Você está na página 1de 52

UM A PLATAFOR MA CULTUR

AL PARA PRODUÇÕES AU
TORAIS

ç a s
d an !
Mu áve i s
e v it
in

textos,
gravuras,
colagens
e cartuns:
te
humor e ar
ter
para entre
e refletir!

SANGRIA 1
CARTA AO LEITOR

A sangria
coletiva
Sangria é um sentimento. É sobra gráfica. É sangue vazando.
Coquetel tinto. É esta revista, uma plataforma cultural para pro-
O SENTIMENTO duções autorais. Crônicas, poesias, cartuns, quadrinhos e arte
em geral. Frutos de quem gosta de criar, legitimamente, sem
DE UM arrogância ou presunção; apenas pela busca de quem tenta se
encontrar por meio do processo criativo. Comunicando-se com
REFLETE o mundo e com o próximo e sendo retroalimentado por eles.
Bons argumentos enriquecem qualquer pensamento. E,
O SENTIMENTO aqui, a Declaração Universal dos Direitos Humanos norteia os
princípios básicos nos quais esta publicação se firma e apoia.
DE MUITOS Qualquer coisa fora disso não cabe aqui — a não ser como ex-
pressões de ironia e sarcasmo.
A publicação está dividida em duas grandes seções, entre
outras menores. A primeira, Mistifório, fluxo de expressões
confluentes, reúne trabalhos produzidos por diferentes artis-
tas, em momentos e contextos diversos, dispostos nas páginas
de maneira a sugerir alguma possível relação de sentido entre
eles. O fluxo de sua leitura se entremeia com a de outras seções,
Grinalda e Expositório: a primeira apresenta uma curta seleção
de poemas, enquanto que a segunda contém trabalhos expostos
para contemplação visual. Na segunda grande seção, Micteris-
mo, o joco-sério assume a direção da edição por meio do
humor gráfico e de leituras mais críticas e humoradas.
Em seguida temos HQ — Humor e Quadrinhos —,
sequência direta da seção anterior e cujo nome fala
por si. E, para finalizar, um Arremate opinativo.
Como tende a ser natural em qualquer ser vivo
e projeto que se preze, o objetivo principal desta
publicação é o de existir e se perpetuar da forma que
der. Canalizando energias criativas pairantes no ar e ofe-
recendo ao leitor um entretenimento que busca respeitar e
instigar sua inteligênicia. Enfim, sentimento vazando, coquetel
servido e que sua leitura seja prazerosa.

SANGRIA 3
SUMÁRIO

08 | Mistifório
18 | Conto — Janela
22 | Reflexão — Horizonte nublado
28 | Memorial descritivo — A cidade como
identidade

13, 31 | Expositório

14, 21, 30 | Grinalda


Alex Ponciano

32 | Micterismo
32 | Interatividade abissal
36 | Zen bodismo
38 | Caligrafia
EXPEDIENTE
42 | Pensamentos soltos e humor avulso
EDITORAÇÃO E DESIGN GRÁFICO 44 | Carranca is punk
Igor Villa
REVISÃO
Danilo Villa 45 | HQ — Humor & Quadrinhos
PRODUÇÃO GRÁFICA
Igor Villa 45 | Relógio
IMPRESSÃO
Ainda Não Sei 46 | Lico
COLABORAÇÃO ARTÍSTICA
48 | Inosphera
Alex Ponciano, Alexsander
Rezende, Beatrix Oliveira, 49 | Alegoria da caça
Carlos Roque, Christian
Rodrigues, Claudio Cruz,
Dodô Vieira, Ed Carlos 50 | Arremate
Santana, Erico Bomfim,
Fixxa Brasil, Gazy
Andraus, Irene Estrela
Bulhões, Ítalo Balthasar,
Jazz Miranda, Jéssica
Lemos, Leila Novais,
Léo Daruma, Márcia
Santtos, Nane Anders,
Rachel Midori, Rui
Sora Rodriguez, Valdir
Alvarenga
CONTATO
igorvilla@gmail.com

4 SANGRIA
Alex Ponciano — pág. 4
@alexponciano_arte
Alexsander Rezende — págs. 46, 47
@alexsanderdanaiarezende
Beatrix Oliveira — págs. 8, 10, 15, 18, 20, 26
@beatrixoliveiratattoo
Carlos Roque­— págs. 9, 10, 12, 21, 30
@carlosroque.bj
Christian Rodrigues — págs. 46, 47
@licodochrico
Claudio Cruz — págs. 13, 27, 38
@claudio.cruzz
Dodô Vieira — págs. 39, 41, 43, 45
@cartunistadodo
Ed Carlos Santana — págs. 40, 42, 43
@edcarloscartunista
Erico Bomfim — pág. 2
@bomfim_estudio
Fixxa Brasil — pág. 6
@fixxabrasil
Gazy Andraus ­
— pág. 48
@gazyandraus
Irene Estrela Bulhões — pág. 14
@irene.estrelabulhoes
Ítalo Balthasar — pág. 21
@italobalt
Jazz Miranda — págs. 22, 23, 24, 25, 31
@dangerjazz
Jéssica Lemos — pág. 27
@jehlemos23
Leila Novais — pág. 19
COLABORADORES
@leilalemosnovais
Léo Daruma — pág. 11
@ldarumaman
Márcia Santtos ­
— págs. 28, 29
@gravurar
Nane Anders — págs. 16, 17
@naneanders
Rachel Midori — pág. 20
@rachelmidori_
Rui Sora Rodriguez — págs. 14, 30
@paginasangue
Valdir Alvarenga — pág. 14
@valdirmirante82
SANGRIA 5
6
SANGRIA
Fixxa Brasil
EDITORIAL

Mudanças
inevitáveis
Tudo muda o tempo todo e tudo sempre mudará, pois a mudan-
ça é aliada do tempo, e o tempo, inevitável. Já dizia Heráclito, pra
lá de 500 a. C., que a mudança era a única constante. Eterno devir.
Nosso corpo muda, nossa mente muda, nosso mundo muda. Por
vontade nossa, ou apesar de nossa vontade. Para o bem, ou para
o mal, enquanto o tempo passa, indiferente.
Somos agentes e reagentes de mudanças: sociais, culturais,
morais, pessoais, emocionais, materiais, naturais e várias outras
mais. Podemos promovê-las, atrasá-las, direciona-las ou deba-
tê-las, porém, sendo inevitáveis, não haverá como as impedir.
Apenas, nos adaptarmos. E já ensinava tio Darwin que quem não
se adapta acaba extinto.
Mudamos como espécie com o passar das eras. Nos aperfeiço-
amos e evoluímos. Mudanças ruins, portanto, seriam aquelas que
nos levassem a regredir e degenerar. Evolução, involução, mutação.
Só o que já é perfeito não precisa ser aperfeiçoado. Ainda assim, po-
deria vir a ser modificado, se corrompido ou estragado — a menos
que se considere a imutabilidade como uma qualidade inerente da
perfeição, coisa para os metafísicos se debruçarem. Seja como for,
seguimos em processo de transformação constante; ou a caminho
de nosso aperfeiçoamento ou em outra direção qualquer.
Somos inexoravelmente carregados pela corrente do tempo,
não havendo nada que possamos fazer para a impedir. Só nos
restando tentar vogar por sobre seu fluxo, bem orientados ou
não, a caminho de nossos destinos.

SANGRIA 7
FLUXO DE EXPRESSÕES CONFLUENTES

UM DIA NA ESCOLA
Igor Villa

Na escola, o período integral de educação era garantido


por meio de um convênio firmado entre a prefeitura e uma
ONG. Finalizado o turno da manhã, os jovens aguardavam
pela equipe de educadores da ONG para serem levados ao
local das atividades de contraturno. Quinze minutos, ge-
ralmente, era o tempo de espera, no qual os funcionários
encarregados de observar os alunos rezavam fervorosamente
para que Jesus voltasse logo e lhes arrebatassem para o céu.
Santa paciência não bastava. Eram quinze minutos de puro

Beatrix Oliveira
pandemônio infantojuvenil.
Quando a equipe da ONG chegava, organizava-se uma
fila — ou algo parecido —, e os jovens seguiam para o ônibus
escolar. Cada um à sua maneira, de acordo com o seu grau
de educação e sua personalidade. Uns, mais quietos e tran-
quilos; outros, bagunceiros, falavam alto, cantarolavam, se
empurravam na fila e se ofendiam pelo caminho. Quando
então não brigavam.
Certa vez, uma “tia” da portaria, conhe-
cida pelo seu gênio forte e mau humor recor-
rente, perdendo a paciência com um dos
jovens que seguia pela fila batendo palmas
e cantando alto indecências, apontou para
ele, gritando: “que falta de educação é essa,
menino? Vou contar pro seu pai!”, no que o
garoto respondeu, dando de ombros e es-
tendendo os braços, num misto de desdém e
deboche, “meu pai tá preso!”.
Beatrix Oliveira

8 SANGRIA
E-MAIL É COISA DE VELHO
Igor Villa

Intrigada por uma súbita questão que lhe ocorrera, a


tia pergunta à sobrinha de treze anos se ela sabia o que
era e-mail. “Claro!”, responde a garota, naquela petulância
típica de adolescente. “É aquele negócio que a gente faz pra
poder entrar no TikTok!”.

Carlos Roque
PURA FICÇÃO
Igor Villa

Pedro não levava


desaforo para casa. Jacinto
também não. Os dois tive-
ram um desentendimento
DESENHINHO FOFO
no trânsito. Jacinto estava Igor Villa
armado. Pedro não levou
desaforo para casa. Um garotinho me vê rabiscando e me pede para fazer um
desenho para ele. Claro! E pergunto o que ele quer. “Um papai
Noel”, responde. Acho fofo; e daí que era abril? Coisinha de
criança, né? E ele continua, “segurando uma metralhadora”.

SANGRIA 9
PASSEIO CULTURAL

Carlos Roque
Igor Villa

Tudo tão caro, que o


sujeito passeava no shop-
ping como se passeasse em
um museu, só para olhar;
nada de por a mão e levar
para casa.

O WORKAHOLIC DA SANTA CRUZ


Igor Villa

Saída do metrô, muita gente surgindo


das escadas. Um sujeito trabalhava muito
empenhado na distribuição de panfletos
para os passantes, que mal lhe davam
atenção. Desdenhavam de sua entre-
ga; ou a rejeitavam, ou, então, aceita-
vam o panfleto de maneira irrefletida,

Beatrix Oliveira
em um gesto de mão automático,
muito por educação. Mas o sujeito não
se importava. Seguia compenetrado
na tarefa para a qual fora contratado.
Indiferente à indiferença dos outros;
dedicado à sua missão.
Seu celular toca, ele atende. Mantém
uma expressão grave no rosto. Mais ouve
do que fala. Parece ser coisa séria e pessoal,
mas ele não se deixa afetar; conclui a liga-
ção: “não posso falar agora; estou traba-
lhando”. E desliga o aparelho.

10 SANGRIA
MISTIFÓRIO

Léo Daruma

A MORAL, O IMORAL E O AMORAL


Igor Villa

A moral era próxima do imoral e do amoral. Flertava o amoral, que a des-


prezava. Desprezava o imoral, que fazia dela seu ganha-pão.

SANGRIA 11
MISTIFÓRIO
Carlos Roque
Igor Villa

carta do chão — pra quê? —, pensou con-


sigo, se repreendendo. Durante o resto do
dia, porém, não conseguia tirar a imagem
daquela carta de sua mente.
E se fosse um presságio de bem-aven-
turança? Um sinal de boa sorte? Um teste
divino para avaliar sua atitude perante as
oportunidades que a vida lhe oferecia? Se
fosse isso, então, ela sentia ter falhado. En-
tre se arriscar e se conter, ela havia optado
por se conter novamente, como sempre
fazia na vida. Não se arriscava ou apostava
SINA DO BARALHO
Igor Villa na sorte; sempre escolhendo o caminho da
segurança e do comedimento. Começou a se
Ao fim do seu horário de almoço, cami- sentir covarde. Achando precisar retornar ao
nhando de volta para a empresa, uma jovem local daquela carta.
avista no chão, largada na calçada, uma A essa altura, seu senso crítico já havia
carta de baralho virada para baixo. Sente entrado em suspensão, apesar dela com-
um forte impulso de querer pegá-la, mas se preender perfeitamente o ridículo daquela
contém. Fica com medo de virar a carta e se ideia. Mesmo assim, ato simbólico, ela
deparar com alguma mensagem negativa, precisava fazer aquilo. Por fim, se decidiu;
rogação de praga ou algo do tipo. Pensa- inventou uma desculpa qualquer no escritó-
mento idiota, ela sabia, mas não conseguia rio e saiu. Só que a carta não estava mais lá.
evitar. Aliás, idiotice era querer pegar aquela Suspirou, “vida que segue”, pensou.

12 SANGRIA
EXPOSITÓRIO

BELA SANTOS 1
Claudio Cruz
Nanquim e lápis
de cor sobre papel

SANGRIA 13
GRINALDA

miram-te os poetas
No habitar de uma imagem destas águas baixas
Vaga de todos os santos
a luz de uma estrela, bantos e brasis
Vaga e da terra aos céus
lume da lucidez, sem nuvens e cantantes
Vaga admitem
o canto no sereno, admiram-te
canto doce, e amam no intransitivo
canto de grilo…

Sombras na miragem da noite Rui Sora Rodriguez


em um universo surreal (publicado originalmente na Mirante 115)
de uma janela aberta

A criança do quarto se encolhe.

Irene Estrela Bulhões No antigo mirante,


O carrancudo ignorante
Contemplou o horizonte
E se enxergou.
Viu poesia no vento.

Na beira da lagoa,
A sombra dos salgueiros Igor Villa
Dança ao vento da poesia. (em deferência a Valdir Alvarenga)

Valdir Alvarenga

14 SANGRIA
MISTIFÓRIO

Igor Villa
BARATOPATIA
Igor Villa

Trabalhando no computador de madrugada; tudo silêncio


em casa. Ouvido mais sensível. Ouço um estalar no cômodo
ao lado; já sei o que é. Pego minha arma, repousada sempre
Beatrix Oliveira

do meu lado, e vou conferir. Vejo a invasora no chão e disparo,


sem hesitar. A bicha corre, mas o spray a persegue com o ges-
to de minha mão — e não me preocupo em economizar com o
produto. Ela se vira, agonizando, e dou mais algumas borrifa-
das. Observo a cena. Então, me pergunto se eu deveria estar
sentindo remorso, empatia por ela. E a resposta não vem. Daí,
imagino um ser gigante me encurralando com um spray homi-
cida qualquer, hipotético, e nada. É, acho que quando se trata
de barata, somos todos sociopatas. Por isso que o Estado De-
mocrático de Direito se faz tão necessário. Não podemos lidar
com nossos desafetos como se eles fossem baratas, né?

SANGRIA 15
MISTIFÓRIO

Nane Anders

GIRAÇÃO
Igor Villa
— Para! Para! Estou fican-
do tonto! — gritava o pião,
cansado de girar.

16 SANGRIA
MISTIFÓRIO

SANGRIA 17
MISTIFÓRIO Conto

vagar que notei o ferimento aberto na carne e


pelo formato parecia ter uma só causa: susto.
Havia buracos de janela por baixo da maciez, a
cada susto soltou no ar uma parte de pássaro
que foi, como um grito que sai da garganta para
JANELA se perder em ecos cada vez mais distantes. Ele
Beatrix Oliveira vivia, mas isso aí dele não tinha cura, nem no
Quando o senti o pássaro em minhas mãos, cheiro de mato nem nas canções, nem mesmo
não sabia que estava ferido. Era leve, aveluda- no voo, as partes não voltam, elas só espalham
do, trêmulo, quieto, abria as asas, não muito. e esquecem. Quis chorar as melodias que ele
Ficou perto de mim enquanto eu trabalhava e não cantava, pelo jeito uma das partes que
olhava ora para a janela por onde entrou, ora saiu e perdeu foi a voz. Teria sido o espelho da
para ele, bem aninhado ao lado da Virginia, que Virginia o culpado?, os pássaros tão frágeis para
eu conhecia há pouco tempo mas pensava mui- brigar consigo mesmos, porque logo entre o
to numa coisa que ela falava: o perigo de ir es- espelho e o susto tem o medo.
quecendo espelhos pendurados pelo caminho. Dependendo do caso, é fatal.
Parece um ato inofensivo, mas ela sabia dos Olhei através dos buracos e eles estavam
enganos de ver a realidade atemporal e vacilan- mesmo cheios de medo, sintoma certo do aci-
te que ali se forma e não é senão superfície. dente. Pelo menos eram como a janela, que é
Ela devia saber, também, que os pássaros uma ferida incurável de parede, não mata mas
não gostam da aparição do próprio reflexo, dá pra ver as coisas que ainda vivem dentro.
pensam que é um duplo, que é desafio, jogo de (Mudar de casa pensando, o medo vai ficar
imitação, ao menos enquanto durar a eterni- parado atrás, vai quebrar, vender, fazer cari-
dade do voo. Se foi isso o que aconteceu com dade, vou botar outra coisa que combine aqui,
o meu pássaro, um encontro violento consigo algo decorativo.
mesmo na superfície lisa e dura, ele macio, Quando as caixas se abrem tem mais medo
toquei suas asas de leve para saber e as sen- selado com cuidado, plástico bolha e bastante
ti — quebradas, consertadas, tortas, as penas fita adesiva.)
ainda encaixadas uma a uma na ordem correta Os dias arrastaram consigo suas horas e
para deslizarem sob o vento, ainda assim: não cheio de buracos cheios o pássaro tornou-se
era esse o problema. Havia algo mais grave, e muito pesado. Envelheceu, já o conhecia tanto,
o pássaro permanecia quieto. Pensando mais continuava na minha cama e parecia ter estado
uma vez no alerta de Virginia, olhei não para ali em todas as camas de todas as casas que
o espelho mas para fora e não entendi exata- foram minhas, uma lembrança repentina feita
mente o que tinha acontecido, como o pássaro de algodão e chumbo, companhia imóvel. Temi
podia ter entrado por ali deixando a imensidão até que ele pudesse ter mais ou menos a minha
para se achatar pelos buracos da janela dentro. idade e eu que não o vi passar sempre ao meu
*
A cama é muito grande para mim, então
botei lá o pássaro.
Ele todo era silêncio; seu peso delicado,
minha companhia. Foi alisando suas penas com

18 SANGRIA
Leila Novais

lado, o que é um exagero de vida para uma ave


pequena, mas e se foi isso e eu esqueci.
Não teria sido a primeira vez que ele entra-
va por aquela janela estreita, quantos saltos já
teria dado para mais um passeio, o ar em volta
do corpo, suspenso, dentro dos ossos ocos e
assobiando através dos buracos cada vez mais
numerosos, um dia não haveria mais pássaro
neles. Foi de novo e de novo o risco violento de
enfrentar espelhos, depois voltou e se espre-
meu pra dentro da caixa, descansando tranqui-
lo com a batalha perdida de se encontrar.

SANGRIA 19
MISTIFÓRIO

VIDINHA MAIS OU MENOS


Igor Villa

Fim do expediente, esgoto mental. Um


já estava no elevador quando segura a porta

Beatrix Oliveira
para o outro. Se cumprimentam com o olhar
e um gesto de cabeça. — Mais um dia... — sus-
pira um. O outro assente com um sorriso edu-
cado no rosto. Daí, como se tomado por uma
dúvida súbita, pergunta — Ou seria menos um?
Rachel Midori

VALA ARTÍSTICA
Igor Villa

E no vale dos artistas, vários espíritos


iluminados — outros nem tanto —, olhando
a esmo, trazendo na testa uma placa: “por
favor, me consumam”.

20 SANGRIA
GRINALDA

CONSTATAÇÃO DOS MIRANTES JANTAR

Em Ouro Preto Duas soldas de nervo e nome


de ouro mais valioso mastigando como se comunicassem.
cada igreja Humano – abstrações da terra
que ultrapassa em muito no perímetro da carne.
e em número veloz
os dedos das minhas mãos vazias A morte é a pele do tempo,
possui seu próprio crespúsculo em cada verruga os seus cadáveres.
encravado em seus altares Como sentir jorrar do caule a resposta
de nuvens afiadas e cortantes duma gestação que não se sabe?
pelos raios do sol
de mais um dia Vem então a mudança em crosta
cansado pelas ladeiras Interromper a mesmice da lei
e que já vai embora O circuito de músculos em pane
no atraso tanto do verão arde: Acabei, ele disse,
para dizer adeus Acabei.
e agora
na anuência plena da aurora
para todas Ítalo Balthasar
e para todos
de joelhos postos
no abrir sincronizado
das janelas e portas
abençoadas
esmeraldas
pelas águas
e pelo tempo.

Carlos Roque
05.01.1999

SANGRIA 21
Procura-se
uma ficção
em que eu
consiga
acreditar!

Jazz Miranda

22 SANGRIA
Reflexão MISTIFÓRIO

Jazz Miranda
HORIZONTE NUBLADO
igor Villa
Estude, se forme, trabalhe, progrida; tenha “Ser workaholic é cool”, “seja o explorador de
uma vida próspera e feliz; é o que canta a sereia si mesmo”, coaxa o discursador profissional. É
para o jovem incauto, encantado, perdido no tudo ficção!
tabuleiro do mercado. É tudo ficção! Como já Jovens neném, digo, “nem-nem”, nem es-
explicou o sapiente Yuval Harari. Que, a propó- tudam e nem trabalham. Muitos, por desalento
sito, recentemente prognosticou o surgimento e descrença com o futuro. Games, streamings e
de uma nova classe de pessoas num futuro besteiras na internet, difícil não procrastinar.
próximo: a dos inúteis. Pessoas que, simples- Posterga-se até um momento de lazer, série ou
mente, não serão mais empregáveis devido aos filme que se gostaria de assistir. Procrastinação
avanços tecnológicos proporcionados pelas de um passatempo prazeroso — ou se perdeu
inteligências artificiais. Meras peças obsoletas o prazer? —, ócio criativo destrutivo. É preciso
descartadas pelo sistema. Que, ociosas, preci- ver; é preciso se entreter; é preciso ter; e dá-lhe
sarão ter sua existência requalificada. consumir quinquilharias pop e ostentar experi-
Ademais, crises econômicas; jovens, os ências de consumo nas redes sociais. Animais
primeiros a serem dispensados — menos custos gregários que somos, buscando sempre pela
para as empresas. Mercado pequeno para tanta aprovação do próximo, mesmo que o próxi-
gente; estudada e capacitada até. Não importa, mo consista em um estranho qualquer, bem
economia retraída, mundo encolhido, gente distante de nós. Milhões de jovens instigados a
sobrando, geração desperdiçada. Energia des- nutrirem desejos que não poderão bancar. Mas
perdiçada. Sonhos irrelevantes. E ainda fica um o jovem empreendedor é esperto. Capitaliza
monte de coach coaxando, responsabilizando até uma conversa de botequim na internet.
os indivíduos pelos seus fracassos, pressio- O jovem romântico, criativo e proativo
nando os jovens com discursos pré-moldados, quer ser produtivo. Quer colaborar, contribuir
enchendo suas cabeças com neuroses e de- e se destacar no grupo; se tornar relevante em
pressão. Se esforce ao máximo de suas capaci- sua área de atuação. Quando convocado, en-
dades para conseguir o mínimo de dignidade. tra em campo determinado, buscando provar

SANGRIA 23
o seu valor. Mas, não raro, logo se vê empenha- das redes sociais. Peões incapazes de vislum-
do no engenho do senhor Burnout. Responsabi- brar o futuro de sua trajetória. Mas, claro, não
lidade sênior com pagamento júnior. Bagaço de estou me referindo a minoria privilegiada que
cana saindo pela moenda. Sem suco a oferecer, já tem seu futuro tracejado desde cedo.
acaba se tornando adubo, lenha, ou comida Jovens sem futuro são o futuro. E mesmo
para bestas. E a sereia volta à superfície para que o futuro seja só uma projeção intangível,
cantar novamente. ele sempre acaba se materializando como
Os jovens estão seguindo pela vida sem presente. É tudo ficção, eu sei. Mudanças
planos de navegação, pulando de casa em inevitáveis forçarão o surgimento no mundo de
casa no tabuleiro, aleatoriamente, à mercê da novas ficções para a humanidade se firmar. O
própria sorte, confusos quanto às regras do horizonte está nublado, mas existe algo além.
jogo, caindo em ciladas e aderindo a discursos Precisamos de uma nova ficção para acreditar.
odientos, irresponsáveis, em charcos rançosos Mais justa, solidária, transigente e abnegada.

Jazz Miranda

24 SANGRIA
MISTIFÓRIO

Basta acreditar que tudo pode acontecer!


Igor Villa

SEM CHAMADO
Igor Villa

Jaz o jovem em seu


pequeno mausoléu aluga-
do, entediado, ansiando
esperançosamente pelo
chamado para a aventura.
Que não chega, nunca.
Jazz Miranda

SANGRIA 25
MISTIFÓRIO

Beatrix Oliveira
MENSAGEM INDIRETA
Igor Villa

Cena inusitada em um ônibus. Dia de sol, quente, trânsito lento.


De repente, um baque. Os passageiros se assustam. Um urubu havia
pousado na barra lateral de uma janela aberta. E lá ficou empoleirado,
quietinho. Reações de assombro, perplexidade, repulsa e apreensão
tomaram conta dos passageiros de início, mas logo, risos e piadocas
sobre o absurdo da situação foram surgindo e o ambiente se descon-
traiu. O urubu, entretanto, não ria. Parecia sério, a fitar um dos passa-
geiros. Que parecia entender o sentido daquela mensagem indireta.
Sua alma estava podre.

26 SANGRIA
DESABAFO EM PROSA
Jéssica Lemos — 28/05/2020 (um texto pandêmico)

É que a gente nunca para de nascer. Mesmo que sem


alardes. No canto. Olhando para o nada. Mesmo no batismo
embaixo do chuveiro. Limpando o corpo em cachoeira que
deságua em oceano sem rumo. É que a gente insiste em re-
nascer. Estilhaçados. Escondidos. Pequenos. Construção com
pinça diária. Parte por parte. Corações mosaicos. Tapando
com silêncios buracos por buracos. É que dançamos
a música da vida. Faixas que não podem ser repetidas.
Escapando de arranhões. Por vezes, sendo deixados de lado.
É que a gente não cabe mais em si. Porque a morada fica
pequena frente a vontade de olhar para o céu. Porque perder
nos faz superar a nós mesmos em força e coragem. Comu-
nhão de estar presente dentro da gente. Ávidos em febre de
vida. Mesmo rodeados de mortos. É que estamos usando
flores para retribuir atrocidades. Persistindo na fraternidade
ante a deslealdade. É que somos poeira do caos. Quebrando
a cabeça entre peças que nunca se encaixam. Elos que se
revelam em um invisível carrossel. Impulso e repulsa. Num
mundo que nos enxerga de longe. Portanto, belo. Mas ínfimos
entre um gole e outro de tempo.

Cruz
io
ud
Cla

SANGRIA 27
MEMORIAL DESCRITIVO A cidade como identidade

por Márcia Santtos — artista visual, arte-educadora e pesquisadora


da gravura, Mestre pelo Instituto das Artes da Unesp/ SP. Vive e
trabalha em Santos onde fundou o Ateliê Gravurar.

O
s trabalhos da série “A cidade como identidade” nasce-
ram a partir de 2017 com minhas caminhadas no entorno
de meu ateliê Gravurar, localizado no bairro da Vila Ma-
thias em Santos. Caminhar é um processo de trabalho frequente,
onde coleto ervas daninhas, penas, objetos descartado, madei-
ra, além de desenhar e fotografar pessoas, animais e entorno
para minhas investigações estéticas.
Grande parte das construções do bairro datam das décadas
iniciais de 1900 e possuem uma história a ser contada. Essas
edificações me falam da transitoriedade do tempo e das relações
construídas entre elas e as pessoas. Algumas relatam os maus
tratos, as lutas, os desapegos; outras poucas, me mostram o
quão amáveis e acolhedoras podem ser quando preservadas.
Os vínculos afetivos entre as gerações passadas, presentes e
futuras estão contidos no diálogo que
estabelecemos com essas edifica-
ções, com nossa história individual
e coletiva, possibilitando a todos
enxergarem-se como protagonistas
da história. A identidade do povo está
contida e preservada no patrimônio
arquitetônico e dá à população cons-
ciência de seus direitos e obrigações
com a sua localidade. É necessário ir
além de si mesmo e pensar em ques-
tões como: Por que preservar? O que
preservar? Preservar para quem?
A utilização de um material
descartado como as embalagens
cartonadas trouxe mais sentido a
essa discussão. Utilizei essas embalagens para minha
investigação da ‘Cidade como Identidade’, produzindo
matrizes de gravuras originais gravadas e impressas
em relevo e côncavo.
As matrizes descartadas carregam vestígios,
marcas e machucados de sua história individual,

28 SANGRIA
e é essa fragilidade que endossa o diálogo simbólico de reter o
tempo, materializar a memória e nossa história coletiva.
Nesta série, apresento uma cidade imaginária, recriada a
partir de meu diálogo com a cidade real, que nos convida a nos
reconhecermos nela.
A cidade é nossa identidade.

SANGRIA 29
GRINALDA

Menina triste
Bexiga solta no vento.
Menino feliz.

meio que sem perceber


deixa a vida de ser
aquilo que é Chuva, sol e chuva
ainda contudo sendo Sol retorna ao meio-dia.
cossendo tangente intangível Dia de outono.
exatamente imprecisa

vida
Garotos negros.
precioso movimento Na cabeceira da ponte
dança muda indiscreta Tibum na água.
tímida
rodopio fora de eixo
passo errado
que do curso esperado desvia Levanta e grita
Culto no meio do ônibus.
vida A chuva aumenta.

entorse no pé
que de pé se põe
tropeço que frustra Torcicolo
desfruta! Olho só para frente
insano desfile que ensina Ano novo.

Rui Sora Rodriguez Carlos Roque

30 SANGRIA
EXPOSITÓRIO

PAISAGEM I
Jazz Miranda
arte digital

SANGRIA 31
INTERATIVIDADE
ABISSAL
Benéfico e/ou maléfico para nossa realidade psicossocial, a
interação entre o cérebro humano e os algoritmos das redes
sociais estão transformando — e transtornando — o mundo.
Igor Villa

J
á é consenso admitir que as redes sociais vez melhor o funcionamento das redes sociais e
mudaram bastante o mundo nos últimos de sua indústria, assim como de seu impacto no
anos. Porém, a maneira como essa afirma- mundo e na psiquê humana, potencializados,
ção se coloca talvez desagrade alguns. Pessoas sobretudo, pelos algoritmos do sistema. Pes-
teriam mudado bastante o mundo nos últimos soas, algoritmos e o mercado das redes sociais
anos, por meio dos recursos e das facilida- mudaram bastante o mundo nos últimos anos.
des viabilizados pelas redes sociais. Tá bom, Certa áurea romântica que já pairou sobre
mas todas essas mudanças teriam se dado de a internet em seus primórdios se dissipou ao
maneira orgânica, espontânea e natural? Bem, longo dos anos, mediante a uma realidade de
a realidade vem mostrando que não, à medida mercado que veio a se consolidar dentro dela
que a humanidade vai compreendendo cada com planos de negócios multimilionários. In-

32 SANGRIA
Meme cultural. Obra: Rinaldo e
o Escudo-Espelho, de Francesco
Maffei, 1650-55. Encontrado em:
https://media.getty.edu/museum/
images/web/larger/00089401.jpg

formação virou commodity


e usuário, produto. Respon-
sabilidades éticas e sociais,
meras inconveniências
técnicas. O materialismo de
mercado acabou delimitan-
do as margens de convivên-
cia dentro da rede, atrain-
do seus usuários para os
rincões tecnológicos das Big
Techs. E, conforme as redes
sociais foram se consolidan-
do na vida pública, se mostrando cada vez mais o livre-arbítrio de seus usuários, e, resumindo
rentáveis e lucrativas, a inocência e a esponta- de forma simples, a lógica consistiria na seguin-
neidade dentro delas foram se extinguindo. te: as pessoas usam smartphones. Conectados
às redes sociais. Controladas por algoritmos.
Parasitose social Projetados para melhorar o desempenho das
redes e a lucratividade das empresas. Aumen-
“O principal processo que leva as redes tando o tempo de permanência e interatividade
sociais a ganharem dinheiro, embora também dos usuários com o sistema. Persuadindo-os
cause danos à sociedade, é a modificação de no oferecimento de conteúdos mais instigantes
comportamento. Essa prática exige técnicas às suas personalidade. Presumidos estatistica-
metódicas que mudam o padrão comporta- mente a partir de comparações entre os dados
mental de animais e pessoas. Pode ser usada de diversos perfis. Levantados com base nas
para tratar vícios, mas também para criá-los”,* informações coletadas sobres os gostos e as
afirma Jaron Lanier, cientista (e filósofo) da preferências dos usuários. Fornecidas pelos
computação, em seu livro, Dez Argumentos mesmos sempre que clicam e interagem numa
Para Você Deletar Agora Suas Redes Sociais, rede social. Muitas vezes, por meio de seus
onde explana, entre várias coisas, sobre a lógi- smartphones. “Estamos sendo rastreados e
ca de funcionamento dos algoritmos das redes avaliados constantemente, e recebendo o tem-
sociais e o seu modelo de negócio, chamando po todo um feedback artificial.”* Os algoritmos
a atenção para a perniciosidade de tal modelo das redes sociais buscam aumentar o lucro das
à vida das pessoas e da sociedade em geral. empresas manipulando o comportamento de
Em seu primeiro argumento, ele especula seus usuários. Numa espécie de parasitismo
sobre como as redes sociais estariam afetando matemático de ordem psicossocial.

SANGRIA 33
Choques e petiscos

Algoritmos behavioristas. Agiriam por


meio de “padrões de recompensa no cérebro”,*
pequenas doses de dopamina a cada feedback
positivo, “adestramento” chamado de engaja-
mento. Estímulo ao vício. Também, se valendo
de reforços negativos, pois “[…] o feedback
desagradável, tanto quanto o agradável, pode
desempenhar um papel no vício e na mudança
comportamental sem que possamos perce-
ber”.* A manipulação das emoções dos usuários
se torna o mecanismo mais fácil de se gerar
recompensas e punições nas redes sociais.
E, embora os reforços positivos se mostrem
viáveis no processo de manipulação do com-
portamento, os feedbacks negativos se tornam
“a melhor escolha para os negócios”,* já que
“emoções negativas, como medo e raiva, vêm
à tona mais facilmente e permanecem em nós
por mais tempo do que emoções positivas”.*
“[…] o problema não é a mudança com-
portamental em si. O problema é quando isso em pouco tempo os avanços na computação
acontece de maneira implacável, robótica e, no coincidiram com incentivos financeiros ridicula-
fim das contas, sem sentido, a serviço de mani- mente perversos […]. Essa transformação tem
puladores invisíveis e algoritmos indiferentes.”* atraído com frequência novos tipos de clientes/
Ora, se ao interagir com outro, você por ventura manipuladores, e eles não são nada bonzi-
se torna alguém melhor, não haveria por que nhos.”* A infestação virulenta de fake news
considerar tal mudança comportamental como maliciosas de cunho político e social em posts
algo negativo. A nocividade que Lanier acusa pagos, que temos visto assolar e tumultuar a
encontra-se no modelo de negócio dos “impé- vida pública mundial ultimamente, ilustra bem
rios de modificação de comportamento para o ponto de vista do autor. Entretanto, des-
alugar”* que a indústria de propaganda teria considerar todos os benefícios econômicos e
se tornado. “Nos primórdios, a propaganda socioculturais proporcionados ao mundo pelas
on-line era realmente apenas propaganda. Mas mesmas redes sociais seria, no mínimo, injusto.

34 SANGRIA
MICTERISMO

Contudo, é Giuliano Da Empori, em seu


livro, Os Engenheiros do caos, quem demonstra
como, de forma prática, diversos movimentos
políticos populistas, intransigentes e anti-de-
mocráticos ao redor do mundo se valeram dos
algoritmos das redes sociais para se mobili-
zarem e galgarem o poder. Estados Unidos,
Inglaterra, Itália, Hungria, Brasil… A recente
ascensão do populismo narcisista no mundo,
seguido em paralelo com significativos avan-
ços no desenvolvimento dos mecanismos de
manipulação das redes sociais não se deu por
mera coincidência, “[…] para os engenheiros do
caos o populismo é filho do casamento entre a
cólera e os algoritmos”.**
Os algoritmos das redes sociais não pas-
militão limeira
sam de meras ferramentas, tal como um marte-
Inconsequências consequentes lo. Que pode, tanto ser usado na construção de
coisas belas, quanto bestiais, como se arreme-
Os algoritmos em si, não são nem maus, tido contra a cabeça dos outros, por exemplo.
nem bons. Até onde se sabe, não existe nenhu- Por fim, a besta-fera está solta no mundo — e
ma intenção maquiavélica por trás da lógica nas redes —, precisando ser subjugada e admo-
de sua construção. Seu único propósito é o seu estada pelo bem da humanidade.
próprio aperfeiçoamento, melhora de seu de-
sempenho e lucratividade da empresa. Embora,
como resultado do processo o que se veja seja
“[…] uma ampliação global e anômala das emo-
ções ‘fáceis’, que por acaso são as negativas”.*
No decorrer do livro, o autor aprofunda
seus pensamentos sobre a correlação de
influência entre os algoritmos das redes
sociais e o comportamento humano, re-
ferentes a diversos campos da vida so-
cial, incluindo a política, com reflexões
muito pertinentes aos tempos atuais.

a caveira de boné

SANGRIA 35
ZEN BODISMO
Pérolas de sabedoria do venerável BODEDARMA,
Power Master Coach de Transcedência Virtual, Cósmica e Financeira

Referências
* LANIER, Jaron. Dez argumentos para
você deletar agora suas redes sociais.
Rio de Janeiro: Intrínseca, 2018.
** EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros
do caos. São Paulo: Vestígio, 2020.

REDE DE COMPRAS
Nas prateleiras do mercado, DIÁLOGO AO LÉU
cérebros e corações, — Dez Argumentos Para Você Deletar Agora
Suas Redes Sociais... tá, então por que você não
emoções, deletou suas redes sociais depois de ter lido esse
medos e desejos, livro, já que você acha ele tão bom?
ambições. — Pela mesma razão que um fumante continua
Em oferta e promoções, a fumar, mesmo depois de informado sobre os
males que o cigarro causa. Quero dizer, VÍCIO!
liquidações.

36 SANGRIA
MICTERISMO

MEME CULTURAL. Obra: Uma Tempestade na Costa do


Mediterrâneo, de Claude-Joseph Vernet, 1767. Encontrado
em: https://media.getty.edu/museum/images/web/
larger/14472101.jpg
TROLLETADA
Os trolls são monstrengos horríveis de pe-
dra e lama. Pedra no cérebro e lama no cora-
ção. Desagradáveis e egocêntricos, interditam
debates e pontes, não deixando o raciocínio
alheio fluir. Obstáculos para o progresso cole-
tivo, podem agir por maldade deliberada ou
mera sacanagem leviana. Seja como for, aca-
bam demonstrando seu caráter desprezível
no ridicularizar dos outros! Zombeteiros sem
graça; se sentem grandes quando diminuem o
próximo. Apregoando desarmonias e intransi-
gências no prazer de sua voluntariosidade. São
nocivos à vida pública e deveriam ser banidos
da sociedade. Ou apedrejados! E que atire a
primeira pedra quem nunca agiu, pelo menos
uma vez, como um troll na internet!

SANGRIA 37
CALIGRAFIA Claudio Cruz

38 SANGRIA
MICTERISMO

Dodô

INFLUÊNCIA OPORTUNISTA
Igor villa

O jovem descobriu que vociferar sobre política nas redes so-


ciais dava visibilidade e aumentava o engajamento em seus perfis.
E quanto mais polêmicas, suas opiniões, melhor era o desem-
penho de suas publicações. Entendeu a fórmula. Encontrou no
conservadorismo seu nicho de performance. Logo se tornou um
ferrenho moralista, defensor de pautas reacionárias e reconheci-
da personalidade pública. Soube arregimentar seu rebanho e foi
eleito deputado federal. No plenário, repetia a fórmula das redes.
Palavras chulas e comportamento idem. Atacava minorias sociais
debochando de suas causas e menosprezando suas necessidades.
Virou manchete por algum de seus excessos. Quando questionado
em entrevistas a respeito, tentava minorar as reações negativas
alegando que seu desempenho nas redes sociais só melhorava.
Assumidamente, admitia exercer seu mandato parlamentar em
função das métricas de suas redes sociais. Usou das redes para
Igor Villa

galgar ao parlamento e usa o parlamento para galgar nas redes


sociais. Seu único compromisso real é consigo mesmo.

SANGRIA 39
MICTERISMO

HUMOR MATADOR
Igor Villa

Ted Bundy, Jeffrey Dahmer, John W. consegue evitar” —, nesse momento, Jerry
Gacy, Herb Baumeister e outros… todos na Brutos cutuca Samuel Little, rindo — “é isso
plateia de um show de comédia stand-up mesmo! É engraçado porque é verdade!” —,
no inferno. No palco, um igual, fazendo sua e o show continua. Com muitas piadas sobre
apresentação. Fazia observações ácidas e mães narcisistas, pais abusadores e complexo
bem-humoradas sobre a vida, a sociedade de Édipo. Algumas sobre alcunhas bizarras
e seus costumes. Falava de suas vítimas e atribuídas aos criminosos pela imprensa e
seus crimes, tirando sarro de alguma par- outras tantas sobre a mitificação da “classe”
ticularidade ocorrida no momento de seus por Hollywood. E para arrematar, piadas
atos, alguma súplica inusitada, considerada sobre a polícia e as autoridades — “Às ve-
engraçada por ele, e coisas do tipo. A plateia zes, só falta a gente implorar: ‘por favor, nos
ria, se identificando com o texto e o humoris- prendam!’” —, e o show se encerra. Sucesso.
ta, que zombava de muitos aspectos comuns Um alçapão se abre debaixo deles e todos
à vida de um serial killer, como a recorrente retornam, caindo, para o caldeirão de óleo
necessidade de muitos em colecionar troféus fervente. Enfim, é isso, o humor não tem
de suas vítimas — “a gente sabe que isso limite; o que tem limite é a moral, a ética e a
pode nos ferrar, mesmo assim, a gente não capacidade cognitiva das pessoas.
Ed Carlos

40 SANGRIA
Igor Villa
“Ainda não li,
mas dizem que
é muito bom.”
— M. Limeira

“É uma obra
Dodô

que nos leva a refletir


sobre a necessidade
da existência da
prórpria obra.”
— Vnel Bodedarma

“Puro suco de
contemporaneidade.”
— Jokó

UM LIVRO
PARA VOCÊ
COMPRAR

CATA
NICA
SANGRIA 41
MICTERISMO

OS SOLTOS
PENSAMENT
VU LSO!
E HUMOR A lla
Igor Vi
Ed Carlos

textos:

Se o deserto
do Saara já
foi floresta no
passado, pode a
floresta amazônica
se tornar deserto
no futuro?

,
"Ele é hipócrita
o" .
mas é sincer
tava
Era o que cons
no santinho do
candidato.

Igor Villa
Percebi que
algo andava
estranho no
mundo quando
vi o undergroun
d
entrar na mod
a
e se tornar
mainstream.
Igor Villa

42 SANGRIA
Canso só de

Dodô
te
passar em fren
ad em ia
a uma ac
ue la s
e ouvir aq
músicas qu e
tocam lá.

Verdadeiros
operadores de
cancela da inte
rnet,
acomodados na
guaritinha de
seus
apar tamentos,
co nt ro la nd o qu
em
de ve , ou não,
ser
Igor Villa

cancelado.

Ouvi dizer que


esse negócio de
e
curriculum vita
não passav a
de uma lenda
urbana.
Ed Carlos

SANGRIA 43
MICTERISMO

ISO.
PENSAR NÃO É PREC
NAVEGAR É PRECISO;

2020 ... acho


que aconte ceu
alguma coisa
te
muito importan
un do ne ss e
no m
se i lá… fa z
ano,

Igor Villa
o te m po qu e
tant
ne m le m br o.

atenação Gente! Gente! Não é


gu m en ta çã o consiste na conc capitalismo x comunism
Ar issas e
nclusões, prem o! É
lógica entre co do a mente se capitalismo x capitalism
. Loucura é qu an o!
po st os
pres su r conduzida Capitalismo predatório,
na da re al idade e passa a se selvagem, inconsequent
al ie Vigarice se
tos irracionais. e,
por pensamen do qualquer antiético e egoísta contra
uz na ga nâ ncia sobrepujan capitalismo mais human
um
tr ad de vontades
incípi o ét ic o na manipulação ético, solidário e susten
itário,
pr rem.
am o que quise tável!
alheias. Conclu

N ão se i.. .
ac ho que sou
um anarquista
e a m orte
conser vador s
eza
da bel iva,
socialista
lib eral ... is to
crat
já existe?
for lu za
a bele
rrer!
vai mo
da
devora m
uve
or ta
pela n otos
O que me conf anh
é imaginar qu e em
de gaf tas!
is
consum
algum univer so
do
paralelo está tu
dando cert o.

44 SANGRIA
HUMOR & QUADRINHOS

SANGRIA 45
HUMOR & QUADRINHOS

texto e traço:
Christian Rodrigues
cores:
Alexsander Rezende

46 SANGRIA
SANGRIA 47
HUMOR & QUADRINHOS o poético-filosófico de Gazy Andraus

Conheça a editora Marca de Fantasia — marcadefantasia.com


Parte integrante da obra: Ternário: M.E.N. 3a edição, publicada pela editora Marca de Fantasia na série Repertório, em 2023.
Leia online e/ou baixe o e-book: www.marcadefantasia.com/albuns/repertorio/ternario_men/ternario_men.pdf

Gazy Andraus é Doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes


da USP, Mestre em Artes pela UNESP e professor licenciado em Educação Artística pela FAAP.
Atualmente, finaliza o pós-doutoramento acerca dos fanzines de arte na FAV­-UFG. Além de
pesquisador na área de comunicação, artes e ciências, é autor de HQ Autorais Adultas e de
fanzines, ambos de temática fantástico-filosófica (ou poética).
48 SANGRIA
ALEGORIA DA CAÇA texto: Igor Villa
arte: Chico de Goya

No rastreio pelo objetivo, Porém, se


o sucesso não é garantido. aventurar
vale mais
do que
sonhar.

Eleva a alma e traz esperança...


já que A expectativa
da conquista anima
os corações...

Goya, disponível em museodelprado.es e localizado pelo número de catálogo: P002857.


Esta quadrinização foi feita a partir da obra Partida de Caza (1775), de Francisco de
Mesmo que ilusória e casual.

sendo assim...

pois nunca se
sabe quando um
revés poderá
nos atingir.

à mercê das
vicissitudes...
...querer é
uma virtude.

fim

SANGRIA 49
ARREMATE Igor Villa

Ó a IA aí, ó!
Produzi essa arte em 2018 para a revista Porreti- tas também fazem, assimilam diferentes técnicas e
nho, refletindo sobre o processo criativo e o avanço referências para conseguirem criar as imagens que
tecnológico. Quanto ao ato de desenhar e pintar, desejam? A diferença, óbvio, é que o processamento
em si, já compreendia ser plenamente capaz para a cerebral ainda — ainda! — se mostra mais abrangente
tecnologia de então reproduzir o fenômeno. Câmeras e complexo do que o dos sistemas computacionais
como olhos, processador como cérebro, impressora hoje desenvolvidos. Mas o trilho do tempo está aí,
ou braços robóticos como as mãos do artista. Agora, com a locomotiva do progresso tecnológico avan-
criar, como as IA estão fazendo hoje em dia, real- çando aceleradamente. A arte, contudo, sobreviverá,
mente, eu imaginava que esse tipo de coisa só seria pois ela sempre se adapta à lógica social vigente. Já
possível bem mais lá para frente, no futuro, e que, os artistas, como os artífices do séc. XIX, esses sim,
provavelmente, ou eu estaria muito velho para ver, sentirão — já sentem — um sacolejo forte na passa-
ou nem estaria mais aqui. Errei. “Ain, mas a IA não gem do trem. E não adianta gritar, Ned Ludd, pois
cria; só combina dados e imagens preexistentes para o trem não vai parar por sua causa. Entenda a nova
gerar novas formas”, ué, mas não é isso que os artis- realidade e se adapte, ou faça o que quiser.

50 SANGRIA

Você também pode gostar