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Capa: 44 Eventos
A Pair of Shoes, 1886,
van Gogh
Museum, Amsterdam
Locke. Coleção “Os Pensadores”. Tradução de Anoar Aiex. Abril Cultural, p. 3-4.
Agradeço a oportunidade que essa revista me não mais iria acontecer. Além disso, esses mesmos
dá para externar algumas reflexões que têm me inco- professores garantiram que em suas aulas de história
modado em meu trabalho e desde já me desculpo por a filosofia seria tratada de forma regular. Não haveria
um tom dramático que minha exposição possa carre- perda para os alunos.
gar. É que me é cara a filosofia.
- Na escola 2, as aulas de filosofia serão dadas fora do
O ponto principal que proponho para discus- horário regular. Os alunos interessados deverão se ins-
são é sobre o modo como a filosofia está sendo recebi- crever para assistir a essas aulas e não haverá avalia-
da nas escolas e temo pelo rumo que ela esteja toman- ção.
do na vida escolar. O grau de superficialidade dessa
recepção merece ser discutido. Para facilitar minha ex- - Na escola 3, os professores de português assumiram
plicação, apropriei-me do termo banalização, usado as aulas de filosofia e artes. Segundo a escola, esses pro-
por Hannah Arendt, na obra A vida do espírito, como fessores são altamente gabaritados para esse exercício.
recurso interpretativo. Precisei desse fio condutor
para organizar minhas ideias e elas se encaixaram bem - Na escola 4, o professor de filosofia também dá aula
nesse modelo arendtiano. Como a filósofa, impressio- de sociologia. Perguntado se os alunos não ficam um
nada com a superficialidade de Eichmann no famoso pouco confusos, ele disse que alguns às vezes pergun-
julgamento, na incapacidade do réu de pensar a si- tam se aquela aula é de filosofia ou sociologia.
tuação vivida, também
me impressiono com a - Na escola 5, na elaboração de um simulado, os profes-
irreflexão das escolas ao sores de história ficaram encarregados de elaborar as
não adotarem de forma questões de filosofia e sociologia. Resultado: não apa-
consciente a filosofia receu nem a questão de filosofia, nem a de sociologia.
nos seus currículos. E
ainda, novamente com - Na escola 6, precisa-se de um professor de espanhol
Arendt, preocupada que dê aula de filosofia, ou um professor de filosofia 3
com a banalização do que dê aula de espanhol. O diretor dessa escola estu-
mal, estou preocupado dou filosofia na faculdade e para ele filosofia é discurso
com a banalização do que não chega a nenhum lugar.
ensino de filosofia. É
isso que discutirei. - Na escola 7, são oferecidas três opções no ensino mé-
Hannah Arendt (1906-1975) dio para cada semestre: teologia, filosofia e sociologia.
O aluno deve optar por apenas uma das disciplinas,
ficando dispensado das outras duas.
Filosofia e as escolas
Como podemos ver nesses relatos, a filoso-
Antes de escrever este texto, resolvi entrar em fia entrou nas escolas pela porta do fundo. Apesar da
contato com alguns colegas da área para saber como o obrigatoriedade da introdução da filosofia no ensino
espaço da filosofia está sendo ocupado nas escolas de médio, não houve conscientização das instituições na
ensino médio. Acredito que esses dados, infelizmente aplicação da lei. Há uma falta de respeito pelo curso,
poucos, permitirão uma avaliação provisória das con- ou seja, não há sensibilidade ao argumento da introdu-
dições de “ensino de filosofia”. Assim, me permitam ção da filosofia na grade curricular. Os procedimentos
alguns pequenos relatos e pontuações: usados, eu temo, podem se tornar mais frequentes e
comuns, causando um grande mal à perspectiva do en-
- Na escola 1, duas aulas de filosofia foram acrescen- sino de filosofia nas escolas de forma consolidada. Eu
tadas na grade curricular do terceiro ano do ensino diria, um pouco temerosamente, caminhamos na dire-
médio. No entanto, as aulas foram repassadas para a ção de um ensino superficial, ou do fingimento do seu
disciplina História. Segundo o coordenador pedagó- ensino ou o da banalização de sua função formadora
gico, os professores reclamavam da insuficiência da do jovem.
carga horária para cumprir o programa e isso agora
4. As grandes questões filosóficas estão no âmbito do 1. É urgente e necessário que o filósofo acadêmico re-
pensamento (Kant): a existência de Deus, a imortali- passe aos professores uma orientação que os ajude a
dade da alma, o tempo, a vida, a liberdade, etc. Essas conquistar um espaço digno nas escolas. Cabe ao pro-
4 questões não podem ser colocadas no âmbito do co-
nhecimento, pois não há uma verdade sobre elas, mas
fessor superar as barreiras pseudo-acadêmicas e forçar
o filósofo da academia a pensar os problemas reais da
sim uma diversidade de significados. educação em filosofia.
5. Muitas vezes ficamos satisfeitos com a verdade e 2. Não houve ainda um encontro profundo entre a uni-
nela paramos. O pensamento quer ir além da verda- versidade e a escola, fazendo uma aliança entre a inte-
de, ele quer o significado das coisas. O conhecimento ligência acadêmica e o trabalho pedagógico. São mun-
conhece seu fim, o pensamento não. O conhecimento dos que caminham paralelos e não são as extensões
5. O que é “profundo” na filosofia é a diversidade de O professor deve apresentar o texto dos filósofos, fazendo
olhares, uma questão de ver, não de cavar. E se a filo- conexões com a realidade daquele tempo em que o autor
sofia é rica, densa e viva, não é apenas pela superpres- vive, mas também estimular o que se pensa sobre aquele
assunto hoje. Isso desenvolve a capacidade de conceitua-
tigiada argumentação, mas pelo discernimento e pela
ção e a competência de argumentar de maneira crítica.
contemplação da vida.
Ele aprende a debater, mas também a ouvir.
Filosofia e os alunos
Filosofia e o perigo da banalização do seu ensino
Algumas respostas de alunos que estudam fi-
losofia no ensino médio para a pergunta: Você gosta de
Infelizmente, o ensino de filosofia não está pro-
estudar filosofia? Por quê?
blematizado no país – está submerso, ou quase imóvel,
frente às transformações sociais –, ao passo que a eco-
- Laura: “Gosto porque me dá esclarecimentos sobre
temas do cotidiano. Me faz entender melhor sobre jus-
nomia e a política são problematizadas e amplamente 5
discutidas na mídia. Discutem-se os valores impres-
tiça, maldade, conflitos ...”
cindíveis para uma vida melhor, mas não estimulam a
discussão filosófica para compreender esses valores.
- Yasmin: “Gosto porque acho interessantes as discus-
Enfim, devemos problematizar a questão da
sões. Elas revelam algumas coisas que eu não tinha
presença da filosofia nas escolas e refletir mais sobre
pensado”.
essa situação. As escolas não estão preparadas para
a filosofia, os alunos não são atraídos pela disciplina
- Gabriela: “Não gosto de filosofia. Acho inútil e muito
como deveria ser e a academia precisa assumir um
fácil. As aulas apresentam ideias divergentes da minha
papel mais efetivo nesse debate. A superficialidade de
e me causam aversão”.
hoje pode causar um grande problema no futuro: a ba-
nalização do ensino de filosofia.
- Thaís: “Gosto de antro-
pologia e sociologia. A
filosofia me ajuda a en-
Notas:
tender mais a natureza
humana e a sociedade”. 1. Estou chamando de filosofia “pura” a filosofia despida de
tudo mais que não seja a lógica, a argumentação e a história
- Miguel: “Eu gosto de da filosofia.
filosofia. Tenho afinidade
pelos fenômenos sociais
e a filosofia me ajuda a * Robson Jorge de Araújo é professor do Ensino Médio,
refletir sobre a natureza mestre em História da Ciência e em Filosofia.
humana”.
P
REVISTA PENSE | Nº 03 | Dezembro/2012
Antologia de textos
filosóficos
por Tiago Luís Oliveira*
A novidade agora é que o Estado do Para- Cabe, sobretudo, elogiar a iniciativa. Para
ná disponibilizou uma Antologia de Textos Filosófi- nós, que nos preocupamos com a qualidade da
cos, com traduções de excertos de obras de vários educação, é revigorante saber que há bons proje-
filósofos, precedidos por uma devida introdução. tos e verdadeiro empenho na democratização do
As introduções e traduções foram feitas por es- conhecimento, somados à valorização do profes-
6 pecialistas das universidades do sul. A antolo-
gia, que pode ser baixada no endereço (http://
sor. Esperamos, sinceramente, que o exemplo seja
seguido nos demais estados do País.
www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/
File/cadernos_pedagogicos/caderno_filo.pdf), P
é distribuída gratuitamente e pode ser utilizada * Tiago Luís Oliveira é professor do Ensino Médio
livremente, desde que respeitando a sua correta e doutorando em Filosofia pela UFMG.
citação.
As relações da filosofia com a matemática são no entanto, que cedamos ao mito do pensador absolu-
quase tão antigas quanto a própria filosofia. Desde os tamente original. Em seu diálogo La cena de le ceneri3,
pitagóricos, os números parecem poder conduzir-nos mas também no De l’infinito, universo e mondi,4 Bruno
a regiões do ser que de outra forma ficariam escondi- associa, ao nome do cardeal, vários outros filósofos do
das da razão. Associada de forma definitiva à filosofia passado, que, de uma maneira ou de outra, colocaram
de Platão, ela transformou-se na marca de muitos pen- em dúvida a finitude do mundo. Se fôssemos buscar
sadores, que, de alguma maneira, filiaram-se ao longo as raízes do problema, teríamos de recuar até a Grécia,
da história ao pensador grego. Esse foi o caso de Nico- pois, como mostrou Koyré, num livro clássico sobre o
lau de Cusa (1401-1464) que, em pleno Renascimento, problema, a origem do conceito de infinito se encontra
procurou servir-se de teorias matemáticas para explo- no pensamento dos atomistas gregos5.
rar questões metafísicas e cosmológicas que o interes- Nossa intenção, neste texto, no entanto, não é
savam. Nosso propósito, neste texto, não é o de fazer a de reconstituir a história do conceito de infinito na
uma apresentação geral do pensador e nem mesmo época de Nicolau de Cusa e nem mesmo de explorar
aprofundar o estudo sobre pontos específicos de sua todas as implicações que seu uso teve em seu pensa-
filosofia. Mais modestamente, vamos mostrar como mento. Vamos partir da estratégia conceitual adotada
o recurso às matemáticas ajudou o cusano a formular em sua obra principal – Douta ignorância – , para mos-
sua teoria do infinito, que seria revolucionária em sua trar como o uso da matemática e de outros recursos de
época e fez a ponte entre o platonismo da antiguidade linguagem favoreceu a ponte entre concepções diver-
e o pensamento moderno. Mais amplamente, vamos sas do mundo.
mostrar que esse caminho levou o pensador a encon- A primeira dificuldade que encontramos em
trar novos rumos para a própria atividade filosófica. formular nossa questão advém do fato de que ao pro-
blema metafísico do infinito é preciso associar a ques-
A questão do
tão cosmológica da infinitude do universo. A fusão
entre os dois campos de investigação criou o solo fértil
7
infinito é um dos te- para a exploração dos pensadores do Renascimento. A
mas que despertou resposta de Nicolau de Cusa ao problema do infinito
maior atenção dos nas duas dimensões apontadas semeou a discórdia en-
intérpretes de Nico- tre os espíritos cultos da época6. A cosmologia aristo-
lau de Cusa ao lon- télico-tomista tinha a vantagem não só de restringir o
go dos tempos. Tal uso do termo infinito aos poderes de Deus, mas, sobre-
interesse provém do tudo, de evitar o risco da confusão entre as característi-
fato de que a revolu- cas do criador e aquelas de sua obra. Nicolau de Cusa
ção operada por este coloca o problema na forma de uma antinomia:
conceito na história
da filosofia, a partir Mas como o universo comporta tudo aquilo que não é
do século XV, pare- Deus, ele não pode ser um infinito negativo, ainda que
ce ter estabelecido a ele não possua um termo e, por esta razão, seja um in-
finito privativo e, por conseguinte, não seja nem finito,
ponte entre a obra do grande metafísico e o nascimento
nem infinito7.
da ciência moderna. Se faltam documentos para des-
crevermos com precisão os caminhos da influência do
O cusano apoia seu pensamento em duas pre-
cardeal sobre pensadores posteriores1, o testemunho
missas. Em primeiro lugar na ideia de que infinito ri-
de Giordano Bruno é suficiente para mostrar que, no
gorosamente só pode se aplicar a Deus8; em segundo
tocante à questão que nos interessa, o nome do cusano
lugar que o verdadeiro problema filosófico reside em
é uma das peças chaves na reconstituição da ruptura
conseguir conciliar a finitude e a infinitude9. Nesse
que o pensamento renascentista operou com a antiga
contexto no qual à noção de infinito (infinitum) veio
visão de mundo baseada na cosmologia de Aristóteles2.
se juntar a de ilimitado (interminatum) , a cosmologia
O próprio Bruno, ao reconhecer sua dívida para com
derivada dos princípios da Douta Ignorância estava
Nicolau de Cusa, que ele chama de “divino”, impede,
De longa data e com certeza de forma acentu- as questões semânticas, os problemas que dizem res-
ada ou dominante em nossos tempos, à primeira vista, peito às relações do sistema do mundo foram propos-
filosofia e sociedade não aparecem essencialmente vin- tos de forma bastante ambiciosa. Ora, como termina
culadas. Não me refiro apenas ao fato de que poucos o Tractatus? Qual o seu último aforisma? Todos estão
admitem a complexa problemática da determinação lembrados de que o celebérrimo aforisma sete afirma
social do pensamento, mas, inclusive, ao fato de que que: “O que não se
há modos de concepção que não entendem como ir- pode falar, deve se ca-
relevante o solo social da prática filosófica, nos quais, lar”. A respeito do que
todavia, o nível resolutivo dos filosofemas transcorre Wittgenstein está re-
num patamar extra-histórico ou extrassocial, que se fletindo e para o qual
empenha por ser comandado como integralmente as- oferece uma resposta
cético, ou seja, são indiferentes ou se desocupam de tão categoricamente
qualquer finalidade que não seja a finalidade pensada impotente, poucas li-
como intrínseca ao próprio decurso da filosofia, isto é, nhas acima, como os
não reconhecem ou não admitem a designação social aforismas antes do
do produto filosófico. Feita assim, tanto melhor à fi- preceito do silêncio, está configurada a questão. Eu en-
losofia, quanto mais distante da sociedade ela se fizer cadeio, para traduzi-la, os aforismas 6.44, a última sen-
e se a isto for somada a negação também de sua gêne- tença do aforisma 6.5, o aforisma 6.52. “O que é mís-
se social, estaremos num quadro perfeito da filosofia tico, não é como o mundo é, mas que ele seja” (6.44);
divorciada das formas de sociabilidade. No universo “Se uma questão pode ser colocada, poderá também
dessa hora, qualquer conexão entre filosofia e socieda- ser respondida” (6.5); “Sentimos que, mesmo que to-
de é mera contingência subalterna ou falso problema. das as possíveis questões científicas fossem respondi-
Mas uma posição desse gênero não é automaticamente das, nossos problemas vitais não teriam sido tocados.
a eliminação do homem e da humanidade como objeto Sem dúvida, não cabe mais pergunta alguma, e esta é
de reflexão. A ética e a antropologia, por exemplo, em precisamente a resposta” (6.52).1 Mas quando a respos-
tematizações extrínsecas às formas de sociabilidade, ta de uma filosofia, à indagação sobre a natureza dos
são evidências de que a ruptura concepcional entre problemas vitais, oferece somente o preceito de calar,
filosofia e sociedade não é necessariamente também que mais significa isso senão a confissão da falência
fratura entre homem e filosofia. Mas essa permanência dessa filosofia? Mas essa falência do silêncio, na boca
de vínculo nas condições dadas, ou seja, no interior de íntegra e lúcida de Wittgenstein, diante do beco sem
uma humanidade despojada de sua sociabilidade, não saída do seu próprio pensamento, estanca diante do
assegura que as condições de possibilidade da reflexão abismo, e seu silêncio é ruidoso, profundamente não
sejam postas, nem que seus processos e resultantes es- conformista, uma denúncia da manipulação universal
tejam protegidos de unilateralizações que mutilem ou da vida no âmbito da sociedade contemporânea, ainda
mistifiquem, nem, ainda, que suas conclusões contra que seja feita na forma de protes¬to a priori impotente.
todas as intenções e aparências se ponham contra o ho- Que isto seja contraditório no interior do próprio pen-
mem e sua humanidade, precisamente porque é uma samento de Wittgenstein só reforça o argumento de
reflexão de costas para a sociabilidade. protesto, até porque, no aforisma 309 das Investigações
Sugiro, com isso, que a fratura entre filosofia e Filosóficas, e não importa aqui se esta obra conflui ou
sociedade paga um grande ônus, tanto em moeda filo- rejeita a primeira de um quarto de século antes, lê-se
sófica quanto em saques concretos contra a individua- o seguinte: “Qual o seu objetivo em filosofia?” e a res-
lidade e a universalidade do homem. Sabem todos, por posta do próprio aforisma: “Mostrar à mosca a saída
10 exemplo, que o Wittgenstein, no Tractatus, trabalhou do mosquiteiro”.2 Conheço definições que falam em
num ambiente de euforia que se seguiu à publicação vez de mosquiteiro, vidro; tanto faz mosquiteiro ou
dos Principia, de Russell e Whitehead, tendo erigido o vidro, campânula que detém a mosca. Como as únicas
cálculo das proposições como padrão de inteligibilida- moscas que fazem filosofia são os homens, e este afo-
de de todos os sistemas formais, postulando, em con- risma é teleológico ético-prático, não há como negar
sequência, sua unidade, o que lhe permitiu conceber que nele se manifesta o preceito de uma filosofia reso-
a lógica como um sistema total. Por sobre esta base, lutiva. Portanto, de uma leitura não preconceituosa de
“Convém que o Governo ao menos uma vez da na Faculdade de Direito da capital pernambucana.
lance os olhos sobre a mocidade, que faça ensinar nas Seu principal animador é Tobias Barreto (1839-1889),
escolas uma Moral pura, uma filosofia sã, e nutra o sen- figura geralmente ridicularizada por ter publicado em
timento do amor divino”. Estas palavras do célebre po- Escada, em pleno interior de Pernambuco, um jornal
eta romântico Gonçalves de Magalhães (1811-1882) são intitulado Deutscher Kampfer, inteiramente escrito em
quase um programa de Filosofia para o Brasil. Adepto alemão...
do chamado ecletismo, proposto na França por Vic- Mas essa “mania germânica”, como o próprio
tor Cousin (1792-1867), que procurava conciliar o que Tobias Barreto dizia, e que tem como influência o criti-
houvesse de “razoável” e “sem excessos” em todos os cismo de Kant e o evolucionismo de Darwin e Haeckel,
sistemas filosóficos, Magalhães busca desse modo as- é a sua maneira de restabelecer a reflexão isenta de pro-
sociar a Filosofia a um pósitos não puramente filosóficos. Para Barreto, o mo-
projeto global de cons- vimento – e a tensão e luta que este implica – é a única
trução, pela educação, lei que rege a natureza, as sociedades e as ideias, e, por
do homem moral e cívi- isso, o ecletismo é apenas uma “sombra de ilustres de-
co, perfeitamente inte- funtos, cujas teorias, em todo ou em parte, morreram
grado ao regime monár- também.” Por esse motivo, ele também combateria o
quico então existente no positivismo, que, ao ignorar a tensão na evolução, se
Brasil. Não por acaso, ele tornou um mero catálogo de fatos, petrificando-se em
iria proferir na presença “uma dogmática de novo gênero, e, como todas as
do próprio imperador, dogmáticas, um processo de encurtamento e atrofia ce-
a aula inaugural do pri- rebral”.
meiro curso oficial de Fi-
losofia no Brasil, instituí- Propagandistas da “ditadura republicana”
do no Colégio Pedro II. O positivismo difunde-se, no Brasil, na segun-
da metade do século XIX, tendo como seu núcleo inicial
Só as ideias podem moralizar a Escola Militar do Rio de Janeiro. Ali, sob a influência
Não que antes não tivessem existido reflexões de professores comtianos como Benjamim Constant
filosóficas no Brasil – e houve até quem as encontras- (1836-1891), há um clima cientificista e anticlerical.
se nos primeiros escritos registrados ainda nos tempos Pereira Barreto (1840-1923) é um desses positivistas,
da Colônia, por exemplo, de um padre Antônio Viei- para quem a monarquia brasileira, associada à Igreja e
ra. Filósofos também teriam sido alguns escritores que baseada em instituições arcaicas como a escravidão, é
participaram da Inconfidência Mineira, no final do um entrave para o progresso. É preciso então criar um
século XVIII, de nítidas influências, segundo muitos, “Estado racional”, de “ordem e progresso” – lema que
do Iluminismo francês. Mas, na falta de melhores crité- seria estampado na bandeira nacional, instituída em
rios para decidir o que é ou não “filosófico”, talvez seja 1889, com a proclamação da República.
mais prudente considerar como o início da Filosofia no
Brasil o momento em que ela se oficializou como tal em A real dimensão da participação dos positivis-
uma instituição de ensino. tas na campanha republicana é, hoje, objeto de contro-
Isso, no entanto, não significa que essa doutri- vérsia. Em todo caso, muitas de suas ideias – como a
na filosófica oficial possa ser caracterizada como uma de “ditadura republicana” para impedir a participação
“grande Filosofia”: como o próprio nome “ecletismo” democrática de um “povo inculto” – também estão pre-
indica, ela não passa de uma mescla de ideias justapos- sentes entre os militares que proclamaram a República.
tas sem muito rigor, em que ressalta seu aspecto mora- Além disso, as propostas de positivistas como Miguel
16 lizante. “E note-se”, escreve Gonçalves de Magalhães,
“que as ideias, e só as ideias podem moralizar, ou des-
Lemos (1854-1917) e Teixeira Mendes (1855-1927), de
que o progresso depende da solução, de cima para
moralizar os povos”. baixo, de conflitos trabalhistas – a chamada “questão
social” -, coincidem de certo modo com as medidas au-
Guerra aos “ilustres defuntos” toritárias adotadas pelo Estado.
Contra esse oficialismo, que mais se preocupa Efetivamente, porém, embora o positivismo
em propor uma doutrina do Império do que em instigar tivesse adquirido no Brasil esse caráter muito mais
a reflexão, volta-se a chamada Escola do Recife, forma- prático e político do que filosófico, seus adeptos não
Vladimir Safatle apresentou, na quar- dos fatos mais impressionantes da história nos últimos
ta-feira, 26 de outubro (2011), aula pública aos manifes- 200/300 anos. No momento da guerra, quando as tro-
tantes do movimento Ocupa Sampa, acampados no Vale pas francesas estão de um lado e as tropas haitianas do
do Anhangabaú. O texto abaixo foi transcrito pelos in- outro, os franceses começam a ouvir, cantado do outro
tegrantes do movimento e originalmente publicado no lado, a Marselhesa – o hino francês, hino da Revolução
site do Acampa Sampa. Francesa. Isso arrebentou moralmente as tropas france-
sas, eles perderam a guerra. Começaram a se perguntar
Na verdade vocês são uma peça na engrena- “Afinal de contas, contra quem estamos lutando? Nós
gem que se montou de uma maneira completamente estamos lutando contra nós mesmos, contra nossos
inesperada e imprevisível em várias partes do mundo. ideais que agora se voltam contra nós. Porque na boca
Existem certos momentos desses ex-escravos
na história em que um acon- esses ideais são mais
tecimento aparentemente verdadeiros do que
localizado, regional, tem a na nossa própria
força de mobilizar uma sé- boca.”
rie de outros processos que
vão ocorrendo em várias Essa é a força
partes do mundo. Ou seja, impressionante das
as ideias, quando elas come- ideias, elas explodem
çam a circular, desconhecem contextos, explodem
espaço, não conhecem as espaços, constroem
limitações do espaço, elas novos espaços, rear-
constroem um novo espaço. ticulam uma relação
E, de uma certa maneira, vo- radical, fundamental
cês aqui são uma peça de uma ideia que, aos poucos, de igualdade. Por que é interessante lembrar disso ago-
vai construindo um novo espaço, por meio dessas mo-
bilizações mundiais que tocam várias cidades: Nova
ra? Porque de uma certa maneira é o que vocês estão
fazendo aqui. Vocês estão conseguindo fazer com que
19
York, Cairo, Túnis, Madri, Roma, Santiago e agora uma ideia, que apareceu inicialmente em um deter-
São Paulo. Gostaria de lembrar para vocês um exem- minado lugar, no mundo árabe, na Tunísia, comece a
plo que me parece bastante interessante, de como uma circular de uma maneira tal que ela vai mobilizando
ideia pode ignorar o seu espaço original. Existe um fato populações absolutamente dispersas e diferentes em
histórico, muito impressionante e que nos toca de uma torno de uma noção central: nossa democracia não
maneira relativamente próxima, porque diz respeito a existe ainda, nossa democracia ainda não chegou, nós
uma coisa em que hoje o Brasil está envolvido, que é a ainda esperamos uma democracia por vir. O que nós
revolução no Haiti em 1804. temos pode não ser uma ditadura, não ser o sistema to-
Foi a primeira revolução feita por escravos, es- talitário, mas ainda não é uma democracia. E nenhum
cravos que se libertaram do domínio francês. Aconte- de nós quer viver nesse limbo, nesse purgatório entre
ceu um fato bastante impressionante no interior dessa um regime de absoluto autoritarismo e uma democra-
história que é mais ou menos o seguinte: em 1793, a cia que nós esperamos. Não queremos uma democra-
Assembleia Nacional Francesa, Assembleia Revolucio- cia em processo contínuo, incessante de degradação,
nária Francesa – graças aos jacobinos – resolveu abolir que já nasce velha. Por isso, quando as colocações das
a escravidão nas colônias. Era o resultado de um prin- manifestações das quais vocês fazem parte insistem na
cípio, princípio da igualdade radical. Se nós defende- ideia de que ainda falta muito para alcançarmos a de-
mos a igualdade radical, não é possível que a igualda- mocracia real, vocês colocam uma questão que até en-
de valha apenas nesse país e não valha em outro lugar, tão não podia ter direito de cidadania. Se vocês criticas-
ela deve ser incondicional, deve desconhecer espaço e sem a democracia parlamentar, tal como ela funciona
deve desconhecer tempo, então ela vale também para hoje, olhariam vocês como arautos do totalitarismo. Se
as colônias. Quando Napoleão assume o poder, tenta vocês não querem isso, vocês querem o quê? Vocês não
rever esse decreto, ou seja, fazer com que a escravidão querem o Estado Democrático de Direito? Vocês não
voltasse a operar nas colônias. Os haitianos se suble- querem a segurança do Direito Democrático? Então
vam, e Napoleão manda tropas ao Haiti. E acontece um vocês querem o quê? E essa é a questão interessante,
REVISTA PENSE | Nº 03 | Dezembro/2012
vocês recolocam a questão dizendo “Onde vocês estão verdade essa ideia de que muitas vezes nós pensamos
vendo Estado Democrático de Direito? Eu não encon- porque não queremos agir, na verdade, muitas vezes
trei! Como assim, o que isso significa?”. nós agimos porque não queremos pensar. Muitas ve-
Se tem uma coisa que a democracia nos de- zes nós procuramos um tipo de ação imediata, rápida,
manda, nos exige, é que só se fale de democracia no porque não queremos nos confrontar com o verdadeiro
futuro, só se fale de democracia como democracia por trabalho. (…) que é o problema, construir o que é a so-
vir. Quando você acredita que a democracia já está re- lução, construir o espaço que nós temos para conseguir
alizada no nosso ordenamento jurídico, já está realiza- pensar hipóteses e pensar aquilo que pode ser mudado
da no nosso Estado, na situação social presente, então e o que não pode ser mudado. Ou seja, colocar a força
todas as imperfeições do presente ganham o peso da crítica do pensamento em ação, quando a força crítica
eternidade, todas as imperfeições do presente parecem do pensamento começa a agir, então todas as respostas
eternas, parecem ser impossíveis de superar, parece ser começam a ser possíveis, alternativas novas começam
mais que isso, ser criminoso superá-las, parece se colo- a aparecer na mesa, possibilidades começam a ser re-
car em risco quando você tenta superá-las, discuti-las. pensadas. Isso significa a verdadeira discussão de ma-
Então nesse sentido, a primeira coisa interessante em nifestações como essa, só manifestações como essas são
toda essa discussão, vocês estão dispostos a, no fundo, capazes de fazer (…)
discutir. Não discutir no sentido de fazer alguns acer- Nesses momentos, é como se o espectro das
tos pontuais a respeito de algumas questões que girem possibilidades aumentassem. Aumentam por quê?
em torno de nossa política, por exemplo, existe corrup- Porque vocês estão dispostos a pensar, estão dispostos
ção, vamos nos mobilizar aqui para pedir que fulano, a recolocar novos esquemas de pensamento em circu-
cicrano e beltrano vão para cadeia! Como se, indepen- lação e essa é a questão fundamental. Nesse sentido,
dente de isso ser feito ou não, como se isso resolvesse o quando isso ocorre, novas ações e novas propostas
problema de nossa democracia, como se ações pontuais sempre aparecem. Para que novas propostas apare-
que não tocam problemas estruturais de processos de çam, é necessário que saibamos, afinal de contas, quais
decisão de partilha de poder, de participação popular, são os verdadeiros problemas, quais são os problemas
de densidade popular nas decisões do governo, como reais e concretos, qual sentimento de desconforto, de
se não tocando nesse problema nós conseguíssemos insatisfação e de angústia em relação ao presente, vo-
avançar de uma maneira ou de outra. Essa, me pare- cês estão descobrindo que o mundo inteiro tem. Mes-
ce, é uma questão extremamente interessante, porque, mo nessas sociedades aparentemente tribais que todo
quando vocês colocam “nós queremos discussão”, isso mundo gostava de desqualificar como sociedades ára-
toca uma questão extremamente clássica, que é a rela- bes, estamos descobrindo uma coisa que nos une a eles.
ção entre teoria e práxis. Por exemplo, vejam que coisa Nós também somos insatisfeitos, descontentes, não
interessante, quem passa por aqui não vê nenhuma pa- queremos reproduzir o presente tal como ele aparece
lavra de ordem, nenhuma proposta no sentido forte do agora, também temos a angústia da necessidade de
termo, “nós queremos isso, isso e isso!”. Em princípio mudança, de ruptura, isso nos faz ter a mesma ideia,
isso pode parecer um problema, mas eu diria que não, isso nos faz presentes diante e dentro da mesma ideia.
isso é uma grande virtude, porque, se vocês me per- Isso que vocês têm (e devem saber guardar por toda a
mitirem, gostaria de fazer um pequeno parêntese na vida porque esse é o motor da crítica) é o profundo sen-
história da filosofia, lembrando de uma resposta de um timento de mal-estar e de desconforto que todos vocês
grande filósofo do século XX, politicamente equivoca- sentem e é por isso que estão aqui. É o sentimento mais
do, mas que nem por isso deixou de ser um grande filó- verdadeiro que vocês têm e o sentimento mais capaz
sofo, Martin Heidegger em um pequeno texto chamado de colocar vocês em ação. No entanto, vivemos numa
Cartas ao Humanismo. Em um dado momento, um su- sociedade em que o desconforto e o mal-estar são vis-
jeito perguntava a Heidegger: “Afinal de contas, como tos imediatamente como índice, como sintoma de uma
o senhor entende a relação entre teoria e práxis?”. Ele doença, doença que deve ser tratada o mais rápido
responde o seguinte: “Eu nunca entendi a dicotomia, possível nem que precisemos dopar todos vocês com
a diferença entre teoria e práxis. antidepressivos ou qualquer coisa dessa natureza. No
Porque o pensamento, quando entanto, é isso que vocês têm de mais concreto, de mais
pensa de verdade, ele age. Na real, pois esse é o índice de que há algo errado. Não
verdade, a ação mais forte é a com vocês como indivíduo, não com o corpo de vocês,
ação do pensamento, porque o há algo errado com a vida social da qual vocês fazem
pensamento quando pensa de parte, e esse problema da vida social da qual vocês
verdade” – e, vejam, pensar de fazem parte se manifesta dessa forma, em cada uma
20 verdade significa pensar na sua
radicalidade, pensar na sua força
das individualidades que compõem cada uma dessas
pessoas que estão aqui. Nesse sentido, é muito impor-
crítica, utilizar a força crítica e a tante vocês serem capazes de se mobilizar para dizer
força radical do pensamento – “quando ele pensa de que esse desconforto que eu sinto não é um problema
verdade, ele questiona os problemas, os pressupostos, meu, é um problema da sociedade, problema da vida
as respostas.” A história é muito interessante, porque a social, essa maneira como a impossibilidade estrutural
resposta é uma resposta muito inteligente, a resposta da vida social constitui uma vida bem-sucedida se co-
era: a verdadeira ação é feita pelo pensamento, não é loca para cada um de vocês.
22
26 Notas:
A obra de Vincent van Gogh, Um par de sapatos, mostrar a crítica que o filósofo faz ao modo como li-
de 1886, exposta no van Gogh Museum, em Amster- damos com a palavra verdade. Para ele, o termo foi
dam, Holanda, entrou na história da filosofia de modo desvirtuado dentro do pensamento ocidental. O termo
irrevogável. O filósofo alemão Martin Heidegger se em grego se diz alethéia; “a” é o prefixo de negação, “le-
apropriou da obra de modo bastante peculiar e, a par- thes” significa “esquecimento”, “encobrimento”. Ale-
tir de uma interpretação polêmica em seu ensaio A ori- théia, portanto, seria “não encobrimento”, “não esque-
gem da obra de arte, 1935/1936, propôs uma ressignifica- cimento”, “desvelamento”. Verdade, para Heidegger,
ção do conceito de verdade e até mesmo a posição da portanto, não é simplesmente a concordância entre um
estética dentro da filosofia. objeto e o conhecimento que temos acerca dele, mas
A obra a qual Heidegger faz uso é uma dentre sim a revelação deste objeto.
as várias de Vincent van Gogh cujo tema era um par de No ensaio supra citado, Heidegger usa o qua-
sapatos. O artista dedicou-se a uma série de pinturas dro de van Gogh para mostrar o desvelar do sapato,
acerca do tema, são pelo menos quatro obras de van um ente específico, um utensílio que serve para pro-
Gogh que retratam a imagem de sapatos velhos, larga- teger os pés. Heidegger chama a obra de: Os sapatos
dos em um canto qualquer, sem que se quer possamos da camponesa, e nos diz que ela revela o mundo desta
identificar onde estão. A imagem que por hora comen- camponesa.
tamos não foge à regra
e nos mostra um sapato Da escura
usado desgastado e en- abertura do gasto
velhecido, centrado em interior do calçado
um plano amarelado e olha-nos fixamente
indefinido. O próprio a fadiga do andar do
van Gogh teria compra- trabalho. Na dura
do o par de sapatos em gravidade do calça-
um mercado de pulgas do retém-se a tena-
e os usado até a exaus-
tão para, enfim, poder
cidade do lento ca-
minhar pelos sulcos
27
usá-los como modelo que sempre iguais
para a pintura.1 se estendem longe
No ensaio A pelo campo, sobre o
origem da Obra de Arte, qual sopra um ven-
Heidegger propõe uma to agreste. No couro
discussão acerca da es- fica a umidade e a
sência da arte e acaba fartura do solo. Sob
por questionar o modo as solas demove-se a
como nós discutimos solidão do caminho
a essência dos entes. do campo pelo final
A Pair of Shoes, 1886, Van Gogh Museum, Amsterdam
Para o filósofo alemão, de tarde. No calçado
quando perguntamos o que é uma coisa, em geral par- vibra o quieto chamado da terra, sua silenciosa oferta
timos para um olhar ôntico, ou seja, a partir de nossas do trigo maduro, sua inexplicável recusa na desolação
impressões empíricas, assim, critica Heidegger, não do campo no inverno. Por esse utensílio passa o cala-
conseguimos acessar a essência das coisas. Heidegger do desassossego pela segurança do pão, a alegria sem
identificou três modos como pensamos as coisas: como palavras por ter mais uma vez suportado a falta, a vi-
substância e suporte de suas características, como uni- bração pela chegada do nascimento e o tremor ante o
dade da diversidade das percepções sensíveis e como retorno da morte.2
matéria e forma. Nenhum dos três modos de pensar a
coisa nos apresenta de fato o que é a essência das coi- Podemos ver tudo isso a partir daqueles sapa-
sas. Para tanto, precisamos de um olhar ontológico. tos, pensa Heidegger, pois eles estão postos na obra de
A arte, pensa Heidegger, nos proporcionaria arte e longe do uso quotidiano. Quando o temos a nos-
um desvelar das coisas do mundo quotidiano. Mas sa disposição, nós simplesmente o usamos, sem pen-
antes de nos aprofundarmos nesta questão temos que sar o que é o sapato, confiando em sua serventia, nós
REVISTA PENSE | Nº 03 | Dezembro/2012
o ignoramos sem que com isso nos perguntemos o que Notas:
é um sapato. Sapato é um utensílio, cujo seu ser é sua
serventia e sua essência é a confiabilidade, a certeza de 1.http://www.vangoghmuseum.nl/vgm/index.
que o temos a nossa disposição. Este sapato que está jsp?page=1576&lang=en
no quadro não está a nossa disposição, não podemos 2. HEIDEGGER, Martin. A origem da Obra de arte. In:
lançar mão dele, por isso ele desvela e revela o mundo MOOSBURGE, Laura de Borga: Tradução, Comentário
da camponesa. A arte, pensa Heidegger, ganha esta di- e Notas.2007. 149p. Dissertação de Mestrado (mestra-
mensão, a de por em obra a verdade. do em Filosofia) UFPR, Curitiba, 2007.
3. ANDRADE, Carlos Drummond de, 1902-1987. Claro
Enigma/Carlos Drummond de Andrade; posfácio Sa-
muel Titan Jr. - 1a edição – São Paulo: Companhia das
Letras, 2012.
28
P
REVISTA PENSE | Nº 03 | Dezembro/2012
Aspectos filosóficos de “Cam-
po Geral” a Mutum,
de Sandra Kogut
por Talles Luiz de Faria e Sales*
Em 2007, a diretora Sandra Kogut transpôs plesmente a dizer algo sobre seu “hipotexto”, “Campo
para o cinema a primeira novela do monumental Corpo Geral”, mas, ao mesmo tempo, não pode existir inde-
de Baile (1956), de João Guimarães Rosa, “Campo Ge- pendente dele, como “hipertexto” que é, de modo que
ral”. O filme, intitulado Mutum, nome do lugar onde o evoca reservando a si uma autonomia própria. As-
se passa a estória de Rosa e, de fato, nome de pequena sim, procurar os ínfimos detalhes da novela de Rosa
cidade mineira, não pretende ser adaptação exata da no filme de Kogut, exigi-los, significa desconsiderá-lo
estória de Miguilim, no sentido de desejar uma fideli- em sua autonomia estética, ainda que representante da
dade estrita com o texto-base, mas, antes, um diálogo obra escrita, negligenciando toda uma teoria da tradu-
com ela. A diretora prima pela atualização da estória, ção e, consequentemente, da adaptação, elaborada ao
adaptando-a para a contemporaneidade, na qual a longo do século XX, germinada em Walter Benjamin
vida difícil em um lugar isolado do mundo mescla- e que ganhou ainda maior desenvolvimento após os
-se com a constante presença de utensílios e sacolas de estudos empreendidos pelos teóricos da Estética da
plástico, isopor, brinquedos industrializados. Migalhas Recepção.
que a sociedade de consumo empurra aos arrabaldes Declarando-se como adaptação da novela ini-
da globalização. cial de Corpo de Baile, ainda que numa interação dialó-
Não pretendendo, nem podendo ser, o mesmo gica com ela, Mutum é um seu representante. Se en-
que o texto no qual se baseia, o filme é, no entanto, seu gendra, enquanto obra distinta, novas questões, quais
representante. Se por ele acompanhamos os dramas de seriam aquelas que preserva do texto que toma como
Thiago, a amizade com o irmão Felipe, nomes reais das base, para além dos pontos principais do enredo? Não
crianças selecionadas pela diretora para interpretar Mi- pretendo responder totalmente a esta ampla pergunta
guilim e Dito respectivamente, por outro lado, a partir em texto de escopo tão curto como este, de modo que,
do momento em que se enuncia ser o filme adaptação para fins metodológicos, delimitarei o foco a uma úni-
da novela de Guimarães Rosa, não deixa de estar, de al- ca questão: o olhar de Thiago/Miguilim. Em “Campo
gum modo, vinculado a ele. É o que se depreende pela Geral”, o olhar de Miguilim é, sob determinado aspec-
mescla de nomes de personagens de “Campo Geral”, to, o elemento central, uma vez que é responsável pelo
como Terêz e Berno, por exemplo, que se conservam enfoque narrativo dado à estória, o narrador heterodie- 29
também em Mutum, com os nomes reais dos não-ato- gético, distinto dos personagens que compõem a nar-
res escolhidos pela diretora, que se preservam no filme, rativa, elaborado a partir de uma visão equisciente, isto
como mencionado acima. Desse modo, marca-se, para é, sabendo nada ou pouco mais que o protagonista1. A
além da ausência de uma mimese estrita ou “fiel”, a problemática do olhar ainda remete a um tema filosó-
intenção de Kogut em navegar entre a ficção e o docu- fico caro a Guimarães Rosa, o qual mencionarei poste-
mentário, remetendo simultaneamente para o texto no riormente. Kogut não negligencia este caráter da nar-
qual se baseia. rativa, chegando mesmo a fazer dele porta de entrada
É válida, para o que pretendo encetar aqui, a para Mutum. Antes de conhecermos o título do filme,
reflexão de Gerard Genette em torno da ideia de “trans- a diretora apresenta ao espectador a câmera focada no
textualidade”, em Palimpsestes (1982). Por “transtex- dorso de um cavalo em movimento, alguém que viaja e
tualidade”, Genette entende tudo aquilo que põe em é sacudido pelo ritmo do andar do cavalo. Este alguém
relação clara ou velada um texto com outros textos, dis- é Thiago, que volta para casa montado à frente de Te-
tinguindo cinco tipos de relações “transtextuais”, dos rêz, seu tio, que controla o animal. Os poucos segun-
quais o quarto, a “hipertextualidade”, é bastante eluci- dos da imagem dão a tônica para o desenvolvimento
dativo para a discussão iniciada: “hipertextualidade”, do filme: o Mutum nos será apresentado pelos olhos
segundo Genette, é “toda relação unindo um texto B de Thiago, do mesmo modo como em “Campo Geral”
(que denomino por hypertexte) a um texto anterior A no-lo foi por Miguilim. Encontrar um olhar similar ao
(que denomino, por sua vez, hypotexte) sobre o qual de Miguilim foi crucial para a diretora escolher o prota-
ele se transplanta de uma maneira que não é aquela gonista, que percorreu várias escolas do sertão mineiro
do comentário” (GENETTE, 1982, pp. 11 – 12). Mutum a sua procura:
não se põe em relação descritiva e/ou intelectual com
“Campo Geral”, o que seria característica do comentá- Quando vi o Thiago pela primeira vez, sentadinho num
rio, mas em uma operação que Genette qualifica como canto da sala, fiquei impressionada com o olhar dele. Era
“transformação”, uma vez que não se restringe sim- um olhar de alguém que parecia estar dizendo ‘não é pos-
sível que o mundo seja assim!’. Tive a impressão que tudo
Referências bibliográficas:
Machado de Assis
Memórias póstumas de Brás Cubas
As aulas de Sônia Viegas (1944-1989) nos anos do do que os terrores humanos no aroma do sândalo,
80, na UFMG, eram marcadas por seu estilo impactante nas latas velhas jazendo numa montureira, numa caixa
e desafiador. Sônia se envolvia de forma vibrante com de fósforos caída na valeta, em dois papeis sujos que,
os vários temas que abordava, promovia os debates e num dia ventoso, rolam e se perseguem rua abaixo. É que
poesia e espanto, admiração, como de um ser tombado
estimulava o constante filosofar. A dimensão de seus
dos céus em plena consciência da sua quede, atônito com
métodos extrapolava os limites da simples exposição as coisas. Como de alguém que conhecesse a alma das
de conteúdo. O aluno menos atento ou ansioso por coisas e se esforçasse por rememorar esse conhecimento,
respostas muitas vezes não percebia a importância das lembrando-se de que não era assim que as conhecia, não
controvérsias que a professora apresentava. Ao propor com estas formas e nestas condições, mas de nada mais
suas aulas, ela utilizava várias concepções de pensado- se recordando.
res e frequentemente recorria à poesia quando faltava (PESSOA, Fernando. Notas autobiográficas e de autog-
o sentido das coisas. nose. In: Páginas íntimas e de auto-interpretação. Lisboa:
A seguir, reproduzimos uma aula da professo- Ática,1966, p. 14-15).
ra. Nossa intenção é deixá-los imaginar o que ocorria
em sala de aula; a partir de vários excertos de textos 3. Platão:
consagrados, Sônia estimulava a capacidade crítica dos
alunos e mostrava os caminhos filosóficos. Teeteto — Pelos deuses, Sócrates, causa-me grande ad-
miração o que tudo isso possa ser, e só de considerá-lo,
chego a ter vertigens.
Sócrates — Estou vendo, amigo, que Teodoro não ajuizou
Aula: Introdução à Filosofia erradamente tua natureza, pois a admiração é a verda-
deira característica do filósofo. Não tem outra origem a
Prof. Sônia Viegas filosofia.
(Platão, Teeteto. 155d).
42
Ou seja, o homem estabeleceu a soberania sobre a natureza, mas perdeu o domínio sobre si mesmo, sobre
sua vida.
Os homens desenvolveram suas forças essenciais em relação aos objetos da natureza, mas não foram
capazes ainda de desenvolver suas forças essenciais relativas a si mesmos, ou seja, em relação à sociabilidade. Ob-
jetiva e subjetivamente, no que tange à sua autoconstrução, vale dizer, no que se refere às formas de cooperação,
às relações sociais, isto é, à sua essência, perdeu todas as ilusões, abandonou todos os sonhos e se conforma
à impotência na forma da ética e do imaginário.
O homem – único ser que não é dado pela natureza, que não vem dado –, não é completo naturalmente.
O homem como ser impotente é o homem necessário ao império do capital, que completou seu domínio contradi-
tório, inclusive, por isso. A superação dos limites e o não conformismo com estes é que é autoconstrução. Ceder
às pulsões e ao imaginário é renunciar aos atributos, à potência do ser autoposto e se render e se conformar
à impotência do homem apropriado à ordem do capital autoposto.
Os homens, os indivíduos, vão sendo paulatinamente devorados pela lógica do capital – da cisão entre 43
público e privado (o efetivo aqui é falar entre se reconhecer pelo gênero ou se pôr fora dele) até à desestru-
turação radical da individualidade autoposta. A cisão entre público e privado é, de fato, a cisão dos homens
entre si, a contraposição de todos contra todos.
A falta de caráter como traço necessário da individualidade atual corresponde à lógica do capital auto-
expandido. O homem sem caráter como a individualidade que corresponde às necessidades da ordem do capital;
incapacitado de se autopor, de se autoedificar enquanto homem, ou seja, de se confirmar em suas potencialidades.
Homem atual guiado/norteado pela competição da safadeza. O homem para o qual valores e dignidade
não têm mais significado, pelos quais não pode se reger, porque, se as considera, se exclui do mundo efetivo.
Na atualidade, as demandas individuais são cada vez mais mesquinhamente práticas e imediatistas, sob
o império da redução de todo interesse a simples interesse pessoal. Hoje, pode-se dizer dos indivíduos em geral
o que Marx disse a propósito de Stirner: “Orgulha-se da sua própria individualidade miserável e da sua própria
miséria” (A Ideologia Alemã, vol.II, p. 113).
P
REVISTA PENSE | Nº 03 | Dezembro/2012
Eventos
ENPEFFE
De 10 à 12 de abril de 2013 acontecerá a segunda edição do Encontro Nacional de Pesquisa em ensino de Filoso-
fia e Filosofia da educação, sediado em Ouro Preto no Instituto de Filosofia, Artes e Cultura UFOP.
Site: www.enpeffe.wordpress.com
44
Pense
REVISTA MINEIRA DE
FILOSOFIA E CULTUR
A
www.pensefilosofia.com.br
revistapensefilosofia@gmail.com
REVISTA PENSE | Nº 01 | Setembro/2012
P e n s e
REVISTA MIN
EIRA DE FILOSOFIA E CU
LTURA