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Um conto de duas universidades

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March 30, 2010

Quando a lógica mercantil se sobrepõe à construção do pensamento crítico e reflexivo

Álvaro Bianchi e Ruy Braga

O sistema de ensino superior brasileiro encontra-se profundamente tensionado. Nos


últimos vinte anos o número de alunos matriculados nas universidades brasileiras
aumentou mais de três vezes, mas dois terços desse crescimento coube às instituições
particulares. A diferença entre instituições públicas e privadas é nítida: enquanto nas
primeiras ainda é possível encontrar a pesquisa e a extensão ao lado do ensino, as
universidades privadas funcionam como colégios de terceiro grau, contribuindo de
modo insignificante para a produção de novos conhecimentos.

Ao invés de representar uma democratização do acesso ao ensino superior, o


predomínio das universidades particulares na oferta de vagas reproduz precisamente as
clivagens sociais presentes na sociedade brasileira. A busca dos saberes técnicos e
profissionais que caracterizavam os setores mais qualificados da classe trabalhadora
deu lugar à procura por um diploma de direito ou administração de empresas de uma
universidade privada. Mas, enquanto no passado o detentor de um diploma do Serviço
Nacional de Aprendizagem Industrial estava dando um passo decisivo para conquistar
uma posição distintiva na fábrica, não há garantia alguma de que o portador de um
título de uma universidade de segunda linha consiga melhorar sua condição laboral.

Para os trabalhadores e seus filhos, a promessa de uma vida melhor mediante a


obtenção de um título superior continua sem se realizar. O fracasso é socialmente
construído,

como bem argumentaram Stéphane Beaud e Michel Pialoux em seus trabalhos.


Especialmente no livro 80 % au bac… et après ? Les enfants de la démocratisation
scolaire, Stéphane Beaud demonstra como a palavra de ordem “80% de uma geração
no baccalauréat” (um exame aplicado logo após a conclusão do ensino médio na
França que credencia o estudante aprovado a prosseguir nos estudos universitário,
lançada pelo governo de François Mitterrand em 1985, serviu para desestruturar o
mundo social das classes trabalhadoras francesas.

Objeto de um verdadeiro consenso social fabricado durante os anos 1980 na França,


essa palavra de ordem expressava a conversão ao pragmatismo de um governo que
identificou na valorização do ensino médio pré-universitário e na desvalorização do
ensino médio profissionalizante formas de regular o desemprego massificado dos
jovens franceses. Naturalmente, tal política alimentou uma série de esperanças de uma

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possível ascensão social para os filhos dos trabalhadores semiqualificados,
especialmente os trabalhadores imigrantes, em um contexto marcado pelo aumento da
insegurança social promovido pelo neoliberalismo.

Stéphane Beaud analisou profundamente em seu livro as ilusões e desilusões dos


chamados “filhos da democratização escolar” atirados na rota incerta de um
interminável período de formação. Assim, o sociólogo francês perscrutou a tensa
relação produzida por essa política de massificação dos ensinos médio e superior entre,
de um lado, a elevação global dos níveis de formação e a ascensão social para alguns,
e, de outro, os dramáticos custos simbólicos e psicológicos daqueles filhos de
trabalhadores, especialmente imigrantes, cada dia mais distantes do mundo do
operário, sem, contudo, conquistar no mercado de trabalho os tais empregos típicos de
classe média prometidos pelo governo.

Mas não encontraremos essa tensão entre as promessas do progresso e a realidade da


degradação social apenas no mercado de trabalho francês. Se voltarmos os olhos para
o Brasil, por exemplo, perceberemos que também no interior das instituições públicas
de ensino e pesquisa é possível encontrar “núcleos de excelência”, “laboratórios de
referência”, “carreiras do futuro” e “institutos do milênio” coexistindo com a deterioração
de equipamentos, recursos escassos, alunos frustrados e professores extenuados.
Enquanto as agências de fomento canalizam recursos para uns poucos cursos de pós-
graduação de reconhecida qualidade, as graduações e as licenciaturas muitas vezes
vinculadas às mesmas faculdades e de qualidade também reconhecida não encontram
verbas para seus projetos.

Lucratividade a curto prazo

A tensão é decorrente da imposição de uma lógica mercantil às atividades de ensino e


pesquisa. Os critérios de eficácia quantitativa e monetariamente avaliada imperam no
mercado. Esses critérios já mostraram mais de uma vez que podem servir para orientar
a aquisição de fortunas, mas apresentam graves problemas quando se trata de avaliar
bens intangíveis ou inquantificáveis, como o bem-estar, o prazer e a felicidade. São
também inapropriados para orientar a produção de conhecimento e as atividades de
pesquisa e ensino associadas a essa produção.

Mas são a possibilidade de imediato retorno dos recursos investidos, o registro de


patentes e a venda de novos produtos ou serviços que orientam parte significativa dos
esforços desenvolvidos nas universidades brasileiras. Empresas privadas canalizam
seletivamente recursos para essas instituições obtendo como contrapartida direitos
sobre os resultados de pesquisas. Fundações semiprivadas recebem esses recursos e
os utilizam sem prestar contas de acordo com os critérios de transparência que regem a
administração pública. Os correntes escândalos nos quais essas fundações se
encontram envolvidas revelam uma pequena parte dos obscuros negócios dos quais
tomam parte.

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Trata-se de uma característica do regime de acumulação sob o domínio do capital
financeiro que se consolidou mundialmente nos anos 1990: com o aumento da
concorrência em escala global e o consequente estabelecimento de novos critérios de
governança corporativa, os diferentes sistemas nacionais de pesquisa – sejam eles
estatais, semipúblicos ou privados – passaram a ser pressionados por resultados de
curto prazo. Os investimentos tangíveis ou intangíveis em pesquisa distanciaram-se
daquela experiência histórica sustentada por um tipo de compromisso com horizontes
de longo prazo que foi assegurado até meados dos anos 1980, tanto nos países de
capitalismo avançado quanto em alguns países de capitalismo semiperiférico.

O modo de financiamento da pesquisa e o modo de organização do campo científico,


de uma certa maneira, constituem as duas faces da mesma moeda. Em muitos países,
inclusive no Brasil, o regime disciplinar de produção e difusão do conhecimento
científico organiza-se em torno de agências governamentais que operam em uma
permanente interface, por um lado, com o sistema de pesquisa e, por outro, com
empresas estatais ou corporações vinculadas aos principais oligopólios nacionais. A
financeirização econômica é o fator que explica os “ajustes” nos sistemas de pesquisa
em benefício da lucratividade de curto prazo.

A chamada Lei de Inovação Tecnológica (Lei no 10.973), regulamentada pelo presidente


Lula em outubro de 2005, é um exemplo dessa orientação política baseada em ajustes
progressivos do sistema de pesquisa. Por meio dessa lei, o Estado brasileiro promoveu
a criação e a consolidação de laços entre universidades, institutos tecnológicos e
empresas, estimulando a participação de institutos de ciência e tecnologia no processo
de inovação empresarial. Além disso, a Lei de Inovação criou todo um arcabouço
jurídico capaz de viabilizar a incubação de empresas no espaço público ao estimular a
utilização da infraestrutura pública para fins de desenvolvimento tecnológico privado.

Em termos globais, essa lei coroou o processo pelo qual o poder da acumulação
capitalista sob domínio das finanças e a consequente pressão sobre o sistema nacional
de produção e difusão de conhecimento científico aprofundaram a alienação das
atividades acadêmicas. A instrumentalização do financiamento público da pesquisa
científica pelos oligopólios domésticos e o deslocamento do controle estatal para o
controle do mercado implicaram alterações significativas no nível, nos objetivos, nas
prioridades e no horizonte de tempo dos investimentos relacionados à pesquisa.

A perda da autonomia

Um subproduto dessa orientação é a crescente perda de autonomia das atividades


acadêmicas. De fato, não deixa de ser curioso que o trabalho científico tenha se
mostrado menos refratário à organização fabril do que poderíamos imaginar, como,
aliás, já observara Harry Braverman em sua conhecida obra intitulada Trabalho e capital
monopolista. Na verdade, a forma industrial que transformou o conhecimento científico
no principal motor de produção do valor excedente desde o final do século 19 foi
aprofundada pelo advento do regime de acumulação global dominado pelo capital
financeiro.

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Atualmente, quer estejamos analisando laboratórios de empresas públicas voltadas
para a inovação, quer estejamos estudando o processo de incubação de empresas
tecnológicas financiadas por agências de fomento à pesquisa em universidades de
excelência, encontraremos a mesma lógica produtivista que controla as corporações
privadas regulando o trabalho científico e acadêmico por meio da aceleração dos ciclos,
do estabelecimento de metas, da organização por “unidades de negócios”, da formação
de equipes e da flexibilidade do trabalho intelectual. Isso sem falar na pressão quase
“taylorista” exercida sobre os pesquisadores para patentear novos processos e produtos
ou publicar dezenas de artigos em revistas indexadas.

Na distopia produtivista do administrador Frederick Winslow Taylor, o trabalhador ideal


era um gorila amestrado, capaz de reproduzir de modo automático um conjunto muito
simples de movimentos no menor tempo possível. Na distopia da universidade
neoliberal, o pesquisador deve se submeter a um conjunto determinado de rotinas
intelectuais no menor tempo possível. Se num caso se empilha carvão e no outro se
produz um paper, tanto faz, pois o modo de organização do tempo de trabalho não
difere em muito.

O modo de avaliar o resultado também não. Ao final de um certo período, contabiliza-se


o total produzido: ou toneladas de carvão ou artigos publicados. No caso da

ciência, os resultados obtidos poderão encher de satisfação a burocracia acadêmica,


mas dizem muito pouco sobre o conhecimento realmente produzido no Brasil. A seleção
dos destinatários dos recursos disponíveis segundo essa lógica mercantil e produtivista
poderá condenar a produção científica feita no Brasil à irrelevância.

Por outro lado, longe da realidade dos setores considerados de ponta, os cursos de
graduação das áreas das ciências humanas e, principalmente, aqueles voltados para a
formação de professores vivenciam a realidade marcada por um dos aspectos
contemporâneos mais perversos da lógica mercantil: a desvalorização tanto dos
ensinos fundamental e médio quanto das atividades acadêmicas e científicas voltadas à
formação de professores. Nessa desvalorização encontraremos parte substantiva das
razões capazes de explicar a atual revolta estudantil nos cursos de pedagogia e de
ciências humanas.

Enquanto prevalecer essa tensão no sistema superior de ensino e pesquisa produzida


pela lógica mercantil financeirizada e globalizada, a evidente crise da universidade não
terá fim e o conto de duas universidades não chegará a seu desfecho. Para que a
universidade brasileira reencontre o caminho que a torne relevante tanto em termos
sociais quanto em termos científicos, ela precisa urgentemente se reconciliar com o
conhecimento crítico, reflexivo e, por isso mesmo, insubmisso aos interesses mercantis.
Caso contrário, estaremos condenados a simplesmente reproduzir as desigualdades
que historicamente marcaram a universidade brasileira.

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