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Filosofia na Educação
A filosofia e a filosofia da educação no
pensamento de Anísio Teixeira
[A Sabedoria]
A filosofia, essa, ensina a agir, não a falar, exige de cada qual que viva segundo as suas
leis, de modo que a vida não contradiga as palavras, nem sequer se contradiga a si mesma; importa
que todas as nossas ações sejam do mesmo teor. O maior dever — e também o melhor sintoma —
da sabedoria é a concordância entre as palavras e os atos; o sábio será em todas as circunstâncias
plenamente igual a si próprio. “Mas quem será capaz de atingir um tal nível?” Poucos, decerto,
mas, mesmo assim, alguns! Não escondo que a empresa é difícil; nem te digo que o sábio avançará
sempre ao mesmo ritmo, embora o rumo seja sempre o mesmo. Autoanalisa-te, portanto, e verifica
se há discordância entre a tua roupa e a tua casa, se és pródigo para contigo, mas mesquinho para
com os teus, se é frugal a tua ceia mas luxuosa a tua habitação. Adota de uma vez por todas uma
regra de conduta na vida e faz com que toda a tua vida se conforme com essa regra. Há pessoas que
se retraem em casa e que se expandem sem inibições fora dela; semelhante variedade de atitudes é
viciosa, é indício de um espírito hesitante que ainda não achou o seu ritmo próprio. Posso explicar-
te, aliás, donde provém esta inconstância, esta divergência entre os propósitos e as ações. A causa
é que ninguém fixa nitidamente aquilo que quer nem, se o fez, permanece fiel ao seu propósito,
antes pretende ir mais além; e não se trata apenas de mudar de objetivo, acaba-se por voltar atrás
e de novo cair na situação anteriormente rejeitada e condenada. Em suma, deixando as antigas
definições de sabedoria e abarcando numa fórmula todo o ciclo da vida humana, acho que seria
bastante dizer isto: a sabedoria consiste em querer, e em não querer, sempre a mesma coisa. Não
1
é necessário acrescentar, como condição, que devemos querer o que é justo, porque só é possível
querer sempre a mesma coisa se essa coisa for justa. Ora sucede que as pessoas ignoram o que que-
rem exceto no próprio momento do querer; ninguém determina de uma vez por todas o que deve
querer ou não querer; todos os dias se muda de opinião, mudança
por vezes diametralmente oposta; para muitos, em suma, a vida
não passa de um jogo! Quanto a ti, mantém-te fiel ao propósito
que adotaste, e assim conseguirás talvez atingir o ponto máximo,
ou pelo menos um ponto tal que apenas tu compreenderás não ser
ainda o máximo.
A verdade diz respeito a fatos e existências. No mais, não Na argumentação de Teixeira, a arte ganha
há verdades, mas interpretações, sentidos, valores. Ao ou- um sentido próximo ao de techné [técnica; saber] e de
virmos uma sinfonia de Beethoven, não há uma verdade a poiesis [atividade criadora; fabricação]; do saber-fazer
verificar, há um sentido a perceber que pode ser menos ou
e do criar. É uma situação arcaica, somente rompida
mais profundo (Teixeira, 2000, pp. 167-8, grifo do autor).
na exata medida em que são rompidos ou transcendi-
dos os limites da experiência humana na natureza. O
Por isso, ainda que parta do mundo real e dos progresso das artes, o desenvolvimento do comércio, a
conhecimentos produzidos sobre este mesmo mundo geração de um mundo de riquezas viriam a confrontar
pelas ciências, o discurso filosófico não deve pretender a ordem estabelecida sobre o arrimo dos deuses e sob
o alcance do verdadeiro e a enunciação de legalidades o resguardo dos sacerdotes. O conflito entre os cos-
objetivas, uma vez que “A filosofia não busca verdades tumes, as crenças e as normas sociais, de um lado, e
no sentido estritamente científico do termo, mas va- as resultantes do desenvolvimento das artes práticas,
lores, sentido, interpretações mais ou menos ricas da de outro, afirma-se como real. Confrontação que, em
vida” (Teixeira, 2000, p. 168). Portanto, respeitando muito, guarda semelhança com o processo socioevo-
seus limites, deve exercitar-se como aquilo que é: uma lutivo, porquanto o próprio incremento de poder e de
forma literária. amplitude da vida dos homens passa-lhes a exigir um
maior grau de adaptabilidade ao real, à natureza, ao
Filosofia tem assim tanto de literário quanto de cientí-
fico. Científicas devem ser as suas bases, os seus postu-
mundo objetivo. Seguindo de perto as ideias de John
lados, as suas premissas, literárias ou artísticas as suas Dewey, expostas em Reconstrução da filosofia, Teixeira
conclusões, a sua projeção, as suas profecias, a sua visão. verá naquele confronto radical a razão principal para
E nesse sentido filosofia se confunde com a atividade de a emergência do discurso filosófico na Grécia Antiga.
pensar, no que ela encerra de perplexidade, de dúvida, Um abismo efetivo e intransponível instala-se entre a
de imaginação e de hipotético. Quando o co-nhecimento palavra dos poetas e a vida efetiva da comunidade.
é suscetível de verificação, transforma-se em ciência, e
enquanto permanece como visão, como simples hipótese
Um abismo que não poderia ser coberto pelos esfor-
ços isolados dos dois lados. No parecer de Anísio 7
de valor, sujeito aos vaivéns da apreciação atual dos ho-
Teixeira, a filosofia e o seu agente – o filósofo – virão
mens e do estado presente das suas instituições, diremos,
é filosofia (Teixeira, 2000, p. 168).
para cerrar essa fenda e tentar promover uma recon-
ciliação dos dois reinos da comunidade antiga. Nesse
Com essa argumentação sobre a filosofia e a momento, o educador brasileiro apresenta uma tese
ciência, estabelece-se uma espécie de divisão reflexiva sobre a história da filosofia desenvolvida na obra de
de trabalho: à ciência cabe a verificação formal e ob- Dewey acima referida. O discurso filosófico, ao con-
jetiva da verdade das coisas; já à filosofia compete a trário do que reza a tradição historiográfica, não se
apreciação dos sentidos do mundo e daquilo que ele iniciou com os pensadores jônios [pré-socráticos], mas
pode ser. As ciências são realistas, a filosofia é visio- com os sofistas (cf. Teixeira, 2000, p.158), o que per-
nária. mite inferir que Anísio Teixeira, acompanhando de
perto seu mestre, localiza a tematização primeva do
Digna de nota, também, é a abordagem do filosofar no enfrentamento do problema da lei funda-
emergir histórico da filosofia. Anísio Teixeira desenha mentada na deliberação da assembleia de cidadãos.
um tipo de enquadramento dos saberes e de seus luga- No prosseguimento da sua argumentação, vai deslo-
res sociais, tentando levar em conta a divisão social do car o centro da posição socrático-platônica – a busca
trabalho, a qual cindia, segundo ele, o conjunto social pela sustentação teórica da pretendida relação entre lei
em dois grupos de atividade bem delimitados: de um e verdade – para o reino da discussão acerca do esta-
lado, os empíricos, de outro, os que se dedicavam à tuto da lei democrática. A prática corrente passa a ser
contemplação do sagrado. Os saberes ou, na termino- uma fundamentação mais poderosa e apropriada que
logia de filosofia pragmática de Dewey, os “produtos o vislumbre da inteligibilidade pura. A nova vida da
mentais”, não se misturavam, assim como permane- comunidade, centrada na discussão e no confronto de
ciam perfeitamente discerníveis e separados os con- posições, na resolução prático-pragmática dos confli-
tingentes que deles se ocupavam, bem como os espa- tos é o metro da verdade, ou melhor, das verdades.
ços sociais a eles destinados. A divisão, dessa forma A vida civil ganha status de arrimo gnósio-epistêmico.
Referências bibliográficas
* O presente texto é a transcrição ligeiramente estudantes das mais diferentes partes do Brasil, curio-
modificada de uma videogravação da participação sos e instigados pela leitura do livro. Fico especial-
do professor Charles Feitosa em uma mesa de deba- mente feliz com isso, pois tenho consciência de que,
tes sobre “Experiências de Divulgação em Ciências embora se trate de um livro até barato pela qualidade
Humanas”, apresentada no I Encontro Nacional de gráfica apresentada, ainda é infelizmente muito caro
Divulgação de História e Ciências Sociais, evento or- para a realidade brasileira. [Também fico um pouco
ganizado pela Revista de História da Biblioteca Nacional, assustado porque pode ser um sinal de que o fim do
em dezembro de 2009 na Casa da Ciência da UFRJ. Foi mundo está próximo. Pelo menos “o fim do mundo tal
mantido o tom coloquial, improvisado e bem-humora- como o conhecemos”; afinal, toda uma nova geração
do da apresentação oral e evitado, na medida possível, de adolescentes brasileiros está cada vez mais sendo
o uso excessivo de notas de rodapé para não perturbar contaminada pelo espírito filosófico, e não sabemos
o fluxo da leitura. qual será o resultado disso ainda].
Dentro desse espírito de informalidade, gosta-
1. Filosofia não é Ciência!? ria de ressaltar que, embora
Agradeço muito aos organizadores o convite meu livro venha obtendo
para participar desse evento sobre divulgação cientí- bastante sucesso nos seus
fica e, em particular, dessa mesa, em que se pretende objetivos, sua repercus-
discutir experiências de divulgação em ciências huma- são na área acadêmica foi
nas, pois tenho bastante interesse pelo tema. Pretendo praticamente nula. Bem, é
ser bastante breve e leve na exposição das minhas ex- verdade que ele não foi ata-
periências na área. Minha formação é bem acadêmica, cado. Tentei fazer um livro 11
quer dizer linear e disciplinar: da graduação ao pós- que não deixasse lacunas,
-doutorado me mantive no caminho da filosofia, tendo que não permitisse críticas
realizado diversas publicações nas áreas de ontologia, do tipo “é simplificador”
fenomenologia e estética. Paralelamente à minha for- ou “não é filosofia”. Mesmo
mação acadêmica, tive também uma formação disper- assim, ele foi solene-mente
sa e “ziguezagueante” nas artes e nas ciências, o que ignorado pelos meus pares,
despertou em mim o gosto pela transdisciplinaridade1 não obtendo, à época de seu lançamento, nenhuma re-
e me incentivou a uma prática de divulgação da filo- senha nos cadernos de cultura dos jornais das grandes
sofia para estudantes de diversas áreas, para professo- cidades. Isso é algo para ser pensado aqui.
res dos ensinos fundamental e médio da rede pública
e para jovens de todas as idades. O principal produto Na verdade, eu considero até bastante surpre-
desse meu trabalho de divulgação é o meu livro Ex- endente o convite para participar dessa mesa sobre
plicando a Filosofia com Arte (Ediouro, Rio de Janeiro: “experiências em divulgação na área de ciências hu-
2004), que é uma tentativa de tornar a filosofia mais manas”. Digo isso porque, há cerca de dois anos, parti-
acessível, sem perder o rigor inerente aos conceitos. cipei de um edital de divulgação científica promovido
O livro não apenas reproduz, mas também apresenta por um dos mais importantes órgãos de fomento do
uma produção própria de ideias. Explicando a Filosofia país. Meu projeto era transpor a experiência de Expli-
com Arte acabou me trazendo muitas alegrias, pois não cando a Filosofia com Arte para a televisão, usando todos
apenas ganhou vários prêmios (entre eles o Prêmio os recursos das imagens em movimento. Tal projeto
Jabuti 2005, na ca-tegoria de “paradidáticos”), como foi recusado, em parte porque há sempre mais deman-
também foi adotado pelo governo federal para com- da do que verbas, mas o parecerista oculto justificou
por, junto com outros títulos selecionados, a biblioteca sua recusa alegando que meu projeto não se encaixava
básica de todas as escolas públicas federais de ensino nos termos do edital, pois afinal “filosofia não é ciên-
médio do país. Desde então tenho recebido e-mails de cia” (sic) e o edital era de divulgação científica!!
Confesso que fiquei estupefato, pois, embora
REVISTA PENSE | Nº 01 | Setembro/2012
até simpatize com a posição epistemológica de que a -zinho, só que mais ameaçador do que simpático. No-
filosofia ocupa um campo próprio do conhecimento, vas gargalhadas. Por coincidência, um dos integrantes
conectado mas independente das artes e das ciências, da mesa atuava na área de letras e acrescentou ao papo
na prática acadêmica ela faz parte das ciências sim e a impressão de que na sua disciplina, quando um tra-
mais especificamente das ciências humanas (vide a ta- balho de um aluno não é considerado adequado, os
bela de áreas do conhecimento do CNPq). Seguindo professores costumam recusá-lo, dizendo: “Você não
o raciocínio do parecerista, se filosofia não é ciência, está fazendo literatura, mas sim jornalismo”. Empolga-
deveriam então ser imediatamente suspensas todas as dos com o surpreendente rumo da conversa, ouvimos
bolsas de “iniciação científica” em filosofia no país e, ainda um profissional de jornalismo dizer que, na sua
mais amplamente, todos os apoios financeiros à filo- área, os trabalhos de pesquisa considerados impró-
sofia, seja na forma de bolsas de mestrado, doutora- prios costumavam ser acusados de “jornalismo ruim”,
do, pós-doutorado e ainda os suportes financeiros à ou seja, de marketing!! Infelizmente não havia ninguém
participação ou realização de simpósios, ou mesmo os da área de marketing na mesa para dar continuidade à
subsídios para a publicação de artigos ou livros. Toda brincadeira.
pesquisa em filosofia do país deveria parar, com base Parece que tem sempre alguém nas instituições
na afirmação estapafúrdia de um tecnocrata de que fi- de ensino e de pesquisa para nos alertar sobre o que é
losofia não é ciência!!! próprio e impróprio à profissão. Nossa formação aca-
Conforme a afirmação desse parecerista, eu dêmica parece mesmo girar em torno da transmissão e
não deveria estar portanto aqui fazendo parte dessa da retransmissão de determinados códigos e posturas.
mesa onde estão sendo trocadas experiências em divul- O problema é que às vezes essa pedagogia da demarca-
gação nas áreas de ciências humanas. Esse caso serve ção de territórios pode se tornar também uma política
para ilustrar como as instituições de pesquisa, embora de exclusão, e o que é pior, uma forma de abafar as
nominalmente incentivem a interdisciplinaridade, na experimentações. Meu projeto de divulgação da filoso-
verdade trabalham com concepções estanques e repar- fia com arte é, nesse sentido, um gesto de resistência,
tidas, em que as fronteiras entre as áreas são fixas e os de ocupar e habitar as fronteiras. Trata-se de um gesto
limites, praticamente intransponíveis. Na minha opi- perigoso, pois as fronteiras não apenas excluem, mas
-nião a frase “filosofia não é ciência” é uma espécie de também nos protegem dos erros e do desconhecido.
declaração de guerra, visa defender territórios contra Habitar fronteiras nos expõe a riscos.
a ameaça de invasão. É uma frase em que compare-
cem saber e poder de forma ilustrativa. Ao contrário 3. Riscos
do que poderíamos imaginar, não é uma frase restrita Permitam-me ainda contar mais algumas expe-
aos documentos decisórios de avaliação de projetos. riências que podem contribuir para a tarefa de pensar
Ela é bastante comum nas nossas práticas acadêmicas acerca dos riscos da divulgação em filosofia. A primei-
diárias. ra história remonta à década de 80, minha estreia como
professor de filosofia, quando tinha 18 anos e ainda
2. Marcar x Habitar Fronteiras estava no quinto período da graduação na UFRJ. Um
Recentemente participei do lançamento de amigo meu que era professor da rede estadual de en-
um livro de um amigo, professor de filosofia da UFRJ. sino, mais especificamente em Niterói – RJ, convidou-
Após o lançamento nos reunimos em uma grande -me para lecionar uma aula sobre os sofistas, em um
mesa de bar para comemorar. Um dos integrantes da sábado de manhã, para uma turma de ensino médio.
mesa, professor e pesquisador de renome nacional na Muito empolgado levei para a sala os melhores recur-
área de física, fez uma brincadeira na mesa. Ele disse, sos audiovisuais que tinha à disposição na época, tais
em alto e bom som, para todos ouvirem, que na sua como um pequeno gravador de fita cassete e diversas
área, quando os professores acham que o trabalho capas de discos de rock. A aula foi aparentemente um
de um aluno não corresponde às exigências de rigor sucesso, já que os alunos, que tinham a mesma idade
e e-xatidão necessárias, então dizem para ele: “Isso que eu, não apenas acompanharam de forma intensa,
aí que você está fazendo não é física, não é nem mes- como ainda me aplaudiram no final.
mo ciência, mas sim filosofia”! A gargalhada na mesa Fiquei muito feliz, com a sensação de tarefa re-
foi geral. Para as ciências duras e exatas, a filosofia é, alizada. Na hora do almoço após a aula, perguntei para
muitas vezes, sinônimo de delírios poéticos e imagi- meu amigo, muito mais experiente do que eu, o que ele
nativos. Após longas risadas, começamos a conversar tinha achado da aula. Ele me disse que tinha sido mui-
sobre o tema, e os filósofos da mesa, que estavam em to divertida, que eu tinha muito talento para animar
maioria, se perguntaram se costumam dizer coisas pa- auditórios, mas que infelizmente aquilo “não era filo-
12 recidas nas avaliações. O resultado foi que, na filosofia,
quando o professor acha que o aluno não conseguiu
sofia”! Para mim foi como se uma porta se fechasse so-
bre meu rosto, após já ter adentrado o salão. Segundo
alcançar o rigor e a precisão exigidos na matéria (sim, a meu amigo eu tinha exagerado nas brincadeiras e nos
filosofia também tem o rigor e a precisão como um de exemplos, esvaziando a aula dos conceitos e dos pen-
seus paradigmas!), então o professor diz: “Isso o que samentos. Foi a primeira vez que me confrontei com o
você está fazendo não é filosofia, mas sim literatura, risco do excesso de simplificação. Esse risco é real; em
poesia, arte”. Se a filosofia é o outro da ciência, a arte uma sociedade de consumo, a filosofia também pode
é o outro da filosofia, sempre rondando como um vi- se tornar um item de “fast food” (a série de livros Fi-
A submissão do maior número ao menor, esse de força social4. A sociedade não pode ter seus enge-
fato fundamental de quase toda organização social, nheiros enquanto não tiver seu Galileu. Existe neste
não deixa de assombrar todos os que refletem um pou- momento, sobre toda a face da terra, um espírito que
co. Na natureza, observamos os pesos mais pesados conceba, mesmo vagamente, como é possível que um
prevalecerem sobre os menos pesados, as raças mais homem no Kremlin tenha a possibilidade de fazer rolar
prolíficas sobrepujarem as outras. Entre os homens, qualquer cabeça nos limites das fronteiras russas?
essas relações tão claras parecem invertidas. Decerto, Os marxistas não facilitaram uma visão clara
sabemos por uma experiência cotidiana que o homem do problema ao escolherem a economia como chave
não é um simples fragmento da natureza e o que nele do enigma social. Se se considera uma sociedade como
existe de mais elevado – a vontade, a inteligência, a fé um ser coletivo, então esse grande animal5, como todos
– produz, todos os dias, espécies de milagre. Mas não os animais, define-se principalmente pelo modo como
é disso que se trata se assegura a nutrição, o sono, a proteção contra as in-
aqui. A necessidade tempéries, em resumo, a vida. Mas a sociedade con-
impiedosa que man- siderada em sua relação com o indivíduo não pode se
teve e mantém de definir simplesmente pelas modalidades da produção.
joelhos massas de Por mais que se recorra a toda espécie de sutilezas
escravos, massas de para fazer da guerra um fenômeno essencialmente
pobres, massas de econômico, salta aos olhos que a guerra é destruição
subordinados, nada e não produção. A obediência e o comando são tam-
tem de espiritual; ela bém fenômenos dos quais as condições de produção
é análoga a tudo o não são suficientes para dar conta. Quando um velho
que existe de brutal operário sem trabalho e sem assistência perece silen-
na natureza. Como ciosamente na rua ou em um casebre, essa submissão
se, na balança social, que se estende até a morte não pode ser explicada pelo
o grama excedesse o jogo das necessidades vitais. A destruição massiva do 21
quilo. trigo, do café, durante a crise, é um exemplo não menos
claro. A noção de força, e não a noção de necessidade,
Há quase quatro séculos, La Boétie, no seu constitui a chave que permite ler os fenômenos soci-
Contra-um, colocava a questão2. Ele não a respon- ais6. Galileu não teve de se louvar, pessoalmente, por
deu. Sobre quantas ilustrações comoventes podería- ter decifrado a natureza com tanto gênio e probidade;
mos apoiar seu pequeno livro, nós, que vivemos em pelo menos ele se chocava apenas com um punhado de
um país que cobre a sexta parte do globo, um único homens, poderosos especialistas na interpretação das
homem sangrar toda uma geração3. É quando inflige Escrituras. O estudo do mecanismo social é entravado
a morte que o milagre da obediência salta aos olhos. por paixões que se encontram em todos e em cada um.
Que muitos homens se submetam a um só por medo Não existe quase ninguém que não queira seja subver-
de serem mortos por ele é bastante espantoso; mas que ter, seja conservar as relações atuais de comando e de
eles permaneçam submissos a ponto de morrer sob submissão. Um desejo e o outro colocam uma névoa
suas ordens, como compreendê-lo? Quando a obediên- diante do olhar do espírito e impedem de perceber as
cia acarreta tantos riscos quanto a rebelião, como ela se lições da história que mostram por todo lado as massas
mantém? sob o jugo e alguns erguendo o açoite. Uns, do lado que
O conhecimento do mundo material no qual faz apelo às massas, querem mostrar que essa situa-
vivemos pôde se desenvolver a partir do momento ção é não somente iníqua, mas também impossível, ao
em que Florença, depois de tantas maravilhas, trouxe menos para um futuro próximo ou longínquo. Os ou-
à humanidade, por intermédio de Galileu, a noção de tros, do lado que deseja conservar a ordem e os priv-
força. Foi somente então que a organização do meio ilégios, querem mostrar que o jugo pesa pouco, ou que
material pela indústria pôde ser empreendida. E nós, ele é mesmo consentido. Dos dois lados, lança-se um
que pretendemos organizar o meio social, dele não véu sobre o absurdo radical do mecanismo social, em
possuiremos sequer o conhecimento mais grosseiro vez de se enxergar de frente esse absurdo aparente e
enquanto não tivermos concebido claramente a noção analisá-lo para encontrar nele o segredo da máquina.
P
Para saber mais sobre Simone Weil, visite o site:
http://www.simoneweil.com.br/
24
A fragmentação do conhecimento, que se ge- futuro surgiu dessa inspiração. Nela, Edgar Morin, a
neraliza e se reproduz por meio da organização social, pedido da UNESCO, discute e aprofunda sete temas
tem configurado o modo de ser e de pensar dos su- transversais que poderão servir de elo entre as disci-
jeitos. Como consequência desse processo, a estrutura plinas, preenchendo as lacunas dos programas educa-
educacional induz os educadores a uma prática de en- tivos.
sino insuficiente para uma compreensão significativa
do conhecimento, gerando a insatisfação e o desinte- O Primeiro Saber nos coloca a provocação de
resse dos alunos. Em meio a essa crise contemporânea, perceber e questionar o próprio conhecimento, reco-
ainda resta aos educadores a possibilidade de encantar nhecendo sua relatividade. Para enfrentar esse desafio,
e reencantar, por meio da imaginação, o mundo racio- os educadores devem contribuir para que se cristalize
nal e despoetizado em que vivemos. e se enraíze um novo paradigma, cujo pressuposto se
Uma metodologia adequada para resolver abra para a dúvida, estimulando o exercício de interro-
esse impasse seria a educação da sensibilidade estéti- gar.
ca, por meio de uma abordagem transdisciplinar, uma Nesse sentido, a obra infantil de Monteiro Lo-
25
vez que esta pode promover o desenvolvimento de bato tem muito a ensinar, visto que apresenta, como
uma visão holística da vida. Dentre todas as artes, a um de seus objetivos principais, a reforma do pensa-
literatura de ficção talvez seja o meio mais adequado mento, proposta por Edgar Morin. Questionar é a pa-
para desenvolver tal habilidade, já que, pelo poder lavra-chave do Sítio. A Chave do Tamanho, por exemplo,
de sua narratividade, amplia horizontes, tornando os constitui, por si mesma, um questionamento das ver-
leitores aptos a dar sentido às próprias experiências e dades preestabelecidas e, portanto, uma transgressão
a construir conhecimentos a partir da observação di- ao pensamento linear.
reta da realidade, aprendendo a exercitar a tolerância, A história gira em torno da comparação entre
elemento imprescindível a uma convivência pacífica dois universos - o macro e o micro. Emília, ao mover
nesse mundo plural que os coloca frente aos desafios a chave que regula o tamanho dos seres humanos, re-
do multiculturalismo, da fragmentação e da imprevisi- duz drasticamente o tamanho da humanidade. Dessa
bilidade. forma, ao tentar aproximar esses mundos, o autor es-
A obra infantil de Monteiro Lobato, inteira- tabelece uma “dialogia”2, buscando articular elemen-
mente voltada para a concepção de um novo modelo tos aparentemente opostos. Tal aproximação expande
educacional, atende às exigências da moderna Teoria a percepção do leitor, remetendo seu olhar para o ní-
da Complexidade, exibindo uma potência hipertextu- vel da realidade integrada - razão-emoção - criando,
al, que permite efetuar leituras em rede. Esse processo, assim, situações de maior envolvimento na construção
ao auxiliar na conexão dos saberes, contribui, ao mes- de novos significados.
mo tempo, para o aumento da percepção e consequen- Os diálogos entre Emília e Visconde, ou en-
te desenvolvimento de uma visão holítica da vida. tre Emília, Visconde e Dr. Barnes, dentre outros, são
O Sítio do Picapau Amarelo sugere um feliz en- exemplos desse tipo de estratégia. Ao longo de toda a
contro entre o escritor Monteiro Lobato e o sociólogo narrativa, percebe-se a utilização do princípio da com-
Edgar Morin, ambos preocupados em contribuir para plementaridade dos opostos – proposto pela Teoria da
a construção de uma epistemologia da complexidade, Complexidade3 – por meio da aproximação de vários
que desse conta de articular as diversidades e as opo- pares contrastivos que servem ao propósito de ques-
sições. A obra Os sete saberes necessários à educação do tionar o paradigma cartesiano, buscando instaurar um
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FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA
Gilberto Cotrim e Mirna Fernandes
Editora Saraiva
FILOSOFANDO
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA INICIAÇÃO À FILOSOFIA
Maria Helena Pires Martins Marilena Chauí
Maria Lúcia de Arruda Aranha Editora Ática
Editora Moderna
P
* Fernando Rey Puente é professor de Filosofia da
UFMG.
Em 26 de junho de 2011, Tiago Luís defendeu conheceu diversos momentos de revoluções, nas quais se ope-
sua dissertação de mestrado em filosofia pela UFMG. raram mudanças conceituais significativas. A explicação
O tema foi “A mudança nas ciências segundo Paul desse processo de superação de uma teoria por outra rival e a
Feyerabend”, e o trabalho foi realizado sob a orienta- definição clara de critérios de escolha entre teorias competi-
ção da Profa. Dra. Patrícia Kauark Leite. doras ocupou boa parte de pensadores da filosofia da ciência,
cujas correntes mais destacadas foram o positivismo lógico e
Abaixo um trecho de sua apresentação: o racionalismo crítico. O filósofo vienense, que já fora adepto
de ambas em fases diferentes de seu pensamento, procura
Paul Feyerabend (1924-1994) já fora citado como mostrar a insuficiência epistemológica dessas duas vertentes
“o pior inimigo da ciência”. Esse apelido é injustificado na filosóficas. No seu lugar, Feyerabend propõe princípios como
medida em que o autor não rejeita a ciência, mas apenas ten- o da proliferação, da contraindução e da recusa de um mo-
tativas abstratas da filosofia da ciência de reduzir a comple- nismo teórico e metodológico.
xidade da atividade científica a critérios formais. Feyerabend Nosso texto procurou abordar o tema sugerido em
nasceu em Viena, onde se doutorou em Física. Também se três capítulos, de forma a clarificar o posicionamento fey-
interessou por filosofia, frequentando um grupo de estudos erabendiano sobre os critérios de seleção teórica. Resumida-
ligados ao positivismo lógico e, com suas anotações, candi- mente podemos dizer que a posição feyerabendiana rejeita
datou-se e ganhou uma bolsa de doutorado em filosofia na um cientificismo, com a sustentação do princípio de que a
London School of Economics, onde teve Karl Popper como sociedade em geral (e não apenas os especialistas) deve dis-
orientador. Mais tarde acenderia várias críticas tanto ao cutir os rumos da ciência baseada em critérios pragmáticos
positivismo lógico quanto ao racionalismo popperiano, en- e hedonistas. Longe, no entanto, de ser um repúdio à prática
quanto lecionava em Berkeley, na Califórnia e no Instituto científica, é por apreço à ciência que Feyerabend sustenta as-
Federal de Tecnologia (ETH) de Zurich. No teatro, foi as- pectos epistemológicos normativos: se queremos uma ciên-
sistente de Bertolt Brecht. cia cada vez mais capaz de descrever a realidade, é preciso
considerar alternativas, é necessário um espaço democrático
para discutir os objetivos e critérios da pesquisa. Sobretudo é
imprescindível liberdade para desenvolver novidades supos-
tamente incoerentes com o conhecimento já aceito.
Referências bibliográficas
Em julho de 1999, ficou decidido que haveria mais livre do candidato, geralmente uma questão
prova de Filosofia no vestibular da UFMG, uma de- polêmica e de difícil abordagem.
cisão ousada na época. Lembro-me de que não houve Em todos os tipos de questão a capacidade de
um grande impacto nas escolas e nos cursinhos da ci- argumentação do vestibulando é um item avaliado.
dade. A maioria dos jornais não se interessou pela dis- A organização do raciocínio, a apresentação clara das
cussão da introdução de filosofia nas provas da UFMG ideias e o conhecimento da natureza do pensamento
(Direito e Filosofia, inicialmente). Hoje são nove os cur- filosófico são imprescindíveis para a realização de uma
sos que exigem filosofia no exame do vestibular: Ciên- boa prova.
cias Sociais; Filosofia; Artes Visuais; Cinema de Ani- Os erros mais comuns nas respostas dos alu-
mação e Artes Digitais; Comunicação Social; Ciências nos nas avaliações são: respostas sem argumentos ou
do Estado; Direito; Conservação e Restauração de Bens argumentos sem coerência, falta de consistência das
Culturais Móveis; e Design de Moda. A preparação ideias apresentadas, desconhecimento do texto in-
para a prova de filosofia, no início desprezada, tomou dicado para leitura, dificuldade em interpretar ade-
um rumo diferente atualmente, foi levada mais a sério, quadamente o enunciado ou o texto. Recomendamos
apesar de não ser pelos motivos desejados – uma edu- que o candidato, para fazer uma boa prova, evite dar
cação em filosofia –, mas para simplesmente passar no opiniões ou usar termos disposicionais (muito difícil,
vestibular, infelizmente. intolerável, fácil, etc.), não use referências não filosó-
A prova de Filosofia do Vestibular da UFMG ficas, trabalhe o problema filosófico envolvido e não
ocorre então desde 2000. De um modo geral, na prova apenas a interpretação do texto, elabore um texto com
encontramos três tipos de questões: questões sobre os a máxima clareza, esquematize sua resposta e só inicie
livros, questões sobre o programa e questões livres. Se- a redação quando estiver com o raciocínio completo.
gundo a Comissão de Vestibular, não há necessidade Fizemos uma análise das provas de filosofia
na elaboração das respostas do uso de termos técnicos da UFMG e apresentaremos a seguir alguns dados es-
ou referências à História da Filosofia. tatísticos que podem ajudar a traçar um perfil dessas
Nas questões sobre os livros escolhidos, ava- avaliações.
lia-se a capacidade de compreensão e interpretação
de textos filosóficos. Um pequeno trecho dos textos Temas mais explorados 41
indicados para leitura é reproduzido na prova. Exige-
se nessas questões identificar uma posição filosófica,
explicar uma noção presente no trecho, justificar as
razões de uma determinada afirmativa ou desenvolver
uma determinada ideia, assim como estabelecer rela-
ções entre as ideias apresentadas no trecho selecionado
e outras ideias presentes na mesma obra do autor. O
trecho reproduzido na prova fornece alguns elemen-
tos para a elaboração de uma resposta; o conhecimento
prévio dos textos em sua íntegra é, porém, necessário
para uma resposta mais precisa e de qualidade.
Nas questões sobre o programa, explora-se um
ponto específico do conteúdo indicado. Geralmente o
candidato conta com um suporte textual com base no
tema que ele deve desenvolver, e que lhe dá elementos
para a construção de sua resposta; entretanto, uma res-
posta de bom nível requer preparação do candidato.
Requer domínio de conteúdo.
O terceiro tipo de questão (questão livre) exige Legenda:
uma tomada de posição do candidato sobre um tema IF: Introdução à filosofia ANT: Antropologia
ou problema filosófico. Nesse caso, para que o candi- ETI: Ética POL: Política
dato possa fazer o que lhe é pedido, é preciso que ele LO: Lógica EPI: Epistemologia
identifique, primeiramente, o problema filosófico pro- EST: Estética
posto. Esse tipo de questão abre-se para uma reflexão
As competências
Essa seção é uma oportunidade para você PRECONCEITO MUITO PRA FRENTE
avaliar seu conhecimento. Pretendemos, em cada ed-
ição, propor uma questão discursiva dos vários ves- Toda hora eu vejo, em jornais, revistas, televisão, e
tibulares e concursos realizados no Brasil. Envie sua na rua, pessoas cada vez mais “livres” de preconceitos e ...
resposta e, no prazo de sete dias, enviaremos nossa E no entanto todas estão convencidas de que a Terra gira em
correção e uma nota média da equipe de 0 a 10. torno do Sol. Por quê?
Pergunte a elas e elas responderão: “Ué, Galileu
provou isso há muito tempo”. Mas provou pra quem? Pode
(UFMG-2009) LEIA o texto ao lado: ser que tenha provado pros cientistas. O homem comum e
mesmo nós, os pejorativamente chamados intelectuais, aceit-
amos e pronto. Sem pensar. “Preconceituosamente.” Como
antes de Galileu aceitávamos que o Sol girava em torno da
Terra. Mas, entre Galileu – de cujas “provas nunca tomamos
conhecimento, muito menos sabemos dizer quais são – e a
realidade, que literalmente salta (gira) a nossos olhos, temos
que acreditar é em nossos olhos. Nossos olhos vêem, com ab-
soluta certeza, que o Sol nasce ali (a leste, pra mim no Ar-
poador, no momento em que escrevo às 5h43 do dia) e morre
do outro lado (a oeste, pra mim na Pedra da Gávea, às 7 h
53 da noite), girando em torno de uma terra absolutamente
parada (terremotos à parte), sobre a qual caminhamos sem
sentir o menor movimento. De agora em diante, respondam
com convicção: o Sol gira em torno da Terra e não quero mais
papo sobre isso.
O Millôr provou.
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xistir, pois tudo que ele é está expresso no que se diz
ESTRUTURA ESQUEMÁTICA DO DIÁLOGO
dele. Impossibilita-se o “vir a ser”.
1. Prólogo – (271a – 275c)
Diálogo inicial entre Críton e Sócrates
2. Desenvolvimento – (275a – 304b) Da impossibilidade da contradição
2.1. Diálogo com os sofistas, presentes na cena: Eutide- (285e – 286b)
mo e Dionisodoro, os sofistas estrangeiros, Sócrates e o
jovem Clínias. (275c – 277c) E então? Disse ele (Dionisodoro). Há enunciado para
cada uma das coisas que são? – Perfeitamente. - <Que
2.2. Primeira exortação socrática, presentes na cena:
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objetivo do diálogo não é, simplesmente, tornar clara a eles ensinavam a defesa do interesse particular por meio do
uso da palavra. O saber que eles transmitiam não tinha por
diferença entre dialética filosófica e erística, através da
fim o conhecimento.
solução de falácias lógicas, mas encenar as suas dife- 3 Dramaturgo Grego que viveu entre 447 e 385 a.C.
renças, de modo a mobilizar o discernimento tanto de 4 Comédia escrita por Aristófanes em 423 a.C.
Críton quanto do leitor, e não simplesmente oferecer 5 Dialética é um método de diálogo que, a rigor, pauta-se por
de modo não crítico uma série de conteúdos positivos, dar e receber razões, ou seja, contraposição de argumentos e
totalmente explicitados e inequívocos”(Marques, 2003, ideias com o fim de fazer surgir o conhecimento. A dialética
p.11). Dialética e erística têm semelhanças, empregam, socrática se fazia por meio de interrogatórios, Sócrates, que
essencialmente, o uso da palavra e da argumentação, dizia nada saber, e por meio de um constante interrogatório
a diferença se faz notar no confronto da alteridade. pretendia eliminar do espírito ideias falsas ou preconcebidas.
Passo a passo, ao lado do interlocutor, Sócrates construía o
Sutilmente Platão mostra que a erística realiza o que
conceito que pretendia definir.
promete, vence discursos, cala o interlocutor, contudo, 6 O significado de maiêutica é “dar a luz ao conhecimento”.
utilizando-se de falácias que conduzem ao erro de Pela maiêutica Sócrates auxiliava o interlocutor a encontrar
raciocínio, não progride na busca pelo conhecimento. a resposta por meio de um trabalho de reflexão. Sócrates se
A dialética prepara o solo para plantar um conhe- propunha a ajudar as pessoas a aceder à compreensão cor-
cimento, pois abre espaço para a aporia14, que, como reta.
diz Marques, torna possível a continuidade do diálo- 7 Falácia é um argumento que não tem sustentação lógica. O
go (Marques, 2003, p. 14). É encenada nesse diálogo argumento falacioso é inválido ou incorreto.
platônico a diferença entre erística e dialética, Sócrates 8 O pré-socrático Parmênides de Eleia estabeleceu sua filoso-
fia sob duas vias: a via da verdade, que se ocupa do que é e
foi silenciado pelos jogos de palavras dos sofistas, pois
não pode não ser e o que não é e não pode vir a ser. Em sín-
é isso que a erística consegue fazer, entretanto, foi nos tese, não se pode pensar o não ser, o não ser é inapreensível,
momentos entre Clínias e o filósofo que o conhecimen- indizível. A segunda via é a via da aparência, a mudança é
to acerca de algo se desenvolveu. Fica explicitado o causada por um erro de percepção provocado pela falibili-
modelo socrático, que se pauta pela busca da verdade dade humana, toda mudança é simplesmente aparente.
e do conhecimento, não reduzindo a virtude à arte de 9 Escola eleática é o nome atribuído à corrente filosófica se-
saber calar um interlocutor. guida por Parmênides de Eleia.
Questões - Eutidemo
A partir do trecho acima, REDIJA um texto argumentativo explorando a ideia de que a Dialética pode ser uma
arte superior às outras.
02) Sob o prisma da leitura de Eutidemo, REDIJA um texto respondendo por que Queredemo, pai de Pátrocles, é
pai, enquanto Sofronisco, pai de Sócrates, não é pai.
...Queredemo é pai, Sofronisco, sendo outro que pai, não é pai, de sorte que tu, Sócrates, não tiveste um pai (298b).
04) Os irmãos Dionisodoro e Eutidemos foram a Atenas propondo ensinar a virtude a quem quisesse aprender.
Entretanto, disseram não existir ignorância e nem homens ignorantes. Sócrates, então, expôs a contradição entre
o que os sofistas se dispõem a fazer e o que eles falaram. A partir da leitura do diálogo e de conhecimentos filosó-
ficos, REDIJA um texto explicando por que houve tal contradição entre a fala e a prática dos sofistas.
50 EXPLIQUE a contradição em dizer que Sócrates é alguém que sabe e, ao mesmo tempo, alguém que não sabe.
[Ousa-te ensinar]
Nenhum tema mais adequado para constituir- de modo algum, que o ensinante se aventure a ensinar
se em objeto desta primeira carta a quem ousa ensinar sem competência para fazê-lo. Não o autoriza a ensi-
do que a significação crítica desse ato, assim como a nar o que não sabe. A responsabilidade ética, política e
significação igualmente crítica de aprender. É que não profissional do ensinante lhe coloca o dever de se pre-
existe ensinar sem aprender e com isto eu quero dizer parar, de se capacitar, de se formar antes mesmo de
mais do que diria se dissesse que o ato de ensinar e- iniciar sua atividade docente. Esta atividade exige que
xige a existência de quem ensina e de quem aprende. sua preparação, sua capacitação, sua formação se tor-
Quero dizer que ensinar e aprender se vão dando de nem processos permanentes. Sua experiência docente,
tal maneira que quem ensina aprende, de um lado, se bem percebida e bem vivida, vai deixando claro que
porque reconhece um conhecimento antes aprendido ela requer uma formação permanente do ensinante.
e, de outro, porque, observado a maneira como a cu- Formação que se funda na análise crítica de sua práti-
riosidade do aluno aprendiz trabalha para apreender o ca.
ensinando-se, sem o que não o aprende, o ensinante se Partamos da experiência de aprender, de
ajuda a descobrir incertezas, acertos, equívocos. conhecer, por parte de quem se prepara para a tarefa
O aprendizado do ensinante ao ensinar não se docente, que envolve necessariamente estudar. Obvia-
dá necessariamente através mente, minha intenção não é
da retificação que o aprendiz escrever prescrições que de-
lhe faça de erros cometidos. O vam ser rigorosamente segui-
aprendizado do ensinante ao das, o que significaria uma
ensinar se verifica na medida chocante contradição com
em que o ensinante, humilde, tudo o que falei até agora.
aberto, se ache permanente- Pelo contrário, o que me in-
mente disponível a repensar
o pensado, rever-se em suas
teressa aqui, de acordo com o
espírito mesmo deste livro, é
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posições; em que procura en- desafiar seus leitores e leitoras
volver-se com a curiosidade em torno de certos pontos ou
dos alunos e dos diferentes aspectos, insistindo em que há
caminhos e veredas, que ela sempre algo diferente a fazer
os faz percorrer. Alguns dess- na nossa cotidianidade edu-
es caminhos e algumas dessas cativa, quer dela participemos
veredas, que a curiosidade às como aprendizes, e portanto
vezes quase virgem dos alu- ensinantes, ou como ensin-
nos percorre, estão grávidas antes e, por isso, aprendizes
de sugestões, de perguntas também.
que não foram percebidas an-
tes pelo ensinante. Mas agora,
ao ensinar, não como um burocrata da mente, mas re-
construindo os caminhos de sua curiosidade — razão FREIRE, Paulo. Cartas a quem ousa ensinar. In: Profes-
por que seu corpo consciente, sensível, emocionado, se sora sim, tia não. Editora Olho D’Água, 10ª ed., p. 27-28.
abre às adivinhações dos alunos, à sua ingenuidade e
à sua criatividade — o ensinante que assim atua tem,
no seu ensinar, um momento rico de seu aprender. O P
ensinante aprende primeiro a ensinar mas aprende a
ensinar ao ensinar algo que é reaprendido por estar
sendo ensinado.
O fato, porém, de que ensinar ensina o ensin-
ante a ensinar um certo conteúdo não deve significar,
Pense
REVISTA MINEIRA DE
FILOSOFIA E CULTUR
A
ISSN 2238-9903
A revista Pense é aberta à colaboração de todos
Conselho editorial os estudiosos de filosofia. Os textos devem ser envia-
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Jean George Farias
avaliará previamente a adequação destes à linha edi-
Marcelo Pimenta Marques
Paulo Margutti torial. Avaliados positivamente nesta etapa, os textos
Robson Jorge de Araújo serão encaminhados a pareceristas, membros do Con-
Rodrigo Marcos de Jesus selho Consultivo ou especialistas ad hoc, para aprecia-
Sílvia Contaldo ção. Uma vez aprovados, serão publicados no próximo
número da revista com espaço disponível.
Secretária Exigências referentes às colaborações:
Rayane Batista de Araújo
1. os temas tratados deverão ser de natureza filosófi-
Revisão ca ou apresentar estreita vinculação com a filosofia, po-
Giovanna Spotorno dendo ser de natureza crítica ou informativa (divulga-
Maria Amélia Nascimento ção de pesquisas ou quaisquer assuntos considerados
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1.000 exemplares prazo lhes será concedido;
3. os originais deverão ser digitados e enviados por
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constar a bibliografia consultada. As citações e referên-
Contracapa:
Portrait of a Scholar, 1620. cias deverão obedecer às normas da ABNT;
Gemäldegalerie, Dresden 4. o artigo deve conter o vínculo institucional do au-
tor e, quando necessário, a indicação da entidade patro-
Autor: Domenico Fetti (1589-1623)
cinadora do trabalho.
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REVISTA PENSE | Nº 01 | Setembro/2012
P e n s e
REVISTA MIN
EIRA DE FILOSOFIA E CU
LTURA