espartanos ainda impuseram um governo
oligárquico, selecionando trinta aristocratas atenienses e os colocando no
governo, a soldo de Esparta. Podes imaginar: atenienses vigiando, censurando,
policiando e prendendo... atenienses. Quer ideia mais genial? Um golpe militar
com cara de oligarquia civil, onde a população tinha todos os direitos
assegurados: o direito a obedecer, a se calar, a ir à cadeia e, dependendo do grau
de subversão, à execução sumária. Nas ruas tudo tinha que ser conversado
abaixo do tom, acertado nas entrelinhas, combinado nas sombras, ajustado nas
nuances da sutileza, e mesmo assim imperava o medo de estar sendo ouvido,
observado e denunciado. Quem era espião, quem não era? Quem garantia que o
que era sussurrado neste beco não chegaria em alto e bom som aos ouvidos dos
Trinta Tiranos? Os atenienses nunca viram tão desperto e afiado seu dom de
desconfiança. Tanto que as habituais suspeitas de Xantipa, sempre que eu
chegava em casa muito tarde, me soavam agora como choramingos de bebê.

“Ao mesmo tempo, Filipos, algo florescia nesse pântano crescente: a


comédia, vicejando camuflada, pulsando latente, irradiando-se pelas alcovas –
pergunta a teu pai e ele te dirá. As piadas, única forma de resistência, corriam
pelas ruas e becos como sangue renovado pelas veias; ridicularizavam os tiranos,
satirizavam o governo, faziam chacota da administração, mesmo que de forma
críptica. Ainda me recordo de boa parte das anedotas que corriam naqueles dias:
‘Sabes qual a diferença entre Atenas e Esparta? É que em Esparta alguma
democracia há de existir!’. Ou: ‘Sabes qual é o coletivo de raposa? Trinta!’ Ou
ainda: ‘Entram em uma estalagem um gambá bêbado e um ateniense. O primeiro
pede que lhe ponham uma mordaça, para não correr o risco de beber mais. O
segundo pede que lhe tirem a sua, pois tem sede’. Havia outras, melhores, de que
agora não me lembro.

“Mas não foi a tirania dos Trinta que me matou. Foi a própria democracia
ateniense.

“Já viste, Filipos, a multidão celebrando a Leneia? Percebeste que ali todos
se misturam à festividade? Percebes o clima de confraternização? Notas, além de
eupátridas, a presença de metecos e até de escravos no desfile, na dança e na
beberagem, que sempre vai terminar no templo de Dioniso? Pois eu te afirmo,
Filipos, que isso tudo é pinto perto da festa que Atenas viu quando Trasíbulo e
seu exército finalmente derrubaram o governo dos Trinta. A cidade toda foi
tomada pela euforia, e não apenas a Ágora. Atenienses de todas as idades, todas
as esferas, todas as classes e todos os sexos, num festejo inédito. Bastou pouco
menos de um ano de tirania para que o povo ateniense sentisse na carne o quanto
doía a ausência da autodeterminação, não apenas nos protocolos cívicos do
poder mas também nos detalhes mais comezinhos do cotidiano. Reforço-te,
Filipos: a cidade nunca viu uma festa como aquela. Eu mesmo, num inspirado
arroubo furtado de Hesíodo, a chamei Primavera de Atenas.
“Mas a Atenas que emergiu da ressaca daquela festa era outra. A alegre e
falastrona comadre, traumatizada pela demorada sova tomada da vizinha, agora
não se abria a brincadeiras. Quem não levasse a sério a índole ateniense não era
mais bem-vindo. Quem não enaltecesse as glórias passadas da cidade a céu
aberto era considerado traidor. O cidadão que não tomasse parte ativa nos
debates da Eclésia, da Bulé ou dos tribunais era considerado pária. Valia tudo,
tudo para sobrepujar as amargas lembranças da tirânica ocupação espartana e
para celebrar o espírito democrático de Atenas. Menos ser crítico a Atenas.

“E aí que eu te pergunto, meu jovem e promissor autor – quem tu achas que


se deu melhor neste ambiente? Os sofistas, que enriqueciam vendendo
felicidade, sucesso, prosperidade e o desmedido orgulho pela cidadania, ou
certos andarilhos que se ausentavam dos espaços públicos para continuar
fomentando entre seus discípulos o espírito crítico, o questionamento aos valores
da pólis, a fuga do óbvio, a perseverança no que é justo e virtuoso? Um doce de
figo, jovem Filipos, se adivinhares quem ficou sendo o bandido da vez.

“Claro que não ajudou em nada eu ter, entre meus discípulos, o adolescente,
belo e loiro filho de Anito. Logo Anito, um próspero eupátrida, o mais rico
curtidor de peles da cidade. O garoto em muito me lembrava Alcibíades – àquela
altura já caído em desgraça e banido de Atenas –, sendo na verdade até mais
bonito, viril e fogoso, embora estúpido como uma porta de coudelaria. De
qualquer modo se esforçava para aprender e sorvia minhas palavras com a
determinação de um cabrito esfomeado. O problema é que ele havia abandonado
a família para acompanhar o cortejo socrático, o que alimentou minha fama de
corruptor de menores. Não fosse ele filho de quem era, talvez eu até o tivesse
adotado e convencido Xantipa a abrigá-lo em nossa casa. O único imprevisto
seria Xantipa expulsar-me e ficar com ele. Mas me perco.

“Anito, furioso, tomou suas providências. Para elaborar e formalizar a


denúncia, convocou os amigos Meleto, que se dizia poeta – sendo tão versado na
matéria quanto eu em consertar telhados –, tido e havido como perito nas artes
escritas, e Lícon, pretenso orador que fizera alguma fama na Eclésia com
discursos empolados e cheios de trocadilhos torturantes – ou o contrário, não me
lembro –, juntando então o tripé acusatório para conduzir-me ao tribunal.

“Sim, jovem Filipos. Colada na porta do Tribunal dos Heliastas amanheceu a


denúncia: eu, Sócrates, era acusado de descrer dos deuses de Atenas, propor a
devoção a outras deidades e, óbvio, corromper a juventude. Nas duas primeiras
acusações eu enxerguei a mão de um poeta medíocre como Meleto. Chamar a
retórica e o apreço pela discussão de “deuses”, assim como classificar meus
métodos de debate como “outras deidades”, eram coisas de fazer Homero e
Hesíodo corarem não sem antes virar e revirar-se incontáveis vezes em sua
morada no Hades. Já a última acusação obviamente fora ditada palavra a palavra
pelo curtidor de peles, que agora queria a minha pele: a pena proposta pela
acusação, claro, era a morte.

“Estava tudo tão óbvio que depois de ler o documento dei de ombros e fui
para casa.

“Xantipa quase teve outro filho além dos três que já trouxéramos ao mundo.
Desesperada, aos prantos, exigiu que eu buscasse ajuda. Pensei em alegar que
Zeus estaria atribulado na busca de alguma mortal para coisas mais interessantes
do que ficar deificando-se ociosamente, e a própria Atena teria mais o que fazer
do que auxiliar um acusado de desrespeitar os deuses de sua própria cidade – ela
inclusa. Mas não achei prudente humor àquela hora. Apenas perguntei a quem
Xantipa estaria se referindo, e ela nem precisou pensar: ‘Lísias! Ele é o melhor
orador entre teus amigos; pode comover os jurados, relembrar teus feitos como
soldado, teu valor como pai de família (aqui ela hesitou na veemência, contudo
sem deixar a convicção de lado) e tua condição de ancião que já não sabe muito
bem o que fala!’ (já aqui a veemência foi marcante)

“Foi então que resolvi de uma vez por todas, jovem Filipos. Mesmo
reconhecendo a habilidade de Lísias, concluí que recorrer à pura e simples
oratória seria igualar-me em recursos aos sofistas. Seria abrir mão de minha
natural ironia, de meu método maiêutico, de meu compromisso com a justiça e a
verdade. Então, se urgia rebater as acusações, se necessário fosse refutar uma a
uma aquelas denúncias infundadas e caluniosas, que isso se desse forma mais
autêntica, genuína e verdadeira possível: eu me defenderia no tribunal.

“Desnecessário dizer que vi mechas de cabelo arrancadas nas mãos de


Xantipa – e não era do meu, já pouco e ralo. Aquelas mechas ruivas e onduladas
a mim me pareciam gritar – fosse eu um vidente do futuro a partir de tufos
capilares – ‘Vais deixar uma viúva com menos de quarenta anos!’, ou ‘Teus
filhos ficarão sem pai!’, ou ainda ‘Não pagarás as duas moedas de prata que até
hoje deves a Querofonte!’ Mas, pela primeira vez na vida, mantive-me resistente
diante da colossal insistência de Xantipa. E, ao que tudo parecia, pela última
também.

“Choro de Xantipa à parte, inconformismo dos amigos relevado, candentes


insistências por parte dos discípulos desconsideradas, passei a me concentrar no
que eu diria aos quinhentos heliastas que se reuniriam para meu julgamento. Não
fui hipócrita a ponto de achar que a ocasião seria um fracasso de
comparecimento público, mas eu também não me atreveria a ver-me como um
orador do porte de Péricles, que além de contar com o talento de Tucídides não
só como historiador mas como anotador de seus discursos para a posteridade,
morreu como herói junto à plebe (dizem inclusive as línguas venenosas que os
discursos tinham mais de Tucídides do que de Péricles; vai saber). Eu pressentia
que, morto, eu não arrastaria nem meus seguidores ao túmulo. Mas vivo eu
talvez ainda tivesse capacidade de mobilização. Portanto, sem um Lísias a me
ajudar nos argumentos nem um Tucídides para registrar meu discurso e orná-lo
para as gerações vindouras, pus-me a preparar o que seria dito ao tribunal.

“Foi então que a luz se fez, mais uma vez.

“O que eu resolvi exercitar, meu caro Filipos, filho de Aristófanes, foi


justamente o que teu pai pratica agora, perante ti. Sim, a situação – com
acusações como aquelas, com acusadores daquele naipe e com o melindre que
pairava sobre Atenas naqueles dias – não pedia mais que uma peça de comédia,
e uma comédia em pé eu faria, aos jurados e ao público. Não sei se a primeira da
história humana, mas certamente a primeira de Atenas apresentada por um
apenas um homem, durante um determinado espaço de tempo. E, mesmo
sabendo que o apelo cômico do discurso passaria desapercebido da maioria,
senão de todo o público, a ele resolvi me lançar.

“No dia marcado lá estava eu, no plenário do Tribunal dos Heliastas, diante
dos 500 jurados vindos de todas as demos de Atenas, tendo à frente o tesmóteta
presidindo a sessão e, ao lado e atrás, a multidão que se espremia para assistir. O
público era maior do que eu imaginava, fosse para torcer por mim ou comemorar
a acusação. Meus acusadores viam ali que eu podia introduzir a crença de deuses
de todas as variedades e gostos em Atenas, menos a deidade da indiferença.

“Os acusadores falaram antes. Meleto proferia as acusações num tom


arrastado e de cadência deplorável, pronto a fazer um sôfrego batalhão de
furibundos soldados persas desabar no sono. ‘Sócrates renega os deuses de
Atenas’, ‘Sócrates traz novos cultos a Atenas, justamente no momento em que a
cidade encontrou a paz’, ‘Sócrates coloca ideias confusas na cabeça dos
ouvintes, ao invés de ensejar a crença nos valores atenienses’, ‘Sócrates
corrompe a juventude, que é o futuro da cidade’, ‘Sócrates isso, Sócrates aquilo’.
Anito e Lícon complementaram a acusação, praticamente repetindo a fala de
Meleto, como se Meleto houvesse disparado suas baboseiras lá no cume do
Olimpo e agora ouvisse de volta seu morno eco.

“Subi então ao púlpito, Filipos, e diante de aproximadamente dez centenas


de atenienses em estuporado silêncio eu falei, exatamente como havia planejado.
Nunca as palavras me saíram tão fluidas, lépidas, redentoras. E foi isso o que eu
disse, exatamente isso:

“ ‘Nobres cidadãos atenienses. Sabeis que quando eu estava vindo para cá,
agora, algo curioso aconteceu? Sim, pensei em como seria isso de desrespeitar os
deuses de Atenas. Não deixa de ser instigante: imagino alguém chegando até
Zeus que, ocupado em fantasiar-se de nuvem para fornicar com Io, disfarçar-se
de touro para seduzir Europa e virar cisne para perscrutar a vagina de Leda, tira
uns rápidos instantes para atender o mortal: ‘Que queres?’, e o pobre: ‘Vim me
desculpar por desrespeitar-vos. ‘Desrespeitar-me como?’, brada o deus, e o
mortal: ‘É que eu faço sexo sem muita imaginação, à maneira convencional –
entre duas pessoas –, deixando de seguir vossos notáveis e diversificados
exemplos. Serei perdoado por tal afronta?’ O deus coça a cabeça e diz ‘Olha, se
tens um rebanho de cabras em teu quintal, escolhe a mais simpática, leva-a para
detrás da primeira oliveira frondosa que encontrares e boa sorte. Só cuida de
fazê-la ficar em silêncio. A cabra, não a oliveira. E agora deixa-me’, e então
Zeus parte para transformar seu esperma em chuva de ouro e fecundar Dânae.
Donde concluímos, ó atenienses, que nada é mais desrespeitoso a um deus do
que fazer pouco das lições que ele nos passa com sua história de vida! Aliás, a
seguir esse raciocínio, o único deus do Olimpo a quem eu presto os devidos
respeitos é Hefesto, já que, dadas as minhas feições inteiramente desprovidas de
beleza, sigo o exemplo do mais feio dos filhos de Zeus e Hera! Mas não sei em
que me adiantaria ser respeitoso com Hefesto. Ele é padroeiro dos ferreiros,
artesãos e escultores, e evito lembrar-me da última vez em que tentei esculpir em
mármore. Meu pai, que levou um talho na testa por causa disso, evitava mais
ainda. Falando em meu pai, no dia em que ele viu que eu não teria o menor
talento para extrair estátuas do mármore e aprimorar-me nas artes da escultura,
expressou assim sua decepção: ‘Por Zeus, o desgosto me toma por completo:
crio um filho que não consegue ser artista! Só falta tornar-se um negociante bem
sucedido e terminar de matar-me de vergonha!’ De qualquer modo, meus
caríssimos atenienses, matar as pessoas de vergonha é uma arte, que carece ser
praticada, aprimorada, refinada. Comecei experimentando com meus pais, no
que fui extremamente bem-sucedido. Já vendo em mim mesmo um
empreendedor, parti para Atenas, onde deixei um rastro de mortos de vergonha
em meu caminho, e todos amigos! Sentia-me cada vez mais confiante em meu
dom, o que pôde ser testado quando participei da guerra. Quem eu não matava
pela espada nas hostes adversárias eu matava de vergonha entre as minhas
próprias. Centenas de amigos preferiam jogar-se debaixo das patas da cavalaria
inimiga a ter que ouvir minhas constrangedoras e inúteis preleções filosóficas, e
ainda proferindo suas últimas palavras ao adversário, enquanto apontavam para
mim: ‘Juro que não o conheço!’. Finalmente, já na maturidade, onde não havia
mais por onde eu burilar mais ainda minha arte, mudei de especialidade: casei-
me com Xantipa, e passei agora a matar de raiva. A ela, principalmente. Mas
tudo bem – devo a Xantipa a descoberta de minha real aptidão, num dia em que
ela estava particularmente inspirada: ‘Por Hera, tu não és um maldito falador, ou
um discursador vagabundo, ou mesmo um inútil orador. És pior que tudo isso: és
um filósofo!’. Pois bem. Aqui e agora, por exemplo, corro o risco de mais uma
vez mudar a especialidade de meu dom, e matar-vos a todos –de tédio, com meu
discurso. Se entre os mortos estiver o carrasco que me ministrará a execução,
melhor ainda. Mas, já que falo em execução, vamos nos ater à segunda acusação
que me trouxe diante de vós, além da de desrespeitar os deuses de Atenas:
incentivar o culto a novos deuses. Não deixa de ser interessante, porque se
formos pensar bem, os velhos deuses do panteão ateniense já representam bem a
variedade de características de atividades humanas e da natureza: o fogo, os
trovões, a música, o amor, a adivinhação, a guerra, o comércio, as navegações, a
morte... Se eu fosse trazer novos deuses, as atividades teriam que ser muito,
muito mais específicas. Por exemplo, o deus dos trocadilhos infames, que seria
padroeiro dos comediógrafos. O deus dos trocos passados a menos, padroeiro
dos feirantes. O deus da conversa fiada, padroeiro dos sofistas. O deus do
formigamento nos pés, que apadrinharia quem fica ouvindo intermináveis
discursos sem poder se sentar. Ou o deus das anedotas sem graça, protetor dos
acusados de trazer novos deuses a Atenas e que são obrigados a defender-se no
tribunal. Porque não vejo que outras categorias de deuses eu poderia trazer à
Ágora, caríssimos atenienses. E vede que eu já trouxe muita coisa a ela. Trouxe,
por exemplo, meu pobre método maiêutico, que aprendi com minha mãe
parteira. Não, não me entendam mal. O método não consiste em fazer deitar o
interlocutor, abrir-lhe as pernas e manusear sua genitália – e não que alguns
deles não preferissem assim. Mas o que a maiêutica tem em comum com a
filosofia é fazer com que o agente passivo, recebendo os estímulos adequados,
traga à luz seus próprios conceitos. Aliás, os sofistas fazem quase igual: o que
eles fazem vir à luz são as moedas do bolso dos ouvintes, a quem eles ensinam
como se dar bem na vida. E nesse ponto dou o braço a torcer aos sofistas, porque
eles entendem muito bem do que falam: o que mais é se dar bem na vida senão
falar um punhado de obviedades e ainda ser pago por isso? Pois bem, já minha
relação com o dinheiro é nada ortodoxa: além de não cobrar pelo que ensino
ainda devo uma fortuna aos amigos! A Querofonte, por exemplo, amigo dos
tempos de juventude, devo duas moedas de prata que nunca paguei. Talvez seja
pelo fato de que a quantia se refere a uma consulta que ele fez ao oráculo de
Delfos, a respeito de quem seria o homem mais sábio de Atenas. O oráculo,
revelando um talento natural para a comédia, disse que esse homem seria
Sócrates! Vede bem: como posso pagar por um vaticínio tão abestalhado desses?
E digo mais: a inscrição na porta do templo de Delfos diz ‘Conhece-te a ti
mesmo’. Pois é por conhecer muito bem a mim mesmo que apresento este dito
desleixo nos costumes. A escassez de banho, por exemplo. Como vou lavar e
limpar alguém tão pouco merecedor de consideração como eu? Como vou vestir
roupas limpas e calçar sandálias em uma pessoa tão vil quanto a que encarno?
Como tratar com higiene e asseio alguém que, além de não reconhecer os deuses
de Atenas, ainda propõe o culto de novos deuses? Seria um despropósito! Aliás,
falando nisso, lembro-me de Meleto adicionar a estas duas acusações uma
terceira – a de corromper a juventude. Pois bem, nobres atenienses. Eu sou
também um corruptor de jovens. Sim, devo estar ensinando coisas abomináveis a
eles, como, por exemplo, não tomar banho. Ou como não cortar as unhas do pé.
Ou, ainda, como não se proteger de uma infestação de piolhos. Vou além: devo
estar ministrando aos impúberes aulas de como não se preocupar absolutamente
com dinheiro, de como depender por completo dos outros e ganhar tudo na mão.
Ora, meus caros ouvintes, me respondam com sinceridade: e desde quando é
preciso ensinar isso aos jovens?!? Eles já nascem sabendo! É natural, é da idade,
é o destino. Eu estaria corrompendo cada um desses jovens, sim, se os ensinasse
a julgar como nossos juízes, agir como nossos arcontes e roubar como nossos
estrategos! Mas em momento algum agi contra sua natureza. Pelo contrário,
caros atenienses: essa juventude é que me corrompeu! Ao acreditar nas estultices
que eu digo. Ao seguir meu pensamento trôpego. Ao se mostrar entusiasta de
meu desnorteado método. Ao deixar a família e ingressar em minhas famélicas
fileiras. O que me levou a pensar: ‘Se até os jovens, que não têm olhos nem
ouvidos senão para si próprios, se mostram atraídos por meus ensinamentos
hereges e subversivos, os adultos hão de se deixar seduzir também!’ Percebem,
nobres atenienses, o mal que essas crianças fizeram? Aliás, acabo de ter uma
ideia – com a permissão de Meleto, Anito e Lícon, mais o excelentíssimo juiz
que preside esta sessão e os quinhentos heliastas que me ouvem neste momento:
mudar a acusação e o réu. Que venha depor aqui toda a juventude ateniense, para
prestar conta por seus atos impensados e por sua falta de juízo em me seguir! E
já proponho também a pena máxima: uma semana trancados em casa, ajoelhados
sobre caroços de azeitona e virados para a parede! Bem, pela inexpressividade
que ora percebo no semblante de todos os presentes, principalmente dos três
acusadores, vejo não muitas possibilidades de minha proposição ir adiante. Desta
forma, deixo a este tribunal a atribuição de decidir o que vai fazer comigo.
Prevendo o pior, já me imagino chegando em casa, comunicando a Xantipa
vossa fatal decisão e ainda levando um puxão de orelha dela: ‘Isso é para
aprenderes a parar com essa mania de ser acusado à morte! Isso vai acabar te
custando a vida!’ Obrigado pela atenção, nobres atenienses. Fostes exemplares
como plateia, não me jogando ovos nem pedras. Espero que o sejais como juízes.
Até mais.’
“Foi isto, jovem Filipos, o que eu disse perante o tribunal. O restante já
deves saber. Fui considerado culpado, por uma diferença de sessenta votos. A
grande piada é que foi-me oferecida a oportunidade de sugerir uma pena
alternativa, e quando entrei no espírito da brincadeira, sugerindo que Atenas me
devia o sustento pelo resto da vida no Pritaneu, com todos os privilégios que a
aposentadoria ateniense proporciona, aparentemente irritei mais ainda meus
juízes. Nova votação, e desta vez com cento e quarenta votos de diferença.
Sentença: morte por ingestão de cicuta. Tive a oportunidade então de dizer
minhas últimas palavras:

“ ‘Bem, eu poderia utilizar meu método maiêutico convosco, mas receio que
vos irritaria a tal ponto que a cicuta se tornaria desnecessária para meu óbito.
Desta forma, não questionarei vossa decisão. Para onde vou não posso levar-vos,
até porque a embarcação de Caronte naufragaria com o peso. Não sei dizer quem
estará melhor: eu, no Hades, ou vós, sem mim – porque a partir de agora não
tereis mais a quem culpar e punir quando vossos deuses os abandonarem, novos
deuses chegarem e, o que é pior, vossa juventude se extraviar de vez. Adeus,
cidadãos atenienses.’

“Dito isso, encerro minha apresentação a ti, meu caro Filipos. O restante teu
pai te narrará em pormenores, que envolvem minha prisão, os sanguinolentos
assassinatos dos quais ainda não sabias e, claro – não há como fugir dela –,
minha morte. É hora agora de dar um descanso ao octogenário Aristófanes, que
há um bom tempo se mantém bravamente de pé, repetindo com este gesto o que
eu procurei fazer diante do tribunal. Fica sabendo inclusive que comédia em pé é
gratificante somente em duas ocasiões, Filipos. Quando a plateia ri e quando o
comediante finalmente se senta: falo isso de cátedra (sei que me perdoarás pelo
trocadilho). Sendo assim, estou pronto a devolver a palavra a teu pai. Com a
recomendação de manteres a cautela e não acreditares muito – eu diria quase
nada – no que ele disser de mim.

“Antes de ir-me de vez, deixa que eu te esclareça uma dúvida que, sei, ainda
te zumbe qual uma vespa nos ouvidos: sim, eu paguei as duas moedas de prata.
Como Querofonte já houvesse morrido por ocasião de meu julgamento e
execução, fiz um último pedido a meu amigo Críton: que ele gastasse a quantia
comprando um galo e o oferecendo em sacríficio a Esculápio, pois era ao deus
da cura – que provavelmente inspirou a pitonisa em Delfos – que eu devia o
tratamento para minha cegueira, fazendo-me descobrir que eu, Sócrates, era
justamente quem eu procurava: o homem mais sábio de Atenas. As moedas não
saíram de minha bolsa nem foram parar na de Querofonte, mas pelo menos a
dívida foi paga. É o que importa.

“Adeus, jovem e promissor comediógrafo. Foi um sincero prazer conhecer-


te”.

LIVRO SEGUNDO - O CURIOSO ASSASSINATO DE EURÍSTENES

Onde Aristófanes reproduz ao autor destes livros a primeira conversa


ocorrida entre ele e Sócrates, estando este já na prisão. O diálogo transcorre
inicialmente em um clima de forte desconfiança, principalmente por parte de
Sócrates, que não compreende o que seu famoso desafeto possa ter ido fazer ali,
mas aos poucos o entendimento vai se estabelecendo. Nota-se aqui que o
comediógrafo, em determinado grau, abre mão de sua verve satírica e, enquanto
o filósofo demonstra um peculiar – mas não inesperado – senso de humor para a
ocasião. Nada que não remeta à natureza humana, às suas oscilações de estado
de espírito e ao natural e incansável ímpeto falatório dos gregos.

– Por Zeus. De todos os voluntários a visitar-me no cárcere, jamais imaginei


que Aristófanes estivesse na fila. O que te traz aqui, além da irresistível
curiosidade de conferir como são meus aposentos? Como podes verificar, a
hospitalidade e o aconchego contagiam todo o ambiente, apesar de Xantipa
discordar um pouco da decoração. Queres que eu peça a Agátocles, o carcereiro,
uma dose de vinho mesopotâmico?
– Não há necessidade, Sócrates. Receio que ele se antecipe e traga a bebida
que foi destinada a ti, pelo tribunal. E se há algo que eu considero falta de
educação é beber na mesma taça dos outros. Deixa.

– Ótimo. Até porque se eu pedisse mesmo um vinho vagabundo – aliás, se eu


pedisse qualquer coisa – a Agátocles, o máximo que ele me serviria seria um
murmúrio desdenhoso. Mas a minha curiosidade permanece. O que traz o grande
Aristófanes aqui, e a esta avançada hora da noite?

– Justamente para fugir de encontrar-me com teus amigos e discípulos, para


quem não sou exatamente popular. Nem eles desfrutam dessa popularidade
comigo, para falar a verdade.

– Certo. E o que seria a verdade, para ti?

– Não, Sócrates, não comeces tu com teus exercícios de maiêutica comigo,


que aqui não tens um discípulo, mas tão somente o último comediógrafo que
vais ver em vida. Ou um alívio cômico para ti, se preferires, porque o mais das
vezes o que vais ver aqui é um bando de seguidores chorões e bajuladores.

– Meus discípulos não me bajulam. Eles apenas cercam-me de cuidados.

– Sim, por certo. Te cercam de cuidados e te privam do contato com a


realidade. Sei que Platão, por exemplo, cerca-te de notícias falsas sobre mim.

– Mas o que há de falso na notícia de que vives me ridicularizando?


– Uma coisa é ridicularizar-te. Outra é provocar tua morte.

– A única forma de tuas críticas provocarem minha morte é me matando de


rir. O que Platão andou dizendo?

– Que, entre outros influenciadores da sentença, o retrato que fiz de ti em As


Nuvens foi fundamental para a decisão dos jurados. Que tua imagem em Atenas
foi basicamente desenhada a partir daquele personagem.

– Aristófanes, hás de relevar o ímpeto juvenil de Platão ao avaliar tuas peças.


Sabes que ele também tem uma inclinação para o teatro, e não é raro que ele
desande a tecer esforçadas críticas às encenações a que assiste.

– Sim, ele chegou a mostrar-me uma tentativa de peça dele, tempos atrás. Por
Dioniso... Devo dizer que vi até um certo talento para os diálogos, mas as
tramas, os conflitos e os personagens – misericórdia! Melhor seria ter encenado
a peça diante dos Trinta Tiranos. Eles fugiriam correndo de Atenas e nos
veríamos livres de Esparta sem derramamento de sangue. Imagino até que a
presente ira dele em relação a mim advenha de minha reação à sua investida
dramatúrgica.

– Poupa o moço; ele pode ter algum futuro. O caso é que não respondeste até
agora à pergunta.

– Não tenho que responder-te o que é a verdade, Sócrates, eu não...

– A pergunta é o que vieste fazer aqui.


– Ah. Sim, certo. Certo. Bem, na verdade – e pela segunda vez tropeço nessa
palavra, por Zeus – são três as razões. Primeiramente, e me desculpando pela
aparente frieza da pergunta: quando se dará o, digamos, procedimento?

– Procedimento, tu dizes...?

– A parte de cá de teu ingresso no Hades.

– Curioso. Um comediógrafo iconoclasta como tu agora utilizando-se de


eufemismos para falar de morte.

– Imagino que, excluindo os zangões após o acasalamento, jamais


testemunhei alguém que soubesse que ia morrer de imediato e que se mantivesse
sereno. Creio que eu mesmo só vá usufruir desta tranquilidade de espírito na
velhice, se velho eu ficar. Mas, até para não dar motivo às tuas digressões
maiêuticas a respeito, volto à minha pergunta: quando será a execução?

– Bem, não sei se os deuses estão a me punir, a rir-se de mim ou a me ofertar


a possibilidade da escapatória. Mas devo a Teseu – e, em menor medida, ao
Minotauro – o fato de eu não partir para o Hades nos próximos dias.

– Como assim?

– Simples, meu caro Aristófanes: a cidade encontra-se no período anual de


celebração da vitória de Teseu em Creta, lembra-te? O barco oficial ateniense foi
enviado ao santuário de Delos para a cerimônia religiosa, e assim...
– Claro, claro. Agora me recordo. Condenado algum deve ser executado em
Atenas enquanto a sagrada nave permanecer fora da cidade. Creditas isso à sorte,
Sócrates?

–Tivesse eu a metade da presunção de um desses sofistas que gozam de tanto


prestígio nas altas rodas atenienses, iria imaginar que Teseu matou o Minotauro
unicamente para que, séculos depois, minha morte fosse adiada: um touro foi
sacrificado apenas para que eu ganhasse uma sobrevida, portanto eu deveria
agora estar rendendo homenagens a Teseu.

– Eu não julgaria prudente ser grato por isso. Ariadne salvou Teseu no
labirinto utilizando seu providencial fio, e ele até tomou-a por esposa – para,
meses depois, abandoná-la numa praia.

– E o que é a ingratidão senão a irmã gêmea e mais ciumenta da injustiça,


que um dia...

– Não, por Zeus, Sócrates! Essa foi apenas a primeira razão de minha vinda –
saber o quanto ainda tens de vida –, não o moto para uma lição de filosofia. Teu
tempo agora é precioso; não o percas. Passo a contar-te o segundo motivo que
me trouxe aqui, pois.

– Que seja.

– Estive pensando...

– Bom, depois dessa longa pausa que fizeste após dizer que estiveste
pensando, devo presumir que fizeste uma afirmação, ou quando muito uma
provocação, no aguardo de que eu a complemente? Algo como “Que queres
dizer, um comediógrafo pensando? Logo eles, que só pensam depois que já
encenaram seus trabalhos e irritaram a quem tinham que irritar?”

– Não, Sócrates. A pausa foi... pura hesitação. Procuro as palavras.

– Para quê?

– Estive pensando em uma comédia. Em escrever uma.

– Natural, meu caro Aristófanes. De nós dois serias tu e não eu a escrevê-la.


Deves saber inclusive de minha indisposição para com a escrita, que aprisiona
perenemente a expressão do pensamento em um molde frio e estático, não
aceitando o fato de que as palavras são dinâmicas, são a...

– Uma comédia sobre ti.

– Sobre mim?

– Sobre ti.

– E o que terias a dizer sobre mim em uma comédia? Já não o fizeste em As


Nuvens? Queres agora redimir-te e perfilar um novo Sócrates, menos paspalhão
e mais perquiridor da alma humana? Ou, ao contrário, pretendes transformar-me
em um vilão mais pérfido ainda do que pintaste na peça, para fazeres Atenas se
eximir da culpa por haver me matado?

– Não pretendo redimir-me por nada: o que escrevi, escrevi. Nem me


preocupo com os remorsos dos que te condenaram. Quero escrever uma comédia
sobre teus últimos dias no cárcere.

– Não entendo. É a primeira vez que vejo um satirista pedir permissão a um


satirizado.

– Não peço tua permissão, Sócrates. Peço tua cooperação. Quero escrever
uma peça cômica para acompanhar os últimos dias de um condenado e,
principalmente, entender por que ele concordou em morrer.

– E presumo que vejas comicidade nisso?

– Outros talvez não; eu só pelo lado cômico enxergo a coisa. Um homem


como tu, que andas descalço, desgrenhado e descuidado da higiene, mas vives
com um séquito em tua rabeira. Vives subjugado por tua esposa, mas pregas aos
outros exemplos de altivez. Deves a Atenas inteira, mas dizes que Atenas vive
em débito contigo. Não tens um único motivo para reclamar da vida, mas te
entregas sem resistência à morte. Por Zeus, se isso não for a sinopse de uma
comédia, devo ir agora à pitonisa perguntar a Dioniso se as regras mudaram e eu
não fui avisado.

– Mas por que queres minha colaboração? Não basta escreveres, pronto? E,
assim que eu morrer, usufruíres dos louros da fama, refestelando-se na glória de
minha história?
– Não. Pretendo deixar à posteridade um Sócrates peculiar. Não o Sócrates
de teus discípulos, que hão de colocar as palavras deles em tua boca. Não o
Sócrates dos bajuladores, que o moldarão de acordo com suas conveniências.
Não o Sócrates dos doutos, que o sequestrarão como porta-voz de suas doutrinas.
Mas o Sócrates visto pelo olhar da comédia, pois que é na sátira que o
personagem se desnuda, se mostra sem filtro, sem enfeite, sem desonestidade ou
bajulação. É na comédia que tua tragédia se apresenta por contraste e se define
sem ornamentos ou hipocrisia. Só a comédia retrata, Sócrates, sem comiseração
ou misericórdia. As demais narrativas atendem apenas a quem narra.

– A essa hora o cansaço me impede até de argumentar. Estivéssemos em um


simpósio na casa de Agatão, com vinho, belas hetairas flautistas e atraentes
efebos, terias até o amanhecer para me convencer. Mas aqui, neste desconforto
do catre e com o coxo Agátocles a velar desinteressadamente nosso colóquio,
que entretenimento nos distrairia? Pois bem, enquanto avalio esta tua proposta,
responde-me: dizias também haver um terceiro motivo a te trazer aqui?

– Sim.

– Não queres deixá-lo para outra ocasião? A esta hora o sono começa a
conspirar para fazer minha cabeça pender involuntariamente para a frente e para
trás, o que pode causar no interlocutor a impressão de que em tudo concordo
com ele – e tenho a certeza de que desconfiarias de tanta aquiescência, ainda
mais de minha parte.

– Creio que o terceiro motivo há de tirar por completo teu sono.

– O que seria? O Tribunal dos Heliastas porventura retirou a acusação e


anulou a sentença? Estarei condenado a voltar a ouvir as reprimendas diárias de
Xantipa?
– Olha... Para não dizer que não erraste de todo, a coisa tem relação, sim,
com uma morte. E de alguma forma com o poder público. De natureza um tanto
suspeita, mas tem.

– Bem, confesso que o sono deixou-se espantar levemente, talvez para ir


incomodar Agátocles. Deixai-o dormir. Do que estamos falando?

– A princípio foi-me solicitado segredo absoluto. E de fato, tu és o primeiro e


único a quem contarei.

– Então, creio não estar exagerando na figura de linguagem se digo que


levarei o segredo ao túmulo. Mas o que tens aí? Um pedaço de cerâmica? Um
caco de telha?

– Assim se parece. Não sei ainda de que peça este fragmento faz parte. A
princípio nem me interessei em saber, quando, hoje de manhã, logo ao primeiro
raiar do sol, depois da fina garoa que durou toda a madrugada, dei com ele
depositado na soleira da minha porta dos fundos. Na verdade pensei em chutá-lo,
imaginando que meus críticos teatrais já foram mais incisivos arremessando
pedras na janela, e não as pousando tão delicadamente ao pé da minha porta.
Estariam as restrições à minha obra ficando mais elegantes? Foi então que
percebi a inscrição.

– É fato. Há uma inscrição aqui. Traz, traz aquele lampião mais para perto.

– Não é necessário. Eu mesmo já a li uma dezena de vezes hoje. Não


precisas perder tempo.
– E podes me conceder o privilégio de contar o que ela diz?

– É Sócrates quem confirmará: nem tanto ao céu, nem tanto à água.

– Reclamas de meus circunlóquios mas não abres mão dos teus. Preciso fazer
a pergunta de outra forma, de modo que... ?

– Eu acabei de dizer. A inscrição é exatamente esta. É Sócrates quem


confirmará: nem tanto ao céu, nem tanto à água.

– Compreendo.

– Compreendes? Sim, porque tem teu nome nele.

– Aristófanes. Foi este o terceiro motivo de vires me ver, a essa hora da


noite? Questionar sobre o que significa uma inscrição enigmática contendo meu
nome, riscada num pedaço de cerâmica, largado em frente à tua porta? Se eu
fosse me preocupar com cada vez que meu nome é encontrado inscrito em algum
rincão de Atenas, e com o que é falado de mim nessas inscrições, eu não faria
outra coisa na vida. Não, não tenho a menor ideia do que esta mensagem quer
dizer, e se foi por isso que...

– Ah, Sócrates, Sócrates. Soubesses tu do desenrolar desta trama, estarias


ansioso por mais detalhes. E compartilharias de minha dúvida.

– Se tais detalhes ainda não apareceram em nossa conversa, certamente a


culpa não é minha. Tua mania de contar tudo paulatinamente, aos pedaços,
engendrando expectativa, pode até servir à tua natureza de autor teatral, mas
prolonga qualquer conversa quase infinitamente.

– Pois bem. Enquanto eu tinha o pedaço de cerâmica nas mãos, lendo e


relendo a inscrição e já me preparando para jogá-lo fora, percebi que, na soleira
da porta, onde ainda jazia a umidade da garoa da madrugada, o contorno do
pequeno espaço que o fragmento tinha ocupado desde não sei que horas se
mostrava seco, delineando melhor sua forma: uma espécie de triângulo,
apontando para o poente, para o rumo da Colina das Ninfas. Óbvio que naquele
momento não vi ligação alguma, mas – talvez instintivamente – guardei o
fragmento comigo, e por um bom par de horas não pensei mais no assunto.

– Mas vieste até mim com o fragmento, procurando uma causalidade entre
ele, a inscrição e a Colina das Ninfas, certo? Queres saber o que a mensagem, as
ninfas e a cerâmica podem ter em...

– Por Hefesto, Sócrates, imploro mais uma vez. Deixai-me fora de tua
maiêutica. Não vim procurar a resposta sobre a verdade, a justiça ou qualquer
outro valor – só contar-te o que se passou.

– Não queres discutir sobre valores, mas, por Zeus, qual o valor de uma
discussão sobre um pedaço de cerâmica, contendo meu nome, encontrado na
porta de tua casa hoje, ao raiar do dia?

– Porque horas mais tarde eu soube que encontraram um corpo enfiado em


um buraco, aos pés da Colina das Ninfas.

– Um corpo?
– Sim. Um cadáver.

– Por Zeus. Como foi isso? Como ficaste sabendo? Quem te avisou?

– Lembra-te daquele sofista que certa vez te afrontou na Ágora, chamando-te


de cáften da retórica, porque não cobravas por teus ensinamentos mas vivias
pendurado em teus discípulos, sustentado por eles?

– Aquele tebano? Como é mesmo o nome dele?

– Eurístenes.

– Foi ele quem te contou?

– Dificilmente ele me contaria: o cadáver era ele. Fiquei sabendo foi por
Eudoxo, um dos astínomos da cidade, que vem a ser primo de Agatão, e com
quem eu ceei ontem à noite, em casa deste. Lá conversamos todos sobre vários
assuntos, inclusive tua prisão, e bem depois Eudoxo chamou-me a um canto e
perguntou: “Ficaste sabendo o que encontraram hoje cedo lá pelas cercanias de
onde moras?” E contou-me, visivelmente já embalado pelo vinho: seus arqueiros
citas foram chamados pelos moradores, que estranharam um buraco que não
existia até ontem, no sopé da colina. Não foi preciso muito esforço para
descobrirem, jogado lá dentro, o pobre Eurístenes, que só foi identificado após
ser levado e ter tirada dele toda a lama que o encobria. Na ausência de familiares
para reclamar o corpo ou investigar o crime, ele de imediato foi sepultado em
uma vala comum, ao lado do Cerâmico.

– Um momento, Aristófanes. Sei que critiquei tua vagareza em contar uma


história, mas agora necessito dela. Voltemos atrás: sei que nosso nobre poder
público, tão prestativo no julgamento, não é exatamente dedicado à investigação
criminal; mas, mesmo não havendo ninguém a reclamar o corpo, não chegaram a
sequer examiná-lo? Por que a pressa? Qual a causa da morte?

– Foram exatamente as duas perguntas que fiz a Eudoxo, e ele, já quase


tropeçando nas palavras – e se tropeçasse cairia com a cara no chão – balbuciou
que a pressa se deveu a um embaraçoso detalhe.

– Alguém completamente embriagado qualificando um detalhe de


“embaraçoso” é realmente um discurso interessante de se acompanhar.

– Acompanha, pois. Devo dizer que Eudoxo, quanto mais se dava ao etílico
esforço de acentuar a discrição do comentário, mais deixava a voz escapulir
desajeitadamente audível (por sorte aos demais convivas do banquete ela soava
apenas ininteligível): Eurístenes tivera algum tempo atrás relações um tanto
íntimas e demasiado prolongadas com um certo estratego – quem, Eudoxo não
quis dizer –, relações encerradas de forma abrupta, passional e salpicada de
ameaças, principalmente por parte do estratego, que jurou matar nosso amigo
sofista. A coisa inclusive é sabida por certos círculos da aristocracia ateniense.
Hás de entender aí os cuidados de Eudoxo ao reconhecer e imediatamente
sepultar a vítima: proteger um de seus chefes.

– Por Zeus. E criticam minha aversão à carreira política. Este teu amigo
astínomo costuma ser generoso em divulgar detalhes do poder público assim?

– Eudoxo não é meu amigo. Apenas um conhecido de juventude que, não


satisfeito com o cargo de astínomo, ainda se considera um dramaturgo
subestimado – dado a relatar ocorrências pessoais e comezinhas com ares
teatrais e pomposos, sempre que me vê –, a quem felizmente quase não vejo,
mas sempre que vejo acha-se embriagado.
– Atenienses, atenienses. E a respeito da causa da morte: ele disse, ou
balbuciou algo?

– Aí é que está, Sócrates. Quando as coisas parecem se esclarecer, mais


sombras elas recebem, mais o mistério se acentua. Pelos sinais presentes no
cadáver – a rigidez de todo o corpo, a coloração azulada da face, a frieza da pele,
que inclusive trazia os pelos eriçados, a umidade da roupa –, tudo indica que
Eurístenes não morreu ali: ele se afogou. Ou fui afogado.

– Um afogado, encontrado jogado em um buraco na terra? Por Dioniso,


Aristófanes, fosse em um de teus devaneios teatrais, onde colocas atenienses
ambiciosos convivendo com aves no céu, eu até acharia graça em um defunto
afogado que, achando mais digno ser encontrado em terra, escapole do rio, cava
um buraco e se mete nele. Mas isso? O que havia no vinho que teu amigo, digo,
Eudoxo, tomava? Ou a substância estava presente também em teu vinho, e foste
vítima dela?

– Isto quer dizer que viste As Aves e gostaste?

– Não importa. É esta então a história que constitui a terceira razão de teres
vindo me visitar? Um caso contado por um funcionário público embriagado e
falastrão?

– Ainda tem mais. Havia uma concha dentro da boca.

– Como? Eudoxo bebe vinho com conchas na boca? Não é à toa que
entendeste tudo errado: bêbado e com a língua atropelada por uma concha, é
claro que ele...
– Não comeces, Sócrates: o comediante aqui sou eu. Sabes que falo do
cadáver.

– Então, meu caríssimo Aristófanes; nosso defunto, não satisfeito em haver


sido encontrado em um buraco, revelou-se vítima de afogamento e, para ornar
mais ainda a ocorrência, trazia uma concha na boca? Não é provável que ele
tenha se asfixiado com ela?

– Segundo Eudoxo ela se encontrava debaixo da língua. Dá a entender que


foi colocada ali.

– Ah, sim? E quais outros sinais característicos o cadáver apresentava? Um


olho só, qual um ciclope; o corpo metade cavalo, como um centauro; nos pés, ao
invés de cascos, asas? Francamente, Aristófanes, se já começaste a encenar a tal
comédia comigo, devias ao menos me deixar avisado, para que...

– Não, não. Isso é tudo. E, até onde sei, Eudoxo bebe como um gambá e
floreia como um mau poeta, mas não possui a mínima competência para
inventar. Seus problemas são a inconfidência e a falta de diligência no beber, a
meu ver incompatíveis com o cargo – mas, por outro lado, apreciados por boa
parte de Atenas como fontes de incontáveis e irresistíveis histórias envolvendo
os bastidores do poder público. Não é à toa que ele é sempre convidado para
simpósios onde o vinho corre solto.

– Bem, sem precisar recorrer às artes da maiêutica ou a qualquer silogismo


mais sofisticado, temos que o principal suspeito se torna o tal estratego, cujo
nome teu companheiro de banquete não quis declinar. Juras de morte proferidas
em alto e bom som não costumam ser um salvo-conduto dos mais eficazes.
– Não fosse por um detalhe. Segundo Eudoxo, ele se encontra em Corinto, a
negócios, e não deve retornar pelas próximas semanas.

– Por Zeus. Este teu Eudoxo não é só uma fonte, é um rio caudaloso e
barulhento. Quem mais soube destes detalhes?

– Até onde sei, somente eu, que calhei de ser seu vizinho à mesa. E agora o
trago a ti.

– E por quê?

– Só tenho uma coisa a dizer-te, Sócrates: um dia que começa com um


fragmento de cerâmica colocado à minha porta, contendo uma inscrição críptica,
apontando de forma proposital ou não para um ponto a cem passos de minha
casa, justamente onde é descoberto um buraco no qual se aloja o corpo de um
sofista morto não ali mas em outro lugar, por afogamento, e trazendo uma
concha debaixo da língua – o que deixa clara a efetiva participação de um
assassino –, não é exatamente um dia trivial. Principalmente quando no
fragmento de cerâmica está escrito também o teu nome.

– Deixa ver se entendi. O que sempre te motivou a escrever sobre mim era o
ímpeto de satirizar meus ensinamentos, correto?

– Veja que eu...

– Responde à pergunta.
– A princípio sim.

– Digamos até que podes nutrir uma curiosidade sobre o que


verdadeiramente move minha filosofia; por outro lado reconheçamos que esta
curiosidade não é o suficiente para fazer-te vir aqui e se propor a escrever uma
peça sobre mim, certo? E antes que venhas com circunlóquios do tipo “Não é
bem assim”, rogo que respondas com objetividade.

– Bem. Não.

– Mas, mesmo tendo tuas restrições à maiêutica como método filosófico, a


enxergas como uma possível ferramenta de auxílio na apuração de um crime.
Estou correto? Não, não te apoquentes, Aristófanes – eu mesmo já cuido de
responder, vendo tua abobalhada de expressão de quem quer concordar mas
constrange-se em dizê-lo: estou. E vou adiante: digamos que tua curiosidade em
torno do crime é consideravelmente maior do que a curiosidade que alimentas
sobre a essência de meus ensinamentos, certo?

– Sócrates, nada mais tenho a dizer senão...

– Donde concluímos que, apesar de teres alegado vir até a escuridão de


minha cela escrever uma peça sobre mim, o real motivo de teu gesto é contar
com minha argúcia para ajudar-te a tirar o véu de mistério que envolve o crime,
as motivações, a identidade do assassino e o significado da mensagem no
fragmento de cerâmica.

– O que preciso fazer? Solicitar-te de joelhos que deliberemos a respeito, e


assim...
– Não, por Zeus, meu caro Aristófanes. A última pessoa a ajoelhar-se diante
de mim foi Alcibíades, em um dos ébrios banquetes de Críton. Num primeiro
momento eu, ébrio também, imaginei que naquele momento Alcibíades me
prestava adoração ou tinha tombado pleno de lascívia oral, até descobrir que ele
havia apenas tropeçado no corpo desacordado de Críton. Mas voltemos ao que
eu dizia – se acabaste concordando com o que eu disse sobre tua má vontade a
respeito de minha maiêutica como método, hás de convir, sem nenhuma dúvida:
a maiêutica funciona.

– Sócrates. Sócrates. Não vim para fazer-me cobaia tua. Se escrevi e encenei
As Nuvens há dezessete anos para criticar teus métodos e hoje recorro a eles,
certamente não é para tratar de filosofia.

– Se teu objetivo é um debate criminal, não deverias recorrer a mim e sim a


Sófocles, e contar com todo aquele inigualável tirocínio investigativo
demonstrado no Édipo Rei, para ajudar-te a chegar não apenas ao assassino mas
também à real e torpe motivação do crime. Não, não, deixa-me pensar – Sófocles
já partiu há um bom par de anos para o Hades. Talvez então seja o caso de
realmente me acompanhares na cicuta, pois assim terás a estimulante
oportunidade de apresentar o caso a ele!

– Não procuro por devaneios dramatúrgicos, Sócrates. Busco o desconforto


das perguntas necessárias e a precisão das respostas adequadas. Por isso trouxe a
ti a história.

– Devaneios dramatúrgicos! Quem diria que eu ouviria de um homem do


teatro tal crítica às artes cênicas? De mais a mais, quem te garante que eu vá
acreditar em tua história e, mais ainda, em teu repentino interesse em relação a
mim?

– Não tens que acreditar. Não tens inclusive que concordar com outras visitas
minhas a partir de agora. É só dizeres.

– Insistes mesmo em querer escrever uma comédia a meu respeito?

– Decerto. Não deixo de achar uma grande ideia ouvir o que tens a dizer-me
a respeito de tua vida e principalmente de teu julgamento.

– Digamos pois que eu acredite nisso. Não vejo nenhum problema em


retornares para verdadeiramente esclarecer-te sobre meu método. Quanto ao
crime em si, continuo não vendo utilidade em tentar elucidá-lo, quando o próprio
poder público já cuidou de sepultar as evidências. Literalmente.

– E isso não te desperta uma curiosidade maior ainda?

– Meus setenta anos são criteriosos com o que minha curiosidade há de se


envolver. E, de mais a mais, o barco que irá retornar da cerimônia de Delos pode
atracar a qualquer momento no porto do Pireu. Nesse momento, sabes que cessa
qualquer entendimento entre nós.

– Não precisas me lembrar.

– Ora, veja só. Agátocles acaba de despertar. Agátocles, meu bom homem,
seria muito pedir-te um vinho babilônico? Se não tiver, um local serve. Ou
mesmo água. Talvez até um murmúrio de desdém, contanto que dirigido não a
mim mas a meu ilustre desafeto aqui, que veio hoje subtrair uma noite de sono
das poucas que ainda me restam.
LIVRO TERCEIRO - O ALERTA DE MEDUSA

Onde Aristófanes, prosseguindo a conversa com o autor destes escritos,


agora nas dependências do templo de Hefesto, volta a alertá-lo para o vício da
escrita que favorece a pressa e o açodamento no desenrolar da trama das
comédias que este está a produzir. De volta aos acontecimentos de tantos anos
atrás, Aristófanes menciona os motivos que levaram Sócrates a não querer fugir
do cárcere, a despeito das condições aparentemente favoráveis. Por fim,
discorre sobre as consequências da descoberta do cadáver de Eurístenes, e
narra os inusitados pormenores da descoberta da segunda vítima, onde ele se vê
envolvido mais do que gostaria e menos do que seria preciso para entender que
diabos está se passando.

– Mas o que chegou a ser esclarecido sobre a morte deste Eurístenes, meu
pai? Foi realmente um assassinato? Os demais crimes tiveram a ver com este?

– Filipos, se eu quisesse contar-te a história de trás para a frente, já estarias


rumo a Siracusa neste momento. Se aqui resolvestes ficar, que aqui permaneças
como ouvinte. Imagina se eu fosse te contar uma anedota já te fazendo rir e só
depois começando com “Entram numa estalagem um espartano, um coletor de
impostos e um ganso”?

– Não resolvi ficar. Fui instado a isso.

– Podes partir quando quiseres!


– Pai. A próxima embarcação só sai em três meses. E, de mais a mais, tu
disseste...

– O que eu disse?

– Esqueçamos. Se não queres falar sobre o que foi esclarecido sobre o crime,
então...

– Te referes à minha doença? E imaginas que eu a uso como chantagem para


que não partas?

– Eu jamais diria isso.

– Pois poderias dizê-lo. Aliás, digo eu: a parte da chantagem é a pura


verdade. Mas a parte da doença é mais verdadeira ainda. Só te peço ouvidos,
Filipos, para que a história não morra comigo. É a primeira vez que falo dela.
Não só da comédia sobre Sócrates, mas também do caso dos assassinatos, que
ficaram em segredo por todo esse tempo.

– Mas insisto: por que me contas tudo só agora?

– Bem, quanto à comédia, deixei-a incubando por décadas, imaginando


quando poderia formatá-la, aperfeiçoá-la e, por fim, se eu seria a pessoa certa a
apresentá-la. Da amostra que te fiz ontem, muito ainda precisa ser ajustado e
alinhado, mas minha hora já chega, e eu não quero levá-la ao túmulo.
– E os crimes?

– Sim, eu estava esperando todas as autoridades de alguma forma envolvidas


morrerem, para não ferir-lhes os sentimentos.

– Mesmo?

– Lógico que não, Filipos! Desde quando eu iria ter pruridos para embaraçar
algum poderoso? O caso é que, na época, como as investigações ocorreram sob
sigilo, não pude contar a ninguém – a não ser a Sócrates. De lá para cá, tive
minhas razões para manter-me em permanente silêncio, e tu o entenderás, mais à
frente. Entretanto agora, na iminência de meu ingresso no Hades, vejo-me
forçado a passá-los adiante. Meu filho, declaro sem exagero algum: eles
precisam ser contados.

– Bem, bem, fala-me então primeiramente deste Eudoxo. Lembro, quando


criança, de ter ouvido falar dele.

– Creio que tenha morrido há uns dez, doze anos – e talvez seja desta
circunstância que te lembres do nome dele: metade de Atenas dizia que faleceu
dormindo, ao lado da esposa; a outra metade assegurava que ele teve um ataque
do coração em plena celebração orgiástica no Cerâmico, coisa que não convinha
exatamente a um magistrado policial, encarregado de garantir o zelo pela
segurança das ruas e pelos bons costumes. Mas cruzei com ele várias vezes por
ocasião dos assassinatos, e posso dizer que atrapalhou menos do que ajudou. Na
verdade, só de não atrapalhar ele já me prestava um inacreditável auxílio.

– Por Zeus. Quer dizer então que a investigação efetiva dos crimes coube
basicamente a Sócrates e a ti?
– Filipos, sabes que os astínomos atenienses nunca se especializaram em
averiguações. Basicamente o que ainda fazem é dar voz de prisão e levar a
julgamento. Mas, como única autoridade envolvida, principalmente levando-se
em conta que um assassinato levava a outro – como verás –, Eudoxo acabou
presente, mesmo que não por vontade própria, em todo o processo.

– Fico mais e mais assombrado. Mas me responde: Sócrates viveu para ver
todos os crimes elucidados?

– A geração de autores a que tu pertences parece irreversivelmente


contaminada pela afobação dramatúrgica. Nada mais precisa ter importância –
seja a premissa, seja o conflito: já quereis pular para a resolução. Filipos, não
basta que te aperfeiçoes na arquitetura da narrativa, tens também que saber
apreciar a narrativa! Ou na tal comédia de costumes que exercitas a prática é
esta? Poupar o público do desenrolar da trama, já que aparentemente ninguém
mais tem tempo a perder?

– Pai, eu apenas perguntei se Sócrates...

– Se eu te digo que Sócrates foi fundamental para que todos os assassinatos


se esclarecessem, já podes inferir até onde foi sua participação.

– Perfeitamente. Mas nestes trinta dias, quantas visitas fizeste a ele?

– Creio que uma meia dúzia, não mais.

– Nos mesmos horários?


– Sim, e sempre em horas avançadas, depois que os discípulos já haviam
saído. Eu não suportava aquele bando de bajuladores indo todo dia declamar as
mesmas cantilenas: “Sócrates, como deixas Xantipa e teus filhos à míngua, sem
nenhuma garantia de sobrevivência?”; “Sócrates, vê que fugir daqui não é nem
um pouco difícil, até parece que facilitaram para ti”; “Sócrates, pensa nisso”,
“Sócrates, pondera sobre aquilo”. Creio até que ele concordaria em sair se o
carcereiro se comprometesse em contrapartida a trancafiar todos os seus
seguidores, para que ele pudesse circular livre e sem precisar suportar mais
aquelas lamúrias, por Zeus.

– É natural que quisessem livrar o amigo dos grilhões.

– Então me diz: conheces a fábula de Esopo sobre o cão de caça e a lebre?

– Por certo. Pelo que me recordo, um cão de caça acuava uma lebre em sua
toca, até que a lebre, para fugir ao cerco, saiu em disparada ravina afora, com o
cão em seu encalço. A partir de determinado ponto...

– Exatamente. A lebre prosseguiu na corrida e o cão se deu por vencido,


consciente de que, se ele almejava uma mera refeição, a lebre almejava continuar
vivendo, no que inevitavelmente acabou reunindo muito mais motivação para
prosseguir em sua corrida.

– Assim é.

– E como achas que esta fábula se encaixa no que estamos conversando,


sobre Sócrates?
– Bem, imagino que Sócrates seja a lebre, fugindo da feroz tirania ateniense,
e que...

– Aí é que te enganas, Filipos. Sucumbiste à simplicidade da analogia,


preferindo partir das índoles preconcebidas dos animais. Sócrates na verdade é o
cão de caça, na procura ininterrupta pelo conceito de justiça, cercando-o através
de seus métodos, perseguindo-o incansavelmente através da perquirição das
mentes, mantendo-se em seu encalço por meio da ironia, da averiguação
filosófica. Mas, a partir de determinado momento, já velho e cansado, Sócrates
percebeu que os efeitos colaterais desta busca obcecada passaram a prevalecer.
Ele viu que o momento, a idade, a fadiga, tudo pesou. E decidiu não prosseguir
mais. Assim, o que os amigos viessem a dizer não passava de litania sem
sentido.

– Queres dizer... que Sócrates preferiu morrer?

– E deixar ao tribunal dos Heliastas a responsabilidade. O que ele tinha a


fazer já fora feito, nada mais justificava tanto empenho. Agora, é claro que
deixar de banhar-se, nunca pagar por uma refeição, cercar-se de cabeludos
desocupados e ainda manter um caso com o filho de um eupátrida como Anito
também não ajudou muito.

– E Xantipa no meio disso tudo?

– Bem, apesar da idade do garoto combinar mais com a dela, não creio que
os três tenham chegado a...

– Abdica da piada por enquanto, meu pai. Eu pergunto como ficou Xantipa
com a condenação e prisão de Sócrates. Ela o visitava? Alguma vez a viste por
lá?

– Sim.

– Só isso? “Sim”?

– Se deixares que eu conte a história e guie a narrativa, saberás.

– Posso ao menos perguntar como ela era?

– Bela. Pode-se dizer que o que diminuía sua formosura eram mais os
desgostos com Sócrates – o desespero pela falta de dinheiro em casa, o
agastamento pelos constantes sumiços, os ciúmes de Alcibíades e dos garotos
que o seguiam – do que ausência de cuidados. Era ruiva; os cabelos longos e
ondulados com fios caídos sobre o rosto tinham por trás olhos que a mostravam
um tanto mais envelhecida do que a idade presumia. Na ocasião, não devia ter
mais do que trinta, trinta e poucos anos. Mas nem de longe era a megera de fama
tão propagada nos círculos de amizade de Sócrates. E mesmo nos de inimizade.

– E como ela está hoje? Ainda vive?

– Tomei conhecimento de que, anos depois da morte de Sócrates, ela deixou


Atenas e casou-se novamente, com um comerciante de tecidos de Éfeso.
Imagino que o novo marido – desta vez por dever do ofício – também se fizesse
ausente na maior parte do tempo, mas devia colocar dinheiro em casa, comida na
mesa e, principalmente, tomar banho diariamente. Se ela ainda vive não sei, mas,
em caso afirmativo, tenho certeza de que com muito menos desconforto do que
naquela época.

– Volto ao tal Eurístenes. A respeito da morte dele, nada há mais para me


contares, no momento?

– Muito bem! Vejo que agora já acompanhas a narrativa com serenidade de


ouvinte! A juventude há de saber envelhecer – pena que já estará velha quando
isso acontecer.

– Meu pai...

– Sim. Eurístenes. Pois bem, uma vez ele morto e enterrado, de forma mais
precipitada do que o necessário, presumi que a correlação que eu havia feito
entre os sinais apresentados na ocasião – o pedaço de cerâmica, o buraco nas
proximidades, os indícios de afogamento – não passasse de um entrelaçamento
ao acaso, até porque o próprio Sócrates não manifestara real interesse na
investigação. Imaginei que posteriormente Eudoxo, em algum simpósio regado a
vinho, me informaria sobre o retorno do misterioso estratego de sua viagem,
quando tomaria conhecimento da morte de seu, digamos, conhecido. E que tudo
ficaria nisso. Eu continuaria minhas conversas com Sócrates, tendo que fazer
valer o pretexto de escrever a comédia sobre sua vida dele, e aguardando a
qualquer momento o retorno da nave sagrada de Delos.

– E...

– E, cerca de três dias depois, nas primeiras horas da manhã, ao abrir a porta
dos fundos de casa, imagina com o que me deparei.
– Outro pedaço de cerâmica, na soleira da porta, com outra inscrição.

– Não. Medusa. Em pé, me encarando. Petrifiquei-me.

– Como?

– Medusa. A cadela que tínhamos, na época.

– Sim, lembro-me de ouvir falar dela. Mas por que te petrificaste?

– Metade é piada, Filipos; metade é realmente por conta do susto que levei.
Medusa à época já estava para além de idosa, não se manifestava, não se
levantava, dificilmente reagia. Tratava-nos e às nossas tentativas de animá-la
com o mais puro desdém. E no entanto, assim que abri a porta, dei por ela em pé,
a muito custo sobre as quatro patas, em total alerta. Por Zeus, aquilo era insólito.

– Como se... algum estranho estivesse por perto.

– Exatamente. Ela olhava alternadamente para mim e para o lado. Não


conseguia latir direito, mas o combalido rabo mal e mal se agitava, como um
velho e honesto arconte tentando manifestar-se inutilmente contra algum decreto
impopular que já houvesse sido aprovado. Segui na direção do olhar dela,
contornei a casa e creio ainda ter conseguido ouvir os passos.

– Deste com o estranho?!?


– Não. Tarde demais. Mas aí pude ver o fragmento de cerâmica que ele havia
acabado de deixar, desta vez na soleira da porta da frente.

– Por Zeus. Provavelmente ele houvera deixado o primeiro pedaço na porta


dos fundos, sem se deparar com Medusa.

– Sim, com a garoa que caía naquele primeiro dia, muito provavelmente tua
mãe colocou-a para dormir dentro de casa.

– Mas na manhã da segunda ocasião não garoava.

– Pelo contrário: Apolo fizera o sol nascer com vontade. De qualquer modo
me afastei mais ainda da casa, tentando divisar as cercanias, e não consegui
enxergar ninguém por perto, salvo os vizinhos.

– E o pedaço de cerâmica?

– Antes de pegá-lo, observei bem a posição em que ele havia sido deixado.
Sem esforço percebi que o fragmento também tinha a conformação triangular, e
o ângulo mais fechado apontava para o sudoeste. Para ser mais exato, a Pnyx.
Pelo menos era a referência topográfica mais proeminente naquela direção.

– E foste até a Pnyx?

– A pressa é a mãe do imperfeito.


– Meu pai, vê que não me enganas como enganaste Sócrates – de antemão já
digo que era esta a inscrição no caco de cerâmica, certo?

– Não, Filipos. Esta foi para ti. Calma. Eu realmente não poderia tomar
nenhuma providência sem antes ler a inscrição. E ela vinha límpida: A estupidez
é tão estúpida que desconhece até limite.

– Por Zeus, isso eram indicações ou lições de moral?

– Fossem o que fossem, não achei prudente ir até lá sozinho. Se minhas


suspeitas estivessem corretas, eu não gostaria de encontrar – por conta própria –
o que haveria de ter no local. Então, sem medir muito bem as consequências,
decidir ir antes a Eudoxo.

– Mesmo? Já confiavas nele a este ponto?

– Não. O que eu pretendia era que ele providenciasse dois ou três arqueiros
citas que me acompanhassem e auxiliassem na provável descoberta. E que talvez
me protegessem, se fosse o caso.

– E o que se deu?

– Eudoxo recebeu-me, previsivelmente de ressaca mas com inesperado bom


humor. “Ora vejam”, ele gracejou, “o maior comediógrafo de Atenas com um
semblante dos mais sérios. Devo visar o equilíbrio e, na qualidade de
mantenedor da lei e dos bons costumes, mostrar-me frívolo e alegre?” Ignorei o
chiste e mostrei-lhe o pedaço de cerâmica, depois juntei a ele o primeiro, e
expliquei a Eudoxo as possíveis correlações. “Por Atena”, foi o que ele disse,
parecendo absolutamente não levar a sério, “escolhem a ti portador de notícias
funestas? Logo um comediante?”. Percebes o que tive que suportar. Mas Eudoxo
decidiu não apenas liberar dois arqueiros citas como – para meu desespero –
também ir junto (“Hoje o ócio é meu mais importante companheiro de
diligência”), cometendo, até chegarmos à Pnyx, anedotas desse naipe. Estava
claro que ele ou via aquilo tudo como uma piada minha ou me acompanhava
com o intuito de, nada encontrando, ridicularizar-me ainda mais.

– Imagino. Mas o que descobriram, lá chegando?

– Circundamos toda a encosta da Pnyx, e não encontramos nada que


chamasse a atenção. Nada de buraco, nada de corpo. Apenas alguns despojos, o
pedaço de um largo tubo de esgoto, em cerâmica, pedaços de madeira que talvez
tivessem sobrado de alguma construção. Eudoxo não tardou a comentar: “Bem,
ou teu suposto informante bebeu mais do que eu ou és tu que está a procurar
enredo para alguma comédia. Diz lá, quem vais colocar para fazer meu papel?
Olha que meus dotes de ator na juventude não se embotaram, e eu ainda...”, mas
nesse momento um dos arqueiros citas chamou nossa atenção. O cilindro de
cerâmica, que tinha uma das extremidades praticamente colada à encosta da
Pnyx, e por isso não deixava ver com clareza seu interior, parecia exalar um
estranho cheiro de queimado. Mais exatamente, carne queimada. Fomos até lá.

– Não me digas que...

– Sim. Era um cadáver.

– Por Zeus. Agora... queimado?


– Não exatamente. Ou não totalmente. Após um certo esforço dos citas, o
corpo foi retirado totalmente do cilindro. Para nosso espanto, ele se achava
queimado apenas da cintura para baixo.

– Queimaduras da cintura para baixo foram suficientes para matá-lo?

– Não. Porque da cintura para cima, os mesmos indícios de afogamento,


como no cadáver anterior.

– Um momento, meu pai. Queres dizer que ele morreu... também por
afogamento?

– Foi o que concluímos. Só não pudemos saber se as queimaduras


aconteceram anteriormente, com o infeliz ainda vivo, ou infligidas depois do
afogamento. As duas coisas pareciam, se não simultâneas, ocorridas uma
imediatamente após a outra. Mas uma coisa eu asseguro: ele se encontrava mais
inerte do que os pedaços de cerâmica que eu trazia nas mãos. Imaginas uma
carpa que resolves assar e, na metade do procedimento, preferes comê-la crua,
daí...

– Pai.

– Sim?

– De quem era o cadáver?


– Basta dizer que, ao reconhecê-lo, Eudoxo ficou mais lívido que estas
colunas do Templo de Hefesto. Aos arqueiros citas foi determinado que teriam a
língua cortada se a notícia dali saísse. E a mim, garantido que se mais alguém
tomasse conhecimento do fato, eu passaria a ser o suspeito preferencial, já que a
mim pertenciam os indicadores do crime e do local. Quanto aos citas, não creio
que a ameaça precisasse ser feita – dificilmente eles saberiam de quem se
tratava. Quanto a mim, apontei a Eudoxo o contrassenso em nomear-me
suspeito: o que eu ganharia trazendo a polícia ao local de um crime que eu
mesmo cometera? Aos poucos a cor voltou ao rosto dele, e então, agarrando
minhas vestes, ele refez o apelo, sussurrando: “Então te peço como amigo de
juventude. Não contes a ninguém sobre isso”.

– Pai. Pretendes fazer suspense sobre a identidade do cadáver?

– Pretendo. Ainda me agradecerás pelo aprendizado da prática da parcimônia


nas revelações dramatúrgicas, coisa que em muito falta a ti. Vamos para casa que
meu estômago já volta a doer. Amanhã te relatarei a conversa que tive com
Sócrates a respeito deste segundo crime, e entenderás tudo. Só posso adiantar
minha revolta com aquela confidência.

– Como assim?

– Eudoxo dizendo-nos amigos de juventude. Aquele idiota pode ter sido. Eu,
nunca.

LIVRO QUARTO - UM CADÁVER MEIO AFOGADO, MEIO


QUEIMADO
Onde Aristófanes e Sócrates, debatendo sobre o segundo assassinato, já
começam a vislumbrar conexão entre um crime e outro. E onde Sócrates passa a
utilizar seus peculiares métodos de investigação filosófica para tentar trazer luz
ao ainda obscuro cenário do crime. Por ironia do destino, veremos que
enquanto Aristófanes tenta utilizar-se do pretexto de escrever uma comédia
sobre a vida do filósofo, Sócrates, contrariamente à sua tendência inicial,
começa a demonstrar vivo interesse pelos assassinatos. Como era de se esperar,
um ligeiro desentendimento acaba aflorando, já que temos em cena duas
personalidades bem fortes – para dizer o mínimo.

– Aristeu, de Mégara? Claro que me lembro. Além de sofista, vivia a


espalhar com convicção que eu só poderia ter enviado um gêmeo meu à Guerra
do Peloponeso, tamanha era minha placidez durante os debates na Ágora, em
contraponto à personalidade impetuosa requerida pelas batalhas. Lembro
também que, segundo ele, este meu gêmeo teria morrido na batalha de Antífolis,
e consequentemente simulei meus ferimentos de guerra quando fingi meu
retorno. Devo confessar que tanto a figura dele quanto as histórias por ele
inventadas eram muito divertidas.

– Sim, Sócrates. E outro fragmento de cerâmica aparentemente alusivo ao


crime, entregue a mim.

– E tens algum palpite sobre isto?

– Nem em sonhos. Aliás, por um momento, Eudoxo chegou a achar suspeito


meu envolvimento no processo. Perguntou-me mais de uma vez por que logo eu
é que estaria recebendo os tais avisos.

– E o que tu disseste?
– Que se eu soubesse seria astínomo, não comediante.

– E ele entendeu?

– Não sei, porque logo abandonou o ensaio de ameaça e passou a implorar-


me, em nome de uma amizade que só existia na cabeça dele, que eu não
divulgasse o acontecido.

– Por Zeus, Aristófanes, outro assassinato abafado? O que Aristeu tinha de


tão comprometedor em sua biografia?

– A princípio, que eu soubesse, nada. Mas quando Eudoxo passou a suplicar


com tanta ênfase que eu não mencionasse o caso a ninguém, insinuei uma
contrapartida justa: eu juraria o silêncio, conquanto soubesse do que se tratava.

– E ele?

– Dispensou a guarda e insistiu que eu o acompanhasse até sua residência.


Lá, deu folga à criadagem e convidou-me a dividir com ele uma jarra de vinho
com água no androceu. Obviamente aceitei, mais pela curiosidade que pelo
congraçamento, e obviamente da parte dele a coisa passou em muito de uma
jarra de vinho, com pouquíssimos goles de água. Depois de uns três cálices, de
inúmeras rememorações do que seriam aventuras de nossa juventude – que eu
reputo, lógico, à imaginação dele – e de várias declarações de admiração por
meu sucesso nas artes e por minha coragem de desancar abertamente Cléon em
Os Cavaleiros (por Dioniso: sóbrio, Eudoxo me provocava e ensaiava
desdenhosamente diminuir-me como autor; ébrio, era de uma bajulação
asquerosa), ele contou-me que tinha algumas peças de sua própria lavra, e que,
se eu não me incomodasse, ele poderia mostrá-las algum dia, e esse “algum dia”
me aliviou; ele então acrescentou que o motivo daquela conversa não seria sua
produção literária, mas sua vida profissional – e eu imaginando aonde aquela
conversa mais interminável que a jornada de Ulisses nos levaria, e o que ela teria
a ver com o crime. Depois do quarto cálice Eudoxo confidenciou que chegara ao
cargo de astínomo graças à influência do sogro, o qual não só providenciou um
casamento digno à filha única como também acreditava que ela viria a destacar-
se em Atenas mais do que como simplesmente mãe ou dona de casa, dada a
inteligência e ao espírito livre que vinha demonstrando desde a infância. Livre
até demais, como verás. O sogro inclusive resolveu contratar, a troco de uma
régia remuneração, um conhecido sofista para bem treiná-la nas artes do
raciocínio e da retórica: Aristeu de Mégara. A tudo isto Eudoxo, já marido da
moça, não se opôs, tão embevecido que estava pelas benesses do cargo. Ocorre –
neste ponto da conversa Eudoxo já se encontrava no quinto ou sexto cálice de
vinho – que o embevecimento da moça pela conversa envolvente e pelos
irresistíveis dotes físicos de Aristeu já era bem maior, e Eudoxo não demorou a
descobrir. Receoso de lavar a honra com sangue e com isso comprometer seu
cargo e sua reputação, acabou por confrontar verbalmente o comborço numa
noite de bastante bebedeira no Cerâmico, e em dado momento, já alterado,
ameaçou “afogá-lo no próprio veneno”. Precisas ouvir o restante, Sócrates?

– Absolutamente não. Só respondo com uma pergunta: estás convicto de que


não foi Eudoxo o criminoso, certo?

– Ele não teria ido comigo ao local do crime por livre e espontânea vontade.
E, Sócrates, crê que a lividez no rosto dele foi das mais legítimas.

– Foi o que imaginei. E a inscrição no caco da cerâmica soa-me mais como


um comentário do que como somente uma mensagem críptica.

– Bem, mas como não te interessaste na análise do primeiro crime e


aparentemente nem deste, voltemos então à comédia que planejo sobre ti. Tenho
algumas perguntas para fazer-te, e se puderes...
– Um momento, Aristófanes.

– Sim?

– Não me interrompas.

– Mas disseste...

– Que a inscrição no caco da cerâmica parecia uma espécie de comentário.

– Não, eu me refiro àquela nossa outra conversa, quando disseste...

– O que importa é esta conversa, Aristófanes. Conversas passadas são como


a escrita, já não mais acontecem, cristalizaram-se no passar do tempo, perderam
o pulsar do presente: o que interessa é o diálogo que ocorre neste momento. E
diz uma coisa. É um esboço de sorriso o que vejo em teu rosto?

– Tampouco importa. Falemos do que desejares, então.

– Pois bem. Qual era a inscrição do primeiro caco de cerâmica?

– É Sócrates quem confirmará: nem tanto ao céu, nem tanto à água.


– E como morreu Eurístenes, a primeira vítima?

– Ao que tudo indica, afogado na água de um lago ou de um rio.

– E como Eurístenes foi encontrado?

– Dentro de um buraco no chão.

– E o que te levou a Eurístenes?

– Aparentemente um caco de cerâmica depositado na soleira de minha porta


dos fundos, que apontava para o local.

– Podemos dizer, então, que se não existe uma relação causal entre a
inscrição na cerâmica e o acontecido no local indicado, existe ao menos uma
ligação temática?

– Não sei se entendi.

– Acreditas, Aristófanes, que a inscrição era aleatória, sem motivo algum


para existir?

– Queres dizer, nada além de uma mera frase de efeito, provocação, ou


chiste...
– Sim, nada além de uma mera frase de efeito, provocação ou chiste?

– Acredito que não.

– Concordas então que ela pode muito bem se relacionar não apenas com
aquilo que o fragmento de cerâmica apontava, mas também com a forma como
ocorreu aquilo que o fragmento apontava?

– Concordo.

– Admites então que a inscrição se refira à maneira como Eurístenes morreu?

– Da forma como dizes, admito.

– Pois bem. Concordamos ambos que é bastante difícil alguém morrer em


um rio, para em seguida o cadáver aparecer em um buraco cavado no chão de
terra. A menos que o buraco esteja às margens de um rio caudaloso, cuja violenta
correnteza deposite, por acidente, o corpo exatamente naquele buraco, certo?

– Sim, a menos que isso aconteça. Ou, em uma outra hipótese, que os deuses,
num rompante de bom humor, façam um corpo sumir em um rio e surgir em um
buraco.

– Perfeito, Aristófanes. Excetuando-se este eventual capricho por parte dos


deuses – que aparentemente andam ocupados em evitar que eu os negue e
introduza novas deidades em Atenas –, o rio mais próximo de onde o corpo foi
encontrado, o Eridanos, fica a pelo menos três estádios do local. E está longe de
ser um rio caudaloso, certo?

– Sim, ele aparenta ser tão calmo quanto tu, aí, na iminência de morrer.

– Portanto, é de se supor que houve a interferência de uma segunda pessoa,


que agiu entre o local do afogamento da vítima e o local onde o corpo foi
encontrado?

– Eu não diria melhor.

– E é correto considerar que a mesma pessoa que transportou o corpo da


vítima do local do afogamento até o buraco onde ele foi encontrado também
tenha escrito a mensagem no fragmento de cerâmica?

– É uma hipótese.

– Que tem tudo para transformar-se em uma teoria, se considerarmos que,


dois dias depois, recebeste em casa outro fragmento de cerâmica, com outra
inscrição?

– Sim.

– Que dizia...?
– A estupidez é tão estúpida que desconhece até limites.

– E este fragmento, também no peculiar formato de um triângulo, apontava


para outro local, certo?

– Sim. Desta vez a colina de Pnyx.

– E o que vós – tu e Eudoxo – encontrastes lá?

– Outro cadáver. Aristeu de Mégara.

– Em que condições?

– Enfiado em um tubo de cerâmica utilizado em esgotos.

– E como o corpo se apresentava?

– Totalmente queimado da cintura para baixo, mas da cintura para cima


dando mostras de ter sido afogado em água.

– Afogado da mesma forma que o primeiro cadáver?

– Da mesma forma que o primeiro cadáver, só que este não trazia concha
nem coisa alguma na boca.

– Por certo. Concordas, Aristófanes, que seria bastante improvável que


Aristeu houvesse pensado em matar-se, ateando fogo ao corpo, e no meio do
procedimento mudasse de ideia, pulando em um rio e se afogado lá?

– Difícil, mas não impossível. Eu poderia acrescentar que Zeus poderia ter
enviado um raio às partes baixas de Aristeu enquanto Poseidon cuidava de
afogá-lo. Mas, como tu mesmo disseste, os deuses devem andar ocupados em
evitar que tu contamines Atenas com tuas heresias, então é pouco provável a
participação deles também neste crime.

– De fato. E concordas que, se somarmos a isso a evidência de que também


neste caso houve o concurso de uma segunda pessoa – a qual obviamente
transportou o cadáver do local da morte até o tubo de esgoto ao sopé da Pnyx –,
o argumento de que Aristeu tenha tentado matar-se sozinho se enfraquece, uma
vez que não é insensato supor a participação desta pessoa na morte de Aristeu?
Até onde me recordo, disseste que os arqueiros citas aludiram à evidência de que
as queimaduras pareciam ter sido infligidas após o afogamento.

– Concordo.

– Concordas também que a inscrição no fragmento de cerâmica, que


recebeste na manhã deste dia, apesar de ainda não decifrada por nós, também dá
mostras de consistir em um comentário sobre a forma como Aristeu foi
assassinado?

– Não creio que eu discorde disso.


– Pois bem. Se em ambos os casos o crime foi noticiado primeiramente a ti,
de forma críptica, e também de forma críptica os assassinatos foram executados
– a primeira vítima afogada, trazendo uma concha na boca, e a segunda
parcialmente queimada, mas também afogada –, não seria sensato supormos que
por trás dos assassinatos e do transporte dos cadáveres aos locais onde os
mesmos foram encontrados esteja a mesma pessoa?

– Não poderia concordar mais. E ainda lembro que, na primeira mensagem


no fragmento de cerâmica, teu nome foi mencionado. Como se houvesse a
intenção de que tu tomasses conhecimento daquele assassinato. E, por extensão,
do segundo.

– É o que temos, meu nobre Aristófanes. Se conseguirmos descobrir o


porquê destes crimes estarem sendo anunciados, seja a ti, seja a nós dois –
concedo – e, principalmente, a razão de o afogamento estar presente em ambos
os assassinatos (é de se supor que, em havendo um terceiro crime, o método não
será tão diferente), estaremos a um passo de decifrar os enigmas constantes tanto
nos fragmentos de cerâmica quanto nestas estranhas variações nos rituais das
mortes, e assim esclarecer o motivo dos crimes, correto?

– Sim. E se esclarecermos o motivo dos crimes, não faltará muito para que
descubramos a identidade deste tão dedicado, diligente e, por que não dizer,
cuidadoso assassino.

– Muito bem. Mas não deixamos passar algum detalhe relevante a respeito
das vítimas?

– Acho que em princípio já analisamos o que nos foi permitido analisar sobre
as mortes, tanto em conjunto quanto separadamente.
– Mas eu não me refiro às mortes, e sim a antes das mortes. O que eles
faziam, antes de morrer?

– Viviam?

– Vejo que o comediógrafo não se contém e suplanta o investigador. Não vou


dizer que isso seja de todo mau. Traz um certo frescor à conversa.

– Desculpa-me a piada. Bem, eram sofistas.

– Exatamente. Tiravam seu sustento do conhecimento que supunham possuir,


passando-o aos clientes a peso de ouro.

– Por certo.

– Seria muito precipitado presumirmos que nosso assassino não gosta de


sofistas?

– Não sei. Como estamos à cata de um padrão, imagino que só teríamos esta
certeza se um terceiro assassinato – queira Atena que tal não ocorra – trouxesse
como vítima outro sofista.

– Muito bem, Aristófanes. Vejo que a maiêutica encontra em ti um terreno


fértil para florescer.
– É minha vez de pedir para apagares esse meio sorriso, Sócrates. Estou aqui
para escrever sobre ti, e não para servir de instrumento às tuas experiências
silogísticas.

– Não tenho a pretensão de fazer de ti, meu fraternal desafeto, um discípulo.


Mas ainda insisto: uma vez conhecida a identidade de nosso amigo assassino,
qual a providência a ser tomada?

– Confesso que não pensei nisto. Vim propor-te o debate investigativo como
um exercício lógico, coisa que nossa polícia está longe de fazer.

– Mas, estendendo o exercício ao campo das hipóteses, caso descubramos


quem anda assediando nosso amigo Aristófanes em sua casa com algumas
mensagens cifradas e vitimando cidadãos atenienses com afogamentos pouco
ortodoxos – o que seria feito a seguir?

– Bem, acho que eu o comunicaria a Eudoxo, para que a Justiça se


encarregasse do caso.

– A Justiça?

– Sim.

– A mesma Justiça que me colocou aqui, para morrer assim que a nave
cerimonial retornar de Delos?
– Me deixas sem palavras, Sócrates. Mas entre identificar um assassino – se
viermos a fazê-lo – deixando-o livre, não apenas impune mas passível de
cometer outros assassinatos, e entregá-lo à instância competente, que cuidará de
prendê-lo e julgá-lo no Areópago, não vejo alternativa senão...

– Ages bem, Aristófanes, ages bem! Eu não poderia concluir melhor! Eu


apenas te testava, para inferir se pretendias com este exercício devotar-te à tua
vaidade intelectual ou fazer prevalecer a Justiça, que no fim das contas é o bem
maior a ser buscado pela pólis.

– Um momento. Eu, devotar-me à minha vaidade intelectual? E o que dizer


de ti, com teu talento e tua retórica, sempre abdicando de participar ativamente
dos debates sobre a elaboração das leis que dizem respeito aos cidadãos
atenienses, no que servirias imensamente à pólis, para dedicar-te a tão somente
deambular à margem da comunidade, cercado por um bando de caudatários
acríticos, que concordavam sem ressalvas com tudo o que dizias? A isto não
chamas vaidade?

– Então concordas com aqueles que me acusaram?

– Concordo em acusar tua falsa humildade, Sócrates, ao mesmo tempo em


que não poderia discordar mais da absurda condenação à morte infligida contra
ti!

– Mas se não concordas com meu método, por que recorreste justo a mim
para o debate e a investigação desses crimes que...

– Já disse que o que verdadeiramente me trouxe foi a intenção de escrever


uma comédia sobre ti, de modo a deixar claro como é – ou foi – espúrio o
processo que resultou nessa sentença, e para isso eu...

– Aristófanes, Aristófanes, te atrapalhas com as palavras e te afogas na


exagerada exibição de tua convicção neste falso pretexto – e eis que Agátocles
mais uma vez acorda, graças às nossas altercações. Da forma como a coisa anda,
ele acabará sendo o corifeu de tua comédia, entremeando nossos diálogos com
seus peculiares grunhidos e convincentes murmúrios que hão de deliciar a
plateia. Mas minto se disser que Agátocles não me brinda também com pérolas
de sabedoria. Ontem mesmo, quando perguntei se não o entediava esse ofício de
zelar por filósofos presos, ele declarou-se mais prisioneiro que eu: enquanto,
confinado aqui, eu deixo o pensamento vagar por tantas conjecturas, espaços e
alturas, ele, ao deixar o serviço, não pode ir senão a um lugar: sua distante e
miserável casa. Bem, disse tudo isso grunhindo, mas foi o que eu entendi. Agora
vai, Aristófanes, que repentinamente o sono se sucede à nossa acalorada
discussão. Conversaremos em outra ocasião, até quando os deuses nos
permitirem ou até que o barco cerimonial atraque no Pireu – o que ocorrer
primeiro. E que o Hades receba Eurístenes e Aristeu como bem achar que eles
mereçam. Logo os encontrarei, e quem sabe até poderei informá-los sobre quem
os despachou para lá. Não que eu seja assim tão dado a fofocas.

LIVRO QUINTO - UM MENSAGEIRO INESPERADO

Onde Aristófanes e o autor destes escritos conversam sobre o crescente


interesse que Sócrates passou a demonstrar pela história dos assassinatos, em
detrimento da comédia que Aristófanes diz escrever sobre ele. São mencionados
também os crescentes ciúmes dos discípulos de Sócrates em relação a
Aristófanes – a quem eles continuam atribuindo responsabilidade indireta pela
prisão de seu mentor. Enquanto isso Eudoxo continua intrigado com o fato de
Aristófanes ser o receptador das mensagens relativas aos assassinatos, e o
coloca, ele e sua casa, sob vigilância constante. O que não impede que
Aristófanes, em uma situação peculiar, receba, de um mensageiro inusitado, uma
nova mensagem.
– Sócrates continuava acreditando em tua conversa sobre escrever uma
comédia sobre ele?

– Como assim, conversa, Filipos? Isso realmente estava em meus planos.

– Pai. Fica claro que teu interesse maior era discutir sobre os crimes, e por
isso...

– Eis aí outra característica de tua geração autoral. A presunção das


intenções. Como assim, “fica claro”? O que sabes?

– É o que entendo do que me contaste.

– Entendes demais e ouves de menos. Faz o contrário.

– Entendo.

– Mas não agora.

– Meu pai, eu...

– O que acontece é que Sócrates aos poucos foi passando a dedicar mais
atenção às nossa investigação criminal. Mas ainda assim eu sempre dava um
jeito de introduzir, nas conversas, perguntas sobre sua vida, Xantipa, os amigos,
o julgamento. Eu estava realmente disposto a escrever a obra definitiva sobre
aquele homem, a despeito das outras que fatalmente viriam pela boca de seus
bajuladores. É evidente que, à medida que os crimes avançavam, menos tempo
íamos tendo para elaborar melhor isso.

– Falas agora do terceiro crime?

– O problema com o terceiro crime não foi só o crime. Foram as condições


que tive para investigá-lo.

– Como assim?

– Por um lado, Eudoxo, temeroso que mais algum assassinato viesse trazer à
tona outro dos tão bem guardados segredos de alcova da aristocracia ateniense,
colocou um arqueiro cita para fazer vigília em minha casa – no caso de outro
pedaço de cerâmica aparecer – e cuidar ostensivamente de minha segurança, o
que dificultaria minhas idas à prisão. Mas isso eu poderia até contornar, não
fosse o fato de Críton haver me desaconselhado – para usar um termo bem suave
– a prosseguir com as visitas a Sócrates.

– Críton, dizes, o amigo de Sócrates?

– Sim, o mais abastado dos discípulos, e quem sustentava Sócrates em suas


necessidades cotidianas. Abordou-me na Ágora e expôs sem rodeios suas
restrições – presumo que ele tenha ficado sabendo de minhas visitas à prisão por
intermédio de Xantipa, e tomado as dores do amigo com base em minhas antigas
críticas a Sócrates. “Mas desta vez pretendo justamente denunciar a injustiça a
que Sócrates foi submetido”, tentei argumentar, porém ele, presa óbvia do
ciúme, e provavelmente enxergando sarcasmo em meu argumento, deu o
arremate: em nome da família e dos amigos de Sócrates, minha presença na cela
não seria bem-vinda.

– Creio lembrar-me de Críton – ele ainda vive, não?

– Sim, aposentou-se como um próspero negociante de oliva. Se manteve


vivos os preceitos do mestre em seu estilo de vida, nunca saberemos. Cada um
guarda a filosofia que apreende como melhor lhe aprouver. Alguns continuam a
recitar os ensinamentos, outros os praticam. Lembro-me de que ele, em várias
ocasiões, ofereceu a Sócrates – o que envolveria evidentemente suborno dos
guardas da prisão – oportunidades de fuga, com tudo arranjado para que Sócrates
fosse recebido na Tessália por amigos que ele, Críton, tinha lá. E a tudo Sócrates
recusou.

– E os demais discípulos – agiam como ele em relação a ti?

– Sim. Fédon, Lísias, Apolodoro, e tantos outros. Apolodoro era o mais


chorão. Lísias, o mais articulado e bem-falante, e que durante a prisão de
Sócrates tantas vezes tentou interceder por ele, junto aos magistrados, sem
sucesso. E Fédon, a quem – conforme já sabes – Platão utilizou em um diálogo
para narrar a morte de Sócrates. O mesmo Platão que não teve culhões para
permanecer em Atenas durante o julgamento do amigo. De qualquer modo,
naquela ocasião, nenhum destes me queria em contato com ele.

– É chegada a hora de esmiuçarmos o terceiro crime?

– Ótimo, mais uma vez, Filipos! A pergunta certa, na hora certa! Cada vez
mais te colocas na posição de autor-espectador! Sim, o terceiro crime, que todos
temíamos mas que tínhamos a certeza de que não tardaria.
– O terceiro afogamento, eu diria.

– Percebo que não posso elogiar. Agora te precipitas novamente. Quem disse
que foi afogamento?

– Não era o que suspeitáveis, tu e Sócrates?

– E acaso combinamos isso com o assassino? “Caro homicida, trata de ver


que aguardamos um terceiro afogamento. No caso de nos decepcionares, não
garantimos continuar mantendo nossos laços de amizade contigo”.

– Como presumo que – digamos – os laços não foram rompidos...

– Aguarda. Com a vigilância que Eudoxo praticamente me impusera,


dificilmente o mensageiro ceramista – foi este o apelido que eu e Sócrates lhe
demos – teria acesso aos arredores de minha casa. O que me angustiava era saber
que isso não impediria o próximo ou os próximos assassinatos: só faria com que
eu deixasse de ser avisado sobre eles. Mas se, como Sócrates aludira, as
mensagens na cerâmica fossem parte do ritual do criminoso – considerando que
o mensageiro e o assassino se tratassem da mesma pessoa –, das duas uma: ou
ele interromperia a série de crimes ou improvisaria uma forma de avisar-me.

– Sou todo ouvidos.

– E eu era todo olhos, olfato, audição. A partir de um determinado momento,


tudo ao redor parecia fazer parte de uma sarcástica conspiração. Eu me via
dividido entre tentar impedir um crime, escapulir da vigilância de Eudoxo para
saber se crime realmente haveria e contar com o assassino para avisar-me. Eu já
nem sabia se eu era um investigador, um missivista ou um cúmplice.

– De fato, um acúmulo de papéis que só faria sentido numa comédia teatral.

– Não achas que num momento como este eu já não estava disposto a abdicar
de escrever a comédia de Sócrates e fazer-me autor trágico? Qual uma cópia
fajuta de Eurípides, versando sobre um autor cômico que desiste da carreira
porque teme estar envolvido mais que o necessário em uma teia de crimes, e
assim passa a escrever sobre um comediógrafo que... bem, tu entendeste.

– Entendi e agradeço a Dioniso por não teres enveredado por esta trilha.
Histórias de autores escrevendo sobre o processo da escrita sempre foram, na
minha opinião, uma senda presunçosa e vazia.

– Infrutífera, eu acrescentaria. Pois bem, Filipos, os dias se passavam, nada


acontecia e, pior, a notícia da chegada do barco cerimonial poderia se dar a
qualquer momento. Na iminência de nunca mais ver Sócrates e do assassino
prosseguir ativo e impune, vi que eu precisava espairecer. Como tua mãe – aflita
pela presença do arqueiro cita rondando nossa casa – havia resolvido passar
alguns dias com a irmã, em Elêusis, e Medusa retornara a seu habitual estado de
letargia, resolvi ir passear pela Ágora, imaginando que em meio à multidão eu
poderia distrair-me e aliviar a mente. Mesmo as fofocas, intrigas e eventuais
merdas que eu ouvisse dos passantes, feirantes, sofistas e eventuais estrangeiros
me fariam melhor do que as merdas que fatalmente me iam pela cabeça, sozinho
em casa. Ali, após aproximadamente duas, três horas, pude perceber um outro
arqueiro cita parecendo observar-me, à distância. Não pude divisar-lhe a
fisionomia. Vaguei mais um pouco entre a multidão e reparei que o arqueiro,
embora não tivesse se aproximado, mantinha a mesma distância, dando mostras
de não querer perder-me de vista. Naquele momento tive a cabeça tomada por
tumultuadas ponderações: teria Eudoxo ordenado não só fazerem a vigilância de
minha casa, mas fundamentalmente me vigiarem? Continuaria ele alimentando
alguma suspeita sobre o fato de eu ser o destinatário das mensagens? Estaria ele
esperando que o criminoso fizesse algum contato comigo, e assim mandar
prendê-lo, ou ordenar minha prisão também? Estaria ele ciente de que, assim que
eu recebesse alguma mensagem, o crime já teria sido perpetrado, portanto não...

– Por Zeus, meu pai. Juras que todas estas perguntas tomaram tua mente, ao
mesmo tempo? Conseguias ainda respirar e andar?

– Pergunto-me se não és um filho insolente, um mau ouvinte ou um autor


que nada aprende, e continuo sem respostas. Não vês que na narrativa de um
acontecido de há muito, muito tempo, é natural que preenchamos algumas
lacunas e valorizemos certos detalhes que tragam uma luz retroativa ao evento?
Não vês que com isto procuro aplainar a prosa, justamente para prestar algum
tributo à tua atenção?

– Não digo que devas ir tão direto ao assunto, mas é que eventualmente tuas
preleções cheias de voltas tornam a crença no ocorrido um pouco comprometida.

– Pois mais voltas ainda eu dei na Ágora, se queres saber, e nada do arqueiro
cita sumir de perto. Peguei então a Via Panatenaica e segui por ela, como se
rumasse às escadarias da Acrópole: se em linha reta o arqueiro cita prosseguisse,
mantendo aquela distância, aí eu já não teria mais dúvidas. Quando eu ia olhar
para trás, para confirmar, foi que aconteceu. Não só o arqueiro se encontrava a
uns quinze passos de mim como, ao parecer certificar-se de que naquele
momento e em tal trecho não havia mais tanta gente, abaixou-se e colocou – com
até um certo esmero – alguma coisa no chão, erguendo-se em seguida, ficando
um mínimo de tempo ainda me olhando e depois descendo de volta à Ágora,
sumindo na multidão.

– O arqueiro cita simplesmente retirou-se?


– Sim, antes que eu pudesse distinguir-lhe algum sinal característico, além do
arco, da lança e do chapéu ridículo. Só vi que era alto e com o porte físico
similar ao de seus colegas.

– Disseste que ele deixou algo no chão?

– Sim, depois que pude ter certeza de que ele não mais se achava nas
redondezas, e antes que mais alguém encontrasse o que quer que fosse que ele
ali largara, aproximei-me rapidamente. E lá estava, entre duas das pedras do
piso.

– O quê?

– Uma lasca de cerâmica, de formato triangular.

– Dizes... ?

– Sim, Filipos. Uma lasca de cerâmica, com uma inscrição. O único hábito
que não muda é o de querer mudar o tempo todo.

– Deixada... pelo arqueiro cita?

– Foi o que eu te disse.

– Não entendo.
– Nem eu, na ocasião.

– Então... estaria a guarda de Eudoxo envolvida?

– Filipos, podes nem ser um filho insolente ou um mau ouvinte, mas ainda
precisas aprender algo como autor.

– Que seria...?

– Para que direção a lasca de cerâmica apontava?!? Essa é a pergunta que


interessa agora, Filipos!

– Entendo. Tens razão.

– E não vais perguntar?

– Achei que já responderias.

– Certo, jovem autor e apressado comediógrafo, poupo-te o tempo de espera


que parece doer-te até nas articulações: como o fragmento de cerâmica havia
sido colocado na Via Panatenaica, apontando para o lado oposto à direção da
escadaria da Acrópole, ela poderia estar dirigida tanto à Estoa Pintada quanto ao
rio Eridanos ou ao Portão Acarniano.
– Como estamos lidando com um afogador, presumo que o Eridanos?

– “Estamos”? Interessante imersão, ainda mais em se tratando de rio.

– Acertei?

– Acertaste na dedução e eu espero ter acertado na piada. Mas agora se faz a


ocasião da segunda pergunta.

– Que seria...?

– A pergunta não é essa.

– Tira-me mais um ponto da classificação que me fazes como autor, ou


investigador, já nem sei, meu pai. Mas qual seria a pergunta?

– Já a fizeste, só que precipitadamente. Agora sim é o momento correto de


indagar: como a guarda de Eudoxo estaria envolvida nessa sucessão de três
afogamentos?

– E presumo que não é agora que me trarás a resposta?

– Bem, como nem eu a tinha na ocasião, e Sócrates encontrava-se interditado


a mim, não restavam muitas alternativas. Aliás, se a guarda de Eudoxo
mostrava-se inesperadamente envolvida, fosse no provável terceiro assassinato e
na remessa da mensagem, fosse nos dois casos anteriores, não seria nada
prudente também eu procurar o astínomo: sendo seus subordinados parte do
complô, ele também haveria de estar envolvido. Naquele momento dei graças a
Zeus por tua mãe não estar em casa, pois a proximidade do vigia cita iria
configurar outra ameaça. Confesso-te que naquele momento não sabia o que
fazer.

– Não foste ao Eridanos, confirmar se havia mesmo um corpo lá?

– E dar de cara com os arqueiros citas me aguardando, numa armadilha?


Não, Filipos, senti que naquele momento minha vida não valia um dracma
cagado. Fiquei apavoradamente indeciso entre juntar-me à multidão na Ágora,
ficando assim mais vulnerável a algum ataque, ou prosseguir trilhando a Via
Panatenaica, onde também poderia ser atacado sem que quase ninguém
presenciasse. E ali permaneci, fazendo menção de ir e vir, numa pantomima
idiota que durou uma eternidade, até que senti me tocarem o braço.

– Correste?

– Naquele instante já ia me preparando para precipitar-me rumo às grandes


muralhas, chegar ao Pireu e jogar-me ao mar, quando olhei bem e percebi a
criatura coxa e encurvada, me puxando pelo braço. Agátocles.

– Agátocles?

– Sim, o carcereiro! O responsável pela cela de Sócrates, e que eu nunca


imaginei que em algum momento visse a luz do dia. Carregava um cesto de
víveres, provavelmente comprados na Ágora – devia ser sua hora de folga. Mas
com a outra mão ele não largava a manga de minha roupa, e olhava-me entre
ansioso e entediado, como se cumprisse uma tarefa da qual não visse a hora de
livrar-se, por mais importante que ela fosse.

– E ele disse alguma coisa?

– Sim. “Ele quer notícias tuas”. Exatamente estas palavras.

– E tu?

– Encontrei forças para perguntar “Mas não fui proibido de falar com ele?”,
ao que ele grunhiu “Mas ele não foi proibido de pedir-me para te procurar”. E
completou, repetindo: “Ele quer notícias tuas”. Resolvi não pensar muito, até
porque conjecturas já não mais me cabiam na cabeça naquele momento.
Sussurei-lhe que havia acabado de receber mais uma mensagem na cerâmica, e
passei-lhe um rápido recado: “Diz a ele que a próxima vítima deve estar nas
imediações do Eridanos, mas que no momento corro risco de vida indo lá
verificar.” Repeti-lhe o recado e já ia desvencilhando minha manga da mão dele
quando vi que o manco, demonstrando desconfiança, permanecia olhando-me
enigmaticamente, como se ainda aguardasse algum complemento à mensagem.
Subitamente avistei, por cima dos ombros curvados dele, vindos justamente da
região do Eridanos – e caminhando em minha direção – , Eudoxo e dois
arqueiros citas. Naquele momento constatei que meu controle intestinal era bem
mais forte que meu pavor.

LIVRO SEXTO - FEZES, FOGO E CALOR NO DEBATE

Onde Sócrates e Aristófanes desenvolvem sua linha de investigação, e


Sócrates diverte-se com a mania de perseguição de Aristófanes no episódio do
arqueiro cita na Ágora. O comediógrafo justifica seu apavoramento diante de
tantas coincidências, e relata a Sócrates as condições bizarras em que Eudoxo
encontra o terceiro cadáver. Tais condições fazem Sócrates reajustar os rumos
de seu raciocínio, e a conversa acaba se encaminhando para um outro
acaloramento do diálogo, determinando até a intervenção do carcereiro, apesar
deste não se mostrar exatamente um entusiasta da conversa. Qualquer conversa.

– Diz: como convenceste teus discípulos a novamente permitir minha visita à


tua cela?

– Aristófanes, meu caro, se nem para isso a filosofia servir, não sei realmente
o motivo de tantos excêntricos arriscarem sua reputação tecendo inesperadas
metáforas, fazendo preleções sobre as estações do ano, rabiscando figuras
geométricas no chão e fundando escolas.

– Falas de filósofos ou de sofistas?

– Sim, claro que não perderias a piada.

– Mas perdi-me na explicação. Em que tua filosofia os fez mudar de ideia?

– Deixei claro a todos que a Justiça, a ser bem aplicada, deve visar o bem da
maioria. Ora, se o Tribunal Heliasta representa mesmo a Justiça ateniense, eu,
um intransigente defensor do que é justo, devo obediência a qualquer decisão
que o tribunal venha a tomar, certo?
– Em princípio.

– Por outro lado, se eu reputo como primordial a justiça discricionária, que


não abra exceções ou faça restrições, e que permite que eu receba quem eu bem
entender nesta cela, é natural que nenhuma ressalva possa ser feita a quem eu
concordar em receber, correto?

– Teus amigos e familiares imaginam que minhas piadas em muito ajudaram


na tua condenação.

– Não cabe a eles esta decisão. Coube ao tribunal condenar-me, cabe a mim
escolher quem me visita. De mais a mais, não vejo por que transformar em
tragédia o que é uma circunstância. Eles concordam em vir de dia, tu vens à
noite.

– Te interessas mais pelo andamento dos crimes do que pela comédia que
escrevo sobre ti, ou por minhas visitas mesmas.

– Alimento cá uma leve desconfiança de que é isso mesmo o que esperavas


ouvir. Mas conta-me: é verdade então que achaste que Eudoxo e os arqueiros
citas procuravam-te para te matar? Não digo que não seria prazeroso ver tua cara
neste momento.

– Isso porque não eras tu que estavas lá.

– Estou aqui, sei que vou morrer, e não me abalo.


– Pois o que imaginarias quando, vendo um arqueiro cita te seguindo, o
observasses deixar um recado para ti, num pedaço de cerâmica no chão, e de
repente sumir na multidão?

– Mas não era um arqueiro cita, disseste há pouco.

– Foi o que Eudoxo garantiu-me. Assegurou que os únicos guardas presentes


em Atenas eram o que vigiava minha casa e os dois que o acompanhavam – o
restante do efetivo encontrava-se no Monte Ares, no treino de tiro com arco. E
deu-me certeza de que, àquela hora, na Ágora, não se encontrava arqueiro
algum.

– Não haveria de ter se desgarrado sorrateiramente do contingente e


escapulido até a Ágora?

– A contagem é feita na entrada e na saída do treinamento.

– Não deixa de ser engraçado.

– Achas?

– Por parte do criminoso, sem dúvida. Se é destacado um arqueiro cita para


vigiar e até prender o eventual mensageiro ceramista, e vês justamente alguém
vestido de arqueiro cita agindo como mensageiro ceramista, a situação não deixa
de mostrar-se criativamente sarcástica. Viste a fisionomia dele?
– Não. A distância, o sol forte àquela hora e o próprio paramento na cabeça
não me permitiram. Vi apenas a figura trajada como tal.

– E o que mais Eudoxo te contou?

– Que alguns moradores das margens do Eridanos haviam deparado com um


corpo na vegetação à beira do rio, que chamou a atenção principalmente pelo
peculiar odor que exalava. Ao se aproximarem, perceberam que a vítima,
totalmente queimada e recoberta por esterco de vaca, ainda emitia alguns
gemidos, mas os primeiros socorros nem puderam ser prestados, porque ela
morreu instantes depois. Não encontrando arqueiros citas pela cidade – que
estavam justamente em treinamento naquele momento –, os moradores se
dirigiram diretamente ao gabinete dos astínomos, sendo recebidos por Eudoxo,
que, temendo pelo pior, dirigiu-se, com os dois guardas citas que sempre o
acompanham, ao local. E tudo foi confirmado.

– Posso imaginar o resultado olfativo de tal combinação.

– Cheiro de merda queimada. Ou carvão cagado. De qualquer modo, nada do


que havíamos predito.

– Ou seja, o padrão seguido até agora, e que nos induzia a acreditar que as
prováveis futuras mortes se dariam por afogamento, caiu por terra?

– Não poderia dizer de forma mais feliz, meu caro Sócrates. Ou pelo menos
mais acurada.
– O que Eudoxo fez, em seguida?

– Verificando que a identificação do cadáver desta vez iria ser


substancialmente difícil, graças à carbonização, e dada a peculiar configuração
de mais aquela morte, intuiu que precisava encontrar-me o mais rápido possível.
Deixando um dos citas ao lado do cadáver, partiu com o outro em direção à
minha casa, onde foi informado, pelo guarda que lá vigiava, que eu havia
rumado à Ágora. O resto é o que sabes.

– Podes repetir-me a mensagem que consta no fragmento?

– O único hábito que não muda é o de querer mudar o tempo todo.

– Certo. E Eudoxo?

– Reconheceu que, em virtude dos dois últimos casos, seria essencial


proceder à identificação do corpo, antes de sepultá-lo. E mais uma vez pediu-me
segredo, não só em relação àquelas últimas ocorrências, mas também a respeito
de um fator particular, que ele queria compartilhar comigo a partir daquele
momento.

– Posso perguntar do que se tratava?

– Ele enfiou a mão na gola da túnica, até o braço atingir a altura da cintura, e
de lá tirou alguns calhamaços de papiro amassado. Passou-os a mim
furtivamente, afastou-se sinalizando que eu não deixasse ninguém os ver e
retirou-se, dizendo que me mandaria notícias.
– E o que seriam estes papiros?

– Calculei que fossem documentos secretos, esquematizações sigilosas ou


algum outro registro clandestino referente aos crimes, e cuja posse alimentava-
me ainda mais o oscilante medo de perseguição; tanto que os ocultei como pude
e fui até minha casa, para só lá abri-los.

– Estou ouvindo.

– Assim que abri o papiro, dei com algo que, com extrema benevolência,
inimaginável altruísmo e uma abnegação jamais vista em toda a Ática, poderia
ser qualificado de muito vagamente assemelhado a uma tosca tentativa de peça
de teatro. Uma escrita manca, tíbia, constrangedora, que chegou a me fazer
repensar a iniciativa de querer ver Eudoxo novamente – já que fatalmente ele iria
perguntar minhas impressões sobre aquilo. Sócrates, imagino que nem Medusa,
minha caquética cadela, aceitaria aquele papiro como forro para suas
necessidades de idosa.

– Para não dizeres que em Atenas não brotam poetas em toda esquina.

– Brotassem outros personagens frutos da mais desvairada ficção: estrategos


incorruptíveis, coletores de imposto íntegros, juízes imparciais – mas policiais
poetas é a suprema danação!

– Bem, imagino que depois, com calma, tenhas repensado todas as tuas
impressões, ao concluir que esta ligação com Eudoxo será fundamental para
continuares a par das descobertas sobre os assassinatos, certo?
– A muito custo foi o que fiz.

– Então pensemos, Aristófanes. Ou melhor, mais uma vez recapitulemos,


pois vejo que seremos forçados que dar uma nova direção ao nosso raciocínio.

– Como quiseres.

– Um primeiro assassinato envolve um corpo afogado e colocado em um


buraco, e que por acaso é de um sofista. Um segundo assassinato traz um corpo
afogado pela metade e queimado da cintura para baixo, colocado em um cilindro
de esgoto, e que por ser também de um sofista retira o caráter de “acaso” do
perfil da primeira vítima, estabelecendo agora um padrão, certo?

– De acordo.

– Este modelo foi reforçado pelo fato de ambos terem relação com
mensagens deixadas para ti, o que nos leva a achar que por trás deles exista uma
mesma pessoa, certo?

– Correto.

– Um terceiro assassinato ocorre. A vítima, ainda não identificada, é


encontrada às margens do rio Eridanos, inteiramente queimada – não afogada,
até porque ainda estava viva quando foi achada –, e recoberta de esterco, leva-
nos a algumas inferências, estás de acordo?
– Por certo.

– Vê se concordas comigo: pelo fato de teres recebido novamente a


mensagem, calculamos tratar-se do mesmo criminoso. E pela suposição de ser o
mesmo criminoso, imaginamos que a vítima possa ser um sofista. Mas algo do
padrão se rompe, já que o cadáver desta vez não se afogou, concordas?

– Não poderia concordar mais.

– Os diferentes modos como elas foram mortas, mesmo nos fazendo pensar o
contrário anteriormente, não seguem um padrão. Existe algo em comum entre o
primeiro e o segundo crimes, bem como entre o segundo e o terceiro, mas não
entre os três, correto?

– Aonde queres chegar?

– Meu nobre Aristófanes, podemos deduzir que, ao invés dos crimes irem
contando uma só história, cada crime conta a sua. E o único elo entre eles é o
fato das vítimas todas serem sofistas, correto?

– Não sabemos ainda sobre a identidade do terceiro.

– Tenho a firme convicção de que sofista será.

– Estávamos convictos também de que a terceira morte se daria por


afogamento.
– Não creio que nosso criminoso seja tão disperso assim. Algum padrão ele
há de seguir, e mantenho a impressão que se trata da identidade, ou melhor, da
ocupação das vítimas. O que vejo com mais clareza agora é que temos um
inimigo de sofistas, que nos passa recados separadamente – e que ficarão mais
claros quando decifrarmos os dizeres nas cerâmicas. E mais: este peculiar
homicida elegeu a ti como confidente primário e, aparentemente, a mim como
secundário.

– Então permita-me um exercício dialético.

– Com prazer.

– Poderia ter sido tu, que não nutres mais que desprezo pelos sofistas, e cuja
índole pacífica e pedagógica pode ser uma simples capa para tua natureza bélica,
como bem demonstraste nas batalhas do Peloponeso.

– Meu honrado desafeto, por mais que insistas em que eu não lance mão da
maiêutica, ela se insinua o tempo todo em nosso diálogo. Estou aqui preso, sem
permissão para sair da cela: é um fato. Estou no inverno de meus setenta anos,
sem forças para erguer sequer um martelo de forja, que dirá afogar, queimar e
transportar cadáveres de homens adultos, além de recobri-los de excrementos e
cavar buracos. O que concluis disso?

– Que tu podes encaminhar qualquer raciocínio para qualquer ponto que


quiseres utilizando-se de premissas arbitrárias, chamando o método de maiêutica
e o ouvinte de tolo.

– Invertamos então a proposição: tu também tens aversão a sofistas. Além


disso, podes circular à vontade por onde quiseres, não só em Atenas como por
toda a Ática. Aparentas compleição e força muscular suficientes para transportar
cargas acima do peso. Não paremos aí – tens envergadura intelectual suficiente
para elaborar tanto as modalidades de assassinato como também o teor das
mensagens crípticas. Não, não interrompamos nossas suposições: tua
envergadura te permite não apenas estar por trás disso tudo como também
envolver-me no processo dramatúrgico, com o fim de angariar mais fama ainda,
reproduzindo nossas conversas como uma de tuas comédias ou, ainda, sob a
forma de diálogos. A que conclusão chegamos?

– Primeiramente, minha índole é aniquilar pessoas pela via do sarcasmo e da


difamação, preferencialmente no meio de um palco. Sujar as mãos com terra,
sangue, resíduos de queimaduras ou bosta de vaca não faz meu estilo, a menos
que fosse eu um poeta nos moldes de Hesíodo e dado a elaborações campesinas,
misturando terra e fogo. Em segundo lugar, chamar a atenção de criaturas como
Eudoxo, a guarda cita ou os teus discípulos só teria sentido se eu também
estivesse condenado e tivesse não mais que alguns dias de vida: seria a única
forma de suportar tais provações. Finalmente, não sei quanto tempo te resta de
vida: por que eu engendraria estes assassinatos em série, que podem prosseguir
mesmo depois que morreres?

– Um momento, caríssimo Agátocles. Não há necessidade de intervires, pois


Aristófanes e eu estamos tão somente exercitando os dons dialéticos, tão
apropriados à ginástica intelectual. Não repares em nossa altercação: as vozes
alteradas tão somente ecoam o entusiasmo pelo debate. Voltando à nossa
conversa, Aristófanes, sugiro passarmos a um assunto mais afável, para não
alarmarmos – ou, pior, acordarmos – nosso prestimoso carcereiro.

– De acordo. Voltemos então a falar de ti, com vistas para nossa comédia?

– Podes perguntar o que quiseres. Mas antes permita-me dois últimos


questionamentos?
– Sou todo ouvidos.

– Admites que a maiêutica foi útil para extrair tua declaração de inocência?

– Sócrates, tu não...

– Não, não tens que dizê-lo agora. No devido tempo poderás responder, com
propriedade e pertinência. Faço-te agora uma segunda pergunta.

– Vais querer resposta a ela, também?

– Depende de ti. Este termo que cunhaste, “assassinatos em série”...


Acreditas que possamos convertê-lo numa expressão consensual, em nosso
colóquio investigativo?

– Não creio. Utilizei-o provisoriamente por não encontrar outro melhor. Ele
pode ser mais bem lapidado.

– Fica a teu critério. És tu quem vais escrever. O que queres saber de mim, a
essa altura?

– Aquele episódio de invadires do teto o parto a que tua mãe assistia. Podes
repeti-lo, com mais pormenores? Consertavas o telhado, é isto?
LIVRO SÉTIMO - UM AVISO, UMA AMEAÇA, UMA CONFISSÃO

Onde Aristófanes e o autor destes escritos, agora ceando em casa,


conversam brevemente sobre o estado de saúde de Aristófanes e rapidamente
este passa a relembrar os apuros que sofreu na noite em que os discípulos de
Sócrates o cercaram à saída da cela. Na mesma ocasião, segundo Aristófanes,
Eudoxo fez revelações assombrosas sobre a identidade da terceira vítima, sobre
o quanto isso complicava mais ainda a situação e, como tudo pode piorar, o
astínomo confidenciou as despropositadas providências que seriam tomadas
pela administração ateniense. Não que qualquer providência administrativa não
seja, por natureza, despropositada.

– Meu pai, no decorrer desta semana em que viemos conversando, percerbo


que sentes mais as dores do que no início de minha estadia. Uma pontada aqui,
um desconforto ali. Não pretendes voltar ao médico?

– Levas a sério demais minhas chantagens e subestimas meu gosto por


narrar, Filipos. Eis que me encontro mais velho que Sócrates quando entornou a
cicuta, e de dores similares ele já se queixava. Tua mãe mesmo disse há pouco
que menciono a dor somente ao acordar e ao me deitar; durante o dia me
acostumo a ela e durante a noite estou desacordado para reclamar. Coisas da
idade.

– Mas se atribuíste à dor importância suficiente para reter-me aqui, esta


importância não exigiria um tratamento médico mais apropriado?

– O que quero é que ouças até o fim: muito ainda há de ser contado. Senta-te
e ouve.

– Obedeço a contragosto. Reforço que nada é mais importante do que termos


ciência de tuas condições físicas.

– Amanhã chamo o médico, pois. Queres saber de quem era o terceiro


cadáver?

– Sem dúvida.

– Viste como manipulo tua curiosidade com a simplicidade de um titereiro?


Basta evocar o apelo místico contido na ideia de assassinato. Sócrates tinha
razão – Sófocles foi engenhoso em ocultar a identidade do assassino de Édipo
Rei até o ponto em que a plateia já se encontrasse fisgada. Aliás, um soberbo
exercício de mistério, concedo, já que o assassino acaba revelando-se a principal
vítima, pelo menos em termos de catarse, e aí já é tarde para libertar-se do...

– Bem, presumo que não é agora que irás revelar-me a identidade da terceira
vítima.

– Vou, por certo. Mas antes, para ordenar minhas próprias recordações,
preciso contar-te o que ocorreu na noite em que tive esta última conversa com
Sócrates, que te narrei. Ao sair da cadeia e rumar para casa, em hora já
avançada, percebi que não andava sozinho. Por duas ou três vezes, virei-me para
conferir se não estava sendo seguido, e em todas elas tive a impressão de um ou
mais vultos esgueirando-se, buscando as sombras e ao mesmo tempo
continuando a me acompanhar. Meu já crescente temor de perseguição aguçou-
se, e mais uma vez imaginei que estaria a ponto de pagar por saber demais. Junta
medo à curiosidade, acrescenta uma relativa capacidade de cálculo e considera a
força de controle do esfíncter: terás aí um homem cauteloso. Pois
cautelosamente procurei agir, encaminhando-me lentamente rumo ao gabinete
dos astínomos, que já se encontrava a alguns passos, menos para fugir do que
para insinuar a meus eventuais perseguidores que qualquer ataque correria o
risco de ser percebido e impedido. Ou pelo menos assim eu esperava. Quando
cheguei à porta do prédio, cujos candeeiros ainda guardavam óleo suficiente para
iluminar boa parte das cercanias, detive-me e encostei-me a uma coluna. Meus
perseguidores, fossem imaginários ou não, teriam duas opções – desistir da
busca ou mostrar suas caras. Para meu desânimo a segunda alternativa foi a
escolhida: depois de alguns movimentos que pressenti na já distante escuridão,
vi emergirem dela três figuras, cujas fisionomias pude ir divisando à medida que
se aproximavam, aparentemente sem intenção de ataque ou algo repentino. A
uma distância de uns quatro passos pude ver com certeza que eram Críton,
Apolodoro e Crátilo. Discípulos de Sócrates.

– Mesmo? E o que queriam de ti?

– Tentei gracejar, algo como “Se já desististes de seguir Sócrates e agora o


fazem comigo, devo advertir que sairei mais caro para vós – só alimento de
frutos do mar, aprecio apenas passas persas e não tomo outro vinho que não o
fenício. Preparai vossas bolsas.”

– Bastante inteligente de tua parte. Sobreviveste?

– Eles não queriam brigar. Queriam pior – advertir-me. Críton tomou a


palavra e não fez muita questão de eufemismos: “Aristófanes, sabemos de tuas
diferenças com Sócrates, e temos conhecimento do que fizeste em relação à
reputação dele. Tuas peças sempre o retrataram de forma derrisória, sempre
zombaste dele e de seus ensinamentos. Sabemos também que, por mais que tu
negues, a opinião popular assimilou bastante de tuas críticas, e muito do que
Atenas tinha e tem contra Sócrates alimenta-se do que disseste dele. Portanto,
cabe a ti boa parcela da responsabilidade pela estada dele naquele cárcere.”
– E tu?

– Ouvi. Ele prosseguiu: “Não sabemos o que pretendes em tuas constantes


visitas a ele. Tentamos fazer nossa parte, que é poupá-lo de mais
constrangimentos e vedar teu acesso à prisão, mas Sócrates, a seu modo
desprendido e equânime, mostrou-se benevolente e solicitou que voltássemos
atrás. Atendemos mais a título de concessão a um dos últimos pedidos de um
inocente. Mas ouve com atenção, Aristófanes: o que pudermos fazer, de nossa
parte, para reparar a injustiça que o Tribunal dos Heliastas cometeu em relação a
Sócrates, acredita que faremos. E se isso incluir cercear as influências nocivas a
ele, não duvides que lançaremos mão disso”. Esperei para saber se o discurso
havia terminado ali, e tomei a palavra: “Sabei, meus caros Críton, Apolodoro e
Crátilo – vós, que tantas vezes vi a gargalhar sobejamente de minhas peças no
Teatro de Dioniso –, sabei que eu, assim como Sócrates, só ajo para fazer
prevalecer o que é justo. Se eu e ele temos métodos diversos, que assim seja: é
da vontade dos deuses ou do acaso. Da mesma forma que fustiguei Cléon em
minhas comédias, do mesmo modo que ridicularizei os dicastas em minhas
farsas, da mesma maneira que ataquei tanto o Arcontado quanto a Assembleia
em minhas denúncias – achais que com tudo isso eu pactuaria com a injustiça?
Se satirizei Sócrates há quase duas décadas foi por ver nele, na ocasião, um
retardo para a juventude, que ao invés de preocupar-se com o destino de Atenas
dedicava-se a devaneios alienados e individualistas. Não, meu caro Críton, nem
Sócrates, nem tu e nem eu próprio estamos acima da crítica e tampouco do fel da
sátira. De forma alguma eu abuso da boa vontade de Sócrates ao visitá-lo no
cárcere agora, e se o faço é porque pretendo deixar registrado que a diferença de
opinião – que é a atmosfera da pólis, que é a razão da Ágora existir, que é o que
faz do ateniense um ateniense – de forma alguma pode justificar (percerbe que
eu digo no sentido mesmo de fazer justiça) algo inominável como a pena de
morte. O que eu empreendo neste momento sabereis em breve, mas de forma
alguma é para atacar, ferir ou manchar a reputação de Sócrates. Não viso ao
Sócrates personagem, mas ao Sócrates homem.”

– E Críton?
– Com a soberba dos afortunados que se arrogam benfeitores e simpáticos
aos despossuídos, obviamente permaneceu fechado ao que eu disse. Aproximou-
se um pouco – meio passo – para reforçar a admoestação, como se exalar seu
bafo de cordeiro com alho e hortelã na cara do interlocutor conferisse mais
autenticidade ao que ele ia dizer: “Aristófanes, conheço bem tipos como tu.
Disseste ser amigo de Sócrates, compareceste a banquetes com ele,
compartilhaste das polpudas benesses que a aristocracia oferece a pensadores e
artistas, mas sempre deste um jeito de estar bem com o poder, enquanto ele
arriscou-se ao opróbrio. Conheço também as várias faces do oportunismo. O que
eu disse, reforço: tua aproximação de Sócrates, se a ti parece espontânea, é tão
somente consentida. Estamos alertas para evitar, com todos os nossos recursos,
que a imagem de Sócrates sucumba ao ridículo. Ficai atento a isto.”

– Replicaste?

– Nada havia em minha defesa perante eles. Se eu revelasse que, em paralelo


à comédia que pretendia escrever, também efetuava uma investigação criminal
clandestina com a ajuda de Sócrates, acredito que minha permissão para as
visitas seria sumariamente revogada ali mesmo, independente de quaisquer
protestos por parte do prisioneiro. Se por um lado eu tinha um mensageiro
cerâmico homicida em meu encalço, tinha de outro os discípulos de Sócrates e,
por que não dizer, também o aparato policial de Atenas – que de alguma forma
iria acabar se incomodando com o meu envolvimento involuntário na sucessão
de crimes.

– Então a conversa não passou desse ponto?

– Ensaiei dizer-lhes que eu, ao contrário do insinuado, cuidaria de reabilitar a


memória de Sócrates, mas antes disso eles se viraram e deixaram-se tragar pela
escuridão. Não sei por quanto tempo haviam ficado de tocaia aguardando minha
saída da prisão – o que denotava seu empenho em deixar tudo aquilo bem claro
para mim – mas, minutos depois de sua partida, a ameaça, ainda que velada,
continuava presente, ilustrando solidamente o vigoroso zelo deles por seu
mestre. A partir dali eu saberia que, mesmo com Críton, Apolodoro, Crátilo e os
demais discípulos ausentes da cela em minhas visitas, meus passos não
deixariam de ser acompanhados. Voltei então a apoiar-me em uma das colunas,
percebendo que o óleo do candeeiro já começava a extinguir-se, e fiz – fosse aos
deuses, fosse à sorte, fosse à própria escuridão que se materializava como dona
intransferível de seus desígnios fazendo de nós fantoches cegos – a pergunta:
“Por que justo eu?” Por Hades, por que o filho da puta do escolhera a mim, que
até ali não fizera mais que dar vida a personagens grotescos, disparar trocadilhos
e palavrões em profusão nos palcos e abalar a suscetibilidade da aristocracia
ateniense? Que perfil eu teria para, de uma hora para outra, tornar-me um
receptador de mensagens de um criminoso? Por que eu? Por Melpômene, por
que não haviam escolhido um poeta trágico? Foi então que a voz me falou “Pelo
visto também andas carregado de problemas”.

– A voz?

– Durante um curtíssimo instante, tão imerso estava em indignação e


desânimo que reputei perfeitamente normal uma voz responder-me, como
alguma potestade replica à súplica de um desalentado devoto em um oráculo. No
instante seguinte tremi de susto e virei-me – para ver Eudoxo, já bem avançado
no vinho, num leve cambalear apoiado ao pórtico de entrada do prédio.
Provavelmente os serviços do dia haviam terminado, e ele me olhava parecendo
tentar firmar a vista.

– Tua noite não deixou de ser movimentada, meu pai.

– Mal sabes, Filipos. Limitei-me a falar “Problemas, tu disseste?”, e ele,


aproximando-se e arriscando os primeiros passos sem amparar-se no pórtico:
“Sim, fico a imaginar quantas vezes um grande autor teatral não é confrontado
por seus críticos”. Naquele momento implorei a Atena que não o deixasse dar
andamento àquele assunto específico, mas em vão: “Tiveste oportunidade de ler
minha peça?”, ele emendou, quase imediatamente.

– Pai, agora me compadeço verdadeiramente de ti.

– Fiquei receoso que ele fizesse alguma dedução a partir do que teria ouvido
de minha conversa com Críton, e nem sei o quanto ele escutara. Como assim,
pensaria ele, visitas a Sócrates, na prisão? Como assim, Aristófanes
empreendendo algo que naquele momento não poderia revelar? Mas logo me dei
conta que não apenas seu estado etílico embotaria sua capacidade auditiva como
mesmo sóbrio Eudoxo não teria – digamos – meios de fazer conexões lógicas
como aquelas. Apenas respondi “Não, tu sabes que ando atribulado; além de
escrever uma nova peça, toda a minha ocupação no momento consiste em
proteger-me, por conta de meu involuntário envolvimento nessa história macabra
que acompanhamos. Falando nisso... já temos a identidade da última vítima?”
Ele pôs a mão em meu ombro, afetando proximidade mas na verdade apoiando-
se para não cambalear, e sussurrou (sim, aquela foi a noite de receber bafos
masculinos de diversos odores) e, depois de uma eternidade, falou “Senta”.

– Só isso?

– Foi o que entendi – até perceber que ele, disposto a abdicar da tentativa de
manter-se equilibrado, resolveu se entregar à praticidade de esparrachar-se na
escadaria da entrada para não mais passar vergonha. Agachei-me puxado por ele,
e logo estávamos ambos estatelados em frente ao prédio do Gabinete dos
Astínomos. Fiquei a imaginar a real natureza desta força que nos puxa para o
chão, tão ignorada por nossos filósofos, e que volta e meia vitima nossas bundas,
principalmente quando o chão é formado pela íngreme e angulosa superfície de
uma escadaria de pedra. Eudoxo olhou-me, no que parecia ser o lerdo esgar entre
um sorriso e uma máscara de lamentação: “Identidade da última vítima. Sim,
sim. A identidade da última vítima. Claro.” E fez um longo silêncio. Achei que
de tão bêbado ele começaria tudo de novo, e quando eu já ia repetindo a
pergunta ele emendou “Arranjei um problema do tamanho da Acrópole, meu
caro Aristófanes”.

– Pai, imagino que agora, neste exato momento, ganharias o primeiríssimo


lugar nas Dionisíacas Urbanas, se no concurso houvesse alguma categoria que
premiasse a geração exagerada de expectativa numa narrativa.

– Certo, meu impaciente Filipos. Poupo-te das filigranas, porque até a mim
elas exasperavam. O que Eudoxo basicamente disse é que não foi preciso muito
para descobrirem que o cadáver pertencia a Áulito de Patmos, um famoso ex-
combatente da batalha de Anfípolis, cujas características físicas eram bastante
peculiares. Ele perdera a mão no conflito, além de haver trazido dele o pedaço de
uma lança espartana encravada na omoplata, e que na ocasião os médicos
acharam por bem não extrair. Pois bem, bastou livrar o cadáver do esterco para
que essas duas características praticamente saltassem à vista dos assistentes de
Eudoxo: se o corpo queimado dificultava a identificação pela fisionomia, estas
características não deixavam dúvidas.

– Um momento. Famoso ex-combatente da batalha de Anfípolis, mas que na


ocasião da morte era...

– Claro. Um sofista.

– Sócrates acertara em sua previsão.

– Não creio ter sido previsão, Filipos. Sócrates tinha plena certeza disso.

– E ele conhecia Áulito?


– Sim, inclusive em um banquete – não lembro na casa de quem – presenciei
Áulito o confrontando e chamando-o de “ateniense mais falsificado que um
silogismo bárbaro”. Sócrates calmamente respondeu que os bárbaros faziam seus
silogismos também, e que iriam acabar nos conquistando porque não perdiam
tempo denominando-os silogismos.

– Mas no que consistia o tal “problema do tamanho da Acrópole”, a que


Eudoxo se referira?

– Ah, Filipos, agora pretendes retornar aos pormenores da narrativa? Não


preferes um relato mais resumido, que possa...

– Sim, meu pai, faz como preferires.

– Áulito possuía uma fortuna invejável com sua ocupação na sofística,


fortuna essa arrebanhada em constantes viagens pela Ática, formando filhos de
aristocratas para a oratória e jovens aspirantes à política. Pois bem, em dado
momento ele casou-se com a filha de Estrátocles, que fora basileu uns quinze
anos antes dos fatos que narro a ti. Ocorre que, em suas longas e diversificadas
viagens, Áulito não apenas formava os filhos alheios, mas também fazia vários
seus. Aparentemente dois ou três rebentos bastardos ficaram pelo caminho, e a
um deles Áulito, por motivos que ninguém nunca soube, deixou, em documento
lavrado de próprio punho, metade de sua fortuna.

– Por Zeus, por que essa benevolência testamentária não ocorre com mais
frequência em Atenas...?

– Aprovo mas relevo tua piada. Ocorre que Laques, filho de Euctémon,
cunhado de Áulito e, principalmente, arconte tesmoteta na época dos
assassinatos, sendo inclusive o magistrado a quem Eudoxo se reportava, ao
tomar conhecimento da identidade do cadáver, pediu – um doce se adivinhares –
sigilo absoluto a Eudoxo. Sabedor do tal testamento, aparentemente ele não
apreciou muito a hipótese de ver metade de tanto dinheiro, agora em poder de
sua irmã viúva, ir parar nas mãos de um descendente ilegítimo, ainda mais em
outra cidade.

– Dizes que Laques proibiu as investigações?

– Não apenas isso. Com este terceiro assassinato, Eudoxo não teve
alternativa senão pormenorizar os dois primeiros crimes a Laques – dos quais
este só tivera notícias por alto –, incluindo os embaraçosos laços entre as vítimas
e membros do poder público. Laques, entre furioso e alarmado, concluiu que
com o terceiro crime a administração de Atenas passaria à condição de
efetivamente acuada. A partir daquele momento, mais que nunca, era essencial
manter as informações sobre os assassinatos – provisoriamente que fosse – fora
do conhecimento da população.

– Mas... Vós – tu e Sócrates – também partilháveis dessa impressão? De que


os crimes visavam constranger ou mesmo ameaçar a administração ateniense?

– Num primeiro momento cheguei a cogitar. Mas Sócrates sempre relutou


em acreditar nisso: de alguma forma ele via mais coincidências do que
causalidades.

– E Eudoxo repassou a ti a exigência de sigilo, imagino.

– Não era preciso ser magistrado para saber que qualquer investigação – e
investigação, como eu já te disse, jamais fora o forte da Justiça ateniense –
poderia acabar caindo nos ouvidos e principalmente na boca do povo. E qualquer
magistrado poderia calcular o que significaria uma Ágora cheia debatendo
febrilmente sobre os três assassinatos, cujo culpado não fora descoberto e cujas
consequências comprometeriam mais e mais o governo da cidade.

– Então tiveste que concordar em silenciar-te a respeito.

– Filipos, Eudoxo nunca se comportou como um verdadeiro policial, mas


como um passivo e covarde instrumento de resguardo da classe política e
aristocrática, cuidando simplesmente de abafar quaisquer notícias sobre os
crimes. Mas o pior é que eu – eu, Aristófanes de Atenas, que sempre tivera como
causa a denúncia e o ataque aos desmandos da classe política e aos privilégios da
aristocracia; eu, que sempre recorrera ao sarcasmo sem medidas para expor a
corrupção, dando nomes aos bois, às vacas e às cabras; eu, que sempre lançara
mão do ultraje para arreganhar as regalias e benesses – agora me via obrigado
também a pactuar com aquilo. Sendo forçado a calar-me. E tudo com o fim de
não prejudicar minha já delicada colaboração com Sócrates, para cuja prisão,
segundo a opinião pública, minha obra havia colaborado. Consegues entender?

– Talvez o conseguisse hoje. Mas não no calor da hora, confesso.

– E se eu te disser que o pior ainda estava por vir?

– Bem, devo dizer que a flexibilidade de limites para o que podemos


entender por pior mostrava-se assustadora na ocasião.

– Depois de vomitar ebriamente todas essas confidências, e quando achei que


ele já fosse pender a cabeça para adormecer, Eudoxo subitamente pareceu
acordar do torpor. Ergueu a vista, olhou ao redor, como se a embriaguez
houvesse passado, e, quando eu esperava ouvir pela décima vez a súplica de não
contar aquilo a ninguém, acabei escutando foi a decisão a que Laques chegara,
ao final daquele dia – e que comunicara a Eudoxo.

– O que seria? Escolher algum suspeito preferencial entre algum dos


inimigos públicos da cidade, entregá-lo ao Areópago, encerrar o caso e
desacreditar o verdadeiro criminoso, qualificando eventuais assassinatos
posteriores como obra de algum copiador lunático?

– Muito bem, Filipos. Razoável saída dramatúrgica de tua parte. Mas não –
Laques procurou ser mais pragmático ainda.

– Sim...?

– Recorrer aos préstimos do inimigo.

– Como?

– Esparta.

– O que me dizes?

– Recorrer a um espartano para investigar os crimes.


– Por Zeus, meu pai, abro mão de qualquer narrativa resumida, aceito um
relato detalhado e criterioso, mas me explica, palavra por palavra, o que Eudoxo
quis dizer com isso.

– Ele tocou-me o ombro e falou: “Antes de contar-te o que Laques resolveu,


deixa-me fazer uma pergunta”.

– E...?

– “Meu grande, prezado e admirável Aristófanes, diz-me... Esta peça que


disseste estar escrevendo... ela é sobre o quê, mesmo?”

LIVRO OITAVO - AOS INIMIGOS TUDO, AOS


FILÓSOFOS A LEI

Onde Sócrates e Aristófanes, na prisão, dialogam sobre a iniciativa tomada


pelo governo ateniense de convocar os serviços espartanos para auxiliar nas
investigações dos crimes; iniciativa na qual Sócrates, velho conhecedor e
adversário dos bastidores da política, curiosamente enxerga mais coerência que
paradoxo. Segue-se também Aristófanes reforçando sentir-se coagido por todos
os protagonistas do drama, incluindo o assassino, os discípulos de Sócrates, a
força policial e o governo de Atenas – situação inusitada, inquietante e
paralisante, diante da qual Sócrates, como era de se esperar, diverte-se
bastante.
– Arquídamo, o espartano? Tens certeza?

– Sim, Sócrates. E sabemos que inerente a isso está o receio – compartilhado


por boa parte da elite ateniense – de que a notícia dos crimes ganhe as ruas e,
principalmente, de que a série de assassinatos prossiga.

– Disseste não apreciar o termo “assassinatos em série”, e eis que mais uma
vez lanças mão dele.

– Na falta de uma colocação mais adequada, Sócrates. Já falei que a


terminologia me soa apressada e incompleta. O que posso dizer-te no momento é
isso – para evitar a todo custo que a notícia destes homicídios se torne pública,
Atenas resolveu recorrer justamente a Esparta. No caso, a Arquídamo – nas
palavras, de Eudoxo, “éforo famoso por seu raciocínio militar e pelo índice de
acertos obtidos até hoje em investigações sobre corrupção e tentativas de golpe
de estado”. E, principalmente, porque sua presença aqui, disfarçada, será
garantia de manutenção do sigilo das investigações.

– Aí está a graça da piada, meu nobilíssimo Aristófanes. Se buscavas uma


comédia, ei-la completa, com a abertura, o conflito e o desfecho! Esparta, nossa
inimiga imemorial. O espelho em que Atenas jamais admitiu mirar-se. A algoz
de nossa democracia, e que há tão pouco tempo resolveu nomear aqui trinta
tiranos para estabelecer um regime de trevas, perseguição e censura – poupando
apenas os maleáveis colaboracionistas. Um regime cuja derrocada foi
ruidosamente celebrada por escravos, demiurgos, georgóis, eupátridas, mas que
aparentemente não desfez por completo seus laços de conveniência com os que
hoje determinam nossos destinos. E vou além, Aristófanes. Falamos da mesma
Esparta pela qual fui acusado de nutrir admiração, dada a minha indisposição a
participar dos debates cívicos atenienses, onde impera a sofística estéril, ou a
tomar parte na política ateniense, onde tem voz a fértil demagogia. Pois a mesma
administração, que me mantém a ferros aqui, recorre secretamente a Esparta para
evitar que venham a público as suspeitas conexões privadas envolvendo
membros do poder ateniense. Faz, Aristófanes, faz teu público rir dessa comédia
política.

– Não sei o que dizer. Aliás, sei. Vejo nisto tudo um precedente mais do que
justo para que fujas.

– Nem idade mais eu tenho para estrepolias dessa natureza, nem minha
descrença se estende a Atenas, mas tão somente a seus administradores. Se a
cidade se sustenta no espírito de suas próprias leis, não é contrariando-as que se
fará justiça. Deixa, deixa que já me basta o esforço de recusar sistematicamente
as ofertas de Críton para que eu rume daqui para a Tessália, e de lá para não sei
onde, como se isso conferisse verdade ao que eu sempre preguei.

– Falando em Críton...

– O que tem ele?

– Não sei se devo dizer-te.

– Sossegue. Não terei tempo de vida nem tampouco paciência para fazê-lo
saber o que quer se seja que me contes, e que já prefiguro como um
desconfortável episódio envolvendo a ambos de vós. Imagino que ele tenha te
procurado, não?

– Bem, digamos que depois de minha última vinda à tua cela – coisa de dois
dias –, ele abordou-me, juntamente com Apolodoro e Crátilo. E não foi para
cumprimentar-me efusivamente por honrar-te com minhas visitas.
– Imagino. Eu os dissuadi dessa ridícula proibição imposta a ti, mas ao
mesmo tempo calculei que eles não deixariam de utilizar-se de seus próprios
recursos, assim que tivessem condições. Chegaram a ameaçar-te?

– Não exatamente. Ou diretamente. Mas devo dizer, Sócrates, que


verdadeiramente não me aborreci. Se na hora me senti um tanto acossado, depois
entendi tratar-se mais de zelo originado do afeto por ti do que o ressentimento
devotado a mim. Ao menos espero que seja isso.

– Críton é um bom homem: calhou a ele o azar de possuir fortuna a ponto de


a cidade inteira ridicularizá-lo por sustentar-me. E, óbvio, calhou a mim a sorte
de tê-lo me sustentando.

– Mas voltando a Esparta. Teria lá a Gerúsia aceito de bom grado a oferta


ateniense, depois da derrota da Tirania dos Trinta e da expulsão das forças
espartanas daqui?

– Aristófanes, meu sagaz Aristófanes. Lembra-te de Heródoto dizendo que


na paz os filhos enterram os pais, e na guerra ocorre o contrário?

– Por certo.

– Pois eu vou além. Na paz desenterram-se os conchavos que a guerra


sepulta.

– Assim é. Mas ainda há mais a dizer-te.


– Diz, Aristófanes. O barco sagrado insiste em demorar e fazer-me ter – em
uma cela com tão pouco espaço – mais surpresas do que já tive em toda a minha
vida.

– Hoje cedo Eudoxo pediu-me para ciceronear secretamente Arquídamo em


suas investigações.

– Como assim?

– Para não despertar suspeitas por parte de quem quer que seja, não é
conveniente que ele seja visto em companhia de ninguém envolvido na
administração direta ou na força policial. Desta forma, seria eu a acompanhá-lo
nas eventuais diligências – para fazer com que ocasionais testemunhas imaginem
tratar-se de algum ator ou artista cênico assessorando-me em minha próxima
comédia.

– E no que consistiriam essas... diligências?

– Até onde sei, levá-lo aos locais onde os corpos foram encontrados,
informá-lo em detalhes sobre os crimes e posteriormente repassar a Eudoxo suas
observações.

– Apura pois os ouvidos. As observações hão de ser um tanto escassas e


monossilábicas.

– Tu o conheces?
– Não que eu me lembre. De qualquer modo, meu bom Aristófanes, ele é
espartano: será lacônico por natureza.

– Entendo.

– No espaço de tempo que o ateniense leva pensando, ponderando,


questionando, reconsiderando, voltando atrás – e tornando a ponderar – o
espartano já se armou, conquistou três ou quatro cidades e voltou para casa.
Presumo que terás dificuldade em arrancar muitas palavras de Arquídamo.

– Mas achas que de algum modo as investigações possam avançar?

– Se Atenas houvesse convocado teu iminente colega de Esparta para


capturar sonegadores de impostos escondidos no Licabeto ou joias
contrabandeadas ocultas nos cadáveres do cemitério do Cerâmico, eu preveria
sucesso em um tempo relativamente curto. Alvos materiais são o objetivo
perfeito para quem não costuma abstrair-se o bastante. Acontece que aqui ele
terá que lidar com um desígnio subjetivo, intangível: a inteligência de um
assassino cujos requintes – por mais distorcidos que sejam – têm uma razão de
ser. Não vejo por que isso não será uma bela perda de tempo.

– Trabalho que deveria ser feito por um filósofo como tu.

– Meu teimoso Aristófanes, te reitero: o ateniense não dá valor à


investigação intelectual, à perquirição do espírito. Ele se atém a longas e
intermináveis contendas verbais que eventualmente uma das partes vence por
esgotamento de saliva ou de paciência da outra, e se dá a isso o nome de debate.
Por isso os sofistas vicejam. Em Atenas são honrados não os que se dedicam a
averiguar, mas os especialistas em convencer.
– Não é outro o motivo de eu recorrer a ti.

– E por este motivo corres o risco de não poder contar com meus préstimos,
se o barco sagrado aportar no Pireu antes que descubramos o assassino.

– E é justamente por isso que a tensão cada vez mais me oprime, quando
acordo e não deparo com nenhum fragmento de cerâmica, seja em algum lugar,
seja deixado por quem quer que seja: sei que estes últimos dias têm passado bem
mais rápido.

– Já que tocaste neste assunto, o que Eudoxo ou mesmo Laques pensam


sobre seres tu o destinatário das mensagens do criminoso? Suspeitam de ti?

– Não saberia dizer. Imaginam que fui escolhido pelo homicida por ser, além
de um ateniense público, alguém com a capacidade de enxergar causalidade
entre os fragmentos e os respectivos assassinatos, deixando assim a força policial
ciente de que há um só criminoso por trás de tudo.

– Não estarão conjecturando errado. Ou seja, os pedaços de cerâmica serão


um recado indireto para a polícia.

– Assim creio.

– Ou não seriam um recado para a polícia? Ou não só para a polícia?

– O que queres dizer, Sócrates?


– São apenas germes de suposições. Sem entender o conteúdo das sarcásticas
mensagens nos fragmentos, qualquer suposição é pedra atirada na água.
Precisamos antes decifrá-las – e também a relação que elas têm com os crimes –
para que assim eu estimule tuas inferências e tu tragas à luz não só a identidade
do assassino e a causa das mortes, como também o modo mais adequado de
pará-lo.

– Ou seja – queres mesmo, por vaidade, converter-me em ferramenta de tua


maiêutica para aplicá-la à investigação e assim...

– Por Zeus, Aristófanes, não recomecemos com esta querela. A nada ela nos
levará, a não ser perda de tempo e desperdício de esforço intelectual! Fujamos
do paradoxo de Zenon, obriguemos Aquiles a ultrapassar a tartaruga!

– O problema é que avançamos realmente a passos de tartaruga, e fico com a


impressão de que todo o resto – o assassino, o barco sagrado – transcorre na
velocidade de Aquiles. Como achas que devo proceder, se tiver que realmente
assessorar Arquídamo nesta, digamos, perquirição secreta?

– Age em conformidade com o que te for solicitado, seja por ele ou por
Eudoxo. Não permitas que ninguém saiba que compartilhamos a investigação.
Agora que és funcionário da administração ateniense...

– Sem pilhéria, Sócrates. Reitero que o comediante, mesmo que por ora
desprestigiado, sou eu.

– Que pilhéria? Agora és um agente do Estado ateniense, queiras ou não.


Secreto, mas agente. Aliás, um agente duplo: atuas em segredo comigo, para que
a administração não tome conhecimento, e atuarás em segredo com um
espartano, para que a população nada saiba.

– Sim, eu haveria de viver para ver isto. Sócrates, o filósofo piadista;


Aristófanes, o comediante agente do governo.

– Pressinto que venhamos a descobrir que o assassino talvez seja um piadista


mais engraçado que tu e eu juntos.

– Por quê?

– Só palpites, Aristófanes. Como eu disse, apenas alguns palpites ainda se


procurando, estudando-se reciprocamente, para tentarem finalmente aglutinar-se
em uma premissa minimamente sólida.

– E o que fazemos neste meio tempo?

– Bom, tens um pretexto para continuares a usufruir da confiança de Eudoxo


e permanecer a par do andamento das providências da administração: tua
alegada nova comédia. Disseste a ele que a peça é sobre mim?

– Não. À pergunta dele, fui vago o suficiente, apenas adiantando que se


trataria de uma obra a questionar determinados valores atenienses.

– Prossegue nela, pois. Precisas ocupar-te verdadeiramente de algo concreto,


e de cujo progresso ele esteja informado, e pelo qual mantenha o interesse.
– E quanto à peça dele. Achas... que devo lê-la?

– Por que não? Por pior que ela seja, pensa no destino das pobres vítimas de
nosso assassino e conforma-te com o fato de que pelo menos tu continuarás vivo.
Tenta ganhar tempo sugerindo algumas melhorias, num trecho ou outro. Nada
mais reconfortante a uma alma desprovida de qualquer talento que ouvir um
reparo a seu trabalho: ao mesmo tempo em que vê sua obra recebendo a devida
atenção, a pobre criatura julga que o oposto do reparo seria o desprezo, e nisso
ela se reconforta.

– Sócrates. Crês que a dissimulação com a qual me sugeres agir está em


conformidade com teus ideais de justiça, que – como tanto já asseguraste – são
fundamentais para o exercício da temperança e da virtude?

– Tua pergunta não é de todo má, caro Aristófanes. Capciosa, maliciosa,


quase sofística, mas nem de longe impertinente. Imagina a seguinte situação. Os
portões de tua cidade estão sitiados por um inimigo voraz, que não vê a hora de
entrar e tomar posse de tuas praças, tuas casas, teus bens e ainda transformar os
sobreviventes do embate – que fatalmente se travará – em escravos. O que
farias?

– Já imagino as respostas que queres que eu dê. Sim, eu sacrificaria algumas


vidas de meu efetivo populacional, incluindo jovens e talvez idosos, para
defender a integridade da cidade e garantir que a maioria dos cidadãos, incluindo
mulheres e crianças, pudesse continuar desfrutando da paz e da segurança de
uma comunidade autônoma e soberana. Estás satisfeito?

– Bem, na verdade eu iria perguntar-te se não acharias mais prudente


atravessar aos portões, convidar o líder do exército inimigo para uma palestra à
parte e consultá-lo a respeito da possibilidade de permutar algum bem valioso
produzido em tua cidade e alguma riqueza originária da cidade dele, prevendo o
interesse mútuo – e, se isso resolver a contenda, descartar a possibilidade de
derramamento de sangue. E é o que justamente estou a propor-te.

– Nada tenho a oferecer nesta permuta, Sócrates.

– Mas tens muito a ganhar, meu nobilíssimo comediógrafo: a possibilidade


de poder contar esta história. E o que é melhor, tendo ouvido e se envolvido com
todas as partes.

– Isso se Laques não resolver, do nada, afastar-me do processo; ou teus


discípulos não continuarem a acuar-me; ou o assassino não resolver encerrar sua
série de homicídios selecionando uma vítima fora do padrão, para um fecho
diferenciado, e brindar-me com a escolha, ou...

– Pode acontecer o pior de tudo isso.

– O quê?

– Desistires.

– Sócrates, para quem estava refratário à iniciativa desta investigação, teu


interesse vai além do esperado.

– Por Zeus, eu não estava refratário, Aristófanes. Tu é que não soubeste


preparar direito tua lista de motivos para procurar-me aqui. Primeiramente,
imagino que já sabias de antemão por que eu não seria executado imediatamente
graças à contingência da embarcação sagrada. Em segundo lugar, a permissão
que me pediste para escreveres uma comédia sobre mim pareceu-me tíbia e
afetada – não tinhas que solicitar-me; bastava escrever tua peça como bem
quisesses: já me conheces o suficiente. E, finalmente, mal disfarçaste o fato de
que o que realmente te movia era a vontade de iniciar uma investigação criminal,
a respeito de um assassinato onde foste de alguma forma envolvido.

– Pois o que te digo agora é que cada vez mais tendo a envidar meus esforços
exclusivos na confecção da tal comédia, e nada mais. A coisa começa a ficar um
tanto perigosa para mim, e não desejo apostar uma corrida contigo para ver
quem morre primeiro.

– Eu, por minha vez, mal posso esperar para prosseguir em nossas
investigações criminais. Agora anda, vai, prepara-te para servir a teus novos
patrões. Arquídamo te espera.

LIVRO NONO - TRATANDO A FERROADA DA VESPA COM O


FERRÃO DA VESPA

Onde Aristófanes e o autor destes escritos, apreciando o fim da tarde no


jardim de sua residência, conversam sobre a singular personalidade de Laques,
o arconte chefe de Eudoxo, e Aristófanes rememora ao filho sua constrangedora
condição de comediógrafo iconoclasta convertido, por força das circunstâncias,
em colaborador do governo. Algumas descobertas em conversas triviais também
começam a trazer alguma luz ao mistério, se bem que uma espantosa descoberta
se dê no momento em que Aristófanes finalmente conhece Arquídamo.

– Meu pai, de todos os atenienses envolvidos até agora em tua narrativa, eu


só não ouvira falar de Laques.

– Pois é justamente quem tive que ver, antes até de conhecer Arquídamo,
Filipos. Quanto mais eu ia me imiscuindo nas esferas da administração, menos
queria estar envolvido. Mas Eudoxo insistiu, frisando que Laques, como arconte
tesmoteta e seu superior – além de um dos mentores do plano secreto de
convocar Arquídamo – queria ver-me. Minha indisposição, além de todas as
razões que já conheces, se devia também ao fato de eu haver jogado merda no
Arcontado em Os Babilônios e, mesmo passados mais de vinte anos da
encenação, certos embaraços haviam de ter permanecido.

– Aguardavas uma reprimenda?

– Disso nunca tive medo, Filipos, ou jamais teria pego em um cálamo. O que
me indispunha mortalmente era o canhestro teatro que meus criticados
encenavam, sempre que tinham a oportunidade de confrontar-me: uma farsa de
ressentimento e de constrangedoras insinuações de retaliação – na maior parte
das vezes praticada por sofistas e políticos das altas esferas. Por que achas que
Sócrates jamais queixou-se de minhas críticas? Agora vá fustigar algum boçal
que se tem em grande conta, e verás que o tamanho do melindre será
proporcional à imagem que esses imbecis cultivam de si. Quanto maior o
espelho, mais estilhaços na autoestima. Sempre foi cansativo.

– Mas disseste que Eudoxo elogiou-te a coragem de desancar Cléon em Os


Cavaleiros...

– Primeiramente porque não foi com ele. Em segundo lugar porque ele me
disse isso bêbado e portanto tomado pelo espírito bajulador que lhe era
conveniente. Mas agora ali, sóbrio, na presença de Laques, podes ter a certeza de
que um Eudoxo receoso e subserviente ratificaria sem hesitar qualquer
recriminação que o chefe fizesse a mim.
– E Laques o fez?

– Laques me lembrava um corpulento e preguiçoso falcão – um falcão que,


no momento de alimentar-se, pensasse três ou quatro vezes antes de levantar voo
do penhasco e acabasse ficando por lá mesmo, aguardando que algum prestativo
pombo se dignasse a cair do céu já devidamente morto, a seus pés –, semelhança
que era generosamente reforçada pelo nariz fino e encurvado e os redondíssimos
olhos enegrecidos. Seus movimentos eram vagarosos, de uma lentidão que
parecia mais afetada que inerente, como se cada mínimo gesto seu precisasse ser
percebido como de vital importância não só para o procedimento em questão
mas para toda a administração, para Atenas, quem sabe a Ática inteira e o
restante do mundo civilizado. Depois de conferir alguns documentos com um
assistente, dispensou a todos no cômodo e ficamos somente ele, Eudoxo e eu.
Então, passando a dedicar a mim o negrume daquele olhar redondo por alguns
instantes – confesso que tive ganas de atirar-lhe um rato para vê-lo abocanhar e
destroçar a presa com o bico –, ele apenas disse “Eis então Aristófanes”. Pensei
em dizer “Bem, em pelo menos alguma coisa estamos de acordo”, mas preferi
aguardar que ele complementasse a frase, o que não ocorreu. Eudoxo foi até ele
e cochichou-lhe algo, para que instantes depois ele sinalizasse com a mão que
bastava. Eudoxo voltou a seu lugar e Laques prosseguiu, sem pressa:
“Aristófanes, não preciso dizer-te que esta começa a se afigurar como uma das
mais graves crises pelas quais a administração ateniense já se viu ameaçada. E é
fundamental que a população, ao menos por enquanto, não tome ciência do que
se passa. Sabes do caráter secreto dela.”

– E tu?

– Fiquei olhando e percebi que ele não mudara muito após tanto tempo. O
pai, um rico comerciante do Pireu, contratara um sofista, Odilardo – cuja única
característica de que me lembro era a língua presa –, como preceptor do jovem
Laques. Odilardo levava o menino com ele aonde fosse, numa pedagogia
peripatética que gerava não pouco falatório. Aliás, naquele momento em que
deparei com Laques em seu gabinete de arcano, veio-me a lembrança dele e seu
mentor sentados na plateia de uma de minhas peças, muitos anos antes, e onde
Odilardo disfarçou muito mal a contrariedade quando, numa alusão aos sofistas,
comecei a imitar sua cômica maneira de pronunciar as palavras. Mas, até onde
me lembro, ambos ficaram até o final.

– Mas não respondeste à pergunta de Laques?

– Imaginei que ela fosse retórica, até que Eudoxo cutucou-me de leve e eu
murmurei algo como “Sim, tomei conhecimento”. Laques prosseguiu: “Imagino
que, salvo nossas enormes diferenças de pensamento, a Atenas que desejamos
seja a mesma – luminar da democracia na Ática e exemplo de ordem e paz”.
Imaginei que Eudoxo naquele momento estivesse trancando o rabo de medo que
eu dissesse alguma coisa de minha natural lavra, mas decidi – até para
acelerarmos o processo – falar o menos possível, e apenas comentei: “Supondo
que as duas assertivas que fizeste em tua frase sejam verdadeiras, Laques, eu
concordo”. Seguiu-se um curto silêncio e ele retomou a palavra: “No entanto, às
vezes temos que recorrer a extremos, mesmo que estes extremos aparentemente
configurem um paradoxo em relação aos princípios de nossa pólis. Mas, se o
fazemos, é porque a ameaça que se desenha no horizonte é igualmente extrema,
e o objetivo é um só – continuar mantendo a ordem, a paz e os pilares
democráticos. Atenas já passou por uma amarga experiência há não muito tempo
e não desejamos que isso se repita”. Lógico que pensei “Falas da tirania
espartana e agora recorres a Esparta. Lanças mão do velho adversário para
preservar as instituições atenienses como quem retira o veneno da vespa e o
utiliza para aliviar o inchaço da picada”, mas para presumível alívio de Eudoxo
mantive silêncio. Laques prosseguiu: “Eudoxo nos disse que tu, por algum
motivo que ora nos escapa, foste escolhido para receber mensagens anônimas,
aparentemente alusivas ao que ora ocorre, o que nos faz pensar que elas sejam de
autoria do – digo, de quem estamos buscando identificar”. “Só tenho a
lamentar”, eu disse, e Laques, não parecendo registrar a dubiedade de minha
frase, prosseguiu: “Quero saber se podemos continuar contando com tua
discrição durante as diligências que se fizerem necessárias.”

– Laques sabia que os arqueiros citas também tinham conhecimento das


mensagens em cerâmica?
– Imagino que Eudoxo tenha omitido esta informação, para não inquietar
ainda mais seus superiores. Afinal, Filipos, sabes que se existe alguém em quem
um verdadeiro democrata ateniense jamais confiaria é um escravo.

– Pois bem, e o que respondeste à pergunta dele?

– Imaginei – como Sócrates – se significaria fazer justiça obedecer a uma


ordem contrária ao que eu entendia como a ética política ateniense. Mas, ainda
pensando como Sócrates, concluí que aquela recomendação não emanava dos
fundamentos da pólis, mas de uma contingência oportunista visando livrar o rabo
de aristocratas, arcontes, estrategos e quem mais tivesse liames escusos tanto
com os sofistas mortos quanto com os que porventura viessem a morrer.
Comecei a armar em pensamento meu discurso: “Sim, Laques, utilizas como
escudo os pilares da fundação de Atenas para proteger tua laia de mandatários e
de privilegiados, escondendo dos cidadãos a pequenez das relações entre vós e
os que podem comprometer-vos; porém como não considero que representeis
verdadeiramente nossa cidade, concordo em ser conivente com o pedido para
preservar não somente a mim e à minha família mas também a Sócrates e aos
seus, no que eles tiverem ainda a perder”. Mas acabei só dizendo “Sim”.

– Entendo.

– Mediante minha concisão, Laques, que aparentemente ainda contava com


mais tempo para a conversa, preencheu o silêncio fingindo repassar uma leitura
distanciada nos documentos em cima de sua mesa, e então voltou-se a mim e a
Eudoxo: “Bem, dito isso, presumo que estejamos entendidos”.

– Ou seja, chamou-te para nada dizer.


– Pelo contrário, Filipos. A ocasião fora minuciosamente planejada para
deixar claro que eu, Aristófanes, encontrava-me subordinado a todas as esferas
administrativas, e que Eudoxo não seria mais que um porta-voz.

– E nada mais foi dito?

– Laques fez sinal ao assistente para retornar ao gabinete, e Eudoxo e eu


saímos. Quando eu já estava à porta, Laques disse: “Ah, Aristófanes. Até onde
me lembro, gostei muito de assistir As Nuvens em companhia de Odilardo. O
retrato destruidor que fizeste de Sócrates foi impecável.”

– Ora, veja só. Então foi As Nuvens que Laques e seu tutor prestigiaram, na
plateia.

– E creia-me, Filipos: naquele instante achei que seria mais adequado deixar
que Laques e sua corja continuassem achando que eu e Sócrates alimentávamos
uma inimizade.

– Compreendo-te mais do que nunca.

– Assim que saímos Eudoxo assegurou-me que me manteria a par dos


acontecimentos. Naquele momento, sem nada para fazer – nem com Sócrates eu
poderia falar, já que nosso horário seria somente tarde da noite –, vim até nossa
casa para conferir se não haveria nenhum recado de nosso ceramista. Dei com o
arqueiro cita posto aqui por Eudoxo, cochilando, recostado àquele muro. Ao ver-
me chegar, despertou desajeitadamente, ajeitou o chapéu e pôs o arco em riste,
só que ao contrário. Fingi não reparar; entrei, verifiquei se estava tudo em ordem
– tua mãe ainda ficaria uma ou duas semanas com a irmã, e Medusa como
sempre dormia ou acordava para virar-se para o lado e continuar roncando – e
voltei para fora. Aproximei-me do guarda e perguntei, só para puxar conversa:
“Tudo em paz por aqui?” “Shim, todo trranquilo”, ele respondeu com aquele
carregadíssimo sotaque das estepes, sorrindo ensaiadamente – e provavelmente
ignorando que eu já sabia que meus vizinhos, percebendo a presença fixa de um
agente da ordem ali, haviam se cotizado e combinado clandestinamente com ele
uma quantia diária, para uma ronda por todo o quarteirão. Mas isso não me
interessava, então fui direto ao ponto: “Ficaste sabendo de um arqueiro, que há
alguns dias teria se desgarrado do treinamento de tiro com arco, no monte Ares,
e sido visto na Ágora, na hora do treino?” “Eu no acrredito”, ele falou, após
algum tempo. “Os ashtínomo no fachilita, fash contagem de arqueirro, entrrada e
shaída”. “Então”, falei, depois de um momento tentando esforçadamente
compreender o que ele dissera, “crês que se algum arqueiro cita houvesse sido
visto na Ágora justamente no horário do treinamento, poderia não tratar-se de
um arqueiro cita?”, e ele, mediante uma conjectura tão inusitada para seus
hábitos intelectuais, replicou, parecendo antes ter mastigado bastante a fala:
“Peshoa usando veshte de arqueirrro, talvesh”. “Mas isso seria possível?”,
perguntei, e ele: “No é difíchil. She arqueirrro é dishpenshado de shervicho ou
deixa de sher eshcrravo, pode levar veshte e arma. Veshte e arma de arqueirro
não é de chidade: é de arqueirro”. No momento em que eu ia perguntar se o que
eu vi poderia ter sido então um ex-arqueiro cita, reparei que o guarda retesou-se,
olhando para além de meus ombros. Virei-me e vi que Eudoxo aproximava-se
em uma carruagem. O arqueiro voltou à sua posição inicial e Eudoxo chamou-
me a um canto: “Tivemos notícias de que Arquídamo já encontra-se nos
arredores de Plateia, e deve chegar a Atenas no início desta madrugada, entrando
pelo pórtico do Dipylon.”

– E ele tinha vindo avisar-te ou...

– Convocar-me. Segundo ele, Laques havia solicitado que eu fosse receber


Arquídamo, de modo que ninguém na cidade visse o espartano em companhia de
algum membro da administração. O fato da recepção dar-se tão tarde da noite
ajudaria, e eu deixaria Arquídamo em uma hospedaria na parte norte da cidade.
No dia seguinte eu deveria acompanhá-lo aos locais dos crimes, atualizá-lo sobre
os detalhes de cada uma das mortes e informá-lo sobre as ligações até então
estabelecidas entre as ocorrências. A qualquer pessoa que perguntasse, ele seria
um colega das artes cênicas, tendo vindo conhecer a cidade para uma possível
apresentação. Qualquer necessidade que Arquídamo viesse a ter de comunicar-se
com algum membro da força policial de Atenas deveria ser relatada antes a
Eudoxo, que a avaliaria e, caso efetivamente comprovada, tudo seria
providenciado, dentro das possibilidades. “Está em tuas mãos, Aristófanes”,
Eudoxo arrematou, em tom burocrático e estranhamente coloquial, como se já
tivéssemos participado de inúmeras missões daquela natureza.

– Ou como colegas de dramaturgia que tu e Eudoxo éreis.

– Certo, certo, Filipos – me desapontarias se não tivesses feito a piada. A


mim coube, naquele momento, dormir por umas quatro horas, no máximo, e
então dirigir-me ao Dipylon, atravessando o Cerâmico e passando pela entrada
de vários estabelecimentos em plena atividade àquela hora, de onde os gritos de
esbórnia e embriaguez pareciam soprados pelo vento da madrugada até
atravessarem a muralha e chegarem ao cemitério do outro lado, permeando a
quietude eterna dos túmulos mal caiados com aquela melodia de risos, vinho e
putaria. O pior é que eu ia fazendo essas elucubrações de terceira categoria
completamente sóbrio, Filipos!

– Imagino. E ficaste muito tempo por lá?

– Eu já estava para dormir, encostado à muralha, quando vi aproximar-se,


devagar, uma carroça empoeirada tra

zendo dois sujeitos encapuzados – um de pequena estatura, no comando do


veículo, e outro na parte de trás, de figura altíssima. Já imaginei ver por debaixo
daquelas vestes a montanha de músculos por cuja forja e manutenção Esparta era
famosa. Assim que a carroça parou o sujeito ergueu-se, superando em umas três
vezes a expectativa de altura que me passara sentado. Um monumento, devo
dizer. O baixinho, soltando as rédeas, perguntou-me: “Aristófanes?” Fiz que sim,
e então o grandalhão tomou as rédeas e sentou-se à frente da carroça, enquanto o
baixinho saltava ao chão e caminhava até uma certa distância de mim, dando a
entender que evitaria uma maior aproximação. Esforcei-me para divisar-lhe
melhor a fisionomia e nada do que eu esperaria de um espartano estava ali. “Sou
Arquídamo”, disse o quase anão, enquanto o grandalhão conduzia a carroça de
volta ao portão e dali sumia de volta à estrada. Um pequeno silêncio se fez, até
que o baixinho o quebrasse: “Leobates veio como guarda-costas, mas preferi
conduzir o veículo eu mesmo, e dispersar quaisquer suspeitas”. Tal era a
sagacidade da estratégia militar espartana.

No momento eu não podia calcular que aquela seria uma das frases mais
longas que Arquídamo dirigiria a mim durante o tempo em que aqui esteve,
Filipos.

LIVRO DÉCIMO - UM PEQUENO GRANDE


ABORRECIMENTO

Onde Sócrates e Aristófanes, na prisão, conversam sobre as investigações e


os procedimentos um tanto incomuns de Arquídamo para investigar e tentar
esclarecer o crime, bem como sobre sua exótica forma de comunicar-se. Segue-
se uma caminhada por boa parte de Atenas, onde o espartano aproveita para
conhecer pontos famosos da cidade levando Aristófanes a tiracolo e
demonstrando um conhecimento inesperado sobre minúcias do pensamento
ateniense. Sócrates ouve tudo se divertindo além da conta: mais uma vez, o
filósofo ri do comediógrafo.

– Fico ansioso por ouvir como teu dia com Arquídamo representou uma
experiência tão enriquecedora quanto recheada de conclusões.
– Só se tiver sido para ele, Sócrates. Como já havias me alertado, foram
somente frases espartanamente monossilábicas, um descomunal teatro
investigativo – não sei se ele quis me impressionar, por saber-me comediógrafo
– e nenhuma pressa em chegar a conclusões.

– Ora, meu comediógrafo ranzinza, qualquer convivência, desfrutada com


quem quer que seja, é sempre um aprendizado.

– Bem, não vou negar isso. Aprendi, por exemplo, que existem espartanos
baixinhos.

– E, bem ao contrário do que conhecemos em pessoas de pequena estatura,


nem um pouco impaciente ou explosivo.

– Nem um pouco. Se o homem é a medida de todas as coisas, as coisas que


representam urgência para ele são mínimas.

– Protágoras revisitado! Faltas dizer-me que Arquídamo segue a doutrina de


um dos maiores sofistas que já tivemos por estas bandas.

– Aí é que está. Até nisso ele é xenófobo.

– Estás me dizendo que ele é discípulo de um filósofo... espartano? Ele é


seguidor de Quílon? Quílon de Esparta?

– Como adivinhas tanto assim, Sócrates?


– Meu nobre Aristófanes. Não se trata de um filósofo espartano. Trata-se do
filósofo espartano. O único pensador que a Lacedemônia já ofereceu ao mundo.

– Queres me dizer que nunca houve outro...

– Filósofo em Esparta? Por Zeus, Aristófanes, isso é a mesma coisa de


falares em um ateniense desapegado do dinheiro – à minha exceção, lógico, e
vês que ironicamente estou pagando por isso.

– Seja como for, de tempos em tempos ele murmurava baixinho, mais de si


para si do que comentando comigo: “Quílon diria isso...”, “Quílon diria
aquilo...”

– Então conta-me como foi vosso primeiro dia. Dele, como investigador
disfarçado, e teu, como empregado secreto do governo de Atenas.

– Não sei qual dos dois títulos te diverte mais.

– Aristófanes, caríssimo, para um mortal prestes a experimentar o desafiador


julgamento além-túmulo, apreciar constrangimentos alheios é uma espécie de
prestação de contas consigo mesmo: “Pelo menos por isso eu jamais passei:
posso partir em paz”.

– Sim, saiba que incluirei isso na comédia que escrevo sobre ti.

– Que seja. Mas inclui agora em nossa conversa o relato de tuas aventuras
com o homúnculo estrangeiro.

– Bem, logo que amanheceu passei na hospedaria onde eu o havia deixado


horas antes e fomos ao sopé da Colina das Ninfas, onde contei a Arquídamo que
ali fora encontrado, jogado em um buraco – já devidamente vedado, agora –, o
cadáver de Eurístenes, morto afogado e com uma concha debaixo da língua.
Falei-lhe da mensagem deixada em minha residência, e fiz também um rápido
resumo dos desentendimentos entre Eurístenes e um importante estratego, antes
de sua morte. Reforcei-lhe a estranheza que nos causou o assassinato e,
presumindo que ele faria a pergunta, adiantei-lhe que o tal estratego não se
encontrava em Atenas na ocasião.

– E ele chegou a fazer alguma pergunta?

– Não.

– Nenhuma?

– Absolutamente nenhuma. Depois de meu relato ele andou ao redor, sem


muito rumo, pareceu ficar sentindo o vento e o sol, depois apanhou algumas
amostras de vegetação rasteira local, olhou-as, apalpou-as, cheirou-as
demoradamente, até que em um dado momento embrenhou-se pela colina,
chegando até o cume. Depois de aproximadamente uma hora ele desceu, com ar
absolutamente indiferente, caminhando resoluto, aparentemente em direção a
lugar algum – e na dúvida sobre o que fazer comecei a segui-lo. Após caminhar
por cerca de meio estádio ele subitamente parou e voltou-se para a Colina das
Ninfas, parecendo abarcá-la agora com mais totalidade de visão. Quase cerrou os
olhos e começou a respirar fundo, como se estivesse em contato com alguma
deidade ou alguma esfera de outra natureza, então disse “Precisamos almoçar”.
– Compreendo. E no momento em que contavas sobre o crime, como ele te
pareceu?

– De uma abissal apatia. Aliás, devo dizer-te que ele não me olhava. Ouvia-
me como se estivesse em outro lugar. Talvez em alguma colina de Esparta.

– Ou talvez em Atenas mesmo, relembrando com saudade os tempos não tão


remotos em que sua cidade mandou em nós. Diz-me mais.

– Tentei convencê-lo a irmos – antes do almoço – ao local do segundo crime,


já que a Pnyx é logo ali perto, mas ele desconsiderou a sugestão, alegando que
tudo teria a sua hora. E que aquela era a hora de alimentar-se.

– Ah, ornamentar um desempenho requer tão mais esforço do que


simplesmente desempenhar. Mas e daí?

– Fomos almoçar, por certo, na hospedaria onde ele se instalara.

– E o que comestes?

– Isso interessa?

– Aparentemente não, mas diz ainda assim.


– Pelo que me recordo, comi peixe, grãos de cevada torrados e queijo de
cabra.

– E ele?

– Apenas legumes e frutas frescas. Alegou, de forma curta e seca, não se


alimentar de cadáveres.

– Imaginei. Pela encenação que ele te fez e pelo cardápio ingerido,


provavelmente um adepto do esoterismo. Devoto do ocultismo e dos mistérios
acessíveis apenas a iniciados.

– E os ocultistas são de falar pouco?

– Aristófanes, se existe algo em que os ocultistas são especialistas é ocultar


coisas. Se pouca coisa ele disse, estava em seu natural: junte-se a isso o fato dele
ser espartano e não terás mais que duas ou três frases por dia. E depois disso?

– Terminado o almoço, fomos aos arredores da Pnyx. Ao chegarmos fiz o


mesmo que na Colina das Ninfas. Expliquei as condições em que o corpo de
Aristeu de Mégara havia sido encontrado, com a metade inferior queimada e a
superior trazendo evidências de que a causa da morte também foi afogamento,
além do fato do cadáver estar enfiado em um cilindro de esgoto. Falei também
da delicada natureza das relações dele com Eudoxo. Arquídamo recebeu as
informações com a mesma impassibilidade, e sempre olhando fixamente o
grande tubo de cerâmica, obviamente agora vazio.
– E não subiu à Pnyx, como fizera na Colina das Ninfas?

– Não. Para meu novo espanto, meteu-se no tubo – ó ímpeto que me ocorreu
de empurrar acidentalmente aquele cilindro e rolá-lo ladeira abaixo até que ele se
despedaçasse na Ágora – e lá permaneceu.

– E ele enfiou-se no tubo de esgoto... para fazer exatamente o quê?

– Até onde vi, nada. Deitou-se dentro dele, olhou e tocou com alguma
atenção a superfície interna do tubo, como se algum detalhe esquecido por nós
estivesse lá, só à espera da epifânica descoberta dele. Depois pareceu concentrar-
se e passou a inspirar e expirar profundamente, como se estivesse entrando em
contato com a energia póstuma do morto, ou de algum demônio, ou mesmo da
bosta que por lá tinha passado quando o cilindro de cerâmica ainda estava em
uso nos canais de esgoto da cidade. Olhei para os lados, a fim de certificar-me de
que ninguém via aquilo ou passava por perto. Estou acostumado às gargalhadas e
ao escárnio quando me exibo no palco, mas o verdadeiro vexame ali parecia
estar à minha espreita o tempo todo.

– E quanto tempo ele demorou para sair?

– Uma eternidade. Quando achei que ele houvesse dormido lá dentro ele
saiu, ergueu-se, limpou-se superficialmente batendo nas vestes e da mesma
forma que antes olhou devagar ao redor, talvez para receber algum conselho
inaudível de Quílon. Como o demorado silêncio começava a fazer-se
embaraçoso, tentei dissipar a quietude comentando sobre a mensagem alusiva
àquele crime, que eu recebera no fragmento de cerâmica, ao que Arquídamo,
com um movimento quase imperceptível de desdém, apenas murmurou
“Pseudopoéticos e medíocres devaneios, elaborados para distrair-vos a atenção”.
Tendo dito isso, saiu caminhando e pediu que fôssemos à Ágora.
– E o que ele queria, na Ágora? Comprar lembranças para levar a Esparta,
marcando aquele dia inesquecível passado com seu colega investigador
Aristófanes?

– Quando lá chegamos, ele encostou-se a uma das colunas da Estoa de Zeus


e ficou observando todo o movimento, àquele horário no auge. O vai-e-vem, o
comércio, os feirantes apregoando preços e produtos, os clientes pechinchando,
as discussões, as brigas, os discursos, as gargalhadas. Imagino que Arquídamo
deva tê-la comparado com a de Esparta, que suponho mais organizada. Então ele
perguntou: “Onde compro ervas aromáticas?”

– Por Zeus, estaria pensando ele em fazer uma oferenda?

– Encaminhei-o à barraca e lá ele ficou pouco tempo; apenas escolheu – pelo


que me lembro – folhas de funcho, tomilho, hortelã, essas coisas. Evidentemente
não pechinchou: pagou, acondicionou as ervas em uma bolsa que trazia à cinta e
ficou a olhar, entediado, ao redor, no que entendi como uma linguagem gestual
para que eu o tirasse dali o quanto antes. “Aonde iremos agora?”, perguntei, e
ele: “É fato que o terceiro crime se deu às margens do rio?” Preocupei-me em
alguém tê-lo ouvido (àquela altura muitos em Atenas já sabiam que eu estava
indo e vindo pela cidade ao lado de um homúnculo desconhecido), então
confirmei sussurrando – e enfatizando o ato de sussurrar, para que ele
compreendesse. “Vamos então”, ele tornou, mas sem sair do lugar. Postei-me à
sua frente e fui abrindo caminho pela multidão, até deixarmos a Ágora e
partirmos rumo às margens do Eridanos.

– O fato dele haver te perguntado a respeito do crime não deve ter chamado a
atenção, caro Aristófanes. Mas ele não ter pechinchado, ah, isso sim
provavelmente despertou na Ágora todas as suspeitas imagináveis.

– Chegando ao rio, ele nem esperou que eu o levasse ao local do terceiro


cadáver: tirou a roupa ali mesmo, deixou-a ao chão, pegou as ervas na bolsa e,
sem a menor cerimônia, entrou na água.

– Por Poseidon. Era mesmo uma oferenda ocultista?

– Não. Ele começou a esfregar as ervas pelo corpo, até eu entender – era para
tirar o cheiro de merda com que o cilindro de cerâmica havia lhe presenteado.
Depois disso mergulhou, saiu, enxaguou também as roupas, as estendeu no
gramado da margem para secarem ao sol e, nu como estava, veio em minha
direção perguntando pelo local do cadáver.

– E que figura ele fazia, despido?

– Sócrates, posso dizer-te que a mim parecia menor ainda, se é que me


entendes – anda mais depois de sair do rio. Fosse ele um espartano típico, talvez
eu até apreciasse a estética. Mas ali o que eu buscava desesperadamente era
desviar a vista.

– E o que fizestes, tu e o baixinho pelado?

– Fomos até onde Áulito havia sido encontrado. Passei-lhe os pormenores,


descrevi o corpo inteiramente carbonizado, coberto dos pés à cabeça com
estrume de vaca e ainda dando os últimos suspiros. Era inacreditável, Sócrates: a
descrição da absurdez dos detalhes do crime não arrancava dele qualquer esgar
ou mudança de expressão na fisionomia. Permanecia impassível como nas outras
vezes.
– E ele não quis deitar-se no mesmo local do cadáver?

- Não. Nem se queimar ou cobrir-se de bosta bovina. Ficou somente ali, nu,
às margens do Eridanos, olhando às vezes para cima, às vezes contemplando o
rio.

– E tu?

– Podes imaginar: de manhã, largado ao sopé da Colina das Ninfas, fazendo


absolutamente nada, enquanto esperava o convidado descer da elevação. Depois,
ele enfiado em um tubo de esgoto, meditando, e eu ali ao lado, só observando e
aflito para que não aparecesse ninguém. Finalmente, às margens do Eridanos, ele
despido, à minha frente, e nós em silêncio. Se a intenção era realmente fazer
meus conhecidos acharem que eu passara o dia ensaiando uma comédia com um
colega de teatro, não resta a menor dúvida: todos acreditariam.

– Eu mesmo não vejo nada além de comédia neste relato. Mas me diz: uma
vez visitados os locais dos três crimes, o que fez ele?

– Verificando que as roupas já estavam secas, ele se vestiu e pediu que


fôssemos à Acrópole.

– À Acrópole?

– Sim. Indaguei o motivo e ele, numa das raras vezes em que me olhou
diretamente, replicou: “Por quê, o acesso é difícil?”. Respondi que bastaria
tomarmos a via Panatenaica, no que ele reforçou: “À Acrópole, então”.
– E à Acrópole fostes.

– Por Zeus, Sócrates, o sujeito, além de caminhar desembestadamente, com


os passinhos curtos, jamais se cansava: enquanto eu ofegava e suava ele só
parecia respirar, compassadamente, nos mesmos intervalos. Chegamos enfim à
escadaria da Acrópole, subimos, atravessamos o Propileu e ele dirigiu-se
diretamente ao Partenon. Eu ia entrar junto – mas ele fez sinal que eu
aguardasse, e lá fora fiquei.

– E ele queria o quê? Pedir a Atena para iluminá-lo na elucidação dos casos?
Mais um jogo de cena para impressionar-te?

– Não tenho ideia. Ficou lá dentro mais ou menos o mesmo tempo durante o
qual se isolara na Colina das Ninfas ou se metera no cilindro de cerâmica.
Quando saiu do Partenon não quis ainda deixar a Acrópole. Passeou pelos outros
templos, até que finalmente encaminhou-se ao anfiteatro de Dioniso e sentou-se
na arquibancada.

– Estás me dizendo que o homem se aproveitou do fato de estar a soldo do


governo de Atenas para fazer também um passeio de estrangeiro pela cidade? E
veja que nem estamos nas Olimpíadas! E após isso ele pediu o quê, que o
pegasses pela mão e o levasses a cada um dos portões das muralhas e depois a
uma agradável caminhada até o Pireu?

– Notei algo estranho quando ele se alojou à arquibancada.

– Por Zeus, notaste algo estranho nele, Aristófanes?!? Juras? Já não era sem
tempo! Pelo menos havia alguém no palco, algum ensaio, uma apresentação?
– Nenhuma. A princípio imaginei que ele observasse o proscênio vazio, até
que entendi: ele olhava para além do palco, mais adiante, para a vastidão de
Atenas lá no fundo, vista ali de cima, e com o crepúsculo já chegando.

– Que visão inspiradora. E ...?

– Mais uma vez tentei quebrar a quietude, falando por alto do teatro
ateniense, e ele manteve-se naquela avassaladora indiferença, até que fui
alargando as pausas entre as frases e silenciei-me também. Veio-me então o
impulso de levantar-me, ir embora, reportar a Eudoxo que minha vocação para
guia de espartanos de seis palmos de altura e com cara de porta durara tão
somente um dia – foi quando Arquídamo murmurou “Lisístrata?” “Como?”, eu
disse, e ele repetiu, para complementar: “Encenaste-a aqui?” “Sim”, falei, um
tanto surpreso, “há coisa de dez anos”. Ele, sem mover um músculo, prosseguiu:
“Mulheres atenienses e espartanas unindo-se, aqui na Acrópole, pela causa da
paz”. Confirmei, e passei a comentar sobre as reações à peça e o esperado
escândalo, achando que o entreteria, no que ele apenas comentou, parecendo
falar para si mas de modo que eu ouvisse: “Almeja o improvável, não o
impossível”. E quase que imediatamente arrematou: “É o que Quílon dizia”.
Levantou-se e deixou o anfiteatro, rumo à escadaria, e eu, lógico, o segui.

– Por Hera. Encontraste um conciso crítico teatral em teu colega de


investigação.

– Não me atormentes, Sócrates. As potestades do Olimpo, naquele momento,


me faziam questionar duramente minha escolha em ser um autor cômico. Eu
podia ouvir Dioniso bafejando-me ao ouvido: “Queres com tuas peças fustigar
os corruptos e os tiranos, devolvendo assim os velhos tempos de paz a Atenas?
Pois esclarece estes crimes, que o farás muito mais eficazmente!” Confesso-te
que tive ganas de atirar-me ali de cima.
– E arrisco-me a afirmar, sem necessidade de silogismos complexos, que não
obedeceste ao impulso. Bem, encerrou-se aí então o movimentado dia de
investigações?

– Quem dera. Descemos, voltamos a atravessar a Ágora e nos dirigimos – em


silêncio – à hospedaria. Já estavam servindo a ceia, e ele não me convidou a
entrar. Apenas parou à porta, virou-se e, depois de uma pequena eternidade
jogando o olhar ora para o chão ora para mim – não, não para mim: ele divisava,
acima de meus ombros, as luzes das chamas acesas em azeite salpicadas por toda
Atenas àquela hora –, disse somente: “Em vista do que foi apresentado, já
esclareci o caso, e tenho a solução para repassares a teus superiores.” A pausa
que se seguiu soou-me mais provocativa que enigmática, então adiantei-me em
quebrá-la: “Sim?” E ele completou: “Sim. Amanhã, ao raiar do dia”. E entrou.

– Apenas isso?

– Por um instante fiquei a pensar se “Amanhã ao raiar do dia” já não seria


uma mensagem cifrada para esclarecer os três crimes. No instante seguinte voltei
à realidade, virei-me e saí rumo ao gabinete de Eudoxo, para fazer o relatório, e
pensando nas diversas formas como Arquídamo poderia introduzir aquele “teus
superiores” na própria – e enrugada, como pude reparar – bunda. E o tal
“Amanhã, ao raiar do dia”, também, se lá coubesse.

LIVRO DÉCIMO-PRIMEIRO - O INUSITADO FAZENDO-SE


PREVISÍVEL

Onde, logo após a visita do médico a Aristófanes, em casa, ele rememora ao


autor desses livros que no dia narrado – após deixar Arquídamo na hospedaria,
para seu alívio – ele teve, a caminho do gabinete de Eudoxo, um encontro
inusitado, e recebeu na ocasião um pedido mais inusitado ainda. Como o
inusitado parece ser o fio que costura todos estes livros, há que se registrar que
os progressos das conversas entre Sócrates e Aristófanes, bem como as
descobertas advindas delas, também começam a adquirir contornos
surpreendentes. Previsivelmente surpreendentes.

– Houve um detalhe que obviamente não contei a Sócrates nesse dia. Algo
acontecido entre eu deixar Arquídamo na hospedaria e ir falar com Eudoxo.

– Descansa, meu pai. O médico deixou claro que precisas repousar.

– Por Zeus, Filipos, eu já estou deitado em minha cama, sem praticamente


locomover-me. O que seria descansar mais do que isso? Talvez morrer, quem
sabe: até onde sei, o melhor antídoto contra a morte! Falece agora e jamais terás
de preocupar-te em morrer – eu poderia enunciar, de cátedra, ou de cama. Que
mal há em que eu fale?!?

– É que te esforças também ao conversar, e teu esforço...

– Se apenas me ouvires, e evitares que a todo momento eu seja interrompido


para então replicar ou responder a tuas perguntas, já me farás descansar
enormemente. Ou não sabes que o maior gasto de energia em dizer algo só se dá
no começo, quando partimos da inação do silêncio e colocamos a fala em
movimento – o restante vem sozinho, como uma roda que acionamos fazendo-a
rolar e deixando que o relevo íngreme cuide do resto? Deixai-me falar, pois, que
em pouquíssimo tempo meu organismo nem perceberá que estou a conversar, de
tão pouco fôlego que será exigido quando a fala passar a seguir naturalmente seu
curso.
– Bem, diante de argumentos dignos de um Heráclito, quem sou eu para
questionar?

– Ah, maldita a hora em que deixei de usar uma piada sobre Heráclito em
alguma de minhas peças, já nem me lembro qual.

– A piada?

– Não. A peça. A piada eu lembro: sabe quem mais se aproveita da máxima


de que ninguém entra duas vezes no mesmo rio?

– Não.

– Um sofista que odeia banhos.

– Faz sentido.

– Não gostaste? Minhas piadas já sucumbiram à debilidade que meu corpo


começa a demonstrar?

– Gostei muito, meu pai. Minha preocupação com tua saúde é que se
sobrepõe à graça.

– Bem, onde estava eu?


– Um detalhe que evitaste comentar com Sócrates, na noite do dia em que tu
e Arquídamo investigaram os crimes.

– Aquilo não foi investigação, Filipos. Foi um teatro de terceira linha para
afetar a superioridade espartana! Arquídamo fez-me de tolo e levou do
Arcontado o dinheiro mais fácil da vida dele!

– Então o “Amanhã, ao raiar do dia” não passou de...

– Não me apresses. Bem, assim que deixei Arquídamo na hospedaria


encaminhei-me ao gabinete dos astínomos, para relatar tudo a Eudoxo. Quando
eu passava pela Ágora, notei uma figura no Pórtico de Zeus que parecia
acompanhar-me. Entre as colunas do pórtico eu ia vendo a mesma pessoa, de
cabeça coberta, aparecendo e sumindo, sucessivamente, dando a impressão de
olhar para mim o tempo todo e esforçando-se para caminhar no mesmo ritmo de
meus passos. Quando terminei de passar pelo pórtico foi que a ouvi chamar-me:
“Aristófanes”. Uma voz feminina. Gasta, amarrotada, esgotada, mas
inegavelmente feminina. Parei, recuei um pouco e tentei divisar quem era. Ela
não parecia disposta a abandonar a meia-luz das colunas do pórtico – tudo
indicava que ela não queria ser vista comigo no espaço da Ágora. Diante da
discutível mas inegavelmente lógica dedução de que uma mulher não me faria
mal, adentrei devagar o pórtico e aproximei-me dela. Foi quando ela descobriu a
cabeça.

– A portadora da quarta mensagem em um fragmento de cerâmica?

– Não. Demorei a reconhecê-la porque desta vez trazia os cabelos presos. Era
Xantipa.
– Xantipa... a mulher de Sócrates?

– Sim.

– Por Hera. E queria falar contigo?

– Era o que tudo indicava. Depois de olhar ao redor e adentrar mais o


pórtico, fez um sutilíssimo sinal de cabeça para que eu a seguisse, mas com os
grandes olhos fazendo a ressalva: “Se puderes”. Aproximei-me e, à sombra das
colunas, ela finalmente deu mostras de sentir-se mais protegida, mais aliviada.

– A se fazer valer a fama, seria de se imaginar que ela fosse dar-te uma bela
reprimenda por tuas visitas ao marido dela.

– Longe disso. Ela apenas suspirou – bem fundo e devagar – e disse: “Nem
Sócrates nem tampouco seus discípulos podem saber que estamos falando. Ele
acharia que eu estou a me intrometer, e eles se oporiam à minha ideia de
procurar-te”. Concordei, e ela prosseguiu: “Não sei o que te levou a procurar
Sócrates, justamente na situação em que ele se encontra. Sei apenas que, se eu
fosse dar ouvidos apenas ao que o povo diz, e principalmente os amigos mais
íntimos de meu marido, eu teria como certo que sois publicamente inimigos – da
mesma forma que, se fosses ouvir somente o que dizem a meu respeito,
esperarias encontrar uma megera sem paciência nem compaixão.” Meu silêncio
deve ter confirmado tudo, e ela prosseguiu: “Não imagino que visites meu
marido tão frequentemente com o propósito de alimentar ainda mais vossa rixa.
Seja qual for a razão de ficardes ambos em prolongadas conferências até a
madrugada, calculo que o motivo nada tenha a ver com o que fazem os
discípulos de Sócrates – que tanto lhe encorajaram a fama de pensador quanto
lhe estimularam a lassidão e o esquecimento do sustento da família. O que
Críton, Apolodoro, Lísias e o restante pretendem, ao sugerir que Sócrates fuja, é
tão somente confirmá-lo como figura indesejada em Atenas, seja como um
fugitivo, seja como um pária, seja como um degredado que dificilmente voltará a
ver a mulher e os filhos. E, claro, alimentando-se da fama que lhe será granjeada,
com mais e mais seguidores e admiradores”. Neste ponto eu perguntei: “Mas
acreditas que Sócrates, em algum momento, cederá aos apelos deles?” “Não,
Aristófanes”, ela respondeu, “na verdade não creio, mas de qualquer forma seria
a única alternativa: ou Sócrates morre ou, numa hipótese improvável mas não
impossível, ele desaparece de Atenas e, principalmente, se distancia daqueles
com quem ele tem responsabilidades. Nenhuma destas opções me parece
lúcida.” Devo confessar que me impressionaram a clareza e a propriedade com
que ela expôs os argumentos.

– Mas não disseste o que ela queria contigo, e por que tanto insistiu em...

– Percebes que teimas em interromper-me, em fazer-me tomar fôlego e a


cada momento iniciar mais uma pulsão de fala e raciocínio, para depois
afirmares que necessito repousar?

– Peço-te desculpas. E peço também que continues.

– Como eu te disse anteriormente, Xantipa me parecia mais jovem do que a


idade que as feições lhe conferiam: sobrecarga de preocupação e aborrecimentos,
eu diria, porventura não houvessem mais motivos. E bonita, sim; talvez de de
uma beleza embotada por estes aborrecimentos, pela carga da maternidade e pela
aflição de esposa, mas ainda assim bela de se olhar. E, pelo menos naquela
oportunidade que tivemos de conversar, de uma extrema paciência. Ela
prosseguiu: “Volto a dizer que não me interessa saber o que Sócrates e tu tanto
debatem nessas vossas conferências, mas recorro a ti por ver-te como alguém
incapaz de exercer nele o tipo influência que os discípulos exercem. Creio-te
distante desse tipo de iniciativa, e imagino-te – desafeto dele ou não – com o
distanciamento necessário para fazer o que é correto”. “E o que seria correto?”,
perguntei, e ela, talvez levemente decepcionada por eu ainda não compreender o
que aparentava ser tão óbvio: “Fazer Sócrates enxergar a verdade”. A atribuição
me desconcertou: “E qual é a verdade que eu preciso fazê-lo enxergar?”
Suspirando como quem conclui que homens seriam realmente as últimas
criaturas com quem se contar, ela determinou: “Convencer Sócrates a solicitar
uma nova audiência com o Tribunal dos Heliastas. Utilizar esse método que é
motivo de tanto orgulho para ele: fazer com que a maiêutica traga à luz, nascida
da cabeça de cada um dos juízes, a constatação de que Sócrates, mais do que
pensador, filósofo ou mentor, é alguém inofensivo. Que jamais faria mal a uma
mosca, quanto mais a Atenas”. Não sei quanto tempo se passou até que eu, sob o
olhar obstinado dela, replicasse: “Sabes que é mais fácil ele concordar em fugir
do que em fazer isso”. “Não te peço o fácil”, ela tornou. “Peço-te o necessário.
Os filhos precisam dele. O lar precisa dele. Atenas precisa dele, mas não da
maneira como ele imagina”. Dizendo isso ela cobriu a cabeça, certificou-se de
não haver nenhum conhecido na Ágora naquele momento e preparou-se para ir
embora, falando agora sem olhar-me – tal qual Arquídamo, um pouco antes: “Se
Sócrates tiver que beber aquele veneno assim que a nave sagrada retornar, não
deixes à tua consciência o ônus de não haver feito a coisa certa para impedir essa
injustiça”. E foi-se.

– Meu pai, mesmo incomodado com a menção à cicuta, vejo-me forçado a


interromper e dar-te um pouco de água, tão intensas foram essas memórias e o
relato delas. Vamos, bebe.

– Obrigado. Vês como eu estava: intimado pelo poder público de Atenas a


servir de assistente a um excêntrico espartano; instado pelos amigos de Sócrates
a aproximar-me dele o menos possível; obrigado pela esposa de Sócrates a
convencê-lo a reabrir seu caso perante o tribunal – e finalmente forçado por um
assassino a servir de destinatário a seus incompreensíveis anúncios de
homicídio. Eu tinha medo de chegar em casa e Medusa não só proibir-me a
entrada como mijar em meu pé e fazer-me dar meia volta. Quem era Aristófanes
naquele momento?

– O maior poeta cômico de Atenas.


– Personagem de sua própria farsa. Presa do sarcasmo dos deuses. Um
joguete no tabuleiro das potestades. Foi naquele momento que me decidi,
Filipos: não fazer rigorosamente nada do que esperassem de mim. Não procurar
mais Eudoxo. Ignorar o pedido de Xantipa. Fazer pouco das intimidações de
Críton. Não voltar a ver o baixote espartano. Desconsiderar quaisquer
mensagens que o criminoso eventualmente enviasse. Deixar que todos se
resolvessem entre si, ou melhor, que não resolvessem nada, que tudo se fodesse;
a partir daquele momento eu seria apenas um ateniense com os ombros livres de
um peso que eu jamais reinvindicara. Foi o que pensei: “Chega”.

– E fizeste tudo isso?

– Lógico que não. Lembrei-me imediatamente de meus compromissos com


Sócrates, fosse pela investigação, fosse pela peça que desenvolvíamos, fosse até
pela veleidade de convencê-lo a salvar-se – e sem ceder àquele irritante
emaranhado de contingências eu não conseguiria levar adiante nada disso. Um
inconfesso dever me chamava. Mesmo porque, naquele mesmo dia, horas mais
tarde, quando contei a Sócrates sobre meu dia com Arquídamo, ele disse algo
que eu acabei deixando de narrar-te, Filipos. Penso que a fadiga da moléstia já
toma meu cérebro.

– Sou todo ouvidos, meu pai.

– Depois que eu contei haver deixado Arquídamo na hospedaria e voltado à


cidade para fazer o relatório a Eudoxo – obviamente omitindo o encontro com
Xantipa –, Sócrates tentou abafar uma gargalhada e disse estar ansioso pelo dia
seguinte, para saber o que o espartano descobrira. “Acreditas mesmo que sairá
algo consistente dali?”, perguntei, e Sócrates retrucou, como se realmente
estivesse se divertindo, esquecido de que aguardava a morte numa cela escura e
malcuidada: “Acontece, meu caro Aristófanes, que eu finalmente começo a tecer
algumas elaborações de razoável solidez a respeito tanto do provável motivo das
mortes quanto do teor das mensagens, e mal posso esperar para saber a que
distância elas estarão das conclusões de nosso amigo de desprivilegiada
estatura”.

– Mesmo? Conta, então, o que ele disse.

– Agiu tal qual o espartano. Deixou para o dia seguinte.

– Mas... com que pretexto?

– Precisávamos, segundo ele, dedicar-nos a conversar também sobre a


comédia, para não corrermos o risco de ela não ficar pronta a tempo.

– E acreditaste nisso?

– Filipos, quando até um condenado à pena máxima consegue tripudiar de


tua ansiedade, é sinal de que não é conveniente reagires às circunstâncias. Faz o
que te é determinado, antes que os deuses riam mais ainda às suas custas.

LIVRO DÉCIMO-SEGUNDO - FAZ-SE A LUZ

Onde, no dia seguinte, retomando a conversa com Aristófanes, Sócrates


toma conhecimento da insólita conclusão a que Arquídamo chegou a respeito
dos crimes, e rebate com suas próprias conclusões, mas não sem – valendo-se
da maiêutica – colocá-las na boca de Aristófanes, de modo que o comediógrafo
acaba expressando verbalmente as descobertas a que o filósofo já chegara.
Toma corpo logo depois uma interessante e proveitosa digressão mesclando
temas como homicídio, escolas filosóficas e, fundamentalmente, o vinho assírio.

– Observei que Agátocles anda mal-humorado. O que aconteceu?

– Um dia a mais é sempre um dia a menos, meu caro Aristófanes. Acho que
o pobre Agátocles se afeiçoou a mim, às visitas que recebo, às vindas de
Xantipa: provavelmente apegou-se à rotina. Já é famoso o perigo do carrasco
olhar nos olhos do condenado, imaginas então conviver, conversar, trocar ideias
sobre guerra e filosofia. A ranzinzice dele deve-se mais a isto do que a tuas
visitas tardias, podes ter certeza. Talvez ele até desconte a rabugice em ti por
seres sempre o último a chegar – mas tranquiliza-te; não és a causa.

– Discutes assuntos elevados com ele, então?

– Por que não? Fica sabendo que os monossílabos dele me soam bem mais
úteis que as escassas palavras que teu colega espartano dedica a ti.

– E tu, Sócrates, fica sabendo que até agora estou sustentando esta conversa
no aguardo de que em algum momento tomes a iniciativa de dividir comigo tuas
elaborações a respeito dos crimes, como me adiantaste ontem.

– Calma, meu afobado autor. Tenho outras curiosidades prementes. Não me


disseste até agora, por exemplo, quem é o ator que me interpretará no palco.
Porque presumo que pretendes encenar tal comédia...

– Não só pretendo como irei. Duvidas?


– Não duvido; só não estarei aqui para ver. Nem para gargalhar, imagino.
Minha curiosidade é apenas sobre o ator que desejas para o papel. É sempre um
deleite imaginar-nos falando pela boca de outrem. Aquele ator, que utilizaste
para fazer-me, em As Nuvens...?

– Dicteu? Nunca foi grande coisa como intérprete. Fosse ele um bom ator – e
fosse minha peça realmente a responsável por tua condenação –, nem passarias
pela prisão, Sócrates: serias apedrejado na própria sessão do Tribunal Heliasta.
Pelo que sei, Dicteu tornou-se alfaiate em Corinto, e espero que como artífice
manual seu desempenho seja melhor que nos palcos.

– Ele demitiu-se de teu grupo teatral?

– Eu o demiti.

– Então a cicuta simbólica para quem me interpretou foi o degredo do teatro?


Não tiveste a mínima clemência?

– Não é justa a clemência a quem não se entrega ao ofício, Sócrates, sabes


bem disso. Se queres tornar-te ator, sê ator, não um aventureiro que, por falta de
outra oportunidade, consome os recursos do grupo, a paciência do diretor e o
tempo da plateia em desempenhos equivocados no palco. Atuar não é ocupar-se
enquanto não descobres tua real vocação: é fazeres da vocação a tua ocupação.
Por isso nunca hesitei em expulsar quem não se empenhasse. Se minha peça
pede que sejas um malfeitor, de modo que a plateia comungue da crença na
naturalidade do malfeito e divirta-se com a chacota a ele impingida, então um
malfeitor tens que ser, e não simplesmente um ator se passando por um
malfeitor. Dispenso sem pudor os pretendentes à atuação que não entregam a
alma ao que a comédia exige. A Ágora é farta em vagas para talentos em
sapataria, consertos gerais, tintura de roupas e o que mais o vulgo demandar em
serviços. Não aceito que maculem meu proscênio com a falta de dedicação.

– Por Dioniso, creio no que dizes! Mas calma. O que eu queria saber era algo
bem mais simples: quem fará minha parte?

– Talvez eu faça.

– Tu?

– Por que não?

– Seria curioso. Se todos consideram estabelecida tua inimizade por mim,


como iriam acreditar quando te vissem interpretando a mim nos palcos?

– Sócrates, se eu vivesse na expectativa de aceitação da plateia, iria ser


alfaiate em Corinto. Em nossas conversas, nos detalhes, nas sutilezas que
percebo em ti – ninguém melhor que eu para transmitir tudo isso.

– Aguardarei ouvir os risos lá do Hades. Não dirigidos a teu talento como


intérprete, mas à interpretação em si, espero.

– Perfeito. Mas, antes disso, poderias fazer-me o obséquio de dizer quais


foram tuas conclusões a respeito dos crimes que estamos há dias nos torturando
para tentar esclarecer?
– Por Zeus, Aristófanes, compreendo agora teu crescente açodamento. Mas
estabeleçamos antes o comparativo: diz-me qual foi a sagaz e brilhante
conclusão a que teu colega espartano chegou.

– Entendo, Sócrates. Queres derrotar-me pelo cansaço. Pois bem: venceste.


Faltam-me forças argumentativas.

– Estou a ouvir-te.

– Hoje bem cedo, assim que o sol saiu, fiz minhas abluções e comi alguns
figos com queijo, secretamente esperando chegar à hospedaria e ser notificado
de que Arquídamo não mais lá estava. Eu não conseguia deixar de tecer um
enredo em que ele, lançando mão de mais uma de suas excentricidades,
retornasse a Esparta por conta própria e largasse o caso inconcluso, o que para
mim já estaria de bom tamanho para desmoralizar Eudoxo e Laques. Elaborei
mais ainda: nesse meu enredo, Arquídamo teria passado a noite em claro e,
sozinho e sem precisar mais aparentar o comportamento afetado, totalmente
incapaz de chegar a um termo sobre o que vira durante o dia, poderia entregar-se
ao mais sincero desespero e dar no pé. Com certeza conseguiria uma condução
no meio da madrugada com alguém da hospedaria que estivesse rumando à
Lacedemônia, e neste momento estaríamos nós de volta onde paramos, com três
crimes a investigar, decifrar e solucionar. Abri então a porta dos fundos e, mais
uma vez, meu coração gelou – Medusa, mal se aguentando, mais uma vez estava
de pé, e guardando o lado esquerdo da casa, na direção do jardim.

– O ceramista... com outra mensagem?

– Não.
– O arqueiro cita? Mas nossa eficiente Medusa já não se acostumara a ele?

– Sim, de fato. Mas não era nenhum dos dois. Deixei a porta e avancei um
pouco naquela direção, para avistar Arquídamo, tranquilamente sentado no
banco de meu jardim.

– Por Zeus. Como ele achou tua casa?

– Foi o que perguntei, depois de alguns instantes atônito. Ele não pareceu
mudar de expressão ao registrar minha presença, apenas deitava um olhar
analítico à arquitetura da casa, e assim continuou quando respondeu: “O tino
afiado leva sempre ao ponto de chegada”. Sentei-me ao lado e perguntei:
“Quílon de Esparta?”, e ele: “Alípio, da hospedaria. Apenas perguntei a ele
como chegar aqui”. Antes que eu retrucasse ele voltou a falar: “Os crimes
terminaram”. “Como?”, eu disse, e ele insistiu: “Não ocorrerão mais
assassinatos”.

– O espartano é um vidente? Laques mandou chamar um adivinho para


solucionar os crimes?

– Para proporcionar conforto a teus ouvidos, Sócrates, vou resumir-te uma


conversa que consistiu de pequenas e pausadas frases de arranque da parte dele e
de consequentes perguntas da minha, e que no fim das contas quis dizer o
seguinte (evita rir, para que eu não me desconcentre): três assassinatos formaram
um ciclo fechado. Um primeiro cadáver inteiramente úmido e afogado; um
segundo, metade queimado metade afogado, e um terceiro inteiramente
queimado indicam uma gradação com começo, meio e fim. Pois bem, depois de
consultar seus oráculos interiores e beber da fonte dos iniciados, Arquídamo
concluiu que a série de assassinatos foi um aviso, uma admoestação a Atenas.
– Ah, pois sim? E o que dizia este... aviso?

– Aos poucos Atenas deixará de beber a água da sabedoria, para acabar


ardendo em seu próprio fogo. O fogo da vaidade.

– Aristófanes, Aristófanes. Vens dizer-me que o espartano viajou mil e


duzentos estádios, caminhou durante um dia inteiro por toda Atenas e esperou o
dia seguinte para sentenciar que a cidade um dia vai acabar-se?

– Pelo fogo.

– Sim? E ao menos o nome do assassino ele revelou?

– Disse que identificar o assassino era uma questão menor.

– Menor quanto? Do tamanho dele?

– Segundo Arquídamo, o que moveu o criminoso – seja quem for – foi a


necessidade de alertar Atenas sobre os nobres valores que ela deixa morrer e os
valores daninhos e ela faz vicejar. Basta encarcerar os piromaníacos já
conhecidos que entre eles há de estar o culpado.

– Fascinante. Um silogismo inacreditável. Não espanta que o único filósofo


de Esparta tenha sido Quílon, e ainda assim, mais de cem anos depois, ainda não
tenha aparecido – e duvido que apareça – outro.
– Bem, depois Arquídamo ergueu-se e, enquanto encaminhava-se até o
portão, comentou, sem olhar-me, como quem placidamente descreve a paisagem
que vê à frente: “Confrontei Sócrates uma vez, na batalha de Potideia”. Olhei-o
com certo interesse, o que ele nem percebeu, e prosseguiu, insípido: “Errou por
duas vezes o golpe de espada e fez troça, atribuindo minha sobrevivência à baixa
estatura”. Como eu nada dissesse, ele limitou-se a concluir: “Retruquei
vaticinando que, se ele tinha mais altura do que eu, teria a vida mais curta. Não
errei”. No momento em que eu ia perguntar se houvera sido essa a única
oportunidade de confronto entre vós, ele mandou-me comunicar a Eudoxo que
os crimes haviam sido solucionados e que fosse providenciado imediatamente o
transporte para seu retorno a Esparta. E voltou à hospedaria.

– Ah, sim, lembro-me muito vagamente do episódio. Então era ele. Que,
além de filósofo, investigador e ocultista, não deixou de aventurar-se também na
profecia. Muito interessante. Mas diz-me, Aristófanes: qual a reação de Eudoxo,
mediante esta brilhantíssima leva de deduções?

– Num primeiro momento não demonstrou reação alguma. Pediu que eu


aguardasse, dirigiu-se ao gabinete de Laques e, algum tempo depois, voltou.
Parecia outra pessoa. Radiante, vibrante, motivada. E, obviamente, encheu um
cálice de vinho para comemorar.

– Sim, não sabia o que pensar até constatar o quanto a descoberta de


Arquídamo foi um lenitivo para seu chefe. A partir daí passou a compartilhá-la –
tal é a personalidade de nossos gestores. O Arcontado inteiro deve ter respirado
aliviado, presumo. E o que Eudoxo fez depois?

– Ordenou a um batalhão de arqueiros citas que pusessem a ferros todos os


arruaceiros conhecidos por atividades envolvendo fogo ou incêndio, mas sem
levantar suspeitas.
– Aristófanes, meu caro, tens aí o melhor enredo de comédia que jamais
elaboraste. Por que perdes teu tempo comigo? Imagina: crianças brincando com
um candeeiro vazio, recebendo voz de prisão dos guardas de Eudoxo? Ou um
idoso acendendo o fogo para o jantar, sendo capturado e jogado a uma cela a
partir de sua irrefutuável ligação com os três assassinatos? E o melhor de tudo –
todas estas cívicas providências tomadas sem levantar suspeitas?

– Bem, a esta altura imagino que Arquídamo esteja a caminho de Esparta,


pronto para cantar vitória aos seus.

– E a paz volta a reinar em Atenas novamente! Não que seus cidadãos


tenham em algum momento sido informados de que ela estivesse ameaçada.

– Bem, Sócrates. Fiz minha parte.

– Sim, ciceroneaste teu pequeno grande investigador com galhardia. Imagino


o orgulho que não deve te acometer neste momento solene para Atenas.

– Não fujas do combinado. Digo que fiz minha parte em nosso trato:
adiantei-te as conclusões de Arquídamo, em todos os detalhes. Agora anseio por
ouvir as tuas.

– Aristófanes, Aristófanes, seria mais fácil eu fugir desta cela – e contar com
Hefesto para romper a marretadas o grilhão que me prende o pé – do que fugir
de nosso trato. Eu apenas queria ter certeza de que todas as possíveis
interpretações estariam esgotadas, tanto de tua parte quanto de teu pequeno
amigo.
– Não tenho interpretação alguma. Estou no aguardo das tuas.

– Perfeito. Pois posso dizer-te que não apenas começo finalmente a enxergar
um padrão nos crimes como vislumbro um sentido nas mensagens em cerâmica
que nosso amigo assassino te entregou.

– Não deixo de ouvir-te.

– Mas antes será preciso que nos detenhamos mais um pouco nas conclusões
de Arquídamo.

– Como assim? Vês alguma propriedade no que ele...

– Se não propriedade, ao menos relevância. Disseste que ele alegou que as


queimaduras infligidas às vítimas, por irem aumentando de intensidade,
denotavam uma intensificação do método, confere?

– Até onde compreendi, sim.

– Ele alegou também que as partes onde os cadáveres se mostravam úmidos


– afogados ou não – decresciam conforme se descobriam os corpos, correto?

– Não poderia dizer outra coisa.


– Ou seja, as forças esotéricas, os eflúvios do ocultismo ou o que quer que
seja o inspirou a concluir que, quando o fogo aumenta, a água decresce.

– Exato.

– E ele utilizou uma antonomásia ao ver nos cadáveres a encarnação de


Atenas, que aos poucos deixa de beber a água da sabedoria para queimar-se em
sua própria vaidade?

– Por certo.

– Ora, temos então que, na visão do espartano, Atenas deixa de ser sábia na
medida em que se permite consumir pela soberba, e isso determinará nosso fim
como cidade.

– Eu não diria melhor.

– Devo concluir, pois, que ele converteu, pelo poder da palavra, uma série de
homicídios em um aviso aos cidadãos atenienses, garantindo também que, uma
vez concluído o enunciado do aviso, outros crimes não deverão ocorrer.

– Foi o que ele disse.

– Entendo, pois, que o Arcontado Ateniense, na pessoa do magistrado


Laques, gostou do que ouviu?
– Se meus sentidos não houverem me enganado.

– Bem, meu caro Aristófanes. Diante disso, se faz imperiosa uma pergunta, a
qual dirijo a ti. Se Arquídamo deu asas à imaginação, elaborando uma
interpretação um tanto tortuosa e tendente ao misticismo, ou soprada pelo
espectro de Quílon, e ainda falando exatamente o que o Arcontado queria ouvir –
ou seja, que a cidade estaria de uma vez por todas livre de um assassino que
tortuosamente dava visibilidade às comprometedoras relações entre membros da
classe política e as vítimas –, temos que nosso pequerrucho espartano agiu como
o quê?

– Como... um sofista.

– Bravo! Um perfeito sofista. Ou seja, não só Esparta possui seus filósofos –


ou seu filósofo, se considerarmos Quílon realmente o único exemplar da espécie
–, como também o sofisma tem campo fértil por lá.

– O que faz de Esparta, digamos, um espelho distorcido de Atenas?

– Essas referências cênicas tu podes guardar para tuas comédias, meu caro. O
que quero que guardes agora é esta informação. Arquídamo portou-se como um
sofista. De acordo?

– Se assim o dizes.

– Voltemos agora ao nosso homicida ceramista.


– Com todo o prazer.

– A primeira vítima foi encontrada em um buraco, afogada, com uma concha


na boca, mas ao mesmo tempo longe de qualquer fonte de água onde o crime
pudesse ter se dado.

– Sim. Eurístenes.

– O pedaço de cerâmica a ti enviado dizia – corrija-me se incorro em engano


– nem tanto ao céu, nem tanto à água.

– Incorreste em engano. Na verdade em esquecimento. A mensagem dizia É


Sócrates quem confirmará: nem tanto ao céu, nem tanto à água.

– A menção à minha pessoa não vem ao caso, ao menos por enquanto. Mas o
teor da mensagem era este, correto?

– Sem dúvida.

– Pois bem. Tirando o cadáver, temos um trinômio de componentes: buraco,


céu, água.

– É o que parece.
– O segundo cadáver – Aristeu – foi descoberto enfiado em um largo cilindro
de esgoto, afogado e queimado da cintura para baixo. O que dizia mesmo a
mensagem gravada na cerâmica?

– A estupidez é tão estúpida que desconhece até limites.

– Certo. Excetuando-se o cadáver desta equação, temos mais três


componentes: um cilindro, água e fogo.

– Não me atreveria a discordar.

– Por fim, o terceiro assassinato.

– Áulito.

– Inteiramente queimado, sem indícios de afogamento. E coberto de esterco


de vaca. Deixa, deixa que eu tenho de memória também a inscrição que veio na
cerâmica: O único hábito que não muda é o de querer mudar o tempo todo.

– Exatamente.

– Desconsiderando o cadáver, que componentes temos?

– Fogo, esterco e mudança.


– Bravo novamente, meu ilustre comediógrafo. E a que isso te leva?

– A absolutamente lugar algum. Continuo aqui, nesta cela, frente a frente


contigo, sem ter ideia do que pensar. E aguardando tuas considerações.

– Aristófanes, caríssimo. Bastam apenas mais um ou dois encadeamentos de


raciocínio para chegarmos lá. Se concordarmos que os três crimes estão
interligados por autor, ocupação das vítimas e destinatário das mensagens,
podemos imaginar que os significados deles se complementam, concordas?

– Não poderia supor diferente.

– Eles só fazem sentido se analisados em conjunto – estou certo?

– Sim. Mas até aí Arquídamo também chegou.

– Mas Arquídamo errou em avaliar a motivação de cada assassinato,


Aristófanes! Ele desconsiderou as mensagens cifradas que recebeste; ele não
levou em conta as formas como cada corpo foi encontrado; ele desprezou a vida
pregressa das vítimas, ele partiu para o simbolismo fácil, descartando os
elementos complicadores, para fazer com que os crimes coincidissem com o que
ele resolveu concluir, e não o contrário!

– Continuo todo ouvidos.

– Pensemos nós: se os assassinatos foram cometidos de forma encadeada,


todos vitimando especificamente filósofos sofistas, e todos tendo como
indicativos mensagens cifradas dirigidas ao poeta Aristófanes – e, por presumida
extensão, ao filósofo Sócrates – temos que os três assassinatos têm por trás
alguma motivação alusiva ao ato do pensamento. Não apenas o pensamento
lógico, axiomático, mas o pensamento enquanto modo de tentarmos entender o
que nos cerca. Concordas?

– Aguardo desenvolveres mais.

– Lembras-te de quem foi o primeiro pensador de que temos conhecimento


na Hélade?

– Por certo. Tales, de Mileto.

– Certo. E o que Tales ensinava, meu arguto Aristófanes?

– Bem, até onde me é alcançável saber – e isso vai de memória, Sócrates –,


Tales foi dos primeiros a fazer pouco da interpretação mitológica da natureza, e
embrenhou-se na mecânica celeste, na previsão de eclipses, em cálculos
astronômicos.

– Muito bem. E o que Tales considerava o elemento primordial, o princípio


uno, origem de todos os elementos que compõem o mundo que nos circunda,
meu esclarecido Aristófanes?

– A água?
– Bravo! Agora voltemos ao que disseste há um instante. Tales foi famoso
por dedicar-se também às coisas do céu. Passemos agora ao salutar campo da
maledicência: conheces a anedota de que nosso Tales, distraído que era, andando
uma vez olhando para cima e inteiramente perdido em elucubrações sobre, quem
sabe, a distância de uma constelação para outra, ou outra contingência celeste, de
repente caiu em um poço? E que toda Mileto se riu do caso, por muito tempo?

– Sim, já pensei em uma comédia a partir disso.

– A mensagem nem tanto ao céu nem tanto à água te diz alguma coisa? E o
modo como morreu Eurístenes, na água?

– Mas... e a concha na boca?

– Difícil dizer, Aristófanes. A mim quis parecer que a concha foi o indício de
que a morte se deu em um rio, ou em um lago, e não – por exemplo – em uma
tina, uma cisterna ou outro ajuntamento artificial de água. Parece-me que o
assassino tentou ser purista: o rio, elemento natural, assim como o mar, a origem
de tudo, conforme Tales ensinava.

– Sócrates, eu...

– Ainda é cedo para concordares ou discordares, Aristófanes. Vamos ao


segundo crime, que demorei bem mais para interpretar. Um corpo em um
cilindro, queimado pela metade, afogado pela metade.

– Tales também...?
– Por Zeus, não! Nosso assassino foi em frente! Seguiu a ordem cronológica!
Desta vez aludiu a um discípulo de Tales!

– Qual?

– Diz tu. Qual foi o principal seguidor de Tales de Mileto?

– Anaximandro, penso eu.

– Perfeito, Aristófanes!

– Aguarda um instante, Sócrates. Deixa eu lembrar o que sei de


Anaximandro.

– Prossegue, meu astuto comediógrafo.

– É pouca coisa. O ilimitado, incriado e infinito, como princípio de tudo...

– Pois nesta também nosso divertido assassino terá sido jocoso com o
filósofo. Ajudo-te: conceito de ilimitado temporariamente à parte, Anaximandro
acreditava que as coisas que nos cercam se constituem do quê?

– Ah, sim! As coisas nascem do contraste dos opostos: frio e quente, claro e
escuro, fogo e água...
– Afogado e queimado?

– Sim, sim, afogado e queimado, como o segundo cadáver!

– Perfeito, meu sagaz autor! Mas eis que surge um tubo de esgoto para
atrapalhar teu raciocínio!

– O tubo de esgoto. Um tubo. Realmente... não sei.

– Pergunto-te então. Na concepção de Anaximandro, este mundo em que


vivemos, de onde divisamos o sol, a lua, as estrelas, teria o formato de quê?

– De um cilindro! Cercado por rodas, que...

– Detenhamo-nos no formato. Cilíndrico como, por exemplo, o quê?

– Cilíndrico como um tubo de cerâmica.

– Tem mais. A estupidez é tão estúpida que desconhece até limites. Só não
sei se com isso nosso assassino homenageava a vítima ou zombava
antecipadamente de nossa demora em decifrar os crimes.

– Por Zeus, Sócrates. E Arquídamo insistindo em que as mensagens eram


devaneio críptico, para distrair-me a atenção!
– Sofistas não têm ideias, Aristófanes. Sofistas adequam ideias preexistentes
às suas conveniências.

– Mas se isso tudo fizer mesmo sentido... E o terceiro crime?

– Ah, deixarei a teu tirocínio a elucidação dele.

– Mas... já sabes?

– Sei que nada sei. E que tu poderás descobri-lo.

– E não podes me dar uma pista?

– Ah, meu bom autor. Meu comediógrafo. Meu poeta. Quererás que eu tire
de ti a honra de chegar, por mérito próprio, à conclusão sobre o mistério que
envolveu a morte de Áulito?

– Eu faço rir, Sócrates. Eu não faço filosofia.

– Mas o que fazemos aqui não é filosofia!

– Não?
– Estamos dando ao raciocínio lógico uma aplicação prática para tentar obter
a garantia de a paz à cidade! Ou achas que, se nosso assassino resolver não parar
– ao contrário do que pensa teu pequeno amigo espartano –, os crimes não
acabarão por vir a conhecimento público, fazendo a inquietação e o pavor se
instalarem de vez entre o povo ateniense?

– Bem. De qualquer modo eu precisaria...

– Claro. Precisarás de meu método.

– Não rias, Sócrates. Isso não é uma disputa de ostentação intelectual. Eu


apenas...

– Apreciarias se eu utilizasse a maiêutica contigo, bem sei.

– Por Hades, Sócrates... é preciso então que eu implore?

– Não. Apenas me responde. Quem veio após Anaximandro?

– Como assim, Sócrates?

– Qual filósofo proeminente veio após Anaximandro?

– Vários.
– Então reduzamos o âmbito da pergunta. Qual filósofo veio após
Anaximandro, e que relacionava o princípio das coisas com o fogo?

– Talvez... Pode ser que eu me engane. São muitos. Quero dizer, não muitos.
Heráclito?

– Mais uma vez, bravo, meu caro comediógrafo, poeta e investigador! Muito
bem! Estás chegando lá.

– Mas... e o esterco de vaca que cobria Áulito? O fato dele haver morrido
carbonizado o insere no requisito, mas e a merda...

– Volto a dizer-te, meu bom dramaturgo: nosso assassino é não menos que
um humorista. Ele escolheu um dos episódios mais embaraçosos da vida de
Heráclito para traçar o paralelo.

– Não creio que eu conheça.

– O pobre Heráclito sofria de hidropsia. Aliás, não apenas sofria da doença,


mas também padecia de vergonha por ela. Tentava esconder os horríveis
inchaços nas pernas com longas e incômodas túnicas, que se arrastavam pelo
chão. E agora me responde: qual o método mais prosaico, antigo e usual para o
tratamento da hidropsia, e que foi mais de uma vez experimentado – a
contragosto – por Heráclito?

– Sim. Meter-se em esterco de vaca.


– Chegaste aonde eu queria, caríssimo autor. Agora me dizes: qual era
mesmo a mensagem em cerâmica alusiva a ele?

– O único hábito que não muda é o de querer mudar o tempo todo.

– Concordas que temos aí a versão críptica para o “tudo flui, tudo se move”,
de nosso estimado hidrópico?

– A esta altura seria um tolo se discordasse.

– E eu seria um tolo se não dissesse que acabaste de chegar à explicação para


as alegorias utilizadas por nosso assassino.

– Não tenho o que dizer, Sócrates.

– Não digas nada.

– Nem o que pensar.

– Nada penses.

– Mas outras questões se impõem, Sócrates. E as mensagens? E o arqueiro


cita – que aparentemente não era um arqueiro cita – que me deixou a terceira
mensagem, no chão da via Panatenaica? Foi ele quem deixou as duas anteriores?
Se for ele o criminoso, como nós...

– Vai: já é tarde; Agátocles acaba de retornar com o vinho fenício que


conseguiu para mim, com o qual conto para conseguir dormir – e que, presumo,
não conterá ainda o veneno, uma vez que Críton informou-me, de fonte segura,
que o barco ainda leva alguns dias para atracar no Pireu. Não te convido a beber
porque permaneceríamos ambos aqui, em acalorada conversa, até o amanhecer, e
não seria de bom tom que encontrasses meus amigos logo ao primeiro raiar do
sol. Vai, descansa, e deixemos as demais questões para sua devida ocasião. Ah,
sim: não quero inquietar-te, mas tenho a leve impressão de que nosso espirituoso
assassino não pretende parar com seus crimes, principalmente levando-se em
conta a quantidade de filósofos que abrilhantaram nossa cultura até os dias de
hoje. Faltam vários.

– Achas então que...

– Acho que precisas dormir também. Boa noite, meu cômico investigador.
Ou investigador cômico: como preferires.
LIVRO DÉCIMO-TERCEIRO - TRÊS PARTES TÃO IGUAIS

Onde Aristófanes, novamente no jardim de casa, narra ao autor destes livros


os escabrosos e, digamos, matemáticos detalhes do quarto assassinato, além da
peculiar escolha pela vítima. É narrada também a visita inesperada que
Aristófanes recebeu na noite daquele mesmo dia, portando uma inquietante
solicitação e uma inacreditável oferta, que nosso comediógrafo aparentemente
não teve muitas dificuldades em aceitar – mas tudo bem: era pela liberdade de
Sócrates e, no fim das contas, pela consolidação da verdadeira justiça em
Atenas.
– Por Zeus... Os assassinatos prosseguiram? Meu pai, como isso tudo
conseguiu ser mantido em segredo? Como os...

– Filipos, Filipos, não sei o que se enfraquece mais a cada dia. Eu, em minha
debilidade física, ou tua paciência de ouvinte. Duvidas que eu consiga viver até
terminar de contar-te toda a história, e já queres que eu pule para o final?

– Interesso-me mais por tua saúde do que pela história.

– E eu interesso-me mais em narrá-la antes de morrer. Vês que estou bem,


não dependo ainda de ninguém para dar-me de comer ou limpar-me a bunda.

– Sim, mas nota-se que perdeste peso, e tua força diminuiu.

– Claro, o único ganho de força e peso que minha doença vai proporcionar é
à bolsa do médico. Aliás, temo que os gastos com a saúde façam mais mal à
saúde do que o sedentarismo. Mas estávamos onde, mesmo? Ah, sim, no
assassinato de Arquídamo.

– Arquídamo?!? Ele foi... assassinado?

– Por Hades – vês, Filipos, vês? Vês como me apressas e me fazes perder-me
na sequência da história? Acabo de adiantar-te um ocorrido que ainda poderia
esperar, se paciência tivesses em ouvir! Ou minha debilidade mental é que já está
mais manifesta do que eu esperava, e eu...
– Peço-te desculpas, meu pai. Mas é que perguntaste...

– Então a partir de agora mais nada te pergunto. Só conto.

– Sim, mas com cuidado no esforço com a fala.

– Esforça-te tu para ouvir.

– Sou todo ouvidos. Prometo.

– Pois bem. No dia seguinte à minha conversa com Sócrates, tentei manter-
me ao máximo distante de quaisquer relações com os magistrados, com a polícia,
com o poder. Diante da bizarra solução encontrada por Arquídamo – e aclamada
por Laques –, o arqueiro cita que cuidava de minha casa foi retirado, o me fez
cogitar de buscar tua mãe em Elêusis, mesmo com a admoestação de Sócrates de
que os crimes provavelmente não cessariam. Lembro-me naquela manhã de
haver sentado e passado a limpo todas as anotações que eu até então havia feito
sobre a vida de Sócrates, e finalmente dado início à escrita da comédia que, de
alguma forma – e para minha surpresa – tomava corpo. Fiquei nisso por horas, e
nem notei o tempo passar, até que bateram à porta. Foi nesse momento que
percebi que estava com fome e ainda não almoçara. Abri, e para minha surpresa,
enfado e cansaço, lá estava Eudoxo.

– Mesmo? Mal resolveste manter distância e ele...

– E ele aparecia. Num primeiro momento – já que eu imaginava serenados os


ânimos a respeito dos crimes –, veio-me à memória a maldita peça que ele
houvera cometido e deixara a meus cuidados. E que, óbvio, eu não tinha a menor
ideia de onde deixara, se é que já não jogara fora. Tentei pensar rápido e só
consegui dizer “Estou lendo tua obra. Até aqui acho que acertaste a mão, mas
prefiro chegar ao fim para ter uma ideia mais... acabada.”

– Ele acreditou?

– Não faço ideia. Mirou-me momentaneamente com um olhar opaco, como


se aquele assunto acendesse algum interesse fugaz nele, mas logo ficou claro que
ele não tinha ido lá tratar disso. “Que bom, que bom”, foi o que ele disse, e
completou: “Te importas se eu entrar?” Concordei e, assim que ele chegou à
sala, adiantei-me para recolher meus manuscritos, que ele deve ter imaginado
tratarem-se da peça dele. “Espero que não repares nas soluções fáceis ao final da
primeira metade”, e repliquei: “Não, eu até as achei... difíceis”, implorando para
que Baco me fizesse calar a boca. Finalmente guardei tudo, receando que ele
lesse algum trecho por cima de meus ombros, e finalmente ficamos frente a
frente. Ele respirou fundo, mudou o semblante e falou: “Não trago notícias
boas”. A princípio imaginei dizer “O quê, queres dizer que irás trazer-me outra
peça tua?”, mas nesse momento felizmente Baco fechou-me a boca.

– E ele?

– Sentou-se e continuou: “Nem de longe imaginas o que pode ter ocorrido”.


Após um curto silêncio perguntei: “Outro assassinato?”, e ele: “E não do modo
como deves estar pensando”.

– Criticas minha impaciência mas imagino a que deve ter te acometido,


diante desta conversa caminhando a passos de cágado.
– Ele parecia querer tomar fôlego para então contar tudo de uma vez. Depois
de, ó surpresa, solicitar confidencialidade absoluta a respeito, revelou que veio
pessoalmente para evitar que o assunto saísse da órbita oficial: logo de manhã
um arqueiro cita viera ao gabinete dos astínomos avisar que alguns viajantes de
chegada de Mégara encontraram uma carroça abandonada à beira da estrada,
com sangue no banco do cocheiro. Comentaram com os arqueiros que
guardavam o pórtico Dypilon, os quais trouxeram a notícia. Pela descrição, era o
veículo que haviam providenciado para Arquídamo. Eudoxo, reunindo um
destacamento de arqueiros, foi até o local. Não precisaram procurar muito para
descobrir, atrás de um arbusto, a umas dez braças da estrada, o cadáver de
Arquídamo.

– Estou entre assombrado e ansioso pela descrição da morte dele.

– Em três partes.

– Como? Pretendes descrever em três tomos as condições do cadáver de


Arquídamo? Foi tão complexo assim?

– Evoluis, meu belo Filipos. Tuas piadas melhoram a cada vez.

– Não compreendi.

– O que fizeste não foi uma piada?

– De modo algum, meu pai. Isso significa que o corpo de Arquídamo...


– ...foi separado em três partes, Filipos.

– O que estás me dizendo?

– Já te disse duas vezes. Com esta três. Três partes.

– Ainda estou tentando acreditar.

– Foi o que Eudoxo também disse. O assassino, após matar Arquídamo, fez
no cadáver uma secção em forma de V, à altura do tronco, com as linhas partindo
cada uma de um ombro e ambas se encontrando abaixo da genitália. Assim o
corpo do pequeno espartano achava-se dividido em três: um pedaço central com
cabeça, tronco, abdômen e pélvis, e os dois restantes do lado direito e esquerdo,
incluindo cada um o ombro, o braço, o flanco a perna. Ah, e sangue, muito
sangue. Aparentemente, pela forma como foram feitos os cortes, o assassino
utilizara uma kopis bem afiada, de uso do exército ateniense.

– Por Zeus, meu pai. Que absurdo.

– Nem tanto. As partes tinham rigorosamente o mesmo tamanho.


Principalmente se levarmos em conta que as pernas curtas da vítima a deixavam
mais simétrica ainda. Nosso espirituoso homicida pensara em tudo.

– Bem, se gracejas desta forma, é porque não viste o corpo.

– E por que eu iria vê-lo? Bastou-me o relato de Eudoxo. A única coisa que
me ocorreu foi que conseguiram deixar o espartano menor ainda.

– Bem, informaram-te se os pedaços – as partes – de Arquídamo estavam...


espalhadas? Distantes umas das outras?

– Aparentemente não. Cortadas, mas não separadas, como se os cortes


houvessem sido infligidos não para causar danos ao corpo, mas para deixá-lo
meticulosamente dividido em três.

– E por que três?

– Chegaremos lá. No momento importa também relatar o que Eudoxo


encontrou na boca do cadáver.

– Mais conchas?

– Não. Favas. Dezenas delas.

– Favas? Por que favas?

– Também saberás a seu tempo.

– Não pensei que o assassino fosse tão longe.


– Nem foi. O cadáver estava a menos de cinco estádios de Atenas.

– Aprecio a anedota mas neste momento as dúvidas substituem meu


estarrecimento. O que um corpo seccionado em três e com a boca cheia de favas
– jogado atrás de um arbusto a certa distância da estrada – significava?

– Foi o que me perguntei, na hora. Mas a pergunta realmente significativa


veio de Eudoxo, e que inclusive justificava a visita dele: “Recebeste algum
recado em cerâmica?”. À minha negativa, ele coçou a cabeça e suspirou mais
profundamente do que eu já houvera visto.

– E não recebeste mesmo?

– Não. Senão teria te dito.

– E quais as providências que o poder ateniense tomou, diante do


acontecido?

– Descobri depois, por Eudoxo, bêbado – ele, não eu – que, para evitar
represálias de Esparta, Laques acabou enviando o envio de uma vultosa soma de
dinheiro aos éforos, para compensar a perda de Arquídamo, e foi alegado um
assalto para justificar a morte. Mas foi reforçado e reiterado que ele teria de fato
solucionado o enigma dos assassinatos. Para evitar mais suspeitas, terminaram
de despedaçar o corpo e avisaram que ele havia sido devorado por cães.

– Por Zeus. Por Hades. Que ironia. Convocam um especialista em combate


estratégico à corrupção para investigar sigilosamente uma série de crimes, cujo
autor acaba vitimando-o também, e, para que tudo prossiga em sigilo,
corrompem-se os chefes do especialista em combate à corrupção.

– Não é ironia, Filipos. É História.

– Esparta acreditou em tudo?

– Até hoje – tantos anos depois – não ouvi falar em represálias ou retaliações
resultantes deste ocorrido em especial.

– Bem. E tu, o que fizeste?

– Assim que Eudoxo partiu tentei abstrair-me, mas algo insistia em tolher
minha serenidade. A lembrança de Arquídamo, seus rituais ocultistas ou o que
quer que fossem, sua economia de palavras e principalmente sua
imprevisibilidade. Seria ele tão imprevisível a ponto de não prever ele próprio o
inesperado? Teria sofrido na morte, ou um golpe inicial certeiro cuidara de
poupar o martírio? Teria ele família? Pela idade – cinquenta e poucos, eu
calculava – ele ainda não estava apto, pelos padrões espartanos, a dedicar-se
exclusivamente ao convívio familiar, mas já poderia ter tido esposa e filhos.
Subitamente dei-me conta de que eu estava perdendo meu tempo com
elucubrações a respeito de quem nada significara para mim, e voltei ao texto da
comédia. O trabalho rendeu, e quando vi já era noite.

– Não vias a hora de contar tudo a Sócrates, imagino.

– Quando finalmente registrei que já era chegada a minha hora de visita à


prisão, preparei-me para sair – em dúvida se levaria ou não os papiros com os
rabiscos e esboços da peça, para mostrar a Sócrates –, quando bateram à porta.

– Eudoxo, novamente?

– Se me deixares contar a história e abrires mão de tentar adivinhar o tempo


todo, imagino que possas fruir melhor dela.

– Prossegue, meu pai.

– Guardei os papiros e abri a porta. Filipos, não és capaz de imaginar quem


era.

– Bem, me censuraste neste exato momento por tentar adivinhar e... É


impressão minha ou coraste ligeiramente agora?

– Xantipa.

– Xantipa?

– Sim. Novamente. E sem mostrar-se tão esquiva como quando me abordara


na estoa de Zeus. Aliás, desta vez usava um véu transparente caído até metade
dos cabelos avermelhados, que se achavam bem tratados. O rosto, sem
abandonar os leves esboços de tensão e ainda tomado por uma remota sombra de
contrariedade, estava maquiado. Prosseguia cansada, e mostrava-se mais bonita.
– Vejo que guardaste bastante bem os detalhes fisionômicos dela.

– E continuarei a lembrá-los, se não me interromperes. Bem, após alguns


instantes convidei-a a entrar. Ela ainda hesitou, talvez dando a entender que o
que teria a falar comigo seria breve, mas então entrou. Ofereci assento, ofereci
algo de comer ou beber, a tudo ela recusou. Apenas perguntou “Falaste com
Sócrates?” Fiquei tentando pensar o que dizer e, lançando mão da mesma
artimanha utilizada com Eudoxo, tentei: “Sim, mas acredito que eu ainda não
tenha conseguido formular por completo, com a devida convicção, o argumento
para que ele finalmente se decida a pedir a revisão da pena”. Nesse momento ela
resolveu sentar-se e, para meu absoluto embaraço, fitou-me demoradamente. Aí
falou “Não mintas para mim. Posso não saber do que tratas com Sócrates nas
noites em que vais lá, mas sei muito bem do que não tratas. Este assunto, por
exemplo”. Tentei entabular uma insistência que saiu mais gaguejada que
insistente – não lembro o que falei, juro –, e então ela cortou-me: “Por Hera, por
que os homens preferem partir para a peleja das evasivas em vez de
simplesmente renderem-se com um ‘sim’ ou um ‘não’? É a segunda vez que
converso contigo e já sei que estás mentindo”. Tomei fôlego para retrucar: “Bem
sei que estou em débito contigo, mas por que insistes que seja eu o mensageiro
ideal da proposta? Ele certamente estará mais vulnerável a ela se feita por
Críton, ou Apolodoro, ou...”, e então ela levantou-se, enfática: “Críton,
Apolodoro, Lísias, ou mesmo Platão – se ele não tivesse fugido feito um garnizé
apavorado –, todos eles passariam a Sócrates a impressão de que eu teria
intervindo. Eu já te disse, Aristófanes, que a insistência deles é para que Sócrates
fuja – Críton, por exemplo, é capaz de subornar quem for preciso em nome desta
alternativa. Digo mais: Críton se disporia até a afundar o barco sagrado, para que
ele nunca chegasse a Atenas. E tudo isso porque eles pensam como homens,
planejam como homens, agem como homens: fugir, corromper, comprar, burlar,
executar tudo na alcova. Já o que eu peço é que Sócrates dirija-se ao Tribunal
dos Heliastas e solicite a revisão de sua pena, sem se humilhar porém sem
tripudiar da sentença, como ele fez. Não quero Sócrates fugitivo. Quero Sócrates
vivo.” Só pude dizer “E novamente pergunto – por que pensas que eu teria
sucesso fazendo a proposta a Sócrates?”

– Para e descansa, meu pai. Perdeste o fôlego.


– Estava puxando o fio da memória, e não queria perder nenhum detalhe.
Sou um velho Teseu em busca da imagem de uma cada vez mais longínqua
Ariadne, Filipos.

– Então respira com vagar, sem pressa, e depois me diz: o que Xantipa
respondeu?

– Ah, a tática das mulheres. Ela marejou os olhos para dizer, em sílabas
pausadas e fortes: “Aristófanes, Sócrates precisa de mim como eu preciso dele.
Eu sei que ele sempre dividiu seu amor por categorias, e nelas cabiam
Alcibíades, os jovens efebos, até as hetairas dos banquetes que eram pagas por
seus amigos para divertí-lo. A mim, nesta divisão, cabe a parte de lembrá-lo de
subsistir. De sobreviver. De comer, vestir-se, lembrar-se de que a vida é real e
não um produto do pensamento. Ele precisa disso.”

– Sim, e ela precisava de Sócrates para o quê, mesmo? Ter em quem dar
broncas?

– Ela ela apaixonada pelo fato de ser a única pessoa a quem Sócrates temia.

– E reforçou-te o pedido para falares mais uma vez a ele sobre ir ao tribunal?

– Não apenas.

– Como assim?
– Ah, Filipos.

– Sou todo ouvidos.

– Não és apenas todo ouvidos. És também todo juventude, e por isso


temporariamente impedido de antecipar o desenrolar dos acontecimentos pelo
teor da narrativa. Posso dizer-te que Xantipa ergueu-se, enxugou os olhos e
passou a caminhar, erraticamente pela sala, para então dizer-me: “Aristófanes,
sabes mais que ninguém – ou não terias inserido isso em tuas comédias – como
as mulheres conseguem não o que querem, mas o que precisam.” Dito isso, ela
fez uma pausa, quase dramática, e recitou: “Sou mulher mas tenho uma cabeça
que pensa. Além de ter minhas ideias, sempre ouvi as ideias de pessoas mais
experientes. Sei o que estou pedindo”.

– Não me tome por tolo, meu pai. Não nego o meu pasmo mas sei o que ela
insinuava te propor, e...

– Não és tolo, mas pouco lido. Principalmente da obra de teu pai.

– Como assim?

– Ela tinha acabado de reproduzir uma fala de Lisístrata, Filipos! O trecho


onde Lisístrata confronta os atenienses e os espartanos juntos!

– Mesmo?
– Sim. Ela sabia exatamente o que queria.

– Mas... ela havia assistido à peça?

– Óbvio que sim. Nunca houvera me ocorrido que ela gostava de teatro;
aliás, nunca me ocorrera nada sobre Xantipa. Mas ali ela mostrava que sabia
onde estavam os trechos que a interessavam.

– O que mais ela disse?

– Ela voltou ao nosso contexto: “Sei que a relação entre ti e Sócrates não é a
de inimigos; nem o extremo oposto, a de mestre e discípulo. Que seja a de
adversários que se respeitam, ou de pares que têm um ao outro em elevada
consideração – é pois justamente a ti que ele ouvirá, se fizerdes a proposta da
maneira correta. Uma proposta que concilie Sócrates com Atenas. Porque é a
conciliação que busco, Aristófanes. O que eu quero é que tudo volte a ser como
antes.” A partir disso ela pôs a mão em meu ombro e voltou a Lisístrata: “Não
haverá dificuldades, pois estou diante de um homem que deseja o que há de mais
natural”.

– E então?

– Pelo teu olhar sinto ensaias abandonar neste momento a juventude, Filipos.
Posso dizer-te que quando ela, olhando-me bem nos olhos, aproximou-se o
máximo que pôde, demonstrou claramente perceber o tempo que eu e tua mãe
estávamos sem nos ver. O resto foi o resto.
– E minha mãe... nunca soube disso?

– Se soube não foi por mim. Sei que algum tempo depois Xantipa recompôs-
se, exatamente da forma como chegara: reassumiu a mesma fisionomia sofrida,
madura, triste. Falou “Sei que cada um de nós, a seu modo, faz o que for preciso
para termos Sócrates de volta, vivo e fazendo o que sempre fez”. E foi embora.

– Novamente não sei o que dizer.

– Nem eu. Mas meus ombros – ou o peito, quem sabe – acabam de me ficar
mais leves, agora.

– Voltaram a ver-se, tu e ela?

– Não, depois disso não. Só fui encontrá-la por ocasião da morte de Sócrates.

– Mas o que fizeste depois?

– Mais do que depressa, e com a motivação renovada, dirigi-me à prisão,


pronto a propor, a convencer – convencer não, intimar – Sócrates a requerer uma
revisão da sentença. Por improvável que parecesse, eu sabia que o Tribunal dos
Heliastas abriria esta prerrogativa, para dar o exemplo de tolerância a quem sabe
retratar-se e reconhecer as próprias falhas. Principalmente a Sócrates, cujos
admiradores não cessavam de pressionar os tribunais por sua libertação – mas,
como Xantipa acertadamente previra, a coisa só resultaria em algo concreto se o
próprio acusado tomasse a iniciativa de manifestar-se.
– Não vejo a hora de me contares o que Sócrates achou da proposta.

– Ao chegar à prisão notei algo estranho; se não no ar, no pesado silêncio.


Agátocles olhava-me como se, pela primeira vez, fizesse efetivamente o controle
de quem entrava e saía. E então grunhiu, curto, grosso, sem maiores volteios:
“Ele não está bem. Pediu aos amigos para voltarem amanhã. Passou o dia
deitado”. Só isso. Fiquei a imaginar se Sócrates – deprimido, como parecia –
finalmente via-se presa da tardia mas infalível percepção da fatalidade, que
vinha demolir as muralhas de defesa tão empenhadamente erguidas pela ironia.
Seria o momento mais apropriado para fazer-lhe a proposta, como se de mim ela
partisse? Agátocles, imóvel, entre o desdém e a impaciência, permanecia à
entrada da cela, de modo que comecei a imaginar aquilo como sendo um convite
para que eu também me retirasse. Foi quando ouvi, lá de dentro, a voz rouca de
Sócrates: “É Aristófanes? Deixa-o entrar!”

– E então?

– Agátocles coxeou rumo ao interior da cela e sentou-se. Caminho livre, eu


entrei, e dei com Sócrates prostrado. O sentimento de culpa pelo que eu fizera –
não apenas eu, óbvio – coisa de meia hora antes acentuou-se pesadamente,
quando dei com ele tão fragilizado, débil, desamparado.

– Estava mesmo abatido?

– “Nada além de uma ressaca monstruosa”, garantiu-me ele. E explicou: na


noite anterior, quando Agátocles conseguira-lhe uma garrafa de vinho fenício,
ele, na sofreguidão dos que não veem álcool há um bom tempo, com o agravante
de pouco comer, passara por maus bocados. “Sempre recomendei moderação nos
hábitos, e eis-me vítima de minha desobediência a um princípio nem tão difícil
de se observar”, murmurou ele, mão na testa, olhando para o teto. Comecei a
dizer “Se preferires volto amanhã, já que...”, e nesse instante ele ergueu-se, com
sacrifício, até ficar com o tronco inclinado. E falou: “Nunca eu te deixaria partir
agora. Tivemos o quarto assassinato, não?” “Sim”, falei, “como sabes?”. Então
ele estendeu a mão até debaixo do catre, pegou algo e mostrou-me. Ali, liso e
pontiagudo, estava um fragmento triangular de cerâmica, com uma inscrição.
“Não só parece que perdeste a prerrogativa de seres o primeiro a receber os
avisos”, disse Sócrates, “como nosso amigo agora já tem certeza de que
compartilhamos eu e tu a investigação do crime. Ele veio hoje cedo entregar-me
pessoalmente.”

LIVRO DÉCIMO-QUARTO - FELIZ DE QUEM SOFRE

Onde Sócrates e Aristófanes – com o primeiro padecendo de uma


inenarrável ressaca de vinho –, na cela da prisão, conversam sobre o aritmético
assassinato de Arquídamo, e onde Sócrates novamente desfia uma invejável
capacidade de associação entre os detalhes do crime e as minúcias da escola
filosófica aludida. O perfil do assassino é traçado pela primeira vez com riqueza
de detalhes, o que não deixa de provocar, mais uma vez, uma inflamada
discussão sobre ética, justiça e, principalmente, a forte personalidade das
mulheres práticas, sempre se colocando estrategicamente acima da jurisdição
da filosofia.

– O que me dizes, Sócrates? O assassino ceramista esteve aqui, e falaste com


ele?!?

– Calma lá, meu afobado comediógrafo e agora enciumado destinatário das


mensagens. Controla teu ressentimento. Não, eu não estava em condições de
falar e tampouco ver, tamanha era a ressaca e o enjôo. É tudo difícil de
descrever. Assim que terminei a garrafa de vinho assírio, na madrugada de hoje,
acabei devolvendo boa parte ao chão – que Dioniso não me afogue no Estige – e
deitei-me imaginando se a cicuta não seria uma apetitosa ambrosia perto disso. A
cela girava, o estômago revirava-se, a cabeça doía. Eu não podia divisar com
nitidez nem a palma da minha mão colocada à frente de meu rosto – e quando o
dia chegou tudo se deu.

– O que se deu, Sócrates?

– O vulto.

– Que vulto?

– Eu mal conseguia ver a luz do amanhecer que começava devagar a encher


a cela, quando percebi que aos poucos eu vislumbrava uma silhueta, naquela
claridade do vão da porta. Ela não só me tapava parte da luz que entrava como ia
se desenhando melhor à medida que se aproximava.

– Sim?

– Só pude reparar na altura do vulto – algo entre, não sei; sete a oito palmos,
era de uma estatura considerável –, que se aproximou e em certo ponto parou,
parecendo tirar partido do fato de estar contra a luz e eu com os sentidos
completamente aparvalhados. Eu mal conseguia divisá-lo, mas também não
deixava de enxergar os contornos daquela presença silenciosa. Não sei o quanto
demorou para que ele se curvasse, deixasse algo ao pé do meu catre e se
retirasse.

– E foi... isso? Não soubeste quem era? Não o identificaste?!?


– Agátocles voltou das compras matinais na Ágora um pouco depois, e ficou
furioso ao saber que não apenas a porta da cela estava aberta como os guardas
não se encontravam lá fora naquele preciso momento. Foram dormir, fazer as
necessidades, vagabundar, não faço ideia. Se por um lado eu me encontrava
preso ao grilhão pelo tornozelo, por outro não seria difícil alguém – com os
suficientes conhecimentos e instrumentos de ferreiro – entrar e livrar-me dali.
Mas a impressão que eu tive foi que Agátocles se enfureceu mais com os riscos à
minha segurança do que com a possibilidade de alguém dali me tirar.

– Pouco se me dá o que Agátocles pensou, Sócrates – digo, perdoa-me,


Agátocles; não foi o que eu realmente quis dizer –, mas voltando a ti: tiveste o
assassino, nosso assassino, o assassino ceramista, a poucos passos de ti, e não
conseguiste identificá-lo, falar com ele? Descreve-me mais! Que roupa ele
usava? Tinha algo característico? Ele disse algo?

– Não eleves tanto a voz, Aristófanes, que mesmo tantas horas depois do
horror etílico eu ainda conservo os ouvidos e a cabeça mais suscetíveis do que
nunca. O ruído de uma moedinha que caísse agora da bolsa gorda de um sofista
iria soar-me mais estrondoso que a gigantesca estátua de Talos derrubada por
Jasão. Por Zeus, que ressaca.

– Ressaca, ressaca, ressaca... e nosso criminoso?

– Já te disse, mais nada eu consegui identificar além do que já mencionei.


Aparentemente trajava vestes usuais, que qualquer frequentador da Ágora usaria,
nada demais. E só depois fui perceber do que – ou de quem – se tratava. Imagino
que ele estivesse contando com isso.

– O fragmento de cerâmica apontava para onde?


– Estava assim.

– Deixa-me ver – noroeste. O rumo do portal do Dypilon. A saída para a


estrada. Deixa-me ler a mensagem. O que Zeus uniu o homem separe em três.
Claro – claro, muito claro.

– Se puderes compartilhar comigo este momento de iluminação, meu


engimático comediógrafo, eu...

– O assassinato de Arquídamo, Socrates!

– Estarei eu ainda sob o efeito inebriante das vinhas fenícias ou acabei de


ouvir dizeres que a vítima foi... nosso homúnculo?

– Ninguém mais. Encontrado na estrada, quando voltava a Esparta. E o corpo


estava dividido em três partes iguais.

– Como assim, três partes iguais?

– Um longo corte descrevendo um ângulo invertido no tronco, separando-o


em uma parte central, da cabeça à genitália, e em duas laterais, indo cada uma do
ombro até a perna. Os três pedaços do mesmo tamanho, e tudo indica que os
cortes foram feitos por uma espada de uso do exército.

– Por Zeus. Quanta precisão.


– Ah, sim: Arquídamo trazia a boca cheia de favas.

– Favas, tu disseste...? Favas?

– Sim. E por que gargalhas, Sócrates?

– Meu caro Aristófanes, eu não posso...

– Sim? É das poucas vezes que vejo rires tanto, desde que começamos a
confabular aqui. Tens certeza de que a ressaca já passou?

– Deixa-me tomar fôlego, Aristófanes. Se hoje cedo eu, fisicamente, tive a


oportunidade de dialogar com o assassino e não o fiz, agora eu vejo que o faço
mais intensamente apenas decifrando as pistas que ele deixou no crime. As
favas, as favas.

– Sim. O que têm as favas?

– Vamos por partes. Sem trocadilho com teu colega Arquídamo. Mas diz-me
novamente como ele foi encontrado.

– Segundo Eudoxo, repartido em três partes iguais, conforme a descrição que


te passei. E com a boca cheia de favas.
– Fiquemos primeiramente nas partes. É de se supor que, da mesma forma
dos demais assassinatos, estejamos a lidar com mais uma referência a algum
filósofo, certo?

– Não imagino o contrário.

– Perfeito. E qual filósofo, ou escola filosófica, primava pela atenção à


essência dos números, às subdivisões numéricas e à exatidão das proporções
entre estas subdivisões?

– Ora. Pitágoras?

– Perfeito, meu inigualável comediógrafo!

– Então a mensagem...

– Sim. O que Zeus uniu o homem separe em três. Ainda mais se


considerarmos o quanto o número três foi importante na doutrina de Pitágoras!
Além do corte que acabaste de descrever lembrar o vértice de um triângulo, três
também são os lados do triângulo; três são os números inteiros positivos que
formam – claro – os trios pitagóricos, e adivinha, meu triplamente arguto poeta,
quantas são as médias estatísticas que validam o famoso teorema de Pitágoras?

– Eu não diria nada diferente de três.

– Perfeito! A média geométrica, a média aritmética e a média harmônica! E


hamornia, meu pertinaz investigador, foi o que não faltou entre as dimensões dos
três pedaços de nosso pequeno Arquídamo. Eu seria capaz de apostar que, se
pesadas, as partes também pesariam igual, sem falar que...

– Sim, sim, Sócrates. Certo. Temos Pitágoras aqui. Mas e as favas?

– Era a piada que faltava ao ritual homicida, Aristófanes! Conta a lenda –


não sei se a conheces – que nosso filósofo e geômetra, apesar de vegetariano,
proibia terminantemente seus discípulos de comerem favas, por conta da
semelhança com o formato do pênis – o que ia contra os princípios
visceralmente ascéticos da seita pitagórica!

– Então Arquídamo, não contente em ser dividido por três, morreu com
dezenas de caralhos enfiados na boca?

– Numericamente perfeito.

– Agora entendo tua gargalhada.

– E eu entendo ainda mais nosso criativo assassino, Aristófanes. Ele se


sofistica cada vez mais, e já posso afirmar-te várias coisas sobre ele.

– Como assim?

– Eu apenas disse que posso, mas não irei. Cabe a tu descobri-las.


– A mim?!?

– Sim, não é nada difícil. Responde-me somente a algumas perguntas.

– Lá vamos nós.

– Não: lá vais tu. Diz – a terceira mensagem em cerâmica foi-te entregue


como?

– Por um arqueiro cita. Ou alguém se passando por um arqueiro cita.

– Pudeste identificá-lo?

– Não. Pela distância, não. Apenas pelo uniforme.

– Perfeito. O que fazem os arqueiros citas?

– Além de falar grego com um sotaque deplorável?

– Concedo-te a observação. Mas em termos estatutários, o que fazem estes


vigilantes da ordem pública?

– Acabaste de respondê-lo, Sócrates.


– Pois bem. Se ele se fez passar por um vigilante, ao entregar-te a mensagem
na cerâmica, o que ele quis dizer com isso?

– Não sei se compreendo aonde queres chegar.

– Deixa-me reformular. Àquela altura, já tinhas certeza de que as mensagens


eram encaminhadas pelo assassino em pessoa, certo?

– Sim.

– Ele portanto já sabia que vias o o criminoso e o mensageiro como um só.

– É fato.

– Portanto, se ele te apareceu caracterizado como um vigia, o que ele quis


dizer com isso?

– Que ele... me observa?

– Perfeito, meu singular investigador! Se ele fez isso caracterizado como um


vigilante da administração pública, é porque quis deixar-te claro que te tem à
vista o tempo todo. Concordas?

– Não vejo por que discordar.


– Pois bem. Quando ele veio hoje cedo entregar-me a mensagem em
cerâmica, ficando a poucos palmos de mim, por um bom tempo, sem atentar
contra a minha pessoa, o que ele quis dizer com o gesto?

– Que precisas parar de beber, ou isso acabará te matando?

– Singular observação e uma anedota razoável. Mas vamos lá, Aristófanes –


entendeste o que eu quis dizer.

– Ele deixou claro que, por mais que estivesse próximo a ti, não tinha a
intenção de fazer-te mal. Até porque, se algum mal ele quisesse fazer, já o teria
feito.

– De fato! E quis reforçar também que já sabe que tu e eu trabalhamos na


investigação do crime, certo?

– Não posso discordar.

– Portanto, é correto supor que, além de deixar-nos pistas quase entregues na


mão, ele também torna claro que não nos perde de vista, e que por outro nada
tem contra nós...?

– Presumo que sim.

– Responde-me também: as vítimas – três atenienses e um espartano –, além


de compartilharem a condição de sofistas, foram mortas seguindo rituais
alusivos a filósofos já inscritos no panteão da posteridade, certo?

– Nada a discordar.

– E quais foram estes filósofos, meu astuto autor?

– Tales. Anaximandro. Heráclito. E agora Pitágoras.

– Certo. Concordas também que eles se apresentam em ordem cronológica?

– Não poderia concordar mais.

– Levando em conta que, de Pitágoras até os dias de hoje ainda tivemos mais
filósofos proeminentes – Parmênides, Zenão, Anaxágoras, Górgias, Protágoras e
tantos outros – é de se supor que a série de crimes não tenha terminado,
concorda?

– Presumo que seja essa a verdade.

– Podes perfilar-me o criminoso, pois, meu admirável autor?

– É um homem, de considerável força física – para perpetrar os crimes e o


que eles exigiram –, de alta estatura, de considerável erudição, que desgosta de
sofistas a ponto de eliminá-los, utilizando como método de assassinato a menção
sarcástica ao pensamento de filósofos anteriores à nossa época, que nos mantém
informados sobre cada passo que dá, que mostra que nos vigia o tempo todo e
que, fundamentalmente, tem a clara intenção de poupar-nos. Pelo menos até
concluir sua presumível série de crimes.

– Eu não poderia descrever melhor, Aristófanes. E agora, a última pergunta.


Quem se encaixaria em tal descrição?

– Sem pensar muito, algum detentor de cargo público, zeloso da imagem da


administração e que, temeroso do estrago que alguns sofistas indiscretos possam
trazer ao governo de Atenas, elimina-os utilizando a tática dispersiva da
associação a escolas filosóficas para mascarar os reais motivos dos crimes.
Rumando a outra seara e esmerando um pouco mais o raciocínio, talvez algum
amigo teu. Ou teus discípulos. Quem sabe Platão, que – seria uma surpresa para
mim – fingiu ter sumido de Atenas somente para poder realizar os crimes sob
disfarce?

– Deixaste a veia teatral dirigir-te bem na elaboração do perfil de nosso


assassino, mas perdeste as rédeas dela ao fazeres desfilar os suspeitos. Eu teria
que assumir meu total fracasso como filósofo se admitisse a possibilidade de
algum de meus discípulos – Platão incluso – haver cometido o mais abjeto dos
crimes contra a natureza humana. Quanto aos membros da administração, não
creio haver neles a necessária sofisticação de espírito nem para elaborar os
métodos dos crimes tampouco para pensar em utilizá-los como disfarce da
verdadeira motivação.

– Então devolvo-te a pergunta. Quem, na tua opinião, se encaixa na


descrição?

– Tu, por exemplo, meu comediógrafo ímpar. Tens tanto preparo físico
quanto arcabouço intelectual para executar os crimes, bem como para criar o
enredo que os une. Seria um material e tanto para uma peça cômica, com o
diferencial de que tudo realmente aconteceu. Poderias fazê-lo na forma de peça
ou de diálogos, configurando a trama como bem entenderes – e ainda se
eliminando da lista de suspeitos. Seria o crime perfeito.

– É uma sugestão?

– Não. Apenas um palpite.

– Agradeço-te se a intenção foi enaltecer-me, mas minha única intenção


como autor nesta plêiade insana de acontecimentos é escrever uma comédia
sobre ti, e deixar às plateias de hoje e à posteridade a minha versão sobre quem
foi Sócrates.

– E como narrarias minha morte? Arrancando as mesmas risadas que


arrancaste quando me retrataste como sofista em As Nuvens?

– Não. Em minha comédia, pretendo incutir um pouco de juízo na cabeça de


meu personagem e terminar a história narrando sua ida ao Tribunal dos Heliastas
para solicitar a revisão da sentença.

– Admito que jamais vi ou testemunhei uma peça com uma conclusão tão
mirabolante. Acho que neste quesito As Nuvens é uma peça mais sensata.

– Por quê? Em que tu te rebaixarias solicitando de Atenas que volte a ser o


grande farol da Ática, a Atenas acolhedora e representativa, que faça prevalecer
a justiça e não seja campo fértil para acusações sem teor, vindas de
personalidades vazias que só querem vingar-se de ti?

– Por Zeus, Aristófanes, isso não parece contigo! Sei que és saudosista de
uma Atenas que já não existe, mas sempre trabalhaste esta nostalgia de uma
forma muito mais eficaz na sátira e no sarcasmo! Vais agora metamorfosear-te
num orador, queres representar o novo Péricles e abdicar de tuas comédias?
Prefiro mil vezes que fales mal de mim a falares tão sério!

– Sócrates! Sócrates! Basta solicitares uma audiência, que ela lhe será
concedida de bom grado! Sabes disto! Por que...

– O que ela te ofereceu, quando pediu isso?

– Como?

– O que Xantipa te ofereceu, quando pediu para dizer-me isto?

– Como assim, Xantipa? Eu...

– Ora, ora, meu insigne autor. Esboças tão bem teus personagens e tens
tamanha dificuldade em compor um? Vejo-te no rosto, no tom de voz e nos
trejeitos que acabaste de expressar – e que não sabes esconder – que tiveste um
colóquio direto com a única mulher a quem eu temo, e que não deixou em ti
impressão lá muito diferente.

– Como assim?
– E ainda por cima repetes a mesma pergunta. Nada mais significativo. Mas
já te digo. Sabes que meus amigos mais íntimos consideram ato de fraqueza um
pedido meu para que o tribunal reconsidere a sentença, certo?

– Não sei o que te responder.

– Sabes também que apenas um espírito forte, determinado – e ciente de que


a única garantia de se esbaldar no doce néctar da posteridade está em suportar
resignadamente a erva amarga do presente – é que pensaria em uma saída tão
conciliatória e prática, concordas?

– Se é o que dizes.

– Xantipa quer o melhor para mim. E ela tem razão. Ela sempre tem razão.
Quem se mostra insano sou eu. Mas tudo o que já postulei sobre justiça e ética
não faria sentido se eu questionasse as leis que me condenaram. Peco pela
repetição mas não pela contradição: será sempre preferível sofrer uma injustiça
que cometê-la, meu caríssimo comediógrafo. Não cometi injustiça alguma e dou-
me por feliz, ao passo que quem me condenou...

– Xantipa quer-te vivo e bem!

– E eu quero-me justo. Aristófanes, Xantipa tem seus meios próprios de


exercitar o talento para o convencimento, eu tenho os meus. Convivemos bem
neste acordo tácito, sei que ela te impressionou deveras e não quero que esta
impressão se apague mediante minha discordância das ideias que ela incutiu em
ti. Isto posto, só solicito duas coisas.
– Diz-me, Sócrates.

– A primeira não é a ti. É a Agátocles. Água, mais água, meu bom homem, e
cuida de não derramá-la enquanto caminhas. Só damos o verdadeiro valor ao
mais precioso dos líquidos, ao mais primordial, ao fluido tão decantado por Tales
– nosso assassino não nos deixa mentir –, quando nos entupimos de vinho na
véspera. E a ti, Aristófanes, só peço que descansemos um pouco do caso do
assassino em série – podemos chamá-lo assim? –, não sem antes pedir-te para
trazeres, em tua próxima visita, todos os fragmentos de cerâmica que recebemos
até agora. É apenas outro palpite, nada mais. Enquanto isso, voltemos à nossa
comédia, se a isto não te opuseres. Antes, só preciso confessar-te – quando
gargalhei, há pouco, não o fiz só pelas favas.

– Não?

– O outro motivo foi o fato de Arquídamo haver errado fragorosamente


aquela profecia de tantos anos atrás, na batalha de Potideia. Nem nisso ele
acertou, coitado, nem nisso.

LIVRO DÉCIMO-QUINTO - ADVERSÁRIOS,


ADVERSÁRIOS, HISTÓRIA À PARTE

Onde Aristófanes e o autor destes livros encontram-se caminhando pela


Ágora – o pai apoiado no filho, dada a crescente dificuldade em manter-se em
pé e principalmente em caminhar –, e Aristófanes comenta sobre a lamentável
fama de adversário de Sócrates que ele carregará pela posteridade, a despeito
do que aconteceu naqueles trinta dias. É narrada também uma boa notícia que,
em meio àquele insano torvelinho de acontecimentos, ele recebe – e que envolve
o autor destes escritos –, além de mais um confronto seu com a lei.
– Olha, Filipos, ao lado do Templo de Apolo – vês Críton, já bastante idoso,
desfilando orgulhoso, ao lado de seu filho militar?

– Aquestrato, se não me engano. Já cruzei com ele, alguns anos atrás, em um


banquete. Parece ir bem na caserna; não me espantaria se chegasse a general.

– Bem, temos ali um exemplo de filho em ascensão na carreira e um pai que


pode se gabar de haver privado da intimidade de Sócrates.

– E aqui não? Minhas peças já encontram boa acolhida em Siracusa, e tu...

– O que tem eu?

– Passaste um mês em colóquios noturnos com Sócrates, escreveste uma


comédia sobre ele, além de investigar em conjunto com ele um tenebroso caso
de assassinatos. Só ainda não sei se os esclarecestes, já que insistes em me contar
a história paulatinamente, tomando-me por plateia ignara.

– Receias que eu morra antes de chegar à conclusão da história? Fica


tranquilo; cuidarei para que tal não aconteça.

– Ah, sim, queres dizer que viverás para sempre?

– Não me desejes tal fatalidade. Prefiro morrer a ter que ouvir falar em vida
eterna.
– Conhecerei toda a história?

– Tenho meios de fazer com que não pairem dúvidas sobre ela, mesmo se
algum imprevisto acontecer, Filipos; por enquanto basta que saibas disto. Mas,
voltando ao que dizias, jamais poderei me gabar de que privei também da
intimidade de Sócrates em seus últimos dias. Continuarei sendo o maledicente
cômico que manchou sua reputação caluniando-o e classificando-o como sofista
parlapatão, e é melhor que deixemos assim. Basta veres o tratamento que seus
seguidores me dispensam: deves ter reparado nesse instante que Críton fingiu
não me ver. Ele continua um homem abastado, dono de dezenas de propriedades,
cada vez mais próspero, e ainda gozando do privilégio de haver sido discípulo do
hoje cada vez mais afamado Sócrates. Lísias, Apolodoro, Cebes, Fédon, todos
eles ufanam-se do fato de haverem conhecido pessoalmente o injustiçado
filósofo. Platão dá mostras de querer aproveitar-se da fama de Sócrates cada vez
mais em seus escritos e em seus ensinamentos. E o que coube a mim? Continuar
como o antagonista, o difamador, a Nêmesis. É até interessante que Sócrates
tenha tido um rival na esfera intelectual, bem acima da ralé de sofistas contra os
quais ele se bateu a vida toda. Confere-lhe mais substância ainda, mais
dignidade, mais peso.

– Não te exaltes tanto, meu pai. Sentemos aqui um pouco – insisto que
precisas descansar. E, de mais a mais, compuseste uma comédia que contou com
a participação do próprio Sócrates! Isso pode mudar a maneira como és visto,
como és...

– Não é hora de falarmos disso, Filipos. Queres ou não saber sobre o


desenrolar dos assassinatos?

– Quero, contanto que descanses um pouco. Tua fala a mim entretém, mas a
ti ela cansa.
– Viver cansa. Falar só faz o cansaço parecer breve.

– Então me fala, já que cruzamos com Críton. Voltaste a falar com ele, ou
outro amigo de Sócrates, naquela ocasião?

– Acontecia de eu chegar e às vezes topar com um ou outro retardatário, já


que o próprio Agátocles – em combinação com Sócrates – determinava o
término das visitas, para que eu pudesse aparecer. Uma vez cheguei quando
Lísias saía, e, passando por mim, ele comentou, sem nem parar: “Seja o que for
que estiveres tratando com Sócrates, trata de ser breve; Críton está arranjando
tudo para ele deixe a cela”. Disse apenas isso e foi-se. Só depois vim a saber que
aquele providencial sumiço dos guardas na manhã do dia da monumental ressaca
de Sócrates – providencial para o assassino, diga-se – se deu porque Críton os
havia subornado. Um inocente passeio de vez em quando, pelas redondezas. Não
foi aquele o único dia, nem seria o último.

– Mas não se fazia necessário subornar também o carcereiro? Seria por


anuência direta dele que Sócrates, se pudesse, fugiria da cela.

– Aí já não sei. O que posso dizer é que Agátocles nunca me pareceu um tipo
suscetível a propostas que ultrajassem seu ofício. Mal-humorado, de poucas
palavras, cioso de suas funções e as exercendo da mesma forma solene com que
mancava e grunhia, não parecia ser o tipo ideal a ser abordado com uma
proposta de favorecimento ilícito. Mas, enfim, a mim o recado apressado de
Lísias soou-me como pura bravata, pois o principal interessado nem de longe
sonhava em evadir-se do local.

– E ele curou-se a contento da ressaca?


– Imagino que sim. No dia seguinte não o vi: aluguei uma carroça e fui a
Elêusis buscar tua mãe. Quanto mais cedo eu tivesse com quem compartilhar os
acontecimentos, as afobações e a angústia daqueles dias, mais força eu teria para
passar por cada um deles. Como o arqueiro cita que vigiava a casa já houvera
sido dispensado por Eudoxo – para tristeza dos vizinhos e do bolso do próprio
arqueiro –, imaginei que tua mãe não objetaria o retorno. E tudo isso se daria,
Filipos, se não fosse por ti.

– Por mim?

– Ao chegar a Elêusis fui surpreendido com a notícia de que tua mãe se


descobrira grávida de dois meses e, por conta disto, passava pela pior fase da
gestação, com as dores de cabeça e os enjôos. Mesmo uma viagem de pouco
mais de cem estádios seria penosa para ela naquele momento, e a irmã
convenceu-me a deixá-la lá por mais algumas semanas. De qualquer modo
contei a ela tudo o que acontecera, incluindo os detalhes dos crimes e minhas
conversas com Sócrates.

– Não contaste tudo, imagino.

– Bem, tua mãe evidentemente preocupou-se e fez-me prometer que tomaria


todos os cuidados necessários. Tranquilizei-a e expliquei que, como estávamos
todos sem saber quando efetivamente o barco sagrado retornaria, eu precisaria
estar em Atenas – e o mais próximo possível de Sócrates – o tempo todo que
restasse.

– Quer dizer que fui o responsável por ficares sozinho – e à mercê de novas
investidas femininas – por um bom tempo, antes do retorno de minha mãe.
– Te adianto que elas não aconteceram mais.

– Bem, com todo o amor que tenho por minha mãe, vês que fiz o possível
para que te divertisses. Não o fizeste porque não quiseste.

– Mais respeito com teu pai. E, mesmo que o quisesse – eu não quis –, não
poderia. O tempo ficava-me cada vez mais escasso. Tanto que naquele dia, ao
retornar a Atenas, já de noite, nem cheguei a estranhar quando dei com um
arqueiro cita à minha espera, na porta de casa.

– Mais um assassinato?

– Não. Laques queria ver-me.

– Laques?

– Sim. Aleguei cansaço, falei da viagem, mas o guarda foi irredutível. Trazia
ordens expressas de Eudoxo para que eu fosse buscado o mais rápido possível. E
portanto lá fomos nós até o Arcontado, eu mais indisposto a conversar do que
realmente fatigado. Imaginei que, àquela hora, um graduado servidor público
como Laques já deveria estar em casa, estendendo portanto a contragosto sua
permanência no gabinete, à minha espera. E foi mesmo contragosto que vi
naquela fisionomia de falcão preguiçoso, quando entrei em seu gabinete.
Eudoxo, ao lado da mesa do chefe, também não demonstrava lá muita
afabilidade, provavelmente por conta de minha demora em aparecer haver
atrapalhado seus planos noturnos com alguma voluptuosa botija de vinho.
“Aristófanes”, Laques disse, fazendo daquelas suas pausas burocráticas, como se
ainda houvesse algum documento a despachar e ele quisesse demonstrar não
estar ocupando-se apenas de mim. “Soubemos de fonte segura que vens
encontrando-se frequentemente com Sócrates, na prisão”. Notei que a
informação também era sustentada pelo olhar de Eudoxo, como se ele se sentisse
traído.

– Meu pai, fico na dúvida entre perguntar quem teria levado essa informação
até eles ou já conformar-me com o fato de que me responderás “No tempo certo
tu saberás”.

– Tenho a rara satisfação de poder responder-te que não, eu nunca soube.


Mas nem era de se espantar. A informação pode haver sido passada de um
guarda a outro até chegar aos superiores, ou ter partido dos amigos de Sócrates,
mesmo contra as expressas recomendações dele. Se a Ática era grande, Atenas
era um cubículo. O que me interessou mesmo – aliás, naquele momento até me
divertiu – foi a sensação de que a informação trouxera um certo temor a Laques
e a Eudoxo. “É verdade”, eu disse. “Encontro-me com Sócrates com certa
frequência, na cela em que ele ocupa, sempre à noite. Com a permissão dele e a
ciência dos agentes de segurança do local.” Laques bem que procurou algum
papel na mesa, até voltar a deitar-me aqueles negros olhinhos redondos:
“Aristófanes, todas as questões de segurança pública passam pelo Arcontado,
como bem sabes. Pois bem, nenhum dos dez arcontes de Atenas – incluindo eu –
sabia das visitas que tu fazias a um condenado à morte”. Enquanto me esbaldava
testemunhando Eudoxo assentir de leve com a cabeça a cada sílaba de Laques,
eu preparava minha resposta: “Até onde eu sei, uma questão de menos
importância como esta não necessitaria...”, mas então Laques cortou-me: “Foste
agraciado até agora com a mais alta confiança por parte das lideranças atenienses
a respeito da série de homicídios que conspurcam nossa cidade, e sobre os quais
juraste absoluto segredo. Então já sabes a pergunta que quero fazer-te”. Ah,
Filipos, como me tentaram tantas réplicas: “Se sou eu o assassino?”; “Se
Sócrates é o mandante?”; “Se pretendo assassinar Sócrates antes que ele seja
executado?”

– Uma inata percepção de escritor me insinua que não as fizeste.


– “Converso com Sócrates assuntos puramente teatrais”, falei de pronto, e
para eles foi como se eu não houvesse respondido nada. “Como assim?”,
perguntou Eudoxo, e esclareci: “Estou escrevendo uma comédia a respeito de
Sócrates, para encená-la após sua morte. Pretendo fornecer aos atenienses um
motivo não para pranteá-lo, mas para rir do que julgarem conveniente rir a
respeito do que ele dizia, ensinava e criticava”.

– Imagino que nunca fosses tão vago, ambíguo ou reticente em toda a tua
vida.

– Desconcertei tanto a ambos que só depois de um rápido silêncio é que


Laques acrescentou: “O Arcontado não discute e tampouco se intromete no que
os tribunais decidem. A mim só compete esclarecer: falaste com Sócrates a
respeito dos assassinatos?” Neste momento eu apenas pensei em Agátocles, que,
se não fosse tão desinteressado e sonolento, estaria razoavelmente a par de
minhas conversas com Sócrates; e sendo tão cioso de suas funções como parecia,
poderia ter sido o responsável pelo vazamento da informação. A reação de
Laques e Eudoxo à minha resposta – se é que realmente me testavam –
determinaria se Agátocles estaria ou não do nosso lado. “Em absoluto”, eu disse.
”Minhas relações com Sócrates se dão com o estrito propósito de elaborar minha
peça. Jamais eu trairia o acordo firmado convosco”. Laques olhou-me
demoradamente para então apertar os olhos falconídeos e atiçar-me: “Não
criticavas Sócrates abertamente?” Retruquei: “Isso não impede Sócrates de ser
um excelente personagem”. Dando a entender que sua desenvoltura
argumentativa não iria além daquilo, Laques deu uma olhadela a Eudoxo e
concluiu: “O que eu quero é evitar que o Areópago tenha que se envolver nisso”.
O artifício pareceu surtir algum efeito, pois percebi claramente Eudoxo
trancando o rabo.

– O Areópago tinha força àquela época?

– Mais força, mais representatividade, mais ética. Não o conselho venal e


desmoralizado que se tornou hoje. Naqueles tempos, levar uma questão ao
Areópago era submetê-la ao verdadeiro e implacável escrutínio da Justiça
Ateniense. Os velhinhos faziam bem seu serviço; se bem que, na idade em que
se encontravam, não dariam mais conta mesmo de praticar nada além de justiça.

– Mas presumo que o caso dos assassinatos em série não tenha chegado lá.

– Não, mas não por artes de Laques ou Eudoxo. Daquela noite basta dizer
que, antes de encerrar a reunião, Laques ainda inquiriu-me: “As mensagens que
dizes receber do criminoso, anunciando os crimes – neste último assassinato isso
não ocorreu?” Tive que pensar rápido, numa forma de livrar o rabo de Sócrates,
de Agátocles e até o meu. Lembrando que Sócrates me entregara o fragmento de
cerâmica e eu providencialmente o trazia no bolso da túnica, tirei-o e o expus,
dizendo “Sim, o remetente o havia deixado em minha casa, mas por algum
motivo só fui dar-me conta agora à noite, quando retornei de Elêusis, onde fui
visitar minha mulher”. Meus dotes de ator pareceram funcionar. Laques
perguntou o teor da mensagem, eu lhe disse – e Eudoxo, para quebrar o silêncio
subserviente de até então, limitou-se a comentar: “Por que estas mensagens tão
subjetivas?” Pensei “Subjetivas são as razões para te manterem como astínomo,
sua besta de carga”, e obviamente disse “Pois então”. Laques, à falta de papiros
para manusear, pousou as mãos na mesa e anunciou “Eudoxo, estão em tuas
mãos as diligências para apurar de uma vez por todas a identidade desse
criminoso e encerrar tal derramamento de sangue que, reitero, não pode em
absoluto chegar ao conhecimento da população – e, como eu acabei de dizer,
tampouco às instâncias superiores. Sabemos como o Areópago trata os
homicídios irresolvidos”. Dito isso ele levantou-se e deixou a sala. Pude
perceber Eudoxo calculando quantos cálices de vinho iria entornar depois de
deixar seu gabinete dos astínomos. Só perguntou, antes que Laques sumisse de
todo, “E o que faço com os incendiários que prendemos?”, ao que o chefe
respondeu sem pensar: “Deixa-os na prisão. Atenas fica mais segura sem eles. O
máximo que pode acontecer é tocarem fogo nas celas. Se o fizerem, arderão
trancafiados. O combate ao crime ainda assim sairá ganhando”.

– E Eudoxo, não comentou nada contigo?


– Assim que deixamos o Arcontado e atingimos o acesso à Ágora ele,
acompanhando-me na caminhada, desabafou: “Aristófanes, o que acontece em
Atenas? Que crimes são esses? Quando isso vai parar?” Eu disse “Eudoxo,
acabas de transformar em perguntas dirigidas a mim as ordens peremptórias que
Laques passou a ti há pouco. Não posso ajudar-te; sou um comediógrafo, não um
poeta trágico”. Ele pareceu nem reparar em minha resposta, pois logo emendou
“Ele nos faz de cretinos, está sempre um passo adiante de nós e não sabemos
quantos crimes ainda podem ocorrer. Não posso sair prendendo qualquer um que
porventura se configure como suspeito! E estamos perto de ver a história chegar
ao conhecimento de todos os atenienses! O que nos resta fazer?” Sim, percebi,
eram perguntas retóricas, de quem não tinha culhões de as fazer aos superiores, e
agora desabafava com quem ele julgava um colaborador. Filipos, juro a ti que
naquele momento tive ganas de dizer a Eudoxo que estava me retirando do caso,
que não me importaria com o desenrolar dos acontecimentos e que tudo se
fodesse – mas reparando naquela patética e desamparada figura que confiara a
mim segredos de investigação criminal e infidelidade conjugal e até mesmo a
avaliação de sua acalentada peça de teatro, achei que seria o caso de não
abandoná-lo naquele momento.

– E achas que foi uma boa ideia?

– Péssima. Ele pôs a mão em meu ombro, perguntou se eu não aceitaria uma
botija de vinho e pensei que, mesmo que de uma forma enviesada, não deixaria
de ser uma maneira de comemorar a gravidez de tua mãe. De qualquer forma –
imaginei – Eudoxo provavelmente me segredaria mais detalhes sobre os
labirintos da administração que talvez ajudassem em um entendimento mais
abrangente da relação entre aquela alcova e as possíveis motivações do
criminoso. Puro engano. Embebedei-me além da conta ouvindo horas de
considerações presunçosas, óbvias e vulgares sobre teatro e escrita. Nada mais.
Pelo menos de uma coisa me certifiquei na ocasião: as duas coisas mais
formidáveis até então tinham sido a invenção da escrita e a descoberta do fogo –
só assim eu teria o prazer de, chegando em casa, pegar o papiro com o texto da
peça de Eudoxo e queimá-lo por inteiro.
LIVRO DÉCIMO-SEXTO - O MEIO É A MENSAGEM

Onde Sócrates e Aristófanes, na cela, experimentam uma inversão de


experiências: agora é o comediógrafo que amarga uma ressaca, e Sócrates,
claro, ri dele. O clima de descontração só passa a pesar quando Sócrates revela
a Aristófanes que sua permanência no mundo dos vivos está comprovadamente
mais curta do que o comediógrafo supõe. Por outro lado, ambos fazem juntos o
que talvez seja a descoberta mais importante de toda a investigação. O que quer
dizer que ressacas talvez não sejam necessariamente a pior coisa do mundo.

– Que vejo eu? Hoje é tua vez de ostentares um mal-estar pós-etílico, meu
distinto comediógrafo?

– Não sei onde arranjei forças para vir, Sócrates. Eudoxo empurrou-me um
vinhedo inteiro ontem.

– Bem, presumo que foste ao sacrifício com um objetivo em mente.

– Eu o tinha, de fato. Mas foi tudo por água abaixo. Aliás, água não – um
vinho de segunda linha. Pelo menos mais passável que a conversa, que foi de
quinta categoria.

– O quê, queres dizer-me que a conversa com Eudoxo não foi


intelectualmente proveitosa?

– Sócrates, se realmente vais tomar meu lugar para dedicar-te à piada, deixai
que eu compense exercitando a maiêutica contigo.

– Como bem entenderes, meu nobre poeta. Podes inclusive começar neste
instante.

– Isso foi uma piada, Sócrates.

– Que pode converter-se em uma convincente digressão filosófica. Vamos,


Aristófanes: mostra o que aprendeste comigo.

– Não é de meu feitio ficar cuspindo perguntas sem parar, como uma cigarra
que zizia seguidamente até levar o ouvinte à loucura.

– Interessante figura. Com qual outro animal compararias meu método?

– Sócrates, poupa-me. Não sou Esopo – se eu me dedicasse a elaborar


fábulas preferiria escrever sobre as ratazanas do Arcontado, as toupeiras
astínomas ou as hienas sofistas.

– E com o que a toupeira astínoma brindou-te ontem, na conversa?

– Imaginei que fosse passar-me mais alguma informação sobre a coxia


política, mas o idiota ficou o tempo todo falando sobre seus subestimados
pendores artísticos. Nunca vi uma bebedeira tão mal-empregada. Mas o que me
preocupa é o que ocorreu antes disso, e que inclusive traz-me aqui hoje: Laques
me chamou para perguntar o motivo de minhas visitas a ti.
– Como ele soube?

– Sinceramente não sei. Algum de teus amigos?

– É provável. Não duvido que Críton, em seu excessivo zelo por manter-te
longe de mim, tenha feito chegar a ele a notícia, para que de alguma forma as
visitas acabassem sendo proibidas. Laques tentou isso?

– A princípio deu a entender que sim. Expliquei então que escrevia uma
comédia sobre ti – com tua óbvia concordância –, e isso pareceu suficiente. O
que o intranquilizava mesmo era a suspeita de que eu houvesse contado a ti
sobre os assassinatos. Obviamente garanti que não, mas não sei até que ponto ele
se deixou convencer.

– Prepara-te, pois o próximo assassinato irá, mais que intranquilizá-lo,


colocá-lo em pânico. A ele, e aos envolvidos no círculo do poder, importa menos
encontrar o assassino do que os crimes chegarem ao conhecimento da população.

– Acreditas mesmo que haverá outro homicídio?

– Tenho certeza de pelo menos mais um crime, meu nobre Aristófanes. Fico
pensando em que corrente filosófica nosso erudito assassino irá basear-se, neste
que talvez seja seu derradeiro assassinato.

– E eu fico pensando se incluo estes crimes na comédia sobre ti.


– Nunca. Queres enterrar tua carreira, mesclando sem critério uma história
de mistério a uma comédia? Isso jamais teria futuro, meu dedicado autor: não
encontraria público e seria alvo de críticas merecidamente demolidoras.

– Por quê?

– Aristófanes, misturar Epicarmo com Sófocles?

– Epicarmo? Por que citas Epicarmo?

– Porque ele veio antes de ti.

– E o consideras maior comediógrafo que eu?

– Não disse isso.

– Nem desdisseste. Pois te asseguro que a posteridade me colocará acima


dele.

– Não viverei para ver isto.

– Sócrates, a continuarmos como estamos, não viverás para ver o mês que
vem! Digo... Desculpa-me.
– Não te amofines, meu célebre comediante. Na verdade não viverei para ver
a alvorada do dia depois de amanhã.

– O que queres dizer?

– Críton contou-me hoje cedo ter obtido a informação, de fonte segura, de


que o barco sagrado atracará no porto do Pireu em dois dias.

– Por Zeus, Sócrates.

– O que houve, Aristófanes? Empalideceste. Porventura combinaste com


Eudoxo ou Laques que tomarias meu lugar na execução da sentença?

– Eu... não. Óbvio que não. Por quê?

– Então não há por que empalideceres. Meu poeta, desde o início sabíamos
que seria uma questão de tempo. Se os deuses resolveram estender os dias de
minha permanência no mundo dos vivos, a razão disso provavelmente só será
conhecida posteriormente. Ou talvez se deva puramente ao sarcasmo
postergatório do Olimpo. Nada é impossível.

– Sócrates, não tens que morrer! Com minhas relações junto a Laques – não
muito sólidas, mas ao menos frequentes, ultimamente – solicito uma audiência
para ti. Ele interferirá junto ao tribunal. Diz lá que pensaste melhor, que foste
mal interpretado! Tens ainda dois dias, não desperdices um instante sequer deste
tempo!
– Vejo que Xantipa te impressionou. O que não me admira. Ela é uma mulher
impressionante.

– Sócrates...

– Acalma-te, meu bom comediógrafo. A mim o pouco tempo que resta só me


inquieta em um aspecto – como eu te disse, se nosso assassino pretende que eu,
assim como tu, tome conhecimento do andamento dos assassinatos, ele precisará
ser breve. Tenho a certeza de que ele não terminou sua série. Mas também estou
certo de que, neste exíguo espaço de tempo que nos sobra, somente mais um
crime caberá.

– Sócrates, ficas aí pensando no assassino, enquanto...

– Enquanto o quê? Enquanto o barco sagrado se aproxima? Tens razão: ao


invés de pensar precisamos agir.

– Como, Sócrates? Agir como?

– Não esmoreças. Não tenho meios de saber se nosso atento criminoso


tomará conhecimento de que o barco está tão próximo. Ele precisa cometer seu
último assassinato nos próximos dois dias.

– Ele... precisa cometer o assassinato? O que eu ouço, Sócrates? Tu, falando


em induzir um crime? Um atentado à vida, ao que um homem tem de mais
valioso?
– Meu desafeto favorito, eu apenas procuro entrar no coração e na mente de
nosso criminoso. Responde-me: concluímos que ele segue um raciocínio na
sucessão de mortes, concordas?

– Não tenho por que discordar.

– Concordas também que ele segue ordem cronológica: cada morte que se
segue é relacionada a um filósofo proeminente; e que os filósofos mencionados
vieram, historicamente, um após o outro?

– Devo concordar.

– Bem, estás de acordo com a afirmação de que, de Pitágoras – o último


filósofo aludido pelo assassino – até hoje, a Ática contou com mais filósofos de
renome? E que entre estes, poderíamos mencionar Parmênides, Zenão,
Anaxágoras, Górgias?

– Confio em teu discernimento. Mas até agora eu...

– Acalma-te, comediógrafo. Estás de acordo também que – sem tecer loas à


minha pessoa, o que raramente é de minha índole –, não faria sentido ele
continuar com a série de assassinatos após minha morte, já que eu sou um dos
destinatários das criptográficas missivas a respeito de sua obra?

– Sim, concordo em absoluto.


– Calculo que estejas concordando mais por afobação do que por
discernimento. Mas prossigamos sem perder a acuidade: nosso prezado assassino
fatalmente concluirá que tem pouquíssimo tempo para seu – se a lógica não me
falha – último assassinato. Ele precisará ser rápido, assim que souber da chegada
do barco sagrado, o que não demorará a acontecer. E é nesta intercorrência que
poderemos fazer o que não conseguimos nos assassinatos anteriores. Detê-lo.

– Deter o assassino, Sócrates? Dizes que competirá a nós o trabalho de


Eudoxo, dos arqueiros citas?

– Por Zeus, Aristófanes, sabes melhor do que eu que se confiássemos a


Eudoxo a elucidação sobre o assassinato das duas crianças em Medeia ele
acabaria detendo algum personagem de Sófocles ou Ésquilo – e a própria
Medeia, vindo fugida para Atenas, continuaria livre, impune e pronta para casar-
se, ter filhos e matá-los novamente! Não caberá a nós prender o criminoso, mas
identificá-lo, e desta forma ocasionar sua prisão.

– Então esclarece-me, Sócrates. Usa de todo teu talento para os silogismos.


Usa de toda a complexidade de tua maiêutica, que a ela não me oporei: como
identificar o assassino?

– Meu caro Aristófanes, a maiêutica não é uma fórmula milagrosa nem


tampouco um sortilégio criminal. É apenas uma maneira de fazer-te conhecer a ti
mesmo. No momento não dispomos de informações suficientes para chegarmos
ao rosto de nosso assassino, mas nada impede que possamos chegar a um local
relativamente fácil de encontrá-lo.

– O que dizes?
– Pensa comigo: na ânsia de fazer-nos pensar, ele envia mensagens
criptografadas, certo?

– Decerto.

– E estas mensagens são inscritas onde?

– Em fragmentos de cerâmica.

– Trouxeste os que já recebemos até agora, conforme te pedi?

– Sim, aqui estão. O que pretendes... combinar todas as mensagens em uma?

– Nem tanto, Aristófanes. Mas vê. O que eu imaginei se materializou. Vê o


que ocorre, quando colocamos os fragmentos todos juntos.

– Por Dioniso, Sócrates. Eu... não tinha reparado!

– Formam um pequeno cântaro, sem asas, constituído de fragmentos de três


pontas. E no qual falta apenas mais um fragmento. Vê, meu astuto Aristófanes,
que filosofar não consiste apenas em juntar as peças – mas juntar as peças no
momento oportuno.

– Sim. Falta um fragmento no cântaro!


– Concordas que se confirma meu vaticínio, de que temos à nossa frente
apenas mais um crime?

– Jamais pensaria em discordar, Sócrates! Somente mais um crime! Mais


uma mensagem na cerâmica que o assassino nos remete, além das inscrições!
Ele quantificou os crimes, sem que percebêssemos, digo, sem que eu percebesse.

– Sossegue, não faço questão do mérito. As descobertas dialéticas são


sempre frutos do diálogo, muito raramente do solilóquio. Temos portanto duas
questões antecipatórias a nos fazer: qual será o filósofo evocado e quem será a
vítima, concordas?

– Sim, sim; tão presos ficamos em elucubrações silogísticas e filosóficas que


nos esquecemos da vítima.

– E sem vítima dificilmente existe um assassinato. Mas afunilemos: há de ser


um sofista, concordas?

– Perfeito.

– Isto posto, voltemos ao criminoso. Disseste acertadamente que ele nos


envia múltiplos recados através dos fragmentos de cerâmica – recados que não
consistem apenas nas inscrições, certo?

– Eu seria um tolo se não concordasse.


– Pois bem. Além das inscrições, o formato dos fragmentos também nos
aponta os locais dos crimes, ou estarei enganado?

– Nunca estiveste tão certo.

– Além disso, ao juntarmos os fragmentos, obtemos um quase cântaro, onde


só falta um fragmento. Falta o epílogo: o derradeiro assassinato. Concordas?

– De pleno acordo. Ou seja, temos aí três recados. As inscrições, os formatos


indicativos e a quantidade de crimes.

– Não achas que ainda há um último recado presente neste peculiar utensílio?

– Um quarto recado? Não consigo enxergá-lo.

– Vou perguntar de outro modo. Do que o utensílio é feito?

– Até o cego Homero saberia que é de cerâmica.

– Foste ao cerne da questão, meu comediógrafo. Basta, realmente, passar a


mão para perceber que a cerâmica é nova. De feitura recente.

– Sim, poucas ou nenhuma mão, antes de nós e o assassino, devem tê-la


tocado.
– Isso não responde tua questão? Do que trata o quarto recado?

– Posso até estar chegando lá, Sócrates. Mas confesso que – qual um Eudoxo
diante de uma pista gritante em sua evidência – ainda me encontro totalmente às
escuras.

– Acende pois o candeeiro, antes que dês com a testa na parede. Permanecer
no escuro é escolha, antes de uma condição. De onde achas que este cântaro
veio?

– Ora. Está claro!

– Falas de minha metáfora?

– Também! Está claro, Sócrates: veio do Cerâmico!

– Bravo, meu iluminado poeta. Esta é o quarto e último recado. O artefato


que permitiu ao assassino comunicar-se conosco este tempo todo tem sólidas,
moldadas e cozidas chances ser procedente do bairro onde toda a cerâmica de
Atenas é produzida. E provavelmente o que o recado quer dizer é isto.

– Que... a pista está no Cerâmico?

– Compete a ti descobrir.
– Por Zeus, Sócrates. Nem saberia por onde começar.

– Aristófanes, meu bravo vate. Se já sabes qual a direção do Cerâmico,


saberás também o que fazer.

– Sim. A menos que o crime já tenha sido cometido, e...

– Tenho a leve impressão de que o assassino vai esperar que nos antecipemos
a ele: o que descobrimos até agora leva indubitavelmente a crer que ele tem tudo
sob controle – tu é que deves antecipar-te! Anda, vai! Os ventos que tocam a
embarcação sagrada não podem ser mais rápidos do que tu. Agora não demores
um instante a mais!

– Sócrates, eu ainda...

– Aristófanes: corre!

LIVRO DÉCIMO-SÉTIMO - UMA HUMILHANTE


MADRUGADA

Onde Aristófanes e o autor destes livros dialogam, estando Aristófanes


deitado à sua cama e presa já debilitada das dores de sua moléstia. A conversa
gira sobre a decisiva ida de Aristófanes ao bairro Cerâmico, por sugestão de
Sócrates, para, na medida do possível, aproximar-se do assassino ou ao menos
tentar antecipar-se ao último crime. Aqui também tomamos conhecimento de
uma embaraçosa aventura noturna envolvendo Aristófanes e a mais ancestral
das profissões. Aliás, mais que aventura, uma lição, apesar dele negar.

– Filipos, vês aquelas caixas, sobre a arca ao lado da porta?

– Sim, meu pai.

– Afasta-as, abre a arca e tira os papiros que lá estão.

– Sim. São... os manuscritos de tuas peças.

– Não falei que queria ler os papiros, Filipos. Apenas pedi para tirá-los.

– Por certo. Aqui estão.

– Nada quero com eles. Coloca-os em qualquer lugar, olha a caixa


novamente e diz o que tem no fundo.

– Um embrulho? Em uma manta de lã?

– Pega-o. E traz até mim.


– Aqui está.

– Pronto. Sabes do que se trata?

– Confesso que não.

– Pega. Desembrulha. Olha.

– Sim. Um utensílio. Em cerâmica?

– Se te parece.

– Meu pai?

– Sim, Filipos.

– Este... é o cântaro?

– O que achas?

– Colado em partes... Cinco partes... Por Zeus, meu pai!


– A menos que sejas algum semideus, teu pai sou eu, não Zeus.

– O cântaro existe!

– Achaste em algum momento que eu inventava tudo isto?

– Não... de forma alguma, claro que não, mas pensei que ele nem mais
existisse!

– Guardo-o há décadas, pois foi a única lembrança material que restou do


acontecido. Colei os fragmentos e os guardei para mim.

– Minha mãe sabe?

– Sabe, e teve ordens expressas minhas de jamais tirá-lo dali, ou limpá-lo, ou


mostrá-lo a alguém e muito menos mencioná-lo. Só pedi que o tirasses para que
sentisses nas próprias mãos um pedaço desta história até hoje envolta em
silêncio. E em uma manta de lã.

– Todos os pedaços aqui estão, meu pai... O que quer dizer: o último crime
foi cometido. Diz, diz, ele foi solucionado também?

– Tudo a seu tempo, Filipos, tudo a seu tempo. Não te mostrei o cântaro para
antecipar trecho algum da história. Já o tocaste. Já o sentiste. Já o apreciaste. Já
estabeleceste um elo sensorial com o caso. Agora deixa que eu entre na parte
decisiva de minha narrativa. E fica tranquilo. Não pretendo morrer antes de
chegar ao fim dela. Mas volto a dizer que, se isso acontecer, já tomei as
providências para que não fiques sem tomar conhecimento dele.

– Não fales assim, meu pai. Descansa de quando em quando, e viverás ainda
por muito tempo.

– E quem disse que desejo viver por muito tempo?

– Ages como Sócrates, que fazia pouco da morte que se aproximava?

– Não: ajo como Aristófanes que, sabedor da moléstia de que é acometido,


sabe que o que o aguarda para o futuro breve são mais incômodos, mais dores,
mais agonia, mais trabalho imposto aos outros, mais humilhação. Preferir viver
num caso desses é que é a morte.

– Certo, meu pai, mas além do jogo de palavras...

– Por Hades, que isso não é um jogo de palavras, Filipos! Estou bem mais
velho do que Sócrates quando ele se foi – por que eu quereria mais?

– Pai, descansa.

– Não queres a conclusão da história?


– Sim, mas...

– Então senta e ouve, porque se queres mesmo zelar por mim, ouvir-me é o
melhor que fazes.

– Sim, mas somente se descansares. Lembra-te do que o médico disse.

– Com o médico eu já me entendi. Agora ouve.

– Certo.

– Onde eu parei?

– Sócrates instigando-te a ir até o Cerâmico, porque...

– Sim, sim, lembrei-me. Aliás, lembro-me perfeitamente de como estavam


conflitantes meus pensamentos. Deixei a prisão tarde da noite e fui diretamente
ao bairro, sem saber exatamente o que procurar. Confesso-te, Filipos, que ainda
me latejava na alma a lembrança de Xantipa, o perfume de Xantipa, as palavras
de Xantipa. Eu me recriminava por sentir que havia insistido pouco com
Sócrates para que ele solicitasse a revisão de sua sentença – mas ao mesmo
tempo não sabia se minha iniciativa se devia à busca verdadeira pela justiça ou
ao ímpeto de agradar a Xantipa, obter a admiração de Xantipa: encantar Xantipa.
Ela desprezara minhas críticas a Sócrates em As Nuvens e mirara acertadamente
em Lisístrata, sabendo exatamente onde afetar-me. Por outro lado a lembrança
de tua mãe, ainda por cima grávida, enchia-me de culpa, por ser aquela a
primeira vez em que eu traíra e ainda...
– Mesmo?

– Com uma mulher, sim.

– Entendo. Mas tomaste mesmo para ti a incumbência de convencer Sócrates


a pedir clemência ao tribunal? Tu, Aristófanes, o...

– Sim, Filipos, o notório desafeto dele, agora angustiado por não conseguir
facilitar sua libertação, por não evitar a morte que vinha célere como a flecha de
Aquiles. Se bem que o que eu preferia tomar para mim, naquele momento, era
Xantipa.

– Vejo que ela conseguiu o que queria.

– Ela não conseguiu salvar Sócrates!

– Mas conseguiu abalar-te.

– Ah, o ônus de abrir-se demais com os filhos. Os palpites sem a vivência,


ah, os palpites. Vamos, falemos do Cerâmico. Afinal, era onde eu estava naquele
momento, era onde Sócrates supunha que eu encontraria a pista para o último
crime.

– E o que viste lá?


– O de sempre, naquele horário. Prostíbulos relativamente cheios, clientes
sendo abordados na rua, artesãos e ceramistas bebendo para espairecer depois de
um dia de trabalho, arqueiros citas fazendo a ronda e fingindo nada ver, e o pior
de tudo – poetas versejando. Não, pior ainda. Poetas bêbados versejando.

– Por Dioniso, não consigo vislumbrar cena pior.

– Evidentemente cruzei com diversos artistas que já haviam trabalhado


comigo – atores, cenógrafos, pintores –, e que inclusive cansavam de acusar-me
de não mais frequentar o ponto, já que agora eu seria um autor teatral de
respeito. Quanto mais vinho, mais ressentimento: “Abandonaste-nos no meio do
caminho”; “Agora que és famoso e premiado te fazes de difícil”; “Nunca me
deste a prometida opinião sobre aquele projeto para uma peça, filho da puta”.
Em dado momento quase amaldiçoei Sócrates, vendo nesta ideia dele um chiste
para fustigar-me, por provavelmente haver identificado em mim a real natureza
do contato que eu tivera com Xantipa. Mas cada vez mais ficava evidente a
lucidez do plano: se Críton descobrira que o barco levaria apenas dois dias para
chegar, a informação já deveria ter ganho a cidade – inclusive chegado aos
ouvidos do assassino, que saberia ter apenas algumas horas para seu último
crime. Então fazia sentido que o cântaro de cerâmica trouxesse, como um todo, o
recado derradeiro e incisivo, como somatória de todos os outros recados, diretos
ou subliminares, contidos nele: vem ter comigo no Cerâmico.

– E por quanto tempo ficaste lá?

– O suficiente para ser abordado por mais gente do que o necessário.

– A noite inteira, presumo?


– Bem, quando me desvencilhei dos artistas fui ao reduto das oficinas de
cerâmica. Pouco adiantou: todas fechadas àquela hora, e nada vi que me
chamasse a atenção. Ainda tentei percorrer os arredores delas, e o temor de ser
abruptamente abordado evaporou e deu lugar à humilhação, quando a escuridão
me fez tropeçar umas duas vezes e ainda levei um galo na testa por topar com
uma viga mal colocada numa das fachadas. Se era chiste de Sócrates ou do
assassino, ambos deviam estar naquele momento às gargalhadas. De qualquer
forma, após um tempo, certifiquei-me de que ali não encontraria nada de
proveito, recompus-me e voltei ao ponto iluminado do bairro. As meretrizes, às
janelas e às portas dos estabelecimentos, brincavam com os passantes e faziam
suas propostas, ora convidando-os a entrar ora indo direto ao assunto, dizendo
preço e descrevendo o serviço em minúcias ao ouvido do cliente. Foi quando
uma delas, loura, com não mais que dezenove anos e leve sotaque estrangeiro –
provavelmente bárbaro – abordou-me. Chegou já jogando o braço por sobre meu
ombro e fazendo as mechas do cabelo caírem sobre meu peito, no que subiu um
perfume cítrico mas suave, quase distante – ah, como lembrei-me novamente de
Xantipa –, e aí ela me sussurrou : “Ele tem um recado pra ti”.

– “Ele tem um recado pra ti”...? Foi isso o que ela disse?

– Senti o chão faltar, e com isso cheguei a apoiar-me na garota, no que ela
deve ter interpretado como um assentimento: deu um leve sorriso e em seguida
entrou no estabelecimento. Um pouco perdido, fui atrás. O lugar, esfumaçado,
não chegava a ser dos mais requintados do bairro, mas tampouco era uma
espelunca. Como fazia tempo que eu não frequentava o meio, o ambiente me
pareceu novo ou, no mínimo, bastante modificado. Afrescos cretenses de
segunda mão na parede, cerâmicas de formas afrodisíacas pintadas e espalhadas
por mesas e pelo chão. Alguns colegas de profissão, já entretidos com o ofício
do estabelecimento, gritavam-me sarcásticos “Ó, Aristófanes, brinda-nos então
com tua insigne presença!”, ou “Por Dioniso, que fizemos para merecer tal
prestígio?” Eu acenava com a cabeça, dispersamente, e seguia meu caminho.
Seria ali, naquele prostíbulo, meu confronto com o criminoso? No meio de tanta
gente? Que mensagem se ocultaria naquela estratégia, que me empurrava ao
ventre da mercearia de tão antiga profissão? A tensão convertia-se em
curiosidade, que por sua vez caminhava ao lado da preocupação em não perder a
garota de vista. Após alguns confusos instantes voltei a vê-la, agora subindo uma
escada, que parecia dar para um cômodo mais ao fundo – os demais cômodos,
onde os clientes se fartavam com a mão de obra local, encontravam-se todos ao
nível do piso. Subi a escada, até que o barulho, as gargalhadas e a fumaça
fossem se distanciando, dissipando-se, a ponto de eu poder ouvir meus passos na
madeira. A garota, sem voltar-se para mim, avançou até um cômodo ao final de
um corredor estreito, e lá entrou, deixando a porta encostada. Agora se fazia
quase silêncio, e a tensão voltou a predominar. Parei, olhei para trás e cogitei se
era o caso de prosseguir. O assassino deixara claro que nos vigiava e não nos
faria mal – mas até quando? E se o último assassinato significasse uma
reviravolta em seus métodos? Agora eu ouvia meu coração batendo alto, e
considerei a hipótese de dar meia volta, quando ouvi, vinda de dentro do
cômodo, uma ordem roucamente masculina: “Anda! O que estás esperando?”,
tendo por coro alguns finos e curtos risinhos femininos. Por algum motivo
pressenti que aquilo desprovia a situação de qualquer ameaça; talvez
constrangimento, mas não um atentado à minha vida. Lentamente empurrei a
porta.

– Estás sem fôlego, meu pai. Novamente deixaste o ardor da história


contaminar tua respiração. Descansa.

– Descansa? Descansa, Filipos?!? Não queres saber o que vi lá dentro? Que


fizeste de tua curiosidade de leitor, dramaturgo e comediante?!?

– Me ardo na na ânsia de saber, mas se tu desfaleces sem fôlego ou de


cansaço, fico só na curiosidade. Respira fundo, descansa e me conta o que
aconteceu, já que te encontras vivo e portanto sei que ali não te mataram. Toma
um pouco de água. Isso.

– Pois bem. O convite. Os risinhos. Empurrei a porta, e num primeiro


momento senti um forte cheiro de cravo, não de perfume feminino, mas como
aromatizador do cômodo. Assim que entrei de todo é que deparei com a cena –
um homem gordo, inteiramente nu, deitado em um divã, tendo por indumentária
somente uma sandália de couro – o outro pé acabara de ser descalçado pela
garota loira – e resmungando “Vamos! O que esperas para tirar a outra? Anda!”,
mas num tom de voz mais dissoluto e brincalhão do que zangado. Foi então que
ele – e a garota, e outra moça, morena, que segurava uma botija de vinho, em pé,
ao lado dele – me viram. As garotas deixaram escapar um grito parecendo coro
de teatro ensaiado, enquanto o homem urrou “Quem és e o que fazes aqui?!?”
Mediante meu completo e pasmo silêncio, ele prosseguiu: “Não tenho interesse
em variar o cardápio hoje, se é o que queres! Duas bastam! Mas – espera. Não és
aquele autor teatral?” Nisso a garota loira já havia pulado e se colocado à minha
frente, com os olhos arregalados e sussurrando: “O que vieste fazer aqui, seu
desorientado?”, em seguida empurrando-me para fora. “O que eu disse que não
entendeste?”, ela cochichou alto, colérica, enquanto prosseguia me tocando para
a escada, e de lá atravessamos o salão até a porta. Eu tentava balbuciar algo que
pudesse explicar por que fui parar lá, mas a espevitada me empurrava para fora
como se eu fosse a peste, como se eu fosse a moléstia venérea que dizimaria
aquele estabelecimento. Cheguei a ouvir um ou outro conhecido rir e gritar
coisas como “Por Zeus, Aristófanes expulso de um lupanar! A que ponto nossa
comédia chegou?” Lá fora ela soltou-me centenas de flechas bárbaras com o
olhar: “Quem te mandou me seguires?!?” Ao meu balbucio – cujo teor a garota
provavelmente adivinhou – ela bateu com o dedo indicador em meu peito três ou
quatro vezes: “Eu disse que ele queria falar-te! Pronto! Já fiz a minha parte!” E
voltou ao bordel, deixando-me lá fora, tonto e mais desentendido ainda. E que
dor, Filipos.

– Descansa, pois. Depois me explica o que sucedeu, porque confesso não ter
entendido absolutamente nada.

– Não, Filipos. A dor a que eu me refiro foi a que a rapariga me infligiu,


batendo o dedo em meu peito. Chegou, sim, a doer. Ela realmente estava
bastante contrariada. Vim a saber depois que eu interrompera uma festinha
privada entre ela, uma colega e o proxeneta do local.

– Mas... e isso de ele querer falar-te? Ele quem? Imagino que não fosse o
proxeneta. Ou era?

– Sentei-me em um banco em frente ao lupanar, e só com o tato me dei conta


da razão da dor latejante: no bolso das dobras de minha túnica, na altura do
peito, repousava – e só agora eu me dava conta – um fragmento de cerâmica.

– Queres dizer...

– Sim, devagar fui entendendo. Na primeira vez em que me abordara, a


rapariga, fingindo aproximação com um meio abraço, enfiara-o em minha túnica
sem que eu percebesse. E ele, lógico, era o criminoso, que a contratara, por
saber, ou imaginar – conforme Sócrates havia predito – que eu não teria
alternativa senão dirigir-me ao Cerâmico, e então ele providenciou a entrega do
fragmento. Ou seja, ele realmente queria falar-me, e o que tinha a dizer estava
gravado na cerâmica.

– E que dizia...?

– Finda a mudança, do nada é que nada sai.

– Bem... Nas condições em que ele foi colocado em tua túnica, não vejo
muito sentido em perguntar para qual direção ele apontava. A rapariga não teria
como saber o modo certo de depositá-lo lá, já que...

– Aí é que está. Este último fragmento não era triangular. Era quadrado.
– Quadrado?

– Sim, Filipos. Como podes ver aí no cântaro colado, esse é o formato de um


único fragmento. Quadrado, bem na base da peça, que inclusive sustenta os
outros quatro fragmentos. E que, como todo bom e obediente quadrado, aponta
para todos os lados.

– Para qualquer lugar de Atenas.

– Exatamente. A impressão era que o assassino me incumbia agora de


investigar onde seria o local do quinto crime. Ele devolvia a mim o ônus de arcar
com o pouquíssimo tempo que restava.

– E com um assassinato que provavelmente já ocorrera. O que fizeste, então?

– Escolhi o pior, claro. E uma escolha humilhante, Filipos: prossegui


sentado, em frente ao lupanar, aguardando o dia amanhecer.

– Posso perguntar por quê?

– Em algum momento na manhã a garota loura sairia, para algum afazer fora
do estabelecimento, e eu precisaria saber dela quem lhe dera o pedaço de
cerâmica e a incumbência!

– E por que a escolha terá sido humilhante?


– Imaginas, Filipos. Um cidadão, expulso de uma casa de meretrício – por
uma das meretrizes –, ao invés de deixar o local, passa a madrugada sentado
num banco em frente, como se obcecado por ela ele estivesse. Como se a
aguardasse, para levá-la consigo! Tive que ocultar minha fisionomia, porque não
eram poucos os conhecidos que, às primeiras luzes do amanhecer, saíam para
suas casas, e ainda assim não tive sucesso. Ouvi vários risinhos de galhofa.

– E a garota? Conseguiste falar com ela?

– Quando o sol finalmente começou a esquentar, e eu vi que ela era uma das
únicas pessoas – entre clientes e profissionais – que não haviam saído ainda,
inquietei-me mais. Vendo aparecer uma meretriz aparentemente mais velha e
mais vivida – o que me fez pressupor um mínimo de tolerância e consideração –,
fui até ela e perguntei pela rapariga loura.

– E ela?

– Sem querer humilhou-me ainda mais. “Vê, rapaz, que isso não tem futuro.
Vai para casa, para tua mulher e teus filhos, se os tiveres, e não desperdices tuas
esperanças com as garotas daqui. És homem culto e experiente – dá para
percebê-lo –, e a última coisa com que deverias te ocupar é iludir-te com quem
fabrica ilusões.” Tentei replicar, dizer que o que eu tinha a ver com ela era coisa
rápida e sem tanta importância, e ela complementou “Sim, sempre é. Uma coisa
sem importância, e que vai crescendo, engolfando-te qual uma hidra com suas
incontáveis cabeças.” Finalizou batendo-me nos ombros: “Ouve a voz da razão,
meu bom homem”.

– Bem, meu pai, não hás de negar que recebeste uma valiosa aula de conduta
cívica e familiar nessa manhã.
– Foi neste momento, quando me afastei da mulher, que vi passar ao lado a
garota morena, a mesma que segurava a botija de vinho no cômodo do
pavimento superior, enquanto a loura descalçava o proxeneta. E nem precisei
abordá-la: ela mesmo se aproximou, discreta mas decidida, dando a entender que
ouvira minha conversa com a mulher mais velha. “Diz-me”, ela falou, “ouvi
Egídio dizer que és autor teatral?”, ela disse. “Egídio?”, falei, e ela: “O
proprietário do local. Que estava conosco ontem, no cômodo privativo”, e nisso
ela riu de leve. “Sim”, falei e já emendei: “Porém minha presença aqui não tinha
nada a ver com...” mas ela interrompeu-me: “Folde pediu-me para não te dizer,
mas se arranjares um jeito de eu ir assistir às tuas peças, posso distrair-me e
talvez esquecer que prometi a ela”. “Folde, a rapariga loura?”, eu disse, e ela
confirmou: “Sim, a germânica”. Ficamos numa breve pausa para saber quem
tomava a palavra primeiro, até que eu disse “Teremos, no próximo mês, ensaios
para minha nova peça, chamada As Mulheres na Assembleia. Basta apareceres
no Teatro de Dioniso e me procurares”. E ela, prendendo um risinho como que
demonstrando que combinávamos alguma clandestinidade amorosa ali: “Folde
saiu pelos fundos, imaginando que a esperarias; foi rumo à Tessália e disse que
não volta mais”. Disse isso e afastou-se.

– Ou seja, o assassino providenciara tudo.

– Sim, Filipos, e agora me restava não apenas outra mensagem indecifrável


mas também o tempo correndo mais depressa ainda. Faltava um dia para a
embarcação sagrada aportar no Pireu e eu sem saber o que fazer. Não poderia
dar-me o luxo de aguardar anoitecer para ir ter com Sócrates, pois seriam horas
preciosas perdidas – ou seja, caberia a mim elucidar aquilo sozinho.

– E o que fizeste?

– Ah, as dores.
– Continuavam a incomodar-te?

– Não; incomodam agora. Tinhas razão, Filipos. Falar muito e não descansar
foi má ideia. As agulhadas no abdômen voltaram. Vai, traz um pouco de vinho
para aplacar-me este incômodo.

– Tenta descansar. Se for o caso deixa essa história para outro momento.
Temos que priorizar tua saúde.

– E eu priorizo a necessidade de contar essa maldita história para alguém. A


dor de guardá-la por tantos e tantos anos também me oprime. Agora vai.

– Queres o vinho misturado à água?

– Filipos, não tires da uva o que ela tem de melhor. Cada vez que a água se
intromete a arte vinária morre um pouco. Agora anda, vai.

LIVRO DÉCIMO-OITAVO - A DERRADEIRA DAS MORTES

Onde Sócrates e Aristófanes conversam, no penúltimo dia de vida do


filósofo. Ambos trocam suas ideias finais e impressões definitivas a respeito dos
assassinatos e de sua motivação, e Aristófanes mostra-se um investigador digno
do nome, por haver acertado o local do último crime e decifrado a alegoria
presente nele. Neste livro também, para o infortúnio de quem lê e mais ainda de
quem escreve, uma ocorrência inesperada separa abruptamente o filósofo do
poeta, para resignação daquele e o rancoroso amargor deste.
– Odilardo?!? Tens certeza?

– Absoluta.

– O preceptor de Laques? Eu calculava que ele já tivesse morrido!

– Quase acertaste, Sócrates. Morreu, sim. Mas hoje cedo.

– Por Zeus. E como estava o cadáver?

– Coberto por uma argamassa de argila com calcário, completamente


enrijecido, como uma estátua.

– Argila com calcário... Fascinante. Não deixo de surpreender-me. E onde o


cadáver estava?

– Calma, Sócrates. Deixa que eu me recupere. Hoje foi o dia mais intenso de
minha vida, devo dizer.

– Imagino. Quem passa a noite em frente a um bordel e amanhece ouvindo


conselhos das vividas profissionais do sexo só tem mesmo que esperar um dia
agitado.

– Não venhas com chacota – a ideia de ir ao Cerâmico foi tua.


– E o privilégio foi teu. Diz-me: eu não estava certo?

– Sim. Eu só não sabia o quanto.

– Mas fala: onde estava Odilardo? Quem terá sido o filósofo aludido, desta
vez?

– Não te apoquentes. O filósofo eu mesmo já decifrei.

– Por Zeus! Parabéns, meu atilado investigador! E como elucidaste isso?

– Com o intelecto.

– Bem, se ficares a noite toda lambendo a ti próprio nestes autoelogios em


vez de contar-me logo o que ocorreu, a cicuta chegará mais rápido e dificilmente
poderei ajudar-te a concluir a história.

– Não pensei que fosses dado a açodamentos.

– Aristófanes, meu nobre poeta, depois de amanhã não teremos mais nossas
conferências noturnas! Eu terei partido e então com quem compartilharás estes
tão secretos e vívidos relatos criminais? Conta-me tudo o quanto antes!

– Sócrates.
– Sim?

– A esse respeito... deixa-me contar-te. Hoje, na parte da manhã, estive no


Areópago.

– Por Zeus, a história, homem, a história!

– Deixa que eu te conte. Estive no Areópago. O conselho concordou em


ouvir-te.

– Ouvir-me? O Tribunal Heliasta já me ouviu, um mês atrás!

– Não, Sócrates: ouvir teu pedido. Teu pedido de revisão da sentença. O


Areópago mostrou-se favorável a acatá-lo. Agora cabe a ti...

– Aristófanes, meu bom ator. Tão bem interpretaste teus bufões, políticos
corruptos, filósofos – até mesmo o engambelador e malandro Sócrates fizeste,
em As Nuvens –, e agora mostra-te incapaz de interpretar Aristófanes!

– O que queres dizer?

– Quero dizer que estás mentindo, meu brilhante autor!

– Como, mentindo? Eu de fato estou...


– Mentindo. Aristófanes, se realmente houvesses conseguido uma
aquiescência por parte dos velhinhos do Areópago, essa seria a primeira coisa
que me contarias, ao chegar, tão ansioso te mostras em obedecer ao que Xantipa
te determinou. Procurarias com isso convencer-me efetivamente a solicitar o
quanto antes a comutação de minha pena – e só depois entrarias nos detalhes do
crime de hoje. O fato de o teres dito após eu mencionar a sentença a cumprir-se
amanhã mostra inequivocamente que inventaste tudo agora, para tentar demover-
me de meu intento.

– Não. Quero dizer, eu...

– Pronto. Confessaste que mentiste. Agora podemos voltar à história?

– Sócrates, eu...

– Se não voltamos à história, meu dileto escritor, sinto então que terei que
pedir-te para me deixar dormir e aproveitar minha última noite de sono na terra
dos vivos. Dormir com a certeza de que se vai acordar não deixa de ser um
mimo que torna nosso espírito preguiçoso e nossa mente acomodada. Que
amanhã de manhã seja a última vez que me deixo levar por esta lassidão – e que
depois disso eu parta bravamente em direção ao desconhecido. Sempre é
saudável descartar velhos hábitos.

– Eu... eu conto a história.

– Ótimo. Que Agátocles então nos sirva água – nada de vinho – para
celebrarmos este momento único. Afinal, seria uma falta de cerimônia entornar a
cicuta em plena ressaca. Vamos, meu dileto autor: anima tua fisionomia e mata
minha curiosidade! Xantipa há de entender que falhaste não por incompetência,
mas por pura caturrice minha. Fizeste teu melhor.

– Certo, Sócrates, venceste. Eu abdico de...

– Por Zeus, Aristófanes, começa logo! Teus preâmbulos são mais longos que
os discursos de Péricles depois das batalhas! Misericórdia!

– Abdico de lutar contra a maiêutica. Contarei a história, sim – mas


utilizando o teu método, Sócrates. Vejamos agora se consigo inverter nossos
papéis e fazer-te chegar à mesma conclusão a que eu cheguei.

– Ora, por Dioniso! Um desafio! Que nobre e elegante proposta para nosso
penúltimo diálogo! Sim, invertamos os papéis, Aristófanes! Mostra-me o que, a
contragosto, apreendeste de meu modo de ensinar!

– Certo. O que dizia, pois, meu nobre desafeto Sócrates, a mensagem que
veio no último fragmento de cerâmica?

– Pelo que me disseste, Finda a mudança, do nada é que nada sai.

– Sim, Sócrates. Estás de acordo que a oração, lida em sua completude, nada
– ou muito pouco – tem a dizer?

– Sou obrigado a concordar, considerando ainda que ela constitui um


paradoxo.
– Perfeito. Concordas também, Sócrates, que se num esforço de sintaxe a
dividirmos ao meio, passaremos a ter duas frases que, em si, já podem abrigar
algum sentido?

– Posso concordar contanto que me dês um exemplo.

– Concordas que a frase Finda a mudança tem vida própria, assim como Do
nada é que nada sai também, analisadas em separado?

– Agora concordo plenamente, meu arguto Aristófanes.

– Pois bem. A primeira frase não dá a impressão de referir-se a um fato...


anterior?

– Sim, partindo do princípio da ilimitação de Anaximandro, em que nada tem


princípio ou fim, e tudo é prosseguimento.

– Deixa Anaximandro fora disto, Sócrates. Já passamos dele. Concordas que


a primeira frase, isolada, diz respeito a algo acontecido?

– Por certo.

– E que se refere objetivamente a mudança?


– Eu teria que ser um sofista dos mais obtusos para não percebê-lo.

– Ora, Sócrates, qual foi a ocorrência anterior em que a ideia mudança foi
mencionada?

– Pois bem. Se não me engano, no antepenúltimo assassinato. O de Áulito,


cujo cadáver foi encontrado às margens do Cefiso.

– E lembras-te da mensagem alusiva à morte de Áulito?

– Decerto. Era O único hábito que não muda é o de querer mudar o tempo
todo. Se não me falha a memória.

– Certo, Sócrates. Depois da ideia de mudar o tempo todo, a ideia de uma


mudança finda parece vir em sequência, concordas?

– Concordo e gosto da correlação, meu sagaz Aristófanes.

– Mudança finda parece referir-se, pois, à interrupção do que mudava – e por


interrupção podemos entender morte. Estás de acordo?

– De pleno e total acordo.

– Achas justo então, Sócrates, concordar que a mensagem do penúltimo


fragmento poderia, em sua frase inicial, aludir à morte de Áulito, e em seguida
fazer menção à última e ainda não descoberta morte?

– Justíssimo.

– E concordas que, para elucidar tal enigma, nada mais tentador do que
dirigir-me ao local da morte de Áulito, como se o assassino me chamasse ali?

– Já começo a visualizar a cena, meu preclaro Aristófanes.

– Pois visualizada ela foi por mim, Sócrates, e quase tive uma síncope ao
divisar – mal chegando ao local – o corpo, às margens do Cefiso. Mas não na
mesma margem onde o cadáver de Áulito fora encontrado.

– Não, não desistas agora da maiêutica, meu bravo investigador! Prossegue


me perguntando!

– Certo, Sócrates. Consideras razoável que, ao encontrar um corpo também


às margens do Cefiso, nos mesmos arredores mas na margem oposta, eu possa
concluir que ele não deixa de dialogar com a morte de Áulito?

– Se não concordasse eu estaria inacreditavelmente equivocado.

– E concordas, Sócrates, que só a segunda parte da mensagem, Do nada é


que nada sai, é que esteja se referindo à presente morte?
– Não apenas concordo como aprecio muito a conclusão que se assoma.

– E concordas que a maneira como o cadáver se encontrava, coberto com


aquela argamassa que o deixou com aspecto de estátua, facilitava a tarefa de
decifrar a mensagem?

– Sim, sim, concordo e aguardo que prossigas.

– Estou certo em dizer que o fato dele ter sido encontrado na margem oposta
denota oposição às condições em que o cadáver de Áulito se encontrava?

– Nunca estiveste tão certo, meu geográfico comediógrafo.

– Se o filósofo aludido na ocasião do assassinato de Áulito era – conforme tu


concluíste – Heráclito, o arauto do movimento, que pregava que tudo flui, tudo
se move, concordas que o oposto disso seria a imobilidade, a paralisia... o que é
reforçado pela argamassa seca cobrindo o último cadáver?

– Prossegue, prossegue, intimorato Aristófanes.

– Concordas, portanto, Sócrates, que pela oposição à escola de Heráclito, e


seguindo a sequência histórica, teríamos um filósofo adepto no não-movimento?
E quem foi – pergunto-te – o mais proeminente filósofo adepto da imutabilidade
da natureza?

– Parmênides! Parmênides de Eleia! O último filósofo de nossa sequência


temporal! Bravo, bravo, meu nobre Aristófanes! Bravo! Orgulho-me de ti, meu
distinto desafeto. Não satisfeito em haveres te tornado um aplicado colaborador
do funcionalismo público ateniense, te revelas agora um verdadeiro discípulo de
Sócrates! O que mais te falta?

– O opróbrio. Guarda teu sarcasmo para ti. De minha parte, só tenho mais
uma coisa a acrescentar.

– Diz.

– Entre Heráclito e Parmênides houve Pitágoras.

– O que se encontra plenamente de acordo com a sequência utilizada por


nosso criminoso: entre Áulito e este último crime houve o geométrico
assassinato de Arquídamo. Tal é o capricho cronológico de teu criminoso.

– Meu? Não é... nosso?

– Não estarei aqui depois de amanhã, meu tão brilhante Aristófanes. Deixo-
te às voltas com a descoberta da identidade dele. Mas conta: o que Eudoxo disse,
quando soube da morte?

– Que foi insensato terem chamado Arquídamo.

– Perfeito. Neste ritmo, logo ele descobre que foi má ideia os gregos
haverem invadido Troia. E o que fizeram com o corpo?
– Levaram a um galpão próximo ao gabinete dos astínomos, para retirar a
argamassa. Foi hilariante ver os arqueiros citas transportando-o disfarçadamente
em uma carroça, coberto por uma manta, como se estátua verdadeiramente ele
fosse!

– Sim, mais uma estátua para o templo da estupidez, mais uma cariátide para
o monumento à cretinice.

– Mas devo contrariá-lo, Sócrates, se achas que não iremos desvendar a


identidade do assassino.

– Por quê? A embarcação sagrada irá atrasar-se mais uma semana, um mês?

– Não. Eu pensei que esta noite, em mais um exercício de raciocínio,


pudéssemos...

– Não, meu caríssimo e obstinado companheiro de investigação. Encontro-


me esgotado, devo dizer-te. Confesso que não disponho de elementos que me
permitam chegar a qualquer conclusão sobre a identidade desse tão erudito,
laborioso e detalhista criminoso, apesar de, em duas ocasiões, uma contigo e
outra comigo, termos tido a possibilidade de vislumbrar-lhe as feições – e não o
fizemos. Ao menos satisfaço-me com o fato de que elucidamos seu modo de
agir, e com isso pudemos compreender não apenas o que o movia mas também o
que ele queria expressar. Por que ele escolheu a mim? Posso imaginar que eu
esteja, sem falsa modéstia, na linha sucessória dos filósofos aludidos por ele.
Todos estes pensadores já estão mortos, e eu o estarei amanhã: é a única coisa
que me ligará a eles. Por que ele escolheu a ti? Não posso dizer com certeza, mas
de qualquer modo ele, sem querer, nos aproximou nestes trinta dias como nunca
nada – nem ninguém – fizera antes. Quem, em Atenas, poderia imaginar que
Aristófanes e Sócrates um dia juntariam forças para decifrar o mistério por trás
de cinco crimes perpetrados pelo mesmo assassino, e ainda por cima ir tão longe
em nossas deduções quanto fomos? Nem o aedo mais descerebrado, ou o sofista
mais imaginativo, ou o comediante mais sem estribeiras conceberia tal
contingência. Cuida tu, meu irmão de pólis, de elucidar a história, já que o poder
ateniense não admite vê-la exposta à luz do dia. Quanto a mim, se a consciência
me acompanhar ao Hades no pós-vida, procurarei guardá-la de bom grado na
memória; não apenas pelo relativo sucesso que tivemos nas investigações, mas
também por haver convivido tão de perto com meu honrado desafeto.

– Encontrarás bastante desafetos por lá, Sócrates. Epicarmo. Eurípides. Os


espartanos e beócios que mataste na guerra. Os diversos sofistas que já passaram
por Atenas, incluindo os assassinados neste último mês. Terás embates verbais
suficientes para não precisares lembrar-te de mim.

– Mas eu não lembrarei de ti porque preciso, meu comediógrafo. Lembrarei


de ti porque me será agradável. Quem sabe em algumas décadas, quando me
encontrares por lá, tu é quem não te lembrarás mais de mim, tantos serão os
filósofos que ainda encontrarás pela frente para fustigares em tuas peças?

– Atenas não abriga mais filósofos, Sócrates. Imagino que em pouco tempo a
cidade terá não mais que sofistas e, no máximo, copistas de filósofos. Sem ti, as
tardes na Ágora ficarão sem razão de ser. Os debates nas estoas serão estéreis.
Os banquetes não passarão de comilanças e bebedeiras.

– Pretendes mesmo encenar a peça que escreveste sobre mim, Aristófanes?

– Evidente que pretendo. Pelo menos nela ficarás perene, preservado para a
posteridade, porque – como eu disse – se deixarmos o registro de tua lembrança
à mercê da escrita de teus seguidores, eles nada mais farão do que colocar
palavras em tua boca.
– Não creio que venham a registrar nada sobre mim, meu dedicado
Aristófanes. Volto a dizer que jamais nutri paixão pela palavra escrita. Ela não
emana o calor nem o fôlego de uma conversa oral, com todos os seus respiros,
pausas, contradições, excessos e imperfeições. É justamente por almejar a
perfeição que ela mata a espontaneidade da fala e a engessa em rabiscos frios e
inertes. Ela não transmite nada, só repassa. Se a escrita predominar, meu nome
se evaporará na atmosfera dos anos, das décadas. Em pouco tempo Sócrates será
apenas o nome de um personagem de Aristófanes – e este sim, por escrever seus
trabalhos, deverá permanecer para a posteridade.

– Como tu vês Atenas daqui para diante, sem ti?

– Mais pobre. E não por minha ausência, já que a vaidade póstuma não há de
ser um de meus inúmeros defeitos. O que posso dizer sobre Atenas, meu desde já
saudoso companheiro de serões, é que interesses pessoais e corporativos
predominarão sobre o que entendemos como busca por justiça: a cidade irá
fatalmente ver dissolver-se sua integridade cívica, para logo perder a hegemonia
na Hélade. E sem necessidade alguma de outro conflito no Peloponeso – o
descaso, a corrupção e a plutocracia cuidarão disso. Outra potência há de surgir
e, sem necessidade de guerra, fincará seus alicerces ao apropriar-se de nossa
língua, nossos costumes, nossos deuses, no fim das contas caindo em igual
armadilha: deixar prevalecer a prevaricação em detrimento da virtude, e assim
indefinidamente. Uma civilização assimilando outra, em infinitas absorções de
modos de pensar, de agir, de legislar, de cultuar seus próprios Olimpos, e
desgastando todos estes pilares ao passá-los adiante, extrapolando as terras
conhecidas, atravessando oceanos remotos, chegando a continentes
inimaginados, para reciclar toda esta sucessão de valores, conquistas e
catastróficas derrotas. Mas também posso estar equivocado, meu nobre
Aristófanes: Atenas sem mim talvez fique melhor, mais plural, mais brilhante, e
é até melhor que eu me vá, para não passar pelo vexame de ver estes meus
esforçados prognósticos pessimistas serem descumpridos, o que... por Zeus, que
barulho é esse lá fora?

– Agátocles brigando com alguém, parece. Deixa-me ir ver.


– Que não seja Críton em uma tentativa desesperada e derradeira de libertar-
me à custa de socos e pontapés com os vigilantes, ou Xantipa ameaçando o
pobre coxo com uma faca no pescoço, ou mesmo Platão surgindo do nada e
justificando seu inesperado sumiço com o fato de haver trazido cem efésios para
derrubar as paredes da cela, reabilitando-se perante o... O que é que me dizes,
Aristófanes? Voltaste pálido. Acaso vieram avisar-te que alguma peça tua irá ser
encenada por atores espartanos?

– Eudoxo está lá fora, Sócrates, com dois arqueiros citas. Vieram buscar-me.

– Como assim?

– Laques ficou cego de ódio com a morte de Odilardo, e ordenou minha


prisão imediata.

– Mandou prenderem... a ti?

– Laques não aceita que eu tenha descoberto o cadáver por dedução, e


acredita em meu envolvimento direto no crime.

– Por Zeus, não bastasse a classe dirigente ateniense manifestar total


despreparo para pensar, ela ainda nutre uma verdadeira fobia por quem pensa!
Vê, vê o que eu disse, Aristófanes, qual o destino que nos aguarda!

– Sócrates... eu não queria despedir-me desta forma.


– Adeus, meu bravo comediógrafo. Nossas conferências noturnas renderam
bem mais do que muitas preleções minhas a ouvidos moucos. Guardarei com
alegria – enquanto minha consciência durar, aqui e no além-túmulo, se além-
túmulo houver – as memórias dessas nossas noites.

– Sócrates! Tenho certeza de que um indulto de última hora virá beneficiar-


te! Asseguro que viverás muito mais tempo do que planejas!

– Não desejo tal sorte a Atenas, meu caro poeta. Também não era assim que
eu pretendia despedir-me de ti, vendo-te arrastado daqui para fora de forma tão
abjeta e arbitrária, mas qual ocorrência – em meus setenta anos de vida – já
obedeceu a alguma expectativa minha? Vai em paz, se paz conseguires obter nos
dias que se seguirão, Aristófanes. Se tua existência já despertou algum dia em
mim qualquer sentimento, ele não se compara ao imenso orgulho que nutro
agora por termos compartilhado tanto em meus últimos dias de vida. A mim foi
valioso ter te conhecido, agora de verdade.

– Sócrates! Eu...

– Até um dia, meu desafeto predileto.

– Sócrates!

– Adeus, meu amigo.

LIVRO DÉCIMO-NONO - A GARGALHADA


DE SÓCRATES
Onde Aristófanes, em seu leito de morte, narra ao autor destes livros os
últimos acontecimentos relativos a Sócrates, bem como as surpreendentes e
ríspidas providências tomadas por Laques em relação a Aristófanes. O
comediógrafo encontra forças para relatar a Filipos sua angustiante e arriscada
aventura para tentar presenciar os últimos momentos de vida de Sócrates. E o
leitor irá constatar, mais cedo ou mais tarde, que a gargalhada – a gargalhada
de Sócrates – terá sua triunfante razão de ser.

– Filipos.

– Sim, meu pai.

– Chega teu ouvido até aqui.

– Pronto.

– Esperaremos tua mãe e o médico saírem do cômodo, e aí retomarei a


narrativa para ti. Se tivermos sorte – ou se tu tiveres sorte e eu forças –,
chegamos ao final dela hoje ainda.

– Pai. Foi-te fartamente recomendado que descanses, que evites falar, para
que as dores...

– Filipos, meu filho. Tenho todas as cordas que me movem e me prendem ao


palco da vida absolutamente sob controle. O que preciso neste momento é tirar
este peso de mim: essa história que carrego no peito há tantos anos. Este pedido
não me negarás.

– Pai, isso é...

– Sim, eu sei: chantagem. Não é assim desde que começamos? Se te


chantageei enquanto eu ainda dispunha de alguma saúde, não é certo que os
deuses responderão com benevolência se eu voltar a lançar mão disso agora?

– Não sei o que responder-te.

– Excelente resposta. Agora aguarda.

– Certo, meu pai. Acabaram de sair.

– Onde estávamos?

– Falavas da última vez em que viste Sócrates.

– Não, eu não aceitava que aquela fosse a última. Desde o momento em que
fui arrastado por Eudoxo até o gabinete de Laques, eu tinha em mente fazer o
que fosse preciso – o impossível – para estar na cela de Sócrates na manhã
seguinte e testemunhar seus últimos instantes de vida. Até para ter certeza de que
ele morreria mesmo, porque eu ainda não acreditava que Atenas chegasse
mesmo a cometer aquela iniquidade.
– E como estava Laques?

– Tomado por uma ira indescritível. Quando entrei em seu gabinete, não
mais na condição de intimado mas como indiciado, percebi que as histórias que
corriam na época em que ele, púbere, era pupilo de Odilardo, mostravam-se
agora plenamente confirmadas. Apenas um ímpeto passional justificaria aquilo.
Sua boca espumava, seu olho falconídeo se mostrava injetado, as veias do
pescoço pareciam grossos riachos entrecruzados. Eudoxo mantinha-se
prudentemente entre ele e eu, e ainda assim Laques avançava, meio que tentando
contornar Eudoxo, meio que dando-se conta de que não poderia agredir um
interrogado. “Confessa logo que foste tu, e encerraremos a questão! Tanto tempo
sendo feitos de tolos, e o assassino bem abaixo de nossas fuças! Anda,
confessa!” Precisei esperar algum tempo até que ele se cansasse – porque uma
erupção daquelas exauriria qualquer um – e finalmente se sentasse ofegante.
Quando o silêncio pareceu prevalecer na sala, quebrado apenas por sua
respiração pesada, tomei a palavra: “Podes acusar-me do que bem entenderes,
Laques. Possuis o poder para determinar qualquer punição que não tenha que
passar pelo crivo testemunhal ou de defesa. Se é o que vai acontecer aqui, faz o
que lhe convier. Se, pelo contrário, existir aqui uma brecha para que o acusado
possa se manifestar, eu apreciaria lançar mão dela.” Ele pareceu morder a isca:
“Por quê, insinuas que em Atenas não se coloque em prática a pluralidade e o
exercício do julgamento? Acaso nos tomas por éforos espartanos, que condenam
à morte sem necessidade de trâmite pelos tribunais?” Aquelas frases e suas
combinações de significados configuravam tantas piadas que eu nem saberia por
onde começar a rir, se rir ali permitido me fosse. Eu apenas disse: “Sou inocente
– e não passaria de um imbecil se fosse o homicida e ainda continuasse
frequentando vossos círculos, informando-vos dos progressos dos crimes e ainda
por cima subestimando vossa arguta inteligência investigativa”. Laques respirou
profundamente, conferindo-se a calma necessária, e então disse, não sem ódio
em cada sílaba: “Odilardo era um mentor sem igual, um filósofo de imenso valor
e uma figura paterna ímpar. É abissal a revolta que me toma ao ver assassinado,
e de forma tão violenta, um homem já entrado em anos e que não fazia mal
algum a ninguém. Como conseguiste tu, com uma mensagem tão enigmática
como a que recebeste, concluir o exato local do crime? Prova-me que não tiveste
participação!” Foi minha vez de tomar um longo fôlego, aí repliquei: “Laques,
sou conhecido em toda Atenas. Fiz meu nome a partir de meu trabalho, e não
poucas vezes tive conflitos com o poder. Mas minha forma de denegrir a
atividade política sempre se deu pela sátira, exclusivamente pelo poder da
crítica, invariavelmente pela força da paródia e da anedota. Castiguei
severamente cada costume apenas fazendo o povo rir. Podes perguntar a
qualquer cidadão ateniense sobre o que ele pensa de Aristófanes, e ouvirás, com
certeza, ‘inoportuno’, ‘escandaloso’, ‘vulgar’, ‘obsceno’, ‘escatológico’,
‘ordinário’ e até – vá lá – ‘engraçado’. Mas nunca ouvirás um ateniense dizer
que me viu impor minhas ideias através da força, da violência ou da subjugação
que não fosse verbal, porque esta é minha verve e meu destino. Já vi pessoas
bem mais indignadas do que tu – neste instante – diante de minhas peças, e te
digo que jamais lancei mão de outro recurso que não a palavra para indignar
essas pessoas. E se faço uso da palavra, é porque tenho a palavra em mais alta
conta, mais alta até do que certos valores apenas apregoados pela ainda mais alta
sociedade ateniense. Pois se tenho a palavra em tal conta, é natural que com ela
eu me embata, por ela eu me reconheça e através dela eu me exercite. O que fiz,
neste caso, não passou do uso da palavra como ferramenta do pensamento:
observei, deduzi, comparei e cheguei à conclusão sobre o que o assassino queria
dizer. É nessa esfera que eu ajo, é nesse ambiente que eu produzo: a lógica, o
raciocínio, o discernimento”.

– Descansa um pouco. E depois me diz. O que Laques respondeu?

– Como eu previa, ele apenas esperou eu terminar de falar – nisso não


absorvendo praticamente nada do que eu dissera – para continuar a vociferar: “O
que fazias tantas noites com Sócrates?”, e falei: “O mesmo que já te afirmei na
outra ocasião: escrevo uma comédia sobre ele, e procurava obter dele detalhes
sobre sua vida”. “E para fazeres pilhéria do quê – dele ou da sociedade que o
condenou?” Nada respondi, nada disse, e aparentemente ele esperava por isso,
completando: “É sintomático o acusado de um crime contra Atenas juntar-se em
constantes colóquios com o suspeito de vários assassinatos. Sim, continuo
convencido de que sabes sobre os crimes muito mais do que contas e não me
desgarro da convicção de que tens uma forte ligação com os assassinatos: se não
os cometeste, foste cúmplice. Como haverá uma grande comoção amanhã com a
execução de Sócrates, já que em poucas horas a embarcação sagrada aportará na
cidade, não vou colocar-te na mesma prisão, para não chamar mais ainda a
atenção. Determino que Eudoxo te imponha a prisão domiciliar – ficarás
confinado em casa, o que a mim dará certeza de que os crimes cessarão, e a ti a
contingência necessária para que recuperes o juízo e acabes confessando teu real
envolvimento neles. Farei de tudo para que o Areópago não tenha que saber
sobre estes inomináveis assassinatos – providenciarei para que Odilardo tenha
um enterro digno e discreto, já que parentes ele não deixou –, e uma coisa posso
garantir-te: essa onda de mortes acaba aqui e agora. Eudoxo, leva Aristófanes até
sua casa, sem que ninguém precise saber, e manda montar guarda ostensiva lá,
de modo que de lá ele não saia enquanto eu não ordenar o contrário”. E dizendo
isso Laques abaixou a cabeça, parecendo afundar o pescoço entre as asas de
falcão.

– Para um pouco, meu pai. Teu esforço te castiga e até tua respiração se
altera. Não te inflames tanto. Toma um pouco de água.

– Não, não é o momento de beber água, Filipos; quero contar a história. Já


pressinto o alívio vindouro, mais por transmiti-la a ti do que pela morte que me
aguarda a tão pouca distância daqui, e que mitigará de vez minhas dores.

– Não fala assim.

– E queres que eu te fale como? A morte me será uma bênção, e na remota


hipótese de eu confirmar que a vida após ela também existe, pretendo encontrar
Sócrates no além-túmulo com a consciência tranquila, e garantir a ele que a
história foi devidamente repassada à posteridade.

– Não quero que fales assim. Quero que descanses.

– Pois eu quero que me prometas, Filipos.


– O quê?

– Chantagem pouca é tolice. Diz-me antes que concordas.

– Preciso saber o que...

– Vais negar-me este último pedido?

– Não será o último, meu pai. Eu... Sim, concordo.

– Promete que contarás esta história. Que a registrarás, como jamais o fariam
os bajuladores de Sócrates. E que farás mais: colocarás no papiro a comédia de
Sócrates conforme eu te contei, a levarás a teu público, às novas plateias, aos
novos tempos. Espalha esta história mas fora de Atenas – abandona aqui os
ressentimentos, os resquícios da mesquinharia, os entulhos da hipocrisia que
tanto reina e grassa nesta cidade, leva estas narrativas ao mundo que vieres a
conhecer, não apenas Siracusa mas além, pois é a este mundo que elas se
destinam, não à pequenez de pensamento que cada vez mais se agiganta na
outrora grandiosa Atenas. Promete-me.

– Sim, mas descansa agora, eu te imploro.

– Promete-me.

– Prometo.
– Então descansa tu a tua fala, e ouve-me, que ainda muito tenho a contar-te.
O fim da história se aproxima. Em breve saberás tudo o que queres saber.

– Sim, mas...

– Por Zeus, Filipos, aquieta-te! Onde eu estava mesmo?

– Laques ordenando tua prisão domiciliar.

– Pois bem. A única coisa que me passava pela cabeça era dar um jeito de
escapulir para ir ter com Sócrates, em seus últimos instantes. Pouco me
interessaria a resistência de seus amigos ou mesmo o confronto com Xantipa a
respeito de meu fracasso. Me interessava mais descobrir uma forma de driblar a
vigilância de Eudoxo e seus homens. O mesmo Eudoxo que naquele momento
me escoltava, com o arqueiro cita que ia à nossa frente portando uma tocha para
nos guiar na escuridão. Em dado momento Eudoxo aproximou-se mais e falou
“Por que não respondeste quando Laques perguntou-te sobre a comédia de
Sócrates?”, e eu disse “Porque eu nada teria a dizer sobre ela que interessasse a
Laques”. Depois de um longo silêncio ele tentou novamente: “E pretendes
encená-la?” “Naturalmente”, eu disse. “Assim que a situação adequada se
apresentar”. Um silêncio mais curto, e ele tornou: “Mas responde a mim, então:
pretendes com ela fazer uma crítica a Sócrates ou aos que o condenaram?” “Os
que se incomodarem com ela”, eu falei, “estes sim serão os criticados”. E
tranquei-me em feroz quietude até chegarmos em casa. Foi então que vi os
primeiros e tímidos traços do azul celeste na até então escura linha do horizonte.
O dia que todos tentávamos dissimuladamente empurrar para a frente começava
cruelmente a dar as caras – e eu ainda não conseguia acreditar que em poucas
horas Sócrates não mais estaria entre nós. Como se não bastasse, a
inconveniência e a chateação, encarnadas em Eudoxo, não davam mostras de se
calar: “Neste momento a embarcação sagrada deve estar atracando no Pireu”, ele
disse, como se aquele relato importasse à nossa caminhada. Quando chegamos
aqui em casa, ele ainda tentou: “Bem, Aristófanes, pelo menos agora, com tua
permanência compulsória em casa, deverás ter tempo para trabalhar em tuas
obras e terminar teus escritos”. Abri a porta, como se o comentário não tivesse
sido dirigido a mim, e entrei. Antes que eu a fechasse Eudoxo falou, apontando o
mesmo arqueiro cita que já fizera ronda em frente à casa, dias atrás: “Oitosyros
montará guarda aqui. Ocorre que agora, ao invés de não deixar ninguém entrar,
as ordens dele são impedir o contrário. Como Cérbero, no Hades, ele vai investir
apenas contra quem tentar sair”, e a esse comentário ele acrescentou uma tíbia
tentativa de riso. Se era um chiste, ignorei e principiei a fechar a porta, mas
Eudoxo ainda uma vez a reteve: “Aristófanes... Já terminaste de ler... minha
peça?” Pela primeira e última vez desde que eu saíra do gabinete de Laques
sujeitei-me a encará-lo, e disse: “Eudoxo, deixa que eu te dê um conselho.
Prossegue astínomo, usa os favores de que dispuseres para chegar a arconte,
termina teus dias no Areópago, mas nunca, em hipótese alguma, chegues perto
de considerar-te autor ou poeta. Passa longe de qualquer anfiteatro ou palco,
mantém distância de tudo que se referir a arte ou criação, porque tens tanta
aptidão para isso quanto minha velha cadela tem para recitar Homero ou
Hesíodo no mais puro dialeto jônico”. E bati a porta.

– E tornaram a ver-se?

– Nunca mais. Cheguei a cruzar com ele posteriormente em um ou outro


lugar público ou em algum banquete, mas convenientemente fingimos não
termos nos avistado, e assim prosseguiu, pelo passar dos anos, até sua morte.

– Bebe esta água, meu pai. Cansaste-te novamente. Descansa um pouco.

– Ainda não. Em breve não terei condições de falar-te, então ouve-me


enquanto é tempo.

– Eu só queria que...
– Cala-te. Ouve. À medida que a claridade da manhã ia se impondo, pus-me
a elaborar alguma forma de sair dali. O arqueiro cita montava guarda dando a
volta pela casa, devagar, de olho nas portas e janelas: tentar escapulir por alguma
delas seria perda de tempo. A velha Medusa, também em seus dias finais – a
pobrezinha já não devia estar entendendo mais nada daquela movimentação toda
– olhava-me desacorçoada, deitada na soleira da porta dos fundos, talvez me
perguntando por que raios dia sim dia não um arqueiro fantasiado de bárbaro
rondava nossa casa, e registrando, ainda que sem forças para poder expressar, a
falta que deveria sentir de tua mãe. “Medusa, minha velha”, acabei falando, “tu,
que foste amaldiçoada com os cabelos de serpente por Atena, numa crise de
ciúmes de Poseidon, bem que agora poderias vingar-te da deusa petrificando a
cidade inteira e a condenando à imobilidade eterna, já que do jeito que as coisas
caminham qualquer desenrolar há de mostrar-se catastrófico. Porém tua vista
embaçada e já tomada pela catarata não tem poder sequer de divisar formas, nem
gestos, nem o certo ou o errado – ou seja, estás plenamente capacitada para o
cargo de legisladora ou juíza”. Eu via o tempo passando e me apavorava,
percebendo que cada instante preso em casa me deixava mais longe de falar com
Sócrates pela última vez. Mas simultaneamente a ideia de imobilizar o
adversário me seduzia – se não petrificar, ao menos parar o arqueiro cita de
alguma forma. Se ele estacionasse à porta da casa eu poderia sair pelos fundos, e
neste momento veio-me a lembrança: meus vizinhos haviam combinado com o
cita – na outra ocasião – um pagamento à parte, para que ele fizesse a ronda por
todo o quarteirão. Fui até uma das janelas laterais e, abrindo-a, tive a sorte de
deparar com a vizinha, que cuidava de sua horta. “Ei, Alcmena”, eu disse,
“lembras-te da quantia que combinaste com Oitosyros, o arqueiro cita? Ele veio
hoje cobrar de ti e dos demais o acerto, para assim poder continuar a ronda pela
vizinhança. Se queres prosseguir contando com os destacados serviços da guarda
ateniense, avisa também os outros.” A vizinha não esperou para espalhar a
informação, e em pouco tempo pude ver, pela porta entreaberta da sala, uma
pequena aglomeração em torno de um atônito mas gradualmente satisfeito
funcionário da polícia ateniense, à medida que recebia os ilícitos óbolos das
mãos dos contribuintes. A artimanha funcionara: o arqueiro entreteve-se com
aquela súbita ocorrência pecuniária e por um momento esqueceu-se de suas
atribuições. Paralisado ele ficou, e foi aí que me esgueirei pelos fundos da casa,
pulando a modorrenta Medusa e saindo estabanado, saltando as cercas e
contornando duas ou três propriedades vizinhas para chegar o mais rápido
possível à prisão. Eu me cansava mais do que estava acostumado, minhas
entranhas se reviravam e eu sentia o prematuro e azedo gosto da certeza de que
não chegaria a tempo.
– Estás cansado agora.

– Está nos meus planos descansar. De forma definitiva, aliás. Mas não neste
momento. Ouve-me, portanto.

– Certo.

– Eu corri até a prisão, Filipos. Os pés me doíam, os pulmões pareciam


querer saltar fora, eu já imaginava o cita correndo atrás de mim – mesmo sem
olhar para trás. Quando cheguei, precisei de algum tempo para recuperar-me. Foi
recuperando o fôlego e voltando a caminhar, dirigindo-me à cela, que vi...

– Sim?

– O séquito saindo. À frente, Xantipa e os dois filhos, amparados por Críton.


Logo depois, Lísias, Fédon, Apolodoro e os demais, transportando-o em uma
maca. Um grosso cobertor o cobria. Eu via apenas sua mão, tão pálida, pendendo
por sob o tecido. Todos caminhavam em denso silêncio; eu chegava a ouvir os
pedregulhos estalando quase solenemente sob os pés deles. Se me perceberam,
não se deram o trabalho de demonstrá-lo. Passaram direto. Sentei-me em uma
pedra, abalado demais pelo cansaço para saber o que sequer sentir. O que pensar.
O que dizer. Foi quando Xantipa, já bem à frente, disse algo aos filhos – e veio
falar comigo.

– Xantipa?

– Ela chegou, com os olhos já opacos de resignação. Parecia pesadamente


conformada com tudo, como se já houvesse chorado o suficiente. Apenas se
aproximou. E falou, foi desfiando a fala com bastante calma, como se aquilo
tudo já houvesse acontecido há anos, décadas.

– O que ela disse, meu pai?

– “Ele me pediu para deixar a cela antes... Dizia não ter paciência para o
choro das mulheres e crianças. Mas Lísias contou-me: assim que Sócrates
recebeu a cuia de cicuta das trêmulas mãos de Agátocles, ambos ficaram se
olhando fixamente, e então ele... se pôs a gargalhar. Gargalhou, gargalhou,
desconcertando a todos.”

– Gargalhou... nesse momento?

– Sim, Filipos. Gargalhou com gosto, gargalhou de encher os olhos d’água. E


Xantipa prosseguiu: “Depois da inesperada e demorada gargalhada, ele aquietou-
se, recuperou o fôlego, virou-se para Lísias e sussurrou: ‘Diz a Aristófanes que
dedico isso a ele. Ele compreenderá.’”

– A ti?

– A mim, segundo Lísias contou a ela. Logo depois ele tomou a cicuta de um
só gole. Sem a menor hesitação.

– Estranho, meu pai. Platão...


– O que tem Platão?

– Platão não menciona isso no Fédon.

– E nem mencionaria, Filipos. Eu passaria à eternidade como um inimigo


público de Sócrates, não fosse a história que conto a ti. Todos eles, sem exceção,
me odiarão pelo resto de suas vidas. O único que verdadeiramente compreendeu
a sátira que fiz em As Nuvens foi o próprio Sócrates, porque só ele compactuou
com o genuíno espírito, a razão de ser da comédia.

– Descansa um pouco, meu pai. Teu fôlego já...

– Xantipa então se foi. Sem despedir-se. Apenas voltou ao séquito, que a


aguardava, e partiu. Nunca mais nos falamos. Fui então à cela, para entender o
que ocorrera.

– E o que viste?

– Ela estava vazia, Filipos. Nem os vigias, nem Agátocles, ninguém lá. O
catre de Sócrates vazio e desarrumado. O grilhão que prendia seu pé, aberto e
jogado ao chão. Sentei-me no assento que eu utilizara durante nossos serões
noturnos, e não sei quanto tempo se passou até que um guarda entrou, como se
uma vistoria ele tivesse vindo fazer. Demorei a perceber que ele havia tirado, da
bolsa presa à cintura, um pergaminho amarrado com um laço, e o estendia a
mim.

– Um pergaminho?
– E disse: “Ele pediu para entregar isso a ti”.

– Ele quem, meu pai?

– Amanhã.

– Como?

– Saberás amanhã. Vejo que tinhas razão em insistir que eu descansasse. A


intensidade do relato realmente me exauriu, Filipos, e preciso de uma pausa,
deixar o fôlego restaurar-se em meu peito. E não, pela primeira vez não utilizo
isso como isca narrativa para prender tua atenção. Realmente faltam-me forças.
Vejo em teu olhar o longínquo e não assumido receio de que eu parta entre hoje e
amanhã e te deixe no escuro quanto à história. Mas não, ainda não recebi a visita
das ninfas de Asclépio – não reza a lenda que o prenúncio da partida é uma
súbita melhora da saúde, adocicada pela fragrância das flores dos Elísios? Pois
sossegue: nunca me senti tão mal.

– Não foi isso que passou por minha cabeça, meu pai. É que...

– É que falta tão pouco? Por que não contá-lo hoje? Na verdade tudo a ser
contado já o foi, Filipos.

– Como assim, meu pai...?

– Nada mais tenho a narrar. Minha parte na história terminou.


– Mas... o pergaminho? Quem o deixou? E o assassino? E como foi que tu...

– Amanhã saberás, da forma mais simples e prática, o que há ainda para se


saber, Filipos. Será rápido como tu aprecias, tão rápido que quase não
perceberás. Agora, boa noite. Cedo ao teu clamor para que eu descanse. Como
poderia fazer diferente – cordato e obediente pai que sou?

EPÍLOGO

Onde o autor destes livros narra, de forma concisa e direta, como


Aristófanes tomou a medida mais resoluta e definitiva de sua vida, e mesmo
assim, dentro de seu espírito de maior comediógrafo que a Ática já teve,
superando até a Epicarmo e seus seguidores (registre-se que este autor fala sem
a distorção de juízo filial), sem nunca, jamais, em absoluto, dar-se o luxo de
perder a piada.

– Por Zeus, Filipos. Entras lívido como se houvesses visto um fantasma lá


fora. Aliás, pior. Como se tivesses cruzado com um político ateniense honrado.

– Bem, não ouso sequer pensar o que imaginei encontrar neste quarto, meu
pai. Acabo de chegar da rua e vejo teu médico saindo, com ar contrito e de
poucas palavras, apenas cumprimentando-me e evitando parar para conversar.
Dou com minha mãe no jardim, sentada, as mãos ao rosto e soluçando – e
imediatamente corro até aqui: qual não é meu alívio de ver-te vivo e
aparentemente bem-disposto.

– Cada um reage de uma forma, meu amado e promissor comediógrafo.

– Como dizes, meu pai?


– Senta-te primeiro.

– O que acontece? Não gosto de...

– Senta-te aqui ao lado, Filipos. Obedeci-te ontem, agora retribui. Não é


sempre que o diálogo entre pai e filho flui tão civilizadamente. Diálogo que,
espero, registrarás para as demais gerações de comediógrafos.

– Só preciso que me expliques o que acontece, meu pai.

– Antes, passa-me aqui o cálice e dá-me de beber. A sede briga com a dor
como atenienses e espartanos disputando o Peloponeso de minhas entranhas.

– Pois não. Bebe devagar. Agora diz... minha mãe esmoreceu? O médico
deixou de ter esperanças?

– Não, meu doce poeta. Foi o contrário disso.

– Continuo sem entender.

– Depois de demoradas conversações e entendimentos, eles apenas


concordaram.

– Deixa de ser críptico, meu pai. Concordaram com o quê?


– Sim, deixarei de ser críptico. Aliás, em poucos instantes, deixarei também
de ser comediógrafo, escritor, poeta, ator... Podes enumerar, se quiseres, meu
querido. E toma aqui o cálice de volta.

– Pai... o que fizeste?

– Não, não deixa tua lividez voltar, meu filho. Eu apenas apresso o que por si
só já é um processo natural e – o que foi isso, Filipos? Deixaste cair e quebrar o
cálice que estava na família de tua mãe há gerações! Minha sorte é que ela
haverá de ter contigo, e não mais comigo, para dar a bronca!

– O que fizeste?!?

– Meu amado Filipos, eu te disse que já havia me entendido com o médico


desde o início da doença. Não foi nenhuma decisão precipitada, desesperada,
impensada. Aconteceu tudo a seu tempo.

– O que fizeste, meu pai...?

– Por Zeus, Filipos. Se ficares aí repetindo “o que fizeste?”, passarei a


duvidar de teu talento para os diálogos. Sabes que nesse quesito o autor precisa
surpreender o público, mas se continuares a...

– Isso não é justo, meu pai! E no cálice que... que eu te dei.

– Não, não, jamais terias como sabê-lo, meu filho. Tranquiliza tua alma
quanto a isso. E sobre ser justo – não, mil vezes não, Filipos. Injusto é viver o
resto de meus dias encarcerado nessa dor desoladora, vergonhosa, e que se
alimenta de minha carne cada vez mais rapidamente, exigindo de vós que zelem
por mim a noite inteira e durante todo o dia limpem minha bunda, sequem minha
boca, enxuguem minhas secreções, se esfalfem enquanto eu já nem noto que
existo mais, dividido entre a angústia excruciante e a demência. Não, Filipos.
Um doente que vive somente através das vidas dos que cuidam dele, e ainda
infligindo-lhes sacrifícios áridos e estéreis, é o mais perfeito retrato da
humilhação. A comédia e a dignidade andam de mãos dadas, se ainda não
percebeste. O contrário é que é a tragédia oca, presunçosa e sem vida.

– Meu pai... Por quê? Por que desse modo?!?

– Meu belo Filipos, não ignoro que isso possa remeter a uma paródia
ordinária do que ocorreu a Sócrates, mas confia que não há nada mais distante da
verdade. Concordo apenas que a razão é a mesma: ambos, eu e ele, atestamos a
total impossibilidade de prosseguirmos diante das fatalidades. Quando encontrá-
lo no Hades, por certo serei ridicularizado: “Não bastasse me imitares – mal – no
teatro, agora também na morte?”

– Meu pai. Eu não...

– Vem cá, minha criança. Enxuga teus olhos e pega em minha mão. Mas à
frente compreenderás e me perdoarás. O tempo é um médico tão generoso que
não apenas cicatriza como também abre mão de honorários.

– Mas por que não falaste também comigo, meu pai? Nunca quiseste saber...
minha opinião?
– Eu sabia que serias terminantemente contra, meu menino. O leve pássaro
da juventude não foi criado para suportar peso algum, que dirá o ônus de
decisões de vida e morte. Apressemo-nos, agora, porque já sinto a dormência
subir-me pelas pernas. Antes que seques as lágrimas e vás chamar tua mãe, para
que dela eu me despeça, quero que me prometas mais duas coisas.

– O quê, meu pai?

– Quebra o cântaro de cerâmica. Assim que eu me for, quebra o cântaro de


cerâmica.

– Por quê, meu pai?

– Não prolongues a conversa, meu filho – não tenho mais tempo. Apenas
quebra-o e saberás o que precisas.

– Sim... E a segunda promessa, meu pai?

– Claro, claro. A segunda. Caso registres mesmo tudo o que viemos falando
até agora, promete-me que a escrita deste diálogo termina exatamente aqui,
Filipos. A leitor algum interessará o que eu disser em meio aos estertores finais,
ao choro de tua mãe, à comoção que sei que com tanto esforço tu represas ao
peito, e em meu suspiro derradeiro. Quero que registres minha fala final como
uma piada. Uma última anedota.

– Uma anedota?
– Sim, Filipos. A minha última. Queres ouvi-la?

– Conta-me, meu pai.

– Devo ser rápido. Filipos...

– Conta-me, meu pai, estou ouvindo.

– Tu sabes mesmo por que é que nós, do teatro, recorremos ao velho truque
das cordas e roldanas, para fazer os deuses descerem ao palco e ditarem
arbitrariamente a conclusão do enredo?

– Não, meu pai. Por quê?

– Por pura piedade, minha criança. Só para fazermos esses coitados e


decadentes acreditarem que eles realmente conseguem determinar o destino de
alguém.

O PAPIRO

Onde conhecemos o teor do texto constante no papiro que o autor destes


livros encontrou no interior do cântaro, ao quebrá-lo. Registre-se que o referido
papiro serviu, décadas antes, não apenas para livrar Aristófanes das suspeitas
do Arcontado como também para encerrar de vez as investigações acerca dos
homicídios, tendo o caso sido definitivamente apagado de todos os registros
oficiais do poder judiciário ateniense. O texto do papiro trazia ainda algumas
pequenas correções e ligeiras rasuras, por haver sido redigido em um curtíssimo
espaço de tempo. As mesmas obviamente foram ignoradas nesta reprodução.

Sempre sonhei ser ateniense. Um verdadeiro ateniense.

Desde minha infância, Aristófanes, nas pradarias ao norte da Macedônia, a


algumas dezenas de estádios da costa do Adriático, os homens de meu povo –
que bem mais tarde, quando desci a Atenas, descobri serem chamados por vós de
ilírios – pareciam ver em mim alguém não pertencente à tribo. Eu era inquieto,
curioso, e naquela época já ouvia falar, com assombro e admiração, da fama, da
glória e das conquistas de Atenas. Eu sonhava com a cidade, com sua arquitetura
e com cada recanto, a partir dos relatos de quem lá estivera e tecia as descrições.
Enquanto as crianças de minha idade se esmeravam no aprendizado de lutas com
espada, para futuramente fortalecer a defesa da tribo contra as eventuais
incursões de povos vizinhos, eu – aos sete anos órfão de pai trucidado e mãe
estuprada e asfixiada durante um ataque de invasores da Córcira; eu, seviciado
incontáveis vezes por estes mesmo córciros, que por motivos insondáveis
preferiram deixar-me viver – fabricava minhas próprias armas. Adagas de latão,
gládios montados com sobras de utensílios, arcos e flechas improvisados com
galhos e cordões, e contra inimigos bem mais próximos e presentes: os cachorros
das redondezas. Eu os eviscerava, sem dó, imaginando-os espartanos, coríntios
ou quaisquer outros inimigos que Atenas tivesse naqueles tempos. Quanto aos
reais adversários de minha tribo, eu queria mesmo é que eles a tomassem e a
aniquilassem, contanto que eu escapasse e fugisse para a cidade de meus sonhos.

Enquanto o tempo passava, outra característica minha parecia chamar


bastante a atenção de meus conterrâneos, Aristófanes. Sim, junto à minha
curiosidade e ao meu dom de observação, crescia minha capacidade de copiar e
imitar. Fosse por instinto de sobrevivência ou por puro devaneio, passei a
reproduzir os gestos e os trejeitos não apenas de quem me era próximo, mas
também dos estrangeiros – tanto os hostis quanto os prosaicos mercadores – que
por ali transitavam, em diversas levas. Nisso eu divertia bastante meus colegas
de idade e vizinhança. Aos poucos a combinação destes dons passou a ser
utilizada em favor de meus ímpetos de adolescência: aproximar-me à noite das
casas dos chefes da aldeia, que porventura estivessem pernoitando nos campos,
e, no escuro, adentrar os aposentos íntimos e passar-me pelos donos das casas,
imitando sua voz e obtendo favores das sonolentas mas sempre carentes e
prestativas esposas. A artimanha deu certo até a ocasião em que um destes
homens, tendo anunciado em alto e bom som que ficaria ausente da tribo por
dois ou três dias, acabou não indo e, à noite, nos aposentos do casal, apalpei
fartamente as carnes rechonchudas de sua esposa até descobrir que ela tinha um
pau enorme. Ambos acordaram, ele acendeu um candeeiro e deu comigo nu em
cima de sua cama, e ainda por cima instintivamente protegido por sua mulher –
que já havia usufruído de minhas carícias anteriormente. Ele então arrastou-me
para fora e, sacando da espada, me desafiou para uma luta, a qual, não sem certa
dificuldade – cachorros silvestres ofereciam menos resistência –, acabei
vencendo, e ainda por cima com a espada dele, tomada por mim em um dos
contragolpes da luta. Perfurei-o e estripei-o, não apenas por um obsessivo
ímpeto defensivo como também por curiosidade comparativa, já que eu até então
só eviscerara cães sem dono. A parceira daquele pobre coitado não pareceu
lamentar muito sua morte, mas assim que amanheceu os demais homens da tribo
vieram até mim com a nítida intenção de não apenas vingar a honra do colega
como também de fazer comigo pior do que eu fizera a ele. Fui salvo na última
hora pelo aleijado da aldeia, que além de me esconder ainda providenciou minha
fuga: misturou-me aos sacos de aniagem dentro uma carroça que sairia dali para
buscar mantimentos no litoral. Adeus, aldeia. Adeus, ignorância.

Alguns estádios depois, consegui fugir da carroça, e enxerguei ali a


oportunidade, Aristófanes. Vaguei atravessando as cordilheiras do Épiro – cujo
nome também só vim a saber depois de conhecer vossa geografia –, e, às vezes
vivendo de favores, às vezes roubando comida, às vezes roubando dinheiro para
obter favores e principalmente comida, acabei entrando na Etólia, para chegar a
Delfos e, posteriormente, Tebas, de onde rumei para meu destino final, desde
sempre.

Quando cheguei a Atenas, ao mesmo tempo em que encantei-me com a


Ágora, os templos e a Acrópole – tão iguais e tão diferentes do que eu sonhara –,
logo vi que eu não conseguiria integrar-me facilmente à pólis. Como estrangeiro,
compreendi que eu não teria direitos e ainda por cima jamais poderia usufruir do
que sempre almejei desde os dias de meus devaneios nas pradarias da Ilíria: a
cidadania ateniense. Ao mesmo tempo, percebi a privilegiada posição dos
arqueiros citas, que mesmo com o status de escravos recebiam salário, comida,
vestuário e moradia. Logo lancei mão de minhas habilidades de imitação e
reprodução de tiques e maneirismos, além de ostentar a arte da arqueria que eu já
praticara bastante quando jovem. Em pouco tempo eu era um cita, na fala e nos
gestos. Nem meus colegas de ofício detectaram minha farsa, e logo eu estava
servindo na força policial ateniense, realizando rondas, perseguindo ladrões e
batendo em bêbados, ou as duas coisas combinadas – era sempre divertido. Não
me sentia completamente ateniense, mas já era um começo.

Algum tempo depois conheci Sócrates.

Não, Aristófanes, isso não ocorreu em alguma de suas preleções públicas,


nem em uma discussão filosófica com algum sofista. Foi na guerra: mais
precisamente na batalha de Anfípolis, onde os arqueiros citas foram convocados
para compor a infantaria. Fiquei feliz por saber que poderia voltar a ver sangue.
Em um dia de chuva torrencial, o avanço espartano começou a impor-se e a
ameaçar-nos fortemente, e quando percebi nosso pelotão havia se dispersado.
Caí ao chão e ouvi as fortes pisadas do inimigo fazendo a lama do chão sacudir-
se, e dei-me por morto. Mas eu preferia morrer ali, servindo a Atenas, do que
perecer em paz nos insípidos campos Ilírios. Foi quando senti um braço puxar o
meu, arrancar-me daquela fôrma de lama e arrastar-me para junto de nosso
contingente. Vi que foi por muito, muito pouco que continuei vivo, e meu
salvador ainda encontrou forças para continuar me carregando por um bom
tempo, até que estivéssemos todos a salvo. Pois bem, Aristófanes: conheci ali o
oficial de infantaria Sócrates, antes de conhecer o filósofo – e desde então
registrei o enorme débito que teria com ele.

E eu não gosto de ficar em débito. Com ninguém.


De volta a Atenas, comecei a acompanhar Sócrates mais de perto. Sempre
que eu era escalado para uma ronda na Ágora, não perdia a oportunidade de
ouvi-lo debater, ensinar, provocar. Se seus discursos sobre ética, justiça e virtude
chegavam-me aos ouvidos sem uma acolhida exatamente calorosa, suas menções
aos filósofos que vieram antes dele me eram estupefacientes. Eu o ouvia e
percebia que conhecer aquela plêiade de pensadores, combiná-la, torná-la um
extrato vivo e pulsante, é que representava, verdadeiramente, o espírito do saber
de Atenas. Percebi claramente que, se ateniense eu quisesse ser, abarcar toda
aquela erudição é que seria o caminho. Eu não queria saber de ética, justiça e
virtude – eu pretendia era ter, no calabouço da memória e na ponta da língua,
tudo o que se referisse àqueles pensadores. Isso, sim, faria de mim um ateniense
legítimo. Me concederia a cultura que minha rústica formação ilíria jamais
proporcionaria. E faria deixar de existir um arqueiro cita.

Sumi. Embrenhei-me no demo de Acarnas, de onde eu contemplaria Atenas


sem Atenas me ver. Emagreci. Deixei crescer a barba. Aprimorei-me no sotaque
ático, com acento ateniense. Depois de muitos meses voltei à pólis, agora outra
pessoa, de quem tomei a vida e a identidade: o descendente de um rico agricultor
acarniano. Frequentei discussões filosóficas. Cheguei ao cúmulo de questionar
Sócrates vez por outra, na Ágora, e ele, olhando-me fixamente nos olhos em
todas estas vezes, detectando sem dificuldade a tibieza de minhas
argumentações, as rebatia com ironia paternal mas jamais agressiva. Passei então
a comparecer a escolas. Comecei a apreender as formas gregas de ver o mundo,
desde tempos imemoriais. Tentei assimilar cada visão de mundo, da matéria, do
movimento, do cosmos, do Sol e da Lua, das descomunais às minúsculas
partículas. E quanto mais eu aprendia, mais incompleto eu me via, Aristófanes;
porque eu não teria como expressar todo este saber. Eu não seria um filósofo. Eu
não seria um sofista. Eu não teria como manifestar de forma triunfal este
conhecimento. Foi quando entendi que ainda faltava mais um aprimoramento
para que eu me olhasse no espelho e enxergasse um ateniense completo. Não um
tessálio, não um espartano, mas um rebento da pólis da deusa Atena.

Me faltava a arte.
Eu já conhecia a ti, Aristófanes, mas apenas de nome, e com o
distanciamento que a obsessão por acumular o saber me impunha. Eu não via a
arte com a proximidade necessária – eu a encarava como uma excentricidade
tipicamente ateniense, mas se ateniense ela era, a ela eu também deveria dedicar-
me: foi o que concluí. Comecei então a frequentar o Cerâmico, a fazer amizade
com os artistas e a estreitar relações com os amigos de quem te conhecia, depois
com teus próprios amigos, até conseguir transitar no meio teatral e assistir não
somente às montagens mas também aos ensaios de tuas peças. Comecei a ver, rir
e deleitar-me com tuas comédias, a acompanhar-te nos festivais. E fiz mais –
passei a querer também tomar parte naquilo. Tu não te lembras, Aristófanes, mas
procurei ingressar em tua companhia, fazer parte de teu elenco. Uma vez,
quando selecionavas dezenas de candidatos a ator, fizeste um teste comigo, para
o papel de Fidípedes, em As Nuvens. Ali pus em prática minhas técnicas de
imitação, de histrionismo, de paródia, e tu, implacavelmente – ao contrário de
Sócrates –, rebateste: “Não, não! Não tens que apenas declamar, não tens que
imitar ninguém, não tens que forçar sotaques: tens que interpretar! Isso não é um
concurso de arremedos, é um palco de teatro! Eu quero atores fazendo
personagens, não personagens se passando por atores!” E ali mesmo me
dispensaste. Não, claro que não te lembras – tantos foram os candidatos que
reprovaste naquela e em tantas outras ocasiões.

Quando eu achava que nada mais havia a conhecer de Atenas, veio a


oportunidade maior, Aristófanes: Esparta fechou cerco à cidade e impôs a
Tirania dos Trinta. Ali eu vi atenienses delatando atenienses, ali eu vi atenienses
fervorosamente antiespartanos convertendo-se e colaborando sem o menor pudor
com Esparta. Ali fui conhecer mais um pouco da natureza humana, e vi que em
Atenas ela se mostrava em toda sua pujança, torpeza e vilania: Atenas não
diferia de outras cidades, apenas contava com uma arquitetura mais apurada e
mais tempo livre para os cidadãos debaterem.

E mais – mal Atenas viu-se livre dos espartanos, ela resolveu acusar, julgar e
sentenciar Sócrates. O homem a quem eu devia meu interesse por filósofos. O
filósofo a quem eu devia minha erudição. E o erudito a quem eu devia minha
vida. Ali, Aristófanes, eu vi que era finalmente hora de entrar em cena no palco
de Atenas.
Eu não iria vingar Sócrates eliminando seus acusadores. Nem tampouco
alguém do sistema judiciário ateniense, ou os responsáveis diretos pela aplicação
da pena. Eu seria mais incisivo – e vingaria Sócrates eliminando os que, no
decorrer dos anos, eu vi colaborarem insidiosamente e em conjunto para que ele
acabasse visto como inimigo de Atenas: os sofistas.

Mas eu envolveria a ti também, Aristófanes. Sim, tuas comédias ajudaram na


construção dessa imagem de Sócrates. Mas a ti eu não mataria. Eu precisaria de
ti vivo, para testemunhares e constatares – ao contrário do que me disseste uma
vez, no ensaio de tua peça – que eu sabia interpretar, sim, e a meu modo: que eu
sumiria no personagem. Comprovarias meu talento, nem que fosse à custa de
reaproximar-te de Sócrates. Eu reuniria as duas figuras que mais me marcaram
em Atenas, eu reaproximaria tu e ele, Aristófanes.

E como eu me deleitaria servindo de plateia a isso.

Matar Eurístenes foi fácil. Ele era o mais falastrão, o mais provocador e o
mais acessível de todos. Confesso que não sabia das delicadas relações dele com
o Arcontado, mas isso só veio ajudar meu plano. Matei-o numa madrugada, à
saída do lupanar. Foi muito divertido ver a aflição que a morte dele deflagrou,
nos bastidores do âmbito político. E eu tinha a certeza de que, depois que eu
enviasse a mensagem cifrada a ti, Sócrates não demoraria a elucidá-la: Tales de
Mileto era só o começo. Os outros filósofos viriam.

Já com Aristeu foi um pouco mais complicado. Precisei tocaiá-lo de


madrugada à saída do pórtico de Zeus, que ele sempre frequentava, e desta vez já
sabendo de suas enviesadas ligações com Eudoxo – assíduo frequentador do
Cerâmico que eu era –, o que conferiu mais prazer ao crime; sem falar que citar
Anaximandro foi outro deleite. Confesso que não sabia da cadela cega em tua
casa, quando deixei o fragmento de cerâmica referente a este crime. Mas por
sorte consegui fugir a tempo.
Já o método de assassinato de Áulito poderia constranger-me, se piedade eu
sentisse por ele, já que o abandonei carbonizado e ainda vivo, à beira do Cefiso.
Mas a menção a Anaxágoras pedia isso. De qualquer forma não creio que nem
os astínomos e nem mesmo tu tivestes se apiedado, também; talvez os passantes
e os moradores do local, gente simplória e sem pendor para o sarcasmo. E aqui,
Aristófanes, meu toque mais pessoal ainda: sabendo que Eudoxo houvera
colocado um guarda em tua casa, lancei mão de minha antiga vestimenta de
arqueiro cita e, mantendo uma distância precisa de ti, na Ágora, deixei o terceiro
fragmento de cerâmica no chão da Via Panatenaica. Eu queria mostrar que, a
despeito da vigilância, eu estaria sempre um passo à frente. Não adiantavam os
guardas, não adiantava a expectativa – eu sempre estaria no controle.

Obviamente senti este controle ameaçar escapulir de minhas mãos com a


convocação de Arquídamo. Eu realmente não esperava que Atenas chegasse a
esse ponto de torpeza, mas logo retomei as rédeas e vi que neste caso a menção a
Pitágoras – o próximo da lista – proporcionaria meu assassinato mais divertido:
não apenas deliciei-me ao esquartejar um sofista espartano como foi
imensamente prazeroso aproveitar-me da homérica ressaca de Sócrates para
praticamente entregar-lhe em mãos, na cela, o quarto fragmento de cerâmica,
sabendo que naquele estado ele jamais conseguiria divisar minha aparência. Eu
chegaria perto o tanto quanto precisasse, Aristófanes, sabendo que não seria
pego.

Por fim, fechar o ciclo de mortes com Odilardo não foi mais que óbvio: o
mentor de Laques, confinado em sua vila na saída para Tebas, já imobilizado
pela artrite, mas não menos passível de ser assassinado e exposto com toques
artísticos – digamos, esculturais. Minha euforia por antecipar a histeria que
acometeria Laques só não foi maior que minha diversão em acertar com a
prostituta do Cerâmico a maneira de entregar-te o último fragmento com a
mensagem, e depois providenciar a fuga dela. A germânica tinha belos traços, e
seria uma interessante esposa na longínqua Ilíria, se lá eu optasse por
permanecer e se levar uma vida medíocre estivesse em meus planos.

Creio, Aristófanes, que na ocasião em que finalmente tu e Sócrates


esclarecestes os critérios e os métodos dos assassinatos, não prestastes atenção
um pequeno detalhe, ou não destes a ele a devida importância. Sim, as vítimas
eram sofistas. Sim, os assassinatos remetiam a filósofos. Sim, a quantidade deles
estava predeterminada. Mas acredito que nenhum de vós atentou suficientemente
ao fato de que todos os mortos haviam tido, cada um a um tempo e em diferentes
graus, desavenças pessoais com Sócrates. Eu não deixaria passar este prosaico
pormenor: foi isso que temperou com o gosto da vingança – valor que Sócrates
sempre abominou –, o revide às desfeitas cometidas por cada um deles. Esta,
sim, foi a minha marca.

É isso, Aristófanes. Mas não, não terminei. Aliás, devo-te a maior das
explicações.

Imagino que já saibas do que eu falo: como, em meio a essa situação, eu


consegui provar que saberia interpretar perfeitamente um papel e contrariar
aquela tua avaliação? Como eu fiquei sabendo dos pormenores das descobertas a
que tu chegavas com Sócrates? Como eu consegui fazer-me presente e saber de
todos os teus passos? Ah, Aristófanes – as incontáveis contribuições que nossa
vida pregressa nos presta, e das quais lançamos mão quando menos esperamos.
Ao saber que Sócrates ficaria preso durante um mês antes de morrer, voltei a ser
um guerreiro cita veterano, mutilado pela guerra, disfarcei-me e atendi à
convocação para a vaga de carcereiro. O carcereiro que, pelo regimento prisional
ateniense, daria a ele a cuia de cicuta. Se a morte de Sócrates estava
irrevogavelmente determinada por Atenas, eu seria então o carrasco, o agente
praticante do ato. Usar de recursos imitativos e histriônicos para fazer-me um
coxo com um sotaque indecifrável não me foi absolutamente sacrificante,
Aristófanes: interpretar o personagem cujas mãos entregam a Sócrates o
inevitável veneno foi a maneira que encontrei de homenagear o filósofo que
salvou minha vida. Com os filósofos citados em cada crime eu nada mais fiz que
honrar Sócrates, porque as mortes seguiriam a linha do tempo até chegar a ele –
e eu sabia que ele as decifraria. De todos os grandes pensadores já mortos, ele
seria o último. Devolvi o favor que ele me fez, elevando-o ao panteão destes
grandes, tornando-o maior que eles.
E é o que farei, em poucas horas, Aristófanes. Sabendo-te detido por
Eudoxo, sei que não nos veremos mais. Quando Sócrates estiver sendo sepultado
já estarei fora de Atenas, e seguirei rumo ao Leste, atravessarei o Egeu,
procurarei outras Atenas, até descobrir o destino que os deuses, da comédia ou
da tragédia – se é que eles se dariam mesmo a este capricho ou aborrecimento –,
me reservam. Deixo-te este papiro, escrito às pressas, não sem antes encerrá-lo
com uma última resposta à pergunta que imagino estar ainda formigando
resiliente em teu cérebro: a quem eu imitei, interpretando tão convincentemente
um carcereiro manco, com uma barba falsa que ninguém nunca notou e com um
sotaque estrangeiro que ninguém conseguia identificar?

O aleijado de minha aldeia ilíria era um coxo de nascença, Aristófanes, e que


também salvou minha vida, tantos anos antes. Tratava-me como a um filho. E
sempre esteve presente em meus sonhos e nas rememorações, que muito a
contragosto até hoje faço, de minha tão distante, de minha tão nítida juventude.

Agátocles. Era assim que ele se chamava.

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