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GARGALHADA DE SÓCRATES
A Cynthia,
pela paciência, dedicação,
valiosíssimas sugestões e,
como se não bastasse,
por tudo.
Não esperem de nós nada de muito elevado; não esperem também uma
gargalhada à maneira dos megáricos. Não temos escravos que joguem sobre os
espectadores nozes tiradas de suas cestas. (...) Minha fala tem uma intenção;
sem menosprezar a sagacidade de vocês, há mais sentido em minhas palavras
que um truque banal de comédia.
Aristófanes, AS VESPAS,
trad. de Mário da Gama Kury.
ARISTÓFANES – Não é por ser o pai do autor destes livros, mas trata-se de
um dos grandes responsáveis pela expansão do teatro grego para além dos
limites de Atenas, tendo sido o maior comediógrafo de sua língua. Satirizou e
ridicularizou os costumes, os vícios, os desmandos e a corrupção de sua época, e
demonstrou que humor só tem serventia quando não tem lado.
Onde Aristófanes, já idoso, conversa com Filipos, seu filho e autor destas
linhas, ambos sentados nas arquibancadas do Anfiteatro de Dioniso, na
Acrópole de Atenas. Aristófanes comenta sobre os últimos momentos de vida de
Sócrates, antes deste falecer por ingestão de cicuta, em virtude de sua
condenação pela justiça ateniense, décadas antes. Diante da pressa de Filipos
para embarcar para Siracusa, onde mora, Aristófanes adianta que contará pela
primeira vez ao filho os perturbadores, sangrentos e até então secretos
acontecimentos passados em Atenas justamente durante os 30 dias em que
Sócrates permaneceu no cárcere. Na verdade Aristófanes pretende também
utilizar a inquietante história como pretexto para que Filipos adie
indefinidamente sua viagem. Verificamos aqui, portanto, como a filosofia, a
comédia e a tragédia combinam perfeitamente com a chantagem emocional
paterna.
– Agátocles.
– Agátocles?
– Era assim que ele se chamava. Mesmo depois de tantos anos o nome não
me sai da memória. Agátocles, o carcereiro. Aliás, nunca entendi o motivo de
haverem lhe confiado o cargo: coxeava da perna direita – é, a direita, que
deslizava pelo chão, seguindo trôpega os passos da perna boa (imagina Platão
arrastado enquanto se agarra aos bagos de Sócrates, que caminha altivo à frente:
era isso que essa perna lembrava), e sempre me perguntei o porquê de um
carcereiro coxo. Será que eles queriam deprimir ainda mais os pobres
prisioneiros, geralmente encarcerados por causa de dívidas? “Vê, te sabemos tão
incompetente para fugir que pusemos a te vigiar um carcereiro que manca de
uma perna. E tem mais: os guardas lá fora são, pela ordem, um cego, um surdo e
um paralítico, e ainda dormem o dia inteiro, e...”
– Mas dizias…
– Ah, sim. Agátocles, o carcereiro. Coxo. Pois então. E a ele coube também
trazer a cuia de cicuta. Ouviste por aí que foi uma taça? Baboseira. A Justiça de
Atenas enviara tão somente uma cuia, dessas de meia cabaça, provavelmente
porque as taças eles reservavam para outro tipo de veneno: as combinações
regadas a vinho, durante as reuniões da Eclésia, onde as leis de cobrança de
impostos eram elaboradas, e sabe Zeus como eram elaboradas, porque...
– Meu pai. Sabes que chega a hora de minha embarcação partir. Não podes ir
mais direto ao assunto?
– Ah, sim, imagino que hoje em dia as comédias não passem de agridoces
tentativas de arrancar risos educados de uma plateia cada vez mais comportada.
Aposto mil dracmas que em tuas peças tu chamas os magistrados ladrões – e que
sempre abundaram nas minhas – de, quem sabe, legisladores de moral flexível.
Os que eu chamava de estrategos filhos da puta tu deves nomear, digamos,
dirigentes sem paternidade definida. Os…
– Comédias de situação familiares?!? Por Zeus, que futuro terá isso, Filipos?
Não fazes mais que adocicar tua veia satírica. Isso é obrigar teu sarcasmo a
evaporar-se na ânsia pelo agrado à plateia. Plateia não tem que ser agradada.
Tem que ser ultrajada, desafiada, posta a pensar! Ó, Dioniso, vede a que fim tua
arte se encaminha, e...
– Coxo.
– Disseste-me que viste Sócrates várias vezes na prisão... mas estavas lá, no
momento da morte dele?
– Não. Tentei o mais que pude, mas não consegui. Porém, ao contrário de
Platão, minha ausência se deu inteiramente contra a minha vontade.
– Ao contrário de Platão? Bem, até onde sei, ele também se ausentou contra
a vontade. Uma doença, parece-me, que...
– Sim, eu sei a doença que acometeu Platão: cagaço! Desde que Meleto
apresentou a denúncia contra Sócrates, no Tribunal, Platão já tratou de
escafeder-se. Quando o cerco apertou, ele disparou, veloz como a flecha de
Aquiles! Inventou uma doença, depois uma viagem inadiável – justo quando
Sócrates já estava encarcerado – e só retornou a Atenas depois que tudo já tinha
se passado! Assim é bem fácil ser o discípulo disseminador do pensamento!
– Bem, em Siracusa cheguei a ler uma cópia do diálogo que ele escreveu
recentemente – Fédon, creio – narrando em detalhes a morte de Sócrates, onde…
– Por quê?
– Ele me detesta.
– E qual o motivo?
– Pai, sem querer apressar-te… Meu barco zarpa em uma hora, e eu já...
– Ah, claro. Sempre me esqueço que contigo as histórias sempre têm que ser
curtas. Novos tempos, ritmo novo.
– Pois bem. Voltando aonde eu estava: imaginai isso tudo, e pior ainda. Além
de não passares de um dramaturgo de merda e possuíres laços espúrios na
família, só obténs alguma projeção à sombra de um mentor superior a ti em
todos os sentidos. Aí pensas: “Por Zeus, eis-me filósofo!” Pois com a relação
quase filial que passas a ter com Sócrates, o teu mentor, apagas simbolicamente
os laços de consanguinidade com o tirano teu tio – e depois, com a morte de
Sócrates, passas a recriar, para a posteridade, tudo o que ele já disse, em diálogos
que finalmente darão vazão a teu frustrado pendor para a dramaturgia! Aliás,
pendor para a ficção, se fores levar em conta o teor destes diálogos. Tens aí
portanto Arístocles, o ateniense. Ou, se preferires, Platão.
– Por quatro razões simples. Ao contrário dele, desde jovem sou um autor
consagrado e premiado. Minhas comédias correm por toda a Ática. Segundo,
jamais precisei pendurar-me nas bolas de algum mentor ou ficar à sombra de
alguém. Terceiro, porque fustiguei Sócrates sem dó; aliás, lembro-me muito bem
de Platão na plateia de As Nuvens, claramente segurando o riso diante de meu
retrato sarcástico de Sócrates, mas publicamente ele me repreendia, anunciando
que eu pintava seu mentor com cores cruéis, injustas, e por quê?, porque eu
praticava abertamente o que nele não passava de um tíbio e inconfessado
impulso: a crítica ao método de Sócrates, com toda a licenciosidade que a sátira
naturalmente permite!
– Ah, sim. A quarta é que eu sempre fiz troça daquela cara dele de “Quem
peidou aqui?”
– Meu pai...
– Sim?
– Digo, o coxo.
– Perneta coxo?
– Desculpa. Só coxo.
– Pai...
– Certo, certo. Pois bem. O que ouvi foi que Agátocles manqueou em direção
a Sócrates, com a cuia, enquanto todos devem ter ficado apreensivos, calculando
o quanto de cicuta cairia no chão e se Sócrates acabaria precisando lamber o
fundo da cuia para tentar pegar o quase nada de veneno que restara. Mas ao fim
daquela interminável jornada coxa a cuia ainda chegou com cicuta suficiente. E
pronto.
– Pronto?
– Por Zeus, o que mais eu teria a dizer? Que Sócrates entornou todo o
conteúdo da cuia, deitou-se, foi coberto com o manto e em poucos instantes
começou a tremer, jogou o manto para o lado, ergueu-se, pôs-se de pé no catre e
passou a executar uma dança a Dioniso, tirando Críton para bailar enquanto os
demais acompanhavam remexendo as ancas, ondulando os braços no ritmo e...
Ora, Filipos, é claro que Sócrates entornou a bendita cicuta e em cinco minutos
estava mais frio que uma carpa da Tessália! O resto foi pranto, luto e
sepultamento. Foi o que eu fiquei sabendo: nada mais!
– Sim, foi o que ficaste sabendo... Mas por que não estavas lá, também? Se
viste Sócrates tantas vezes enquanto ele ficou preso, por que te ausentaste
justamente no dia em que ele bebeu o veneno? O que ocorreu, contra a tua
vontade, que não te deixou ir?
– Pois conta.
– Se me deixares.
– Como?
– Preso.
– Não.
– Como assim, preso... mas não em uma cela? Como eu nunca soube disto?
Que crime cometeste?
– Meu pai, o barco está para partir, e só agora resolves contar-me uma
história que nunca ouvi em toda a minha vida?
– Ela envolve muito, muito mais do que pensas, Filipos. Na verdade quase
ninguém sabe dela até hoje. E dos poucos que a testemunharam na época, boa
parte já morreu. E nem estou contando os cadáveres das vítimas.
– Teu barco não vem te buscar aqui, meu filho. Se não partires agora ao
Pireu, não verás Siracusa tão cedo.
– Quer dizer... que ficaremos assim? Zarpo rumo à Sicília sem conhecer a tal
história, e volto a ver-te somente no ano que vem, quando porventura já nem
lembrarás de haver-me prometido a narrativa, e isso se a história houver mesmo
acontecido?
– Posso...?
– Tu sabes. Cancelar a viagem, ficar e ouvir minha narrativa.
– Fica e descobre.
– Não posso.
– Por Zeus, não podes por quê? O mundo irá acabar se ficares algum tempo
mais? Tua megalópole irá inchar tanto em poucos dias que não irás reconhecê-la,
ao voltar? Te perderás, entre as docas, avenidas e quarteirões que não param de
crescer em Siracusa, e logo te verás reduzido a um recitador de rua, que deixará
as comédias de lado para tecer sofismas edificantes em troca de alguns dracmas
de comerciantes cretenses, egípcios, bárbaros?
– Tempo suficiente para que teu pai morra e não ouças mais nem sua voz,
suas histórias nem tampouco suas pirraças. Vai em paz, pois, e bom descanso a
teus ouvidos.
– Tu não cansas meus ouvidos, meu pai, eu jamais disse que... Como assim,
antes que teu pai morra?
– Não é história, Filipos. Nem narrativa. Talvez uma má comédia. Sabes que
minhas crescentes dores abdominais indicam não menos que algum tumor, e isso
nada tem a ver com a idade. Ou apenas com a idade. Ésquilo tinha mais ou
menos a minha quando o gavião lhe largou a tartaruga na careca, rachando na
hora o cocoruto: morreu gozando de perfeita saúde. Mesmo gozando também
dos privilégios da calvície, não ando vendo gaviões nas proximidades, então
acho que o que vai me levar são essas dores mesmo.
– Sim, mas... imaginei também que seria um certo excesso de zelo a teu
respeito, já que ela se preocupa...
– Mas é verdade. Só que desta vez ela não se excedeu. O médico confirmou,
Filipos. Não paira dúvida alguma. Não deverei testemunhar o próximo mês de
Poseidon.
– Mas e as dores, meu pai? Elas não hão de piorar, com o passar do tempo?
Elas não haverão de prostrar-te, inutilizar-te e depois...
– Ora, caberá a mim responder “Filipos, meu filho, já que tanto insistes, eu
mentiria se dissesse que não quero”.
– Por Zeus, Filipos! Não morrerei amanhã! Pode até ser que ainda esteja vivo
por ocasião de tua volta, mas tão debilitado que não saberei mais identificar teu
tão peculiar açodamento e nem poderei manifestar minha velha rabugice!
– Que seja. Mas para ouvir minha narrativa, não para prestar-me uma
comiseração inútil e constrangedora, com a máscara consternada que te cobre a
cara nesse momento. Porque se for por isso, vai. Parte agora.
– Minha consternação se deve à notícia de tua moléstia, meu pai. Nada mais.
– Histórias.
– Histórias?
– Cinco, Filipos. Ouvirás cinco histórias de mistério. Mas não se engane: são
igualmente divertidas. Ou divertidas se parecem hoje, tantos anos depois. Ou,
ainda, soam mais divertidas quando contadas por quem não representou o papel
de morto. De qualquer maneira, as cinco histórias – e as respectivas mortes
associadas a cada uma – foram elucidadas com genialidade e, forçoso é dizer,
com minha ajuda.
– Perto de nossa casa... Meu pai, por que isso nunca veio à luz? Por que em
Atenas nunca se falou nestes assassinatos? Por que só agora me contas? Quem
morreu, quantos foram os assassinos? Quais as causas, as circunstâncias? Houve
punição, os culpados pagaram pelos crimes?
– Sócrates.
– Sócrates.
– Série harmônica, já ouviste falar? A relação entre uma corda, o som que ela
produz e suas subdivisões. Se uma corda, inteira, oferece um som grave, suas
subdivisões proporcionais – um terço, um quinto – oferecerão notas cada vez
mais agudas. Foi o que Pitágoras ensinou: quanto mais subdivides a corda, mais
nuances do som que ela produz consegues captar.
– E...?
– Aplico ao que falamos aqui: quanto mais observas Sócrates sob o prisma
unívoco, consensual, monótono, mais ele se parecerá com o que dizem dele: um
falastrão inconsequente. Mas subdivida Sócrates – o pensador, o debatedor, o
provocador, o orador, o beberrão, o glutão, o peidorreiro – e tomarás
conhecimento das notas mais inesperadas e inusitadas a seu respeito. Pessoas
não têm que ser observadas. Têm que ser conhecidas em todos os quadrantes de
sua vida e principalmente na proximidade de sua morte.
– E com isso dizes que o Sócrates que tanto criticaste também era objeto de
tua admiração?
– Por Dioniso, Filipos, és autor e não sabes que a comédia só vale quando
lança suas flechas por igual, sem poupar nem privilegiar ninguém? Deus, deusa,
amigo, inimigo, eupátrida, meteco, escravo, arconte, estratego, soldado, rico,
pobre, homem, mulher; a comédia não pode levantar estandarte, não deve bater-
se por uma causa, ela precisa – deve – tão somente instigar o riso, filho meu! Ela
não tem que adular, não tem que defender nem poupar. Se desconfortável,
constrangedora e inconveniente ela não for, não tem por que ela sequer ser! Não
existe comédia a favor, Filipos. A comédia ou é contra ou é fraude. Lembra o
quanto desanquei Eurípedes em As Rãs sem jamais, jamais deixar de privar de
sua amizade verdadeira, porque sabes que aos amigos cabe irritar, aos
conhecidos fofocar e aos inimigos caluniar! O mesmo se deu entre Sócrates e eu,
porque...
– Eu sei. É muito para absorveres em tão pouco tempo. Mas terei o critério
de contar-te na ordem certa, e no que minha memória ajudar. Serei pela última
vez o corifeu de...
– Minhas chantagens?!?
– E digo mais: morrerei com a alma leve por finalmente ter podido narrar
isso a alguém, e tu terás material de sobra com o que te ocupares pelo resto de
tua ainda longa vida. Agora relaxa, aceita que só verás tua Siracusa daqui a três
meses e prepara-te para conhecer o que eu e pouquíssimos atenienses
mantivemos em segredo até hoje.
– Não foi o que... Meu pai, te levantaste por quê? Aonde vais?
– Deixa-me. Tantas e tantas vezes fui usuário, locatário e regente neste palco,
não é agora que, aos oitenta e três anos, não conseguirei subir nele sozinho.
– Que dizes, meu pai? Não te ouço bem. Vais ficar aí, de pé?
– Filipos. Assim como fui meu próprio corifeu e abusei das parábases em
tantas oportunidades, interrompendo as encenações, faço aqui a apresentação de
Sócrates, como se Sócrates eu fosse. Encenarei minha última comédia, sozinho,
tendo unicamente a ti como plateia. Porque foi este o pretexto que eu utilizei
para aproximar-me dele, naqueles trinta últimos dias de sua vida: conhecê-lo a
fundo, desenvolver uma peça sobre ele e sua estada pelo mundo, porque é como
comédia que dissecamos a tragédia, é pelo riso que purgamos a dor, é pelo
ridículo que reparamos a injustiça, a inacreditável injustiça que levou à sua
execução. E ele concordou, e forneceu-me material para que eu
transubstanciasse tudo nessa apresentação. Apresentação que nunca houve,
Filipos, porque jamais encontrei a oportunidade apropriada. Pois verás agora do
que é capaz um octogenário que ainda confia em sua memória e em seu longo
aprendizado como autor, ator e corifeu. Apenas ouve, filho. A partir de agora, e
pelos próximos minutos, farei diante de ti uma singular comédia ateniense. Se
Téspis criou o monólogo, eu o reinvento para falar de Sócrates. Serás minha
plateia, e tomarás pé do homem que não conheceste.
– Entendo.
“Boa parte de minhas últimas moedas foram para eles. Era curioso: eles
cobravam, me ensinavam as artes da oratória e da dialética, mas nada que eu não
soubesse ou pelo menos já não tivesse intuído. Frases feitas de
autoaconselhamento, truques retóricos, fórmulas de motivação, sempre com o
indiscutível gosto de artimanhas já utilizadas, gastas e requentadas, que
poderiam servir para qualquer um: ‘Se tu queres, tu consegues.’ ‘Segue teus
sonhos.’ ‘Querer é poder.’ Acreditas, Filipos, que uma vez Querofonte e eu
procuramos o mesmo sofista, em ocasiões diferentes, fizemos perguntas distintas
e o danado nos deu a mesmíssima resposta, utilizando os mesmos termos e as
mesmas preleções didáticas? Não tivemos dúvida: voltamos lá e exigimos o
reembolso do pagamento, ou pelo menos metade. Pois como bom sofista, ele
alegou que a mesma resposta a ambos tinha o propósito de fazer com que
buscássemos com afinco nossa vocação, para descobrir a qual de nós a
recomendação realmente havia servido – e de qualquer modo o outro também
sairia beneficiado, porque o que vale é a busca, não a descoberta. E ainda nos
cobrou por esta terceira resposta! Sabes o que fizemos? Claro, pagamos. Éramos
jovens e burros.
“Sim, Filipos – eu, qual uma parteira, não poderia gerar ideias, já que eu
sabia que nada sabia. Mas poderia ajudar os outros no trabalho de parto dessas
ideias, induzindo-os a dar à luz pensamentos que, sem uma dedicada assistência,
jamais viriam ao mundo. Fazendo as perguntas certas. Abordando os temas
pertinentes. Questionando – com ironia, se necessário fosse – certezas pétreas.
Até que a verdade finalmente brotasse, pela boca do meu interlocutor. Ah,
Filipos, naquele momento eu senti que meus pés mal tocavam o chão, e quando
atravessei as muralhas de Atenas a leveza do alívio me embalava. Eu faria nesta
cidade o contrário dos sofistas: obrigaria as pessoas a pensar. E não cobraria
nada por isso, óbvio; até porque, se o fizesse, teria que repartir com Fainarete os
lucros, por justiça poética.
“– De certa forma.
“– O que dizes?
“– E quem é justo?
“– Aquele que pratica a justiça.
“– Por certo.
“– Com certeza.
“– Porque me deves duas moedas de prata, então não é possível que vivas
com a consciência tranquila.
“Bem, Filipos, eu ainda teria muito o que praticar. Mas não tardou para que,
em constantes conversas na Ágora, eu começasse a aperfeiçoar o método com os
mais diversos tipos de interlocutores. Comecei com os vendedores da feira, no
sentido de fazê-los ver que os preços que cobravam não eram justos. Ora, se eu
precisava pechinchar para comprar víveres e outros artigos, nada mais justo do
que isso. Mas logo o boca-a-boca se encarregou de fazer minha minúscula fama
extrapolar as barracas da feira e a não só se espalhar entre os compradores como
a se estender aos demais frequentadores da Ágora. Nunca tantos se
surpreenderam tanto com detalhes sobre si mesmos que até então desconheciam
completamente. Nunca tantos experimentaram com tal intensidade o sabor da
manifestação de propensões ocultas. Nunca tantos eupátridas ameaçaram me
bater (“Que história é essa de meu filho mais velho chegar em casa dizendo que
quer abandonar o ofício de domar cavalos e especializar-se em penteados
femininos?”), nunca tantos sofistas me coagiram – não sem violência – a
abandonar meu exercício maiêutico (“Como assim, ensinar sem cobrar? Acaso
queres nos falir?”).
“Pelo sim, pelo não, achei mais prudente ingressar na escola que Anaxágoras
havia acabado de fundar em Atenas, pensando em ao menos adquirir a bagagem
erudita suficiente para retrucar as artimanhas sofísticas. Tu sabes, Filipos, que
citar autores, mencionar disciplinas e reverberar conteúdo docente, com dados e
demonstrações, impressionam mais que convencem, e desta forma eu alicerçaria
minhas argumentações diante destes mercenários do conhecimento. Meu pai, ao
saber, assegurou a remessa das mensalidades da escola – mais uma forma de
manter-me a uma segura distância da Alopécia.
“Confesso que as preocupações de Anaxágoras com a constituição da
matéria e a composição dos corpos celestes, apesar de fascinantes, iam um pouco
contra minha natural tendência a fixar-me no comportamento humano. Sim,
claro, estudamos os grandes filósofos até então – Tales, Pitágoras, Parmênides,
Demócrito, o próprio Anaxágoras, óbvio –, e vejo-me obrigado a dizer que, no
decorrer do curso, o que eu aprendia sobre ar, água, terra, fogo, abóbada celeste,
movimento, devir, permanência e impermanência, metempsicose, átomos e
homeomerias deixava claro que, por mais elevados e deslumbrantes que fossem
estes conceitos, meu interesse prosseguiria com o pé no chão, no homem que
pisa esse chão, e que é composto de carne, sangue e ossos, e age de acordo com
os ditames de sua alma e sua consciência. Por outro lado, Filipos, eu seria um
hipócrita se afirmasse que ser versado nas disciplinas ensinadas por Anaxágoras
não contribuiu para consolidar meu sucesso na Ágora, principalmente entre os
jovens robustos, saudáveis e viçosos.
“Aliás, guerra é uma merda, Filipos, mas a guerra, assim como a merda,
parece precisar ver a luz do dia para só assim esgotar os conflitos internos que a
forjaram. Por mais que as batalhas do Peloponeso se diversificassem e
envolvessem outras regiões e nações, o conflito sempre – sempre – foi entre
Esparta e Atenas: duas comadres vizinhas que não se suportam, vivem
envenenando a vizinhança com mexericos e se culpam o tempo todo pelo mau
cheiro das fossas que ambas têm no quintal. O pior é que o marido de uma vive
pulando a cerca para dormir com a outra há tanto tempo que ninguém se lembra
mais com quem ele é casado.
“Cinco anos mais tarde, eis-me novamente no campo de luta, eis-me mais
uma vez numa batalha do Peloponeso, eis-me de novo salvando vidas de
improviso – e uma vez mais assustando cavalos. Desta vez foi na batalha de
Délio, onde vi Xenofonte cair do cavalo à minha frente. Melhor dizendo, o
cavalo caiu sobre ele, e impossibilitou sua fuga dos furiosos beócios que
chegavam cada vez mais perto. À minha aproximação o cavalo subitamente
ergueu-se (nunca descobri o que diabos em mim fazia os equinos se
sobressaltarem; ou minha feiura física, àquela altura já bem definida, ou meus
odores corporais, já que eu não era um adepto radical do protocolo rotineiro e
sem imaginação dos banhos diários – e sabemos que os cavalos possuem um dos
olfatos mais apurados do mundo animal). Sei que carreguei Xenofonte nos
ombros pelo campo de batalha, desviando-me das flechas, das ferozes investidas
de gládios e do opressor tropel dos cavalos que, óbvio, abriam passagem à minha
fuga. Alguma vantagem eu tinha que obter nisso.
“O que posso dizer desse período, Filipos, é que as três batalhas mostraram e
o conflito inteiro comprovou que guerras são tão úteis a uma nação quanto
torresmo na boca de um banguela: só provocam dor, lágrimas e ranger de
maxilares, além de verter mais sangue que o necessário. Ou, se preferires uma
figura mais sofisticada e pertinente, é como um jogo de tabuleiro onde, na
iminência de se poder fazer a última e complexa jogada que irá desestabilizar de
vez o adversário, o jogador prefere pegar o tabuleiro e quebrar na cabeça dele.
Mas, de qualquer modo, depois de minha altiva réplica aos estrategos, saí do
inquérito de cabeça erguida. A partir dali eu era Sócrates, o ateniense. Seja o que
for que isso significasse.
“E era disso que eu precisava para me impor não apenas na praça aberta de
Atenas, mas também nos recintos fechados, nas cortes, entre os eupátridas. Meu
exercício maiêutico, salpicado com a ironia que punha por terra as convicções
mais aferradas de qualquer vivente, e ornado eventualmente pelos
conhecimentos das ciências naturais adquiridos com Anaxágoras – para fazer-me
respeitado pelos adversários (e, reforço, admirado pelos belos e bronzeados
efebos da Ágora) – volta e meia resultava na constatação de que, se eu
continuava a nada saber, era justamente isso que levaria os outros a saberem e
conhecerem por si próprios. Porém, Filipos, no momento em que imaginei que
estivesse imune à maledicência dos sofistas e demais contendores, toda essa
autoconfiança foi por terra.
“Acho que o que me atraiu mesmo em Xantipa foi sua capacidade de não se
deixar arrebatar facilmente pelo que eu considerava meu poder de sedução
verbal. Da vez em que lhe expliquei sobre a maiêutica, ela foi incisiva: ‘Já te
ocorreu que alguns de seus discípulos tendem a ser tão estúpidos que, ao invés
de esperar que eles venham a parir ideias, seria melhor induzi-los ao aborto?’ E,
ao contrário das apáticas esposas atenienses, ela nunca deixou de expressar
abertamente seus ciúmes de minhas amizades: ‘Se, em meio a nossos folguedos
noturnos de esposo e esposa e no calor da hora me chamares de Alcibíades, fica
sabendo que não só vou expulsar teu membro da minha intimidade como ainda
vou presenteá-lo com tal joelhada que chorarás desesperado de saudades da
guerra do Peloponeso’.
“Mas as coisas iam andando, Filipos. O problema é que a trilha que elas
seguiam fatalmente as levaria rumo à areia movediça que a história de Atenas
sempre foi. Não, ainda não te divertirei falando de minha morte (minha
rocambolesca morte). Sei que Aristófanes já deve estar padecendo dos efeitos da
fadiga em representar-me, e ainda de pé, mas devo alongar-me mais um pouco e
falar da nova investida de Esparta, que resultou no governo dos Trinta Tiranos. É
necessário. É imperativo, para entenderes o que levou aquela cuia de cicuta a
meus lábios, tantos anos atrás. Sem falar que me divirto sobretudo em cansar
ainda mais teu pai, mas não digridamos.
“Sim, a guerra do Peloponeso foi se fechando cada vez mais até chegar ao
confronto direto: a militarista, utilitária e oligárquica Esparta finalmente cara a
cara com a democrática, filosófica e verborrágica Atenas. A comadre rabugenta e
a comadre fofoqueira, agora olho no olho, sem precisar mais envenenar as
redondezas ou influenciar os vizinhos – e a rabugenta venceu. Como deves ter
aprendido na escola, Filipos, não satisfeitos em meter o aríete em nossas
muralhas e tomar posse da cidade, os espartanos ainda impuseram um governo
oligárquico, selecionando trinta aristocratas atenienses e os colocando no
governo, a soldo de Esparta. Podes imaginar: atenienses vigiando, censurando,
policiando e prendendo... atenienses. Quer ideia mais genial? Um golpe militar
com cara de oligarquia civil, onde a população tinha todos os direitos
assegurados: o direito a obedecer, a se calar, a ir à cadeia e, dependendo do grau
de subversão, à execução sumária. Nas ruas tudo tinha que ser conversado
abaixo do tom, acertado nas entrelinhas, combinado nas sombras, ajustado nas
nuances da sutileza, e mesmo assim imperava o medo de estar sendo ouvido,
observado e denunciado. Quem era espião, quem não era? Quem garantia que o
que era sussurrado neste beco não chegaria em alto e bom som aos ouvidos dos
Trinta Tiranos? Os atenienses nunca viram tão desperto e afiado seu dom de
desconfiança. Tanto que as habituais suspeitas de Xantipa, sempre que eu
chegava em casa muito tarde, me soavam agora como choramingos de bebê.
“Mas não foi a tirania dos Trinta que me matou. Foi a própria democracia
ateniense.
“Já viste, Filipos, a multidão celebrando a Leneia? Percebeste que ali todos
se misturam à festividade? Percebes o clima de confraternização? Notas, além de
eupátridas, a presença de metecos e até de escravos no desfile, na dança e na
beberagem, que sempre vai terminar no templo de Dioniso? Pois eu te afirmo,
Filipos, que isso tudo é pinto perto da festa que Atenas viu quando Trasíbulo e
seu exército finalmente derrubaram o governo dos Trinta. A cidade toda foi
tomada pela euforia, e não apenas a Ágora. Atenienses de todas as idades, todas
as esferas, todas as classes e todos os sexos, num festejo inédito. Bastou pouco
menos de um ano de tirania para que o povo ateniense sentisse na carne o quanto
doía a ausência da autodeterminação, não apenas nos protocolos cívicos do
poder mas também nos detalhes mais comezinhos do cotidiano. Reforço-te,
Filipos: a cidade nunca viu uma festa como aquela. Eu mesmo, num inspirado
arroubo furtado de Hesíodo, a chamei Primavera de Atenas.
“Mas a Atenas que emergiu da ressaca daquela festa era outra. A alegre e
falastrona comadre, traumatizada pela demorada sova tomada da vizinha, agora
não se abria a brincadeiras. Quem não levasse a sério a índole ateniense não era
mais bem-vindo. Quem não enaltecesse as glórias passadas da cidade a céu
aberto era considerado traidor. O cidadão que não tomasse parte ativa nos
debates da Eclésia, da Bulé ou dos tribunais era considerado pária. Valia tudo,
tudo para sobrepujar as amargas lembranças da tirânica ocupação espartana e
para celebrar o espírito democrático de Atenas. Menos ser crítico a Atenas.
“Claro que não ajudou em nada eu ter, entre meus discípulos, o adolescente,
belo e loiro filho de Anito. Logo Anito, um próspero eupátrida, o mais rico
curtidor de peles da cidade. O garoto em muito me lembrava Alcibíades – àquela
altura já caído em desgraça e banido de Atenas –, sendo na verdade até mais
bonito, viril e fogoso, embora estúpido como uma porta de coudelaria. De
qualquer modo se esforçava para aprender e sorvia minhas palavras com a
determinação de um cabrito esfomeado. O problema é que ele havia abandonado
a família para acompanhar o cortejo socrático, o que alimentou minha fama de
corruptor de menores. Não fosse ele filho de quem era, talvez eu até o tivesse
adotado e convencido Xantipa a abrigá-lo em nossa casa. O único imprevisto
seria Xantipa expulsar-me e ficar com ele. Mas me perco.
“Estava tudo tão óbvio que depois de ler o documento dei de ombros e fui
para casa.
“Xantipa quase teve outro filho além dos três que já trouxéramos ao mundo.
Desesperada, aos prantos, exigiu que eu buscasse ajuda. Pensei em alegar que
Zeus estaria atribulado na busca de alguma mortal para coisas mais interessantes
do que ficar deificando-se ociosamente, e a própria Atena teria mais o que fazer
do que auxiliar um acusado de desrespeitar os deuses de sua própria cidade – ela
inclusa. Mas não achei prudente humor àquela hora. Apenas perguntei a quem
Xantipa estaria se referindo, e ela nem precisou pensar: ‘Lísias! Ele é o melhor
orador entre teus amigos; pode comover os jurados, relembrar teus feitos como
soldado, teu valor como pai de família (aqui ela hesitou na veemência, contudo
sem deixar a convicção de lado) e tua condição de ancião que já não sabe muito
bem o que fala!’ (já aqui a veemência foi marcante)
“Foi então que resolvi de uma vez por todas, jovem Filipos. Mesmo
reconhecendo a habilidade de Lísias, concluí que recorrer à pura e simples
oratória seria igualar-me em recursos aos sofistas. Seria abrir mão de minha
natural ironia, de meu método maiêutico, de meu compromisso com a justiça e a
verdade. Então, se urgia rebater as acusações, se necessário fosse refutar uma a
uma aquelas denúncias infundadas e caluniosas, que isso se desse forma mais
autêntica, genuína e verdadeira possível: eu me defenderia no tribunal.
“No dia marcado lá estava eu, no plenário do Tribunal dos Heliastas, diante
dos 500 jurados vindos de todas as demos de Atenas, tendo à frente o tesmóteta
presidindo a sessão e, ao lado e atrás, a multidão que se espremia para assistir. O
público era maior do que eu imaginava, fosse para torcer por mim ou comemorar
a acusação. Meus acusadores viam ali que eu podia introduzir a crença de deuses
de todas as variedades e gostos em Atenas, menos a deidade da indiferença.
“ ‘Nobres cidadãos atenienses. Sabeis que quando eu estava vindo para cá,
agora, algo curioso aconteceu? Sim, pensei em como seria isso de desrespeitar os
deuses de Atenas. Não deixa de ser instigante: imagino alguém chegando até
Zeus que, ocupado em fantasiar-se de nuvem para fornicar com Io, disfarçar-se
de touro para seduzir Europa e virar cisne para perscrutar a vagina de Leda, tira
uns rápidos instantes para atender o mortal: ‘Que queres?’, e o pobre: ‘Vim me
desculpar por desrespeitar-vos. ‘Desrespeitar-me como?’, brada o deus, e o
mortal: ‘É que eu faço sexo sem muita imaginação, à maneira convencional –
entre duas pessoas –, deixando de seguir vossos notáveis e diversificados
exemplos. Serei perdoado por tal afronta?’ O deus coça a cabeça e diz ‘Olha, se
tens um rebanho de cabras em teu quintal, escolhe a mais simpática, leva-a para
detrás da primeira oliveira frondosa que encontrares e boa sorte. Só cuida de
fazê-la ficar em silêncio. A cabra, não a oliveira. E agora deixa-me’, e então
Zeus parte para transformar seu esperma em chuva de ouro e fecundar Dânae.
Donde concluímos, ó atenienses, que nada é mais desrespeitoso a um deus do
que fazer pouco das lições que ele nos passa com sua história de vida! Aliás, a
seguir esse raciocínio, o único deus do Olimpo a quem eu presto os devidos
respeitos é Hefesto, já que, dadas as minhas feições inteiramente desprovidas de
beleza, sigo o exemplo do mais feio dos filhos de Zeus e Hera! Mas não sei em
que me adiantaria ser respeitoso com Hefesto. Ele é padroeiro dos ferreiros,
artesãos e escultores, e evito lembrar-me da última vez em que tentei esculpir em
mármore. Meu pai, que levou um talho na testa por causa disso, evitava mais
ainda. Falando em meu pai, no dia em que ele viu que eu não teria o menor
talento para extrair estátuas do mármore e aprimorar-me nas artes da escultura,
expressou assim sua decepção: ‘Por Zeus, o desgosto me toma por completo:
crio um filho que não consegue ser artista! Só falta tornar-se um negociante bem
sucedido e terminar de matar-me de vergonha!’ De qualquer modo, meus
caríssimos atenienses, matar as pessoas de vergonha é uma arte, que carece ser
praticada, aprimorada, refinada. Comecei experimentando com meus pais, no
que fui extremamente bem-sucedido. Já vendo em mim mesmo um
empreendedor, parti para Atenas, onde deixei um rastro de mortos de vergonha
em meu caminho, e todos amigos! Sentia-me cada vez mais confiante em meu
dom, o que pôde ser testado quando participei da guerra. Quem eu não matava
pela espada nas hostes adversárias eu matava de vergonha entre as minhas
próprias. Centenas de amigos preferiam jogar-se debaixo das patas da cavalaria
inimiga a ter que ouvir minhas constrangedoras e inúteis preleções filosóficas, e
ainda proferindo suas últimas palavras ao adversário, enquanto apontavam para
mim: ‘Juro que não o conheço!’. Finalmente, já na maturidade, onde não havia
mais por onde eu burilar mais ainda minha arte, mudei de especialidade: casei-
me com Xantipa, e passei agora a matar de raiva. A ela, principalmente. Mas
tudo bem – devo a Xantipa a descoberta de minha real aptidão, num dia em que
ela estava particularmente inspirada: ‘Por Hera, tu não és um maldito falador, ou
um discursador vagabundo, ou mesmo um inútil orador. És pior que tudo isso: és
um filósofo!’. Pois bem. Aqui e agora, por exemplo, corro o risco de mais uma
vez mudar a especialidade de meu dom, e matar-vos a todos –de tédio, com meu
discurso. Se entre os mortos estiver o carrasco que me ministrará a execução,
melhor ainda. Mas, já que falo em execução, vamos nos ater à segunda acusação
que me trouxe diante de vós, além da de desrespeitar os deuses de Atenas:
incentivar o culto a novos deuses. Não deixa de ser interessante, porque se
formos pensar bem, os velhos deuses do panteão ateniense já representam bem a
variedade de características de atividades humanas e da natureza: o fogo, os
trovões, a música, o amor, a adivinhação, a guerra, o comércio, as navegações, a
morte... Se eu fosse trazer novos deuses, as atividades teriam que ser muito,
muito mais específicas. Por exemplo, o deus dos trocadilhos infames, que seria
padroeiro dos comediógrafos. O deus dos trocos passados a menos, padroeiro
dos feirantes. O deus da conversa fiada, padroeiro dos sofistas. O deus do
formigamento nos pés, que apadrinharia quem fica ouvindo intermináveis
discursos sem poder se sentar. Ou o deus das anedotas sem graça, protetor dos
acusados de trazer novos deuses a Atenas e que são obrigados a defender-se no
tribunal. Porque não vejo que outras categorias de deuses eu poderia trazer à
Ágora, caríssimos atenienses. E vede que eu já trouxe muita coisa a ela. Trouxe,
por exemplo, meu pobre método maiêutico, que aprendi com minha mãe
parteira. Não, não me entendam mal. O método não consiste em fazer deitar o
interlocutor, abrir-lhe as pernas e manusear sua genitália – e não que alguns
deles não preferissem assim. Mas o que a maiêutica tem em comum com a
filosofia é fazer com que o agente passivo, recebendo os estímulos adequados,
traga à luz seus próprios conceitos. Aliás, os sofistas fazem quase igual: o que
eles fazem vir à luz são as moedas do bolso dos ouvintes, a quem eles ensinam
como se dar bem na vida. E nesse ponto dou o braço a torcer aos sofistas, porque
eles entendem muito bem do que falam: o que mais é se dar bem na vida senão
falar um punhado de obviedades e ainda ser pago por isso? Pois bem, já minha
relação com o dinheiro é nada ortodoxa: além de não cobrar pelo que ensino
ainda devo uma fortuna aos amigos! A Querofonte, por exemplo, amigo dos
tempos de juventude, devo duas moedas de prata que nunca paguei. Talvez seja
pelo fato de que a quantia se refere a uma consulta que ele fez ao oráculo de
Delfos, a respeito de quem seria o homem mais sábio de Atenas. O oráculo,
revelando um talento natural para a comédia, disse que esse homem seria
Sócrates! Vede bem: como posso pagar por um vaticínio tão abestalhado desses?
E digo mais: a inscrição na porta do templo de Delfos diz ‘Conhece-te a ti
mesmo’. Pois é por conhecer muito bem a mim mesmo que apresento este dito
desleixo nos costumes. A escassez de banho, por exemplo. Como vou lavar e
limpar alguém tão pouco merecedor de consideração como eu? Como vou vestir
roupas limpas e calçar sandálias em uma pessoa tão vil quanto a que encarno?
Como tratar com higiene e asseio alguém que, além de não reconhecer os deuses
de Atenas, ainda propõe o culto de novos deuses? Seria um despropósito! Aliás,
falando nisso, lembro-me de Meleto adicionar a estas duas acusações uma
terceira – a de corromper a juventude. Pois bem, nobres atenienses. Eu sou
também um corruptor de jovens. Sim, devo estar ensinando coisas abomináveis a
eles, como, por exemplo, não tomar banho. Ou como não cortar as unhas do pé.
Ou, ainda, como não se proteger de uma infestação de piolhos. Vou além: devo
estar ministrando aos impúberes aulas de como não se preocupar absolutamente
com dinheiro, de como depender por completo dos outros e ganhar tudo na mão.
Ora, meus caros ouvintes, me respondam com sinceridade: e desde quando é
preciso ensinar isso aos jovens?!? Eles já nascem sabendo! É natural, é da idade,
é o destino. Eu estaria corrompendo cada um desses jovens, sim, se os ensinasse
a julgar como nossos juízes, agir como nossos arcontes e roubar como nossos
estrategos! Mas em momento algum agi contra sua natureza. Pelo contrário,
caros atenienses: essa juventude é que me corrompeu! Ao acreditar nas estultices
que eu digo. Ao seguir meu pensamento trôpego. Ao se mostrar entusiasta de
meu desnorteado método. Ao deixar a família e ingressar em minhas famélicas
fileiras. O que me levou a pensar: ‘Se até os jovens, que não têm olhos nem
ouvidos senão para si próprios, se mostram atraídos por meus ensinamentos
hereges e subversivos, os adultos hão de se deixar seduzir também!’ Percebem,
nobres atenienses, o mal que essas crianças fizeram? Aliás, acabo de ter uma
ideia – com a permissão de Meleto, Anito e Lícon, mais o excelentíssimo juiz
que preside esta sessão e os quinhentos heliastas que me ouvem neste momento:
mudar a acusação e o réu. Que venha depor aqui toda a juventude ateniense, para
prestar conta por seus atos impensados e por sua falta de juízo em me seguir! E
já proponho também a pena máxima: uma semana trancados em casa, ajoelhados
sobre caroços de azeitona e virados para a parede! Bem, pela inexpressividade
que ora percebo no semblante de todos os presentes, principalmente dos três
acusadores, vejo não muitas possibilidades de minha proposição ir adiante. Desta
forma, deixo a este tribunal a atribuição de decidir o que vai fazer comigo.
Prevendo o pior, já me imagino chegando em casa, comunicando a Xantipa
vossa fatal decisão e ainda levando um puxão de orelha dela: ‘Isso é para
aprenderes a parar com essa mania de ser acusado à morte! Isso vai acabar te
custando a vida!’ Obrigado pela atenção, nobres atenienses. Fostes exemplares
como plateia, não me jogando ovos nem pedras. Espero que o sejais como juízes.
Até mais.’
“Foi isto, jovem Filipos, o que eu disse perante o tribunal. O restante já
deves saber. Fui considerado culpado, por uma diferença de sessenta votos. A
grande piada é que foi-me oferecida a oportunidade de sugerir uma pena
alternativa, e quando entrei no espírito da brincadeira, sugerindo que Atenas me
devia o sustento pelo resto da vida no Pritaneu, com todos os privilégios que a
aposentadoria ateniense proporciona, aparentemente irritei mais ainda meus
juízes. Nova votação, e desta vez com cento e quarenta votos de diferença.
Sentença: morte por ingestão de cicuta. Tive a oportunidade então de dizer
minhas últimas palavras:
“ ‘Bem, eu poderia utilizar meu método maiêutico convosco, mas receio que
vos irritaria a tal ponto que a cicuta se tornaria desnecessária para meu óbito.
Desta forma, não questionarei vossa decisão. Para onde vou não posso levar-vos,
até porque a embarcação de Caronte naufragaria com o peso. Não sei dizer quem
estará melhor: eu, no Hades, ou vós, sem mim – porque a partir de agora não
tereis mais a quem culpar e punir quando vossos deuses os abandonarem, novos
deuses chegarem e, o que é pior, vossa juventude se extraviar de vez. Adeus,
cidadãos atenienses.’
“Dito isso, encerro minha apresentação a ti, meu caro Filipos. O restante teu
pai te narrará em pormenores, que envolvem minha prisão, os sanguinolentos
assassinatos dos quais ainda não sabias e, claro – não há como fugir dela –,
minha morte. É hora agora de dar um descanso ao octogenário Aristófanes, que
há um bom tempo se mantém bravamente de pé, repetindo com este gesto o que
eu procurei fazer diante do tribunal. Fica sabendo inclusive que comédia em pé é
gratificante somente em duas ocasiões, Filipos. Quando a plateia ri e quando o
comediante finalmente se senta: falo isso de cátedra (sei que me perdoarás pelo
trocadilho). Sendo assim, estou pronto a devolver a palavra a teu pai. Com a
recomendação de manteres a cautela e não acreditares muito – eu diria quase
nada – no que ele disser de mim.
“Antes de ir-me de vez, deixa que eu te esclareça uma dúvida que, sei, ainda
te zumbe qual uma vespa nos ouvidos: sim, eu paguei as duas moedas de prata.
Como Querofonte já houvesse morrido por ocasião de meu julgamento e
execução, fiz um último pedido a meu amigo Críton: que ele gastasse a quantia
comprando um galo e o oferecendo em sacríficio a Esculápio, pois era ao deus
da cura – que provavelmente inspirou a pitonisa em Delfos – que eu devia o
tratamento para minha cegueira, fazendo-me descobrir que eu, Sócrates, era
justamente quem eu procurava: o homem mais sábio de Atenas. As moedas não
saíram de minha bolsa nem foram parar na de Querofonte, mas pelo menos a
dívida foi paga. É o que importa.
– Sim, ele chegou a mostrar-me uma tentativa de peça dele, tempos atrás. Por
Dioniso... Devo dizer que vi até um certo talento para os diálogos, mas as
tramas, os conflitos e os personagens – misericórdia! Melhor seria ter encenado
a peça diante dos Trinta Tiranos. Eles fugiriam correndo de Atenas e nos
veríamos livres de Esparta sem derramamento de sangue. Imagino até que a
presente ira dele em relação a mim advenha de minha reação à sua investida
dramatúrgica.
– Poupa o moço; ele pode ter algum futuro. O caso é que não respondeste até
agora à pergunta.
– Procedimento, tu dizes...?
– Como assim?
– Eu não julgaria prudente ser grato por isso. Ariadne salvou Teseu no
labirinto utilizando seu providencial fio, e ele até tomou-a por esposa – para,
meses depois, abandoná-la numa praia.
– Não, por Zeus, Sócrates! Essa foi apenas a primeira razão de minha vinda –
saber o quanto ainda tens de vida –, não o moto para uma lição de filosofia. Teu
tempo agora é precioso; não o percas. Passo a contar-te o segundo motivo que
me trouxe aqui, pois.
– Que seja.
– Estive pensando...
– Bom, depois dessa longa pausa que fizeste após dizer que estiveste
pensando, devo presumir que fizeste uma afirmação, ou quando muito uma
provocação, no aguardo de que eu a complemente? Algo como “Que queres
dizer, um comediógrafo pensando? Logo eles, que só pensam depois que já
encenaram seus trabalhos e irritaram a quem tinham que irritar?”
– Para quê?
– Sobre mim?
– Sobre ti.
– Não peço tua permissão, Sócrates. Peço tua cooperação. Quero escrever
uma peça cômica para acompanhar os últimos dias de um condenado e,
principalmente, entender por que ele concordou em morrer.
– Mas por que queres minha colaboração? Não basta escreveres, pronto? E,
assim que eu morrer, usufruíres dos louros da fama, refestelando-se na glória de
minha história?
– Não. Pretendo deixar à posteridade um Sócrates peculiar. Não o Sócrates
de teus discípulos, que hão de colocar as palavras deles em tua boca. Não o
Sócrates dos bajuladores, que o moldarão de acordo com suas conveniências.
Não o Sócrates dos doutos, que o sequestrarão como porta-voz de suas doutrinas.
Mas o Sócrates visto pelo olhar da comédia, pois que é na sátira que o
personagem se desnuda, se mostra sem filtro, sem enfeite, sem desonestidade ou
bajulação. É na comédia que tua tragédia se apresenta por contraste e se define
sem ornamentos ou hipocrisia. Só a comédia retrata, Sócrates, sem comiseração
ou misericórdia. As demais narrativas atendem apenas a quem narra.
– Sim.
– Não queres deixá-lo para outra ocasião? A esta hora o sono começa a
conspirar para fazer minha cabeça pender involuntariamente para a frente e para
trás, o que pode causar no interlocutor a impressão de que em tudo concordo
com ele – e tenho a certeza de que desconfiarias de tanta aquiescência, ainda
mais de minha parte.
– Assim se parece. Não sei ainda de que peça este fragmento faz parte. A
princípio nem me interessei em saber, quando, hoje de manhã, logo ao primeiro
raiar do sol, depois da fina garoa que durou toda a madrugada, dei com ele
depositado na soleira da minha porta dos fundos. Na verdade pensei em chutá-lo,
imaginando que meus críticos teatrais já foram mais incisivos arremessando
pedras na janela, e não as pousando tão delicadamente ao pé da minha porta.
Estariam as restrições à minha obra ficando mais elegantes? Foi então que
percebi a inscrição.
– É fato. Há uma inscrição aqui. Traz, traz aquele lampião mais para perto.
– Reclamas de meus circunlóquios mas não abres mão dos teus. Preciso fazer
a pergunta de outra forma, de modo que... ?
– Compreendo.
– Mas vieste até mim com o fragmento, procurando uma causalidade entre
ele, a inscrição e a Colina das Ninfas, certo? Queres saber o que a mensagem, as
ninfas e a cerâmica podem ter em...
– Por Hefesto, Sócrates, imploro mais uma vez. Deixai-me fora de tua
maiêutica. Não vim procurar a resposta sobre a verdade, a justiça ou qualquer
outro valor – só contar-te o que se passou.
– Não queres discutir sobre valores, mas, por Zeus, qual o valor de uma
discussão sobre um pedaço de cerâmica, contendo meu nome, encontrado na
porta de tua casa hoje, ao raiar do dia?
– Um corpo?
– Sim. Um cadáver.
– Por Zeus. Como foi isso? Como ficaste sabendo? Quem te avisou?
– Eurístenes.
– Dificilmente ele me contaria: o cadáver era ele. Fiquei sabendo foi por
Eudoxo, um dos astínomos da cidade, que vem a ser primo de Agatão, e com
quem eu ceei ontem à noite, em casa deste. Lá conversamos todos sobre vários
assuntos, inclusive tua prisão, e bem depois Eudoxo chamou-me a um canto e
perguntou: “Ficaste sabendo o que encontraram hoje cedo lá pelas cercanias de
onde moras?” E contou-me, visivelmente já embalado pelo vinho: seus arqueiros
citas foram chamados pelos moradores, que estranharam um buraco que não
existia até ontem, no sopé da colina. Não foi preciso muito esforço para
descobrirem, jogado lá dentro, o pobre Eurístenes, que só foi identificado após
ser levado e ter tirada dele toda a lama que o encobria. Na ausência de familiares
para reclamar o corpo ou investigar o crime, ele de imediato foi sepultado em
uma vala comum, ao lado do Cerâmico.
– Acompanha, pois. Devo dizer que Eudoxo, quanto mais se dava ao etílico
esforço de acentuar a discrição do comentário, mais deixava a voz escapulir
desajeitadamente audível (por sorte aos demais convivas do banquete ela soava
apenas ininteligível): Eurístenes tivera algum tempo atrás relações um tanto
íntimas e demasiado prolongadas com um certo estratego – quem, Eudoxo não
quis dizer –, relações encerradas de forma abrupta, passional e salpicada de
ameaças, principalmente por parte do estratego, que jurou matar nosso amigo
sofista. A coisa inclusive é sabida por certos círculos da aristocracia ateniense.
Hás de entender aí os cuidados de Eudoxo ao reconhecer e imediatamente
sepultar a vítima: proteger um de seus chefes.
– Por Zeus. E criticam minha aversão à carreira política. Este teu amigo
astínomo costuma ser generoso em divulgar detalhes do poder público assim?
– Não importa. É esta então a história que constitui a terceira razão de teres
vindo me visitar? Um caso contado por um funcionário público embriagado e
falastrão?
– Como? Eudoxo bebe vinho com conchas na boca? Não é à toa que
entendeste tudo errado: bêbado e com a língua atropelada por uma concha, é
claro que ele...
– Não comeces, Sócrates: o comediante aqui sou eu. Sabes que falo do
cadáver.
– Não, não. Isso é tudo. E, até onde sei, Eudoxo bebe como um gambá e
floreia como um mau poeta, mas não possui a mínima competência para
inventar. Seus problemas são a inconfidência e a falta de diligência no beber, a
meu ver incompatíveis com o cargo – mas, por outro lado, apreciados por boa
parte de Atenas como fontes de incontáveis e irresistíveis histórias envolvendo
os bastidores do poder público. Não é à toa que ele é sempre convidado para
simpósios onde o vinho corre solto.
– Por Zeus. Este teu Eudoxo não é só uma fonte, é um rio caudaloso e
barulhento. Quem mais soube destes detalhes?
– Até onde sei, somente eu, que calhei de ser seu vizinho à mesa. E agora o
trago a ti.
– E por quê?
– Deixa ver se entendi. O que sempre te motivou a escrever sobre mim era o
ímpeto de satirizar meus ensinamentos, correto?
– Responde à pergunta.
– A princípio sim.
– Bem. Não.
– Sócrates. Sócrates. Não vim para fazer-me cobaia tua. Se escrevi e encenei
As Nuvens há dezessete anos para criticar teus métodos e hoje recorro a eles,
certamente não é para tratar de filosofia.
– Não tens que acreditar. Não tens inclusive que concordar com outras visitas
minhas a partir de agora. É só dizeres.
– Decerto. Não deixo de achar uma grande ideia ouvir o que tens a dizer-me
a respeito de tua vida e principalmente de teu julgamento.
– Ora, veja só. Agátocles acaba de despertar. Agátocles, meu bom homem,
seria muito pedir-te um vinho babilônico? Se não tiver, um local serve. Ou
mesmo água. Talvez até um murmúrio de desdém, contanto que dirigido não a
mim mas a meu ilustre desafeto aqui, que veio hoje subtrair uma noite de sono
das poucas que ainda me restam.
LIVRO TERCEIRO - O ALERTA DE MEDUSA
– Mas o que chegou a ser esclarecido sobre a morte deste Eurístenes, meu
pai? Foi realmente um assassinato? Os demais crimes tiveram a ver com este?
– O que eu disse?
– Esqueçamos. Se não queres falar sobre o que foi esclarecido sobre o crime,
então...
– Mesmo?
– Lógico que não, Filipos! Desde quando eu iria ter pruridos para embaraçar
algum poderoso? O caso é que, na época, como as investigações ocorreram sob
sigilo, não pude contar a ninguém – a não ser a Sócrates. De lá para cá, tive
minhas razões para manter-me em permanente silêncio, e tu o entenderás, mais à
frente. Entretanto agora, na iminência de meu ingresso no Hades, vejo-me
forçado a passá-los adiante. Meu filho, declaro sem exagero algum: eles
precisam ser contados.
– Creio que tenha morrido há uns dez, doze anos – e talvez seja desta
circunstância que te lembres do nome dele: metade de Atenas dizia que faleceu
dormindo, ao lado da esposa; a outra metade assegurava que ele teve um ataque
do coração em plena celebração orgiástica no Cerâmico, coisa que não convinha
exatamente a um magistrado policial, encarregado de garantir o zelo pela
segurança das ruas e pelos bons costumes. Mas cruzei com ele várias vezes por
ocasião dos assassinatos, e posso dizer que atrapalhou menos do que ajudou. Na
verdade, só de não atrapalhar ele já me prestava um inacreditável auxílio.
– Por Zeus. Quer dizer então que a investigação efetiva dos crimes coube
basicamente a Sócrates e a ti?
– Filipos, sabes que os astínomos atenienses nunca se especializaram em
averiguações. Basicamente o que ainda fazem é dar voz de prisão e levar a
julgamento. Mas, como única autoridade envolvida, principalmente levando-se
em conta que um assassinato levava a outro – como verás –, Eudoxo acabou
presente, mesmo que não por vontade própria, em todo o processo.
– Fico mais e mais assombrado. Mas me responde: Sócrates viveu para ver
todos os crimes elucidados?
– Por certo. Pelo que me recordo, um cão de caça acuava uma lebre em sua
toca, até que a lebre, para fugir ao cerco, saiu em disparada ravina afora, com o
cão em seu encalço. A partir de determinado ponto...
– Assim é.
– Bem, apesar da idade do garoto combinar mais com a dela, não creio que
os três tenham chegado a...
– Abdica da piada por enquanto, meu pai. Eu pergunto como ficou Xantipa
com a condenação e prisão de Sócrates. Ela o visitava? Alguma vez a viste por
lá?
– Sim.
– Só isso? “Sim”?
– Bela. Pode-se dizer que o que diminuía sua formosura eram mais os
desgostos com Sócrates – o desespero pela falta de dinheiro em casa, o
agastamento pelos constantes sumiços, os ciúmes de Alcibíades e dos garotos
que o seguiam – do que ausência de cuidados. Era ruiva; os cabelos longos e
ondulados com fios caídos sobre o rosto tinham por trás olhos que a mostravam
um tanto mais envelhecida do que a idade presumia. Na ocasião, não devia ter
mais do que trinta, trinta e poucos anos. Mas nem de longe era a megera de fama
tão propagada nos círculos de amizade de Sócrates. E mesmo nos de inimizade.
– Meu pai...
– Sim. Eurístenes. Pois bem, uma vez ele morto e enterrado, de forma mais
precipitada do que o necessário, presumi que a correlação que eu havia feito
entre os sinais apresentados na ocasião – o pedaço de cerâmica, o buraco nas
proximidades, os indícios de afogamento – não passasse de um entrelaçamento
ao acaso, até porque o próprio Sócrates não manifestara real interesse na
investigação. Imaginei que posteriormente Eudoxo, em algum simpósio regado a
vinho, me informaria sobre o retorno do misterioso estratego de sua viagem,
quando tomaria conhecimento da morte de seu, digamos, conhecido. E que tudo
ficaria nisso. Eu continuaria minhas conversas com Sócrates, tendo que fazer
valer o pretexto de escrever a comédia sobre sua vida dele, e aguardando a
qualquer momento o retorno da nave sagrada de Delos.
– E...
– E, cerca de três dias depois, nas primeiras horas da manhã, ao abrir a porta
dos fundos de casa, imagina com o que me deparei.
– Outro pedaço de cerâmica, na soleira da porta, com outra inscrição.
– Como?
– Metade é piada, Filipos; metade é realmente por conta do susto que levei.
Medusa à época já estava para além de idosa, não se manifestava, não se
levantava, dificilmente reagia. Tratava-nos e às nossas tentativas de animá-la
com o mais puro desdém. E no entanto, assim que abri a porta, dei por ela em pé,
a muito custo sobre as quatro patas, em total alerta. Por Zeus, aquilo era insólito.
– Sim, com a garoa que caía naquele primeiro dia, muito provavelmente tua
mãe colocou-a para dormir dentro de casa.
– Pelo contrário: Apolo fizera o sol nascer com vontade. De qualquer modo
me afastei mais ainda da casa, tentando divisar as cercanias, e não consegui
enxergar ninguém por perto, salvo os vizinhos.
– E o pedaço de cerâmica?
– Antes de pegá-lo, observei bem a posição em que ele havia sido deixado.
Sem esforço percebi que o fragmento também tinha a conformação triangular, e
o ângulo mais fechado apontava para o sudoeste. Para ser mais exato, a Pnyx.
Pelo menos era a referência topográfica mais proeminente naquela direção.
– Não, Filipos. Esta foi para ti. Calma. Eu realmente não poderia tomar
nenhuma providência sem antes ler a inscrição. E ela vinha límpida: A estupidez
é tão estúpida que desconhece até limite.
– Não. O que eu pretendia era que ele providenciasse dois ou três arqueiros
citas que me acompanhassem e auxiliassem na provável descoberta. E que talvez
me protegessem, se fosse o caso.
– E o que se deu?
– Um momento, meu pai. Queres dizer que ele morreu... também por
afogamento?
– Pai.
– Sim?
– Como assim?
– Eudoxo dizendo-nos amigos de juventude. Aquele idiota pode ter sido. Eu,
nunca.
– E o que tu disseste?
– Que se eu soubesse seria astínomo, não comediante.
– E ele entendeu?
– E ele?
– Ele não teria ido comigo ao local do crime por livre e espontânea vontade.
E, Sócrates, crê que a lividez no rosto dele foi das mais legítimas.
– Sim?
– Não me interrompas.
– Mas disseste...
– Podemos dizer, então, que se não existe uma relação causal entre a
inscrição na cerâmica e o acontecido no local indicado, existe ao menos uma
ligação temática?
– Concordas então que ela pode muito bem se relacionar não apenas com
aquilo que o fragmento de cerâmica apontava, mas também com a forma como
ocorreu aquilo que o fragmento apontava?
– Concordo.
– Sim, a menos que isso aconteça. Ou, em uma outra hipótese, que os deuses,
num rompante de bom humor, façam um corpo sumir em um rio e surgir em um
buraco.
– Sim, ele aparenta ser tão calmo quanto tu, aí, na iminência de morrer.
– É uma hipótese.
– Sim.
– Que dizia...?
– A estupidez é tão estúpida que desconhece até limites.
– Em que condições?
– Da mesma forma que o primeiro cadáver, só que este não trazia concha
nem coisa alguma na boca.
– Difícil, mas não impossível. Eu poderia acrescentar que Zeus poderia ter
enviado um raio às partes baixas de Aristeu enquanto Poseidon cuidava de
afogá-lo. Mas, como tu mesmo disseste, os deuses devem andar ocupados em
evitar que tu contamines Atenas com tuas heresias, então é pouco provável a
participação deles também neste crime.
– Concordo.
– Sim. E se esclarecermos o motivo dos crimes, não faltará muito para que
descubramos a identidade deste tão dedicado, diligente e, por que não dizer,
cuidadoso assassino.
– Muito bem. Mas não deixamos passar algum detalhe relevante a respeito
das vítimas?
– Acho que em princípio já analisamos o que nos foi permitido analisar sobre
as mortes, tanto em conjunto quanto separadamente.
– Mas eu não me refiro às mortes, e sim a antes das mortes. O que eles
faziam, antes de morrer?
– Viviam?
– Por certo.
– Não sei. Como estamos à cata de um padrão, imagino que só teríamos esta
certeza se um terceiro assassinato – queira Atena que tal não ocorra – trouxesse
como vítima outro sofista.
– Confesso que não pensei nisto. Vim propor-te o debate investigativo como
um exercício lógico, coisa que nossa polícia está longe de fazer.
– A Justiça?
– Sim.
– A mesma Justiça que me colocou aqui, para morrer assim que a nave
cerimonial retornar de Delos?
– Me deixas sem palavras, Sócrates. Mas entre identificar um assassino – se
viermos a fazê-lo – deixando-o livre, não apenas impune mas passível de
cometer outros assassinatos, e entregá-lo à instância competente, que cuidará de
prendê-lo e julgá-lo no Areópago, não vejo alternativa senão...
– Mas se não concordas com meu método, por que recorreste justo a mim
para o debate e a investigação desses crimes que...
– Pai. Fica claro que teu interesse maior era discutir sobre os crimes, e por
isso...
– Entendo.
– O que acontece é que Sócrates aos poucos foi passando a dedicar mais
atenção às nossa investigação criminal. Mas ainda assim eu sempre dava um
jeito de introduzir, nas conversas, perguntas sobre sua vida, Xantipa, os amigos,
o julgamento. Eu estava realmente disposto a escrever a obra definitiva sobre
aquele homem, a despeito das outras que fatalmente viriam pela boca de seus
bajuladores. É evidente que, à medida que os crimes avançavam, menos tempo
íamos tendo para elaborar melhor isso.
– Como assim?
– Por um lado, Eudoxo, temeroso que mais algum assassinato viesse trazer à
tona outro dos tão bem guardados segredos de alcova da aristocracia ateniense,
colocou um arqueiro cita para fazer vigília em minha casa – no caso de outro
pedaço de cerâmica aparecer – e cuidar ostensivamente de minha segurança, o
que dificultaria minhas idas à prisão. Mas isso eu poderia até contornar, não
fosse o fato de Críton haver me desaconselhado – para usar um termo bem suave
– a prosseguir com as visitas a Sócrates.
– Ótimo, mais uma vez, Filipos! A pergunta certa, na hora certa! Cada vez
mais te colocas na posição de autor-espectador! Sim, o terceiro crime, que todos
temíamos mas que tínhamos a certeza de que não tardaria.
– O terceiro afogamento, eu diria.
– Percebo que não posso elogiar. Agora te precipitas novamente. Quem disse
que foi afogamento?
– Não achas que num momento como este eu já não estava disposto a abdicar
de escrever a comédia de Sócrates e fazer-me autor trágico? Qual uma cópia
fajuta de Eurípides, versando sobre um autor cômico que desiste da carreira
porque teme estar envolvido mais que o necessário em uma teia de crimes, e
assim passa a escrever sobre um comediógrafo que... bem, tu entendeste.
– Entendi e agradeço a Dioniso por não teres enveredado por esta trilha.
Histórias de autores escrevendo sobre o processo da escrita sempre foram, na
minha opinião, uma senda presunçosa e vazia.
– Por Zeus, meu pai. Juras que todas estas perguntas tomaram tua mente, ao
mesmo tempo? Conseguias ainda respirar e andar?
– Não digo que devas ir tão direto ao assunto, mas é que eventualmente tuas
preleções cheias de voltas tornam a crença no ocorrido um pouco comprometida.
– Pois mais voltas ainda eu dei na Ágora, se queres saber, e nada do arqueiro
cita sumir de perto. Peguei então a Via Panatenaica e segui por ela, como se
rumasse às escadarias da Acrópole: se em linha reta o arqueiro cita prosseguisse,
mantendo aquela distância, aí eu já não teria mais dúvidas. Quando eu ia olhar
para trás, para confirmar, foi que aconteceu. Não só o arqueiro se encontrava a
uns quinze passos de mim como, ao parecer certificar-se de que naquele
momento e em tal trecho não havia mais tanta gente, abaixou-se e colocou – com
até um certo esmero – alguma coisa no chão, erguendo-se em seguida, ficando
um mínimo de tempo ainda me olhando e depois descendo de volta à Ágora,
sumindo na multidão.
– Sim, depois que pude ter certeza de que ele não mais se achava nas
redondezas, e antes que mais alguém encontrasse o que quer que fosse que ele
ali largara, aproximei-me rapidamente. E lá estava, entre duas das pedras do
piso.
– O quê?
– Dizes... ?
– Sim, Filipos. Uma lasca de cerâmica, com uma inscrição. O único hábito
que não muda é o de querer mudar o tempo todo.
– Não entendo.
– Nem eu, na ocasião.
– Filipos, podes nem ser um filho insolente ou um mau ouvinte, mas ainda
precisas aprender algo como autor.
– Que seria...?
– Acertei?
– Que seria...?
– Correste?
– Agátocles?
– E tu?
– Encontrei forças para perguntar “Mas não fui proibido de falar com ele?”,
ao que ele grunhiu “Mas ele não foi proibido de pedir-me para te procurar”. E
completou, repetindo: “Ele quer notícias tuas”. Resolvi não pensar muito, até
porque conjecturas já não mais me cabiam na cabeça naquele momento.
Sussurei-lhe que havia acabado de receber mais uma mensagem na cerâmica, e
passei-lhe um rápido recado: “Diz a ele que a próxima vítima deve estar nas
imediações do Eridanos, mas que no momento corro risco de vida indo lá
verificar.” Repeti-lhe o recado e já ia desvencilhando minha manga da mão dele
quando vi que o manco, demonstrando desconfiança, permanecia olhando-me
enigmaticamente, como se ainda aguardasse algum complemento à mensagem.
Subitamente avistei, por cima dos ombros curvados dele, vindos justamente da
região do Eridanos – e caminhando em minha direção – , Eudoxo e dois
arqueiros citas. Naquele momento constatei que meu controle intestinal era bem
mais forte que meu pavor.
– Aristófanes, meu caro, se nem para isso a filosofia servir, não sei realmente
o motivo de tantos excêntricos arriscarem sua reputação tecendo inesperadas
metáforas, fazendo preleções sobre as estações do ano, rabiscando figuras
geométricas no chão e fundando escolas.
– Deixei claro a todos que a Justiça, a ser bem aplicada, deve visar o bem da
maioria. Ora, se o Tribunal Heliasta representa mesmo a Justiça ateniense, eu,
um intransigente defensor do que é justo, devo obediência a qualquer decisão
que o tribunal venha a tomar, certo?
– Em princípio.
– Não cabe a eles esta decisão. Coube ao tribunal condenar-me, cabe a mim
escolher quem me visita. De mais a mais, não vejo por que transformar em
tragédia o que é uma circunstância. Eles concordam em vir de dia, tu vens à
noite.
– Te interessas mais pelo andamento dos crimes do que pela comédia que
escrevo sobre ti, ou por minhas visitas mesmas.
– Achas?
– Ou seja, o padrão seguido até agora, e que nos induzia a acreditar que as
prováveis futuras mortes se dariam por afogamento, caiu por terra?
– Não poderia dizer de forma mais feliz, meu caro Sócrates. Ou pelo menos
mais acurada.
– O que Eudoxo fez, em seguida?
– Certo. E Eudoxo?
– Ele enfiou a mão na gola da túnica, até o braço atingir a altura da cintura, e
de lá tirou alguns calhamaços de papiro amassado. Passou-os a mim
furtivamente, afastou-se sinalizando que eu não deixasse ninguém os ver e
retirou-se, dizendo que me mandaria notícias.
– E o que seriam estes papiros?
– Estou ouvindo.
– Assim que abri o papiro, dei com algo que, com extrema benevolência,
inimaginável altruísmo e uma abnegação jamais vista em toda a Ática, poderia
ser qualificado de muito vagamente assemelhado a uma tosca tentativa de peça
de teatro. Uma escrita manca, tíbia, constrangedora, que chegou a me fazer
repensar a iniciativa de querer ver Eudoxo novamente – já que fatalmente ele iria
perguntar minhas impressões sobre aquilo. Sócrates, imagino que nem Medusa,
minha caquética cadela, aceitaria aquele papiro como forro para suas
necessidades de idosa.
– Para não dizeres que em Atenas não brotam poetas em toda esquina.
– Bem, imagino que depois, com calma, tenhas repensado todas as tuas
impressões, ao concluir que esta ligação com Eudoxo será fundamental para
continuares a par das descobertas sobre os assassinatos, certo?
– A muito custo foi o que fiz.
– Como quiseres.
– De acordo.
– Este modelo foi reforçado pelo fato de ambos terem relação com
mensagens deixadas para ti, o que nos leva a achar que por trás deles exista uma
mesma pessoa, certo?
– Correto.
– Os diferentes modos como elas foram mortas, mesmo nos fazendo pensar o
contrário anteriormente, não seguem um padrão. Existe algo em comum entre o
primeiro e o segundo crimes, bem como entre o segundo e o terceiro, mas não
entre os três, correto?
– Meu nobre Aristófanes, podemos deduzir que, ao invés dos crimes irem
contando uma só história, cada crime conta a sua. E o único elo entre eles é o
fato das vítimas todas serem sofistas, correto?
– Com prazer.
– Poderia ter sido tu, que não nutres mais que desprezo pelos sofistas, e cuja
índole pacífica e pedagógica pode ser uma simples capa para tua natureza bélica,
como bem demonstraste nas batalhas do Peloponeso.
– Meu honrado desafeto, por mais que insistas em que eu não lance mão da
maiêutica, ela se insinua o tempo todo em nosso diálogo. Estou aqui preso, sem
permissão para sair da cela: é um fato. Estou no inverno de meus setenta anos,
sem forças para erguer sequer um martelo de forja, que dirá afogar, queimar e
transportar cadáveres de homens adultos, além de recobri-los de excrementos e
cavar buracos. O que concluis disso?
– De acordo. Voltemos então a falar de ti, com vistas para nossa comédia?
– Admites que a maiêutica foi útil para extrair tua declaração de inocência?
– Sócrates, tu não...
– Não, não tens que dizê-lo agora. No devido tempo poderás responder, com
propriedade e pertinência. Faço-te agora uma segunda pergunta.
– Não creio. Utilizei-o provisoriamente por não encontrar outro melhor. Ele
pode ser mais bem lapidado.
– Fica a teu critério. És tu quem vais escrever. O que queres saber de mim, a
essa altura?
– Aquele episódio de invadires do teto o parto a que tua mãe assistia. Podes
repeti-lo, com mais pormenores? Consertavas o telhado, é isto?
LIVRO SÉTIMO - UM AVISO, UMA AMEAÇA, UMA CONFISSÃO
– O que quero é que ouças até o fim: muito ainda há de ser contado. Senta-te
e ouve.
– Sem dúvida.
– Bem, presumo que não é agora que irás revelar-me a identidade da terceira
vítima.
– Vou, por certo. Mas antes, para ordenar minhas próprias recordações,
preciso contar-te o que ocorreu na noite em que tive esta última conversa com
Sócrates, que te narrei. Ao sair da cadeia e rumar para casa, em hora já
avançada, percebi que não andava sozinho. Por duas ou três vezes, virei-me para
conferir se não estava sendo seguido, e em todas elas tive a impressão de um ou
mais vultos esgueirando-se, buscando as sombras e ao mesmo tempo
continuando a me acompanhar. Meu já crescente temor de perseguição aguçou-
se, e mais uma vez imaginei que estaria a ponto de pagar por saber demais. Junta
medo à curiosidade, acrescenta uma relativa capacidade de cálculo e considera a
força de controle do esfíncter: terás aí um homem cauteloso. Pois
cautelosamente procurei agir, encaminhando-me lentamente rumo ao gabinete
dos astínomos, que já se encontrava a alguns passos, menos para fugir do que
para insinuar a meus eventuais perseguidores que qualquer ataque correria o
risco de ser percebido e impedido. Ou pelo menos assim eu esperava. Quando
cheguei à porta do prédio, cujos candeeiros ainda guardavam óleo suficiente para
iluminar boa parte das cercanias, detive-me e encostei-me a uma coluna. Meus
perseguidores, fossem imaginários ou não, teriam duas opções – desistir da
busca ou mostrar suas caras. Para meu desânimo a segunda alternativa foi a
escolhida: depois de alguns movimentos que pressenti na já distante escuridão,
vi emergirem dela três figuras, cujas fisionomias pude ir divisando à medida que
se aproximavam, aparentemente sem intenção de ataque ou algo repentino. A
uma distância de uns quatro passos pude ver com certeza que eram Críton,
Apolodoro e Crátilo. Discípulos de Sócrates.
– E Críton?
– Com a soberba dos afortunados que se arrogam benfeitores e simpáticos
aos despossuídos, obviamente permaneceu fechado ao que eu disse. Aproximou-
se um pouco – meio passo – para reforçar a admoestação, como se exalar seu
bafo de cordeiro com alho e hortelã na cara do interlocutor conferisse mais
autenticidade ao que ele ia dizer: “Aristófanes, conheço bem tipos como tu.
Disseste ser amigo de Sócrates, compareceste a banquetes com ele,
compartilhaste das polpudas benesses que a aristocracia oferece a pensadores e
artistas, mas sempre deste um jeito de estar bem com o poder, enquanto ele
arriscou-se ao opróbrio. Conheço também as várias faces do oportunismo. O que
eu disse, reforço: tua aproximação de Sócrates, se a ti parece espontânea, é tão
somente consentida. Estamos alertas para evitar, com todos os nossos recursos,
que a imagem de Sócrates sucumba ao ridículo. Ficai atento a isto.”
– Replicaste?
– A voz?
– Fiquei receoso que ele fizesse alguma dedução a partir do que teria ouvido
de minha conversa com Críton, e nem sei o quanto ele escutara. Como assim,
pensaria ele, visitas a Sócrates, na prisão? Como assim, Aristófanes
empreendendo algo que naquele momento não poderia revelar? Mas logo me dei
conta que não apenas seu estado etílico embotaria sua capacidade auditiva como
mesmo sóbrio Eudoxo não teria – digamos – meios de fazer conexões lógicas
como aquelas. Apenas respondi “Não, tu sabes que ando atribulado; além de
escrever uma nova peça, toda a minha ocupação no momento consiste em
proteger-me, por conta de meu involuntário envolvimento nessa história macabra
que acompanhamos. Falando nisso... já temos a identidade da última vítima?”
Ele pôs a mão em meu ombro, afetando proximidade mas na verdade apoiando-
se para não cambalear, e sussurrou (sim, aquela foi a noite de receber bafos
masculinos de diversos odores) e, depois de uma eternidade, falou “Senta”.
– Só isso?
– Foi o que entendi – até perceber que ele, disposto a abdicar da tentativa de
manter-se equilibrado, resolveu se entregar à praticidade de esparrachar-se na
escadaria da entrada para não mais passar vergonha. Agachei-me puxado por ele,
e logo estávamos ambos estatelados em frente ao prédio do Gabinete dos
Astínomos. Fiquei a imaginar a real natureza desta força que nos puxa para o
chão, tão ignorada por nossos filósofos, e que volta e meia vitima nossas bundas,
principalmente quando o chão é formado pela íngreme e angulosa superfície de
uma escadaria de pedra. Eudoxo olhou-me, no que parecia ser o lerdo esgar entre
um sorriso e uma máscara de lamentação: “Identidade da última vítima. Sim,
sim. A identidade da última vítima. Claro.” E fez um longo silêncio. Achei que
de tão bêbado ele começaria tudo de novo, e quando eu já ia repetindo a
pergunta ele emendou “Arranjei um problema do tamanho da Acrópole, meu
caro Aristófanes”.
– Certo, meu impaciente Filipos. Poupo-te das filigranas, porque até a mim
elas exasperavam. O que Eudoxo basicamente disse é que não foi preciso muito
para descobrirem que o cadáver pertencia a Áulito de Patmos, um famoso ex-
combatente da batalha de Anfípolis, cujas características físicas eram bastante
peculiares. Ele perdera a mão no conflito, além de haver trazido dele o pedaço de
uma lança espartana encravada na omoplata, e que na ocasião os médicos
acharam por bem não extrair. Pois bem, bastou livrar o cadáver do esterco para
que essas duas características praticamente saltassem à vista dos assistentes de
Eudoxo: se o corpo queimado dificultava a identificação pela fisionomia, estas
características não deixavam dúvidas.
– Claro. Um sofista.
– Não creio ter sido previsão, Filipos. Sócrates tinha plena certeza disso.
– Por Zeus, por que essa benevolência testamentária não ocorre com mais
frequência em Atenas...?
– Aprovo mas relevo tua piada. Ocorre que Laques, filho de Euctémon,
cunhado de Áulito e, principalmente, arconte tesmoteta na época dos
assassinatos, sendo inclusive o magistrado a quem Eudoxo se reportava, ao
tomar conhecimento da identidade do cadáver, pediu – um doce se adivinhares –
sigilo absoluto a Eudoxo. Sabedor do tal testamento, aparentemente ele não
apreciou muito a hipótese de ver metade de tanto dinheiro, agora em poder de
sua irmã viúva, ir parar nas mãos de um descendente ilegítimo, ainda mais em
outra cidade.
– Não apenas isso. Com este terceiro assassinato, Eudoxo não teve
alternativa senão pormenorizar os dois primeiros crimes a Laques – dos quais
este só tivera notícias por alto –, incluindo os embaraçosos laços entre as vítimas
e membros do poder público. Laques, entre furioso e alarmado, concluiu que
com o terceiro crime a administração de Atenas passaria à condição de
efetivamente acuada. A partir daquele momento, mais que nunca, era essencial
manter as informações sobre os assassinatos – provisoriamente que fosse – fora
do conhecimento da população.
– Não era preciso ser magistrado para saber que qualquer investigação – e
investigação, como eu já te disse, jamais fora o forte da Justiça ateniense –
poderia acabar caindo nos ouvidos e principalmente na boca do povo. E qualquer
magistrado poderia calcular o que significaria uma Ágora cheia debatendo
febrilmente sobre os três assassinatos, cujo culpado não fora descoberto e cujas
consequências comprometeriam mais e mais o governo da cidade.
– Muito bem, Filipos. Razoável saída dramatúrgica de tua parte. Mas não –
Laques procurou ser mais pragmático ainda.
– Sim...?
– Como?
– Esparta.
– O que me dizes?
– E...?
– Disseste não apreciar o termo “assassinatos em série”, e eis que mais uma
vez lanças mão dele.
– Não sei o que dizer. Aliás, sei. Vejo nisto tudo um precedente mais do que
justo para que fujas.
– Nem idade mais eu tenho para estrepolias dessa natureza, nem minha
descrença se estende a Atenas, mas tão somente a seus administradores. Se a
cidade se sustenta no espírito de suas próprias leis, não é contrariando-as que se
fará justiça. Deixa, deixa que já me basta o esforço de recusar sistematicamente
as ofertas de Críton para que eu rume daqui para a Tessália, e de lá para não sei
onde, como se isso conferisse verdade ao que eu sempre preguei.
– Falando em Críton...
– Sossegue. Não terei tempo de vida nem tampouco paciência para fazê-lo
saber o que quer se seja que me contes, e que já prefiguro como um
desconfortável episódio envolvendo a ambos de vós. Imagino que ele tenha te
procurado, não?
– Bem, digamos que depois de minha última vinda à tua cela – coisa de dois
dias –, ele abordou-me, juntamente com Apolodoro e Crátilo. E não foi para
cumprimentar-me efusivamente por honrar-te com minhas visitas.
– Imagino. Eu os dissuadi dessa ridícula proibição imposta a ti, mas ao
mesmo tempo calculei que eles não deixariam de utilizar-se de seus próprios
recursos, assim que tivessem condições. Chegaram a ameaçar-te?
– Por certo.
– Como assim?
– Para não despertar suspeitas por parte de quem quer que seja, não é
conveniente que ele seja visto em companhia de ninguém envolvido na
administração direta ou na força policial. Desta forma, seria eu a acompanhá-lo
nas eventuais diligências – para fazer com que ocasionais testemunhas imaginem
tratar-se de algum ator ou artista cênico assessorando-me em minha próxima
comédia.
– Até onde sei, levá-lo aos locais onde os corpos foram encontrados,
informá-lo em detalhes sobre os crimes e posteriormente repassar a Eudoxo suas
observações.
– Tu o conheces?
– Não que eu me lembre. De qualquer modo, meu bom Aristófanes, ele é
espartano: será lacônico por natureza.
– Entendo.
– E por este motivo corres o risco de não poder contar com meus préstimos,
se o barco sagrado aportar no Pireu antes que descubramos o assassino.
– E é justamente por isso que a tensão cada vez mais me oprime, quando
acordo e não deparo com nenhum fragmento de cerâmica, seja em algum lugar,
seja deixado por quem quer que seja: sei que estes últimos dias têm passado bem
mais rápido.
– Não saberia dizer. Imaginam que fui escolhido pelo homicida por ser, além
de um ateniense público, alguém com a capacidade de enxergar causalidade
entre os fragmentos e os respectivos assassinatos, deixando assim a força policial
ciente de que há um só criminoso por trás de tudo.
– Assim creio.
– Por Zeus, Aristófanes, não recomecemos com esta querela. A nada ela nos
levará, a não ser perda de tempo e desperdício de esforço intelectual! Fujamos
do paradoxo de Zenon, obriguemos Aquiles a ultrapassar a tartaruga!
– Age em conformidade com o que te for solicitado, seja por ele ou por
Eudoxo. Não permitas que ninguém saiba que compartilhamos a investigação.
Agora que és funcionário da administração ateniense...
– Sem pilhéria, Sócrates. Reitero que o comediante, mesmo que por ora
desprestigiado, sou eu.
– Por quê?
– Por que não? Por pior que ela seja, pensa no destino das pobres vítimas de
nosso assassino e conforma-te com o fato de que pelo menos tu continuarás vivo.
Tenta ganhar tempo sugerindo algumas melhorias, num trecho ou outro. Nada
mais reconfortante a uma alma desprovida de qualquer talento que ouvir um
reparo a seu trabalho: ao mesmo tempo em que vê sua obra recebendo a devida
atenção, a pobre criatura julga que o oposto do reparo seria o desprezo, e nisso
ela se reconforta.
– O quê?
– Desistires.
– Pois o que te digo agora é que cada vez mais tendo a envidar meus esforços
exclusivos na confecção da tal comédia, e nada mais. A coisa começa a ficar um
tanto perigosa para mim, e não desejo apostar uma corrida contigo para ver
quem morre primeiro.
– Eu, por minha vez, mal posso esperar para prosseguir em nossas
investigações criminais. Agora anda, vai, prepara-te para servir a teus novos
patrões. Arquídamo te espera.
– Pois é justamente quem tive que ver, antes até de conhecer Arquídamo,
Filipos. Quanto mais eu ia me imiscuindo nas esferas da administração, menos
queria estar envolvido. Mas Eudoxo insistiu, frisando que Laques, como arconte
tesmoteta e seu superior – além de um dos mentores do plano secreto de
convocar Arquídamo – queria ver-me. Minha indisposição, além de todas as
razões que já conheces, se devia também ao fato de eu haver jogado merda no
Arcontado em Os Babilônios e, mesmo passados mais de vinte anos da
encenação, certos embaraços haviam de ter permanecido.
– Disso nunca tive medo, Filipos, ou jamais teria pego em um cálamo. O que
me indispunha mortalmente era o canhestro teatro que meus criticados
encenavam, sempre que tinham a oportunidade de confrontar-me: uma farsa de
ressentimento e de constrangedoras insinuações de retaliação – na maior parte
das vezes praticada por sofistas e políticos das altas esferas. Por que achas que
Sócrates jamais queixou-se de minhas críticas? Agora vá fustigar algum boçal
que se tem em grande conta, e verás que o tamanho do melindre será
proporcional à imagem que esses imbecis cultivam de si. Quanto maior o
espelho, mais estilhaços na autoestima. Sempre foi cansativo.
– Primeiramente porque não foi com ele. Em segundo lugar porque ele me
disse isso bêbado e portanto tomado pelo espírito bajulador que lhe era
conveniente. Mas agora ali, sóbrio, na presença de Laques, podes ter a certeza de
que um Eudoxo receoso e subserviente ratificaria sem hesitar qualquer
recriminação que o chefe fizesse a mim.
– E Laques o fez?
– E tu?
– Fiquei olhando e percebi que ele não mudara muito após tanto tempo. O
pai, um rico comerciante do Pireu, contratara um sofista, Odilardo – cuja única
característica de que me lembro era a língua presa –, como preceptor do jovem
Laques. Odilardo levava o menino com ele aonde fosse, numa pedagogia
peripatética que gerava não pouco falatório. Aliás, naquele momento em que
deparei com Laques em seu gabinete de arcano, veio-me a lembrança dele e seu
mentor sentados na plateia de uma de minhas peças, muitos anos antes, e onde
Odilardo disfarçou muito mal a contrariedade quando, numa alusão aos sofistas,
comecei a imitar sua cômica maneira de pronunciar as palavras. Mas, até onde
me lembro, ambos ficaram até o final.
– Imaginei que ela fosse retórica, até que Eudoxo cutucou-me de leve e eu
murmurei algo como “Sim, tomei conhecimento”. Laques prosseguiu: “Imagino
que, salvo nossas enormes diferenças de pensamento, a Atenas que desejamos
seja a mesma – luminar da democracia na Ática e exemplo de ordem e paz”.
Imaginei que Eudoxo naquele momento estivesse trancando o rabo de medo que
eu dissesse alguma coisa de minha natural lavra, mas decidi – até para
acelerarmos o processo – falar o menos possível, e apenas comentei: “Supondo
que as duas assertivas que fizeste em tua frase sejam verdadeiras, Laques, eu
concordo”. Seguiu-se um curto silêncio e ele retomou a palavra: “No entanto, às
vezes temos que recorrer a extremos, mesmo que estes extremos aparentemente
configurem um paradoxo em relação aos princípios de nossa pólis. Mas, se o
fazemos, é porque a ameaça que se desenha no horizonte é igualmente extrema,
e o objetivo é um só – continuar mantendo a ordem, a paz e os pilares
democráticos. Atenas já passou por uma amarga experiência há não muito tempo
e não desejamos que isso se repita”. Lógico que pensei “Falas da tirania
espartana e agora recorres a Esparta. Lanças mão do velho adversário para
preservar as instituições atenienses como quem retira o veneno da vespa e o
utiliza para aliviar o inchaço da picada”, mas para presumível alívio de Eudoxo
mantive silêncio. Laques prosseguiu: “Eudoxo nos disse que tu, por algum
motivo que ora nos escapa, foste escolhido para receber mensagens anônimas,
aparentemente alusivas ao que ora ocorre, o que nos faz pensar que elas sejam de
autoria do – digo, de quem estamos buscando identificar”. “Só tenho a
lamentar”, eu disse, e Laques, não parecendo registrar a dubiedade de minha
frase, prosseguiu: “Quero saber se podemos continuar contando com tua
discrição durante as diligências que se fizerem necessárias.”
– Entendo.
– Ora, veja só. Então foi As Nuvens que Laques e seu tutor prestigiaram, na
plateia.
– E creia-me, Filipos: naquele instante achei que seria mais adequado deixar
que Laques e sua corja continuassem achando que eu e Sócrates alimentávamos
uma inimizade.
No momento eu não podia calcular que aquela seria uma das frases mais
longas que Arquídamo dirigiria a mim durante o tempo em que aqui esteve,
Filipos.
– Fico ansioso por ouvir como teu dia com Arquídamo representou uma
experiência tão enriquecedora quanto recheada de conclusões.
– Só se tiver sido para ele, Sócrates. Como já havias me alertado, foram
somente frases espartanamente monossilábicas, um descomunal teatro
investigativo – não sei se ele quis me impressionar, por saber-me comediógrafo
– e nenhuma pressa em chegar a conclusões.
– Bem, não vou negar isso. Aprendi, por exemplo, que existem espartanos
baixinhos.
– Então conta-me como foi vosso primeiro dia. Dele, como investigador
disfarçado, e teu, como empregado secreto do governo de Atenas.
– Sim, saiba que incluirei isso na comédia que escrevo sobre ti.
– Que seja. Mas inclui agora em nossa conversa o relato de tuas aventuras
com o homúnculo estrangeiro.
– Não.
– Nenhuma?
– De uma abissal apatia. Aliás, devo dizer-te que ele não me olhava. Ouvia-
me como se estivesse em outro lugar. Talvez em alguma colina de Esparta.
– E o que comestes?
– Isso interessa?
– E ele?
– Não. Para meu novo espanto, meteu-se no tubo – ó ímpeto que me ocorreu
de empurrar acidentalmente aquele cilindro e rolá-lo ladeira abaixo até que ele se
despedaçasse na Ágora – e lá permaneceu.
– Até onde vi, nada. Deitou-se dentro dele, olhou e tocou com alguma
atenção a superfície interna do tubo, como se algum detalhe esquecido por nós
estivesse lá, só à espera da epifânica descoberta dele. Depois pareceu concentrar-
se e passou a inspirar e expirar profundamente, como se estivesse entrando em
contato com a energia póstuma do morto, ou de algum demônio, ou mesmo da
bosta que por lá tinha passado quando o cilindro de cerâmica ainda estava em
uso nos canais de esgoto da cidade. Olhei para os lados, a fim de certificar-me de
que ninguém via aquilo ou passava por perto. Estou acostumado às gargalhadas e
ao escárnio quando me exibo no palco, mas o verdadeiro vexame ali parecia
estar à minha espreita o tempo todo.
– Uma eternidade. Quando achei que ele houvesse dormido lá dentro ele
saiu, ergueu-se, limpou-se superficialmente batendo nas vestes e da mesma
forma que antes olhou devagar ao redor, talvez para receber algum conselho
inaudível de Quílon. Como o demorado silêncio começava a fazer-se
embaraçoso, tentei dissipar a quietude comentando sobre a mensagem alusiva
àquele crime, que eu recebera no fragmento de cerâmica, ao que Arquídamo,
com um movimento quase imperceptível de desdém, apenas murmurou
“Pseudopoéticos e medíocres devaneios, elaborados para distrair-vos a atenção”.
Tendo dito isso, saiu caminhando e pediu que fôssemos à Ágora.
– E o que ele queria, na Ágora? Comprar lembranças para levar a Esparta,
marcando aquele dia inesquecível passado com seu colega investigador
Aristófanes?
– O fato dele haver te perguntado a respeito do crime não deve ter chamado a
atenção, caro Aristófanes. Mas ele não ter pechinchado, ah, isso sim
provavelmente despertou na Ágora todas as suspeitas imagináveis.
– Não. Ele começou a esfregar as ervas pelo corpo, até eu entender – era para
tirar o cheiro de merda com que o cilindro de cerâmica havia lhe presenteado.
Depois disso mergulhou, saiu, enxaguou também as roupas, as estendeu no
gramado da margem para secarem ao sol e, nu como estava, veio em minha
direção perguntando pelo local do cadáver.
- Não. Nem se queimar ou cobrir-se de bosta bovina. Ficou somente ali, nu,
às margens do Eridanos, olhando às vezes para cima, às vezes contemplando o
rio.
– E tu?
– Eu mesmo não vejo nada além de comédia neste relato. Mas me diz: uma
vez visitados os locais dos três crimes, o que fez ele?
– À Acrópole?
– Sim. Indaguei o motivo e ele, numa das raras vezes em que me olhou
diretamente, replicou: “Por quê, o acesso é difícil?”. Respondi que bastaria
tomarmos a via Panatenaica, no que ele reforçou: “À Acrópole, então”.
– E à Acrópole fostes.
– E ele queria o quê? Pedir a Atena para iluminá-lo na elucidação dos casos?
Mais um jogo de cena para impressionar-te?
– Não tenho ideia. Ficou lá dentro mais ou menos o mesmo tempo durante o
qual se isolara na Colina das Ninfas ou se metera no cilindro de cerâmica.
Quando saiu do Partenon não quis ainda deixar a Acrópole. Passeou pelos outros
templos, até que finalmente encaminhou-se ao anfiteatro de Dioniso e sentou-se
na arquibancada.
– Por Zeus, notaste algo estranho nele, Aristófanes?!? Juras? Já não era sem
tempo! Pelo menos havia alguém no palco, algum ensaio, uma apresentação?
– Nenhuma. A princípio imaginei que ele observasse o proscênio vazio, até
que entendi: ele olhava para além do palco, mais adiante, para a vastidão de
Atenas lá no fundo, vista ali de cima, e com o crepúsculo já chegando.
– Mais uma vez tentei quebrar a quietude, falando por alto do teatro
ateniense, e ele manteve-se naquela avassaladora indiferença, até que fui
alargando as pausas entre as frases e silenciei-me também. Veio-me então o
impulso de levantar-me, ir embora, reportar a Eudoxo que minha vocação para
guia de espartanos de seis palmos de altura e com cara de porta durara tão
somente um dia – foi quando Arquídamo murmurou “Lisístrata?” “Como?”, eu
disse, e ele repetiu, para complementar: “Encenaste-a aqui?” “Sim”, falei, um
tanto surpreso, “há coisa de dez anos”. Ele, sem mover um músculo, prosseguiu:
“Mulheres atenienses e espartanas unindo-se, aqui na Acrópole, pela causa da
paz”. Confirmei, e passei a comentar sobre as reações à peça e o esperado
escândalo, achando que o entreteria, no que ele apenas comentou, parecendo
falar para si mas de modo que eu ouvisse: “Almeja o improvável, não o
impossível”. E quase que imediatamente arrematou: “É o que Quílon dizia”.
Levantou-se e deixou o anfiteatro, rumo à escadaria, e eu, lógico, o segui.
– Apenas isso?
– Houve um detalhe que obviamente não contei a Sócrates nesse dia. Algo
acontecido entre eu deixar Arquídamo na hospedaria e ir falar com Eudoxo.
– Ah, maldita a hora em que deixei de usar uma piada sobre Heráclito em
alguma de minhas peças, já nem me lembro qual.
– A piada?
– Não.
– Faz sentido.
– Gostei muito, meu pai. Minha preocupação com tua saúde é que se
sobrepõe à graça.
– Aquilo não foi investigação, Filipos. Foi um teatro de terceira linha para
afetar a superioridade espartana! Arquídamo fez-me de tolo e levou do
Arcontado o dinheiro mais fácil da vida dele!
– Não. Demorei a reconhecê-la porque desta vez trazia os cabelos presos. Era
Xantipa.
– Xantipa... a mulher de Sócrates?
– Sim.
– A se fazer valer a fama, seria de se imaginar que ela fosse dar-te uma bela
reprimenda por tuas visitas ao marido dela.
– Longe disso. Ela apenas suspirou – bem fundo e devagar – e disse: “Nem
Sócrates nem tampouco seus discípulos podem saber que estamos falando. Ele
acharia que eu estou a me intrometer, e eles se oporiam à minha ideia de
procurar-te”. Concordei, e ela prosseguiu: “Não sei o que te levou a procurar
Sócrates, justamente na situação em que ele se encontra. Sei apenas que, se eu
fosse dar ouvidos apenas ao que o povo diz, e principalmente os amigos mais
íntimos de meu marido, eu teria como certo que sois publicamente inimigos – da
mesma forma que, se fosses ouvir somente o que dizem a meu respeito,
esperarias encontrar uma megera sem paciência nem compaixão.” Meu silêncio
deve ter confirmado tudo, e ela prosseguiu: “Não imagino que visites meu
marido tão frequentemente com o propósito de alimentar ainda mais vossa rixa.
Seja qual for a razão de ficardes ambos em prolongadas conferências até a
madrugada, calculo que o motivo nada tenha a ver com o que fazem os
discípulos de Sócrates – que tanto lhe encorajaram a fama de pensador quanto
lhe estimularam a lassidão e o esquecimento do sustento da família. O que
Críton, Apolodoro, Lísias e o restante pretendem, ao sugerir que Sócrates fuja, é
tão somente confirmá-lo como figura indesejada em Atenas, seja como um
fugitivo, seja como um pária, seja como um degredado que dificilmente voltará a
ver a mulher e os filhos. E, claro, alimentando-se da fama que lhe será granjeada,
com mais e mais seguidores e admiradores”. Neste ponto eu perguntei: “Mas
acreditas que Sócrates, em algum momento, cederá aos apelos deles?” “Não,
Aristófanes”, ela respondeu, “na verdade não creio, mas de qualquer forma seria
a única alternativa: ou Sócrates morre ou, numa hipótese improvável mas não
impossível, ele desaparece de Atenas e, principalmente, se distancia daqueles
com quem ele tem responsabilidades. Nenhuma destas opções me parece
lúcida.” Devo confessar que me impressionaram a clareza e a propriedade com
que ela expôs os argumentos.
– Mas não disseste o que ela queria contigo, e por que tanto insistiu em...
– E acreditaste nisso?
– Um dia a mais é sempre um dia a menos, meu caro Aristófanes. Acho que
o pobre Agátocles se afeiçoou a mim, às visitas que recebo, às vindas de
Xantipa: provavelmente apegou-se à rotina. Já é famoso o perigo do carrasco
olhar nos olhos do condenado, imaginas então conviver, conversar, trocar ideias
sobre guerra e filosofia. A ranzinzice dele deve-se mais a isto do que a tuas
visitas tardias, podes ter certeza. Talvez ele até desconte a rabugice em ti por
seres sempre o último a chegar – mas tranquiliza-te; não és a causa.
– Por que não? Fica sabendo que os monossílabos dele me soam bem mais
úteis que as escassas palavras que teu colega espartano dedica a ti.
– E tu, Sócrates, fica sabendo que até agora estou sustentando esta conversa
no aguardo de que em algum momento tomes a iniciativa de dividir comigo tuas
elaborações a respeito dos crimes, como me adiantaste ontem.
– Dicteu? Nunca foi grande coisa como intérprete. Fosse ele um bom ator – e
fosse minha peça realmente a responsável por tua condenação –, nem passarias
pela prisão, Sócrates: serias apedrejado na própria sessão do Tribunal Heliasta.
Pelo que sei, Dicteu tornou-se alfaiate em Corinto, e espero que como artífice
manual seu desempenho seja melhor que nos palcos.
– Eu o demiti.
– Por Dioniso, creio no que dizes! Mas calma. O que eu queria saber era algo
bem mais simples: quem fará minha parte?
– Talvez eu faça.
– Tu?
– Estou a ouvir-te.
– Hoje bem cedo, assim que o sol saiu, fiz minhas abluções e comi alguns
figos com queijo, secretamente esperando chegar à hospedaria e ser notificado
de que Arquídamo não mais lá estava. Eu não conseguia deixar de tecer um
enredo em que ele, lançando mão de mais uma de suas excentricidades,
retornasse a Esparta por conta própria e largasse o caso inconcluso, o que para
mim já estaria de bom tamanho para desmoralizar Eudoxo e Laques. Elaborei
mais ainda: nesse meu enredo, Arquídamo teria passado a noite em claro e,
sozinho e sem precisar mais aparentar o comportamento afetado, totalmente
incapaz de chegar a um termo sobre o que vira durante o dia, poderia entregar-se
ao mais sincero desespero e dar no pé. Com certeza conseguiria uma condução
no meio da madrugada com alguém da hospedaria que estivesse rumando à
Lacedemônia, e neste momento estaríamos nós de volta onde paramos, com três
crimes a investigar, decifrar e solucionar. Abri então a porta dos fundos e, mais
uma vez, meu coração gelou – Medusa, mal se aguentando, mais uma vez estava
de pé, e guardando o lado esquerdo da casa, na direção do jardim.
– Não.
– O arqueiro cita? Mas nossa eficiente Medusa já não se acostumara a ele?
– Sim, de fato. Mas não era nenhum dos dois. Deixei a porta e avancei um
pouco naquela direção, para avistar Arquídamo, tranquilamente sentado no
banco de meu jardim.
– Foi o que perguntei, depois de alguns instantes atônito. Ele não pareceu
mudar de expressão ao registrar minha presença, apenas deitava um olhar
analítico à arquitetura da casa, e assim continuou quando respondeu: “O tino
afiado leva sempre ao ponto de chegada”. Sentei-me ao lado e perguntei:
“Quílon de Esparta?”, e ele: “Alípio, da hospedaria. Apenas perguntei a ele
como chegar aqui”. Antes que eu retrucasse ele voltou a falar: “Os crimes
terminaram”. “Como?”, eu disse, e ele insistiu: “Não ocorrerão mais
assassinatos”.
– Pelo fogo.
– Ah, sim, lembro-me muito vagamente do episódio. Então era ele. Que,
além de filósofo, investigador e ocultista, não deixou de aventurar-se também na
profecia. Muito interessante. Mas diz-me, Aristófanes: qual a reação de Eudoxo,
mediante esta brilhantíssima leva de deduções?
– Não fujas do combinado. Digo que fiz minha parte em nosso trato:
adiantei-te as conclusões de Arquídamo, em todos os detalhes. Agora anseio por
ouvir as tuas.
– Aristófanes, Aristófanes, seria mais fácil eu fugir desta cela – e contar com
Hefesto para romper a marretadas o grilhão que me prende o pé – do que fugir
de nosso trato. Eu apenas queria ter certeza de que todas as possíveis
interpretações estariam esgotadas, tanto de tua parte quanto de teu pequeno
amigo.
– Não tenho interpretação alguma. Estou no aguardo das tuas.
– Perfeito. Pois posso dizer-te que não apenas começo finalmente a enxergar
um padrão nos crimes como vislumbro um sentido nas mensagens em cerâmica
que nosso amigo assassino te entregou.
– Mas antes será preciso que nos detenhamos mais um pouco nas conclusões
de Arquídamo.
– Exato.
– Por certo.
– Ora, temos então que, na visão do espartano, Atenas deixa de ser sábia na
medida em que se permite consumir pela soberba, e isso determinará nosso fim
como cidade.
– Devo concluir, pois, que ele converteu, pelo poder da palavra, uma série de
homicídios em um aviso aos cidadãos atenienses, garantindo também que, uma
vez concluído o enunciado do aviso, outros crimes não deverão ocorrer.
– Bem, meu caro Aristófanes. Diante disso, se faz imperiosa uma pergunta, a
qual dirijo a ti. Se Arquídamo deu asas à imaginação, elaborando uma
interpretação um tanto tortuosa e tendente ao misticismo, ou soprada pelo
espectro de Quílon, e ainda falando exatamente o que o Arcontado queria ouvir –
ou seja, que a cidade estaria de uma vez por todas livre de um assassino que
tortuosamente dava visibilidade às comprometedoras relações entre membros da
classe política e as vítimas –, temos que nosso pequerrucho espartano agiu como
o quê?
– Como... um sofista.
– Essas referências cênicas tu podes guardar para tuas comédias, meu caro. O
que quero que guardes agora é esta informação. Arquídamo portou-se como um
sofista. De acordo?
– Se assim o dizes.
– Sim. Eurístenes.
– A menção à minha pessoa não vem ao caso, ao menos por enquanto. Mas o
teor da mensagem era este, correto?
– Sem dúvida.
– É o que parece.
– O segundo cadáver – Aristeu – foi descoberto enfiado em um largo cilindro
de esgoto, afogado e queimado da cintura para baixo. O que dizia mesmo a
mensagem gravada na cerâmica?
– Áulito.
– Exatamente.
– A água?
– Bravo! Agora voltemos ao que disseste há um instante. Tales foi famoso
por dedicar-se também às coisas do céu. Passemos agora ao salutar campo da
maledicência: conheces a anedota de que nosso Tales, distraído que era, andando
uma vez olhando para cima e inteiramente perdido em elucubrações sobre, quem
sabe, a distância de uma constelação para outra, ou outra contingência celeste, de
repente caiu em um poço? E que toda Mileto se riu do caso, por muito tempo?
– A mensagem nem tanto ao céu nem tanto à água te diz alguma coisa? E o
modo como morreu Eurístenes, na água?
– Difícil dizer, Aristófanes. A mim quis parecer que a concha foi o indício de
que a morte se deu em um rio, ou em um lago, e não – por exemplo – em uma
tina, uma cisterna ou outro ajuntamento artificial de água. Parece-me que o
assassino tentou ser purista: o rio, elemento natural, assim como o mar, a origem
de tudo, conforme Tales ensinava.
– Sócrates, eu...
– Tales também...?
– Por Zeus, não! Nosso assassino foi em frente! Seguiu a ordem cronológica!
Desta vez aludiu a um discípulo de Tales!
– Qual?
– Perfeito, Aristófanes!
– Pois nesta também nosso divertido assassino terá sido jocoso com o
filósofo. Ajudo-te: conceito de ilimitado temporariamente à parte, Anaximandro
acreditava que as coisas que nos cercam se constituem do quê?
– Ah, sim! As coisas nascem do contraste dos opostos: frio e quente, claro e
escuro, fogo e água...
– Afogado e queimado?
– Perfeito, meu sagaz autor! Mas eis que surge um tubo de esgoto para
atrapalhar teu raciocínio!
– Tem mais. A estupidez é tão estúpida que desconhece até limites. Só não
sei se com isso nosso assassino homenageava a vítima ou zombava
antecipadamente de nossa demora em decifrar os crimes.
– Mas... já sabes?
– Ah, meu bom autor. Meu comediógrafo. Meu poeta. Quererás que eu tire
de ti a honra de chegar, por mérito próprio, à conclusão sobre o mistério que
envolveu a morte de Áulito?
– Não?
– Estamos dando ao raciocínio lógico uma aplicação prática para tentar obter
a garantia de a paz à cidade! Ou achas que, se nosso assassino resolver não parar
– ao contrário do que pensa teu pequeno amigo espartano –, os crimes não
acabarão por vir a conhecimento público, fazendo a inquietação e o pavor se
instalarem de vez entre o povo ateniense?
– Vários.
– Então reduzamos o âmbito da pergunta. Qual filósofo veio após
Anaximandro, e que relacionava o princípio das coisas com o fogo?
– Talvez... Pode ser que eu me engane. São muitos. Quero dizer, não muitos.
Heráclito?
– Mais uma vez, bravo, meu caro comediógrafo, poeta e investigador! Muito
bem! Estás chegando lá.
– Mas... e o esterco de vaca que cobria Áulito? O fato dele haver morrido
carbonizado o insere no requisito, mas e a merda...
– Volto a dizer-te, meu bom dramaturgo: nosso assassino é não menos que
um humorista. Ele escolheu um dos episódios mais embaraçosos da vida de
Heráclito para traçar o paralelo.
– Concordas que temos aí a versão críptica para o “tudo flui, tudo se move”,
de nosso estimado hidrópico?
– Nada penses.
– Acho que precisas dormir também. Boa noite, meu cômico investigador.
Ou investigador cômico: como preferires.
LIVRO DÉCIMO-TERCEIRO - TRÊS PARTES TÃO IGUAIS
– Filipos, Filipos, não sei o que se enfraquece mais a cada dia. Eu, em minha
debilidade física, ou tua paciência de ouvinte. Duvidas que eu consiga viver até
terminar de contar-te toda a história, e já queres que eu pule para o final?
– Claro, o único ganho de força e peso que minha doença vai proporcionar é
à bolsa do médico. Aliás, temo que os gastos com a saúde façam mais mal à
saúde do que o sedentarismo. Mas estávamos onde, mesmo? Ah, sim, no
assassinato de Arquídamo.
– Por Hades – vês, Filipos, vês? Vês como me apressas e me fazes perder-me
na sequência da história? Acabo de adiantar-te um ocorrido que ainda poderia
esperar, se paciência tivesses em ouvir! Ou minha debilidade mental é que já está
mais manifesta do que eu esperava, e eu...
– Peço-te desculpas, meu pai. Mas é que perguntaste...
– Pois bem. No dia seguinte à minha conversa com Sócrates, tentei manter-
me ao máximo distante de quaisquer relações com os magistrados, com a polícia,
com o poder. Diante da bizarra solução encontrada por Arquídamo – e aclamada
por Laques –, o arqueiro cita que cuidava de minha casa foi retirado, o me fez
cogitar de buscar tua mãe em Elêusis, mesmo com a admoestação de Sócrates de
que os crimes provavelmente não cessariam. Lembro-me naquela manhã de
haver sentado e passado a limpo todas as anotações que eu até então havia feito
sobre a vida de Sócrates, e finalmente dado início à escrita da comédia que, de
alguma forma – e para minha surpresa – tomava corpo. Fiquei nisso por horas, e
nem notei o tempo passar, até que bateram à porta. Foi nesse momento que
percebi que estava com fome e ainda não almoçara. Abri, e para minha surpresa,
enfado e cansaço, lá estava Eudoxo.
– Ele acreditou?
– E ele?
– Em três partes.
– Não compreendi.
– Foi o que Eudoxo também disse. O assassino, após matar Arquídamo, fez
no cadáver uma secção em forma de V, à altura do tronco, com as linhas partindo
cada uma de um ombro e ambas se encontrando abaixo da genitália. Assim o
corpo do pequeno espartano achava-se dividido em três: um pedaço central com
cabeça, tronco, abdômen e pélvis, e os dois restantes do lado direito e esquerdo,
incluindo cada um o ombro, o braço, o flanco a perna. Ah, e sangue, muito
sangue. Aparentemente, pela forma como foram feitos os cortes, o assassino
utilizara uma kopis bem afiada, de uso do exército ateniense.
– E por que eu iria vê-lo? Bastou-me o relato de Eudoxo. A única coisa que
me ocorreu foi que conseguiram deixar o espartano menor ainda.
– Mais conchas?
– Descobri depois, por Eudoxo, bêbado – ele, não eu – que, para evitar
represálias de Esparta, Laques acabou enviando o envio de uma vultosa soma de
dinheiro aos éforos, para compensar a perda de Arquídamo, e foi alegado um
assalto para justificar a morte. Mas foi reforçado e reiterado que ele teria de fato
solucionado o enigma dos assassinatos. Para evitar mais suspeitas, terminaram
de despedaçar o corpo e avisaram que ele havia sido devorado por cães.
– Até hoje – tantos anos depois – não ouvi falar em represálias ou retaliações
resultantes deste ocorrido em especial.
– Assim que Eudoxo partiu tentei abstrair-me, mas algo insistia em tolher
minha serenidade. A lembrança de Arquídamo, seus rituais ocultistas ou o que
quer que fossem, sua economia de palavras e principalmente sua
imprevisibilidade. Seria ele tão imprevisível a ponto de não prever ele próprio o
inesperado? Teria sofrido na morte, ou um golpe inicial certeiro cuidara de
poupar o martírio? Teria ele família? Pela idade – cinquenta e poucos, eu
calculava – ele ainda não estava apto, pelos padrões espartanos, a dedicar-se
exclusivamente ao convívio familiar, mas já poderia ter tido esposa e filhos.
Subitamente dei-me conta de que eu estava perdendo meu tempo com
elucubrações a respeito de quem nada significara para mim, e voltei ao texto da
comédia. O trabalho rendeu, e quando vi já era noite.
– Eudoxo, novamente?
– Xantipa.
– Xantipa?
– Então respira com vagar, sem pressa, e depois me diz: o que Xantipa
respondeu?
– Ah, a tática das mulheres. Ela marejou os olhos para dizer, em sílabas
pausadas e fortes: “Aristófanes, Sócrates precisa de mim como eu preciso dele.
Eu sei que ele sempre dividiu seu amor por categorias, e nelas cabiam
Alcibíades, os jovens efebos, até as hetairas dos banquetes que eram pagas por
seus amigos para divertí-lo. A mim, nesta divisão, cabe a parte de lembrá-lo de
subsistir. De sobreviver. De comer, vestir-se, lembrar-se de que a vida é real e
não um produto do pensamento. Ele precisa disso.”
– Sim, e ela precisava de Sócrates para o quê, mesmo? Ter em quem dar
broncas?
– Ela ela apaixonada pelo fato de ser a única pessoa a quem Sócrates temia.
– E reforçou-te o pedido para falares mais uma vez a ele sobre ir ao tribunal?
– Não apenas.
– Como assim?
– Ah, Filipos.
– Não me tome por tolo, meu pai. Não nego o meu pasmo mas sei o que ela
insinuava te propor, e...
– Como assim?
– Mesmo?
– Sim. Ela sabia exatamente o que queria.
– Óbvio que sim. Nunca houvera me ocorrido que ela gostava de teatro;
aliás, nunca me ocorrera nada sobre Xantipa. Mas ali ela mostrava que sabia
onde estavam os trechos que a interessavam.
– Ela voltou ao nosso contexto: “Sei que a relação entre ti e Sócrates não é a
de inimigos; nem o extremo oposto, a de mestre e discípulo. Que seja a de
adversários que se respeitam, ou de pares que têm um ao outro em elevada
consideração – é pois justamente a ti que ele ouvirá, se fizerdes a proposta da
maneira correta. Uma proposta que concilie Sócrates com Atenas. Porque é a
conciliação que busco, Aristófanes. O que eu quero é que tudo volte a ser como
antes.” A partir disso ela pôs a mão em meu ombro e voltou a Lisístrata: “Não
haverá dificuldades, pois estou diante de um homem que deseja o que há de mais
natural”.
– E então?
– Pelo teu olhar sinto ensaias abandonar neste momento a juventude, Filipos.
Posso dizer-te que quando ela, olhando-me bem nos olhos, aproximou-se o
máximo que pôde, demonstrou claramente perceber o tempo que eu e tua mãe
estávamos sem nos ver. O resto foi o resto.
– E minha mãe... nunca soube disso?
– Se soube não foi por mim. Sei que algum tempo depois Xantipa recompôs-
se, exatamente da forma como chegara: reassumiu a mesma fisionomia sofrida,
madura, triste. Falou “Sei que cada um de nós, a seu modo, faz o que for preciso
para termos Sócrates de volta, vivo e fazendo o que sempre fez”. E foi embora.
– Nem eu. Mas meus ombros – ou o peito, quem sabe – acabam de me ficar
mais leves, agora.
– Não, depois disso não. Só fui encontrá-la por ocasião da morte de Sócrates.
– E então?
– O vulto.
– Que vulto?
– Sim?
– Só pude reparar na altura do vulto – algo entre, não sei; sete a oito palmos,
era de uma estatura considerável –, que se aproximou e em certo ponto parou,
parecendo tirar partido do fato de estar contra a luz e eu com os sentidos
completamente aparvalhados. Eu mal conseguia divisá-lo, mas também não
deixava de enxergar os contornos daquela presença silenciosa. Não sei o quanto
demorou para que ele se curvasse, deixasse algo ao pé do meu catre e se
retirasse.
– Não eleves tanto a voz, Aristófanes, que mesmo tantas horas depois do
horror etílico eu ainda conservo os ouvidos e a cabeça mais suscetíveis do que
nunca. O ruído de uma moedinha que caísse agora da bolsa gorda de um sofista
iria soar-me mais estrondoso que a gigantesca estátua de Talos derrubada por
Jasão. Por Zeus, que ressaca.
– Sim? É das poucas vezes que vejo rires tanto, desde que começamos a
confabular aqui. Tens certeza de que a ressaca já passou?
– Vamos por partes. Sem trocadilho com teu colega Arquídamo. Mas diz-me
novamente como ele foi encontrado.
– Ora. Pitágoras?
– Então a mensagem...
– Então Arquídamo, não contente em ser dividido por três, morreu com
dezenas de caralhos enfiados na boca?
– Numericamente perfeito.
– Como assim?
– Lá vamos nós.
– Pudeste identificá-lo?
– Sim.
– É fato.
– Ele deixou claro que, por mais que estivesse próximo a ti, não tinha a
intenção de fazer-te mal. Até porque, se algum mal ele quisesse fazer, já o teria
feito.
– Nada a discordar.
– Levando em conta que, de Pitágoras até os dias de hoje ainda tivemos mais
filósofos proeminentes – Parmênides, Zenão, Anaxágoras, Górgias, Protágoras e
tantos outros – é de se supor que a série de crimes não tenha terminado,
concorda?
– Tu, por exemplo, meu comediógrafo ímpar. Tens tanto preparo físico
quanto arcabouço intelectual para executar os crimes, bem como para criar o
enredo que os une. Seria um material e tanto para uma peça cômica, com o
diferencial de que tudo realmente aconteceu. Poderias fazê-lo na forma de peça
ou de diálogos, configurando a trama como bem entenderes – e ainda se
eliminando da lista de suspeitos. Seria o crime perfeito.
– É uma sugestão?
– Admito que jamais vi ou testemunhei uma peça com uma conclusão tão
mirabolante. Acho que neste quesito As Nuvens é uma peça mais sensata.
– Por Zeus, Aristófanes, isso não parece contigo! Sei que és saudosista de
uma Atenas que já não existe, mas sempre trabalhaste esta nostalgia de uma
forma muito mais eficaz na sátira e no sarcasmo! Vais agora metamorfosear-te
num orador, queres representar o novo Péricles e abdicar de tuas comédias?
Prefiro mil vezes que fales mal de mim a falares tão sério!
– Sócrates! Sócrates! Basta solicitares uma audiência, que ela lhe será
concedida de bom grado! Sabes disto! Por que...
– Como?
– Ora, ora, meu insigne autor. Esboças tão bem teus personagens e tens
tamanha dificuldade em compor um? Vejo-te no rosto, no tom de voz e nos
trejeitos que acabaste de expressar – e que não sabes esconder – que tiveste um
colóquio direto com a única mulher a quem eu temo, e que não deixou em ti
impressão lá muito diferente.
– Como assim?
– E ainda por cima repetes a mesma pergunta. Nada mais significativo. Mas
já te digo. Sabes que meus amigos mais íntimos consideram ato de fraqueza um
pedido meu para que o tribunal reconsidere a sentença, certo?
– Se é o que dizes.
– Xantipa quer o melhor para mim. E ela tem razão. Ela sempre tem razão.
Quem se mostra insano sou eu. Mas tudo o que já postulei sobre justiça e ética
não faria sentido se eu questionasse as leis que me condenaram. Peco pela
repetição mas não pela contradição: será sempre preferível sofrer uma injustiça
que cometê-la, meu caríssimo comediógrafo. Não cometi injustiça alguma e dou-
me por feliz, ao passo que quem me condenou...
– A primeira não é a ti. É a Agátocles. Água, mais água, meu bom homem, e
cuida de não derramá-la enquanto caminhas. Só damos o verdadeiro valor ao
mais precioso dos líquidos, ao mais primordial, ao fluido tão decantado por Tales
– nosso assassino não nos deixa mentir –, quando nos entupimos de vinho na
véspera. E a ti, Aristófanes, só peço que descansemos um pouco do caso do
assassino em série – podemos chamá-lo assim? –, não sem antes pedir-te para
trazeres, em tua próxima visita, todos os fragmentos de cerâmica que recebemos
até agora. É apenas outro palpite, nada mais. Enquanto isso, voltemos à nossa
comédia, se a isto não te opuseres. Antes, só preciso confessar-te – quando
gargalhei, há pouco, não o fiz só pelas favas.
– Não?
– Não me desejes tal fatalidade. Prefiro morrer a ter que ouvir falar em vida
eterna.
– Conhecerei toda a história?
– Tenho meios de fazer com que não pairem dúvidas sobre ela, mesmo se
algum imprevisto acontecer, Filipos; por enquanto basta que saibas disto. Mas,
voltando ao que dizias, jamais poderei me gabar de que privei também da
intimidade de Sócrates em seus últimos dias. Continuarei sendo o maledicente
cômico que manchou sua reputação caluniando-o e classificando-o como sofista
parlapatão, e é melhor que deixemos assim. Basta veres o tratamento que seus
seguidores me dispensam: deves ter reparado nesse instante que Críton fingiu
não me ver. Ele continua um homem abastado, dono de dezenas de propriedades,
cada vez mais próspero, e ainda gozando do privilégio de haver sido discípulo do
hoje cada vez mais afamado Sócrates. Lísias, Apolodoro, Cebes, Fédon, todos
eles ufanam-se do fato de haverem conhecido pessoalmente o injustiçado
filósofo. Platão dá mostras de querer aproveitar-se da fama de Sócrates cada vez
mais em seus escritos e em seus ensinamentos. E o que coube a mim? Continuar
como o antagonista, o difamador, a Nêmesis. É até interessante que Sócrates
tenha tido um rival na esfera intelectual, bem acima da ralé de sofistas contra os
quais ele se bateu a vida toda. Confere-lhe mais substância ainda, mais
dignidade, mais peso.
– Não te exaltes tanto, meu pai. Sentemos aqui um pouco – insisto que
precisas descansar. E, de mais a mais, compuseste uma comédia que contou com
a participação do próprio Sócrates! Isso pode mudar a maneira como és visto,
como és...
– Quero, contanto que descanses um pouco. Tua fala a mim entretém, mas a
ti ela cansa.
– Viver cansa. Falar só faz o cansaço parecer breve.
– Então me fala, já que cruzamos com Críton. Voltaste a falar com ele, ou
outro amigo de Sócrates, naquela ocasião?
– Aí já não sei. O que posso dizer é que Agátocles nunca me pareceu um tipo
suscetível a propostas que ultrajassem seu ofício. Mal-humorado, de poucas
palavras, cioso de suas funções e as exercendo da mesma forma solene com que
mancava e grunhia, não parecia ser o tipo ideal a ser abordado com uma
proposta de favorecimento ilícito. Mas, enfim, a mim o recado apressado de
Lísias soou-me como pura bravata, pois o principal interessado nem de longe
sonhava em evadir-se do local.
– Por mim?
– Quer dizer que fui o responsável por ficares sozinho – e à mercê de novas
investidas femininas – por um bom tempo, antes do retorno de minha mãe.
– Te adianto que elas não aconteceram mais.
– Bem, com todo o amor que tenho por minha mãe, vês que fiz o possível
para que te divertisses. Não o fizeste porque não quiseste.
– Mais respeito com teu pai. E, mesmo que o quisesse – eu não quis –, não
poderia. O tempo ficava-me cada vez mais escasso. Tanto que naquele dia, ao
retornar a Atenas, já de noite, nem cheguei a estranhar quando dei com um
arqueiro cita à minha espera, na porta de casa.
– Mais um assassinato?
– Laques?
– Sim. Aleguei cansaço, falei da viagem, mas o guarda foi irredutível. Trazia
ordens expressas de Eudoxo para que eu fosse buscado o mais rápido possível. E
portanto lá fomos nós até o Arcontado, eu mais indisposto a conversar do que
realmente fatigado. Imaginei que, àquela hora, um graduado servidor público
como Laques já deveria estar em casa, estendendo portanto a contragosto sua
permanência no gabinete, à minha espera. E foi mesmo contragosto que vi
naquela fisionomia de falcão preguiçoso, quando entrei em seu gabinete.
Eudoxo, ao lado da mesa do chefe, também não demonstrava lá muita
afabilidade, provavelmente por conta de minha demora em aparecer haver
atrapalhado seus planos noturnos com alguma voluptuosa botija de vinho.
“Aristófanes”, Laques disse, fazendo daquelas suas pausas burocráticas, como se
ainda houvesse algum documento a despachar e ele quisesse demonstrar não
estar ocupando-se apenas de mim. “Soubemos de fonte segura que vens
encontrando-se frequentemente com Sócrates, na prisão”. Notei que a
informação também era sustentada pelo olhar de Eudoxo, como se ele se sentisse
traído.
– Meu pai, fico na dúvida entre perguntar quem teria levado essa informação
até eles ou já conformar-me com o fato de que me responderás “No tempo certo
tu saberás”.
– Imagino que nunca fosses tão vago, ambíguo ou reticente em toda a tua
vida.
– Mas presumo que o caso dos assassinatos em série não tenha chegado lá.
– Não, mas não por artes de Laques ou Eudoxo. Daquela noite basta dizer
que, antes de encerrar a reunião, Laques ainda inquiriu-me: “As mensagens que
dizes receber do criminoso, anunciando os crimes – neste último assassinato isso
não ocorreu?” Tive que pensar rápido, numa forma de livrar o rabo de Sócrates,
de Agátocles e até o meu. Lembrando que Sócrates me entregara o fragmento de
cerâmica e eu providencialmente o trazia no bolso da túnica, tirei-o e o expus,
dizendo “Sim, o remetente o havia deixado em minha casa, mas por algum
motivo só fui dar-me conta agora à noite, quando retornei de Elêusis, onde fui
visitar minha mulher”. Meus dotes de ator pareceram funcionar. Laques
perguntou o teor da mensagem, eu lhe disse – e Eudoxo, para quebrar o silêncio
subserviente de até então, limitou-se a comentar: “Por que estas mensagens tão
subjetivas?” Pensei “Subjetivas são as razões para te manterem como astínomo,
sua besta de carga”, e obviamente disse “Pois então”. Laques, à falta de papiros
para manusear, pousou as mãos na mesa e anunciou “Eudoxo, estão em tuas
mãos as diligências para apurar de uma vez por todas a identidade desse
criminoso e encerrar tal derramamento de sangue que, reitero, não pode em
absoluto chegar ao conhecimento da população – e, como eu acabei de dizer,
tampouco às instâncias superiores. Sabemos como o Areópago trata os
homicídios irresolvidos”. Dito isso ele levantou-se e deixou a sala. Pude
perceber Eudoxo calculando quantos cálices de vinho iria entornar depois de
deixar seu gabinete dos astínomos. Só perguntou, antes que Laques sumisse de
todo, “E o que faço com os incendiários que prendemos?”, ao que o chefe
respondeu sem pensar: “Deixa-os na prisão. Atenas fica mais segura sem eles. O
máximo que pode acontecer é tocarem fogo nas celas. Se o fizerem, arderão
trancafiados. O combate ao crime ainda assim sairá ganhando”.
– Péssima. Ele pôs a mão em meu ombro, perguntou se eu não aceitaria uma
botija de vinho e pensei que, mesmo que de uma forma enviesada, não deixaria
de ser uma maneira de comemorar a gravidez de tua mãe. De qualquer forma –
imaginei – Eudoxo provavelmente me segredaria mais detalhes sobre os
labirintos da administração que talvez ajudassem em um entendimento mais
abrangente da relação entre aquela alcova e as possíveis motivações do
criminoso. Puro engano. Embebedei-me além da conta ouvindo horas de
considerações presunçosas, óbvias e vulgares sobre teatro e escrita. Nada mais.
Pelo menos de uma coisa me certifiquei na ocasião: as duas coisas mais
formidáveis até então tinham sido a invenção da escrita e a descoberta do fogo –
só assim eu teria o prazer de, chegando em casa, pegar o papiro com o texto da
peça de Eudoxo e queimá-lo por inteiro.
LIVRO DÉCIMO-SEXTO - O MEIO É A MENSAGEM
– Que vejo eu? Hoje é tua vez de ostentares um mal-estar pós-etílico, meu
distinto comediógrafo?
– Não sei onde arranjei forças para vir, Sócrates. Eudoxo empurrou-me um
vinhedo inteiro ontem.
– Eu o tinha, de fato. Mas foi tudo por água abaixo. Aliás, água não – um
vinho de segunda linha. Pelo menos mais passável que a conversa, que foi de
quinta categoria.
– Sócrates, se realmente vais tomar meu lugar para dedicar-te à piada, deixai
que eu compense exercitando a maiêutica contigo.
– Como bem entenderes, meu nobre poeta. Podes inclusive começar neste
instante.
– Não é de meu feitio ficar cuspindo perguntas sem parar, como uma cigarra
que zizia seguidamente até levar o ouvinte à loucura.
– É provável. Não duvido que Críton, em seu excessivo zelo por manter-te
longe de mim, tenha feito chegar a ele a notícia, para que de alguma forma as
visitas acabassem sendo proibidas. Laques tentou isso?
– A princípio deu a entender que sim. Expliquei então que escrevia uma
comédia sobre ti – com tua óbvia concordância –, e isso pareceu suficiente. O
que o intranquilizava mesmo era a suspeita de que eu houvesse contado a ti
sobre os assassinatos. Obviamente garanti que não, mas não sei até que ponto ele
se deixou convencer.
– Tenho certeza de pelo menos mais um crime, meu nobre Aristófanes. Fico
pensando em que corrente filosófica nosso erudito assassino irá basear-se, neste
que talvez seja seu derradeiro assassinato.
– Por quê?
– Sócrates, a continuarmos como estamos, não viverás para ver o mês que
vem! Digo... Desculpa-me.
– Não te amofines, meu célebre comediante. Na verdade não viverei para ver
a alvorada do dia depois de amanhã.
– Então não há por que empalideceres. Meu poeta, desde o início sabíamos
que seria uma questão de tempo. Se os deuses resolveram estender os dias de
minha permanência no mundo dos vivos, a razão disso provavelmente só será
conhecida posteriormente. Ou talvez se deva puramente ao sarcasmo
postergatório do Olimpo. Nada é impossível.
– Sócrates, não tens que morrer! Com minhas relações junto a Laques – não
muito sólidas, mas ao menos frequentes, ultimamente – solicito uma audiência
para ti. Ele interferirá junto ao tribunal. Diz lá que pensaste melhor, que foste
mal interpretado! Tens ainda dois dias, não desperdices um instante sequer deste
tempo!
– Vejo que Xantipa te impressionou. O que não me admira. Ela é uma mulher
impressionante.
– Sócrates...
– Concordas também que ele segue ordem cronológica: cada morte que se
segue é relacionada a um filósofo proeminente; e que os filósofos mencionados
vieram, historicamente, um após o outro?
– Devo concordar.
– O que dizes?
– Pensa comigo: na ânsia de fazer-nos pensar, ele envia mensagens
criptografadas, certo?
– Decerto.
– Em fragmentos de cerâmica.
– Perfeito.
– Não achas que ainda há um último recado presente neste peculiar utensílio?
– Posso até estar chegando lá, Sócrates. Mas confesso que – qual um Eudoxo
diante de uma pista gritante em sua evidência – ainda me encontro totalmente às
escuras.
– Acende pois o candeeiro, antes que dês com a testa na parede. Permanecer
no escuro é escolha, antes de uma condição. De onde achas que este cântaro
veio?
– Compete a ti descobrir.
– Por Zeus, Sócrates. Nem saberia por onde começar.
– Tenho a leve impressão de que o assassino vai esperar que nos antecipemos
a ele: o que descobrimos até agora leva indubitavelmente a crer que ele tem tudo
sob controle – tu é que deves antecipar-te! Anda, vai! Os ventos que tocam a
embarcação sagrada não podem ser mais rápidos do que tu. Agora não demores
um instante a mais!
– Sócrates, eu ainda...
– Aristófanes: corre!
– Não falei que queria ler os papiros, Filipos. Apenas pedi para tirá-los.
– Se te parece.
– Meu pai?
– Sim, Filipos.
– Este... é o cântaro?
– O que achas?
– O cântaro existe!
– Não... de forma alguma, claro que não, mas pensei que ele nem mais
existisse!
– Todos os pedaços aqui estão, meu pai... O que quer dizer: o último crime
foi cometido. Diz, diz, ele foi solucionado também?
– Tudo a seu tempo, Filipos, tudo a seu tempo. Não te mostrei o cântaro para
antecipar trecho algum da história. Já o tocaste. Já o sentiste. Já o apreciaste. Já
estabeleceste um elo sensorial com o caso. Agora deixa que eu entre na parte
decisiva de minha narrativa. E fica tranquilo. Não pretendo morrer antes de
chegar ao fim dela. Mas volto a dizer que, se isso acontecer, já tomei as
providências para que não fiques sem tomar conhecimento dele.
– Não fales assim, meu pai. Descansa de quando em quando, e viverás ainda
por muito tempo.
– Por Hades, que isso não é um jogo de palavras, Filipos! Estou bem mais
velho do que Sócrates quando ele se foi – por que eu quereria mais?
– Pai, descansa.
– Então senta e ouve, porque se queres mesmo zelar por mim, ouvir-me é o
melhor que fazes.
– Certo.
– Onde eu parei?
– Sim, Filipos, o notório desafeto dele, agora angustiado por não conseguir
facilitar sua libertação, por não evitar a morte que vinha célere como a flecha de
Aquiles. Se bem que o que eu preferia tomar para mim, naquele momento, era
Xantipa.
– “Ele tem um recado pra ti”...? Foi isso o que ela disse?
– Senti o chão faltar, e com isso cheguei a apoiar-me na garota, no que ela
deve ter interpretado como um assentimento: deu um leve sorriso e em seguida
entrou no estabelecimento. Um pouco perdido, fui atrás. O lugar, esfumaçado,
não chegava a ser dos mais requintados do bairro, mas tampouco era uma
espelunca. Como fazia tempo que eu não frequentava o meio, o ambiente me
pareceu novo ou, no mínimo, bastante modificado. Afrescos cretenses de
segunda mão na parede, cerâmicas de formas afrodisíacas pintadas e espalhadas
por mesas e pelo chão. Alguns colegas de profissão, já entretidos com o ofício
do estabelecimento, gritavam-me sarcásticos “Ó, Aristófanes, brinda-nos então
com tua insigne presença!”, ou “Por Dioniso, que fizemos para merecer tal
prestígio?” Eu acenava com a cabeça, dispersamente, e seguia meu caminho.
Seria ali, naquele prostíbulo, meu confronto com o criminoso? No meio de tanta
gente? Que mensagem se ocultaria naquela estratégia, que me empurrava ao
ventre da mercearia de tão antiga profissão? A tensão convertia-se em
curiosidade, que por sua vez caminhava ao lado da preocupação em não perder a
garota de vista. Após alguns confusos instantes voltei a vê-la, agora subindo uma
escada, que parecia dar para um cômodo mais ao fundo – os demais cômodos,
onde os clientes se fartavam com a mão de obra local, encontravam-se todos ao
nível do piso. Subi a escada, até que o barulho, as gargalhadas e a fumaça
fossem se distanciando, dissipando-se, a ponto de eu poder ouvir meus passos na
madeira. A garota, sem voltar-se para mim, avançou até um cômodo ao final de
um corredor estreito, e lá entrou, deixando a porta encostada. Agora se fazia
quase silêncio, e a tensão voltou a predominar. Parei, olhei para trás e cogitei se
era o caso de prosseguir. O assassino deixara claro que nos vigiava e não nos
faria mal – mas até quando? E se o último assassinato significasse uma
reviravolta em seus métodos? Agora eu ouvia meu coração batendo alto, e
considerei a hipótese de dar meia volta, quando ouvi, vinda de dentro do
cômodo, uma ordem roucamente masculina: “Anda! O que estás esperando?”,
tendo por coro alguns finos e curtos risinhos femininos. Por algum motivo
pressenti que aquilo desprovia a situação de qualquer ameaça; talvez
constrangimento, mas não um atentado à minha vida. Lentamente empurrei a
porta.
– Descansa, pois. Depois me explica o que sucedeu, porque confesso não ter
entendido absolutamente nada.
– Mas... e isso de ele querer falar-te? Ele quem? Imagino que não fosse o
proxeneta. Ou era?
– Queres dizer...
– E que dizia...?
– Bem... Nas condições em que ele foi colocado em tua túnica, não vejo
muito sentido em perguntar para qual direção ele apontava. A rapariga não teria
como saber o modo certo de depositá-lo lá, já que...
– Aí é que está. Este último fragmento não era triangular. Era quadrado.
– Quadrado?
– Em algum momento na manhã a garota loura sairia, para algum afazer fora
do estabelecimento, e eu precisaria saber dela quem lhe dera o pedaço de
cerâmica e a incumbência!
– Quando o sol finalmente começou a esquentar, e eu vi que ela era uma das
únicas pessoas – entre clientes e profissionais – que não haviam saído ainda,
inquietei-me mais. Vendo aparecer uma meretriz aparentemente mais velha e
mais vivida – o que me fez pressupor um mínimo de tolerância e consideração –,
fui até ela e perguntei pela rapariga loura.
– E ela?
– Sem querer humilhou-me ainda mais. “Vê, rapaz, que isso não tem futuro.
Vai para casa, para tua mulher e teus filhos, se os tiveres, e não desperdices tuas
esperanças com as garotas daqui. És homem culto e experiente – dá para
percebê-lo –, e a última coisa com que deverias te ocupar é iludir-te com quem
fabrica ilusões.” Tentei replicar, dizer que o que eu tinha a ver com ela era coisa
rápida e sem tanta importância, e ela complementou “Sim, sempre é. Uma coisa
sem importância, e que vai crescendo, engolfando-te qual uma hidra com suas
incontáveis cabeças.” Finalizou batendo-me nos ombros: “Ouve a voz da razão,
meu bom homem”.
– Bem, meu pai, não hás de negar que recebeste uma valiosa aula de conduta
cívica e familiar nessa manhã.
– Foi neste momento, quando me afastei da mulher, que vi passar ao lado a
garota morena, a mesma que segurava a botija de vinho no cômodo do
pavimento superior, enquanto a loura descalçava o proxeneta. E nem precisei
abordá-la: ela mesmo se aproximou, discreta mas decidida, dando a entender que
ouvira minha conversa com a mulher mais velha. “Diz-me”, ela falou, “ouvi
Egídio dizer que és autor teatral?”, ela disse. “Egídio?”, falei, e ela: “O
proprietário do local. Que estava conosco ontem, no cômodo privativo”, e nisso
ela riu de leve. “Sim”, falei e já emendei: “Porém minha presença aqui não tinha
nada a ver com...” mas ela interrompeu-me: “Folde pediu-me para não te dizer,
mas se arranjares um jeito de eu ir assistir às tuas peças, posso distrair-me e
talvez esquecer que prometi a ela”. “Folde, a rapariga loura?”, eu disse, e ela
confirmou: “Sim, a germânica”. Ficamos numa breve pausa para saber quem
tomava a palavra primeiro, até que eu disse “Teremos, no próximo mês, ensaios
para minha nova peça, chamada As Mulheres na Assembleia. Basta apareceres
no Teatro de Dioniso e me procurares”. E ela, prendendo um risinho como que
demonstrando que combinávamos alguma clandestinidade amorosa ali: “Folde
saiu pelos fundos, imaginando que a esperarias; foi rumo à Tessália e disse que
não volta mais”. Disse isso e afastou-se.
– E o que fizeste?
– Ah, as dores.
– Continuavam a incomodar-te?
– Não; incomodam agora. Tinhas razão, Filipos. Falar muito e não descansar
foi má ideia. As agulhadas no abdômen voltaram. Vai, traz um pouco de vinho
para aplacar-me este incômodo.
– Tenta descansar. Se for o caso deixa essa história para outro momento.
Temos que priorizar tua saúde.
– Filipos, não tires da uva o que ela tem de melhor. Cada vez que a água se
intromete a arte vinária morre um pouco. Agora anda, vai.
– Absoluta.
– Calma, Sócrates. Deixa que eu me recupere. Hoje foi o dia mais intenso de
minha vida, devo dizer.
– Mas fala: onde estava Odilardo? Quem terá sido o filósofo aludido, desta
vez?
– Com o intelecto.
– Aristófanes, meu nobre poeta, depois de amanhã não teremos mais nossas
conferências noturnas! Eu terei partido e então com quem compartilharás estes
tão secretos e vívidos relatos criminais? Conta-me tudo o quanto antes!
– Sócrates.
– Sim?
– Aristófanes, meu bom ator. Tão bem interpretaste teus bufões, políticos
corruptos, filósofos – até mesmo o engambelador e malandro Sócrates fizeste,
em As Nuvens –, e agora mostra-te incapaz de interpretar Aristófanes!
– Sócrates, eu...
– Se não voltamos à história, meu dileto escritor, sinto então que terei que
pedir-te para me deixar dormir e aproveitar minha última noite de sono na terra
dos vivos. Dormir com a certeza de que se vai acordar não deixa de ser um
mimo que torna nosso espírito preguiçoso e nossa mente acomodada. Que
amanhã de manhã seja a última vez que me deixo levar por esta lassidão – e que
depois disso eu parta bravamente em direção ao desconhecido. Sempre é
saudável descartar velhos hábitos.
– Ótimo. Que Agátocles então nos sirva água – nada de vinho – para
celebrarmos este momento único. Afinal, seria uma falta de cerimônia entornar a
cicuta em plena ressaca. Vamos, meu dileto autor: anima tua fisionomia e mata
minha curiosidade! Xantipa há de entender que falhaste não por incompetência,
mas por pura caturrice minha. Fizeste teu melhor.
– Por Zeus, Aristófanes, começa logo! Teus preâmbulos são mais longos que
os discursos de Péricles depois das batalhas! Misericórdia!
– Ora, por Dioniso! Um desafio! Que nobre e elegante proposta para nosso
penúltimo diálogo! Sim, invertamos os papéis, Aristófanes! Mostra-me o que, a
contragosto, apreendeste de meu modo de ensinar!
– Certo. O que dizia, pois, meu nobre desafeto Sócrates, a mensagem que
veio no último fragmento de cerâmica?
– Sim, Sócrates. Estás de acordo que a oração, lida em sua completude, nada
– ou muito pouco – tem a dizer?
– Concordas que a frase Finda a mudança tem vida própria, assim como Do
nada é que nada sai também, analisadas em separado?
– Por certo.
– Ora, Sócrates, qual foi a ocorrência anterior em que a ideia mudança foi
mencionada?
– Decerto. Era O único hábito que não muda é o de querer mudar o tempo
todo. Se não me falha a memória.
– Justíssimo.
– E concordas que, para elucidar tal enigma, nada mais tentador do que
dirigir-me ao local da morte de Áulito, como se o assassino me chamasse ali?
– Pois visualizada ela foi por mim, Sócrates, e quase tive uma síncope ao
divisar – mal chegando ao local – o corpo, às margens do Cefiso. Mas não na
mesma margem onde o cadáver de Áulito fora encontrado.
– Estou certo em dizer que o fato dele ter sido encontrado na margem oposta
denota oposição às condições em que o cadáver de Áulito se encontrava?
– O opróbrio. Guarda teu sarcasmo para ti. De minha parte, só tenho mais
uma coisa a acrescentar.
– Diz.
– Não estarei aqui depois de amanhã, meu tão brilhante Aristófanes. Deixo-
te às voltas com a descoberta da identidade dele. Mas conta: o que Eudoxo disse,
quando soube da morte?
– Perfeito. Neste ritmo, logo ele descobre que foi má ideia os gregos
haverem invadido Troia. E o que fizeram com o corpo?
– Levaram a um galpão próximo ao gabinete dos astínomos, para retirar a
argamassa. Foi hilariante ver os arqueiros citas transportando-o disfarçadamente
em uma carroça, coberto por uma manta, como se estátua verdadeiramente ele
fosse!
– Sim, mais uma estátua para o templo da estupidez, mais uma cariátide para
o monumento à cretinice.
– Por quê? A embarcação sagrada irá atrasar-se mais uma semana, um mês?
– Atenas não abriga mais filósofos, Sócrates. Imagino que em pouco tempo a
cidade terá não mais que sofistas e, no máximo, copistas de filósofos. Sem ti, as
tardes na Ágora ficarão sem razão de ser. Os debates nas estoas serão estéreis.
Os banquetes não passarão de comilanças e bebedeiras.
– Evidente que pretendo. Pelo menos nela ficarás perene, preservado para a
posteridade, porque – como eu disse – se deixarmos o registro de tua lembrança
à mercê da escrita de teus seguidores, eles nada mais farão do que colocar
palavras em tua boca.
– Não creio que venham a registrar nada sobre mim, meu dedicado
Aristófanes. Volto a dizer que jamais nutri paixão pela palavra escrita. Ela não
emana o calor nem o fôlego de uma conversa oral, com todos os seus respiros,
pausas, contradições, excessos e imperfeições. É justamente por almejar a
perfeição que ela mata a espontaneidade da fala e a engessa em rabiscos frios e
inertes. Ela não transmite nada, só repassa. Se a escrita predominar, meu nome
se evaporará na atmosfera dos anos, das décadas. Em pouco tempo Sócrates será
apenas o nome de um personagem de Aristófanes – e este sim, por escrever seus
trabalhos, deverá permanecer para a posteridade.
– Mais pobre. E não por minha ausência, já que a vaidade póstuma não há de
ser um de meus inúmeros defeitos. O que posso dizer sobre Atenas, meu desde já
saudoso companheiro de serões, é que interesses pessoais e corporativos
predominarão sobre o que entendemos como busca por justiça: a cidade irá
fatalmente ver dissolver-se sua integridade cívica, para logo perder a hegemonia
na Hélade. E sem necessidade alguma de outro conflito no Peloponeso – o
descaso, a corrupção e a plutocracia cuidarão disso. Outra potência há de surgir
e, sem necessidade de guerra, fincará seus alicerces ao apropriar-se de nossa
língua, nossos costumes, nossos deuses, no fim das contas caindo em igual
armadilha: deixar prevalecer a prevaricação em detrimento da virtude, e assim
indefinidamente. Uma civilização assimilando outra, em infinitas absorções de
modos de pensar, de agir, de legislar, de cultuar seus próprios Olimpos, e
desgastando todos estes pilares ao passá-los adiante, extrapolando as terras
conhecidas, atravessando oceanos remotos, chegando a continentes
inimaginados, para reciclar toda esta sucessão de valores, conquistas e
catastróficas derrotas. Mas também posso estar equivocado, meu nobre
Aristófanes: Atenas sem mim talvez fique melhor, mais plural, mais brilhante, e
é até melhor que eu me vá, para não passar pelo vexame de ver estes meus
esforçados prognósticos pessimistas serem descumpridos, o que... por Zeus, que
barulho é esse lá fora?
– Eudoxo está lá fora, Sócrates, com dois arqueiros citas. Vieram buscar-me.
– Como assim?
– Não desejo tal sorte a Atenas, meu caro poeta. Também não era assim que
eu pretendia despedir-me de ti, vendo-te arrastado daqui para fora de forma tão
abjeta e arbitrária, mas qual ocorrência – em meus setenta anos de vida – já
obedeceu a alguma expectativa minha? Vai em paz, se paz conseguires obter nos
dias que se seguirão, Aristófanes. Se tua existência já despertou algum dia em
mim qualquer sentimento, ele não se compara ao imenso orgulho que nutro
agora por termos compartilhado tanto em meus últimos dias de vida. A mim foi
valioso ter te conhecido, agora de verdade.
– Sócrates! Eu...
– Sócrates!
– Filipos.
– Pronto.
– Pai. Foi-te fartamente recomendado que descanses, que evites falar, para
que as dores...
– Onde estávamos?
– Não, eu não aceitava que aquela fosse a última. Desde o momento em que
fui arrastado por Eudoxo até o gabinete de Laques, eu tinha em mente fazer o
que fosse preciso – o impossível – para estar na cela de Sócrates na manhã
seguinte e testemunhar seus últimos instantes de vida. Até para ter certeza de que
ele morreria mesmo, porque eu ainda não acreditava que Atenas chegasse
mesmo a cometer aquela iniquidade.
– E como estava Laques?
– Tomado por uma ira indescritível. Quando entrei em seu gabinete, não
mais na condição de intimado mas como indiciado, percebi que as histórias que
corriam na época em que ele, púbere, era pupilo de Odilardo, mostravam-se
agora plenamente confirmadas. Apenas um ímpeto passional justificaria aquilo.
Sua boca espumava, seu olho falconídeo se mostrava injetado, as veias do
pescoço pareciam grossos riachos entrecruzados. Eudoxo mantinha-se
prudentemente entre ele e eu, e ainda assim Laques avançava, meio que tentando
contornar Eudoxo, meio que dando-se conta de que não poderia agredir um
interrogado. “Confessa logo que foste tu, e encerraremos a questão! Tanto tempo
sendo feitos de tolos, e o assassino bem abaixo de nossas fuças! Anda,
confessa!” Precisei esperar algum tempo até que ele se cansasse – porque uma
erupção daquelas exauriria qualquer um – e finalmente se sentasse ofegante.
Quando o silêncio pareceu prevalecer na sala, quebrado apenas por sua
respiração pesada, tomei a palavra: “Podes acusar-me do que bem entenderes,
Laques. Possuis o poder para determinar qualquer punição que não tenha que
passar pelo crivo testemunhal ou de defesa. Se é o que vai acontecer aqui, faz o
que lhe convier. Se, pelo contrário, existir aqui uma brecha para que o acusado
possa se manifestar, eu apreciaria lançar mão dela.” Ele pareceu morder a isca:
“Por quê, insinuas que em Atenas não se coloque em prática a pluralidade e o
exercício do julgamento? Acaso nos tomas por éforos espartanos, que condenam
à morte sem necessidade de trâmite pelos tribunais?” Aquelas frases e suas
combinações de significados configuravam tantas piadas que eu nem saberia por
onde começar a rir, se rir ali permitido me fosse. Eu apenas disse: “Sou inocente
– e não passaria de um imbecil se fosse o homicida e ainda continuasse
frequentando vossos círculos, informando-vos dos progressos dos crimes e ainda
por cima subestimando vossa arguta inteligência investigativa”. Laques respirou
profundamente, conferindo-se a calma necessária, e então disse, não sem ódio
em cada sílaba: “Odilardo era um mentor sem igual, um filósofo de imenso valor
e uma figura paterna ímpar. É abissal a revolta que me toma ao ver assassinado,
e de forma tão violenta, um homem já entrado em anos e que não fazia mal
algum a ninguém. Como conseguiste tu, com uma mensagem tão enigmática
como a que recebeste, concluir o exato local do crime? Prova-me que não tiveste
participação!” Foi minha vez de tomar um longo fôlego, aí repliquei: “Laques,
sou conhecido em toda Atenas. Fiz meu nome a partir de meu trabalho, e não
poucas vezes tive conflitos com o poder. Mas minha forma de denegrir a
atividade política sempre se deu pela sátira, exclusivamente pelo poder da
crítica, invariavelmente pela força da paródia e da anedota. Castiguei
severamente cada costume apenas fazendo o povo rir. Podes perguntar a
qualquer cidadão ateniense sobre o que ele pensa de Aristófanes, e ouvirás, com
certeza, ‘inoportuno’, ‘escandaloso’, ‘vulgar’, ‘obsceno’, ‘escatológico’,
‘ordinário’ e até – vá lá – ‘engraçado’. Mas nunca ouvirás um ateniense dizer
que me viu impor minhas ideias através da força, da violência ou da subjugação
que não fosse verbal, porque esta é minha verve e meu destino. Já vi pessoas
bem mais indignadas do que tu – neste instante – diante de minhas peças, e te
digo que jamais lancei mão de outro recurso que não a palavra para indignar
essas pessoas. E se faço uso da palavra, é porque tenho a palavra em mais alta
conta, mais alta até do que certos valores apenas apregoados pela ainda mais alta
sociedade ateniense. Pois se tenho a palavra em tal conta, é natural que com ela
eu me embata, por ela eu me reconheça e através dela eu me exercite. O que fiz,
neste caso, não passou do uso da palavra como ferramenta do pensamento:
observei, deduzi, comparei e cheguei à conclusão sobre o que o assassino queria
dizer. É nessa esfera que eu ajo, é nesse ambiente que eu produzo: a lógica, o
raciocínio, o discernimento”.
– Para um pouco, meu pai. Teu esforço te castiga e até tua respiração se
altera. Não te inflames tanto. Toma um pouco de água.
– Promete que contarás esta história. Que a registrarás, como jamais o fariam
os bajuladores de Sócrates. E que farás mais: colocarás no papiro a comédia de
Sócrates conforme eu te contei, a levarás a teu público, às novas plateias, aos
novos tempos. Espalha esta história mas fora de Atenas – abandona aqui os
ressentimentos, os resquícios da mesquinharia, os entulhos da hipocrisia que
tanto reina e grassa nesta cidade, leva estas narrativas ao mundo que vieres a
conhecer, não apenas Siracusa mas além, pois é a este mundo que elas se
destinam, não à pequenez de pensamento que cada vez mais se agiganta na
outrora grandiosa Atenas. Promete-me.
– Promete-me.
– Prometo.
– Então descansa tu a tua fala, e ouve-me, que ainda muito tenho a contar-te.
O fim da história se aproxima. Em breve saberás tudo o que queres saber.
– Sim, mas...
– Pois bem. A única coisa que me passava pela cabeça era dar um jeito de
escapulir para ir ter com Sócrates, em seus últimos instantes. Pouco me
interessaria a resistência de seus amigos ou mesmo o confronto com Xantipa a
respeito de meu fracasso. Me interessava mais descobrir uma forma de driblar a
vigilância de Eudoxo e seus homens. O mesmo Eudoxo que naquele momento
me escoltava, com o arqueiro cita que ia à nossa frente portando uma tocha para
nos guiar na escuridão. Em dado momento Eudoxo aproximou-se mais e falou
“Por que não respondeste quando Laques perguntou-te sobre a comédia de
Sócrates?”, e eu disse “Porque eu nada teria a dizer sobre ela que interessasse a
Laques”. Depois de um longo silêncio ele tentou novamente: “E pretendes
encená-la?” “Naturalmente”, eu disse. “Assim que a situação adequada se
apresentar”. Um silêncio mais curto, e ele tornou: “Mas responde a mim, então:
pretendes com ela fazer uma crítica a Sócrates ou aos que o condenaram?” “Os
que se incomodarem com ela”, eu falei, “estes sim serão os criticados”. E
tranquei-me em feroz quietude até chegarmos em casa. Foi então que vi os
primeiros e tímidos traços do azul celeste na até então escura linha do horizonte.
O dia que todos tentávamos dissimuladamente empurrar para a frente começava
cruelmente a dar as caras – e eu ainda não conseguia acreditar que em poucas
horas Sócrates não mais estaria entre nós. Como se não bastasse, a
inconveniência e a chateação, encarnadas em Eudoxo, não davam mostras de se
calar: “Neste momento a embarcação sagrada deve estar atracando no Pireu”, ele
disse, como se aquele relato importasse à nossa caminhada. Quando chegamos
aqui em casa, ele ainda tentou: “Bem, Aristófanes, pelo menos agora, com tua
permanência compulsória em casa, deverás ter tempo para trabalhar em tuas
obras e terminar teus escritos”. Abri a porta, como se o comentário não tivesse
sido dirigido a mim, e entrei. Antes que eu a fechasse Eudoxo falou, apontando o
mesmo arqueiro cita que já fizera ronda em frente à casa, dias atrás: “Oitosyros
montará guarda aqui. Ocorre que agora, ao invés de não deixar ninguém entrar,
as ordens dele são impedir o contrário. Como Cérbero, no Hades, ele vai investir
apenas contra quem tentar sair”, e a esse comentário ele acrescentou uma tíbia
tentativa de riso. Se era um chiste, ignorei e principiei a fechar a porta, mas
Eudoxo ainda uma vez a reteve: “Aristófanes... Já terminaste de ler... minha
peça?” Pela primeira e última vez desde que eu saíra do gabinete de Laques
sujeitei-me a encará-lo, e disse: “Eudoxo, deixa que eu te dê um conselho.
Prossegue astínomo, usa os favores de que dispuseres para chegar a arconte,
termina teus dias no Areópago, mas nunca, em hipótese alguma, chegues perto
de considerar-te autor ou poeta. Passa longe de qualquer anfiteatro ou palco,
mantém distância de tudo que se referir a arte ou criação, porque tens tanta
aptidão para isso quanto minha velha cadela tem para recitar Homero ou
Hesíodo no mais puro dialeto jônico”. E bati a porta.
– E tornaram a ver-se?
– Eu só queria que...
– Cala-te. Ouve. À medida que a claridade da manhã ia se impondo, pus-me
a elaborar alguma forma de sair dali. O arqueiro cita montava guarda dando a
volta pela casa, devagar, de olho nas portas e janelas: tentar escapulir por alguma
delas seria perda de tempo. A velha Medusa, também em seus dias finais – a
pobrezinha já não devia estar entendendo mais nada daquela movimentação toda
– olhava-me desacorçoada, deitada na soleira da porta dos fundos, talvez me
perguntando por que raios dia sim dia não um arqueiro fantasiado de bárbaro
rondava nossa casa, e registrando, ainda que sem forças para poder expressar, a
falta que deveria sentir de tua mãe. “Medusa, minha velha”, acabei falando, “tu,
que foste amaldiçoada com os cabelos de serpente por Atena, numa crise de
ciúmes de Poseidon, bem que agora poderias vingar-te da deusa petrificando a
cidade inteira e a condenando à imobilidade eterna, já que do jeito que as coisas
caminham qualquer desenrolar há de mostrar-se catastrófico. Porém tua vista
embaçada e já tomada pela catarata não tem poder sequer de divisar formas, nem
gestos, nem o certo ou o errado – ou seja, estás plenamente capacitada para o
cargo de legisladora ou juíza”. Eu via o tempo passando e me apavorava,
percebendo que cada instante preso em casa me deixava mais longe de falar com
Sócrates pela última vez. Mas simultaneamente a ideia de imobilizar o
adversário me seduzia – se não petrificar, ao menos parar o arqueiro cita de
alguma forma. Se ele estacionasse à porta da casa eu poderia sair pelos fundos, e
neste momento veio-me a lembrança: meus vizinhos haviam combinado com o
cita – na outra ocasião – um pagamento à parte, para que ele fizesse a ronda por
todo o quarteirão. Fui até uma das janelas laterais e, abrindo-a, tive a sorte de
deparar com a vizinha, que cuidava de sua horta. “Ei, Alcmena”, eu disse,
“lembras-te da quantia que combinaste com Oitosyros, o arqueiro cita? Ele veio
hoje cobrar de ti e dos demais o acerto, para assim poder continuar a ronda pela
vizinhança. Se queres prosseguir contando com os destacados serviços da guarda
ateniense, avisa também os outros.” A vizinha não esperou para espalhar a
informação, e em pouco tempo pude ver, pela porta entreaberta da sala, uma
pequena aglomeração em torno de um atônito mas gradualmente satisfeito
funcionário da polícia ateniense, à medida que recebia os ilícitos óbolos das
mãos dos contribuintes. A artimanha funcionara: o arqueiro entreteve-se com
aquela súbita ocorrência pecuniária e por um momento esqueceu-se de suas
atribuições. Paralisado ele ficou, e foi aí que me esgueirei pelos fundos da casa,
pulando a modorrenta Medusa e saindo estabanado, saltando as cercas e
contornando duas ou três propriedades vizinhas para chegar o mais rápido
possível à prisão. Eu me cansava mais do que estava acostumado, minhas
entranhas se reviravam e eu sentia o prematuro e azedo gosto da certeza de que
não chegaria a tempo.
– Estás cansado agora.
– Está nos meus planos descansar. De forma definitiva, aliás. Mas não neste
momento. Ouve-me, portanto.
– Certo.
– Sim?
– Xantipa?
– “Ele me pediu para deixar a cela antes... Dizia não ter paciência para o
choro das mulheres e crianças. Mas Lísias contou-me: assim que Sócrates
recebeu a cuia de cicuta das trêmulas mãos de Agátocles, ambos ficaram se
olhando fixamente, e então ele... se pôs a gargalhar. Gargalhou, gargalhou,
desconcertando a todos.”
– A ti?
– A mim, segundo Lísias contou a ela. Logo depois ele tomou a cicuta de um
só gole. Sem a menor hesitação.
– E o que viste?
– Ela estava vazia, Filipos. Nem os vigias, nem Agátocles, ninguém lá. O
catre de Sócrates vazio e desarrumado. O grilhão que prendia seu pé, aberto e
jogado ao chão. Sentei-me no assento que eu utilizara durante nossos serões
noturnos, e não sei quanto tempo se passou até que um guarda entrou, como se
uma vistoria ele tivesse vindo fazer. Demorei a perceber que ele havia tirado, da
bolsa presa à cintura, um pergaminho amarrado com um laço, e o estendia a
mim.
– Um pergaminho?
– E disse: “Ele pediu para entregar isso a ti”.
– Amanhã.
– Como?
– Não foi isso que passou por minha cabeça, meu pai. É que...
– É que falta tão pouco? Por que não contá-lo hoje? Na verdade tudo a ser
contado já o foi, Filipos.
EPÍLOGO
– Bem, não ouso sequer pensar o que imaginei encontrar neste quarto, meu
pai. Acabo de chegar da rua e vejo teu médico saindo, com ar contrito e de
poucas palavras, apenas cumprimentando-me e evitando parar para conversar.
Dou com minha mãe no jardim, sentada, as mãos ao rosto e soluçando – e
imediatamente corro até aqui: qual não é meu alívio de ver-te vivo e
aparentemente bem-disposto.
– Antes, passa-me aqui o cálice e dá-me de beber. A sede briga com a dor
como atenienses e espartanos disputando o Peloponeso de minhas entranhas.
– Pois não. Bebe devagar. Agora diz... minha mãe esmoreceu? O médico
deixou de ter esperanças?
– Não, não deixa tua lividez voltar, meu filho. Eu apenas apresso o que por si
só já é um processo natural e – o que foi isso, Filipos? Deixaste cair e quebrar o
cálice que estava na família de tua mãe há gerações! Minha sorte é que ela
haverá de ter contigo, e não mais comigo, para dar a bronca!
– O que fizeste?!?
– Não, não, jamais terias como sabê-lo, meu filho. Tranquiliza tua alma
quanto a isso. E sobre ser justo – não, mil vezes não, Filipos. Injusto é viver o
resto de meus dias encarcerado nessa dor desoladora, vergonhosa, e que se
alimenta de minha carne cada vez mais rapidamente, exigindo de vós que zelem
por mim a noite inteira e durante todo o dia limpem minha bunda, sequem minha
boca, enxuguem minhas secreções, se esfalfem enquanto eu já nem noto que
existo mais, dividido entre a angústia excruciante e a demência. Não, Filipos.
Um doente que vive somente através das vidas dos que cuidam dele, e ainda
infligindo-lhes sacrifícios áridos e estéreis, é o mais perfeito retrato da
humilhação. A comédia e a dignidade andam de mãos dadas, se ainda não
percebeste. O contrário é que é a tragédia oca, presunçosa e sem vida.
– Meu belo Filipos, não ignoro que isso possa remeter a uma paródia
ordinária do que ocorreu a Sócrates, mas confia que não há nada mais distante da
verdade. Concordo apenas que a razão é a mesma: ambos, eu e ele, atestamos a
total impossibilidade de prosseguirmos diante das fatalidades. Quando encontrá-
lo no Hades, por certo serei ridicularizado: “Não bastasse me imitares – mal – no
teatro, agora também na morte?”
– Vem cá, minha criança. Enxuga teus olhos e pega em minha mão. Mas à
frente compreenderás e me perdoarás. O tempo é um médico tão generoso que
não apenas cicatriza como também abre mão de honorários.
– Mas por que não falaste também comigo, meu pai? Nunca quiseste saber...
minha opinião?
– Eu sabia que serias terminantemente contra, meu menino. O leve pássaro
da juventude não foi criado para suportar peso algum, que dirá o ônus de
decisões de vida e morte. Apressemo-nos, agora, porque já sinto a dormência
subir-me pelas pernas. Antes que seques as lágrimas e vás chamar tua mãe, para
que dela eu me despeça, quero que me prometas mais duas coisas.
– Não prolongues a conversa, meu filho – não tenho mais tempo. Apenas
quebra-o e saberás o que precisas.
– Claro, claro. A segunda. Caso registres mesmo tudo o que viemos falando
até agora, promete-me que a escrita deste diálogo termina exatamente aqui,
Filipos. A leitor algum interessará o que eu disser em meio aos estertores finais,
ao choro de tua mãe, à comoção que sei que com tanto esforço tu represas ao
peito, e em meu suspiro derradeiro. Quero que registres minha fala final como
uma piada. Uma última anedota.
– Uma anedota?
– Sim, Filipos. A minha última. Queres ouvi-la?
– Tu sabes mesmo por que é que nós, do teatro, recorremos ao velho truque
das cordas e roldanas, para fazer os deuses descerem ao palco e ditarem
arbitrariamente a conclusão do enredo?
O PAPIRO
Me faltava a arte.
Eu já conhecia a ti, Aristófanes, mas apenas de nome, e com o
distanciamento que a obsessão por acumular o saber me impunha. Eu não via a
arte com a proximidade necessária – eu a encarava como uma excentricidade
tipicamente ateniense, mas se ateniense ela era, a ela eu também deveria dedicar-
me: foi o que concluí. Comecei então a frequentar o Cerâmico, a fazer amizade
com os artistas e a estreitar relações com os amigos de quem te conhecia, depois
com teus próprios amigos, até conseguir transitar no meio teatral e assistir não
somente às montagens mas também aos ensaios de tuas peças. Comecei a ver, rir
e deleitar-me com tuas comédias, a acompanhar-te nos festivais. E fiz mais –
passei a querer também tomar parte naquilo. Tu não te lembras, Aristófanes, mas
procurei ingressar em tua companhia, fazer parte de teu elenco. Uma vez,
quando selecionavas dezenas de candidatos a ator, fizeste um teste comigo, para
o papel de Fidípedes, em As Nuvens. Ali pus em prática minhas técnicas de
imitação, de histrionismo, de paródia, e tu, implacavelmente – ao contrário de
Sócrates –, rebateste: “Não, não! Não tens que apenas declamar, não tens que
imitar ninguém, não tens que forçar sotaques: tens que interpretar! Isso não é um
concurso de arremedos, é um palco de teatro! Eu quero atores fazendo
personagens, não personagens se passando por atores!” E ali mesmo me
dispensaste. Não, claro que não te lembras – tantos foram os candidatos que
reprovaste naquela e em tantas outras ocasiões.
E mais – mal Atenas viu-se livre dos espartanos, ela resolveu acusar, julgar e
sentenciar Sócrates. O homem a quem eu devia meu interesse por filósofos. O
filósofo a quem eu devia minha erudição. E o erudito a quem eu devia minha
vida. Ali, Aristófanes, eu vi que era finalmente hora de entrar em cena no palco
de Atenas.
Eu não iria vingar Sócrates eliminando seus acusadores. Nem tampouco
alguém do sistema judiciário ateniense, ou os responsáveis diretos pela aplicação
da pena. Eu seria mais incisivo – e vingaria Sócrates eliminando os que, no
decorrer dos anos, eu vi colaborarem insidiosamente e em conjunto para que ele
acabasse visto como inimigo de Atenas: os sofistas.
Matar Eurístenes foi fácil. Ele era o mais falastrão, o mais provocador e o
mais acessível de todos. Confesso que não sabia das delicadas relações dele com
o Arcontado, mas isso só veio ajudar meu plano. Matei-o numa madrugada, à
saída do lupanar. Foi muito divertido ver a aflição que a morte dele deflagrou,
nos bastidores do âmbito político. E eu tinha a certeza de que, depois que eu
enviasse a mensagem cifrada a ti, Sócrates não demoraria a elucidá-la: Tales de
Mileto era só o começo. Os outros filósofos viriam.
Por fim, fechar o ciclo de mortes com Odilardo não foi mais que óbvio: o
mentor de Laques, confinado em sua vila na saída para Tebas, já imobilizado
pela artrite, mas não menos passível de ser assassinado e exposto com toques
artísticos – digamos, esculturais. Minha euforia por antecipar a histeria que
acometeria Laques só não foi maior que minha diversão em acertar com a
prostituta do Cerâmico a maneira de entregar-te o último fragmento com a
mensagem, e depois providenciar a fuga dela. A germânica tinha belos traços, e
seria uma interessante esposa na longínqua Ilíria, se lá eu optasse por
permanecer e se levar uma vida medíocre estivesse em meus planos.
É isso, Aristófanes. Mas não, não terminei. Aliás, devo-te a maior das
explicações.