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Pe n s e REV ISTA MINEIR

A DE FILOSO FIA E CULTU


RA

Número 3 | ISSN: 2238-9903


Dezembro/2012 | R$8,00 • BRASIL

Os sapatos de van Gogh e A origem da obra de arte


por Jean Farias

Sala de aula Filosofia no vestibular da UFMG, Filosofia na História


O que é admiração? Uma aula Sobre a Teoria da Verdade Nicolau de Cusa: filosofia, matemática
REVISTA PENSE | Nº 01 | Setembro/2012
com Sônia Viegas de Bertrand Russell e a questão do infinito
por Eric Renan Ramalho por Newton Bignotto
Apresentação Sumário
01 Pense I
Quando abraçamos o projeto da Pense, escolhemos elen-
car em nossas seções temas como cinema, literatura, artes, 03 Educação
educação, entre outros, pois estão presentes no nosso do dia - A condição do ensino de filosofia hoje,
a dia. Estamos todos inevitavelmente em constante contato por Robson Araújo
com tudo isso. Eventualmente, esses assuntos estão tão à mão
que nos esquecemos de como pensá-los, ignorando a razão de 06 Livros
ser das coisas. Entretanto, é importante quando abordamos - Antologia de textos filosóficos,
o nosso mundo de modo diverso, e o diferencial é o olhar que por Tiago Luís Oliveira
lançamos sobre ele, o olhar filosófico.
A Pense é um projeto que nasceu do desejo e da esperança 07 Filosofia na História
de que a filosofia esteja no cotidiano das pessoas, realçando - Nicolau de Cusa: filosofia, matemática e a questão do
o modo de enxergar a vida. Buscamos, portanto, com nossa infinito, por Newton Bignotto
revista, oferecer uma parcela de contribuição para um novo
olhar sob o que nos cerca. Temos a certeza de que fomos felizes 10 Cultura e debates
com o que ofertamos nos dois primeiros números. Mas a nos- - Filosofia e sociedade,
sa satisfação é proporcionar algo novo a cada revista. por Ester Vaisman
Chegamos à nossa terceira edição propondo explicitamen-
te uma nova forma de olhar para o que está ao nosso redor. 16 Filosofia no Brasil
O poeta Manoel de Barros nos lembra de que “as coisas não - Filosofia no Brasil,
querem mais ser vistas por pessoas razoáveis: elas desejam ser por Paulo Eduardo Arantes
olhadas de azul – que nem uma criança que você olha de ave”.
Por isso, entramos neste terceiro número em busca de colocar 19 Para pensar
um ponto final na mesmice da rotina, que nos cega, fazendo - Preservem este espaço, por Vladimir Safatle
nos esquecer de que temos ainda muito a descobrir. O filósofo
alemão Martin Heidegger atribui à arte a capacidade de des- 23 Literatura
velar a verdade das coisas. Temos que assumir que a filosofia - Os desdobramentos do eu n’O duplo e a crítica ao racio-
é uma forma de arte e ela nos permite desvelar um mundo. nalismo, por Marco Antônio Barbosa de Lellis
Sob a ideia de que podemos fazer surgir uma nova perspec-
tiva acerca das coisas da vida, contribuir para o surgimento 27 Artes
de uma consciência livre e curiosa, curiosa com a totalidade - Os sapatos de van Gogh e a Origem da obra de arte,
do mundo, com o passado, com o presente e com o futuro, por Jean Farias
investimos um pouco de nossas almas neste projeto. A filo-
sofia tem sua razão de ser voltada para o abrir da consciên- 29 Cinema
cia, proporcionando-nos uma nova forma de ver as coisas, de - Aspectos filosóficos de “Campo Geral” a Mutum, de San-
saber as coisas, de dizer as coisas. Vislumbramos uma nova dra Kogut, por Talles Luiz de Faria e Sales
consciência, que seja ousada e desafiadora. A Pense quer
romper com o senso comum, com as opiniões viciadas, com 31 Produção acadêmica
as subordinações impertinentes. Só quando abordamos a vida - O ceticismo aporético nas “Memórias póstumas de Brás
filosoficamente é possível participar ativamente do mundo, Cubas” de Machado de Assis
emitindo nossa perspectiva, acrescentando algo diferente ao
que é dito, incutindo saber nas opiniões. A Pense assume, 33 Sala de aula
assim, o compromisso de participar da formação desta nova - O que é admiração? Uma aula com Sônia Viegas
consciência, oferecendo ao nosso leitor artigos de grande va-
lor. 38 Resumo de obras/Vestibular
Vamos fincar raízes e nos fortalecer para, cada vez mais, - Sobra a teoria da verdade de Bertrand Russell,
desafiar nossos limites, crescer e oferecer a todos o melhor. por Eric Renan Ramalho
Hoje, mais uma vez, vocês têm em mãos uma revista que - Filosofia não tem lógica !!!!
acreditamos ser de muito boa qualidade. Felizes por realizar por Tiago Luís Oliveira
nossa função, desejamos a todos uma excelente leitura.
42 Avalie seu conhecimento
Equipe Pense
2 43 Pense II

Capa: 44 Eventos
A Pair of Shoes, 1886,
van Gogh
Museum, Amsterdam

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Pense

Carta acerca da tolerância


É dever do magistrado civil, determinando imparcialmente leis uniformes, preservar e assegu-
rar para o povo em geral e para cada súdito um particular a posse justa dessas coisas que pertencem
a esta vida. Se alguém pretende violar tais leis, opondo-se à justiça e ao direito, tal pretensão deve ser
reprimida pelo medo do castigo, que consiste na privação ou diminuição dos bens civis que de outro
modo podia e devia usufruir. Mas vendo que ninguém se permite voluntariamente ser despojado de
qualquer parte de seus bens, muito menos de sua liberdade ou de sua vida, o magistrado reveste-se de
força, ou seja, com toda a força de seus súditos, afim de punir os que infringiram quaisquer - direitos
de outros homens.
Mas que toda a jurisdição do magistrado diz respeito somente a esses bens civis, que todo o
direito e o domínio do poder civil se limitam unicamente a fiscalizar e melhorar esses bens civis, e que
não deve e não pode ser de modo algum estendido à salvação das almas, será provado pelas seguintes
considerações.
Em primeiro lugar, mostraremos que não cabe ao magistrado civil o cuidado das almas, nem
tampouco a quaisquer outros homens. Isso não lhe foi outorgado por Deus, porque não parece que Deus
jamais tenha delegado autoridade a um homem sobre outro para induzir outros homens a aceitar sua
religião. Nem tal poder deve ser revestido no magistrado pelos homens, porque até agora nenhum ho-
mem menosprezou o zelo de sua salvação eterna afim de abraçar em seu coração um culto ou fé prescri-
tos por outrem, príncipe ou súdito. Mesmo se alguém quisesse, não poderia jamais crer por imposição
de outrem. É a fé que dá força e eficácia à verdadeira religião que leva à salvação. Seja qual for a religião
que a gente professa, seja qual for o culto exterior com o qual se está de acordo, se não acompanhados
de profunda convicção de que uma é verdadeira e o outro agradável a Deus, em lugar de auxiliarem, 1
constituem obstáculos à salvação. Dessa maneira, em lugar de a gente expiar seus outros pecados pelo
exercício da religião, oferecendo a Deus Todo-Poderoso um culto que acredita ser de Seu agrado, acres-
centa ao número de seus pecados os da hipocrisia e desrespeito à Divina Majestade.
Em segundo lugar, o cuidado das almas não pode pertencer ao magistrado civil, porque seu
poder consiste totalmente em coerção. Mas a religião verdadeira e salvadora consiste na persuasão
interior do espírito, sem o que nada tem qualquer valor para Deus, pois tal é a natureza do entendi-
mento humano, que não pode ser obrigado por nenhuma força externa. Confisque os bens dos homens,
aprisione e torture seu corpo: tais castigos serão em vão, se se esperar que eles o façam mudar seus
julgamentos internos acerca das coisas.
Dir-se-á que o magistrado pode usar argumentos, e assim conduzir o heterodoxo para a verdade
e proporcionar-lhe salvação. Concordo, mas tal lhe cabe em comum com outros homens. Ensinando,
instruindo e corrigindo os que erram por meio de argumentos, ele certamente faz o que convém a
qualquer pessoa bondosa fazer. A magistratura não o compele a pôr de lado a humanidade ou a cristan-
dade. Mas uma coisa é persuadir, outra é ordenar; uma coisa insistir por meio de argumentos, outra
por meio de decretos. Enquanto esta é função do poder civil, aquela depende da boa vontade humana.
Todo homem tem o direito de admoestar, exortar, convencer a outrem do erro e persuadi-lo através do
raciocínio a aceitar sua opinião; mas é função do magistrado dar ordens por decreto e compelir pela
espada. Afirmo, pois, que o poder civil não deve prescrever artigos de fé, ou doutrinas, ou formas de
cultuar Deus, pela lei civil. Porque, não lhes sendo vinculadas quaisquer penalidades a força das leis
desaparece, mas, se as penalidades são aplicáveis, obviamente são fúteis e inadequadas para convencer
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o espírito. Se alguém deseja adotar certa doutrina ou forma de culto para a salvação de sua alma, deve
acreditar firmemente que a doutrina é verdadeira, e que a forma de culto será agradável e aceitável por
Deus. As penalidades, porém, não são de modo algum capazes de produzir tal crença. O esclarecimento
é necessário para mudar as opiniões dos homens, e o esclarecimento de modo algum pode advir do sofri-
mento corpóreo.
Em terceiro lugar, o cuidado da salvação das
almas de modo algum pode pertencer ao magistrado
civil; porque, mesmo se a autoridade das leis e a força
das penalidades fossem capazes de converter o espí-
rito dos homens, ainda assim isso em nada ajudaria
para a salvação das almas. Pois se houvesse apenas
uma religião verdadeira, uma única via para o céu,
que esperança haveria que a maioria dos homens a
alcançasse, se os mortais fossem obrigados a igno-
rar os ditames de sua própria razão e consciência, e
cegamente aceitarem as doutrinas impostas por seu
príncipe, e cultuar Deus na maneira formulada pelas
leis de seu país? Dentre as várias opiniões que os
diferentes príncipes sustentam acerca da religião, o
caminho mais estreito e o portão apertado que levam
ao céu estariam inevitavelmente abertos a poucos,
pertencentes a um único país: o que salientaria o ab-
surdo e a inadequada noção de Deus, pois os homens
deveriam sua felicidade eterna ou miséria simples- John Locke (1632-1704)
mente ao acidente de seu nascimento.
Estas considerações, entre muitas outras que podiam ser realçadas com o mesmo propósito,
parecem-me suficientes para concluirmos que todo o poder do governo civil diz respeito apenas aos bens
civis dos homens, está confinado para cuidar das coisas deste mundo, e absolutamente nada tem a ver
com o outro mundo. P

Locke. Coleção “Os Pensadores”. Tradução de Anoar Aiex. Abril Cultural, p. 3-4.

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A condição do ensino de
filosofia hoje

por Robson Araújo*

Agradeço a oportunidade que essa revista me não mais iria acontecer. Além disso, esses mesmos
dá para externar algumas reflexões que têm me inco- professores garantiram que em suas aulas de história
modado em meu trabalho e desde já me desculpo por a filosofia seria tratada de forma regular. Não haveria
um tom dramático que minha exposição possa carre- perda para os alunos.
gar. É que me é cara a filosofia.
- Na escola 2, as aulas de filosofia serão dadas fora do
O ponto principal que proponho para discus- horário regular. Os alunos interessados deverão se ins-
são é sobre o modo como a filosofia está sendo recebi- crever para assistir a essas aulas e não haverá avalia-
da nas escolas e temo pelo rumo que ela esteja toman- ção.
do na vida escolar. O grau de superficialidade dessa
recepção merece ser discutido. Para facilitar minha ex- - Na escola 3, os professores de português assumiram
plicação, apropriei-me do termo banalização, usado as aulas de filosofia e artes. Segundo a escola, esses pro-
por Hannah Arendt, na obra A vida do espírito, como fessores são altamente gabaritados para esse exercício.
recurso interpretativo. Precisei desse fio condutor
para organizar minhas ideias e elas se encaixaram bem - Na escola 4, o professor de filosofia também dá aula
nesse modelo arendtiano. Como a filósofa, impressio- de sociologia. Perguntado se os alunos não ficam um
nada com a superficialidade de Eichmann no famoso pouco confusos, ele disse que alguns às vezes pergun-
julgamento, na incapacidade do réu de pensar a si- tam se aquela aula é de filosofia ou sociologia.
tuação vivida, também
me impressiono com a - Na escola 5, na elaboração de um simulado, os profes-
irreflexão das escolas ao sores de história ficaram encarregados de elaborar as
não adotarem de forma questões de filosofia e sociologia. Resultado: não apa-
consciente a filosofia receu nem a questão de filosofia, nem a de sociologia.
nos seus currículos. E
ainda, novamente com - Na escola 6, precisa-se de um professor de espanhol
Arendt, preocupada que dê aula de filosofia, ou um professor de filosofia 3
com a banalização do que dê aula de espanhol. O diretor dessa escola estu-
mal, estou preocupado dou filosofia na faculdade e para ele filosofia é discurso
com a banalização do que não chega a nenhum lugar.
ensino de filosofia. É
isso que discutirei. - Na escola 7, são oferecidas três opções no ensino mé-
Hannah Arendt (1906-1975) dio para cada semestre: teologia, filosofia e sociologia.
O aluno deve optar por apenas uma das disciplinas,
ficando dispensado das outras duas.
Filosofia e as escolas
Como podemos ver nesses relatos, a filoso-
Antes de escrever este texto, resolvi entrar em fia entrou nas escolas pela porta do fundo. Apesar da
contato com alguns colegas da área para saber como o obrigatoriedade da introdução da filosofia no ensino
espaço da filosofia está sendo ocupado nas escolas de médio, não houve conscientização das instituições na
ensino médio. Acredito que esses dados, infelizmente aplicação da lei. Há uma falta de respeito pelo curso,
poucos, permitirão uma avaliação provisória das con- ou seja, não há sensibilidade ao argumento da introdu-
dições de “ensino de filosofia”. Assim, me permitam ção da filosofia na grade curricular. Os procedimentos
alguns pequenos relatos e pontuações: usados, eu temo, podem se tornar mais frequentes e
comuns, causando um grande mal à perspectiva do en-
- Na escola 1, duas aulas de filosofia foram acrescen- sino de filosofia nas escolas de forma consolidada. Eu
tadas na grade curricular do terceiro ano do ensino diria, um pouco temerosamente, caminhamos na dire-
médio. No entanto, as aulas foram repassadas para a ção de um ensino superficial, ou do fingimento do seu
disciplina História. Segundo o coordenador pedagó- ensino ou o da banalização de sua função formadora
gico, os professores reclamavam da insuficiência da do jovem.
carga horária para cumprir o programa e isso agora

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Pontos para discussão: filosofia e a escola manipula, experimenta, demonstra, prova e cessa. O
pensamento vai além, ultrapassa o significado, sempre
1. As escolas não refletem sobre uma proposta peda- novo e imprevisível.
gógica que eduque para o pensamento, para a capaci-
dade de se estar atento às coisas e aos acontecimentos 6. No entanto, fiel a seu caráter iluminista, a escola con-
e indignar-se com eles ou admirar-se deles. A escola tinua educando para o conhecimento. Mas, se o que se
valoriza o acúmulo de saberes e habilidades em detri- quer é construir a democracia, a paz, a tolerância e a
mento de uma educação que incentive a criatividade e solidariedade, então deve-se ir além, deve-se buscar o
a capacidade de reflexão. Daí a dificuldade da escola significado do mundo e não apenas as suas verdades. O
de aceitar a filosofia mais respeitosamente. fracasso moral de Eichmann, dos policiais mineiros em
um morro de Belo Horizonte, da mãe que abandonou
2. As diferenças entre pensar e conhecer são fundamen- seu filho recém-nascido na lixeira ou do jovem assas-
tais para entendermos a perspectiva arendtiana em tor- sino em Realengo não pode ser entendido como falta
no da questão e para delimitarmos uma proposta de de conhecimento. Sabemos que o problema não é esse.
educação para o pensamento. A atividade de pensar Há em alguns, inclusive, um alto grau de conhecimen-
significa um rompimento com o mundo, a capacidade tos (científicos, morais e legais). O mal não se entende
de afastar-se do mundo e examiná-lo com distancia- com os critérios do conhecimento e da verdade. A ba-
mento. O foco deve ser, como aponta o filósofo John nalidade do mal está intrinsecamente relacionada com
Rawls, o de elevar o pensamento a um nível mais alto a incapacidade de pensar e significar (dar sentido) ao
possível e ver como as coisas se juntam. mundo. É urgente educar para o pensamento crítico.

3. Segundo Kant, a atividade da razão - o pensamen- Filosofia e a academia


to - deseja compreender, entender o significado das
coisas, enquanto que a atividade do intelecto - o co- A intelligentzia acadêmica possui uma dívida
nhecimento - busca apreender as percepções que são pedagógica enorme para com os professores de ensi-
dadas aos sentidos. O conhecimento busca apreender no médio e para com os estudantes de filosofia. Em
a verdade que é apresentada através da evidência do grande parte, as universidades representam sistemas
mundo. O pensamento não busca a verdade, ele tra- de reprodução da sociedade discricionária e fábricas
balha com os significados. O pensamento não se inte- formadoras de quadros para o funcionamento do sis-
ressa pelo que seja uma coisa, se ela existe ou não, mas tema imperante. Essa filosofia acadêmica ficou “séria”
se dedica ao significado de alguma coisa ser tal qual demais, especializou-se e profissionalizou-se de forma
ela é. O conhecimento, em sua busca por aquilo que excessiva, tirando o prazer de assistir aos debates e às
se constitui verdade, vai produzindo resultados e dei- polêmicas organizadas em seu meio.
xando-os ao longo do seu caminho. Geralmente, esses Penso que, em função de exigências técnicas,
resultados são superados, pois todo conhecer traz em de problemas de hierarquia acadêmica e da valorização
si a possibilidade do erro. A atividade do pensar, ao de uma filosofia “pura”, nós, professores de escolas,
contrário, não produz nada, não deixa nada constituí- nos afastamos da Universidade. Não fomos atraídos
do. O pensador, ao abandonar-se a seus pensamentos, para ela pela “beleza” da lógica (I e II), pela simples
não está de posse de nenhum saber, de nenhuma regra crítica dos argumentos, pela desconstrução de teorias,
de concepção ou de garantias que lhe sirvam para en- nem pela simples troca de jargões e ao ar diáfano da
gendrar alguma ciência. O pensamento não produz re- metafilosofia. Não. Estávamos envolvidos com nossa
sultados. Sua busca é pelo significado e sua atividade é espiritualidade, na busca de significados para nossa
livre e desinteressada. Posso pensar algo e dar-lhe um religiosidade sem deus e da nossa cientificidade ine-
significado hoje, mas isso não é acumulado. Amanhã, xata, baseadas em uma especulação que olhava e vivia
precisarei pensá-lo de novo e dar-lhe, novamente, ou- em um mundo de verdade. Tudo isso foi desdenhado,
tro significado. Para Arendt, o pensamento é como o considerado irrelevante, rejeitado pela autoridade da
mito de Penélope. Todos os dias Penélope tece sua teia, filosofia “pura”1.
e, à noite, desfaz-se a teia. No dia seguinte, Penélope
reinicia a sua tarefa. Pontos para discussão: filosofia e a academia

4. As grandes questões filosóficas estão no âmbito do 1. É urgente e necessário que o filósofo acadêmico re-
pensamento (Kant): a existência de Deus, a imortali- passe aos professores uma orientação que os ajude a
dade da alma, o tempo, a vida, a liberdade, etc. Essas conquistar um espaço digno nas escolas. Cabe ao pro-
4 questões não podem ser colocadas no âmbito do co-
nhecimento, pois não há uma verdade sobre elas, mas
fessor superar as barreiras pseudo-acadêmicas e forçar
o filósofo da academia a pensar os problemas reais da
sim uma diversidade de significados. educação em filosofia.

5. Muitas vezes ficamos satisfeitos com a verdade e 2. Não houve ainda um encontro profundo entre a uni-
nela paramos. O pensamento quer ir além da verda- versidade e a escola, fazendo uma aliança entre a inte-
de, ele quer o significado das coisas. O conhecimento ligência acadêmica e o trabalho pedagógico. São mun-
conhece seu fim, o pensamento não. O conhecimento dos que caminham paralelos e não são as extensões

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universitárias que cobrirão esse fosso. Tem que ocor- De um modo geral, nossos jovens alunos só
rer uma verdadeira troca de saberes e de experiências. apreciam a filosofia quando percebem como todos os
Apesar desse obstáculo, muitos professores de filoso- tipos de ideias se juntam. Nesse momento, seus olhos
fia têm realizado um excelente trabalho e descobriram brilham e as aulas de filosofia funcionam. Eles preci-
interessantes formas de “sobreviver” numa sociedade sam de um Sócrates e não de um profissional em filo-
que lhes é adversa. sofia.

3. Hoje, na academia, a filosofia exige “especialização”,


técnica, rigor e foco fechado, em vez de visão, curio- Pontos para discussão: filosofia e os alunos
sidade e abertura. Assim, as universidades estarão
formando jovens aptos a ministrar uma “disciplina” 1. Infelizmente a maioria dos diretores pedagógicos
estreita, aptos a ensinar um conjunto de habilidades não possui lastro filosófico e científico, e, engenhosa-
conceituais, prontos a rechaçar a imaginação especu- mente ou não, dispersam e desestruturam o trabalho
lativa e valorizar exclusivamente argumentos lógicos e do professor de filosofia.
produção de contra-argumentos.
2. A melhor isca para uma boa aula de filosofia é favo-
4. Na academia encontramos mais profissionais da fi- recer a dinâmica que permite ao aluno “juntar” ideias
losofia. Eles são inteligentes demais e gostam que en- adquiridas nos debates filosóficos e concluir sozinho
fatizem isso, péssimos professores, são defensivos e sobre temas polêmicos.
desmotivadores de ideias não acadêmicas, porém são
os bem-sucedidos nas universidades. 3. Sugestão da professora Maria Lúcia Arruda Aranha:

5. O que é “profundo” na filosofia é a diversidade de O professor deve apresentar o texto dos filósofos, fazendo
olhares, uma questão de ver, não de cavar. E se a filo- conexões com a realidade daquele tempo em que o autor
sofia é rica, densa e viva, não é apenas pela superpres- vive, mas também estimular o que se pensa sobre aquele
assunto hoje. Isso desenvolve a capacidade de conceitua-
tigiada argumentação, mas pelo discernimento e pela
ção e a competência de argumentar de maneira crítica.
contemplação da vida.
Ele aprende a debater, mas também a ouvir.

Filosofia e os alunos
Filosofia e o perigo da banalização do seu ensino
Algumas respostas de alunos que estudam fi-
losofia no ensino médio para a pergunta: Você gosta de
Infelizmente, o ensino de filosofia não está pro-
estudar filosofia? Por quê?
blematizado no país – está submerso, ou quase imóvel,
frente às transformações sociais –, ao passo que a eco-
- Laura: “Gosto porque me dá esclarecimentos sobre
temas do cotidiano. Me faz entender melhor sobre jus-
nomia e a política são problematizadas e amplamente 5
discutidas na mídia. Discutem-se os valores impres-
tiça, maldade, conflitos ...”
cindíveis para uma vida melhor, mas não estimulam a
discussão filosófica para compreender esses valores.
- Yasmin: “Gosto porque acho interessantes as discus-
Enfim, devemos problematizar a questão da
sões. Elas revelam algumas coisas que eu não tinha
presença da filosofia nas escolas e refletir mais sobre
pensado”.
essa situação. As escolas não estão preparadas para
a filosofia, os alunos não são atraídos pela disciplina
- Gabriela: “Não gosto de filosofia. Acho inútil e muito
como deveria ser e a academia precisa assumir um
fácil. As aulas apresentam ideias divergentes da minha
papel mais efetivo nesse debate. A superficialidade de
e me causam aversão”.
hoje pode causar um grande problema no futuro: a ba-
nalização do ensino de filosofia.
- Thaís: “Gosto de antro-
pologia e sociologia. A
filosofia me ajuda a en-
Notas:
tender mais a natureza
humana e a sociedade”. 1. Estou chamando de filosofia “pura” a filosofia despida de
tudo mais que não seja a lógica, a argumentação e a história
- Miguel: “Eu gosto de da filosofia.
filosofia. Tenho afinidade
pelos fenômenos sociais
e a filosofia me ajuda a * Robson Jorge de Araújo é professor do Ensino Médio,
refletir sobre a natureza mestre em História da Ciência e em Filosofia.
humana”.
P
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Antologia de textos
filosóficos
por Tiago Luís Oliveira*

A Secretaria de Estado da Educação do Pa-


raná tem surpreendido pela boa vontade política Essa antologia, disponibilizada pela Se-
em democratizar o ensino. Uma primeira mostra cretaria de Educação do Paraná, apresenta alguns
disso foi a elaboração do livro didático público, textos que poderíamos perguntar se são mesmo
uma obra feita em mutirão pelos professores da essenciais no debate filosófico; afinal, são 736 pá-
rede estadual paranaense (www.diaadiaeduca- ginas! A quantidade de textos de Gramsci é um
cao.pr.gov.br). exemplo disso. A inclusão de Bornheim é expli-
cável por ser ele um filósofo brasileiro. Sentimos
também a ausência de alguns textos clássicos
como a Ética a Nicômaco (Aristóteles). No mais, a
escolha dos filósofos que compuseram a antologia
me pareceu acertada.

O que ficou sem explicação foi a ordem to-


talmente aleatória em que os textos aparecem. Es-
tes não seguem uma ordem cronológica. A antolo-
gia começa com Agostinho, volta para Aristóteles,
avança novamente até o brasileiro Bornheim, re-
torna para Descartes... Platão é dos últimos. Mas
também os textos não seguem uma ordem temá-
tica. Poderiam ser reunidos em torno de temas
como ética, política, conhecimento, metafísica,
estética. Isso, no entanto, também não foi feito.

Apesar desses pequenos furos, é preci-


so reconhecer a grandiosidade dessa iniciativa.
A Antologia de Textos Filosóficos serve muito bem
como uma biblioteca virtual de acesso gratuito.
Não só os professores e alunos do Paraná, mas
todo e qualquer leitor em língua portuguesa tem
agora em mãos (ou em tela) textos filosóficos bá-
sicos, traduzidos com qualidade e bem apresenta-
dos por filósofos especialistas naqueles autores.

A novidade agora é que o Estado do Para- Cabe, sobretudo, elogiar a iniciativa. Para
ná disponibilizou uma Antologia de Textos Filosófi- nós, que nos preocupamos com a qualidade da
cos, com traduções de excertos de obras de vários educação, é revigorante saber que há bons proje-
filósofos, precedidos por uma devida introdução. tos e verdadeiro empenho na democratização do
As introduções e traduções foram feitas por es- conhecimento, somados à valorização do profes-
6 pecialistas das universidades do sul. A antolo-
gia, que pode ser baixada no endereço (http://
sor. Esperamos, sinceramente, que o exemplo seja
seguido nos demais estados do País.
www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/
File/cadernos_pedagogicos/caderno_filo.pdf), P
é distribuída gratuitamente e pode ser utilizada * Tiago Luís Oliveira é professor do Ensino Médio
livremente, desde que respeitando a sua correta e doutorando em Filosofia pela UFMG.
citação.

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Nicolau de Cusa: filosofia,
matemática e a questão do
infinito
por Newton Bignotto
UFMG

As relações da filosofia com a matemática são no entanto, que cedamos ao mito do pensador absolu-
quase tão antigas quanto a própria filosofia. Desde os tamente original. Em seu diálogo La cena de le ceneri3,
pitagóricos, os números parecem poder conduzir-nos mas também no De l’infinito, universo e mondi,4 Bruno
a regiões do ser que de outra forma ficariam escondi- associa, ao nome do cardeal, vários outros filósofos do
das da razão. Associada de forma definitiva à filosofia passado, que, de uma maneira ou de outra, colocaram
de Platão, ela transformou-se na marca de muitos pen- em dúvida a finitude do mundo. Se fôssemos buscar
sadores, que, de alguma maneira, filiaram-se ao longo as raízes do problema, teríamos de recuar até a Grécia,
da história ao pensador grego. Esse foi o caso de Nico- pois, como mostrou Koyré, num livro clássico sobre o
lau de Cusa (1401-1464) que, em pleno Renascimento, problema, a origem do conceito de infinito se encontra
procurou servir-se de teorias matemáticas para explo- no pensamento dos atomistas gregos5.
rar questões metafísicas e cosmológicas que o interes- Nossa intenção, neste texto, no entanto, não é
savam. Nosso propósito, neste texto, não é o de fazer a de reconstituir a história do conceito de infinito na
uma apresentação geral do pensador e nem mesmo época de Nicolau de Cusa e nem mesmo de explorar
aprofundar o estudo sobre pontos específicos de sua todas as implicações que seu uso teve em seu pensa-
filosofia. Mais modestamente, vamos mostrar como mento. Vamos partir da estratégia conceitual adotada
o recurso às matemáticas ajudou o cusano a formular em sua obra principal – Douta ignorância – , para mos-
sua teoria do infinito, que seria revolucionária em sua trar como o uso da matemática e de outros recursos de
época e fez a ponte entre o platonismo da antiguidade linguagem favoreceu a ponte entre concepções diver-
e o pensamento moderno. Mais amplamente, vamos sas do mundo.
mostrar que esse caminho levou o pensador a encon- A primeira dificuldade que encontramos em
trar novos rumos para a própria atividade filosófica. formular nossa questão advém do fato de que ao pro-
blema metafísico do infinito é preciso associar a ques-

A questão do
tão cosmológica da infinitude do universo. A fusão
entre os dois campos de investigação criou o solo fértil
7
infinito é um dos te- para a exploração dos pensadores do Renascimento. A
mas que despertou resposta de Nicolau de Cusa ao problema do infinito
maior atenção dos nas duas dimensões apontadas semeou a discórdia en-
intérpretes de Nico- tre os espíritos cultos da época6. A cosmologia aristo-
lau de Cusa ao lon- télico-tomista tinha a vantagem não só de restringir o
go dos tempos. Tal uso do termo infinito aos poderes de Deus, mas, sobre-
interesse provém do tudo, de evitar o risco da confusão entre as característi-
fato de que a revolu- cas do criador e aquelas de sua obra. Nicolau de Cusa
ção operada por este coloca o problema na forma de uma antinomia:
conceito na história
da filosofia, a partir Mas como o universo comporta tudo aquilo que não é
do século XV, pare- Deus, ele não pode ser um infinito negativo, ainda que
ce ter estabelecido a ele não possua um termo e, por esta razão, seja um in-
finito privativo e, por conseguinte, não seja nem finito,
ponte entre a obra do grande metafísico e o nascimento
nem infinito7.
da ciência moderna. Se faltam documentos para des-
crevermos com precisão os caminhos da influência do
O cusano apoia seu pensamento em duas pre-
cardeal sobre pensadores posteriores1, o testemunho
missas. Em primeiro lugar na ideia de que infinito ri-
de Giordano Bruno é suficiente para mostrar que, no
gorosamente só pode se aplicar a Deus8; em segundo
tocante à questão que nos interessa, o nome do cusano
lugar que o verdadeiro problema filosófico reside em
é uma das peças chaves na reconstituição da ruptura
conseguir conciliar a finitude e a infinitude9. Nesse
que o pensamento renascentista operou com a antiga
contexto no qual à noção de infinito (infinitum) veio
visão de mundo baseada na cosmologia de Aristóteles2.
se juntar a de ilimitado (interminatum) , a cosmologia
O próprio Bruno, ao reconhecer sua dívida para com
derivada dos princípios da Douta Ignorância estava
Nicolau de Cusa, que ele chama de “divino”, impede,

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destinada a revolucionar as mentalidades filosóficas infinito possui no interior da obra de Nicolau de Cusa.
da época. Ao mundo limitado e harmônico dos medie- Se o infinito máximo em si, absoluto, que é Deus, es-
vais, o cusano opôs um universo complexo e não hie- capa a nosso intelecto, a ele devemos ajuntar o mundo
rarquizado, no qual a noção de alto e de baixo, de lugar e o espírito humano que podem ser chamados de “in-
natural, de centralidade da Terra não fazia sentido al- finitos relativos”. É essa segunda maneira de compre-
gum. Bruno talvez tenha exagerado ao atribuir ao car- ender a infinitude que mais tarde irá influenciar pen-
deal alemão uma concepção relativística do universo10, sadores como Bruno e Ficino19, os quais saberão tirar
mas é verdade que o pensamento de Nicolau de Cusa proveito, no terreno da cosmologia e da antropologia,
participou de maneira decisiva do movimento que das descobertas do cardeal alemão. Mas independente
destruiu o equilíbrio da antiga cosmologia. Descartes, da forma como o infinito aparece nos escritos de Ni-
ao se referir à questão do infinito, não deixa de obser- colau de Cusa, e apesar das constantes advertências
var que esta ideia deve sua propagação, sobretudo, às sobre nossa incapacidade de compreende-lo integral-
ideias do cardeal11, mesmo se surpreendentemente ele mente20, a busca dos caminhos que levam do finito ao
afirme ter o cusano desconhecido a diferença entre a infinito é o objetivo maior ao qual todos os pensadores
infinitude e a indefinição, princípios que são funda- devem se dedicar21.
mentais para a cosmologia do cardeal12. A intuição, no Nessa busca, é essencial escolher o melhor
entanto, de Descartes de que a atribuição da infinitude método, o percurso que, por aproximação, leve-nos a
ao universo físico conduziria a paradoxos insolúveis intuir o salto que seria necessário para que uma “luz se
se mostrou correta ao longo dos séculos. Basta lembrar, produzisse no intelecto, capaz de fazê-lo contemplar
a esse respeito, que a teoria da relatividade, ao postu- Deus em toda sua unidade”. Assim, diz o cardeal:
lar a ideia de que o universo é curvo e finito, esbarrou
na mesma dificuldade de lidar com o que podemos você será elevado até a verdade, conduzindo sua inteli-
chamar de infinito atual13. gência muito alto, acima das palavras, elas te propiciarão
uma grande felicidade, pois na douta ignorância, você
progredirá por este caminho no qual, tanto quanto é
Deixemos de lado as questões cosmológicas
permitido a um homem zeloso, que se elevou utilizando
para tentar explicitar um outro problema que faz parte as forças da natureza humana, você poderá ver o máxi-
de nossas preocupações neste texto: a relação de Ni- mo, único e supremo, que ultrapassa toda compreensão:
colau de Cusa com as matemáticas14. Antes de passar Deus, em sua unidade e trindade sempre benditas22.
a expor o núcleo de nossa questão, devemos lembrar
que nossa preocupação não é com os aspectos mate- Apesar do tom místico da passagem que aca-
máticos do pensamento do cusano, mas com o impacto bamos de citar e da influência que a mística alemã, na
do uso da matemática em sua filosofia. A esse respei- figura da Mestre Eckhart, exerceu sobre o pensamento
to, apesar de Cantor ter considerado o cardeal alemão do cardeal, é nas matemáticas que ele buscará o apoio
o espírito matemático mais fecundo de sua época15, é para esta “ascensão” em direção ao infinito. Somen-
útil notar que Duhem já observou que as contribuições te elas lhe parecem capazes de simbolizar a mente
do cusano nesse domínio foram limitadas16, não che- divina, que produz as coisas e as conhece exatamen-
gando a oferecer soluções originais para nenhum dos te como elas são. Só elas permitem determinar uma
problemas que se propôs a tratar. Isto não impede que significação precisa para um amontoado de palavras
ele atribuísse um papel essencial à matemática e que que, sem a ajuda dos símbolos matemáticos, permane-
dela tenha se ocupado em doze de suas obras. Para ceriam como uma somatória caótica de significados23.
nós, a referência ao uso das matemáticas serve como É importante notar que o uso das matemáticas impli-
uma indicação de que a compreensão do pensamento ca a aceitação de um postulado clássico do platonis-
do cardeal não pode ser levada a cabo se insistirmos na mo, que, no entanto, Nicolau de Cusa interpreta a seu
ideia de que o problema do infinito tem em sua obra modo. Assim, no começo do décimo primeiro capítulo
apenas um significado metafísico17. Para o leitor apres- da Douta Ignorância – cujo título já evoca o papel das
sado, que acredita encontrar em sua obra mais um tra- matemáticas no processo cognitivo – , o cardeal toma
tado ortodoxo de metafísica, ele diz no início da Douta como estabelecido pela tradição que a procura das coi-
ignorância: sas visíveis, imagens elas mesmas das coisas invisíveis,
deve ser feita por meio de um exploração simbólica.
Assim, toda pesquisa consiste em uma proporção com- Essa exploração simbólica exige a busca da
parativa fácil ou difícil, e é por isso que o infinito que
imagem mais perfeita, da proporção mais adequada,
escapa, enquanto infinito, a toda proporção é desconhe-
cido.18
que permite ascender do sensível ao abstrato, “pois
não há caminho para o incerto senão através do cer-
8 Antes mesmo de enunciar um método para a to”24. Para que a imagem possa, entretanto, realizar
esta passagem do mundo das aparências, ou do mun-
compreensão dos problemas de que irá tratar, o cusano
faz ver ao leitor que a questão mais difícil de ser abor- do dos possíveis, como prefere nosso autor, ao mun-
dada é aquela da natureza de Deus, que, de certa for- do abstrato da representação, é necessário que os
ma, está condenada a permanecer sem resposta. Essa símbolos por nós escolhidos sejam ao mesmo tempo
associação inicial entre o infinito e Deus, embora ver- relacionados com o sensível e liberados de suas flutu-
dadeira, não revela todas as nuanças que o conceito de ações. Nicolau de Cusa não hesita em mostrar que as
matemáticas são por excelência a fonte destas imagens

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abstratas, pois, frutos de nosso esforço intelectivo, elas Ao apresentarmos de forma sumária alguns
imitam a mente divina, capaz de criar e de conhecer aspectos do pensamento de Nicolau de Cusa, não ti-
plenamente o fruto de sua criação. Elas não nos dão vemos a intenção de resumir seu pensamento, mas de
a conhecer o interior de mente divina e nem podem mostrar como o uso de recursos formais pode ser uma
preencher a distância que separa uma mente finita da ferramenta importante para o alargamento dos cam-
plena compreensão do infinito. Mas, por meio delas, pos de investigação da filosofia e não para sua limita-
escapamos de todos os equívocos que uma linguagem ção à análise dos limites da linguagem como preten-
cheia de preconceitos pode confundir com a realidade dem tantos pensadores na atualidade.
mesma das coisas.
O recurso, portanto, às matemáticas é, em Notas:
primeiro lugar, uma terapêutica do pensamento, que 1. Ver a esse respeito o texto clássico: E. CASSIRER. Individu et
tende a se desgarrar, quando trata de questões como cosmos dans la philosophioe de la Renaissance. Paris: Ed. Minuit,
1983, p. 63 -95.
as da natureza de Deus, ou sobre as dimensões do cos- 2. F.A YATES. Giordano Bruno et la tradition hermétique. Paris: Der-
mos. Servindo como um instrumento de aproximação vy-livres, 1989, p. 291-294.
de questões que desafiam nosso entendimento, as ma- 3. GIORDANO BRUNO. La cena de le ceneri. In: Dialoghi italiani.
temáticas mostram, por meio da exposição de nosso Firenze: Sansoni, 1985, p. 90-94.
pensamento a verdadeiros paradoxos, quais são os 4. GIORDANO BRUNO. De l’infinito, universo e mondi. In: Dia-
limites de nosso entendimento. Nicolau de Cusa afir- loghi italiani. P. 440.
5. ALEXANDRE KOYRÉ. Do mundo fechado ao universo infinito.
ma: “Assim, o infinito nos faz ultrapassar completa- São Paulo: Forense, 1979, p. 17.
mente toda oposição, desse princípio podemos retirar 6. P. DUHEM. Le système du monde. Paris: Hermann, 1959, Tomo
tantas verdades negativas quantas podemos escrever X, p. 278.
ou ler”.25 Essa dimensão terapêutica permite-nos, por 7. NICOLAU DE CUSA. De la docte ignorance. Paris: Ed. De la
exemplo, dizer o que não são as coisas e evitar as con- Maisnie, 1930, II, 1
8. Idem, I, 24.
fusões que imperavam na metafísica e na teologia to-
9. Idem, II, 2.
mista. Assim, afirma Nicolau de Cusa, de Deus pode- 10 ALEXANDRE KOYRÉ. Do mundo fechado ao universo infinito.
mos dizer muitas coisas negativas (o que ele chama de P. 24.
Teologia Negativa)26, como, por exemplo, que ele não 11. DESCARTES. Lettre a Chanu, 6 juin 1647. In: Oeuvres e let-
pode ser reduzido às imagens que tentam representá- tres. Paris: Gallimard, 1953, p. 1272-1273. “E primier lieu, je me
-lo, nem ao conjunto de pre- souviens que lê cardinal de Cusa et plusieurs autres docteurs
ont supposé le monde infini, sans qu’ils aient jamais été repris
dicados que pretendem des- de l’Église pour ce sujet...”.
crevê-lo, mas não podemos 12. “En mon opinion est moins difficile à recevoir que la leur;
conhecer de fato sua mente e parce que je ne dis pas que le monde soit infini, mais indéfini
nem mesmo pretender erigir seulement”. Idem, p. 1273.
um conhecimento positivo de 13. B. RUSSELL. ABC da relatividade. Rio de Janeiro: Zahar, 1974,
seus atributos. cap XI.
14. A esse respeito, dois livros se destacam na bibliografia mais
Mas o recurso às ma-
temáticas, e a ajuda que elas
recente sobre o cardeal. JEAN-MICHEL COUNET. Mathéma-
tiques et dialetique chez Nicolas de Cues. Paris: J. Vrin, 2000.
9
prestam na exploração do LUCIANA DE BERNART. Cusano e i matematici. Pisa: Scuola
conceito de infinito, não tem normale superiore, 1999.
somente uma dimensão de crítica da linguagem. É ver- 15. E. CASSIRER. Individu et cosmos dans la philosophioe de la
Renaissance. P. 79.
dade que Nicolau de Cusa mostra que muito do que
16. “En tout domaine, le cardinal allemand semble avoir été trop
dizemos sobre esse tema são contrassensos, que po- peu perspicace pour goûter les fruits de la science parisienne;
dem ser evitados, quando pensamos neles com a ajuda dans um de ses écrits mathématiques, nous em trouverons une
de representações matemáticas precisas. Ao explorar- nouvelle preuve”. P. DUHEM. Le système du monde. Tomo X, p.
mos simbolicamente o problema do infinito, como ele 350.
sugere, podemos avançar em duas direções de grande 17. K. JASPERS. Anselm and Nicholas of Cusa. New York: Har-
vest Book, 1974, p. 66. “And yet Cusanus is really interested in
fecundidade. A primeira é aquela da via mística a qual only one aspect of mathematics: infinity”.
o cardeal se filiava, que pretende restringir a experi- 18. NICOLAU DE CUSA. De la docte ignorance. I,1.
ência do infinito ao espaço das experiências pessoais, 19. MARSILE FICIN. Théologie platonicienne de l’immortalité
que não podem ser traduzidas em palavras. A segun- des ames. Paris: Lês Belles Lettres, 1964, Tomo I, p. 320-329.
da, que repercutiu intensamente na filosofia posterior, 20. NICOLAU DE CUSA. De la docte ignorance. I, 4.
diz respeito ao fato de que a aproximação matemática 21. NICOLAU DE CUSA. Compléments théologiques. In: Oeu-
vres Choisies. Paris: Aubier, 1942, Cap IV, p. 451.
da questão do infinito mostra-nos que não há razão 22. NICOLAU DE CUSA. De la docte ignorance. I, 10.
plausível para reduzir o cosmos e nem os problemas 23. E. CASSIRER. Individu et cosmos dans la philosophioe de la
da filosofia ao universo fechado da cosmologia e da Renaissance. P. 74.
metafísica aristotélicas. Liberados dessas amarras, 24. NICOLAU DE CUSA. De la docte ignorance. I, 11.
nada nos impede, por exemplo, de nos perguntarmos 25. Idem, I, 16.
26. Idem, I, 26.
sobre a existência de mundos infinitos, como fará mais
tarde Bruno, ou de explorar os limites de nossa própria
racionalidade, aprisionada em esquemas finitos de co- * Newton Bignotto é professor da UFMG.
nhecimento da realidade. P
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Filosofia e sociedade

por Ester Vaisman*


UFMG

De longa data e com certeza de forma acentu- as questões semânticas, os problemas que dizem res-
ada ou dominante em nossos tempos, à primeira vista, peito às relações do sistema do mundo foram propos-
filosofia e sociedade não aparecem essencialmente vin- tos de forma bastante ambiciosa. Ora, como termina
culadas. Não me refiro apenas ao fato de que poucos o Tractatus? Qual o seu último aforisma? Todos estão
admitem a complexa problemática da determinação lembrados de que o celebérrimo aforisma sete afirma
social do pensamento, mas, inclusive, ao fato de que que: “O que não se
há modos de concepção que não entendem como ir- pode falar, deve se ca-
relevante o solo social da prática filosófica, nos quais, lar”. A respeito do que
todavia, o nível resolutivo dos filosofemas transcorre Wittgenstein está re-
num patamar extra-histórico ou extrassocial, que se fletindo e para o qual
empenha por ser comandado como integralmente as- oferece uma resposta
cético, ou seja, são indiferentes ou se desocupam de tão categoricamente
qualquer finalidade que não seja a finalidade pensada impotente, poucas li-
como intrínseca ao próprio decurso da filosofia, isto é, nhas acima, como os
não reconhecem ou não admitem a designação social aforismas antes do
do produto filosófico. Feita assim, tanto melhor à fi- preceito do silêncio, está configurada a questão. Eu en-
losofia, quanto mais distante da sociedade ela se fizer cadeio, para traduzi-la, os aforismas 6.44, a última sen-
e se a isto for somada a negação também de sua gêne- tença do aforisma 6.5, o aforisma 6.52. “O que é mís-
se social, estaremos num quadro perfeito da filosofia tico, não é como o mundo é, mas que ele seja” (6.44);
divorciada das formas de sociabilidade. No universo “Se uma questão pode ser colocada, poderá também
dessa hora, qualquer conexão entre filosofia e socieda- ser respondida” (6.5); “Sentimos que, mesmo que to-
de é mera contingência subalterna ou falso problema. das as possíveis questões científicas fossem respondi-
Mas uma posição desse gênero não é automaticamente das, nossos problemas vitais não teriam sido tocados.
a eliminação do homem e da humanidade como objeto Sem dúvida, não cabe mais pergunta alguma, e esta é
de reflexão. A ética e a antropologia, por exemplo, em precisamente a resposta” (6.52).1 Mas quando a respos-
tematizações extrínsecas às formas de sociabilidade, ta de uma filosofia, à indagação sobre a natureza dos
são evidências de que a ruptura concepcional entre problemas vitais, oferece somente o preceito de calar,
filosofia e sociedade não é necessariamente também que mais significa isso senão a confissão da falência
fratura entre homem e filosofia. Mas essa permanência dessa filosofia? Mas essa falência do silêncio, na boca
de vínculo nas condições dadas, ou seja, no interior de íntegra e lúcida de Wittgenstein, diante do beco sem
uma humanidade despojada de sua sociabilidade, não saída do seu próprio pensamento, estanca diante do
assegura que as condições de possibilidade da reflexão abismo, e seu silêncio é ruidoso, profundamente não
sejam postas, nem que seus processos e resultantes es- conformista, uma denúncia da manipulação universal
tejam protegidos de unilateralizações que mutilem ou da vida no âmbito da sociedade contemporânea, ainda
mistifiquem, nem, ainda, que suas conclusões contra que seja feita na forma de protes¬to a priori impotente.
todas as intenções e aparências se ponham contra o ho- Que isto seja contraditório no interior do próprio pen-
mem e sua humanidade, precisamente porque é uma samento de Wittgenstein só reforça o argumento de
reflexão de costas para a sociabilidade. protesto, até porque, no aforisma 309 das Investigações
Sugiro, com isso, que a fratura entre filosofia e Filosóficas, e não importa aqui se esta obra conflui ou
sociedade paga um grande ônus, tanto em moeda filo- rejeita a primeira de um quarto de século antes, lê-se
sófica quanto em saques concretos contra a individua- o seguinte: “Qual o seu objetivo em filosofia?” e a res-
lidade e a universalidade do homem. Sabem todos, por posta do próprio aforisma: “Mostrar à mosca a saída
10 exemplo, que o Wittgenstein, no Tractatus, trabalhou do mosquiteiro”.2 Conheço definições que falam em
num ambiente de euforia que se seguiu à publicação vez de mosquiteiro, vidro; tanto faz mosquiteiro ou
dos Principia, de Russell e Whitehead, tendo erigido o vidro, campânula que detém a mosca. Como as únicas
cálculo das proposições como padrão de inteligibilida- moscas que fazem filosofia são os homens, e este afo-
de de todos os sistemas formais, postulando, em con- risma é teleológico ético-prático, não há como negar
sequência, sua unidade, o que lhe permitiu conceber que nele se manifesta o preceito de uma filosofia reso-
a lógica como um sistema total. Por sobre esta base, lutiva. Portanto, de uma leitura não preconceituosa de

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Wittgenstein poderá decorrer, especialmente de seus de Adorno. Para ele, o mal fundamental passa a ser a
lapsos e contradições, não apenas a festiva do ceticis- estrutura de dominação. Além disso, é preciso enfati-
mo que nele é dominantemente extraído, mas de seus zar que: ao lado do aspecto negativo da filosoficamen-
limites, de sua completa impotência a priori, seu pro- te sofisticada crítica da ideologia de Lukács, um nível
testo silencioso pode ser retido, com ele ou contra ele, positivo que avançava da crítica social da consciência
este silêncio que aspira a uma filosofia de bom caráter, burguesa para uma ação da consciência revolucionária
por uma filosofia que em seu plano próprio seja reso- da categoria social do trabalho. Não importa aqui a
lutiva; que não renuncie aos problemas vitais da vida, maneira equivocada, hiper-hegeliana, com que Lukács
nem abra mão de sobre eles deitar a luz indicativa dos na época formulou a tese, interessa sim salientar que,
pontos de saída; que ensine a romper os mosquiteiros de todo modo, o marxismo aparecia então como um
ou vidros da manipulação e prefigure a transformação método cognitivo que conduzia a um programa de
das moscas, na boa e antiga tradição de filosofia em se ação. Este segundo passo, portanto, jamais foi dado
ocupar do de onde, para onde do homem no mundo. por Adorno, cuja rejeição à categoria social do trabalho
À declaração de impotência de Wittgenstein, vai além da simples recusa à tese hiper-hegeliana do
em face da manipulação contemporânea, junto agora proletariado como sujeito-objeto idêntico da história.
a impotência política de Adorno. Tudo à guisa de ilus- Na verdade, Adorno concebia a atividade do intelec-
trar modos da prática filosófica em que a relação filoso- tual, sem qualquer relação de responsabilidade direta
fia e sociedade não encontra sua essencial vinculação. pelos seus efeitos junto ao público, sustentando que
A propositura da dialética negativa de Adorno é libe- a atividade intelectual válida era revolucionária por
rar a dialética da natureza afirmativa que tem de Pla- si mesma. No envolver de suas formulações, Adorno
tão a Marx, ou seja, desvincular a dialética de qualquer chamará sua posição de nicht-teilnahme, isto é, a não
resultado positivo, torná-la independente de qualquer participação. Segundo ele, a não participação (nicht-
positividade. Desse modo, o perfil que almeja é alguma -teilnahme) era absolutamente necessária para manter
coisa próxima a um antissistema. Tendo como funda- viva a capacidade de experimentar o não idêntico, pois
mento o princípio da não identidade e enfatizando o a participação é ser consumido, tragado, pois ela é ca-
conceito de particular concreto, cuja significação reside racterística do novo tipo antropológico que se iden-
mais na sua contingência do que na sua universalidade, tifica pela falta de curiosidade, pela falta de vontade
mas, de qualquer modo, sendo o lócus da determinação da experimentação do não idêntico. Participar é, neste
geral, ou seja, da estrutura social burguesa, a crítica de contexto, não querer conhecer nada de novo, nada que
Adorno tem por objetivo a verdade não intencional, ou seja aberto e desprotegido. A isto é preciso agregar que
seja, a verdade reside no objeto, inclusive na matéria toda insistência da negatividade em Adorno consistia
espiritual (Geist), ou seja, no material das ideias, teo- na resistência em reproduzir no pensamento as estrutu-
rias, conceitos, romances, composições musicais. Mas, ras de dominação e reificação manifestas na sociedade.
se a verdade está no sujeito, não está simplesmente à E tem por consequência que, em lugar de reproduzir
mão, é necessário o sujeito racional para que sua ver- teoricamente a realidade, a razão tem que se deter no
dade seja liberada, de modo que o dado do objeto, na
sua imediaticidade, o sujeito racional escapa sua ideia
plano crítico. Em suma, Adorno, procurando se asse-
gurar de que a razão não se transformasse em partici- 11
ou essência que é o seu conjunto social historicamen- pação deglutinadora, faz com que a dialética negativa
te específico. Nesta prévia e rústica aproximação às anule a utilidade política e se transforme num fim em
concepções do antis- si mesma. A filosofia retorna simplesmente à filosofia.
sistema de Adorno, O nexo entre a filosofia e a sociedade é, mais uma vez,
tudo ou quase tudo rompido. Mas quando o método da dialética negativa
parece indicar que se perpassa como monopolização total, a própria filo-
filosofia e sociedade sofia está ameaçada. A nova esquerda, na década de 60,
se encontram em co- censurava Adorno por ter conduzido a teoria crítica a
nexão visceral. E que um ponto morto; tornara-se algo estático, meramente
vale a pena favorecer contemplativo.3 A esta paralisia de Adorno, pergunto:
ainda mais esta im- não é, por caminhos totalmente diversos, o equivalente
pressão, lembrando ao silêncio de Wittgenstein?
que desempenhou Em contrapartida, Lukács, no capítulo três da
um papel importan- parte sistemática de sua Para uma Ontologia do Ser
Theodor Adorno (1903-1969) te nas antiteorias de Social4, ao tratar a questão da ideologia, determina a
Adorno uma formu- filosofia, ao lado da arte, como as formas mais puras da
lação lukacsiana (História e Consciência de Classe), qual ideologia. Para Lukács, no rastro do desenvolvimen-
seja: de que o problema da fetichização da mercadoria to das postulações marxianas, ser ideologia não é uma
era o protótipo de todas as formas de objetividade e qualidade social fixa deste ou daquele produto espi-
de todas as correspondentes formas de subjetividade ritual, mas ao inverso, por sua natureza ontológica, é
na sociedade capitalista, incluindo os próprios esque- uma função social. Função que os produtos espiritu-
mas do pensamento burguês. Mas, depois da Segunda ais adquirem somente depois de terem se tornado ve-
Guerra, a fetichização e a reificação cedem lugar à pos- ículos, teóricos ou práticos, destinados aos compactos
sibilidade de uma catástrofe total – isto no pensamento conflitos sociais. Quaisquer que estes conflitos sejam,

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grandes ou pequenos, episódicos ou decisivos, para o mundo, tenta sintetizar, da cosmologia à ética, todos os
destino da sociedade. De modo que a correção ou a fal- nexos, de tal modo que possa apresentar, também, as
sidade não basta para fazer de uma opinião uma ideo- decisões contingentes como momento necessário da-
logia. Nem uma opinião individual correta ou errônea, quelas decisões que determinam o destino da espécie
nem uma hipótese de uma teoria científica correta ou humana. Mas a influência ideológica de alguma filo-
errônea são, em si e por sofia só ganha efetividade quando a generalidade (a
si, uma ideologia; pode- generalidade do gênero humano) ideal, forjada pela fi-
rá vir a ser, ou seja, esta losofia, relaciona-se em substância e em realidade com
tematização rejeita toda aquelas, espontânea e contraditoriamente, formadas
crítica gnosiológica acerca ao longo do processo histórico, como possibilidade real
da correção ou falsidade no campo das possibilidades.
dos produtos da ideolo- Em síntese, a elaboração filosófica reúne sinte-
gia, bem como, à imedia- ticamente os dois polos (mundo e homem) na imagem
ticidade não entram em da generidade concreta, na medida em que seu objeto
questão os aspectos mo- central é o gênero humano, isto é, a imagem ontológica
rais, convicção sincera ou do universo e, neste, da sociedade. Sobre a angulação
demagogia cínica, como de como foi, se transformou e é, para elaborar como
Georg Lukács (1885-1971)
critério para estabelecer o necessário possível, um tipo cada vez mais efetivo de
que seja ideologia . generalidade . E, por consequência, a determinação on-
Em suma, determinar a ideologia em termos tológica da filosofia como ideologia não a reduz nem
ontológico-práticos significa, portanto, considerar essa a desqualifica; ao contrário, desvela sua eficácia pró-
manifestação essencialmente pela função social que pria ao dar por conhecida sua gênese e sua finalidade,
desempenha enquanto veículo de tomada de consci- indissoluvelmente vinculadas à humanidade, urdida
ência e prévia ideação da prática social dos homens. pela sociabilidade, as quais a seu modo, mas de fato,
Posta a cumprir uma função social, enquanto veículo ela ainda a concebia.
de conscientização e prévia ideação na prática social Como é sabido, a compreensão gramsciana do
dos homens, o que significa que a filosofia seja uma marxismo como filosofia da práxis5 emerge como uma
forma pura da ideologia? Trata-se de sua abstenção de tentativa de interferir nos debates que se travaram na
exercer qualquer ação direta sobre a economia e sobre década de vinte no movimento operário. Esta compre-
as estruturas sociais com ela relacionadas, constituin- ensão visa, antes de tudo, combater o marxismo vul-
do, todavia, forma insubstituível para a resolução real gar, nas suas tendências ortodoxa e eclética, e eliminar
dos problemas que se apresentam na processualidade; de vez sua nefasta influência sobre o operariado orga-
ou seja, a filosofia tanto quanto a arte estão distantes da nizado, bem como todas as concepções de mundo cujo
ação prática imediata e seu propósito está em cultivar ponto de partida não fosse a práxis humana concreta.
o gênero humano, o seu de onde e para onde constitui Essa confiança cientificista fundamentava-se
o problema central permanente, mesmo se, continu- no seu caráter vulgar-materialista. Devia-se aflorar na
amente, mudar de acordo com a época histórica. As- leitura de toda e qualquer realidade o elemento ma-
sim, a universalidade filosófica não é nunca um fim em terial determinante. A determinidade material era a
si, não é nunca uma simples síntese enciclopédica ou chave para se dizer de uma explicação se era marxista,
pedagógica de resultados comprovados, mas uma sis- cientifica ou não. Encontrava-se na tecnologia, entre os
tematização como meio para entender, de modo mais vários elementos da produção, aquela região material
adequado possível, esta origem e destinação do gênero propulsora da teleologia da história. A matéria, nessa
humano. E, por consequência, não há nenhum filóso- acepção vulgar, passa a substituir as antigas entidades
fo realmente merecedor deste nome, e que não esteja da metafísica, torna-se o substractum e o subjectum da
apenas no sentido estritamente acadêmico, cujo pensa- história.
mento não tenda a intervir a fundo nos conflitos deci- Gramsci vai compreender o marxismo como
sivos da sua época, a elaborar quesitos para diluí-los e, filosofia da práxis, na tentati-
portanto, a dar uma orientação mais decidida à própria va de reassociar marxismo e
ação resolutiva. Trata-se de uma intervenção ideológi- proletariado, evidenciando,
ca pura, na medida em que, de um lado, as questões assim, o caráter revolucioná-
sobre as quais se expressa ultrapassam a imediatici- rio da filosofia da práxis.
dade cotidiana, que é âmbito da função ideológica do Encontramos elemen-
Direito; também a globalidade social conflituada, que é tos para iniciar a determina-
12 o território ideológico da política, e ainda, a ideologia.
Então a filosofia é pura porque, ao contrário da políti-
ção do que seja essa filosofia
da práxis no questionamen-
ca, não dispõe de meios próprios para colocar em prá- to feito por Gramsci à con-
tica suas generalizações. E só em presença da filosofia, cepção de filosofia como
qualquer que seja o tom ou comprometimento político metodologia da ciência e da
com que esteja revestida, são as questões que afetam história. Essa acepção torna-
o gênero humano, isto é, cada filosofia, em certo ter- -se problemática na medida
mo, deseja oferecer uma imagem global do estado do Antonio Gramsci (1891-1937) em que o termo metodologia

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é entendido positivistamente, isto é, como um arse- gua, embora haja entre elas uma inter-relação (Q.730).
nal de instrumentos ou procedimentos que possibili- É nesse sentido que Gramsci percebe diferentes níveis
tam o apresamento de determinado conteúdo, tendo, na linguagem: o provincial-dialetal-folclórico, o nacio-
portanto, um relacionamento de exterioridade com o nal-popular e o nível da civilização. Quem fala apenas
conteúdo. Nessa perspectiva, a filosofia passa a centrar o dialeto estará preso, certamente, a uma visão provin-
sua preocupação no método, na construção de procedi- ciana do mundo, das questões, etc., ultrapassável por
mentos científicos, perdendo, por isso, o interesse pela aquele que fala a língua nacional, que, por sua vez, es-
história real, concreta. tará apto a apreender a “linguagem” da civilização, os
Contrapondo-se a esse ponto de vista, Gramsci grandes problemas, as concepções e as propostas uni-
vai entender a filosofia enquanto concepção de mundo, versais, etc.
como a única forma de resgatar a relação entre filosofia O tratamento dessas regiões culturais e suas
e prática concreta dos homens e superar o conceito mo- relações com a filosofia chega ao ápice nas anotações
derno, epistemológico de filosofia como metodologia de Gramsci sobre o folclore (cantos, moral popular,
das ciências e da história. crenças, folclore jurídico, etc.), principal manifestação
Ao compreender a filosofia como concepção de do senso comum. Gramsci vai trabalhar no sentido de
mundo, Gramsci exige que façamos uma incursão em mudar o estatuto epistemológico do folclore, que vinha
várias esferas culturais que, por estarem intimamente sendo estudado apenas como algo pitoresco, inexpres-
ligadas à prática imediata dos homens, revelam o nível sivo cultural e gnosiologicamente. Gramsci passa a exi-
intelectual-moral no qual se encontram, na tentativa de gir que se descubra sua significação real, ou seja, que se
demarcar as diferenças e relações dessas esferas cultu- estude o folclore enquanto concepção do mundo e da
rais com a filosofia em geral e a filosofia da práxis em vida (Q.2311).
particular. Embora Gramsci parta do aspecto relevante
Dentre as esferas culturais nas quais estão pre- do folclore, enquanto concepção do mundo e da vida,
sentes concepções de mundo e que são vislumbradas quando suas colocações partem na direção da análise
por Gramsci, destacam-se as seguintes: linguagem, fol- dos seus elementos formais e conteudísticos, emerge
clore e áreas afins, como as crenças, a moral popular, os claramente o aspecto negativo do folclore. As concep-
cantos populares e o senso comum, sendo que o senso ções folclóricas são qualificadas negativamente antes
comum é entendido como o conjunto das cosmovisões mesmo de qualquer exame concreto; essas qualifica-
que orientam a ação corriqueira dos homens e que es- ções negativas são deduzidas da noção mesma de povo
tão presentes nessas esferas culturais. que, diz Gramsci: “...por definição, não pode ter con-
O estudo da prática concreta exige que Gra- cepções elaboradas, sistemáticas e politicamente orga-
msci parta da sua mais simples compreensão, mani- nizadas e centralizadas” (Q. 2312). Realmente Gramsci
festa, por exemplo, na linguagem. Nesse sentido, ele constata que o folclore apresenta-se contraditório, frag-
contribui executando oportunas distinções dos planos mentário, disseminado, múltiplo, grosseiro, implícito,
linguísticos, evitando, com isso, erros cometidos tanto não elaborado, justaposto, diversificado, estratificado,
pelo marxismo vulgar como pela “ciência da lingua-
gem” dos positivistas. Contra o marxismo vulgar, que
indigesto, etc., enquanto as concepções oficiais se ma-
nifestam elaboradas, sistemáticas, politicamente orga- 13
entendia a linguagem como um elemento supraestru- nizadas e centralizadas, etc. Quando Gramsci passa do
tural determinado imediatamente pela estrutura mate- nível da constatação à avaliação, percebe-se uma con-
rial, Gramsci expõe a necessidade de se estudar a lin- vergência no sentido negativo que atinge globalmente
guagem no seu aspecto interno, formal e “autônomo”. os elementos que constituem o folclore, tanto no que
Para isso, contribuem de modo particular as suas colo- diz respeito ao modo de organização quanto à natu-
cações a respeito da gramática. Contra o procedimento reza do conteúdo. Esses elementos são concebidos e
positivista, chama atenção para sua concepção de lin- apresentados, na sua generalidade, em relação com as
guagem como expressão sociocultural que, portanto, concepções cultas, como degradadas, desfiguradas e
não deve ser estudada como “coisa” morta, como mera passivas.
expressão filosófica. O ângulo da colocação de Gramsci começa a
A linguagem como sistema de sinais, com sua ser modificado quando, analisando outras expressões
articulação interna, é originalmente intuída por Gra- culturais, também elas folclóricas, percebe seu caráter
msci nas suas anotações sobre a gramática, mostrando, contraditório, vislumbrando um lado até agora não
com isso, a dependência da fala individual ao sistema aflorado. Essas indicações operam no sentido de in-
linguístico como um todo que existe objetivamente, troduzir aspectos qualitativos nas referências à “cos-
como realidade supraindividual, chamada por ele de movisão do povo” ou de modificar quantitativamente
“técnica” (no sentido de mecanismo exterior através algumas qualidades já atribuídas. Referindo-se à moral
do qual é possível a comunicação). popular, ao folclore jurídico e também aos cantos po-
Colocar a linguagem como atividade coletiva pulares, Gramsci passa a atribuir às concepções folcló-
e expressão cultural, portadora de uma certa concep- ricas a capacidade de aderir espontaneamente às con-
ção de mundo, não significa excluir estatisticamente dições reais da vida e de seu processo; de não constituir
as diferenças existentes no seu interior, reconduzíveis, simplesmente a parte degradada e inerte das concep-
inclusive, às diversas condições dos grupos sociais. Po- ções oficiais; de apresentar muitas vezes um valor pro-
de-se dizer que todo grupo social tem sua própria lín- gressivo; de alcançar um grau de capacidade expansiva

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que pode colocar em posição de defesa as concepções Quaderni severas críticas ao humanismo pré-marxiano,
oficiais. Esses elementos sadios das concepções folcló- seja ao humanismo católico, seja ao humanismo utó-
ricas e do senso comum são chamados por Gramsci de pico, bem como ao humanismo vulgar (setecentista).
bom senso. Esse núcleo sadio do senso comum é o elo Apesar de em todos esses humanismos já estar posta a
que possibilita a relação entre as concepções folclóri- questão da unificação humana, é principalmente a par-
cas e a filosofia. Com o bom senso evidencia-se que, no tir de suas parcialidades que eles são vislumbrados por
pensamento imediato dos homens, há uma ou mais de Gramsci, que são, em resumo, os seguintes : todos par-
uma racionalidade difusa e que a tarefa da filosofia é tem de uma abstração e a partir dela determinam uma
uni-la, explicitá-la e sistematizá-la. essência humana fixa, eterna e geral para o homem e,
A sistematização dos conteúdos originais e por isso, concebem o homem enquanto indivíduo limi-
progressivos, presentes no senso comum, é perpassa- tado à sua individualidade, na qual está presente aque-
da por dois critérios que os transformam radicalmente: la abstração.
a reflexão e a crítica. Isto porque, depois de passados Ao conceber a filosofia da práxis como histori-
por esses elementos, esses conteúdos adquirem ho- cismo “absoluto”, Gramsci visa contrapor-se aos histo-
mogeneidade, coerência, logicidade e passam a ser ricismos parciais, como ao hegeliano e croceano, que
compreendidos dentro da história do pensamento hu- resolviam os problemas históricos concretos no plano
mano. Como consequência desse processo, a filosofia da especulação, do “saber absoluto”. No historicismo
passa a ser dotada de universalidade e historicidade. “absoluto”, ao contrário, os problemas reais da história
Universalidade como expressão da reflexão e contra- têm suas possibilidades de solução exclusivamente na
posição ao particularismo próprio ao senso comum, e história, praticamente, não noutra esfera.
historicidade como realização da criticidade. O caráter O marxismo como historicismo “absoluto”
de historicidade da filosofia faz com que ela extrapole é, também, uma tentativa gramsciana de combater o
o círculo fechado dos intelectuais profissionais, pois, fatalismo e o mecanicismo, próprios ao materialismo
segundo Gramsci, a adesão ou não das massas popula- vulgar, presentes no movimento operário da época. O
res a uma filosofia (pela via política, por exemplo) é o fatalismo é expressão do finalismo natural e religioso
modo pelo qual se verifica a crítica real aos modos de que se infiltrou no senso comum que, por sua vez, foi
pensar. aceito, consciente ou inconscientemente, por muitos
A única concepção de mundo atual que preen- dirigentes do movimento operário, numa demonstra-
che as exigências desse conceito de filosofia é, segundo ção evidente de aceitação da existência de teleologia
Gramsci, o marxismo. Esta é a filosofia mais elevada fora da realidade histórico-social.
de nosso tempo, uma vez que suprassume tanto o sen- A compreensão do marxismo como filosofia da
so comum atual como o imanentismo moderno. Essa práxis, que se desdobrou num humanismo e historicis-
capacidade de suprassumir as mais elevadas filosofias mo, radicaliza-se em Gramsci na sua acepção do que
modernas e as “filosofias espontâneas”, guiadoras da seja ideologia, para a qual insiste em chamar atenção,
ação do homem contemporâneo, é o que faz do marxis- visando ao marxismo vulgar-cientificista, como tam-
mo uma cosmovisão original e autônoma. bém as filosofias especulativas, para o caráter histórico
A práxis humana é a categoria central capaz e social de toda realidade que seja fruto da práxis hu-
de unir os vários elementos que constituem a filoso- mana, como, por exemplo, a filosofia e a ciência .
fia da práxis; através dela, qualquer uma dessas esferas Segundo Gramsci, a compreensão vigente do
“traduz-se” nas demais, pois nos seus princípios existe fenômeno ideológico, mesmo entre muitos teóricos do
convertibilidade de uma na outra (sua relação com a movimento operário, tem sua origem no sensorialis-
produção da vida humana enquanto humana). mo francês. A ideologia é, nessa concepção, entendida
A incompreensão, por parte de muitos marxis- como mera aparência, ou seja, é determinada imedia-
tas e não marxistas, da tradutibilidade dos elementos tamente pela economia (que é a única realidade). Esse
da filosofia da práxis é um alvo constante de Gramsci. ponto de vista leva às últimas consequências o cien-
Exemplo disso é a acirrada crítica que ele faz à con- tificismo próprio ao sensorialismo quando põe como
cepção do marxismo como uma sociologia por parte de critério para determinação do que seja ideológico o seu
Bukárin. ser expressão falsa da consciência. Ideologia, assim,
A compreensão do marxismo como filosofia da torna-se sinônimo de uma consciência iludida, não ob-
práxis vai implicar o seu desdobramento em humanis- jetiva da realidade.
mo e historicismo, diz Gramsci: “A Filosofia da Práxis é Contra essa maneira de colocar a ideologia,
o historicismo absoluto, a mundanização e terrenalida- Gramsci vai, inicialmente, conceber a realidade social
de absoluta do pensamento, um humanismo absoluto como “bloco histórico”, no qual economia e ideologia
14 da história” (Q. 1437). Isso significa que a filosofia da
práxis reenvia à práxis humana e ao mundo por ela ela-
interagem na forma de ação recíproca; depois apre-
senta a ideologia como o conjunto das supraestrutu-
borado (a sociedade) as demais categorias. Tudo que ras, justamente na tentativa de determinar seu caráter
diz respeito ao homem tem, portanto, sua explicação histórico-social e, por último, enfatiza o aspecto onto-
na própria história e não numa exterioridade, seja a na- lógico, gnosiológico e ético-normativo da ideologia, vi-
tureza, seja uma divindade ou qualquer outra entidade sando, com isso, resgatar a posição marxiana em Para a
metafísica. Crítica da Economia Política.
Esse é o motivo pelo qual encontramos nos Na verdade, essa concepção de ideologia-ilu-

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são, aparência, etc., emerge porque a economia se torna Mesmo na mais grosseira concepção de mundo (mito-
uma espécie de “deus-oculto”, única realidade de onde lógica, religiosa, etc.), o homem representa cognitiva-
emanam, como epifenômenos, as demais realidades. É mente, ainda que de modo intuitivo, o mundo, a si e as
contra esse raciocínio que Gramsci usa o seu conceito suas relações com os outros.
de “bloco histórico”, na tentativa de mostrar como, na Com a dimensão ético-normativa da ideolo-
realidade concreta, economia e ideologia interagem e, gia, explicita-se como, em Gramsci, o critério para de-
ao fazê-lo, dá “... ao termo ideologia o significado mais terminação do que é ideológico é sua capacidade de
alto de uma concepção de mundo que se manifesta im- incidir sobre a prática social dos homens, de induzir
plicitamente na arte, no direito, na atividade econômi- à ação, ou seja, a ideologia tem uma função social es-
ca, em todas as manifestações da vida, individuais e pecífica: é através dela que os homens adquirem cons-
coletivas...” (Q. 1380). Assim fazendo, Gramsci mostra ciência de sua posição social, concebem seus conflitos
como a própria economia é perpassada pela consciên- e os conduzem até o fim. É em relação a esta função da
cia e, por isso, perpassada pela categoria de historici- ideologia que Gramsci divide-a em orgânica e arbitrá-
dade, o que a impossibilita de se tornar uma espécie de ria; diz ele: “É necessário, por conseguinte, distinguir
deus-oculto, fonte de explicação para todo e qualquer entre ideologias historicamente orgânicas, isto é, que
fenômeno. são necessárias a uma determinada estrutura, e ideolo-
Com esse posicionamento, Gramsci enseja gias arbitrárias, racionalistas, “desejadas”. Na medida
distanciar-se do materialismo vulgar e levar às últi- em que são historicamente necessárias, as ideologias
mas consequências o antropocentrismo moderno; diz têm uma validade “psicológica”: elas “organizam” as
ele: “É certo que a concepção subjetivista é própria massas humanas, formam o terreno sobre o qual os
da filosofia moderna em sua forma mais completa e homens se movimentam, adquirem consciência de sua
avançada, de onde – e como sua superação – nasceu o posição, lutam, etc. Na medida em que são arbitrárias,
materialismo histórico, o qual, na teoria das supraes- “... elas não criam senão movimentos individuais, po-
truturas, coloca em linguagem realista o que a filosofia lêmicos, etc.” (Q. 868-869). Estas diferenças, reconheci-
tradicional expressa em forma especulativa” (Q.1413). das por Gramsci, entre as ideologias têm como critério
É justamente devido a esta compreensão que sua relação com a prática dos homens. As “ideologias
Gramsci vai enfatizar que a teoria marxiana da ideo- orgânicas” são capazes de “traduzirem-se” em normas
logia não tem nada com o sensorialismo francês, pois práticas de ação das massas justamente porque estão
para o fundador da filosofia da práxis a origem das relacionadas aos interesses universais dos grupos so-
ideias não pode ser buscada nas sensações e, portanto, ciais ou porque respondem aos desafios da realidade
em última análise, na filosofia. Ao contrário, a ideolo- (seja questionando-a, seja legitimando-a), enquanto as
gia deve ser entendida como uma supraestrutura, ou “ideologias arbitrárias” não criam senão movimentos
seja, como uma realidade cuja gênese é encontrada na isolados, isto porque estão relacionadas apenas a inte-
práxis social, cuja existência é histórica, porque a cate- resses “ocasionais” de grupos ou de um grupo social. É
goria de historicidade perpassa toda e qualquer práxis nesse sentido que Gramsci admite o uso pejorativo do
humano-social.
Dizer que a ideologia é formada pelo conjunto
termo ideologia, indicando que sua função social é bre-
víssima e que, embora toda e qualquer ideologia seja 15
das supraestruturas significa, em Gramsci, que ela é a perpassada pela categoria de historicidade, a “vida” de
catarse que adquiriu, em determinado tempo e lugar, o uma ideologia “arbitrária” é curtíssima em relação a
desenvolvimento material dos homens. Isso equivale a uma ideologia “orgânica”.
dizer que a ideologia não nasce do nada, que é geneti- Como coroamento contrapositivo ao cientifi-
camente determinada pela práxis humana material, na cismo vulgar-materialista e toda forma de tematização
medida mesma em que perpassa essa práxis; a respeito, abstrata e especulativa, aparece, assim, o entendimen-
diz Gramsci: “...o conjunto complexo – contraditório e to gramsciano da filosofia e da ciência como ideologia.
discordante – das supraestruturas é o reflexo do con-
junto das relações sociais de produção” (Q. 1051). Notas
Nesse sentido, Gramsci coloca a teoria das 1. Wittgenstein, L. Tractatus Logico-Philosophicus, São Paulo:
supraestruturas da filosofia da práxis não na linha do Editora Nacional/EDUSP, 1963 (trad. J.A.Giannotti), p. 128.
materialismo francês, mas na perspectiva do idealismo 2. Wittgenstein, L. Investigações Filosóficas, Coleção Os Pensa-
dores , vol. XLVI, São Paulo: Abril Cultural, 1975, (trad. José
moderno; só que nela, a consciência é situada e deter-
Carlos Bruni), p. 112.
minada sócio-historicamente. 3. Cf. Adorno, T. W. Dialéctica Negativa,Madrid: Taurus Edi-
Gramsci rompe com toda uma tradição da ciones, 1975, (trad. José Maria Ripalda).
cultura moderna e mesmo com um certo marxismo. 4. Lukács, G. ZurOntologie des gesellschaflitchen Seins, Berlim:
Ambos tomavam como modelo de ideologia a “fal- Luchterland Verlag, II. Halband,, 1984.
sidade” gnosiológica. A representação dos conflitos 5. Cf. Gramsci, A. Cadernos do Cárcere, Rio de Janeiro: Civili-
sociomateriais se dá sempre, para Gramsci, no plano zação Brasileira, 2001, 6 vols. (tradução Carlos Nelson Couti-
ideológico, seja gnosiologicamente pobre, seja estrutu- nho e Luiz Sergio Henriques).
rada e sistematicamente organizado. Em toda prática
humana, está presente, sempre, um certo saber de si e * Ester Vaisman é professora da UFMG.
de seu mundo e é este saber que lhes impulsiona, coti-
dianamente, a tomar as decisões a que são obrigados. P
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A Filosofia no Brasil

por Paulo Eduardo Arantes*

“Convém que o Governo ao menos uma vez da na Faculdade de Direito da capital pernambucana.
lance os olhos sobre a mocidade, que faça ensinar nas Seu principal animador é Tobias Barreto (1839-1889),
escolas uma Moral pura, uma filosofia sã, e nutra o sen- figura geralmente ridicularizada por ter publicado em
timento do amor divino”. Estas palavras do célebre po- Escada, em pleno interior de Pernambuco, um jornal
eta romântico Gonçalves de Magalhães (1811-1882) são intitulado Deutscher Kampfer, inteiramente escrito em
quase um programa de Filosofia para o Brasil. Adepto alemão...
do chamado ecletismo, proposto na França por Vic- Mas essa “mania germânica”, como o próprio
tor Cousin (1792-1867), que procurava conciliar o que Tobias Barreto dizia, e que tem como influência o criti-
houvesse de “razoável” e “sem excessos” em todos os cismo de Kant e o evolucionismo de Darwin e Haeckel,
sistemas filosóficos, Magalhães busca desse modo as- é a sua maneira de restabelecer a reflexão isenta de pro-
sociar a Filosofia a um pósitos não puramente filosóficos. Para Barreto, o mo-
projeto global de cons- vimento – e a tensão e luta que este implica – é a única
trução, pela educação, lei que rege a natureza, as sociedades e as ideias, e, por
do homem moral e cívi- isso, o ecletismo é apenas uma “sombra de ilustres de-
co, perfeitamente inte- funtos, cujas teorias, em todo ou em parte, morreram
grado ao regime monár- também.” Por esse motivo, ele também combateria o
quico então existente no positivismo, que, ao ignorar a tensão na evolução, se
Brasil. Não por acaso, ele tornou um mero catálogo de fatos, petrificando-se em
iria proferir na presença “uma dogmática de novo gênero, e, como todas as
do próprio imperador, dogmáticas, um processo de encurtamento e atrofia ce-
a aula inaugural do pri- rebral”.
meiro curso oficial de Fi-
losofia no Brasil, instituí- Propagandistas da “ditadura republicana”
do no Colégio Pedro II. O positivismo difunde-se, no Brasil, na segun-
da metade do século XIX, tendo como seu núcleo inicial
Só as ideias podem moralizar a Escola Militar do Rio de Janeiro. Ali, sob a influência
Não que antes não tivessem existido reflexões de professores comtianos como Benjamim Constant
filosóficas no Brasil – e houve até quem as encontras- (1836-1891), há um clima cientificista e anticlerical.
se nos primeiros escritos registrados ainda nos tempos Pereira Barreto (1840-1923) é um desses positivistas,
da Colônia, por exemplo, de um padre Antônio Viei- para quem a monarquia brasileira, associada à Igreja e
ra. Filósofos também teriam sido alguns escritores que baseada em instituições arcaicas como a escravidão, é
participaram da Inconfidência Mineira, no final do um entrave para o progresso. É preciso então criar um
século XVIII, de nítidas influências, segundo muitos, “Estado racional”, de “ordem e progresso” – lema que
do Iluminismo francês. Mas, na falta de melhores crité- seria estampado na bandeira nacional, instituída em
rios para decidir o que é ou não “filosófico”, talvez seja 1889, com a proclamação da República.
mais prudente considerar como o início da Filosofia no
Brasil o momento em que ela se oficializou como tal em A real dimensão da participação dos positivis-
uma instituição de ensino. tas na campanha republicana é, hoje, objeto de contro-
Isso, no entanto, não significa que essa doutri- vérsia. Em todo caso, muitas de suas ideias – como a
na filosófica oficial possa ser caracterizada como uma de “ditadura republicana” para impedir a participação
“grande Filosofia”: como o próprio nome “ecletismo” democrática de um “povo inculto” – também estão pre-
indica, ela não passa de uma mescla de ideias justapos- sentes entre os militares que proclamaram a República.
tas sem muito rigor, em que ressalta seu aspecto mora- Além disso, as propostas de positivistas como Miguel
16 lizante. “E note-se”, escreve Gonçalves de Magalhães,
“que as ideias, e só as ideias podem moralizar, ou des-
Lemos (1854-1917) e Teixeira Mendes (1855-1927), de
que o progresso depende da solução, de cima para
moralizar os povos”. baixo, de conflitos trabalhistas – a chamada “questão
social” -, coincidem de certo modo com as medidas au-
Guerra aos “ilustres defuntos” toritárias adotadas pelo Estado.
Contra esse oficialismo, que mais se preocupa Efetivamente, porém, embora o positivismo
em propor uma doutrina do Império do que em instigar tivesse adquirido no Brasil esse caráter muito mais
a reflexão, volta-se a chamada Escola do Recife, forma- prático e político do que filosófico, seus adeptos não

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participaram de modo direto dos governos republica- Filosofia, uma especialização
nos. Foram deles alijados ou se abstiveram, seguindo o É inegável, no entanto, que as pesquisas e as
seu mestre que preferia a ação pedagógica à ação polí- produções de caráter universitário, realizadas em fa-
tica. Desde 1881, seguindo o modelo preconizado por culdades e institutos de filosofia, tenham conseguido
Comte, organizaram-se em uma Igreja Positivista do maior difusão. Um dos possíveis fatores que contri-
Brasil, que existe até hoje. buíram para isso foi a especialização, propriamente
filosófica, desses meios universitários: estes, em con-
Ideias fora de lugar traste com os outros centros, geralmente de forte ca-
Segundo uma teoria recente, todas essas ideias ráter doutrinário, abriram-se à pesquisa e ao debate,
estariam “fora de lugar”. Formulada por Roberto em que elementos, como o rigor das interpretações e a
Schwartz em um artigo intitulado precisamente “As erudição para desvendar aspectos implícitos em uma
Ideias Fora de Lugar”, essa teoria, no entanto, reto- concepção, passaram a ser mais importantes do que
ma as análises que já estavam implícitas em análises a adesão a uma determinada corrente filosófica. Por
pioneiras de João Cruz Costa (1904-1978) ou de Sérgio exemplo, não era mais preciso ser kantiano para poder
Buarque de Holanda (1902-1982): as ideias no Brasil, ler, interpretar e até admirar a obra de Kant.
copiadas de modelos estrangeiros e portanto sem as Para isso foi fundamental a fundação, em
bases econômicas, sociais e políticas que as produzi- 1934, da Universidade de São Paulo (USP), cujo núcleo
ram na origem, estariam como que soltas ou, pelo me- principal, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras,
nos, em uma relação muito peculiar com a realidade contaria com a colaboração de professores estrangei-
brasileira – o que explicaria tanto a sua pobreza e falta ros – principalmente franceses, entre eles Lévi-Strauss.
de originalidade quanto, ao contrário, a sua riqueza. Durante muito tempo, a Faculdade de Filosofia da USP
Essa hipótese suscita até hoje intensas polêmi- não deixou de ser mais um entre tantos outros centros
cas. O que não se notou na época, porém, é que essas de estudos filosóficos, universitários ou não. Mas, pas-
discussões se davam em um ambiente relativamente sado esse tempo de aprendizado e maturação, ela ad-
restrito, isto é, o das universidades e, mais precisamen- quiriu uma certa projeção internacional, já nos anos 60.
te, de seus institutos e faculdades de filosofia. Tal fato
revela uma certa incomunicabilidade, no Brasil, entre Repressão, exílio e dispersão
os vários centros mais ou menos ligados aos estudos de Essa é, porém a época da repressão política: a
Filosofia – como os núcleos formados nas faculdades ditadura militar, instaurada em 1964 ne recrudescida
de direito, os grupos católicos profundamente marca- a partir de 1968, “aposenta compulsoriamente” vários
dos pelo pensamento de Santo Tomás de Aquino, os professores da USP e de outras universidades. A Facul-
remanescentes do Instituto Superior de Estudos Brasi- dade de Filosofia é reestruturada e, momentos antes,
leiros (ISEB), que buscava um pensamento e uma cul- grupos de direita incendeiam seu prédio.
tura genuinamente nacionais, ou associações como o Tempo também de exílio e dispersão: muitos
Instituto Brasileiro de Filosofia. Eles se ignoram de tal permanecem no exterior: outros voltam, mas, impedi-
modo, que há praticamente uma história de filosofia no
Brasil para cada grupo.
dos de lecionar em suas universidades, fundam insti-
tutos de pesquisa, como o Centro Brasileiro de Análise 17
e Planejamento (Cebrap) e o Centro de Estudos de Cul-
tura Contemporânea (Cedec), ou passam a integrar o
quadro de outras instituições de ensino.
Em parte devido a isso e também a um maior
intercâmbio entre as várias universidades, há hoje,
no Brasil, uma certa homogeneidade no ensino e na
pesquisa de Filosofia, ao menos no âmbito acadêmi-
co. Essa história, no entanto, ainda é uma história em
aberto, como o é também a continuidade da própria
História do Pensamento.

Cuidando de Filosofia no Brasil, e vice-versa


Na história da inteligência brasileira, uma tra-
dição que remonta aos primeiros tempos de nossa vida
independente consagra o interesse pelo tema nacional,
conferindo-lhe inclusive conotação progressista, en-
quanto repudia o incaracterístico universal, condena-
do por inautêntico e alienante. Onde essa tradição me-
lhor se expressou foi na literatura, durante um longo
período nossa principal atividade intelectual: quem es-
crevia, fazia-o na intenção de revelar o Brasil aos seus
compatriotas e possuído pelo sentimento de estar con-
tribuindo para a consolidação de nacionalidade ainda
incerta, como até hoje. Na base desse impulso coletivo,

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formou-se a literatura brasileira, como mostrou Antô- não poderíamos continuar encarando com naturalida-
nio Cândido. de o funcionamento da filosofia no Brasil, sobretudo
Deu-se o inverso com a Filosofia. Não se pres- num país mal-acabado, onde são frouxos e oblíquos os
tando à figuração da realidade como a literatura, a vínculos entre vida mental e evolução social. De cos-
Filosofia não ultrapassou entre nós o limiar da mera tas para o país, a falta de assunto nos persegue, salvo
curiosidade, episódica e errática, por livros de filosofia os tópicos obrigatórios da rotina acadêmica; de frente
(era considerado filósofo quem os lia), até a sua organi- para ele, na ausência da linha evolutiva referida acima,
zação na forma de cursos superiores regulares, a partir que condenou a Filosofia a um lugar subordinado no
dos anos 30 deste século, quando então reencontrou panorama da cultura nacional, não sabemos identifi-
seu destino moderno de especialidade universitária car as questões que ganhariam em clareza e relevância
como outra qualquer. Comparada à literatura, trata- se reconduzidas ao plano da conceituação filosófica,
-se de um enxerto sem passado. Atribuir-lhe uma linha descartado evidentemente o despropósito da filosofia
evolutiva que jamais conheceu tornou-se com o tem- aplicada. Sobram portanto evidências, quando não um
po preocupação exclusiva e apologética de patriotas sentimento íntimo de irrelevância, de que a filosofia no
bisonhos ou conservadores. Daí a inversão assinalada: Brasil, embora vá muito bem, ainda é um problema.
a cultura filosófica universitária, metodicamente trans- Nessas condições proibitivas, como dar satisfação ao
plantada (no caso, francesa e para São Paulo), vedava programa formulado por Cruz Costa?
por princípio o menor interesse pelo pensamento local,
este era mais que ralo e o outro, apanágio da direita; Plataforma de observação
em contrapartida, os amigos do progresso, tanto em Partindo, por exemplo, das implicações da ex-
matéria de filosofia como em política, deveriam alinhar periência intelectual brasileira básica. Brasileiros pelo
com a atualidade internacional e a tradição multissecu- sentimento, somos europeus pela imaginação: assim
lar de que ela se nutre. definia Joaquim Nabuco a dupla fidelidade responsá-
vel pelo permanente mal-estar na cultura brasileira,
“Fantasia sem proveito” uma obsessão nacional hoje em dia recalcada. Pois no
Apenas Cruz Costa destoava, desagradando fundo, como já foi dito (por Roberto Schwarz), todo in-
a gregos e troianos. Sendo universitário e cosmopo- telectual brasileiro sabe que passa a vida às voltas com
lita, desconcertava os jovens professores que ajudara ideias cujos pressupostos se encontram significativa-
a formar, dedicando sua carreira ao estudo das ideias mente alterados entre nós. Passa a vida condenado à
filosóficas no Brasil, arruinando-a portanto; mas so- comparação – a uma carga dupla de trabalho, se com-
bretudo exasperava a direita patriótica, porque passou parada à do confrade europeu que não precisava saber
a vida rindo da filosofia no Brasil. Um ceticismo que das coisas do subdesenvolvimento para saber do mun-
se congratulava com o fato de nos darmos tão mal nas do (como observado pelo mesmo Roberto Schwarz).
altas paragens do pensamento e acabava se estenden- Uma espécie de posição em falso congênita, que no
do à especulação filosófica em geral: a meditação do limite é a do país, encalhado na periferia da ordem ca-
caso brasileiro terminara por convencê-lo de que esta pitalista mundial. As desvantagens são flagrantes, inú-
última era mesmo “fantasia sem proveito”. Quanto til insistir no quanto diminuem as chances da reflexão
muito, esperava que a consideração desabusada do numa situação de dependência como a nossa. Obser-
permanente encontro e desencontro das ideias filosó- vemos entretanto que uma tal sensação de improprie-
ficas aguçasse o senso crítico da vida, da cultura e dos dade também estimula um tipo de percepção afinada
problemas sociais. Sua ironia preventiva destinava-se a com as demais conjunturas (passadas e presentes) de
trazer a reflexão filosófica – e não as filosofias - para o defasagem histórico-social, que parecem então formar
desenrolar da vida brasileira. Não fez discípulos, mas sistema, pelo menos um sistema de afinidades entre ca-
legou-nos uma complicação a mais, pois afinal filosofia madas cultivadas porém acabrunhadas pelos constran-
não pode ter cor local: ou é universal, ou não é nada. gimentos de um meio a um tempo tolhido pelo “atra-
No Brasil, quem cui- so” e atropelado pela modernização fora de esquadro.
da de Filosofia pode per- Uma sensibilidade assim armada pode constituir uma
feitamente pensar nos pro- plataforma de observação, a partir da qual sondará re-
blemas do seu país, mas presentações de toda ordem (até mesmo filosóficas) no
não nos mesmos termos; seu campo material de gravitação. Digamos que assim
por sua vez, quem estuda procedendo também estaremos cuidando do Brasil
o país pode até se interes- através da Filosofia.
sar por questões filosóficas,
18 mas por assim dizer fora
do expediente. Ora, Cruz
* Paulo Eduardo Arantes, filósofo paulista, ex-profes-
sor da USP.
Costa achava que se devia
pensar um nos termos do outro, sem no entanto di- História do Pensamento
zer como, nem dispor dos meios para tanto. Além do Editora Nova Abril Cultural
mais, os desmandos nacionalistas anteriores ao golpe
de 64 deixaram todo mundo escaldado. Mesmo as-
sim, encerrado o ciclo universitário de acumulação,
P
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Preservem este espaço

por Vladimir Safatle*

Vladimir Safatle apresentou, na quar- dos fatos mais impressionantes da história nos últimos
ta-feira, 26 de outubro (2011), aula pública aos manifes- 200/300 anos. No momento da guerra, quando as tro-
tantes do movimento Ocupa Sampa, acampados no Vale pas francesas estão de um lado e as tropas haitianas do
do Anhangabaú. O texto abaixo foi transcrito pelos in- outro, os franceses começam a ouvir, cantado do outro
tegrantes do movimento e originalmente publicado no lado, a Marselhesa – o hino francês, hino da Revolução
site do Acampa Sampa. Francesa. Isso arrebentou moralmente as tropas france-
sas, eles perderam a guerra. Começaram a se perguntar
Na verdade vocês são uma peça na engrena- “Afinal de contas, contra quem estamos lutando? Nós
gem que se montou de uma maneira completamente estamos lutando contra nós mesmos, contra nossos
inesperada e imprevisível em várias partes do mundo. ideais que agora se voltam contra nós. Porque na boca
Existem certos momentos desses ex-escravos
na história em que um acon- esses ideais são mais
tecimento aparentemente verdadeiros do que
localizado, regional, tem a na nossa própria
força de mobilizar uma sé- boca.”
rie de outros processos que
vão ocorrendo em várias Essa é a força
partes do mundo. Ou seja, impressionante das
as ideias, quando elas come- ideias, elas explodem
çam a circular, desconhecem contextos, explodem
espaço, não conhecem as espaços, constroem
limitações do espaço, elas novos espaços, rear-
constroem um novo espaço. ticulam uma relação
E, de uma certa maneira, vo- radical, fundamental
cês aqui são uma peça de uma ideia que, aos poucos, de igualdade. Por que é interessante lembrar disso ago-
vai construindo um novo espaço, por meio dessas mo-
bilizações mundiais que tocam várias cidades: Nova
ra? Porque de uma certa maneira é o que vocês estão
fazendo aqui. Vocês estão conseguindo fazer com que
19
York, Cairo, Túnis, Madri, Roma, Santiago e agora uma ideia, que apareceu inicialmente em um deter-
São Paulo. Gostaria de lembrar para vocês um exem- minado lugar, no mundo árabe, na Tunísia, comece a
plo que me parece bastante interessante, de como uma circular de uma maneira tal que ela vai mobilizando
ideia pode ignorar o seu espaço original. Existe um fato populações absolutamente dispersas e diferentes em
histórico, muito impressionante e que nos toca de uma torno de uma noção central: nossa democracia não
maneira relativamente próxima, porque diz respeito a existe ainda, nossa democracia ainda não chegou, nós
uma coisa em que hoje o Brasil está envolvido, que é a ainda esperamos uma democracia por vir. O que nós
revolução no Haiti em 1804. temos pode não ser uma ditadura, não ser o sistema to-
Foi a primeira revolução feita por escravos, es- talitário, mas ainda não é uma democracia. E nenhum
cravos que se libertaram do domínio francês. Aconte- de nós quer viver nesse limbo, nesse purgatório entre
ceu um fato bastante impressionante no interior dessa um regime de absoluto autoritarismo e uma democra-
história que é mais ou menos o seguinte: em 1793, a cia que nós esperamos. Não queremos uma democra-
Assembleia Nacional Francesa, Assembleia Revolucio- cia em processo contínuo, incessante de degradação,
nária Francesa – graças aos jacobinos – resolveu abolir que já nasce velha. Por isso, quando as colocações das
a escravidão nas colônias. Era o resultado de um prin- manifestações das quais vocês fazem parte insistem na
cípio, princípio da igualdade radical. Se nós defende- ideia de que ainda falta muito para alcançarmos a de-
mos a igualdade radical, não é possível que a igualda- mocracia real, vocês colocam uma questão que até en-
de valha apenas nesse país e não valha em outro lugar, tão não podia ter direito de cidadania. Se vocês criticas-
ela deve ser incondicional, deve desconhecer espaço e sem a democracia parlamentar, tal como ela funciona
deve desconhecer tempo, então ela vale também para hoje, olhariam vocês como arautos do totalitarismo. Se
as colônias. Quando Napoleão assume o poder, tenta vocês não querem isso, vocês querem o quê? Vocês não
rever esse decreto, ou seja, fazer com que a escravidão querem o Estado Democrático de Direito? Vocês não
voltasse a operar nas colônias. Os haitianos se suble- querem a segurança do Direito Democrático? Então
vam, e Napoleão manda tropas ao Haiti. E acontece um vocês querem o quê? E essa é a questão interessante,
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vocês recolocam a questão dizendo “Onde vocês estão verdade essa ideia de que muitas vezes nós pensamos
vendo Estado Democrático de Direito? Eu não encon- porque não queremos agir, na verdade, muitas vezes
trei! Como assim, o que isso significa?”. nós agimos porque não queremos pensar. Muitas ve-
Se tem uma coisa que a democracia nos de- zes nós procuramos um tipo de ação imediata, rápida,
manda, nos exige, é que só se fale de democracia no porque não queremos nos confrontar com o verdadeiro
futuro, só se fale de democracia como democracia por trabalho. (…) que é o problema, construir o que é a so-
vir. Quando você acredita que a democracia já está re- lução, construir o espaço que nós temos para conseguir
alizada no nosso ordenamento jurídico, já está realiza- pensar hipóteses e pensar aquilo que pode ser mudado
da no nosso Estado, na situação social presente, então e o que não pode ser mudado. Ou seja, colocar a força
todas as imperfeições do presente ganham o peso da crítica do pensamento em ação, quando a força crítica
eternidade, todas as imperfeições do presente parecem do pensamento começa a agir, então todas as respostas
eternas, parecem ser impossíveis de superar, parece ser começam a ser possíveis, alternativas novas começam
mais que isso, ser criminoso superá-las, parece se colo- a aparecer na mesa, possibilidades começam a ser re-
car em risco quando você tenta superá-las, discuti-las. pensadas. Isso significa a verdadeira discussão de ma-
Então nesse sentido, a primeira coisa interessante em nifestações como essa, só manifestações como essas são
toda essa discussão, vocês estão dispostos a, no fundo, capazes de fazer (…)
discutir. Não discutir no sentido de fazer alguns acer- Nesses momentos, é como se o espectro das
tos pontuais a respeito de algumas questões que girem possibilidades aumentassem. Aumentam por quê?
em torno de nossa política, por exemplo, existe corrup- Porque vocês estão dispostos a pensar, estão dispostos
ção, vamos nos mobilizar aqui para pedir que fulano, a recolocar novos esquemas de pensamento em circu-
cicrano e beltrano vão para cadeia! Como se, indepen- lação e essa é a questão fundamental. Nesse sentido,
dente de isso ser feito ou não, como se isso resolvesse o quando isso ocorre, novas ações e novas propostas
problema de nossa democracia, como se ações pontuais sempre aparecem. Para que novas propostas apare-
que não tocam problemas estruturais de processos de çam, é necessário que saibamos, afinal de contas, quais
decisão de partilha de poder, de participação popular, são os verdadeiros problemas, quais são os problemas
de densidade popular nas decisões do governo, como reais e concretos, qual sentimento de desconforto, de
se não tocando nesse problema nós conseguíssemos insatisfação e de angústia em relação ao presente, vo-
avançar de uma maneira ou de outra. Essa, me pare- cês estão descobrindo que o mundo inteiro tem. Mes-
ce, é uma questão extremamente interessante, porque, mo nessas sociedades aparentemente tribais que todo
quando vocês colocam “nós queremos discussão”, isso mundo gostava de desqualificar como sociedades ára-
toca uma questão extremamente clássica, que é a rela- bes, estamos descobrindo uma coisa que nos une a eles.
ção entre teoria e práxis. Por exemplo, vejam que coisa Nós também somos insatisfeitos, descontentes, não
interessante, quem passa por aqui não vê nenhuma pa- queremos reproduzir o presente tal como ele aparece
lavra de ordem, nenhuma proposta no sentido forte do agora, também temos a angústia da necessidade de
termo, “nós queremos isso, isso e isso!”. Em princípio mudança, de ruptura, isso nos faz ter a mesma ideia,
isso pode parecer um problema, mas eu diria que não, isso nos faz presentes diante e dentro da mesma ideia.
isso é uma grande virtude, porque, se vocês me per- Isso que vocês têm (e devem saber guardar por toda a
mitirem, gostaria de fazer um pequeno parêntese na vida porque esse é o motor da crítica) é o profundo sen-
história da filosofia, lembrando de uma resposta de um timento de mal-estar e de desconforto que todos vocês
grande filósofo do século XX, politicamente equivoca- sentem e é por isso que estão aqui. É o sentimento mais
do, mas que nem por isso deixou de ser um grande filó- verdadeiro que vocês têm e o sentimento mais capaz
sofo, Martin Heidegger em um pequeno texto chamado de colocar vocês em ação. No entanto, vivemos numa
Cartas ao Humanismo. Em um dado momento, um su- sociedade em que o desconforto e o mal-estar são vis-
jeito perguntava a Heidegger: “Afinal de contas, como tos imediatamente como índice, como sintoma de uma
o senhor entende a relação entre teoria e práxis?”. Ele doença, doença que deve ser tratada o mais rápido
responde o seguinte: “Eu nunca entendi a dicotomia, possível nem que precisemos dopar todos vocês com
a diferença entre teoria e práxis. antidepressivos ou qualquer coisa dessa natureza. No
Porque o pensamento, quando entanto, é isso que vocês têm de mais concreto, de mais
pensa de verdade, ele age. Na real, pois esse é o índice de que há algo errado. Não
verdade, a ação mais forte é a com vocês como indivíduo, não com o corpo de vocês,
ação do pensamento, porque o há algo errado com a vida social da qual vocês fazem
pensamento quando pensa de parte, e esse problema da vida social da qual vocês
verdade” – e, vejam, pensar de fazem parte se manifesta dessa forma, em cada uma
20 verdade significa pensar na sua
radicalidade, pensar na sua força
das individualidades que compõem cada uma dessas
pessoas que estão aqui. Nesse sentido, é muito impor-
crítica, utilizar a força crítica e a tante vocês serem capazes de se mobilizar para dizer
força radical do pensamento – “quando ele pensa de que esse desconforto que eu sinto não é um problema
verdade, ele questiona os problemas, os pressupostos, meu, é um problema da sociedade, problema da vida
as respostas.” A história é muito interessante, porque a social, essa maneira como a impossibilidade estrutural
resposta é uma resposta muito inteligente, a resposta da vida social constitui uma vida bem-sucedida se co-
era: a verdadeira ação é feita pelo pensamento, não é loca para cada um de vocês.

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Terminaria lembrando o seguinte: hoje, nem tos em lugar nenhum da América Latina? Ou seja, você
acredito, estou chegando aos 40 anos. Lembro que, na paga 27%, eu 27% e o banqueiro 27% do imposto de
idade de vocês, 18, 19, 20 anos, nós ouvíamos a seguin- renda. Não existe nenhum lugar no mundo onde isso
te questão: não há mais luta a ser feita, o mundo está aconteça. Ou seja, significa uma radical redistribuição
globalizado, agora o que vale é a eficácia, o que vale é de renda por meio do uso democrático do Estado como
a capacidade que você tem de que essa forma da pro- aparelho de constituição de uso conjunto de serviços
ximidade, assumir risco, de ser criativo, de assumir a públicos que consigam melhorar a vida do cidadão. Ou
inovação, de preferência em uma agência de publici- seja, uma proposta extremamente precisa.
dade ou departamento de marketing de uma grande Vejam, por exemplo, as propostas dos indig-
empresa. Mas essa capacidade que vocês têm – o que nados na Espanha: “Nossa democracia parlamentar
eu ouvia há 20 anos – levaria vocês a um futuro ra- faliu junto com o sistema econômico que ela sustenta-
diante em que só há vencedores, em que os perdedores va”. Por que a crise econômica ficou desse tamanho?
ficam para trás, porque os perdedores têm também um Que maldito sistema político é esse que permite uma
problema moral que não têm a coragem de assumir o crise desse tamanho? Que não consegue enquadrar a
risco, ou teriam a coragem de assumir a necessidade de ala mais terrorista do sistema financeiro? A ala mais
inovação e blá blá… Foram exatamente esses caras que canalha do sistema financeiro continua tendo lucros
quebraram o mundo, esses que tinham 20 e agora 40 e exorbitantes! Façam esse exercício, peguem na inter-
que foram todos trabalhar no sistema financeiro e con- net os balanços dos bancos que estavam quebrados há
seguiram arrebentar completamente uma crise maior três anos. Hoje, todos estão extremamente superavitá-
que a de 1929, da qual ninguém sabe sair. Mas por que, rios. De onde vem esse dinheiro? Vem do Estado que
não era só o problema (…) simplesmente na seguinte pagou! Que tipo de sistema político é esse que é inca-
questão, eram pessoas que não acreditavam que o fu- paz de colocar contra a parede quem destrói a vida,
turo podia ser diferente do presente, que em hipótese a propriedade, quem destrói toda a inflação? Fala-se
alguma acreditavam na capacidade de transformação em defesa da propriedade privada, esses bancos conse-
da participação popular, acreditavam que isso era ide- guiram destruir toda a propriedade privada de um nú-
ologia velha, envelhecida, no limite do ridículo. Como mero maior do que Lenin tinha tentado fazer em 1917.
assim, participação popular? Isso não existe mais! Ma- Alguém devia ter colocado esse pessoal para trabalhar
nifestações, isso não existe! Vocês não existiriam aqui, pra gente!
não teriam nenhuma razão de estar aqui presentes. Vejam bem, as pautas são extremamente pre-
Porque a história já tinha acabado, não tinha muito cisas e conscientes, de uma clareza e visão cirúrgica.
mais o que fazer, então é muito engraçado que essas Então é mais uma demonstração de quando o pen-
pessoas que veem essas manifestações como a que vo- samento começa a agir, as pautas reais aparecem. É
cês estão organizando perguntem: “Afinal de contas, o isso que deve acontecer, o que deve acontecer, entre
que eles querem?” E quando vocês falam o que vocês nós no Brasil, nossa situação vai ser uma repetição de
querem, eles dizem: “Vocês estão loucos! O que é isso!”. um processo que vai acertando as nossas costas, um
Isso me lembra uma amiga psicanalista, que atende em
seu consultório mulheres que eram massacradas pelos
tempo novo que está se abrindo. Daqui a 5 anos vão
se perguntar “Como que nós acreditávamos durante 21
maridos. Quando elas ficavam insatisfeitas, os maridos tanto tempo que nenhum acontecimento real pudesse
perguntavam “O que você quer?” e elas não sabiam, e acontecer?”. Daqui a 5 anos, o nível de descontenta-
quando falavam o que queriam, os maridos chegavam mento vai ser tamanho, a insatisfação vai ser tamanha,
e arrebentavam e é isso que está acontecendo agora. que vão se perguntar como se acreditou durante tanto
Trata-se de desqualificar, não a pretensa incapacidade tempo que a roda da história estava parada, que não
de manifestações como essa de conseguir colocar pau- havia muito mais a se esperar, a não ser uma espécie
tas em ação, mas trata-se de desqualificar o tempo que de erro geral da nação a partir dos princípios postos
essas manifestações exigem para que o pensamento pelo liberalismos econômico. Vocês são o primeiro pas-
possa começar a operar da maneira como ele é real- so de um grande movimento, uma grande corrida que
mente capaz de fazer. Porque, percebam bem, se pen- só começou agora. Aqui tem 100 pessoas, daqui a 3 ou
sarem muito bem, as manifestações que ocorreram esse 4 anos isso aqui vai estar com 3 mil, 5 mil pessoas falan-
ano trouxeram pautas extremamente precisas. Vejam, do a mesma coisa. Esses processos são lentos, tudo por
Santiago do Chile parou 400 mil pessoas na rua para uma razão, como diz Freud, “a razão pode falar baixo,
pedir educação pública de qualidade, para todos e gra- mas não se cala”. Processos como esses são lentos, eles
tuita – porque só o Chile tem essa capacidade de con- nunca param. Agora vocês perceberam uma coisa fun-
seguir ter educação pública que não é gratuita. Então damental: não dá mais para confiar em partidos, sindi-
vejam, o que é interessante numa proposta como essa, catos, estruturas governamentais que podem ter suas
proposta que parece ser muito regional: um problema funções em certos momentos, mas não têm nenhuma
da educação pública, mas que no fundo modifica radi- capacidade de ressoar as verdadeiras necessidades de
calmente a estrutura econômica do país, porque, para rupturas, perderam completamente a capacidade de
garantir a educação pública, o Estado tem que ter mais fazer ressoar as verdadeiras necessidades de ruptura.
dinheiro. E como o Estado faz isso? Taxando mais, tem Veja, por exemplo, o caso da Grécia, qual partido go-
de cobrar mais impostos. De quem? De vocês que não verna a Grécia? Partido Social Democrata, em princí-
têm mais dinheiro ou dos ricos que não pagam impos- pio de esquerda. Qual partido governa a Espanha? Um

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Partido Social Democrata, dito de esquerda. Com uma mais flexível, mais aberta, democrática, e também mui-
esquerda desse tipo, ninguém precisa de direita. Está to mais difícil de ser gerida. A gente não sabe o que
ótimo, porque todo mundo joga no mesmo time. A úni- vai acontecer daqui para frente, a gente sabe onde o
ca diferença é que um faz com dor no coração – “olha acontecimento não ocorre. Com certeza não ocorre nas
vou ter que arrebentar seu salário, não gostaria disso!” dinâmicas partidárias. Você tem uma força de pressão
– enquanto o outro faz cantando “você era um funcio- enquanto está fora do jogo, porque, quando entra, ela
nário público inútil” – e por aí vai. Fora isso, a diferen- diminui. Então, conservem este espaço!
ça é mínima, é retórica, isso significa simplesmente o
quê? A época em que nos mobilizávamos tendo em vis-
ta a estrutura partidária acabou, acabou radicalmente.
Pode ser que a gente ainda não saiba o que vai apare- *Vladimir Safatle é professor livre-docente do Departa-
cer, a gente sabe o que não vai acontecer, a gente pode mento de Filosofia da USP.
não saber exatamente como as coisas vão se dar daqui
para frente, como vai se dar esse tipo de organização P

22

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Os desdobramentos do eu
n’O Duplo e a crítica
ao racionalismo
por Marco Antônio Barbosa de Lellis*

o semelhante. Essa fase especular constituiria naquilo


Certa vez, olhei-me no espelho e perguntei para aquele que, posteriormente, Freud denominaria ego. Narciso
reflexo: – Quem sois vós? E, então, respondeu-me: – Não há foi aquele que se entorpeceu, aquele que se consumiu
necessidade dessa formalidade, homem comum. Eu sou tu. de amor por si mesmo ao se deparar com sua imago
Tu és meu próprio ser, só que desdobrado. espelhada, com seu outro Self, vale dizer, com seu in-
verso, com seu outro. Assim, ao se olhar, ele é e não é
Introdução ao mesmo tempo. Ele se desdobra. O espelho refleti-
Na literatura do século XIX, século este em que rá o avesso do eu, a sua projeção dupla; c) em Édipo
se denominou como Modernidade, um dos gêneros li- Rei, Sófocles [495-406 a.C.] nos fez observar a conduta
terários predominantes foi a novela fantástica, cujos te- ambígua de sua personagem principal, Édipo: cidadão
mas sobre o duplo, a ambiguidade e o desdobramento culpado e inocente, rei lúcido e, concomitantemente,
subjetivos, os gêmeos especulares, o doppelgänger [du- cego. Ao ser proclamado decifrador de enigmas e, ao
plo, sósia, “aquele que caminha do lado, companheiro decodificar aquele proposto pela esfinge, descobrirá o
de estrada”], a dicotomia entre o eterno e o efêmero, contrário do que imaginava ser: não o rei salvador da
entre o sagrado e o profano, entre o racional e o sen- polis tebana, mas a “polução abominável”; d) já no Li-
sitivo, entre um eu e um não eu ambíguos, porque vro VII contido n’A República, Platão, novamente, nos
simultaneamente diferentes e idênticos a si mesmos, narra sobre a existência de dois mundos: o inteligível
foram dos mais emblemáticos e significativos para o e o sensível. Este só existiria na medida em que par-
universo literário. Tal gênero, a novela fantástica, per- ticipasse do outro: a verdadeira realidade ideal e es-
mitiu representar o duplo, a duplicação do indivíduo, sencial, princípio mesmo do pensamento racional, da
ou melhor, os desdobramentos da personalidade por Ousía [o Ser, a Substância]. Portanto, o mundo sensível
meio de uma segunda e mesma personagem, sobretu- seria um desdobramento, uma correspondência super-
do no período aí destacado, embora se possa marcar ficial ou uma imagem especular do outro mundo.
sua presença ao longo de diferentes séries literárias e Já na Modernidade e no século seguinte, pode-
filosóficas. mos ver os temas supracitados em algumas obras: Os 23
Sabemos que, no sofrimentos do jovem Werther, de Johann Wolfgang von
alvorecer da ciência oci- Goethe [1749-1832], n’O homem de areia, de E. T. A. Ho-
dental, ainda na Grécia ffmann [1776-1822]; em A história maravilhosa de Peter
arcaica, já encontramos as Schlemihls, de Adelbert von Chamisso [1781-1838]; em
noções de desdobramento, O nariz e O retrato de Nikolai Gógol [1809-1852]; em
de imagem e de duplici- William Wilson, de E. A. Poe [1809-1849], em A morte
dade, tanto na mitologia e amorosa, de Théophile Gauthier [1811-1872]; n’O retrato
nas tragédias quanto nas de Dorian Gray, de Oscar Wilde [1854-1900], em O lobo
filosofias pré e pós-socráti- da estepe, de Hermann Hesse [1877-1926], etc.
ca. Vale lembrar que essas Por essa razão, pensamos que a literatura con-
noções referentes à ques- solidada no século XIX deve alguma coisa ao roma-
tão do duplo e do desdo- nesco e ao maravilhoso, ao fantástico, ao grotesco e ao
bramento divergiram em sobrenatural, aos contextos histórico e social da pró-
suas formas e conteúdos pria Modernidade, mas também ao mito e à tragédia, à
através dos tempos. Eis, por conseguinte, algumas análise racional e à irrupção das percepções sensíveis,
dessas séries: a) n’O Banquete, Platão [427-347 a.C.], à dramatização do eu e à consciência de sua ambiva-
por meio do discurso de Aristófanes, disserta sobre os lência.
três gêneros da humanidade: o masculino, o feminino
e o terceiro, comum a estes dois, chamado andrógino: Os desdobramentos do eu e o rompimento com o ra-
ser distinto tanto na forma quanto no nome. Ao ser cionalismo
bipartido por Zeus devido a um iminente perigo, o Os desdobramentos do eu na Modernidade
andrógino, que outrora era um ser uno, torna-se du- – considerada esta no contexto do aparecimento das
plo; b) o mito de Narciso representa a duplicação es- grandes metrópoles e da crise do Racionalismo em
pecular – relaciona-se à identificação imaginária com meados do século XIX –, podem ser observados na se-

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gunda obra do autor russo Fiódor Mikháilovitch Dos- não se tinha deitado. Abriu logo a porta e, de vela na mão,
toiévski [1821-1881]: O Duplo, de 1846.1 Nessa novela, seguiu o homem que entrava. Fora de si, o senhor Go-
o protagonista principal, o senhor Iákov Pietróvitch liádkin precipitou-se para os seus aposentos sem tirar o
Goliádkin2, duplicado no seu “outro”, o senhor Iákov chapéu nem o casaco, atravessou o pequeno corredor e
parou no meio do quarto como se um raio o tivesse fulmi-
Pietróvitch Goliádkin Segundo3, suscita a percepção do
nado. Todos os seus pressentimentos se tornavam reali-
eu como um estranho para si mesmo e a sensação de dade; os seus pressentimentos e… os seus receios. Deixou
estranheza frente à realidade objetiva. de respirar, a cabeça andava-lhe à roda. O desconhecido
Na novela, Dostoiévski descreve o momento exato do sentou-se diante dele, na sua cama; também ele continu-
encontro entre o senhor Goliádkin e seu duplo. Trata- ava de chapéu e de casaco. Sorriu ao de leve, piscou os
va-se de um dia solene – era aniversário de Klara Ol- olhos e baixou um pouco a cabeça em sinal de cumpri-
súfievna, filha única de Olsúf Ivanovitch Bieriendiéiev, mento. O senhor Goliádkin quis gritar, protestar, mas não
conselheiro de Estado e seu antigo protetor. Objetiva- pôde, não teve forças. Os cabelos puseram-se-lhe em pé.
mente, não havia razão para a mudança do estado de Sentou-se apavorado, perdeu os sentidos. E tinha razão
para isso. O senhor Goliádkin acabava de reconhecer o
espírito do senhor Goliádkin, mas o fato é que sentira
seu amigo noturno. Este não era outro senão ele próprio,
algo “estranho”: sem perceber sua própria conduta, senhor Goliádkin, um outro senhor Goliádkin, absoluta-
entrara de penetra, “mesmo não querendo”, na festa mente igual a ele e em tudo seu sósia.6
de aniversário de Klara, por quem se apaixonara, e lá
dera vexame. O resultado dos acontecimentos lhe cau- Verificamos que, nessa perspectiva, o concei-
sara a sensação de que to de Unheimlich [O es-
aquilo que sentira antes tranho], desenvolvido
como “estranho”, como por Freud em ensaio de
um prenúncio, de fato mesmo nome, servirá de
lhe tinha sido, de al- ferramenta para a leitu-
guma forma, outrora ra e análise da novela.
familiar. Esse encontro Não obstante, este arti-
refletirá no futuro pro- go almeja refletir sobre a
cesso de desconstrução conduta da personagem
racional da persona- principal e dissertar so-
gem e na percepção de bre a teoria racionalista.
que o seu duplo é o seu Dessa forma, é-nos pru-
eu idêntico, “familiar”, dente dizer algumas pa-
o eu que se lhe opõe, lavras sobre a novela.
mesmo sendo seu eu. A Após Dostoiévski
aparição de um drugói lançar Pobre Gente, em
gospodín Goliádkin4 pro- 1845, o crítico Vissarion
vocou na personagem Bielínski [1811-1848]
reações emocionais divergentes: repulsa e atração. Essa o elevou literariamente, dizendo que ali surgira um
tensão acontece no momento de vulnerabilidade do eu novo Gógol. N’O Duplo, a história é, basicamente, a
racional. experiência existencial de um conselheiro do Estado,
Esse encontro se deu após Goliádkin ser posto o senhor Goliádkin, cujo fim é o manicômio. A perso-
para fora da festa de Klara de forma constrangedora. nagem principal atinge um estado patológico em que
Soara meia-noite e Goliádkin, após o seu infortúnio, vê seu outro materializado, “fora de si”. Trava-se a ba-
dirigira-se ao cais de Fontanka para fugir das afrontas talha entre o protagonista e seu outro e essa batalha
de seus “perseguidores”, de seus “inimigos”. Queria serviu para designar a ambígua conduta da persona-
desaparecer, esconder-se de si mesmo. Caminhando gem quanto aos sentimentos resultantes de seu conflito
pelo cais, nota a presença de alguém. O transeunte apa- defensivo, pois o dualismo conflitante entre o original
rece e desaparece rápida e constantemente. Subitamen- e a cópia é indissolúvel.
te, para a “dez passos do senhor Goliádkin, sob a luz A narrativa se dá na terceira pessoa e, enquan-
do candeeiro mais próximo, que o iluminava comple- to observador externo, à medida que desenvolve a
tamente. […] O desconhecido parecia-lhe agora muito história de sua personagem, o narrador vai se identifi-
seu conhecido, podia até descrevê-lo da cabeça aos pés. cando com os pensamentos dela. Goliádkin é um ambi-
Vira já muitas vezes aquele homem. Tinha-o visto há cioso funcionário público de modesto salário, que vive
tempos e ainda muito recentemente”.5 Em seguida, re- com seu criado Pietrúchka. É um senhor inconstante
24 conhecendo o desconhecido, caminham em direção à
sua residência.
e obsessivo pela mania de perseguição por parte de
“seus inimigos” que pretensamente o caluniam devido
a uma antiga intriga. Estarrecido com os eventos afliti-
[…] Ora, o companheiro do senhor Goliádkin era sem vos de sua existência, ele não sabe mais quem é quem:
dúvida familiar da casa. Subia com ligeireza, sem dificul-
se é ele mesmo ou se é um outro que usurpou sua iden-
dades, com um conhecimento perfeito dos lugares. […]
O homem misterioso parou mesmo em frente à porta do tidade. Nos cinco primeiros capítulos, há a descrição
senhor Goliádkin. Bateu. Pietruchka (em qualquer outra de suas “‘aventuras’ para se afirmar no mundo real. Os
altura isto teria espantado o patrão) parecia esperar, pois restantes, que iniciam uma nova sequência, retratam

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sua luta inútil para evitar ser substituído pelo seu du- se havia um eu pensante, algo teria que existir externa-
plo a todo o momento e, por último, seu mergulho na mente a esse eu. Sustenta ele na quarta parte do Discur-
loucura”.7 so do método:
A partir daí, refletiremos em que medida as
ideias sobre as duplicações e as estranhas condutas […] ao mesmo tempo que eu queria pensar que tudo era
subjetivas desenvolvidas por Dostoiévski podem sig- falso, fazia-se necessário que eu, que pensava, fosse al-
nificar uma ruptura com uma das linhas de força do guma coisa. E, ao notar que esta verdade: eu penso, logo
existo, era tão sólida e tão correta que as mais extrava-
Racionalismo, ou seja, com a doutrina que atribui ex-
gantes suposições dos céticos não seriam capazes de lhe
clusiva confiança na Razão como único meio capaz causar abalo, julguei que podia considerá-la, sem escrú-
de conhecer e chegar às verdades. Somente a Razão, pulo algum, o primeiro princípio da filosofia que eu pro-
a mente humana, a capacidade cognitiva intelectual, curava.9
trabalhando com princípios lógicos, poderá atingir o
conhecimento verdadeiro e almejar com que ele seja O ponto de partida de sua filosofia foi o sujei-
universalmente válido. to pensante e não o mundo externo a ele. Se Descartes
Para os racionalistas, o homem não seria senão está duvidando de tudo, então ele está cogitando – do
o seu pensamento, a sua razão, e a matéria corpórea, latim cogitare, pensar. E, se está cogitando, então deve
nada mais que uma extensão do “eu pensante”. Por- haver alguma extensão física e material existente que
tanto, tudo se subordinaria a ela – a razão. Segundo complete o seu eu que pensa. O eu cartesiano se rela-
Gerd Bornheim, a res cogitans, tal como Descartes a ciona com a interioridade da dúvida radical.
pensava, exerce um papel fundamental. A razão seria Afastando-se de todos os sentidos, Descartes,
o ponto arquimédico que permitiria dominar o mun- na terceira meditação, ocupa-se de seu “interior” e con-
do”.8 firma:
Propenso para as ar-
gumentações lógicas da Sou uma coisa que pensa, ou seja, que duvida, que afir-
matemática, René Des- ma, que nega, que conhece poucas coisas, que desconhe-
cartes [1596-1650] susten- ce muitas, que ama, que odeia, que quer e não quer, que
ta que, devido à sua cer- também imagina e que sente. Porque, assim como notei
teza e à sua evidência, a acima, se bem que as coisas que sinto e que imagino tal-
vez não sejam nada fora de mim e nelas mesmas, tenho
razão serviria de alicerce
certeza de que essas formas de pensar, que denomino
para unificar as ciências. sentimentos e imaginações apenas na medida em que são
As certezas humanas, formas de pensar, se encontram em mim. 10
desse modo, só poderiam
ser logicamente demons- O Racionalismo seria, portanto, essa doutrina
tráveis e evidentes pela que atribui exclusiva confiança na razão humana, por
matemática. Por meio intermédio e aquisição de princípios e métodos lógi-
de suas demonstrações
dedutivas e incorruptíveis, a matemática exibiria uma
cos, como instrumento capaz de conhecer a verdade.
Considera-se Descartes o seu principal criador. Através
25
construção sólida e clara e possibilitaria, com seguran- da dúvida metódica, o filósofo francês anuncia que o
ça, alcançar a verdade. Sendo assim, nenhum fato po- eu cognitivo seria a única faculdade verdadeira. Não
deria ser considerado como verdadeiro se ainda fosse obstante, é possível também considerar que Platão fos-
duvidoso, ou seja, se ele não se apresentasse como evi- se o precursor dessa teoria.
dente e certo. Porém, embora dotada de proposições O rompimento com o Racionalismo, por sua
racionais, a matemática não solucionava os problemas vez, partirá da noção da vida moderna como contin-
da vida e da existência humanas. gente. Os problemas existenciais, psicológicos e trans-
Adotando, sobretudo, o princípio dos céticos – cendentes do homem só poderiam ser desvelados por
a dúvida –, Descartes duvida de todas as opiniões me- meio do entendimento de que o ser humano não era
todicamente. Portanto, mediante um criterioso méto- somente a sua “alma racional”, mas, também, a sua
do, duvida de tudo, até das suas próprias ideias claras consciência desdobrada, que coexistia e se misturava
e distintas. Essa dúvida, denominada hiperbólica, re- tão intimamente e com tal simbiose com a outra, que
presentava que, para conhecer a verdade, seria preciso, o homem não saberia dizer, corretamente, quem ele
de início, colocar todos os nossos conhecimentos em era. Essa crítica ao Racionalismo dirá respeito, pois,
dúvida, questionando tudo para que, rigorosamente, à coexistência entre a razão e os sentidos. A filosofia
pudéssemos atingir algo na realidade de que possamos que derivou de Descartes se esgotava na interioridade
ter certeza absoluta. Dessa forma, as nossas percepções dogmática do cogito e no conhecimento puramente ra-
sensoriais seriam incertas e a única verdade totalmen- cional.
te livre de quaisquer dúvidas seria o pensamento. Eis Uma das mais severas críticas ao império da
porque, ao criticar suas antigas opiniões, deveria sus- razão foi feita por Dostoiévski. Sua postura se relacio-
pender seu juízo, característica própria do cético. na, entre outras coisas, com a complexa estrutura psi-
Diante das incertezas, o filósofo francês tinha cológica e econômica que percebe no sujeito moderno;
uma certeza absoluta: de que duvidava. Se duvidava, percepção gerada tanto no ambiente familiar – aí inclu-
naturalmente, haveria um eu pensante que pensava. E ído aquele do próprio Dostoiévski – como na atmos-
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fera e no contexto social em que viveu. Veja-se como, to” [em outro sentido: calvo, careca – a personagem
na busca de soluções e descrendo do poder absoluto principal é calva e míope]; e iád, “veneno”, “tóxico”.
da racionalidade, Dostoiévski vai exatamente criticar A decomposição etimológica se associa com a decom-
esse império da razão em obras como Notas de inverno posição da própria personagem: gól ou gólii e iád po-
sobre impressões de verão ou Memórias do subsolo. deriam representar, metaforicamente, uma miserável
“gentalha” de espírito puro, mas que age venenosa-
Os argumentos da razão pura? Mas a razão revelou-se mente.
inconsistente ante a realidade e, além disso, os próprios 3. Iákov Pietróvitch Goliádkin Vtorói.
homens de razão, os próprios sábios, começam a ensinar 4. Um outro senhor Goliádkin.
agora que a razão pura nem existe no mundo, que não
5. DOSTOIÉVSKI, Fiódor Mikháilovitch. Obra completa.
existem as conclusões da razão pura, que a lógica abstrata
é inaplicável à humanidade, que existe a razão de Ivan,
Trad. Natália Nunes. Rio de Janeiro: Companhia Agui-
de Piotr, de Gustave, mas que a razão pura nunca existiu; lar, 1963, v.1, p. 313-317.
que tudo isto não passa de uma invenção do século XVIII, 6. DOSTOIÉVSKI, 1963, p 313-317 [grifo nosso]. No ori-
destituída de fundamento.11 ginal: Gospodín Goliádkin sovierchiêno uznál svoiegô
notchnogô priatieliá. Notchnói priátel egô bil nie qui-
Os movimentos teóricos posteriores colocarão tô inói, cac on sam, – sam gospodín Goliádkin, dru-
o império da Razão no banco dos réus. Ela seria, conco- gói gospodín Goliádkin, no sovierchiêno tacói jié, cac
mitantemente, sua juíza e sua ré. É aí que o Romantis- i on sam, – odním slovom, tchtô naziváietcia, dvoiník
mo ganha espaço ao identificar um possível “outro-eu” egô vo vciêkh otnochiéniakh. “O senhor Goliádkin re-
equivalente ao eu cartesiano. Diz-se, portanto, que o conheceu perfeitamente seu companheiro noturno. O
pensamento moderno, no século XVII, funda-se na so- companheiro da noite não era senão como ele próprio.
berania da Razão, enquanto sua crise e sua crítica se O próprio senhor Goliádkin, o outro senhor Goliádkin,
iniciam no final do século XIX, após dois momentos porém, perfeitamente igual a ele próprio – numa pala-
emblemáticos: as revoluções industrial e burguesa. vra, como se diz disto, seu duplo em todos os aspec-
tos”. [DOSTOIÉVSKI, Fiódor Mikháilovitch. Sobrânie
*Marco Antônio Barbosa de Lellis é professor de Filo- Sotchinênie, 1. Moskvá: Khudojestviênoi literatúri,
sofia e mestre em Literatura pela UFMG. 1956, p. 257].
7. FRANK, Joseph. Dostoiévski: as sementes da revolta,
1821-1849. Trad. Vera Pereira. São Paulo: EDUSP, 1999,
p. 391.
8. BORNHEIM, Gerd. Filosofia do romantismo. In:
GUINSBURG, Jacó. [Org.]. O Romantismo. São Paulo:
4ª. ed. Perspectiva, 2005, p. 79.
9. DESCARTES, René. Discurso do método e Meditações.
Trad. Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural,
1999, p. 62.
10. DESCARTES, 1999, p. 269.
11. DOSTOIÉVSKI, Fiódor Mikháilovitch. Memórias do
subsolo e outros escritos. Trad. Boris Schnaiderman. São
Paulo: Paulicéia, 1992, p. 239.

26 Notas:

1. Título original: “Poema petersburguense”.


2. Importante ressaltar que o nome da personagem
de Dostoiévski exprime, simbolicamente, o seu aspec-
to ambíguo: gól em russo significa, pejorativamente,
“gentalha”; o adjetivo gólii, “puro”, “nu”, “descober-

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Os sapatos de van Gogh e A
origem da obra de arte
por Jean Farias*

A obra de Vincent van Gogh, Um par de sapatos, mostrar a crítica que o filósofo faz ao modo como li-
de 1886, exposta no van Gogh Museum, em Amster- damos com a palavra verdade. Para ele, o termo foi
dam, Holanda, entrou na história da filosofia de modo desvirtuado dentro do pensamento ocidental. O termo
irrevogável. O filósofo alemão Martin Heidegger se em grego se diz alethéia; “a” é o prefixo de negação, “le-
apropriou da obra de modo bastante peculiar e, a par- thes” significa “esquecimento”, “encobrimento”. Ale-
tir de uma interpretação polêmica em seu ensaio A ori- théia, portanto, seria “não encobrimento”, “não esque-
gem da obra de arte, 1935/1936, propôs uma ressignifica- cimento”, “desvelamento”. Verdade, para Heidegger,
ção do conceito de verdade e até mesmo a posição da portanto, não é simplesmente a concordância entre um
estética dentro da filosofia. objeto e o conhecimento que temos acerca dele, mas
A obra a qual Heidegger faz uso é uma dentre sim a revelação deste objeto.
as várias de Vincent van Gogh cujo tema era um par de No ensaio supra citado, Heidegger usa o qua-
sapatos. O artista dedicou-se a uma série de pinturas dro de van Gogh para mostrar o desvelar do sapato,
acerca do tema, são pelo menos quatro obras de van um ente específico, um utensílio que serve para pro-
Gogh que retratam a imagem de sapatos velhos, larga- teger os pés. Heidegger chama a obra de: Os sapatos
dos em um canto qualquer, sem que se quer possamos da camponesa, e nos diz que ela revela o mundo desta
identificar onde estão. A imagem que por hora comen- camponesa.
tamos não foge à regra
e nos mostra um sapato Da escura
usado desgastado e en- abertura do gasto
velhecido, centrado em interior do calçado
um plano amarelado e olha-nos fixamente
indefinido. O próprio a fadiga do andar do
van Gogh teria compra- trabalho. Na dura
do o par de sapatos em gravidade do calça-
um mercado de pulgas do retém-se a tena-
e os usado até a exaus-
tão para, enfim, poder
cidade do lento ca-
minhar pelos sulcos
27
usá-los como modelo que sempre iguais
para a pintura.1 se estendem longe
No ensaio A pelo campo, sobre o
origem da Obra de Arte, qual sopra um ven-
Heidegger propõe uma to agreste. No couro
discussão acerca da es- fica a umidade e a
sência da arte e acaba fartura do solo. Sob
por questionar o modo as solas demove-se a
como nós discutimos solidão do caminho
a essência dos entes. do campo pelo final
A Pair of Shoes, 1886, Van Gogh Museum, Amsterdam
Para o filósofo alemão, de tarde. No calçado
quando perguntamos o que é uma coisa, em geral par- vibra o quieto chamado da terra, sua silenciosa oferta
timos para um olhar ôntico, ou seja, a partir de nossas do trigo maduro, sua inexplicável recusa na desolação
impressões empíricas, assim, critica Heidegger, não do campo no inverno. Por esse utensílio passa o cala-
conseguimos acessar a essência das coisas. Heidegger do desassossego pela segurança do pão, a alegria sem
identificou três modos como pensamos as coisas: como palavras por ter mais uma vez suportado a falta, a vi-
substância e suporte de suas características, como uni- bração pela chegada do nascimento e o tremor ante o
dade da diversidade das percepções sensíveis e como retorno da morte.2
matéria e forma. Nenhum dos três modos de pensar a
coisa nos apresenta de fato o que é a essência das coi- Podemos ver tudo isso a partir daqueles sapa-
sas. Para tanto, precisamos de um olhar ontológico. tos, pensa Heidegger, pois eles estão postos na obra de
A arte, pensa Heidegger, nos proporcionaria arte e longe do uso quotidiano. Quando o temos a nos-
um desvelar das coisas do mundo quotidiano. Mas sa disposição, nós simplesmente o usamos, sem pen-
antes de nos aprofundarmos nesta questão temos que sar o que é o sapato, confiando em sua serventia, nós
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o ignoramos sem que com isso nos perguntemos o que Notas:
é um sapato. Sapato é um utensílio, cujo seu ser é sua
serventia e sua essência é a confiabilidade, a certeza de 1.http://www.vangoghmuseum.nl/vgm/index.
que o temos a nossa disposição. Este sapato que está jsp?page=1576&lang=en
no quadro não está a nossa disposição, não podemos 2. HEIDEGGER, Martin. A origem da Obra de arte. In:
lançar mão dele, por isso ele desvela e revela o mundo MOOSBURGE, Laura de Borga: Tradução, Comentário
da camponesa. A arte, pensa Heidegger, ganha esta di- e Notas.2007. 149p. Dissertação de Mestrado (mestra-
mensão, a de por em obra a verdade. do em Filosofia) UFPR, Curitiba, 2007.
3. ANDRADE, Carlos Drummond de, 1902-1987. Claro
Enigma/Carlos Drummond de Andrade; posfácio Sa-
muel Titan Jr. - 1a edição – São Paulo: Companhia das
Letras, 2012.

Vincent Willem van Gogh é considerado um dos prin-


cipais representantes da pintura mundial. Nasceu na
Holanda, no dia 30 de março de 1853 e morreu no dia
27 de julho de 1890, atirando contra o seu próprio pei-
to.

Martin Heidegger (1889-1976)

Para concluir, gostaríamos de citar um trecho


de um poema de Carlos Drummond de Andrade, A
morte das casas de Ouro Preto, este poema é a explicita-
ção do que Heidegger apresenta em seu ensaio, ou seja,
a arte é a reveladora de um mundo. Drummond nos
mostra a passagem dos homens sobre a terra, homens
criadores de mundos que se deterioram, se esvaem.

Sobre o tempo, sobre a taipa,


a chuva escorre. As paredes

que viram morrer os homens, 

que viram fugir o ouro, 

que viram finar-se o reino, 

que viram, reviram, viram, 

já não veem. Também morrem.3

O poema de Drummond nos revela que as coi-


sas são perecíveis sobre a terra, assim como o mundo Auto-retrato com chapéu de feltro, 1887
fundado pelos homens, também perecíveis e, por isso,
angustiados.
* Jean Farias é mestrando em Filosofia pela UFMG.

28

Carlos Drummond de Andrade


(1902-1987)

P
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Aspectos filosóficos de “Cam-
po Geral” a Mutum,
de Sandra Kogut
por Talles Luiz de Faria e Sales*

Em 2007, a diretora Sandra Kogut transpôs plesmente a dizer algo sobre seu “hipotexto”, “Campo
para o cinema a primeira novela do monumental Corpo Geral”, mas, ao mesmo tempo, não pode existir inde-
de Baile (1956), de João Guimarães Rosa, “Campo Ge- pendente dele, como “hipertexto” que é, de modo que
ral”. O filme, intitulado Mutum, nome do lugar onde o evoca reservando a si uma autonomia própria. As-
se passa a estória de Rosa e, de fato, nome de pequena sim, procurar os ínfimos detalhes da novela de Rosa
cidade mineira, não pretende ser adaptação exata da no filme de Kogut, exigi-los, significa desconsiderá-lo
estória de Miguilim, no sentido de desejar uma fideli- em sua autonomia estética, ainda que representante da
dade estrita com o texto-base, mas, antes, um diálogo obra escrita, negligenciando toda uma teoria da tradu-
com ela. A diretora prima pela atualização da estória, ção e, consequentemente, da adaptação, elaborada ao
adaptando-a para a contemporaneidade, na qual a longo do século XX, germinada em Walter Benjamin
vida difícil em um lugar isolado do mundo mescla- e que ganhou ainda maior desenvolvimento após os
-se com a constante presença de utensílios e sacolas de estudos empreendidos pelos teóricos da Estética da
plástico, isopor, brinquedos industrializados. Migalhas Recepção.
que a sociedade de consumo empurra aos arrabaldes Declarando-se como adaptação da novela ini-
da globalização. cial de Corpo de Baile, ainda que numa interação dialó-
Não pretendendo, nem podendo ser, o mesmo gica com ela, Mutum é um seu representante. Se en-
que o texto no qual se baseia, o filme é, no entanto, seu gendra, enquanto obra distinta, novas questões, quais
representante. Se por ele acompanhamos os dramas de seriam aquelas que preserva do texto que toma como
Thiago, a amizade com o irmão Felipe, nomes reais das base, para além dos pontos principais do enredo? Não
crianças selecionadas pela diretora para interpretar Mi- pretendo responder totalmente a esta ampla pergunta
guilim e Dito respectivamente, por outro lado, a partir em texto de escopo tão curto como este, de modo que,
do momento em que se enuncia ser o filme adaptação para fins metodológicos, delimitarei o foco a uma úni-
da novela de Guimarães Rosa, não deixa de estar, de al- ca questão: o olhar de Thiago/Miguilim. Em “Campo
gum modo, vinculado a ele. É o que se depreende pela Geral”, o olhar de Miguilim é, sob determinado aspec-
mescla de nomes de personagens de “Campo Geral”, to, o elemento central, uma vez que é responsável pelo
como Terêz e Berno, por exemplo, que se conservam enfoque narrativo dado à estória, o narrador heterodie- 29
também em Mutum, com os nomes reais dos não-ato- gético, distinto dos personagens que compõem a nar-
res escolhidos pela diretora, que se preservam no filme, rativa, elaborado a partir de uma visão equisciente, isto
como mencionado acima. Desse modo, marca-se, para é, sabendo nada ou pouco mais que o protagonista1. A
além da ausência de uma mimese estrita ou “fiel”, a problemática do olhar ainda remete a um tema filosó-
intenção de Kogut em navegar entre a ficção e o docu- fico caro a Guimarães Rosa, o qual mencionarei poste-
mentário, remetendo simultaneamente para o texto no riormente. Kogut não negligencia este caráter da nar-
qual se baseia. rativa, chegando mesmo a fazer dele porta de entrada
É válida, para o que pretendo encetar aqui, a para Mutum. Antes de conhecermos o título do filme,
reflexão de Gerard Genette em torno da ideia de “trans- a diretora apresenta ao espectador a câmera focada no
textualidade”, em Palimpsestes (1982). Por “transtex- dorso de um cavalo em movimento, alguém que viaja e
tualidade”, Genette entende tudo aquilo que põe em é sacudido pelo ritmo do andar do cavalo. Este alguém
relação clara ou velada um texto com outros textos, dis- é Thiago, que volta para casa montado à frente de Te-
tinguindo cinco tipos de relações “transtextuais”, dos rêz, seu tio, que controla o animal. Os poucos segun-
quais o quarto, a “hipertextualidade”, é bastante eluci- dos da imagem dão a tônica para o desenvolvimento
dativo para a discussão iniciada: “hipertextualidade”, do filme: o Mutum nos será apresentado pelos olhos
segundo Genette, é “toda relação unindo um texto B de Thiago, do mesmo modo como em “Campo Geral”
(que denomino por hypertexte) a um texto anterior A no-lo foi por Miguilim. Encontrar um olhar similar ao
(que denomino, por sua vez, hypotexte) sobre o qual de Miguilim foi crucial para a diretora escolher o prota-
ele se transplanta de uma maneira que não é aquela gonista, que percorreu várias escolas do sertão mineiro
do comentário” (GENETTE, 1982, pp. 11 – 12). Mutum a sua procura:
não se põe em relação descritiva e/ou intelectual com
“Campo Geral”, o que seria característica do comentá- Quando vi o Thiago pela primeira vez, sentadinho num
rio, mas em uma operação que Genette qualifica como canto da sala, fiquei impressionada com o olhar dele. Era
“transformação”, uma vez que não se restringe sim- um olhar de alguém que parecia estar dizendo ‘não é pos-
sível que o mundo seja assim!’. Tive a impressão que tudo

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o surpreendia.2 os princípios das coisas, tendo fim em si mesma, uma
vez que não é voltada para a produção de algo externo.
O depoimento de Sandra Kogut é índice da re- O seu exercício é a excelência da lucidez humana, pois
presentatividade subjacente no filme em relação ao tex- é por meio dela, por meio da atividade noética, que o
to de Guimarães Rosa. Miguilim, assim como Thiago, homem pode compreender para além das aparências
se surpreende a todo o momento quer com a natureza, sensíveis. Da distinção aristotélica entre os tipos de co-
quer com as relações entre os adultos, e destes consi- nhecimento científico, depreende-se a diferença entre
go mesmo, que muitas vezes não compreende. Seja theoria e práxis, de modo que ação não se confunde
uma teia de aranha, em Mutum, seja uma joaninha, em com contemplação, e esta, possuindo como sede pri-
vilegiada o pensamento filosófico, não se subordina
ao útil e, portanto, não se volta para a produção. Tal
aspecto trata-se, antes, de uma disposição da própria
sociedade grega que, segundo Jean-Pierre Vernant,
pouco inovou no plano técnico, pois “à ordem de va-
lores constituídos pela contemplação, pela vida libe-
ral e ociosa, pelo domínio do natural, a cultura grega
opõe, como sendo negativas, as categorias depreciadas
do prático, do utilitário, do trabalho servil e artificial”
(VERNANT, 1989, p. 49). Em cotejamento com o texto
roseano, a conclusão aristotélica não procede, mas por
seu caráter fundante em relação ao próximo ponto da
análise, julgo importante tê-la resumido aqui.
Consideremos as epígrafes que abrem a pri-
“Campo Geral”, tudo impressiona. meira edição de Corpo de Baile, divididas em citações
A reflexão acerca do olhar ocupou pensadores de Plotino, Ruysbroeck e finalizadas pelo “Coco de fes-
gregos e contemporâneos. Aristóteles, na Metafísica I, ta”, de Chico Barbós. Todas acenam para determinada
concebe o olhar como o sentido por excelência para o concepção metafísica e mística, expressa pelo próprio
conhecimento sensível. Segundo o estagirita, dentre Guimarães Rosa3 e já apontada por seus críticos4. Seus
as demais sensações, prefere-se a visão para o conhe- livros “defendem o altíssimo primado da intuição, da
cimento sensível, pois “ela é, de todos os sentidos, o revelação, da inspiração sobre o bruxolear (sic) presun-
que melhor nos faz conhecer as coisas e mais diferen- çoso da inteligência reflexiva, da razão, a megera car-
ças nos descobre” (Metafísica I, 980 a). Para os gregos, tesiana” (ROSA, 2003, p. 90). Rosa descarta, enquanto
a associação entre visão e conhecimento é tão próxima instância por excelência da vida humana, a atividade
que a palavra que designa a ação de ver, de observar, é racional, sem que neste descarte esteja contido, neces-
theoria. Teorizar sobre algo é não apenas pensá-lo fria e sariamente, o repúdio pleno a essa dimensão humana,
racionalmente, como se o sujeito do conhecimento pu- mas apenas lhe estabelecendo limites. No registro de
desse se manter completamente distante de seu objeto, sua escrita, de seu trabalho e concepção de linguagem,
concepção cartesiana que ecoou ao longo do século XX estória e poesia, da qual os prefácios de Tutameia for-
por várias linhas filosóficas, mas inicialmente vê-lo, necem excelentes portas de entrada, alinha-se continu-
ou melhor, senti-lo. No entanto, ressalta Aristóteles, se amente a possibilidade de contato com algo não subsu-
“Foi, com efeito, pela admiração que os homens, as- mido pela razão.
sim hoje como no começo, foram levados a filosofar” A afinidade com Plotino in-
(Metafísica I, 982 b), impressionados, como Thiago/ dicia contraponto privilegiado
Miguilim, pelo que viam, não é um órgão do sentido com a filosofia aristotélica, con-
que fornece a legitimidade máxima ao conhecimento. siderando o diálogo mantido
Na filosofia aristotélica, se o conhecimento sensível é pelo neo-platônico com o pen-
importante e necessário, o é apenas em um nível rudi- samento grego. No tratado Sobre
mentar, pois há algo que distingue o homem dos de- a natureza, a contemplação e o
mais seres animados, a saber, “uma certa forma de vida Uno (Enéada III. 8 [30]), Plotino
ativa inerente na dimensão da alma que no Humano é sugere uma “tese paradoxal”:
capacitante de razão” (Ética a Nicômaco, 1098 a 1). A ra- “todas as coisas anseiam a con-
zão permite ao homem o domínio da técnica, a expres- templação e miram esse fim, não
são de um único juízo universal que possa ser aplicado só os viventes racionais, mas
30 a casos singulares semelhantes. Mas a técnica é ainda
um conhecimento limitado, posto que subordinado à
também os irracionais” (III. 8 [30] 1. 1 – 5). Ora, logo
de início percebe-se a divergência com Aristóteles: a
satisfação das necessidades da vida, uma ciência prá- contemplação (theoria) não se vincula ao uso da razão,
tica que conhece apenas o “porquê” do conjunto dos pois mesmo os irracionais contemplam. O paradoxo da
singulares a que se refere, de modo que outro tipo de tese consiste na subversão das disposições já firmadas
conhecimento aparece como mais elevado: as ciências pelo aristotelismo, daí sua estranheza e dificuldade em
teoréticas, não subordinadas ao útil. Destas, a filosofia compreendê-la (BARACAT in PLOTINO, 2008, pp. 91
é a superior e possui como objeto as causas primeiras e – 93). Plotino estabelece uma teoria da emanação que

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progride do Uno, princípio de todas as coisas, às hipós- oscilando entre a tristeza e a alegria, além de prefigurar
tases do Intelecto, da Alma e da Natureza, derivadas a própria estrutura narrativa que se abre e se fecha em
a partir desse princípio e que, pela Natureza, produz torno do mesmo tema: se o Mutum é ou não lugar bo-
os seres animados e inanimados presentes no cosmos. nito.
Cada coisa, as hipóstases e os seres animados e ina- Mutum guarda as vigas mestras de seu hipo-
nimados, são produzidos pela contemplação, pois há texto, de modo que, se não conserva a plenitude das
um logos, um princípio formativo inteligível, portanto questões sugeridas em “Campo Geral”, preserva gran-
não-pertencente à esfera sensível, que se articula a cada de parte de seus diálogos e momentos-chave. Por um
hipóstase em diferentes graus de intensidade relativos lado, a diretora evita determinada estetização do ser-
à sua proximidade com o Uno, atuando como força tão, aspecto perceptível no cinema brasileiro a partir
produtora da contemplação. Nesse sentido estrito, o ló- dos filmes da década de 19906, optando por se apro-
gos não deve ser confundido com raciocínio discursivo ximar das características do documentário. A escolha
ou pensamento reflexivo, uma vez que, como tudo o resulta em dupla implicação: ao evitar uma estética
mais, procede do Uno através do Intelecto, e o Uno, ele que saliente a paisagem ou as cores, um dos artifícios
mesmo, não pensa nem a si nem a outros, é Pensamen- que poderiam dar a ver os cambiantes estados de alma
to, possibilidade de que outros pensem (VI. 9 [9] 6. 40 que Miguilim experimenta na estória de Rosa, o filme
– 55). Em Plotino, o Intelecto, perde em força poéti-
como as formas inteligíveis, é ca, pois, ao pretender
distinto da faculdade racioci- manter a perspectiva
nante. Cada coisa produzida é a partir do olhar de
lógos daquilo que a precede e Thiago, esse olhar não
a produziu por contemplação, é trabalhado por meio
e a contemplação é o voltar- da vivência interna
-se para si mesmo, perceber-se da criança, apesar da
como objeto de contemplação própria diretora consi-
de algo que lhe é anterior e as- derar as paisagens do
sim contemplar, produzindo, filme como “paisagens
abandonando toda reflexão: internas”7, o que não
“Ser o que é, para ela isso é me parece ocorrer por
seu produzir, e quanto ela é, usá-las, antes, como
isso é o que produz. Ela é con- simples pano de fundo
templação e objeto de contemplação: um lógos, portan- ou cenário8. A admiração do personagem pela nature-
to” (III. 8 [30] 3. 15 – 20). Na filosofia plotiniana, o Uno za, por exemplo, não se faz presente na configuração
é início e fim, pois todas as coisas produzidas desejam estética do filme, em outras palavras, não entra em re-
para ele retornar, retorno que, no sábio, também se dá lação com a forma em seu tom documental, apesar de
pelo volver da visão para a interioridade de si mesmo.
Ainda que de modo extremamente resumido
esse tom não aparecer de modo claro para o espectador,
dado o embaralhamento proposital das fronteiras entre 31
e esquemático, parece ter ficado clara a diferenciação ficção e documentário, liberdade própria ao artista que
visada: a contemplação, em Plotino e em Guimarães assim pode transgredir estas fronteiras tradicional-
Rosa, não se dá por via racional, mas pela conversão mente estabelecidas (RAMOS, 2008, p. 25). O olhar de
do olhar para a própria interioridade daquele que con- Thiago parece se dissolver frente ao ângulo da câmera
templa, meio pelo qual se ascende ao contato com uma que capta o cotidiano, como na cena em que se depara
realidade maior e fugidia à racionalidade. Não se trata com uma teia de aranha após levar o almoço para o
de uma recusa absoluta do sensível, o que também não pai: a teia, apesar de grande, não remete a um signi-
acontece em Plotino, mas de conhecer o mundo físico ficado especial para o menino, mostra-se como aquilo
para transmutá-lo em imagem metafísica, conservan- que é na realidade imediata, uma teia grande, à qual se
do-o apenas em esquecimento (LECLERQC, 2005, pp. dispensa alguns segundos para brincar, e que, apesar
45 – 48). Em “Campo Geral” é possível rastrear a no- do corte para a cena em close da teia, se esvanece sem
ção de contemplação aqui esboçada5, mas esse mesmo transparecer o encantamento da admiração. Esta é uma
rastro não é tão facilmente perceptível em Mutum. O estratégia que parece ter sido visada pela diretora para
filme de Sandra Kogut conserva no protagonista Thia- conservar algo da poesia do texto roseano: ao fechar
go as mesmas tensões de Miguilim, como o desejo de a câmera na teia, numa formiga ou nos buracos com
distinguir o certo do errado, o bem do mal, circunvolu- que Thiago se distrai, indica-se a perspectiva a partir
ções da alma que guardam ressonâncias com a epígra- de seu olhar, mas o encantamento com essa lide não
fe de Plotino que acompanha Manuelzão e Miguilim, é transmitido para o espectador, pois o minimalismo,
primeiro volume de Corpo de Baile, dividido em três aqui utilizado visando a uma imagem mais poética,
após sua edição original em dois volumes. A epígrafe, não consegue transpassar o tom documental. Uma es-
retirada do tratado Sobre o movimento circular do céu truturação formal que se propusesse a conservar o ca-
(II. 2 [14]), ao ser transposta para a narrativa revela o ráter poético do olhar infantil, ainda não desencantado
movimento da alma de Miguilim em busca de um pon- do mundo, não poderia rechaçar a construção de uma
to firme, de algo que lhe dê uma fórmula para a ação, estética que levasse em conta a paisagem, as cores ou o

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som, na intensidade com que se mostra para a criança. crianças, “comida de luxo”. Desse modo, Mutum en-
Nesse sentido, poderíamos contrapor a opção docu- gendra a crítica à modernidade que chega ao interior
mental de Sandra Kogut à imagética do iraniano Mo- do Brasil, à periferia da globalização que é a América
hsen Makhmalbaf em O Silêncio (1998), em que o dia a Latina, marcada por “temporalidades que não são as
dia de um menino cego é passado para a tela por meio suas” (Ibid., p. 20), a diretora partindo da preocupação
de um trabalho que valoriza simultaneamente cores e inicial com a atualização da estória que abre Corpo de
música, captando a superdimensão dada às coisas na Baile. Não me parece inconciliável a elaboração de uma
infância, o conteúdo refratado pelo olhar infantil pa- estética apta a captar a admiração intensa do olhar in-
tente na forma mediante a força presente na novidade fantil em conjunto com a perspectiva documental que
do mundo. plasma a contradição da modernidade nas margens
do mundo economicamente desenvolvido; muito pelo
Mas, se a tentativa de mesclar ficção e do- contrário, tal confluência aumentaria o alcance do fil-
cumentário em me: basta lembrar, no
Mutum relegou a âmbito da literatura,
abordagem esté- o romance de 1930 e
tica para segun- seu desenvolvimen-
do plano, oferece to até pelo menos
ainda outra por- as duas décadas se-
ta de leitura que guintes que, numa
consiste no se- concepção rasteira e
gundo momento equivocada de oposi-
da dupla impli- ção entre intimismo e
cação apontada. regionalismo de iní-
Na entrevista já cio, oferece como me-
citada com a di- lhores obras aquelas
retora, fica clara a que conservam diale-
intenção de atua- ticamente as duas di-
lizar a estória de mensões, como Fogo
Guimarães Rosa Morto, de José Lins do
na adaptação cinematográfica: “Para mim, era muito Rego, para ficarmos apenas com um exemplo. O filme
importante que o filme se passasse nos dias de hoje. de Sandra Kogut, possuindo todas as condições para
Foi inclusive o ponto de partida: saber se esta história tal, acaba por não atingir esse ponto, dada certa timi-
ainda seria possível hoje”9. O tom documental é a es- dez, não plena negação, no tocante à configuração es-
teira eleita por Sandra Kogut para transportar a crítica tética.
à modernidade anômala, visível não apenas no Brasil, Mutum, portanto, suscita novas questões,
mas na América Latina como um todo, expressão usa- como a do parágrafo precedente, e, ao mesmo tempo,
da pelo sociólogo José de Souza Martins (2008). No pri- se não conserva a força poética da prosa de Guimarães
meiro parágrafo desse texto, aludi aos objetos encon- Rosa, não se desvincula totalmente de seu plano ge-
trados em Mutum como migalhas que a sociedade de ral. Thiago, tal Miguilim, menino que se surpreende,
consumo empurra para as periferias dos centros eco- se inquieta e pergunta, como na cena em que inquire à
nômicos hegemônicos. Por diversas vezes no filme nos mãe e à Rosa a respeito de quando saber se uma coisa
deparamos com elas: do jeans à lata que faz as vezes de é certa ou errada, só perceberá a claridade do mundo
baú do caminhãozinho que Thiago destrói após a últi- com a chegada do doutor que lhe descobre a miopia e
ma e definitiva querela com o pai, deparamo-nos com lhe empresta os óculos. O que antes era turvo e obscu-
os restos que chegam a essa modernidade anômala das ro, e que tinha de o ser para que Thiago merecesse esse
regiões periféricas, estejam elas na zona rural ou na ur- presente que é metáfora para a conversão do olhar no
bana. Trabalhar com atores não profissionais da região, sentido plotiniano em Guimarães Rosa, passa então a
estabelecer um convívio íntimo e orgânico entre os en- se mostrar claro, compreensível, não através da refle-
volvidos na filmagem, utilizar uma locação recorrente xão, mas pelo olhar agora bem direcionado, tendo se
na comunidade de modo a não soar a algo exótico, cap- voltado para si mesmo, em seu sofrimento e busca de
tando o cotidiano filmado sem, no entanto, pretender compreensão. Kogut então nos oferece quadros mais
retratá-lo como realidade efetiva, por se tratar também amplos da região, da casa, do ambiente que evita es-
de ficção, fornece o suporte à crítica, mediada pelo fic- tetizar ao longo do filme, transmitindo ao espectador
32 cional, a essa modernidade constituída “pelos ritmos
desiguais do desenvolvimento econômico e social”
a experiência do protagonista, mostrando-lhe também
pela primeira vez as imagens que antes só trabalhara
(MARTINS, 2008, pp. 18 – 19). As latas e os objetos de como pano de fundo, com apenas uma ou duas exce-
plástico, produtos da modernidade, estão em contradi- ções. Aqui, a modernidade não chega como resto, pois
ção temporal com o isolamento em que vive a família cobra seu preço: por meio da visão corrigida pelos ócu-
de Thiago, para a qual o consumo do açúcar é um luxo, los vê-se o real isolamento da casa de Thiago, agora
condição que se depreende na cena em que o pai de posta em relação com o ambiente circundante, enquan-
Thiago reclama que a esposa faz doces demais para as to ele parte da infância para a fase adulta e da vida

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difícil no Mutum para as maiores possibilidades de Caeiro. São Paulo: Atlas, 2009.
ascensão na cidade, ponto no qual a mãe insiste. Aos BENTES, I. Sertões e favelas no cinema brasileiro contempo-
que ficam, deixados para trás pela modernidade que râneo: estética e cosmética da fome. Alceu. Rio de Janeiro, v.
chegou apenas até Thiago, conservando sua anomalia, 8, nº 15, pp. 242 – 255, jul/dez. 2007.
resta o mesmo Mutum atravessado pela diversidade FARIA, E. B. O papel do narrador em “Campo Geral”. In:
de tempos históricos e assolado pelas desigualdades Seminário Internacional Guimarães Rosa (2001: BH). Vere-
de uma globalização assimétrica. Thiago é a exceção das de Rosa II. Org. Lélia Parreira Duarte. Belo Horizonte:
que tem a possibilidade de escapar à regra, mas, em PUC Minas, Cespuc, 2001, pp. 184 – 189.
contrapartida, tem de deixar os seus: o cinismo da mo- GENETTE, G. Palimpsestes: la littérature au second degré.
dernidade, expressão cunhada por José de Souza Mar- Paris: Éditions du Seuil, 1982.
tins, mostra-se em cobrar daquele de quem ela deve. LECLERCQ, S. Plotin et l’expression de l’image: Les para-
O início de um novo ciclo da circunferência giratória doxes du réel. Mons: Sils Maria, 2005.
que é também a vida contemporânea, mas que parece MANDELBAUM, J. “Mutum”: une enfance dans le Ser-
possuir um só centro imóvel que emana débeis fagu- tao. Le Monde, 6 de jan., 2009. Disponível em: http://www.
lhas ao que entende como seus limites: eis o centro e lemonde.fr/cinema/article/2009/01/06/mutum-une-en-
a periferia. Afinal, retomando a citação de Plotino em fance-dans-le-sertao_1138308_3476.html (Último acesso:
Manuelzão e Miguilim, “Num círculo, o centro é imó- 03/10/2012)
vel; mas, se a circunferência também o fosse, não seria MARTINS, J. S. As hesitações do moderno e as contradi-
ela senão um centro imenso”. Poderia ser? ções da modernidade no Brasil. In: A sociabilidade do homem
simples. 2ª Ed. rev. e ampl. São Paulo: Contexto, 2008, pp.
17 – 49.
* Talles Luiz de Faria e Sales, graduado em Filosofia e NUNES, B. O amor na obra de Guimarães Rosa. In: O dorso
mestrando em Teoria Literária pela UFMG. do tigre. São Paulo: Perspectiva, 1969, pp. 143 – 171.
PLOTINO. Enéada II. 2 [14]: o movimento circular do céu.
In: Enéada II: a organização do cosmo. Introd., trad. e notas
Notas: de João Lupi. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010, pp. 19 – 22.
________. Enéada III. 8 [30]: sobre a natureza, a contempla-
1. Cf. FARIA, E. B. O papel do narrador em “Campo Geral”. ção e o Uno. Introd., trad. e comentário de José Carlos Ba-
In: Seminário Internacional Guimarães Rosa (2001: BH). Ve- racat Júnior. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2008.
redas de Rosa II. Org. Lélia Parreira Duarte. Belo Horizonte: ________. Enéada VI. 9 [9]: sobre el Bien o el Uno. In: Enéa-
PUC Minas, Cespuc, 2001, pp. 184 – 189.
das V – VI. Introd., trad. y notas de Jesús Igal. Madrid: Edi-
2. O depoimento é dado pela diretora em entrevista a Franck
Garbarz, Cf. http://www.mutumofilme.com.br/entrevista.
torial Gredos, 1998, pp. 531 – 556.
htm (Último acesso: 02/10/2012). RAMOS, F. P. Mas afinal... o que é mesmo documentário?.
3. “Quero ficar com o Tao, com os Vedas e Upanixades, São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2008.
com os Evangelistas e São Paulo, com Platão, com Plotino, RELEASE do filme Mutum. Disponível em: http://www.
com Bergson, com Berdiaeff – com Cristo, principalmente”
(ROSA, 2003, p. 90).
mutumofilme.com.br/area.htm (Último acesso: 02/10/2012).
ROSA, J. G. “Campo Geral”. In: Manuelzão e Miguilim. 9. 33
4. Cf. NUNES, B. O amor na obra de Guimarães Rosa. In: O ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994, pp. 11 - 142.
dorso do tigre. São Paulo: Perspectiva, 1969, pp. 141 – 171. __________. João Guimarães Rosa: correspondência com
5. Como trecho sintomático dessa perspectiva, Cf. ROSA, J.
seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri. 3. ed. Rio de Janeiro:
G. Campo Geral. In: Manuelzão e Miguilim. 9ª Ed. Rio de Ja-
neiro: Nova Fronteira, 1994, p. 32.
Nova Fronteira, 2003.
6. Apesar de não me sentir inteiramente de acordo com a con- VERNANT, J. -P. Observações sobre as formas e os limites
clusão da autora, seu diagnóstico é preciso: Cf. BENTES, I. do pensamento técnico entre os gregos. In: Trabalho e escra-
Sertões e favelas no cinema brasileiro contemporâneo: estéti- vidão na Grécia antiga. Trad. Marina Appenzeller. Campi-
ca e cosmética da fome. Alceu. Rio de Janeiro, v. 8, nº 15, pp. nas: Papirus, 1989, pp. 42 – 65.
242 – 255, jul/dez. 2007.
7. Cf. http://www.mutumofilme.com.br/entrevista.htm
(Último acesso: 02/10/2012). P
8. Essa crítica já foi feita por Jacques Mandelbaum, em tex-
to publicado no jornal francês Le Monde. Cf. http://www.
lemonde.fr/cinema/article/2009/01/06/mutum-une-
-enfance-dans-le-sertao_1138308_3476.html (Último acesso:
03/10/2012).
9. Cf. http://www.mutumofilme.com.br/entrevista.htm
(Último acesso: 02/10/2012).

Referências bibliográficas:

ARISTÓTELES. Metafísica (Livros I e II). Trad. Vicenzo


Cocco; Notas de Joaquim de Carvalho. São Paulo: Abril Cul-
tural, 1979 (Os pensadores).
_____________. Ética a Nicômaco. Trad. António de Castro

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O ceticismo aporético nas
Memórias póstumas de Brás
Cubas de Machado de Assis
Pense
“O ceticismo aporético nas Memórias póstumas obra literária. Considerando as semelhanças e diferen-
de Brás Cubas de Machado de Assis” é uma dissertação ças entre as diversas interpretações, a visada aporética
de mestrado de Alex Lara Martins, defendida em 2010 serviria de suporte a todas elas.
no departamento de Filosofia da UFMG, sob a orienta- A dissertação se divide basicamente em três
ção do Professor doutor Paulo Roberto Margutti. capítulos que se subdividem conforme a necessidade
O objetivo geral da dissertação é verificar a de se atacar o problema que se apresenta. No primeiro
pertinência da interpretação do ceticismo machadia- capítulo é abordado “Machado de Assis e seu contexto
no nas Memórias Póstumas de Brás Cubas como aporé- filosófico-literário”; no segundo é abordado “o debate
tico, caracterizando-se por valorizar mais o exame de filosófico sobre a obra de Machado de Assis” e no ter-
um problema do que sua resolução. Machado esboça ceiro aborda-se mais precisamente “Memórias Póstu-
conjecturas que descrevem as relações paradoxais en- mas, o romance aporético de Machado”.
tre seres humanos. Desse modo, a contradição vivida O primeiro capítulo apresenta um esboço do
pelos personagens machadianos e a indecidibilidade contexto cultural brasileiro à época de Machado de As-
na determinação de suas posições por parte do leitor sis, marcado pelo legado filosófico do Período Colonial
podem ser interpretadas como manifestações do ce- e pelos principais desafios enfrentados pelos pensado-
ticismo aporético. A dissertação elenca os principais res nacionais após a independência. No capítulo em
modos pelos quais as aporias se efetivam no texto: a questão é apresentada a atmosfera intelectual brasilei-
encruzilhada ideológica, a encruzilhada do narrador, ra do século XIX, quer emoldurada no pensamento po-
a encruzilhada do leitor e o mistério da existência do sitivista, quer emoldurada no ecletismo espiritualista,
enigma. quer no modus vivendi aparentemente instituído por
Os modos pelos quais as aporias vigoram no novas relações de poder. Identifica-se em Silvestre Pi-
romance machadiano coincidem, em seu ponto de nheiro Ferreira o autor para o qual converge, no Brasil,
partida, com o conflito ideológico brasileiro do século o conflito moderno entre empirismo e racionalismo, e
XIX, e em seu ponto de chegada, com o conflito her- a partir do qual se originam as duas principais vias di-
menêutico concernente à reflexão sobre os métodos e vergentes do conhecimento no Brasil do século XIX, a
instrumentos de composição do romance. Embora fo- saber, o ecletismo e o positivismo.
cada nas Memórias Póstumas, a visada aporética suge- No segundo capítulo, são apresentadas e ava-
re que podemos considerar parciais as interpretações liadas algumas interpretações relevantes do ceticismo
filosóficas da obra machadiana, permitindo que elas machadiano, quais sejam, a comparativista, que tende
sejam utilizadas para melhor visualizar os efeitos dos a subjugar a literatura à filosofia ao ler as obras como
diversos sentidos de aporia aplicáveis à análise. Isso ilustrações de alguma doutrina filosófica moderna; a
também sugere que a interpretação proposta na disser- histórico-sociológica, que toma as situações ficcionais
tação pode tornar-se um método reflexivo mais geral como críticas a elementos da realidade; e a pirrônica,
sobre como seria possível abordar filosoficamente uma que estabelece uma relação entre elementos do ceticis-
mo antigo e a estrutura ficcional da obra machadiana.
No terceiro capítulo, a partir do conflito entre
as interpretações da obra machadiana, é apresentada
a hipótese de trabalho relativa ao ceticismo aporético.
Com essa finalidade, analisa-se as principais estraté-
gias erísticas de Machado em Memórias Póstumas de
Brás Cubas, de modo a compor o mosaico argumentati-
vo a partir do qual emerge seu ceticismo nessa obra. É
34 defendido que o ceticismo de Machado se caracteriza
pela valorização do exame de um problema em detri-
mento de sua resolução. Um dos argumentos centrais
do capítulo defende que Machado de Assis esboça
conjecturas que descrevem as relações paradoxais do
ser humano. Como método de comprovação do argu-
mento são elencados os principais modos pelos quais
as aporias se efetivam no texto. Tal procedimento evi-
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dencia que a contradição vivida pelos personagens e
a incerteza quanto às suas posições por parte do leitor
podem ser interpretadas como manifestações de um
tipo especial de ceticismo, que denominamos aporéti-
co.
Através da obra de Machado de Assis, particu-
larmente nas Memórias póstumas de Brás Cubas, vemos a
trama das ações, em geral causal e logicamente conca-
tenada, ser substituída pela dramatização dos eventos
internos aos personagens; vemos, enfim, a transforma-
ção da narrativa monológica no movimento de desdo-
bramento do narrador, que atua na trama e dela se dis-
tancia, assumindo a perspectiva de espectador irônico,
o qual, por sua vez, pressupõe a reinterpretação con-
tínua pelo leitor. Dado que toda linguagem é contin-
gente, o texto se torna um complexo jogo de revelação
e ocultamento em que a verdade é deslocada, cifrada,
determinada contextualmente ou simplesmente inde-
terminada.
A desenvoltura autorreflexiva e irônica das AO VERME QUE PRIMEIRO ROEU AS FRIAS CAR-
Memórias Póstumas de Brás Cubas coloca às claras o pró- NES DO MEU CADÁVER DEDICO COMO SAUDO-
prio modo como a narrativa se articula, privilegiando o SA LEMBRANÇA ESTAS MEMÓRIAS PÓSTUMAS
embate entre as interpretações e os vocabulários sobre
o caráter descritivo da linguagem, isto é, sobre o su- ....
posto acesso privilegiado dos conceitos ao mundo ou Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias
do intérprete à intenção do autor. Dito de outro modo, pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro
a relação entre as palavras e as coisas é preterida pela lugar o meu nascimento ou a minha morte. Supos-
atenção ao modo como o texto se efetiva, criando um to o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas
mundo, por assim dizer, completo e estruturado por considerações me levaram a adotar diferente método:
partes contraditórias entre si, cumprindo os requisi- a primeira é que eu não sou propriamente um autor
tos para se tornar um romance genuinamente moder- defunto, mas um defunto autor, para quem a campa
no, vinculado genericamente à tradição dos ironistas, foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim
mas oferecendo uma posição existencial diante de um mais galante e mais novo. Moisés, que também contou
problema bem situado geograficamente. Os resultados a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo; dife-
obtidos na dissertação sugere que esse tipo de análise rença radical entre este livro e o Pentateuco.
pode ser estendido das Memórias Póstumas para o res-
tante da obra novelística de Machado de Assis.
Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-
-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de 35
Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prós-
peros, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui
acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos!
Verdade é que não houve cartas nem anúncios. Acresce
que chovia — peneirava — uma chuvinha miúda, triste e
constante, tão constante e tão triste, que levou um daqueles
fiéis da última hora a intercalar esta engenhosa ideia no
discurso que proferiu à beira de minha cova: — “Vós, que
o conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer comigo que
a natureza parece estar chorando a perda irreparável de um
dos mais belos caracteres que tem honrado a humanidade.
Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras
que cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isso é a dor
crua e má que lhe rói à natureza as mais íntimas entranhas;
tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado.”

Machado de Assis
Memórias póstumas de Brás Cubas

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O que é admiração? Uma aula
com Sônia Viegas
Pense

As aulas de Sônia Viegas (1944-1989) nos anos do do que os terrores humanos no aroma do sândalo,
80, na UFMG, eram marcadas por seu estilo impactante nas latas velhas jazendo numa montureira, numa caixa
e desafiador. Sônia se envolvia de forma vibrante com de fósforos caída na valeta, em dois papeis sujos que,
os vários temas que abordava, promovia os debates e num dia ventoso, rolam e se perseguem rua abaixo. É que
poesia e espanto, admiração, como de um ser tombado
estimulava o constante filosofar. A dimensão de seus
dos céus em plena consciência da sua quede, atônito com
métodos extrapolava os limites da simples exposição as coisas. Como de alguém que conhecesse a alma das
de conteúdo. O aluno menos atento ou ansioso por coisas e se esforçasse por rememorar esse conhecimento,
respostas muitas vezes não percebia a importância das lembrando-se de que não era assim que as conhecia, não
controvérsias que a professora apresentava. Ao propor com estas formas e nestas condições, mas de nada mais
suas aulas, ela utilizava várias concepções de pensado- se recordando.
res e frequentemente recorria à poesia quando faltava (PESSOA, Fernando. Notas autobiográficas e de autog-
o sentido das coisas. nose. In: Páginas íntimas e de auto-interpretação. Lisboa:
A seguir, reproduzimos uma aula da professo- Ática,1966, p. 14-15).
ra. Nossa intenção é deixá-los imaginar o que ocorria
em sala de aula; a partir de vários excertos de textos 3. Platão:
consagrados, Sônia estimulava a capacidade crítica dos
alunos e mostrava os caminhos filosóficos. Teeteto — Pelos deuses, Sócrates, causa-me grande ad-
miração o que tudo isso possa ser, e só de considerá-lo,

chego a ter vertigens.
Sócrates — Estou vendo, amigo, que Teodoro não ajuizou
Aula: Introdução à Filosofia erradamente tua natureza, pois a admiração é a verda-
deira característica do filósofo. Não tem outra origem a
Prof. Sônia Viegas filosofia.
(Platão, Teeteto. 155d).

O que é admiração? 4 . Aristóteles:


1. Thaumazein - admirar-se, verbo derivado de Thaumas, Foi, com efeito, pela admiração que os homens, assim
personagem mítico filho de Géa (Terra) e Ponto (Mar). hoje como no começo, foram levados a filosofar, sendo
primeiramente abalados pelas dificuldades mais óbvias,
2. Fernando Pessoa: e progredindo em seguida pouco a pouco até resolverem
problemas maiores: por exemplo, as mudanças da Lua,
“Eu era um poeta impulsionado pela filosofia, não um fi- as do Sol e dos astros e a gênese do Universo. Ora, quem
lósofo dotado de faculdades poéticas. Adorava admirar a duvida e se admira julga ignorar: por isso, também quem
beleza das coisas, descortinar no imperceptível, através ama os mitos é, de certa maneira, filósofo, porque o mito
do que é diminuto, a alma poética do universo. resulta do maravilhoso. Pelo que, se foi para fugir à igno-
A poesia da terra nunca morre. rância que filosofaram, claro está que procuraram a ciên-
( ... ). cia pelo desejo de conhecer, e não em vista de qualquer
Há poesia em tudo - na terra e no mar, nos lagos e nas utilidade.
margens dos rios. Há-a também na cidade – não a negue- Testemunha-o o que de fato se passou. Quando já existia
mos - fato evidente para mim enquanto aqui estou senta- quase tudo que é indispensável ao bem-estar e à comodi-
do: há poesia nesta mesa, neste papal, neste tinteiro; há dade, então é que se começou a procurar uma disciplina
poesia na trepidação dos carros nas ruas em cada movi- deste gênero. É pois evidente que não a procuramos por
mento ínfimo, vulgar, ridículo, de um operário que, do qualquer outro interesse mas, da mesma maneira que
outro lado da rua, pinta a tabuleta de um talho. chamamos homem livre a quem existe por si e não por
O meu sentido interior de tal modo precomina sobre os outros, assim também esta ciência é, de todas, a única que
36 meus cinco sentidos que - estou convencido - vejo as coi- é livre, pois só ela existe [por si].
sas desta vida de modo diferente do dos outros homens. (Aristóteles. Metafísica. Livro II,8).
Existe para mim - existia – um tesouro de significado
numa coisa tão ridícula como uma chave, um prego na 5. Descartes:
parede, os bigodes de um gato. Encontro toda uma ple-
nitude de sugestão espiritual no espetáculo de uma ave Nada retemos em nosso cérebro se a ideia de que de al-
doméstica com os seus pintainhos que, com ar pimpão, guma coisa temos não for fortalecida por alguma paixão
atravessam a rua. Encontro um significado mais profun-
(Art. 75).

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quanto maior é a paixão e a imaginação num homem, e
Quando o primeiro contato com algum objeto nos surpre- em certo sentido se aproxima da fé, isto é, na possibilida-
ende, e quando nós o julgamos novo, ou muito diferente de de crer contanto que se humilhe de adoração sob o ex-
do que até então conhecíamos ou do que supúnhamos traordinário, tanto mais o escândalo se ergue contra esse
que deveria ser, isso nos leva a admirá-lo e a nos espan- extraordinário, até pretender nada menos que extirpá-lo,
tarmos com ele; e como isto pode acontecer antes de sa- aniquilá-lo e espezinhá-lo na lama.
bermos de algum modo se esse objeto nos é conveniente (Kierkegaard. O desespero humano).
ou não, parece-nos que a admiração e a primeira de todas
as paixões; e ela não tem contrário, porquanto, se o objeto 8. Ortega e Gasset:
que se apresenta nada tem em si que nos surpreenda, não
somos de maneira nenhuma afetados por ele e nós o con- “Colocar os materiais de toda ordem, que a vida, em sua
sideramos sem paixão (Art. 53). perene ressaca, arroja a nossos pés como restos inúteis
A admiração é uma súbita surpresa da alma, que a leva a de um naufrágio, em tal disposição que nele dê o sol
considerar com atenção os objetos que lhe parecem raros inumeráveis reverberações”.
e extraordinários” (Art. 70) ... “Só admiramos o que nos (ORTEGA e GASSET, José. Apud. LATERZA. M. Funda-
parece raro e extraordinário; e coisa alguma pode pare- mentos da educação. I. Herde, 1972).
cer-nos assim senão porque nós a ignorávamos” (Art. 75).
“Por isso vemos que os que não possuem qualquer incli-
nação natural para essa paixão são ordinariamente muito 9. Gusdorf:
ignorantes (Art. 75).
Espanto: “excesso de admiração que só pode ser mau.” “Quem, em matéria de pensamento, de arte, ou de amor,
Sentimento paralizante, “que faz que o corpo inteiro per- se surpreende, rompe o limite das evidências estabeleci-
maneça imóvel como uma estátua e que só percebemos das”.
do objeto a primeira face que se apresentou, e por con- (GUSDORF, apud Laterza, M. Fundamentos da educação,
seguinte não possamos adquirir dele um conhecimento I).
mais particular.” (Art. 73).
(DESCARTES. René. As paixões da alma).
A estratégia didática de abordar um problema
6. Schopenhauer: filosófico sob a perspectiva de diferentes filósofos, ado-
tada pela professora Sônia Viegas, possibilitavá-nos ex-
É necessário sermos capazes de admirações veementes e trair como consequência, pelo menos, duas lições para
penetrarmos com amor no coração de muitas coisas; fal- pensarmos o ensino da filosofia. Em primeiro lugar,
tando isso, não servimos para filósofos. ela nos ensinava que a filosofia é uma disciplina po-
(Schopenhauer. O mundo como vontade e representa- lissêmica na qual muitos discursos concorrem a fim de
ção. I, 34). formular explicações sobre a realidade. Dessa forma,
a tematização dos problemas perpassava os conflitos
7. Kierkegaard: fundamentais postos por cada época histórica. Em se-
gundo lugar, aprendemos que o ensino da filosofia de
Admiração e escândalo: “Que é então o escândalo? A ad-
miração infeliz, parente pois da inveja, mas uma inveja
modo algum, pode assumir um caráter doutrinário e
dogmático, sob pena de condicionar os jovens inician-
37
que se volta contra nós próprios, que se encarniça mais
contra ela própria, do que contra outrem. Na sua estrei- tes na disciplina aquilo que Paulo Freire denominou
teza de coração, o homem natural e incapaz de se conce- de educação bancária, onde os educandos aprendem
ber o extraordinário que Deus lhe destinava: por isso se meramente a repetir os posicionamentos do educador.
escandaliza. Um ensino de filosofia que se pretende filosófico deve
O escândalo varia segundo a paixão que o homem põe considerar as múltiplas interpretações dos problemas
na admiração. Mais prosaicas, as naturezas sem imagi- da vida humana, ajudando os jovens estudantes a de-
nação nem paixão, portanto que se escandalizam, mas senvolver aptidões para a reflexão e a crítica madura
limitando-se a dizer: “são coisas que não me entram na aos pré-juízos comuns à vida cotidiana.
cabeça, deixo-as passar”. Assim falam os céticos. Mas
P

REVISTA PENSE | Nº 03 | Dezembro/2012


Sobre a teoria da verdade de
Bertrand Russell
por Eric Renan Ramalho*
UFMG

Introdução senão a correspondência entre as crenças existentes em


O objetivo do artigo que se segue é apresen- nossa mente e os fatos objetivos existentes fora dela. É
tar brevemente as ideias fundamentais do artigo Ver- nosso intento, pois, apresentar de forma sucinta quais
dade e Falsidade, de autoria do filósofo inglês, Bertrand os argumentos apresentados pelo autor a fim de defen-
Russell (1855–1977), publicado pela primeira vez em der e provar sua teoria da verdade
1912, como capítulo do livro Os Problemas da Filosofia1.
Esta obra é uma importante peça de estudo para todos Ainda no início de seu artigo,
aqueles que desejarem se dedicar ao aprendizado da Russell introduz uma distinção en-
filosofia, pois nela o autor passa em revista os proble- tre o conhecimento de verdades e o
mas elementares estudados pelos filósofos ao longo de conhecimento de coisas, restritos ao
quase três milênios da existência da disciplina. Ade- âmbito do conhecimento por con-
mais, Russell é com toda certeza um dos autores mais tato. Este último qualifica-se como
influentes da filosofia contemporânea, pois, juntamen- o conhecimento que temos de um
te com G. E. Moore, foi responsável pela criação e pro- feixe de impressões que nos chega
moção da chamada “filosofia analítica” que hoje pode ao aparelho cognitivo por via das
ser considerado o campo hegemônico nos estudos aca- sensações. Segundo o professor Desidério Murcho, co-
dêmicos da atualidade. Além disso, ao desenvolver a nhecer algo por contato é estar em contato direto com
formalização lógica da linguagem em companhia de o que é conhecido (Murcho: 2008 p. XXX). Em contra-
Glottlob Frege e Alfred North Withehead, o autor foi partida, o conhecimento de verdade significa saber que
responsável por desdobramentos na lógica clássica, algo que ocorre aos nossos sentidos é verdadeiro: “O
que se mantinha estagnada por vinte e cinco séculos. conhecimento de verdade é saber que algo é verdade;
Para além da formalização lógica dos problemas da fi- saber que o Sol aquece, que Aristóteles era um filósofo
losofia, Russell também publicou muitos ensaios nos grego, etc. E o conhecimento de coisas é conhecer Pa-
quais aborda questões da vida cotidiana como a reli- ris ou conhecer Einstein (Murcho: 2008 p. XXXI). Neste
gião e se engajou nas diversas lutas sociais de seu tem- sentido, a proposta russelliana é desenvolver uma teo-
po, o que lhe rendeu duas prisões e um prêmio Nobel ria metafísica da verdade, isto é, pretende expor o que
de literatura em 1950 (Murcho, 2008, p. VII). é a verdade em si mesma, em sua essência, por assim
dizer. E, a partir dessa formulação entender como po-
Verdade e Falsidade demos saber se uma crença é verdadeira ou falsa. No
O artigo indica- texto em questão,
do para o vestibular da
UFMG/2013 é um libelo que
aborda um problema tão an- Russell apresenta sua teoria metafísica da verdade, dis-
tigo quanto a existência da tinguindo-a cuidadosamente de uma teoria epistemoló-
própria filosofia, nomeada- gica da verdade. A distinção é crucial e ainda hoje provo-
ca confusões. Uma teoria Metafísica da verdade tem por
mente o problema da verda-
missão dizer o que é a verdade e o que faz as verdades
de. Desde os antigos, muitos serem verdadeiras. Uma teoria epistemológica da verda-
teóricos, de distintas orienta- de tem por missão dizer-nos como podemos distinguir a
ções intelectuais, buscaram verdade da falsidade (…), e como podemos conhecer as
oferecer uma resolução defi- verdades, se é que as podemos conhecer (Murcho: 2008;
nitiva para tal questão, mas p.LII).
tão logo a humanidade avançou em direção ao ama-
38 durecimento de seus conhecimentos sobre o mundo, As três condições para uma teoria da verdade
tais teorias tornaram-se caducas, e o problema em tela
foi novamente posto em discussão. Sendo assim, cabe A introdução de uma teorização acerca da ver-
advertir que no artigo Verdade e Falsidade não encontra- dade, segundo Russell, deve obedecer a três critérios
remos uma teoria que supõe a verdade como um objeto basilares, a fim de que a teoria
absoluto, universal, perfeito e imutável ou uma espé-
cie de verdade que transcende as condições materiais 1) permita que a verdade tenha um oposto, nomeada-
da existência. Para Russell, a verdade não é outra coisa mente a falsidade;
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2) faça da verdade uma propriedade das crenças; mas
3) seja uma propriedade que dependa completamente Otelo acredita que Desdêmona
da relação das crenças com as coisas exteriores (Rus- ama Cássio.
sell: 2008 p.183).
Neste exemplo vemos
Com base nesses três critérios, podemos res- como o estado psicológico in-
saltar que Russell é um pensador realista. Isto é, ele re- fluenciado pelo ciúme conduz
conhece que todo o conhecimento se refere a algo que Otelo a formular a crença de
existe fora da mente, apesar de manter uma vinculação que Desdêmona verdadei-
com ela2. O realismo russelliano admite que as crenças ramente ama Cássio. No en-
são formadas na mente, mas a verdade ou falsidade tanto, como o próprio autor nos revela, um tal objeto
dessas crenças está em algo exterior à mente, aquilo não existe, isto é, Desdêmona não ama Cássio. Neste
que é chamado de realidade.3 exemplo Russell prova as condições para uma teoria
da verdade supramencionada, e demonstra como é
O problema da verdade como coerência necessária a existência de uma relação da mente com
Já foi dito que a teoria russelliana defende as coisas exteriores a ela, ou seja, a verdade da crença
que a verdade é uma correspondência entre a crença de Otelo só poderia ser constatada com base em uma
existente em nossas mentes e os fatos existentes fora crença que encontre fora de sua mente um fato objetivo
dela, porém antes de defender tal teoria, o autor trata e não apenas na crença que ele havia formulado em sua
de dissolver uma tese constantemente retomada pelos mente, com base em seus ciúmes. A verdade de uma
filósofos, a saber, a noção de que a essência da verdade proposição não está na cabeça do sujeito conhecedor, e
pode ser provada por meio de uma teoria da coerência. sim em uma relação desse sujeito com o mundo.
Os adeptos dessa teoria supõem a existência de uma
verdade pura, absoluta e imutável em que nossas cren- Assim, uma crença é verdadeira quando corresponde a
ças são verdadeiras ao passo que são coerentes com tal um dado complexo associado, e falsa quando não corres-
verdade. Nesse gradiente teórico, a verdade aparece ponde. Admitindo, para efeitos de precisão, que os ob-
jetos da crença são dois termos e uma relação, sendo os
como um sistema de propriedades intrínsecas às nos-
temos postos numa certa ordem pelo “sentido” da crença,
sas crenças, e sendo assim, uma proposição só será se então se os dois termos nessa ordem estão unidos pela
for coerente com essas propriedades. A fim de refutar relação num complexo, a crença é verdadeira; se não, é
essa teoria, Russell emprega duas objeções com o in- falsa. Isto constitui a verdade e falsidade que procuráva-
tuito de provar que ela não obedece aos três critérios mos (Russell: 2008; p. 188).
apresentados acima. Primeiro (i) não há razão para su-
por que só é possível um corpo coerente de crenças. A despeito de exigir a existência de um fato fora
“Pode ser que, com imaginação suficiente, um roman- da mente para afirmar a verdade de uma proposição,
cista possa inventar um passado para o mundo que se Russell reserva um espaço para a mente no reconheci-
ajuste perfeitamente ao que sabemos, e que, no entan-
to, seja bastante diferente do passado real”4 (Russell:
mento da verdade. A mente tem a função de organizar
os fatos e dar uma orientação, ou um sentido, a eles, em
39
2008; p. 182). Na sequência, Russel argumenta que (ii) outras palavras, a mente é responsável por engendrar
o sentido de coerência pressupõe as leis da lógica. Ora, as nossas crenças. Separemos o exemplo em suas par-
para saber se duas proposições são verdadeiras, temos tes compositivas, para entendemos o que isso significa.
de conhecer proposições como a lei da não contradi- É um fato que Otelo acredita no amor de Desdêmona
ção (Russell: 2008; p. 183). Isto é, ao defender uma tese por Cássio, e é outro fato que Desdêmona ama Cássio5.
como verdadeira, ela não poderá ser imediatamente Neste caso as relações expressas pelos verbos acreditar
falsa. No exemplo, citado pelo próprio autor, as pro- e amar são dois fatos distintos entre si, mas que estão
posições “esta árvore é uma faia” e “esta árvore não é estabelecidos de modo a formular uma representação
uma faia” estão em contradição entre si, donde apenas do mundo, um complexo de crenças associadas. Cabe
uma pode ser verdadeira e a outra falsa. a nossa mente apreender esses fatos e agrupá-los de
forma a dar-lhes um sentido que corresponda ao que,
A teoria da verdade como correspondência com efeito, existe fora dela. Pois que Cássio acredite
A fundamentação da teoria da verdade como que Desdêmona ama Otelo expressa um sentido com-
correspondência se inicia com uma observação preli- pletamente diferente da proposição Otelo acredita que
minar que, a princípio, pode parecer trivial, mas que Dedêmona ama Cássio. Nas palavras do próprio Rus-
no fundo pretende evitar confusões desnecessárias. sell,
Russell entende que o nosso conhecimento de verda-
des, ao contrário do nosso conhecimento de coisas, vê-se que as mentes não criam a verdade ou a falsidade.
tem um oposto nomeadamente o erro (Russell: 2008; Criam crenças, mas uma vez criadas as crenças a mente
p. 179). Na vida cotidiana, costumamos assumir como não pode torná-las verdadeiras ou falsas (…) o que faz a
verdadeiras todas as crenças que elaboramos em nossa crença verdadeira é um fato, e este fato (exceto em casos
mente, contudo, nem sempre isso é correto. Vejamos excepcionais) não envolve de modo algum a mente da
o exemplo que Russell extraiu da tragédia Otelo, de pessoa que tem a crença (Russell: 2008; p. 189).
William Shakespeare:

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crença seria uma opinião, posto que não apenas constata um
Conclusão estado de coisas com base em seus sentidos, mas articula co-
nhecimentos e linguagem para elaborar uma representação
Uma teoria da verda- de mundo que, em verdade, é mais complexa do que a pri-
meira. Neste caso, a verdade pode ser dita somente das opi-
de como correspondência
niões, por que elas não foram elaboradas com base no conta-
pode parecer uma trivia- to e sim numa representação do mundo formulada com base
lidade ao leitor menos em uma articulação de conhecimentos diversos.
familiarizado com a filo- 4. Pense, por exemplo, nas interpretações das obras de Leo-
sofia, levantando indaga- nardo Da Vinci que os personagens do romance “O Código
ções revoltadas do tipo “ Da Vinci” realizam ao longo da obra de Dan Brown.
o que levaria um filósofo a 5. É importante entender que os fatos não são verdadeiros e
perder tempo com tamanha trivialidade?”. No entanto, nem falsos, o conhecimento dos fatos são similares ao conhe-
quando nos colocamos diante do senso comum, vemos cimento de coisas. a verdade de um fato recai sobre a crença
muitas pessoas afirmarem que a verdade é relativa a que formulamos sobre ele.
uma pessoa, que ela não existe por si mesma, mas é
uma formulação individual. É justamente contra esse
tipo de relativismo que Russell se levanta na formu- Questões sobre o texto
lação de sua teoria da verdade. Ele busca encontrar
fundamentos para uma teoria na qual a verdade figure 01) Leia o trecho a seguir:
como algo objetivo, realmente existente e que encontre
sua fundamentação em si mesma, não uma concepção Deve-se observar que a verdade ou falsidade de uma
de verdade como fundamento último que rege e orde- crença depende sempre de algo que está fora da própria
crença. Se eu acredito que Carlos I morreu no cadafalso,
na a realidade concreta segundo preceitos universais
acredito numa verdade, não por causa de qualquer qua-
que transcendem a materialidade, a concretude e a fini- lidade intrínseca da minha crença, que possa ser des-
tude das vivências humanas. E, além disso, uma teoria coberta examinando apenas a crença, mas por causa de
da verdade não pode se fundar em um conjunto de ex- um acontecimento histórico que se deu há dois séculos e
periências do senso comum, sob pena de construirmos meio. Se eu acredito que Carlos I morreu na cama, acre-
tantas representações do mundo, quantos indivíduos dito falsamente: nenhum grau de vivacidade da minha
existem sob a luz do Sol, inviabilizando que se possa crença, ou cuidado na formação da crença, impede que
formular um ciência que atribua uma regularidade ao seja falsa, uma vez mais por causa do que aconteceu há
mundo. muito tempo, e não por causa de qualquer propriedade
intrínseca da minha crença.
Notas:
1. Para esse trabalho faremos uso da tradução portuguesa pu- Com base no excerto acima e em seus conhe-
blicada pela Edições 70, na qual a Introdução de autoria do cimentos sobre o assunto, EXPLIQUE por que Russell
professor Desidério Murcho (UFOP), apresenta as principais exige que as crenças sejam dependentes de algo que
ideias defendidas ao longo do livro, inclusive o problema a esteja fora da própria crença.
teoria da Verdade. Esta mesma introdução foi publicada no
blog Crítica na Rede com o título Algumas Ideias de Russell.
Cf. http://criticanarede.com/intropf.html. As referências 02) Leia o trecho a seguir:
feitas a este artigo serão seguidas de numeração romana a
fim de identificarmos a paginação da publicação original.
Vê-se assim que as mentes não criam a verdade ou a fal-
2. Diga-se de passagem, realismo não é igual a empirismo.
sidade. Criam crenças, mas uma vez criadas as crenças a
Mesmo um idealista, isto é aquele que acredita que todo co-
mente não pode torná-las verdadeiras ou falsas, exceto
nhecimento é proveniente de uma ideia, que a ideia existe
no caso especial em que dizem respeito a coisas futuras
por si mesma, pode ser entendido como um realista. Para
que estão sob o domínio da pessoa que acredita, como
tanto, basta que ele admita que as ideias são objetivas e não
apanhar comboios. O que faz uma crença ser verdadeira é
dependem de um juízo da mente para que existam. E o em-
um fato, e este fato (exceto em casos excepcionais) não en-
pirista é aquele para quem o conhecimento é proveniente das
volve de modo algum a mente da pessoa que tem a crença
sensações que apreendemos de nosso contato com o mundo.
(RUSSELL, Bertrand. Os problemas da Filosofia. Tradução
3. Aqui é um bom momento para apresentarmos o que esta-
Desidério Murcho, Edições 70, Lisboa, 2008).
mos chamando de crença. Na concepção russelliana crença
é toda representação do mundo elaborada na mente através
dos sentidos. No entanto, cumpre observar que as crenças A teoria da verdade apresentada no artigo Ver-
possuem naturezas diferentes, umas são meramente crenças dade e Falsidade defende que a verdade ou a falsidade
e outras são opiniões. Estas se caracterizam por serem cren- de uma crença é uma propriedade dessa crença, mas
40 ças elaborada por efeitos de articulações da linguagem. Por que é uma propriedade tal que exige a existência de
exemplo, alguém pode acreditar com base em suas observa- um fato fora da crença. Assim, o autor rechaça a possi-
ções que a água do mar é azul, essa é uma crença imediata bilidade de a verdade ser algo que está dado na mente,
formada pelo contato direto com as impressões fornecidas embora ele reserve um papel para ela em sua teoria.
aos sentidos. Mas um outro alguém, baseando-se em conhe-
EXPLIQUE qual o papel da mente na teoria da verda-
cimentos mínimos de ciência, pode argumentar que a água
do mar não é azul, ela apenas parece ser azul em função da de apresentada por Russell.
incidência de luz sobre a superfície marinha. Essa segunda

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03) Leia o trecho abaixo: Em segundo lugar, não é possível que a filoso-
fia careça de lógica, pois foi justamente por sobrepor
Uma dada crença é verdadeira quando corresponde a um um discurso racional (lógos) ao discurso mítico tradicio-
dado complexo associado, e falsa quando não correspon- nal (mythos) que surgiu uma atividade como a filosofia.
de. Admitindo, para efeitos de precisão, que os objetos Não há na filosofia um argumento que não pretenda
da crença são dois termos postos numa certa ordem pelo
ser válido e nenhuma proposição que não pretenda ser
sentido da crença, então se os dois termos nessa ordem
estão unidos pela relação num complexo, a crença é
verdadeira. Do contrário, para que se prestaria?
verdadeira, se não, é falsa. Isto constitui a definição de Talvez a confusão seja causada por desco-
verdade e falsidade que procurávamos. Ajuizar ou acre- nhecimento do que seja lógica, a saber, a ciência da
ditar é uma certa unidade complexa da qual a mente é argumentação válida. A lógica ajuda a avaliar se as
uma constituinte; se os restantes constituintes, tomados conclusões que os filósofos e demais seres pensantes
na ordem que tem na crença, formaremos uma unidade (consideramos aqui que filósofos são seres pensantes)
complexa, então a crença é verdadeira; se não, é falsa tiram em suas reflexões podem ser sustentadas pelas
(RUSSELL, Bertrand. Os problemas da Filosofia. Tradução razões (premissas) apresentadas. Quando as premissas
Desidério Murcho, Edições 70, Lisboa, 2008) sustentam a conclusão, o argumento é válido. Numa
linguagem mais rigorosa, diríamos que um argumen-
O trecho acima apresenta o desfecho da teoria to válido é aquele em que é impossível as premissas
da verdade como correspondência, defendida por Ber- serem verdadeiras e a conclusão falsa. Mas isso não
trand Russell. Baseando-se em seus conhecimentos so- significa que as premissas ou a conclusão sejam verda-
bre o assunto explique em que consiste esta teoria. deiras. Ninguém utilizando unicamente as ferramen-
tas da lógica poderia saber se a Lua pertence mesmo
04) EXPLIQUE por que o conhecimento de verdades ao sistema solar, ou se os metais conduzem energia, ou
difere de nosso conhecimento de coisas. ainda que Sócrates é mortal. Mas qualquer pessoa que
P saiba que

Referências bibliográficas: (1) A Lua é um satélite da Terra;


RUSSELL, Bertrand. Os problemas da Filosofia. Tradução Desi-
(2) A Terra está no sistema solar,
dério Murcho, Edições 70, Lisboa, 2008.
sabe que
(3) A Lua está no sistema solar.
* Eric Renan Ramalho é graduando em Filosofia.
Isso é lógico! As premissas 1 e 2 sustentam a
Aula de lógica conclusão 3. A verdade de 1, 2 e 3, porém, só pode ser
estabelecida empiricamente, ou seja, com a experiên-
FILOSOFIA NÃO TEM LÓGICA!!!! cia.

Como professor de filosofia, várias vezes escu-


to algumas rejeições e resistências por parte de alunos
Os problemas filosóficos são de tal forma que
não podemos estabelecer meios de prova como nas ci- 41
à disciplina filosofia: “Professor, filosofia não tem lógi- ências naturais. Afirmações sobre o livre arbítrio, ou
ca!”. Com essa afirmação penso que os estudantes que- sobre Deus, ou sobre o certo e o errado não podem
rem dizer que não veem sentido no estudo de filosofia ser feitas baseadas em pesquisas estatísticas ou ex-
ou que os filósofos com que acaso tiveram contato nos perimentos práticos. O que temos são apenas razões
estudos diziam coisas tão absurdas que não deveriam mais ou menos plausíveis e a lógica que permite tirar
ser levadas em consideração. conclusões possíveis. No caso do livre arbítrio há, por
Se os alunos afirmam isso com lucidez e con- exemplo, uma noção de que todas as coisas são expli-
vicção, então eu preciso fazer um mea culpa de não ser cadas por meio de causas. Em outras palavras,
capaz de mostrar a solidez argumentativa de vários fi-
lósofos no tratamento de certos problemas filosóficos (4) Tudo que existe seria efeito de alguma causa ante-
que ocupam os livros didáticos do Ensino Médio. rior;
Mas se os alunos falam assim por entender que (5) Mas se tudo tem uma causa, a vontade que guia as
a filosofia traz certa perplexidade, e os filósofos têm ações humanas também tem causas que estão fora do
uma estranha mania de dizer coisas não óbvias (no que controle do sujeito.
concordo plenamente), então preciso discordar da afir-
mação de que falta lógica à filosofia. Assim, poderíamos sustentar que
Primeiramente eu poderia me felicitar por cau- (6) nossa vontade não é autônoma nas decisões e não
sar nos meus alunos perplexidade e inquietação. É o existe livre arbítrio.
mesmo sentimento demonstrado pelo jovem Teeteto
no diálogo escrito por Platão quatro séculos antes de De 4 e 5 temos 6 como consequência lógica.
Cristo. No diálogo, o personagem Sócrates elogia Tee-
teto por se admirar e espantar com os argumentos ali Os argumentos apresentados até aqui são vá-
discutidos. No texto, Sócrates é categórico: “a filosofia lidos, o que quer dizer que não há nada de errado na
não tem outra origem”... lógica utilizada para estruturá-los.

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Mas talvez aconteça de os alunos discordarem
dos filósofos (o que me deixaria tremendamente feliz).
Alguém poderia recusar que não possuímos livre arbí- Avalie
trio. Para fazer isso, precisaria mostrar que não é ver-
dade que (4) tudo tem uma causa ou que é falso que (5) seu
se tudo tem causas nossa vontade não é livre. Ainda
que 4 ou 5 (ou ambos) sejam falsos, o argumento é vá- conhecimento
lido, pois a conclusão é tirada das premissas. E, para
provar que 4 ou 5 são falsos, eu teria de utilizar outro
argumento.
Teste seus conhecimentos.
Um caso diferente temos no argumento se-
Envie sua resposta para:
guinte:
(7) Todo esporte é saudável. pense-avaliacao@uol.com.br
(8) Tabaco não é esporte.
Questão
Logo, Veja a seguinte ilustração:
(9) Tabaco não é saudável.

Ainda que (9) seja verdade, não é possível tirar


tal conclusão das premissas apresentadas. Isso porque
uma coisa (digamos uma maçã) pode não ser esporte e
ser saudável. A conclusão não é logicamente tirada de
(7) e (8).

Disso tudo descobrimos que há duas manei-


ras de mostrar como discordamos de uma conclusão
de qualquer filósofo: ou mostramos que logicamente o
argumento é inválido – ainda que as premissas sejam
verdadeiras, é possível que a conclusão seja falsa -, ou
recusamos a verdade de pelo menos uma das premis-
sas. No primeiro caso usamos a lógica (para?) recusar
um argumento, no segundo caso assumimos que a ló-
gica está impecável, mas que as razões que sustentam
a conclusão eram falsas. Em ambos os casos, a lógica é
indispensável.

* Tiago Luís Oliveira é doutorando pela UFMG.

P (a) Quando Mafalda se sente indefinida, sem contor-


nos ou essência, ela aproxima-se da filosofia de Jean-
Paul Sartre. Explique como esse pensador entende
o ser humano.

(b) Os pensadores antigos e medievais, ao contrário de


Sartre, propunham uma definição de ser humano por
uma natureza universal. Dê pelo menos uma definição
essencialista de ser humano e explique-a.

42

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Pense

Quadro atual da individualidade


Num mundo invertido, as ideias congruentes com ele têm de refletir e consagrar (ou fazer a de-
núncia crítica dele) essa inversão, ou seja, a inversão do mundo é o complexo categorial efetivo do falso
socialmente necessário.
Donde, cabe, necessariamente, determinar a inversão:

produção da riqueza n desprodução do homem;

domínio da natureza pelo homem n perda de domínio do homem sobre si.

Ou seja, o homem estabeleceu a soberania sobre a natureza, mas perdeu o domínio sobre si mesmo, sobre
sua vida.
Os homens desenvolveram suas forças essenciais em relação aos objetos da natureza, mas não foram
capazes ainda de desenvolver suas forças essenciais relativas a si mesmos, ou seja, em relação à sociabilidade. Ob-
jetiva e subjetivamente, no que tange à sua autoconstrução, vale dizer, no que se refere às formas de cooperação,
às relações sociais, isto é, à sua essência, perdeu todas as ilusões, abandonou todos os sonhos e se conforma
à impotência na forma da ética e do imaginário.
O homem – único ser que não é dado pela natureza, que não vem dado –, não é completo naturalmente.
O homem como ser impotente é o homem necessário ao império do capital, que completou seu domínio contradi-
tório, inclusive, por isso. A superação dos limites e o não conformismo com estes é que é autoconstrução. Ceder
às pulsões e ao imaginário é renunciar aos atributos, à potência do ser autoposto e se render e se conformar
à impotência do homem apropriado à ordem do capital autoposto.
Os homens, os indivíduos, vão sendo paulatinamente devorados pela lógica do capital – da cisão entre 43
público e privado (o efetivo aqui é falar entre se reconhecer pelo gênero ou se pôr fora dele) até à desestru-
turação radical da individualidade autoposta. A cisão entre público e privado é, de fato, a cisão dos homens
entre si, a contraposição de todos contra todos.
A falta de caráter como traço necessário da individualidade atual corresponde à lógica do capital auto-
expandido. O homem sem caráter como a individualidade que corresponde às necessidades da ordem do capital;
incapacitado de se autopor, de se autoedificar enquanto homem, ou seja, de se confirmar em suas potencialidades.
Homem atual guiado/norteado pela competição da safadeza. O homem para o qual valores e dignidade
não têm mais significado, pelos quais não pode se reger, porque, se as considera, se exclui do mundo efetivo.
Na atualidade, as demandas individuais são cada vez mais mesquinhamente práticas e imediatistas, sob
o império da redução de todo interesse a simples interesse pessoal. Hoje, pode-se dizer dos indivíduos em geral
o que Marx disse a propósito de Stirner: “Orgulha-se da sua própria individualidade miserável e da sua própria
miséria” (A Ideologia Alemã, vol.II, p. 113).

CHASIN, José. Rota e Prospectiva de um projeto marxista, in, Ensaios Ad Homem,


Tomo III: Política. Estudos e Ensaios Ad Homem, São Paulo 2000.

P
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Eventos

XVI Encontro de Graduação em Filosofia da USP 2013


Inscrição: 25/09/12 à 15/02/13
Período do Evento: 15 à 19 de abril 2013
Informações: www.encontrodefilosofiausp.blogspot.com

II Congresso latino americano de Filosofia da educação 2013


Universidade da república do Uruguai – Montevidéu
Organização: Associação latino-americana de filosofia da educação
Data: 21 à 23 de março 2013
Informações: www.alfe-filosofiadelaeducacion.org

III Colóquio Filosofia e Literatura


Março de 2013
Informações: www.gefelit.net

XXIX ENEFIL 2013


Encontro Nacional dos Estudantes de Filosofia
“Filosofia, Educação e Cultura: Desafios de uma arte que dura”
João Pessoa – PB
Data: De 07 a 11 de Janeiro de 2013
e-mail: enefil2013@gmail.com

XXVI Congresso mundial de filosofia do direito e filosofia social


Data: 22 à 26 de julho
Local: Belo Horizonte – MG
Sede: UFMG e PUC-Minas
Site: www.filosofiadodireito.org.br

XVII Congresso interamericano de Filosofia no Brasil


Local: Salvador – BA
Data 2013 – a definir
Site – www.ufpi.br/eticaepstemologia/materias/index/mostra/id/4084

ENPEFFE
De 10 à 12 de abril de 2013 acontecerá a segunda edição do Encontro Nacional de Pesquisa em ensino de Filoso-
fia e Filosofia da educação, sediado em Ouro Preto no Instituto de Filosofia, Artes e Cultura UFOP.
Site: www.enpeffe.wordpress.com

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REVISTA PENSE | Nº 03 | Dezembro/2012


Expediente

Pense
REVISTA MINEIRA DE
FILOSOFIA E CULTUR
A

NÚMERO 3 | Dezembro/2012 | BRASIL


ISSN 2238-9903
A revista Pense é aberta à colaboração de todos os
Conselho editorial estudiosos de filosofia. Os textos devem ser enviados
Eric Renan Ramalho pelo correio eletrônico ao Conselho Editorial, que ava-
Jean George Farias
liará previamente a adequação destes à linha editorial.
Marcelo Pimenta Marques
Paulo Margutti Avaliados positivamente nesta etapa, os textos serão en-
Robson Jorge de Araújo caminhados a pareceristas, membros do Conselho Con-
Rodrigo Marcos de Jesus sultivo ou especialistas ad hoc, para apreciação. Uma
Tiago Luís Oliveira vez aprovados, serão publicados no próximo número
Cleide Simões
da revista com espaço disponível.
Exigências referentes às colaborações:
Secretária
Rayane Batista de Araújo 1. os temas tratados deverão ser de natureza filosófi-
ca ou apresentar estreita vinculação com a filosofia, po-
Revisão dendo ser de natureza crítica ou informativa (divulga-
Giovanna Spotorno ção de pesquisas ou quaisquer assuntos considerados
Maria Amélia Nascimento de relevância filosófica);
2. modificações e/ou correções sugeridas pelos pa- 3
Tiragem receristas quanto à redação (ortografia, pontuação, sin-
500 exemplares
taxe) ou ao conteúdo das contribuições serão devolvi-
das aos respectivos autores. Para isso, um pequeno
Arte
Juliana Nunes Saiani prazo lhes será concedido;
Robson Araújo 3. os originais deverão ser digitados e enviados por
e-mail para revistapensefilosofia@gmail.com e deverão
obedecer ao limite de 3.000 palavras. Ao final, deverá
constar a bibliografia consultada. As citações e referên-
Contracapa: cias deverão obedecer às normas da ABNT;
Melancolia.
Autor: Domenico Fetti 4. o artigo deve conter o vínculo institucional do au-
c. 1620 tor e, quando necessário, a indicação da entidade patro-
Musée du Louvre, Paris
cinadora do trabalho.

Conselho Editorial da revista Pense

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LTURA

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