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Pe n s e REV ISTA MINEIR

A DE FILOSO FIA E CULTU


RA

Número 1 | ISSN: 2238-9903


Setembro/2012 | R$8,00 • BRASIL

Filosofia na Educação
A filosofia e a filosofia da educação no
pensamento de Anísio Teixeira

Literatura Cultura e debates Filosofia no vestibular da


Monteiro Lobato e Edgar Morin, Filosofia Pop, UFMG, Análise da obra Eutidemo
por Angelina
REVISTA PENSEMaria por Charles Feitosa
| Nº 01 | Setembro/2012 de Platão, por Jean Farias
Apresentação Sumário

Apresentamos ao público uma nova revista de filosofia: 01 Pense I


Pense, Revista Mineira de Filosofia e Cultura.
Nosso projeto é elaborar uma revista de filosofia e cul-
tura, com preocupações pedagógicas e com o objetivo de
02 Filosofia na História
dar suporte didático e orientação filosófico-pedagógica aos O mundo do mito, por Marco Antônio B. de Lellis
professores e aos alunos, sem perder de vista o pensamento
filosófico brasileiro. 05 Educação
Acreditamos que não temos disponível uma revista com A filosofia e a filosofia da educação no pensamento de
esse perfil, um recurso predominantemente voltado para o Anísio Teixeira, por Sabina Maura Silva
ensino de filosofia e a filosofia no Brasil. As revistas atu-
almente no mercado apresentam pouca contribuição à re-
flexão e à tarefa formativa em sala de aula.
11 Cultura e debates
Nossa equipe oferecerá um material variado para o es- Filosofia Pop, por Charles Feitosa
tudo de filosofia: textos clássicos para reflexão; comen-
tários de obras de arte e de livros; análises de filmes e in- 16 Filosofia no Brasil
dicações de leituras. Além disso, faremos a divulgação da Aspectos filosóficos e pedagógicos do pensamento de
produção filosófica acadêmica, relatos de experiências em Rubem Alves, por Antônio Vidal Nunes
sala de aula, entrevistas com professores com reconhecida
experiência; discutiremos questões de concursos e vestibu-
lares, ofereceremos resumos de obras filosóficas e divulga-
21 Para pensar
remos eventos da área. Meditação sobre a obediência e a liberdade, por Si-
Em nossas experiências em sala de aula e em debates mone Weil
sobre o ensino de filosofia, identificamos um certo descaso
pelo ensino de filosofia. As espessas camadas da hipocrisia 25 Literatura
educacional atual, de um ensino doutrinador e de resul- Monteiro Lobato e Edgar Morin: a excelência da li-
tados imediatos, têm prejudicado a formação filosófica e a teratura como veículo dos Sete Saberes, por Ange-
essência da natureza da filosofia. Muitas escolas ensinam
lina Maria Ferreira de Castro
tudo, exceto o aprender a pensar, incorrendo numa espécie
de lobotomia educacional, reduzindo a complexidade. Pro-
duzindo receitas, tendem a reduzir o complexo ao simples, 31 Livros
passam a ser reducionistas, separam aquilo que está ligado Livros didáticos de filosofia indicados pelo MEC
e unificam aquilo que é múltiplo. Somos unânimes em
declarar que está na hora de mudar e valorizar a arte de 32 Artes
pensar. Nossa orientação editorial será esta: Pense. Pense Abaporu, por Carlos Antônio Simões
para questionar os valores (estéticos, políticos, econômicos,
morais, etc.), pense para se desprender do óbvio, pense para
aceitar a dúvida como parte constituinte de nossa vida,
33 Cinema
pense para melhor se conhecer e a seu mundo. Aproximações estéticas ao cinema de Andrei Tar-
Pense, buscará esse caminho. O conteúdo selecionado kovski, por Fernando Rey Puente
deverá estimular o pensamento das questões mais rele-
vantes, os debates serão estimulados ao serem propostas 40 Produção acadêmica
situações merecedoras de maior atenção social, o rigor A mudança nas ciências segundo Paul Feyerabend,
argumentativo dos textos será valorizado e priorizado, as por Tiago Luís Oliveira
informações, os recursos e as alternativas educacionais
preencherão o espaço necessário para orientar professores
e estudantes de filosofia. Acreditamos que há uma neces-
41 Sala de aula
sidade de aprimorar o que seja um debate filosófico e não Filosofia no vestibular da UFMG, por Robson
confundi-lo com o simples confronto de opiniões. Desse Araújo, e A natureza da filosofia, por Eric Renan
modo, haverá na nossa revista um espaço especial para o
pensamento brasileiro, a Filosofia Brasileira. O retorno a- 44 Avalie seu conhecimento
dequado da filosofia às nossas escolas depende disso.

2 Assim, nesse início de nossa publicação, é o que temos


para apresentar e pedir: abra as portas e o espírito para a
45 Resumo de obras
nossa revista. Aguardaremos com respeito as suas críticas Eutidemo de Platão - Resumo e análise da obra, por
e as suas sugestões, sabedores de que esse caminho só será Jean Farias
percorrido se juntos concentrarmos nossos esforços em via-
bilizar projetos dessa natureza. 51 Pense II
Equipe Pense
52 Eventos
REVISTA PENSE | Nº 01 | Setembro/2012
Capa:
The Acropolis at Athens, 1846
Neue Pinakothek, Munich
Pense
Autor: Leon von Klenze

[A Sabedoria]
A filosofia, essa, ensina a agir, não a falar, exige de cada qual que viva segundo as suas
leis, de modo que a vida não contradiga as palavras, nem sequer se contradiga a si mesma; importa
que todas as nossas ações sejam do mesmo teor. O maior dever — e também o melhor sintoma —
da sabedoria é a concordância entre as palavras e os atos; o sábio será em todas as circunstâncias
plenamente igual a si próprio. “Mas quem será capaz de atingir um tal nível?” Poucos, decerto,
mas, mesmo assim, alguns! Não escondo que a empresa é difícil; nem te digo que o sábio avançará
sempre ao mesmo ritmo, embora o rumo seja sempre o mesmo. Autoanalisa-te, portanto, e verifica
se há discordância entre a tua roupa e a tua casa, se és pródigo para contigo, mas mesquinho para
com os teus, se é frugal a tua ceia mas luxuosa a tua habitação. Adota de uma vez por todas uma
regra de conduta na vida e faz com que toda a tua vida se conforme com essa regra. Há pessoas que
se retraem em casa e que se expandem sem inibições fora dela; semelhante variedade de atitudes é
viciosa, é indício de um espírito hesitante que ainda não achou o seu ritmo próprio. Posso explicar-
te, aliás, donde provém esta inconstância, esta divergência entre os propósitos e as ações. A causa
é que ninguém fixa nitidamente aquilo que quer nem, se o fez, permanece fiel ao seu propósito,
antes pretende ir mais além; e não se trata apenas de mudar de objetivo, acaba-se por voltar atrás
e de novo cair na situação anteriormente rejeitada e condenada. Em suma, deixando as antigas
definições de sabedoria e abarcando numa fórmula todo o ciclo da vida humana, acho que seria
bastante dizer isto: a sabedoria consiste em querer, e em não querer, sempre a mesma coisa. Não
1
é necessário acrescentar, como condição, que devemos querer o que é justo, porque só é possível
querer sempre a mesma coisa se essa coisa for justa. Ora sucede que as pessoas ignoram o que que-
rem exceto no próprio momento do querer; ninguém determina de uma vez por todas o que deve
querer ou não querer; todos os dias se muda de opinião, mudança
por vezes diametralmente oposta; para muitos, em suma, a vida
não passa de um jogo! Quanto a ti, mantém-te fiel ao propósito
que adotaste, e assim conseguirás talvez atingir o ponto máximo,
ou pelo menos um ponto tal que apenas tu compreenderás não ser
ainda o máximo.

Sêneca, Cartas a Lucílio II.20.2-6


Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa: 2009.
Trad.: J. A. Segurado e Campos.

Lúcio Aneu Sêneca


Século I

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O mundo do mito:
a origem e o significado da
palavra mitologia
por Marco Antônio Barbosa de Lellis*

A ideia do destino implacável: é contraditório que aquilo


que aconteceu ontem não tenha acontecido, que aquilo Muito antes que as condições geográficas contribuam
que acontece hoje não aconteça; é tão contraditório que para que as Cidades-Estados venham a se desenvolver
aquilo que acontecer possa não chegar a acontecer.1 como unidades autônomas, já são motivos para que,
desde suas raízes micênicas, a cultura grega se constitua
voltada para o mar: via de comunicação e de comércio
Por volta de 1600 a.C., a Hélade (Grécia antiga)
com outros povos, de intercâmbio e de confronto com
passou a ser ocupada por povos que o poeta Homero
outras civilizações e de construções imaginárias.4
[séc. IX a.C.], mais tarde, denominou de Aqueus, prove-
nientes de Acaia, região ao norte do Peloponeso. Estes
povos fundaram importantes núcleos urbanos, como: Os homens que habitavam esse espaço senti-
Micenas, Tirinto e Argos. Estabeleceu-se um poder ram necessidade de tentar explicar os fatos naturais e
aristocrático (aristokratía: governo dos “melhores”) que sobrenaturais que aconteciam no universo transcen-
mantinham, politicamente, uma ordem socioeconômi- dente e, principalmente, no mundo em que eles viviam
ca, religiosa e cultural. Devido à predominância de para se tranquilizarem social e religiosamente. Porém,
Micenas, que saíra como a grande vencedora nas lu- essas explicações eram motivadas pela argumentação
tas entre essas comunidades que guerreavam entre espontânea, fabulosa e não tinham quaisquer intuitos
si, tende-se a nomear este estágio da civilização grega teórico-racionais. Narrativas construídas de
como Período Micênico. Entretanto, por volta do ano
de 1300 a.C., vários outros povos entraram em conflito modo ingênuo, fantasioso, anterior a toda a reflexão e
e quase toda a civilização micênica fora destruída: a não crítico de estabelecer algumas verdades que não só
explicavam parte dos fenômenos naturais ou mesmo a
cultura e a política se retraíram, o comércio e a escrita
construção cultural, mas que davam, também, as formas
desapareceram, ou seja, vivia-se no isolamento das al-
da ação humana.5
deias praticando formas de vida tribais. Por isso, esse
período, que vai até o início do século VIII a.C., é co-
nhecido como Idade das trevas.2 Na chamada Grécia homérica, que correspon-
Um desses povos guerreadores, os Dórios, vin- de aos séculos IX e VIII a.C., os homens, com medo e
dos também do norte da Hélade, séculos depois das à mercê de todos os acontecimentos assustadores da
guerras troianas, se estabeleceram naquelas regiões e natureza, criam os mitos para se apaziguarem e estabe-
desenvolveram, posteriormente, às circunvizinhan- lecerem algum sentido às suas vidas. O que é assusta-
ças do mar Egeu, uma economia agrícola, incutindo dor causa impressão de estranheza. As manifestações
o nascimento de um novo éthos3, isto é, de um novo dos fenômenos naturais e sobrenaturais causavam,
costume, hábito, tradição. Essa nova realidade deu ori- naqueles homens, inconformidade, exatamente por
gem às Póleis (Cidades-Estado independentes), muito serem um mysterium.
frequentemente rivais e cada qual com seus respec- Hoje ainda celebramos como principais refe-
tivos regimes políticos. A partir do século VIII, com a rências para mitologia grega as obras de Homero6 e
reestruturação de um modelo de vida urbana desen- Hesíodo, este do século VIII a.C. e aquele do IX a.C.
volveram-se as atividades comerciais, o que exigiu o Embora seja controversa a existência do poeta, atribui-
ressurgimento da escrita de um novo sistema alfabé- se a Homero a autoria de dois poemas épicos: Ilíada,
tico. A sociedade torna-se mais complexa. Ela deixa de que narra cerca de cinquenta dias da guerra de Troia
ser um aglomerado de tribos segregadas para se esta- – especula-se que a peleja tenha ocorrido entre 1260 a
belecer como unidade política e religiosa: a Civilização 1250 a.C. (Troia, em grego, Ílion) e a Odisseia, que re-
Helênica. As póleis passam a ser uma unificação orgâni- lata o retorno de Odisseu (Odisseus é o nome grego
2 ca da pluralidade dos povos. Essa unidade resultou
da união dessas diversas culturas, trazidas por eles, e
de Ulisses) à sua terra natal, Ítaca, após a guerra de
Troia. Das duas epopeias, a Ilíada focaliza o poder de
misturadas com as outras antigas. As Cidades-Estado, expansão de uma etnia: evoca o estabelecimento dos
cada vez mais complexas, têm seus centros de atenções gregos no litoral da Ásia Menor a partir da guerra de
nas ágoras (praça pública, lugar de reunião). É nessa Troia, simbolizando suas forças conquistadoras. Um
espécie de assembleia que acontecem as discussões so- dos principais enfoques desta batalha é a descrição
bre os rumos das vidas política e social, vale dizer, das de combates particulares que termina com o triunfo
transações comerciais e da vida boa e feliz na cidade. de um herói famoso sobre seu poderoso adversário,

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isto é, a aristeia. É esta que pressupõe a noção de areté Nas epopeias homéricas, mesmo quando os
(excelência, virtude, capacidade, mérito, habilidade, deuses representam forças da natureza, eles são re-
qualidades morais), em Homero. É o mais alto ideal do vestidos pela forma humana. Esse antropomorfismo
heroísmo guerreiro aliado às condutas cavalheirescas apazigua os temores humanos relativos às forças obs-
e cortesãs. Essas virtudes designam as excelências dos curas e incontroláveis naturais.
nobres, os aristoi, cujas forças morais e espirituais se A Hesíodo atribui-se uma literatura grega das
associam à honra e ao dever.7 mais ricas em teogonia e cosmogonia11, cujos protóti-
pos paradigmáticos são Teogonia e O trabalho e os dias.
A Ilíada celebra a glória da maior aristeia da guerra de Suas obras floresceram logo após Homero e tinham
Troia, o triunfo de Aquiles sobre o poderoso Heitor, em caráter religioso, didático e moral. O trabalho e os dias
que a tragédia da grandeza heroica votada à morte se defende a necessidade da labuta árdua como condição
mistura com a submissão do homem ao destino e às ne-
humana, isto é, a luta silenciosa dos trabalhadores
cessidades da sua própria ação.8 camponeses, na Beócia, com a terra dura. Ao morrer,
o pai deixou a Hesíodo e a seu irmão Perses as terras
A segunda epopeia narra o retorno de Odisseu que, devido ao clima rude da região, continuaram com
para Ítaca. É a aventura do navegador que se afastou esforço a cultivar. Na partilha dos bens, Hesíodo con-
para longe de sua terra natal [caminha em direção à siderou-se lesado pelo irmão, que teria comprado os
Troia] deixando esposa e filho recém-nascido. E luta juízes venais (Cunha, 2005, p. 14). É essa polêmica com
para voltar para casa. Perses que serve de premissa para Os trabalhos e os dias.
A Teogonia narra a criação, a partir do Caos, a origem
A tempestade, a escala forçada, e a formação do Universo em sua
os piratas o retêm longe da pátria totalidade, dos deuses e das forças
durante tanto tempo que o julgam naturais. Eles surgem ou por seg-
‘morto’. No lar, a esposa porta- regação natural ou pela intervenção
se com dignidade; mas, por um
de Eros (deus do amor, da união, da
lado, sua formosura e, por outro,
os bens familiares atraem a cobiça afinidade universal).
dos pretendentes; o filho é ainda
demasiado jovem para afastá-los. A Teogonia de Hesíodo narra o
O marido regressa, quando já se nascimento de todos os deuses; e dado
tinha desvanecido a esperança que alguns deuses coincidem com par-
de sua volta, e reaparece em casa tes do universo e com os fenômenos do
como vagabundo desconhecido. cosmo, além de teogonia ela se torna
Pode-se imaginar, e a vida o também cosmogonia, ou seja, a explica-
tem dado, mais de um desfecho ção fantástica da gênese do universo e
para esse tema, tão antigo e tão dos fenômenos cósmicos.12
frequentemente retomado. O
desfecho apresentado pela Odis-
seia será cruel: o desconhecido, Com efeito, a narrativa teo- 3
insultado em sua casa pelos que gônica expressa uma significação
requestam a esposa, revela sua simbólica e liga-se à cosmogonia, já
identidade e chacina os rivais.9 que faz referência a deuses encar-
nadores das forças da natureza e/ou dos aspectos da
A Ilíada e a Odisseia são relatos magníficos da condição humana.
submissão dos homens frente aos poderes divinos. A Contudo, o que foram os Mitos?
intervenção benéfica ou maléfica dos deuses nas ações Mitos, em grego, significa palavra, o que pode
e condutas humanas, por sinal muito frequente, origi- ser narrado, o dito. Os mitos foram, então, tentativas
na a ordem e a desordem naturais. A presença desses de explicar os principais fatos da vida, da realidade
poderes divinos se desenrola tanto na luta entre gregos humana, por meio de conteúdos sobrenaturais e imag-
e troianos quanto nas aventuras marítimas de Odisseu. inosos. Eles eram narrados de forma alegórica, fan-
A relação entre homens e deuses é próxima, e as ações tástica, poética pela tradição popular grega e transmiti-
piedosas ou não influenciam no destino dos mortais. dos, oralmente, pelos cantores ambulantes, chamados
Após Odisseu ser libertado do palácio da deusa Calip- aedos e rapsodos, que os recitavam de cor nas ágoras.
so, ele faz uma súplica aos deuses. No entanto, era difícil identificar a autoria dos mitos
porque a escrita havia se perdido. Para as autoras de
Escutai-me, Senhor, quem quer que seja! Fugido das on- Filosofando, o mito é uma intuição compreensiva da re-
das e das ameaças de Posídon, a ti venho, a quem tantas alidade. É
vezes dirigi minhas preces. É merecedor de ser res-peit-
ado, até pelos deuses imortais, o náufrago errante que se uma forma espontânea de o homem se situar no mundo.
aproxima como hoje eu venho suplicar ao teu coração e As raízes do mito não se acham nas explicações exclu-
abraçar teus joelhos, após tanto sofrimento. Senhor, tem sivamente racionais, mas na realidade vivida, portanto,
compaixão de mim, que a ti recorro, suplicante.10 pré-reflexiva, das emoções e da afetividade.13

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Conclui-se, então, que o Mito:
1. é desprovido de problematização; Referências bibliográficas
2. funda-se no desejo de narrar e retratar os mundos,
cósmico e humano, por meio da imaginação, da magia ANDRADE, Mônica V; COSCARELLI, Tânia C. Mito. Belo
e da linguagem simbólica; Horizonte: Núcleo de filosofia Sônia Viegas, 1994.
3. é uma verdade que não obedece à lógica, à teoria ou COMMELIN, P. Mitologia grega e romana. Trad. Eduardo
Brandão. São Paulo: Martins fontes, 2000, p. VII.
à ciência;
CUNHA, Elil S.; FLORIDO, Janice. Grandes filósofos: biblio-
4. nasce para apaziguar o homem e afugentar seus me- grafia e obras. São Paulo: Nova cultural, 2005, p. 7. [Col. Os
dos e inseguranças que permeavam suas vidas, ou seja, pensadores].
o mito acomoda o homem frente a um mundo miste- ARANHA, M. A., MARTINS M. H. Temas de filosofia. São
rioso e assustador; Paulo: Moderna, 1995, p. 62.
5. é a primeira fala sobre o mundo, uma primeira atri- HOMERO. Odisseia. Trad. Antônio Pinto de Carvalho. São
buição de sentido ao mundo; Paulo: Nova cultural, 1993.
6. […] serve de instância normativa para a qual apela JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. Trad.
o orador14; Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 61-62.
REALE, Giovanni. História da filosofia antiga, vol. 1. Trad.
7. é dogmático, pois é uma verdade que não precisa ser
Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 1993, p. 41.
provada nem contestada, isto é, a adesão do mito é feita S/A. História da filosofia. São Paulo: Nova cultural, 1999, p.
pela fé e crença. No entanto, isso não quer dizer que a 15-16. [Col. Os pensadores].
Mitologia deva ser equiparada à Religião. As verdades SANTOS, Eberth.; MOURA, Josana de. Minimanual de pes-
do mito se baseiam em verdades consensuais de uma quisa: filosofia e literatura. Uberlândia: Claranto, 2004, p. 348.
comunidade. As verdades religiosas se baseiam numa
revelação divina, proferida por um Ser Supremo abso- Notas
luto, criador de tudo. Segundo P. Commelin, a Mito- 1. VOLTAIRE. Dicionário filosófico. Trad. Bruno da Ponte e João Lopes
logia é, evidentemente, uma série de mentiras; porém, Alves. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p.155. [Col. Os pensadores].
essas mentiras foram, durante longos séculos, motivo Noção de pré-determinismo: não somos livres em sermos livres, pois
quanto mais se tenta desviar da submissão do destino [τύχη – tíkhe:
de crença. Elas tiveram, no espírito dos gregos e dos sorte, fortuna], tanto menos isso acontece. Se havia, a priori, um
latinos, o valor de dogmas e realidades.15 princípio que já pré-determinara a liberdade humana; consequent-
emente, o homem não poderia ser, efetivamente, livre.
Consequentemente, o que significa Mitologia? 2. S/A. História da filosofia. São Paulo: Nova cultural, 1999, p. 15-16.
[Col. Os pensadores].
Mitologia é o conjunto de mitos de um povo, 3. Sabe-se que os Dórios [e os Áticos] instituíram, depois, “uma so-
de uma comunidade específica. É a história fantasiosa, ciedade aristocrática e consolidaram o que seria a civilização grega
metafórica dos deuses, semideuses, dos homens, da ou helênica propriamente dita”. [Cf. História da filosofia. São Paulo:
sociedade e suas relações mútuas, no intuito de nar- Nova cultural, 1999, p. 19. (Col. Os pensadores)].
4. Cunha, 2005, p. 7
rar a origem e a formação do universo e dos homens. 5. Aranha, 1995, p. 62.
Portanto, Mitologia é a reunião dos mitos próprios de 6. Diz-se que os poemas de Homero chegaram a Atenas no final do
uma respectiva etnia ou de uma civilização. Refere-se, século VI a.C. “Conta Platão [427-347 a.C.] que era opinião geral no
segundo o prof. Marcelo Pimenta Marques, “ao con- seu tempo ter sido Homero o educador de toda a Grécia”. Ainda:
“[…] não deixa de ser evidente que Homero, e com ele todos os
junto de mitos de um grupo social específico, práticas grandes poetas da Grécia, deve ser considerado, não como simples
narrativas, enunciados míticos, relatos, transmitidos objeto da história formal da literatura, mas como o primeiro e maior
ao longo de uma tradição”.16 criador e modelador da humanidade grega” (Jaeger, 1995, p. 61-62).
7. “Os aristoi – os possuidores da areté – são uma minoria que se eleva
acima da multidão de homens comuns; se são dotados de virtudes
O homem mais divino é aquele que desenvolve de modo legadas pelos seus ancestrais, por outro lado precisam dar testemu-
mais vigoroso as suas forças humanas; e o cumprimento nho de sua excelência, manifestando as mesmas qualidades – valen-
do seu dever religioso consiste essencialmente nisso: que tia, força, habilidade – que caracterizam seus antepassados”(Cunha,
o homem faça, em honra da divindade, o que é conforme 2005, p. 11).
com a sua natureza.17 8. Jaeger, 1995, p. 75.
9. Homero, p. 7.
10. Homero, V, 445-450.
Não obstante, alguns pensadores gregos, in- 11. Κoσμογονία: gênese, nascimento do universo em sua totalidade.
satisfeitos com as explicações produzidas pelos mitos, 12. Reale, 1993, p. 41.
13. Reale, 1993, p. 31-41.
perceberam que seus cultos, sacrifícios, orações e ri- 14. Jaeger, 1995, p. 68.
tuais muitas vezes não conduziam aos resultados es- 15. Commelin, 2000, p. VII.
perados. “[…] O importante mesmo é que havia um 16. Andrade, 1994.
grande desejo de manipular, de controlar, de obter 17. ZELLER-MONDOLFO apud REALE, Giovanni. História da fi-
losofia antiga, vol. 1. São Paulo: Loyola, 1993, p. 22.
4 um poder antes exclusivamente divino”.18 Consequen-
temente, originar-se-ia uma nova forma de pensar,
18. Santos, 2004, p. 348

mais sistemática, especulativa e racional: a Φιλοσοφία:


Filosofia: mãe de todas as ciências e ré de alguma de
P
suas filhas.

* Marco Antônio é professor de filosofia e mestre em


Literatura pela UFMG.

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A filosofia e a filosofia da
educação no pensamento
de Anísio Teixeira
por Sabina Maura Silva1

O entendimento da concepção de filosofia da ma e definitiva, o estabelecimento do conhecimento do


educação assumida por Anísio Teixeira pressupõe mundo como ele é em-si, abraçando tanto suas esferas
compreender a forma como é concebida a própria particulares e dadas na experiência, quanto aquela de
reflexão filosófica. A filosofia voltada às questões pe- caráter absoluto e impalpável na vida comum. Quanto
dagógicas está intimamente ligada ao modo pelo qual mais progredia a construção de tal forma discursiva,
os problemas relativos aos princípios, aos valores mais o segundo aspecto se sobrepunha ao primeiro e
e à imagem de mundo são resolvidos no interior de mais a universalidade se afirmou como único objeto de
um discurso que pretende articular as várias dimen- real dignidade, afastando da alça de mira da reflexão
sões da experiência humana. Considerando o tipo filosófica aquele outro que poderia se oferecer de ma-
de produção teórica em tela, porque filiada explicita- neira apropriada. A mirada universal, empreendida
mente ao pragmatismo2, é essencial focalizar a relação e ostentada como ciência do mundo, dirigiu o pensa-
das produções intelectuais com a prática social efetiva mento para a transcendência de seus limites intrínse-
e imediata. cos.
Seguindo o pensamento de Dewey3, Anísio Dessa posição adotada por Anísio Teixeira
Teixeira reflete criticamente sobre a filosofia. Para ele, decorrem duas implicações importantes concernentes
ela é um conjunto de formações ideais que buscou, des- ao status da filosofia. Em primeiro lugar, o discurso
de seu início na Grécia Antiga, o encontro e a posse de filosófico deixa de ser considerado uma teoria de um
nada menos que a decifração do íntimo da realidade, ente ou processo em particular, para tornar-se método
para além das experiências efetivas que dela temos. – isto é, mais um proceder especial frente aos objetos
A busca pelo conhecimento do ser foi sempre o obje- que a tematização acerca de um objeto que lhe seja
tivo central, o que afastou a filosofia, cada vez mais, próprio. A pretensão de possuir esse objeto, a coisa,
de seu solo real e de sua função apropriada. Junto a que a definiria como ciência ou padrão teórico, é quali-
isso, também intentou ser a exposição da verdade últi- ficado de ilusão, de autoengano, proveniente de uma
desmedida que a fez se distanciar de sua finalidade a-
dequada. Em segundo lugar, se houver algo próximo a 5
objeto do filosofar, este só poderia ser o enfrentamento
de conflitos, a busca de um equilíbrio de tensões so-
ciais intensamente vividas, um télos [uma finalidade]
eminentemente ideológico, diverso daquele que orien-
ta e anima necessariamente as proposituras de caráter
propriamente científico. A filosofia se defronta com
problemas que, por certo, não excluem a demanda do
conhecimento; ao contrário, exigem-na. Contudo, nem
por isso se pode fazer da atitude e do discurso filosófi-
cos similares em poder e escopo àqueles das ciências.
De modo que, no interior da exposição da crítica prag-
mática da filosofia, esta perde espessura acadêmica ou
teórica, para se tornar um tipo de indagação existen-
cial, que não pertence ao mesmo campo de produção
ideal ao qual pertencem as ciências. O próprio termo
filosofia aparece, então, remetido a um contexto ex-
tremamente mais amplo, porquanto abraça virtual-
mente todas as idealidades voltadas ao problema do
sentido das ações humanas. Nesse sentido, afirma
o educador brasileiro: “filosofia é, assim, na frase de
Dewey, ‘a investigação e a inquirição sobre o que exige
de nós o conjunto de conhecimentos atualmente exis-
tente ou o conjunto dos conhecimentos que temos’”
(Teixeira, 2000, p. 168).

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perspectiva. Trata-se de uma diferença essencial para
compreender a argumentação aqui discutida entre
verdade e sentido, entre a objetividade da teorização
e a relatividade do ajuizamento. É uma delimitação de
fronteiras que será determinante para a démarche [pro-
ficiência] precisa de jurisdição própria a cada um dos
produtos ideais. Posição essa que se filia à pretensão
de reconstrução da filosofia, conforme estabelecida na
filosofia de John Dewey. Nesse espírito, como era for-
çoso, “a reconstrução da filosofia, nos tempos moder-
nos, acompanhou a mesma história da reconstrução
do pensamento científico ou artístico” (Teixeira,
2000, p. 166). Os filósofos foram impelidos a recons-
truir seu fazer e a redimensionar seus objetos e suas
ambições. Tornaram-se, talvez, menos dogmáticos: a
filosofia, na modernidade, é, para o autor, “um pro-
cesso em marcha transformando-se, modificando-se,
reconstruindo-se na medida em que o homem opera,
nas outras províncias de suas pesquisas, transforma-
ções, modificações e reconstruções” (Teixeira, 2000, p.
166). Aqui cabe uma observação crítica: a característica
da reflexão moderna que Anísio Teixeira destaca como
particular – a sua adaptação constante aos movimen-
tos do mundo, apesar da manutenção da sua visada
universal – parece-nos ser um elemento constante na
história da filosofia como um todo. De certa maneira,
Esse modo de entender a questão não exclui, apesar do dogmatismo dos sistemas, a filosofia não
entretanto, a relação do discurso filosófico com os de- procedeu sempre assim? A integralidade dos sistemas
senvolvimentos científicos. Muito ao contrário, tal re- e produções filosóficos, variando em grau e amplitude,
lação é exigida em razão do pensar visar à totalidade de um modo ou de outro, não teve de incorporar as tra-
dos campos da vida humana, dentre os quais se conta mas urdidas pelo particular, como parte do tecido do
o que o conhecimento científico produz. A posição do universal, mesmo que às vezes falseando-as, às vezes
sentido das nossas ações e do próprio mundo requer retendo-as como elementos de uma lógica absoluta?
de algum modo, para o autor, uma presciência com re-
lação aos conteúdos trazidos pela tradição científica. Para Anísio Teixeira, entretanto, a face inova-
Isso, contudo, não anula a determinação do filosofar dora da filosofia moderna provém do fato de que, ao
como saber, que continua como algo bem diverso da confrontar-se com o novo que representa a experimen-
ciência. A filosofia, em uma perspectiva pragmática, tação, o vislumbre universal se configura não mais
possui uma natureza eminentemente interpretativa, no terreno do objeto, mas na direção e no método [as
radicalmente diferente, e até oposta, da postura cientí- experiências científicas de caráter ‘laboratorial’] com
fica, a qual se fundamenta na verificabilidade dos que faz a recepção da modernidade. A sabedoria dos
enunciados teóricos. Apoiando-se nos enunciados de modernos busca não o estabelecimento de um conhe-
William James4, Teixeira procura determinar o caráter cimento do universal em si, mas a tentativa de harmo-
específico do filosófico em relação ao científico: nizar os vários campos e ramos em que as ciências vão
se desenvolvendo.
Essa noção nos leva ao conceito de William James, quan-
do afirma que todos possuímos uma filosofia, que é o
Por conseguinte, o caráter de generalidade e universali-
sentido mais ou menos obscuro ou lúcido que temos do
dade da filosofia não o é com relação ao objeto do seu
que a vida, honesta e profundamente, significa para cada
conhecimento, mas em relação à direção e atitude em que
um de nós (Teixeira, 2000, p. 168).
se busca esse conhecimento. Procura-se, aí, com efeito,
mais um ponto de vista coerente e harmônico em rela-
Distinguindo a filosofia da esfera de ação in- ção à pluralidade de acontecimentos que ocorrem e os
telectual própria das ciências, Teixeira, assumindo conhecimentos que possuímos, do que um novo co-nhe-
como sua a propositura de Dewey, afirma que a pri- cimento geral e universal. Em relação às últimas causas,
6 meira pode ser entendida como uma postura literari-
amente elaborada, arrimada nas posições que todos os
também se faz sentir o ponto de vista moderno. Não é
que se busquem realmente hoje causas últimas. É que, se
indivíduos, em sua singularidade, guardam acerca das em relação à ciência o que se busca é a verdade, no sen-
tido da sua objetividade verificável, em relação à filosofia
questões de sentido da existência. Nesse contexto, a
o que se busca é penetrar no sentido íntimo e profundo
atitude intelectual crítica da filosofia frente à realidade das coisas. O sentido das coisas não se confunde com a
e aos valores não funda nenhum tipo de propositura verdade, como nos habituamos a considerá-la em ciência
teorética, mas apenas a expressão, altamente elabora- (Teixeira, 2000, p. 166).
da, em alguns casos, é verdade, de uma determinada

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Assim, ao lado da modéstia de seu status no existente, cristalizava-se como domínio sociopolítico e
panteão dos saberes, a filosofia não tem mais objeto. econômico. Constituíam um modo de distinção e de
Há, por via de consequência, uma mutação também na separação sociais que perduraram e perduram mesmo
ordem de seus respectivos escopos. A filosofia não se em períodos bem posteriores àqueles da primitividade
dedica mais à posição da verdade das coisas, mas ape- ou do Mundo Antigo, o que dá azo à persistência, na
nas do sentido que estas possam ter na vida humana. imaginação popular dos mitos, das histórias fantásti-
O íntimo dos objetos e dos processos não deve mais cas e da religião. Provavelmente seria outra a marcha
ser identificado a uma essência verdadeira oculta, e histórica, diz Anísio Teixeira, se os saberes efetiva-
sim remetido ao quanto estes se referem à, e ferem a, dores, práticos, responsáveis reais pela construção do
subjetividade. Anísio Teixeira é, nesse particular, bem humano, tivessem tido a oportunidade de fecundar o
explícito: discurso oriundo da memória social.

A verdade diz respeito a fatos e existências. No mais, não Na argumentação de Teixeira, a arte ganha
há verdades, mas interpretações, sentidos, valores. Ao ou- um sentido próximo ao de techné [técnica; saber] e de
virmos uma sinfonia de Beethoven, não há uma verdade a poiesis [atividade criadora; fabricação]; do saber-fazer
verificar, há um sentido a perceber que pode ser menos ou
e do criar. É uma situação arcaica, somente rompida
mais profundo (Teixeira, 2000, pp. 167-8, grifo do autor).
na exata medida em que são rompidos ou transcendi-
dos os limites da experiência humana na natureza. O
Por isso, ainda que parta do mundo real e dos progresso das artes, o desenvolvimento do comércio, a
conhecimentos produzidos sobre este mesmo mundo geração de um mundo de riquezas viriam a confrontar
pelas ciências, o discurso filosófico não deve pretender a ordem estabelecida sobre o arrimo dos deuses e sob
o alcance do verdadeiro e a enunciação de legalidades o resguardo dos sacerdotes. O conflito entre os cos-
objetivas, uma vez que “A filosofia não busca verdades tumes, as crenças e as normas sociais, de um lado, e
no sentido estritamente científico do termo, mas va- as resultantes do desenvolvimento das artes práticas,
lores, sentido, interpretações mais ou menos ricas da de outro, afirma-se como real. Confrontação que, em
vida” (Teixeira, 2000, p. 168). Portanto, respeitando muito, guarda semelhança com o processo socioevo-
seus limites, deve exercitar-se como aquilo que é: uma lutivo, porquanto o próprio incremento de poder e de
forma literária. amplitude da vida dos homens passa-lhes a exigir um
maior grau de adaptabilidade ao real, à natureza, ao
Filosofia tem assim tanto de literário quanto de cientí-
fico. Científicas devem ser as suas bases, os seus postu-
mundo objetivo. Seguindo de perto as ideias de John
lados, as suas premissas, literárias ou artísticas as suas Dewey, expostas em Reconstrução da filosofia, Teixeira
conclusões, a sua projeção, as suas profecias, a sua visão. verá naquele confronto radical a razão principal para
E nesse sentido filosofia se confunde com a atividade de a emergência do discurso filosófico na Grécia Antiga.
pensar, no que ela encerra de perplexidade, de dúvida, Um abismo efetivo e intransponível instala-se entre a
de imaginação e de hipotético. Quando o co-nhecimento palavra dos poetas e a vida efetiva da comunidade.
é suscetível de verificação, transforma-se em ciência, e
enquanto permanece como visão, como simples hipótese
Um abismo que não poderia ser coberto pelos esfor-
ços isolados dos dois lados. No parecer de Anísio 7
de valor, sujeito aos vaivéns da apreciação atual dos ho-
Teixeira, a filosofia e o seu agente – o filósofo – virão
mens e do estado presente das suas instituições, diremos,
é filosofia (Teixeira, 2000, p. 168).
para cerrar essa fenda e tentar promover uma recon-
ciliação dos dois reinos da comunidade antiga. Nesse
Com essa argumentação sobre a filosofia e a momento, o educador brasileiro apresenta uma tese
ciência, estabelece-se uma espécie de divisão reflexiva sobre a história da filosofia desenvolvida na obra de
de trabalho: à ciência cabe a verificação formal e ob- Dewey acima referida. O discurso filosófico, ao con-
jetiva da verdade das coisas; já à filosofia compete a trário do que reza a tradição historiográfica, não se
apreciação dos sentidos do mundo e daquilo que ele iniciou com os pensadores jônios [pré-socráticos], mas
pode ser. As ciências são realistas, a filosofia é visio- com os sofistas (cf. Teixeira, 2000, p.158), o que per-
nária. mite inferir que Anísio Teixeira, acompanhando de
perto seu mestre, localiza a tematização primeva do
Digna de nota, também, é a abordagem do filosofar no enfrentamento do problema da lei funda-
emergir histórico da filosofia. Anísio Teixeira desenha mentada na deliberação da assembleia de cidadãos.
um tipo de enquadramento dos saberes e de seus luga- No prosseguimento da sua argumentação, vai deslo-
res sociais, tentando levar em conta a divisão social do car o centro da posição socrático-platônica – a busca
trabalho, a qual cindia, segundo ele, o conjunto social pela sustentação teórica da pretendida relação entre lei
em dois grupos de atividade bem delimitados: de um e verdade – para o reino da discussão acerca do esta-
lado, os empíricos, de outro, os que se dedicavam à tuto da lei democrática. A prática corrente passa a ser
contemplação do sagrado. Os saberes ou, na termino- uma fundamentação mais poderosa e apropriada que
logia de filosofia pragmática de Dewey, os “produtos o vislumbre da inteligibilidade pura. A nova vida da
mentais”, não se misturavam, assim como permane- comunidade, centrada na discussão e no confronto de
ciam perfeitamente discerníveis e separados os con- posições, na resolução prático-pragmática dos confli-
tingentes que deles se ocupavam, bem como os espa- tos é o metro da verdade, ou melhor, das verdades.
ços sociais a eles destinados. A divisão, dessa forma A vida civil ganha status de arrimo gnósio-epistêmico.

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É claríssimo, nesse passo, como Teixeira faz do prag- as solicitações diversas e antagônicas das diferentes fases
matismo o discurso filosófico por excelência e o trans- do conhecimento humano, e os conflitos e perplexidades
forma em paradigma do discurso teórico sobre o real. atordoantes da hora presente (Teixeira, 2000, p. 169).
Nesse sentido, estende a validade histórica das catego-
rias que perfazem o conjunto de sua posição teórica, A filosofia a qual se refere Anísio Teixeira está
dotando-as de uma força ilimitada e atemporal. Posto bastante distante das versões sistematizantes, surti-
assim o critério, tal posição não se sente obrigada a se- das das escolas no decorrer da história do pensamen-
guir, nem se subsume à validação da historiografia fi- to, criações pedantes de gabinete. O discurso filosó-
losófica, aos achados particulares que venham a ratifi- fico ganha em eficácia expressiva e ideológica quanto
car ou retificar qualquer periodização. Teixeira afirma, mais ele exprimir os valores, preocupações, dilemas e
sem receios, que “pouco importa que, historicamente, questões cruciais da época de um povo. A filosofia as-
a tese de Dewey não esteja sempre com todo o apoio. O sume pertinência na exata medida em que consiga se
seu ponto de vista não é, por isso, menos interessante colocar como elaboração ideal de seu próprio tempo
para nos esclarecer certos caracteres reais encontrados histórico, espelho da vida de uma civilização particu-
na filosofia ocidental” (Teixeira, 2000, p. 160). Como lar.
pragmático consequente, dirige-se pela observação de
William James de que a verdade, ou antes, a validade Ou seja,
do pensamento se situa não em uma pretensa corres-
pondência com o real, mas em sua capacidade opera- Na medida de nossas forças, construímos, então, uma fi-
tiva (cf. James, 1985, p. 22). O pragmatismo revela-se losofia e a ela nos acomodamos, tão bem como tão mal,
em nossa ânsia e inquietação de compreender e de pacifi-
claramente como um relaxamento do pensamento e do
car o espírito. Tais filosofias individuais não se articulam,
discurso. No caso, o apoio à tese de Dewey, caso esta porém, em sistemas filosóficos. Esses, quando não são
sofra objeções de ordem documental ou historiográ- criações pedantes de gabinete, mas expressões reais de fi-
fica, é o fato de ela se mostrar interessante. losofia, representam e caracterizam uma época, um povo
ou uma classe de pessoas. Porque, no sentido realístico
A racionalidade possível, desse modo, teria de que falamos de filosofia, tal seja a vida, tal seja a civi-
ficado confinada ao reino das formas e das fórmulas lização, tal será a filosofia. A filosofia de um grupo que
puras de organização do pensar e do discurso [restrito luta corajosamente para viver, não é a mesma de outro
a um mundo de ideias puras], não podendo estabe- cujas facilidades transcorrem em uma tranquila e rica
lecer-se como instrumento e lugar dos novos conteú- abundância (Teixeira, 2000, p. 170).
dos.
Nesse passo aparece a experiência, categoria
A aporia da filosofia ateniense, o intento de fundamental de Dewey, como critério ôntico do dis-
encontrar uma essência racional para a lei que ema- curso. A experiência enfrentada por uma determinada
na da pólis, reduz-se, na visão pragmática, a um con- comunidade, em um dado período de sua história,
formismo teórico. A vida democrática parece que se condiciona a expressão filosófica deste grupo. O expe-
impunha, na visão do pragmatismo, desde a sua mais rienciar o mundo e as situações arrimam a construção
tenra idade. A democracia é aqui também um para- das formas ideais, nas quais se exprime um modo par-
digma e não uma forma particular de poder. Parece ticular de existência e se podem dar ações prospecti-
escapar, ao modo de assim colocar a questão, o prob- vas: “a filosofia deve procurar definir os problemas
lema da particularidade histórica das formas de poder mais palpitantes dessa nova ordem de coisas e armá-
político e social. A democracia possuía o mesmo sen- los para as soluções mais prováveis” (Teixeira, 2000,
tido para os gregos dos séculos VI-IV a.C. que para pp. 171-172). O de onde... e o para onde..., e não o
nós? A filosofia, como acima entendida, adquire o esta- verdadeiro e o falso; eis os elementos principais da
tuto de uma necessidade em função dos desafios e das propositura filosófica. Posição que deve permanecer
transformações postos pelas consequências existenci- sempre no terreno dos propósitos, dos juízos de valor,
ais dos desenvolvimentos da ciência e do uso desta no da estimação da existência, e não no da veracidade de
cotidiano. enunciados, caso se queira mostrar como pertinente
e manter sua dignidade específica. Na amplitude do
Sob esse aspecto, embora o discurso filosófico sentido, reside o limite do filosofar. A delimitação da
não possa pretender para si o título de científico, de filosofia assim posta não lhe permite posição de relação
maneira alguma é ele um produto supérfluo. Longe de com a verdade, senão mediada pela prática vivenciada
tarefa ociosa, a reflexão é uma demanda colocada obje- e pela pragmática por esta demandada. Dessa apresen-
tação do caráter próprio ao pensar da filosofia e de seu
8 tivamente aos indivíduos na era moderna, talvez mais
que em qualquer outra, pois discurso, cujos parâmetros se referenciam pela cate-
goria de experiência, deriva uma definição precisa de
Nos dias de hoje, quando a ciência vai refazendo o mun- filosofia da educação. Tomando integralmente a elabo-
do e a onda de transformação alcança as peças mais deli- ração de seu mestre, Anísio Teixeira chama a atenção
cadas da existência humana, só quem vive à margem da para a ligação estreita entre educação, com o sentido
vida, sem interesses e sem paixões, sem amores e sem claro de formação, e a filosofia, como expressão ideal
ódios, pode julgar que dispensa uma filosofia. Só com universal de uma época.
uma vida profundamente superficial podemos não sentir

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senvolvimento das ciências possibilitado pelo uso do
Argumenta que, “Se educação é o proces- método experimental e transformada continuamente
so pelo qual se formam as disposições essenciais do pelos desdobramentos da Revolução Industrial, a de-
homem - emocionais e intelectuais - para com a na- mocracia é a sua forma social por excelência. A demo-
tureza e para com os demais homens, filosofia pode ser cracia, como forma paradigmática da existência social
definida como a teoria geral da educação”, diz Dewey. dos homens é o modo de vivência a ser fortalecida, na
“Com efeito”, acrescenta esse autor, medida em que fornece aos elementos da vida moder-
na um amplo espaço de florescimento, pois
a não ser que uma filosofia seja puramente simbólica ou
verbal, ou predileção sentimental de alguns, ou simples Os ideais e aspirações, contidos no sistema social
dogma arbitrário, o seu julgamento da experiência e o democrático, envolvem a igualdade rigorosa de opor-
seu programa de valores deve concretizar-se na conduta tunidades entre todos os indivíduos, o virtual desapare-
e, portanto, em educação. E, por outro lado, se a educa- cimento das desigualdades econômicas e uma sociedade
ção não quer se transformar em rotina e empirismo, deve em que a felicidade dos homens seja amparada e facilita-
permitir que os seus fins e os seus métodos se deixem da pelas formas mais lúcidas e mais ordenadas (Teixeira,
animar pelo inquérito largo e construtivo da sua função 2000, p. 172).
e lugar na vida contemporânea, que à filosofia compete
prover (Teixeira, 2000, pp. 170-1).
Neste ponto, põe-se o escopo político-social da
educação. Em função das transformações ocorridas no
A educação, como processo de formação da
processo moderno de experienciar o mundo, as quais
pessoa, não pode prescindir de uma reflexão cujo es-
deram novas configurações a instituições como a famí-
copo seja o desvendamento dos sentidos do mundo
lia, o Estado, a Igreja, “nunca se pediu tanto à educa-
humano. É a formação para a vivência, a qual, no en-
ção e nunca foram tão pesadas as responsabilidades
tanto, não se identifica com a mera acomodação ao
que estão sobre os nossos ombros” (Teixeira, 2000, p.
instituído. Em vez disso, pretende, e deve pretender
172). A escola “tem que dar ouvidos a todos e a todos
sempre, seu reexame permanente tanto no nível dos
servir. Será o teste de sua flexibilidade, da inteligência
procedimentos, quanto naquele dos princípios. Prática
de sua organização e da inteligência dos seus servi-
que corrige a si, porquanto se deixe penetrar pela pos-
dores” (Teixeira, 2000, p. 173).
tura filosófica e se nutra de seu pneuma [espírito]. A
filosofia aparece, aqui, como uma postura terapêutica
Desenha-se, assim, a figura modelar do que se
que retifica usos e rumos da prática social formativa.
espera do educador. Reatando com a noção clássica de
Por outro lado, à filosofia também compete, nestes
paideia5, o educador brasileiro indica o elenco de carac-
novos tempos, decantar os ares da vivência efetiva e
teres que tal profissional deveria apresentar no desem-
não as construções de conjuntos arquitetônicos, que
penho de seu ofício:
são tão vaporosos, quanto mais etéreos se mostram.
Da concepção da relação entre filosofia e experiência
Esses têm de honrar as responsabilidades que as circun-
vivida, entre filosofia e educação, entre filosofia e for-
mação, desdobra-se uma definição acerca do que seria
stâncias lhes confiam, e só o poderão fazer, transforman-
do-se a si mesmos e transformando a escola. (...) Tem
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uma filosofia da educação: “Filosofia da educação não de ser um estudioso dos mais embaraçosos problemas
é, pois, senão o estudo dos problemas que se referem modernos, tem que ser estudioso da civilização, tem que
à formação dos melhores hábitos mentais e morais em ser estudioso da sociedade e tem que ser estudioso do
relação às dificuldades da vida social contemporânea” homem; tem que ser, enfim, filósofo (Teixeira, 2000, p.
(Teixeira, 2000, p. 171). Filosofia da educação que não 173).
pretende ser a concepção a priori e eruditamente des-
medida do deve-ser em absoluto o formar. Não é tam- Dessa maneira, independente de seu campo
pouco um enquadramento teórico fornecido por esta de conhecimento específico, a totalidade do saber hu-
ou aquela escola acadêmica dado que mano acumulado e continuamente produzido deverá
ser por ele dominada, ainda que de modo referencial.
Considerada assim, a filosofia, como a investigadora Não por acaso, o professor tem que assumir como seu
dos valores mentais e morais mais compreensivos, mais lema o dístico de Terêncio, segundo o qual nada que é
harmoniosos e mais ricos que possam existir na vida so- humano me é estranho (cf. Teixeira, 2000, p. 173).
cial contemporânea, está claro que a filosofia dependerá,
como a educação, do tipo de sociedade que se tiver em Há, então, um curioso paralelismo entre a pro-
vista (Teixeira, 2000, p. 171). positura de Anísio Teixeira e aquela de Platão, o qual
é tão duramente criticado por ele. Ambos partem do
É nesse particular que a democracia emerge diagnóstico de uma grave crise, de um descompasso
no discurso como paradigma teórico fundante. A tare- entre as exigências da vida social boa e a preparação
fa da filosofia reside, para o pragmatismo de Dewey, dos indivíduos frente a estas. Para um e outro, a edu-
no vislumbre o mais amplo possível das formas de cação tem papel e potencial claros no confronto e no
harmonização das questões mais palpitantes da vida encaminhamento das soluções. A falta de uma medida
moderna. O tipo de reflexão filosófica a ser empreendi- social, um parâmetro para as ações, agora demanda-
do depende da espécie de sociedade em que se deseja das pelo viver em comum, é a causa do dilaceramento
viver. No caso da modernidade, atravessada pelo de-
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social para ambos. De certa forma, embates análogos,
não idênticos, que levarão cada autor a trilhar as mes- * Nota do Conselho Editorial: Este artigo foi originalmente
mas sendas, mas em direções opostas. O pensador publicado na revista Verinotio (no 13, ano VIII, junho de
da Academia, após a argumentação levada a efeito 2012), especializada em temas acadêmicos, por isso, apresen-
em A República, chega à conclusão de que o filósofo, ta uma linguagem que em certa medida destoa dos demais
por ter a visada do inteligível e, em razão disso, deter artigos aqui publicados. Optamos por publicá-lo, pois trata-
a sabedoria do bem supremo, deve se tornar rei. Na se de uma reflexão que vai ao encontro da nossa proposta
reflexão do educador brasileiro, o qual tem também editorial: incentivar uma reflexão séria acerca das dificul-
para o pedagógico um fim político, o professor, que dades e importâncias que a filosofia encontra para se afirmar
rege o processo educativo, deve possuir, “ao lado da como uma disciplina presente na educação brasileira, além de
informação e da técnica, (...) uma clara filosofia da vida ser ele mesmo uma abordagem da filosofia brasileira. Desse
humana, e uma visão delicada e aguda da natureza do modo, esperamos que as possíveis dificuldades não impli-
homem” (TEIXEIRA, 2000, p. 173); deve tornar-se, por quem desmotivação para seguir na leitura dos demais, mas
isso, filósofo. antes, que elas sejam um estímulo a mais para os estudos e
a reflexão. Este texto é, antes de tudo, um convite ao pensar.
Certamente, os leitores menos familiarizados com essa lin-
guagem, sobretudo os estudantes do ensino médio, encontrão
Notas certa dificuldade para levar a leitura adiante. Para facilitar a
leitura, fizemos algumas alterações, com autorização da au-
1. Professora visitante do Departamento de Ciências Aplica- tora e introduzimos algumas notas para ajudar o leitor a se
das à Educação da FAE/UFMG, doutora em educação pela orientar.
FAE/UFMG e mestre em Filosofia pela FAFICH/UFMG.
2. Segundo verbete do Dicionário Escolar de Filosofia, o Prag-
matismo é uma “Corrente filosófica segundo a qual a eficá-
cia na aplicação prática fornece o critério para determinar a
VERDADE das proposições. Assim, uma proposição é verda-
deira se for, na prática, vantajoso sustentá-la, ou, na versão
de William James (1842-1910), se funcionar. Isto significa
que o CONHECIMENTO é um instrumento para organizar
a EXPERIÊNCIA e os conceitos são hábitos de CRENÇA ou
regras de AÇÃO. Os pragmatistas pensam que a experiên-
cia humana é um processo histórico, contingente e evolutivo
e consideram que muitos dos PROBLEMAS FILOSÓFICOS
têm origem em dualismos (como teoria-prática e realidade-
aparência), que derivam de teorias do conhecimento que con-
cebem as crenças como representações e, por isso, chamaram
a atenção para a continuidade entre experiência e natureza,
e para a reciprocidade entre teoria e prática, entre conheci-
mento e ação e entre fatos e valores”. Para saber mais leia o
verbete completo no Dicionário escolar de Filosofia, disponível
em http://www.defnarede.com/p.html (Nota da Edição)
3. John Dewey (1859-1952), filósofo e educador norte-ame-
ricano, filiado à escola pragmática, cujas principais contri-
buições estão focalizadas na Educação e na reforma social.
(Nota da Edição)
4. William James, 1842-1910, psicólogo e filósofo norte-ameri- Quixote Livraria e Café
cano. Rua Fernandes Tourinho, 274 - Savassi
5. Palavra grega utilizada como sinônimo de educação no Belo Horizonte – MG
sentido integral de formação humana.

Referências bibliográficas

TEIXEIRA, Anísio. Pequena introdução à filosofia da educação


- escola progressiva ou a transformação da escola. 6. ed. Rio de
Janeiro: DP&A Editora, 2000.
10 DEWEY, John. Reconstrução em filosofia. 2. ed. Tradução An-
tónio Pinto de Carvalho. São Paulo: Editora Nacional, 1951.
JAMES, William. “Pragmatismo”. In: Os pensadores. São Pau-
lo: Abril Cultural, 1985.

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Filosofia Pop
Um relato acerca de
experiências em divulgação
da Filosofia
por Charles Feitosa*

* O presente texto é a transcrição ligeiramente estudantes das mais diferentes partes do Brasil, curio-
modificada de uma videogravação da participação sos e instigados pela leitura do livro. Fico especial-
do professor Charles Feitosa em uma mesa de deba- mente feliz com isso, pois tenho consciência de que,
tes sobre “Experiências de Divulgação em Ciências embora se trate de um livro até barato pela qualidade
Humanas”, apresentada no I Encontro Nacional de gráfica apresentada, ainda é infelizmente muito caro
Divulgação de História e Ciências Sociais, evento or- para a realidade brasileira. [Também fico um pouco
ganizado pela Revista de História da Biblioteca Nacional, assustado porque pode ser um sinal de que o fim do
em dezembro de 2009 na Casa da Ciência da UFRJ. Foi mundo está próximo. Pelo menos “o fim do mundo tal
mantido o tom coloquial, improvisado e bem-humora- como o conhecemos”; afinal, toda uma nova geração
do da apresentação oral e evitado, na medida possível, de adolescentes brasileiros está cada vez mais sendo
o uso excessivo de notas de rodapé para não perturbar contaminada pelo espírito filosófico, e não sabemos
o fluxo da leitura. qual será o resultado disso ainda].
Dentro desse espírito de informalidade, gosta-
1. Filosofia não é Ciência!? ria de ressaltar que, embora
Agradeço muito aos organizadores o convite meu livro venha obtendo
para participar desse evento sobre divulgação cientí- bastante sucesso nos seus
fica e, em particular, dessa mesa, em que se pretende objetivos, sua repercus-
discutir experiências de divulgação em ciências huma- são na área acadêmica foi
nas, pois tenho bastante interesse pelo tema. Pretendo praticamente nula. Bem, é
ser bastante breve e leve na exposição das minhas ex- verdade que ele não foi ata-
periências na área. Minha formação é bem acadêmica, cado. Tentei fazer um livro 11
quer dizer linear e disciplinar: da graduação ao pós- que não deixasse lacunas,
-doutorado me mantive no caminho da filosofia, tendo que não permitisse críticas
realizado diversas publicações nas áreas de ontologia, do tipo “é simplificador”
fenomenologia e estética. Paralelamente à minha for- ou “não é filosofia”. Mesmo
mação acadêmica, tive também uma formação disper- assim, ele foi solene-mente
sa e “ziguezagueante” nas artes e nas ciências, o que ignorado pelos meus pares,
despertou em mim o gosto pela transdisciplinaridade1 não obtendo, à época de seu lançamento, nenhuma re-
e me incentivou a uma prática de divulgação da filo- senha nos cadernos de cultura dos jornais das grandes
sofia para estudantes de diversas áreas, para professo- cidades. Isso é algo para ser pensado aqui.
res dos ensinos fundamental e médio da rede pública
e para jovens de todas as idades. O principal produto Na verdade, eu considero até bastante surpre-
desse meu trabalho de divulgação é o meu livro Ex- endente o convite para participar dessa mesa sobre
plicando a Filosofia com Arte (Ediouro, Rio de Janeiro: “experiências em divulgação na área de ciências hu-
2004), que é uma tentativa de tornar a filosofia mais manas”. Digo isso porque, há cerca de dois anos, parti-
acessível, sem perder o rigor inerente aos conceitos. cipei de um edital de divulgação científica promovido
O livro não apenas reproduz, mas também apresenta por um dos mais importantes órgãos de fomento do
uma produção própria de ideias. Explicando a Filosofia país. Meu projeto era transpor a experiência de Expli-
com Arte acabou me trazendo muitas alegrias, pois não cando a Filosofia com Arte para a televisão, usando todos
apenas ganhou vários prêmios (entre eles o Prêmio os recursos das imagens em movimento. Tal projeto
Jabuti 2005, na ca-tegoria de “paradidáticos”), como foi recusado, em parte porque há sempre mais deman-
também foi adotado pelo governo federal para com- da do que verbas, mas o parecerista oculto justificou
por, junto com outros títulos selecionados, a biblioteca sua recusa alegando que meu projeto não se encaixava
básica de todas as escolas públicas federais de ensino nos termos do edital, pois afinal “filosofia não é ciên-
médio do país. Desde então tenho recebido e-mails de cia” (sic) e o edital era de divulgação científica!!
Confesso que fiquei estupefato, pois, embora
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até simpatize com a posição epistemológica de que a -zinho, só que mais ameaçador do que simpático. No-
filosofia ocupa um campo próprio do conhecimento, vas gargalhadas. Por coincidência, um dos integrantes
conectado mas independente das artes e das ciências, da mesa atuava na área de letras e acrescentou ao papo
na prática acadêmica ela faz parte das ciências sim e a impressão de que na sua disciplina, quando um tra-
mais especificamente das ciências humanas (vide a ta- balho de um aluno não é considerado adequado, os
bela de áreas do conhecimento do CNPq). Seguindo professores costumam recusá-lo, dizendo: “Você não
o raciocínio do parecerista, se filosofia não é ciência, está fazendo literatura, mas sim jornalismo”. Empolga-
deveriam então ser imediatamente suspensas todas as dos com o surpreendente rumo da conversa, ouvimos
bolsas de “iniciação científica” em filosofia no país e, ainda um profissional de jornalismo dizer que, na sua
mais amplamente, todos os apoios financeiros à filo- área, os trabalhos de pesquisa considerados impró-
sofia, seja na forma de bolsas de mestrado, doutora- prios costumavam ser acusados de “jornalismo ruim”,
do, pós-doutorado e ainda os suportes financeiros à ou seja, de marketing!! Infelizmente não havia ninguém
participação ou realização de simpósios, ou mesmo os da área de marketing na mesa para dar continuidade à
subsídios para a publicação de artigos ou livros. Toda brincadeira.
pesquisa em filosofia do país deveria parar, com base Parece que tem sempre alguém nas instituições
na afirmação estapafúrdia de um tecnocrata de que fi- de ensino e de pesquisa para nos alertar sobre o que é
losofia não é ciência!!! próprio e impróprio à profissão. Nossa formação aca-
Conforme a afirmação desse parecerista, eu dêmica parece mesmo girar em torno da transmissão e
não deveria estar portanto aqui fazendo parte dessa da retransmissão de determinados códigos e posturas.
mesa onde estão sendo trocadas experiências em divul- O problema é que às vezes essa pedagogia da demarca-
gação nas áreas de ciências humanas. Esse caso serve ção de territórios pode se tornar também uma política
para ilustrar como as instituições de pesquisa, embora de exclusão, e o que é pior, uma forma de abafar as
nominalmente incentivem a interdisciplinaridade, na experimentações. Meu projeto de divulgação da filoso-
verdade trabalham com concepções estanques e repar- fia com arte é, nesse sentido, um gesto de resistência,
tidas, em que as fronteiras entre as áreas são fixas e os de ocupar e habitar as fronteiras. Trata-se de um gesto
limites, praticamente intransponíveis. Na minha opi- perigoso, pois as fronteiras não apenas excluem, mas
-nião a frase “filosofia não é ciência” é uma espécie de também nos protegem dos erros e do desconhecido.
declaração de guerra, visa defender territórios contra Habitar fronteiras nos expõe a riscos.
a ameaça de invasão. É uma frase em que compare-
cem saber e poder de forma ilustrativa. Ao contrário 3. Riscos
do que poderíamos imaginar, não é uma frase restrita Permitam-me ainda contar mais algumas expe-
aos documentos decisórios de avaliação de projetos. riências que podem contribuir para a tarefa de pensar
Ela é bastante comum nas nossas práticas acadêmicas acerca dos riscos da divulgação em filosofia. A primei-
diárias. ra história remonta à década de 80, minha estreia como
professor de filosofia, quando tinha 18 anos e ainda
2. Marcar x Habitar Fronteiras estava no quinto período da graduação na UFRJ. Um
Recentemente participei do lançamento de amigo meu que era professor da rede estadual de en-
um livro de um amigo, professor de filosofia da UFRJ. sino, mais especificamente em Niterói – RJ, convidou-
Após o lançamento nos reunimos em uma grande -me para lecionar uma aula sobre os sofistas, em um
mesa de bar para comemorar. Um dos integrantes da sábado de manhã, para uma turma de ensino médio.
mesa, professor e pesquisador de renome nacional na Muito empolgado levei para a sala os melhores recur-
área de física, fez uma brincadeira na mesa. Ele disse, sos audiovisuais que tinha à disposição na época, tais
em alto e bom som, para todos ouvirem, que na sua como um pequeno gravador de fita cassete e diversas
área, quando os professores acham que o trabalho capas de discos de rock. A aula foi aparentemente um
de um aluno não corresponde às exigências de rigor sucesso, já que os alunos, que tinham a mesma idade
e e-xatidão necessárias, então dizem para ele: “Isso que eu, não apenas acompanharam de forma intensa,
aí que você está fazendo não é física, não é nem mes- como ainda me aplaudiram no final.
mo ciência, mas sim filosofia”! A gargalhada na mesa Fiquei muito feliz, com a sensação de tarefa re-
foi geral. Para as ciências duras e exatas, a filosofia é, alizada. Na hora do almoço após a aula, perguntei para
muitas vezes, sinônimo de delírios poéticos e imagi- meu amigo, muito mais experiente do que eu, o que ele
nativos. Após longas risadas, começamos a conversar tinha achado da aula. Ele me disse que tinha sido mui-
sobre o tema, e os filósofos da mesa, que estavam em to divertida, que eu tinha muito talento para animar
maioria, se perguntaram se costumam dizer coisas pa- auditórios, mas que infelizmente aquilo “não era filo-
12 recidas nas avaliações. O resultado foi que, na filosofia,
quando o professor acha que o aluno não conseguiu
sofia”! Para mim foi como se uma porta se fechasse so-
bre meu rosto, após já ter adentrado o salão. Segundo
alcançar o rigor e a precisão exigidos na matéria (sim, a meu amigo eu tinha exagerado nas brincadeiras e nos
filosofia também tem o rigor e a precisão como um de exemplos, esvaziando a aula dos conceitos e dos pen-
seus paradigmas!), então o professor diz: “Isso o que samentos. Foi a primeira vez que me confrontei com o
você está fazendo não é filosofia, mas sim literatura, risco do excesso de simplificação. Esse risco é real; em
poesia, arte”. Se a filosofia é o outro da ciência, a arte uma sociedade de consumo, a filosofia também pode
é o outro da filosofia, sempre rondando como um vi- se tornar um item de “fast food” (a série de livros Fi-

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losofia em 90 minutos vai nessa direção)2. Se isso não é 4. Principais aspectos de uma filo-
filosofia, então o que é? Passei todo o período da minha sofia pop
formação acadêmica, da graduação ao doutorado, per- Eu não inventei o termo “filosofia pop”, eu
seguindo esse ideal de rigor do conceito e tentando evi- roubei o conceito de Deleuze, que muito rapidamente
tar a todo custo o abismo da excessiva simplificação. menciona a expressão, sem maiores aprofundamentos,
no contexto da necessidade de novas formas de ler e de
A simplificação excessiva, a vulgarização, é escrever na filosofia3. Minha apropriação do termo se
um risco efetivo de quem se lança no trabalho de di- orienta por experimentar com
vulgação científica. O problema é que as tentativas de aspectos que talvez o próprio
escapar desse abismo podem conduzir a uma atitude Deleuze não tenha previsto,
igualmente perigosa, o abismo do eruditismo. Aqui mas que teria, imagino, apro-
conto mais uma experiência que considero emblemá- vado. A primeira ressalva é
tica. Há alguns anos, fui assistir a um debate sobre fi- que o uso do termo “pop”
losofia e cinema no Rio de Janeiro. O auditório do an- nada tem a ver com a acepção
tigo cinema estava com seus 600 assentos ocupados e corrente, presente em títu-
o clima era de festa, diversas pessoas reunidas, ávidas los de programas televisivos
para pensar a relação entre conceitos e imagens. No co- do tipo “Super-Pop” e que
meço, foi exibido o filme O Cão Andaluz, do cineasta se aplica ao entretenimento
mexicano Luis Buñuel, com aquela famosa e inesque- de caráter raso, fácil e mera-
cível cena de um olho sendo cortado por uma lâmina. mente comercial. A ideia, ao
Após a exibição do filme, foi realizada a palestra de um contrário, é resgatar o projeto
Gilles Deleuze
dos mais renomados professores de filosofia do país, presente no movimento da “art
que, entretanto, para minha surpresa, não apenas não pop” dos anos 50, em que o conceito de “pop” era vis-
mencionou o filme do Buñuel em sua palestra, como to como algo imaginativo, rebelde, original, irreveren-
também não falou das possíveis relações entre filoso- te, crítico e alegre. Através de técnicas de duplicação,
fia e cinema. Para piorar, fez ainda diversas citações reprodução, incorporação, reciclagem, superposição e
em grego, latim e alemão sem as devidas contextua- colagem de elementos díspares nas telas, os integran-
lizações. Comecei a perceber que o público estava fi- tes do movimento ajudaram a consolidar uma nova
cando inquieto. Logo a inquietação se transformou em estética, uma outra sensibilidade, enfim, uma linha de
revolta. De repente, no meio da palestra, iniciou-se fuga de dentro do sistema.
algo que eu jamais tinha presenciado em uma palestra O principal aspecto da “filosofia pop” é a ati-
de filosofia: uma estrondosa vaia. Confesso que fiquei tude consciente de descompromisso com a distinção
revoltado com a agressividade do público, pois estou entre “alto” e “baixo” em termos de cultura. Assim
acostumado a simplesmente me retirar da sala quando como nas telas de Andy Warhol compareciam simulta-
não gosto de uma palestra. Mas o pior ainda estava por neamente referências do mundo erudito e, da cultura
vir: após o início das vaias, o renomado professor, que
provavelmente nunca tinha passado por isso também,
de massa, a “filosofia pop” também defende a interse-
ção constante dos conceitos fundamentais da filosofia 13
ficou visivelmente transtornado e deixou escapar algu- com os aspectos considerados normalmente os mais
mas lágrimas de consternação. A situação para mim banais da existência. A filosofia pop busca resgatar a
ficou insustentável e resolvi ir embora como protesto, riqueza e a inteligência da vida cotidiana, desprezada
incomodado tanto com a falta de educação do público tradicionalmente como o famoso obscurantismo do
quanto com a falta de inteligência cênica do professor. “senso comum”.
Pareceu-me que ele não soube aproveitar a riqueza e Uma das consequências desse descompromis-
a singularidade daquele encontro e simplesmente deu so com a dicotomia “alta” x “baixa cultura” é a recusa
seu recado como se estivesse diante de seus aspirantes de um cânone exclusivo tanto das questões quanto dos
a filósofos na pós-graduação, como se ainda estivesse autores, supostamente clássicos e incontornáveis. A
sendo protegido e poupado, pelas paredes da acade- ideia é que a filosofia não precisa se restringir a pensar
mia, da tarefa de tentar estabelecer pontes com os não apenas a questão da liberdade ou da verdade em Des-
filósofos. cartes ou Kant, mas pode e deve também se debruçar
sobre as questões de poder no uso do controle remoto
Essas duas experiências servem para mim nas diferentes constelações familiares ou ainda sobre
como indicação de duas situações extremas das quais os desdobramentos éticospolíticos das ideias presen-
venho tentando escapar. De um lado, a pseudofacilita- tes em uma história em quadrinhos, um videogame ou
ção, do outro, o hermetismo. Ambas, cada uma a sua uma letra de funk.
maneira, parecem-me esconder estratégias de dissimu- Vale ressaltar que de nada adianta integrar os
lação e de manutenção de um status quo. Como forma temas das artes e da vida cotidiana na filosofia se ela
de resistência estou envolvido desde 2002 com o pro- continuar a manter uma certa atitude prévia de supe-
jeto de uma “filosofia pop”: pensar o mundo em uma rioridade. Já presenciei diversas vezes a situação de
linguagem bem-humorada e acessível, sem contudo filósofos sendo convidados a participar de simpósios
perder a densidade inerente à filosofia. sobre os mais variados temas, discursando hermetica-
mente durante uma hora a respeito das suas próprias

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pesquisas e se retirando do evento imediatamente taliza as imagens e as obras de arte como se fossem
após a palestra, como se só eles tivessem algo a dizer, meras ilustrações e atestações de argumentos conceitu-
como se não precisassem ouvir também a voz dos não ais, empobrecendo, assim, a riqueza de possibilidades
filósofos. Há alguns anos tive uma experiência ainda que elas poderiam ainda nos oferecer. A filosofia pop
mais inquietante em um evento sobre Filosofia e Lite- entende que as imagens não são inferiores aos concei-
-ratura. Uma professora de literatura apresentou uma tos quando a tarefa é pensar o mundo; ao contrário, as
inédita leitura e interpretação de letras de funk carioca. imagens exigem outros tipos de pensamentos e abrem
Naquela época, a cidade ainda discutia a legitimidade perspectivas inacessíveis ao raciocínio lógico conven-
do funk, ameaçada de censura em nome de uma injusta cional. Por isso mesmo meu livro se chama Explicando a
associação que a classe média e a mídia faziam entre Filosofia com Arte e não através da Arte. A filosofia pop
essa manifestação artística, política e cultural e o tráfico busca parcerias com as artes, dei-xando-se levar por
de drogas. Nesse sentido, era uma ação altamente afir- elas, permitindo-se processos de hibridização, mesmo
mativa trazer para a universidade um debate em torno correndo o risco de se tornar outra coisa, uma mutação,
do que estava sendo produzido na periferia e não ape- quase uma monstruosidade.
nas nos famosos “centros de excelência”. Entretanto, Vale ressaltar que uma das funções dos mons-
ao fim da comunicação, ao ser perguntada se gostava -tros sempre foi a de relativizar nossos conceitos sobre
de ouvir funk, a professora respondeu que detestava, limites e fronteiras (entre o humano e o não humano).
que aquilo não era música, muito menos poesia. Ela Na biologia, os híbridos são considerados inférteis; os
só estaria abordando o tema porque estava na moda!! híbridos culturais, ao contrário, enriquecem nossas
Parece que o funk só poderia ser incluído na pauta na perspectivas sobre a realidade. O problema é que a
condição de “literatura inferior”. Na minha opinião, academia ainda não sabe o que fazer com as práticas
esse tipo de integração à força das artes de rua pela de hibridização no ensino e na pesquisa. Lembro-me
academia só reforça a dicotomia entre alto e baixo na de uma experiência recente na UNIRIO, onde orientei
cultura. A filosofia pop não é diferente apenas pelos uma dissertação de mestrado que experimentava uma
seus temas, mas também pela sua abordagem. O modo abordagem filosófica das artes cênicas e uma perspecti-
como se pensa é tão importante como “o que” é pensa- va teatral da própria filosofia. Para compor uma banca
do. capaz de avalizar esse produto híbrido, convidei um
Um outro aspecto importante de uma filoso- professor de artes cênicas e um de filosofia. A disserta-
fia pop é a proposição de mudança de paradigmas: a ção foi aprovada, mas o professor de filosofia reclamou
tradição da filosofia é historicicista e eurocêntrica, a da ausência de maior conhecimento histórico-filosófi-
filosofia pop é temática e geograficizada. Por temáti- co, enquanto o professor de artes cênicas criticou jus-
ca, entenda-se que ela privilegia as questões e os con- tamente o contrário, o excesso de análises conceituais.
ceitos, sem desprezar sua evolução e transformações, Para um, tinha pouco filosofia, para o outro, tinha fi-
mas colocando-as em segundo plano, bem ao contrário losofia demais e pouco teatro. Ninguém fica satisfeito
da concepção pedagógica bastante em voga no Brasil, com os híbridos dentro desse modelo ainda demasia-
que compreende filosofia em primeira instância como damente disciplinar das nossas instituições de ensino e
a aprendizagem de sua história, em detrimento dos pesquisa.
problemas e dos temas. Além disso, a filosofia pop é
uma “geofilosofia”, quer dizer, busca sempre conectar 5. Filosofia e Mídia
o local com o universal. Um bom exemplo disso é o A filosofia pop, ao contrário da filosofia tra-
modo como se costuma discutir o diagnóstico nietzs- dicional, acredita que a ocupação das mídias é funda-
chiano do niilismo nos simpósios nacionais de filoso- mental para um projeto de divulgação do pensamento.
fia. As críticas aos “desprezadores do corpo”, cunhada Não se trata de tarefa fácil. O tempo da televisão é com-
em outro contexto cultural, assumidamente europeu, pletamente diferente do tempo da reflexão e do pensa-
costuma ser mimetizada acriticamente. Já procurei mento. A televisão exige uma aceleração do discurso,
demonstrar em outro ensaio que a filosofia brasileira a filosofia é, por definição, um “longo e demorado o-
precisa investigar as características próprias do nosso -lhar sobre as coisas em nossa volta”. As generaliza-
próprio niilismo, entre elas, uma celebração alienada ções apressadas, tão comuns em entrevistas e depoi-
do corpo, não um desprezo4. A filosofia pop busca, mentos ao microfone, são um indício de descuido para
portanto, conjugar o universal e o singular, no nosso o expert. A hesitação e a cautela, consideradas como
caso, na tarefa de abordar filosoficamente as ambigui- virtude para os pensadores, é vista, ao contrário, como
dades e os paradoxos da nossa própria cultura. incompetência ou ignorância na televisão. Ainda que
Cada uma das características mencionadas da com algumas ressalvas, costumo comemorar e incen-
14 filosofia pop até aqui mereceria uma abordagem mais
profunda e detalhada. Para mim, o aspecto mais funda-
tivar, ao contrário de diversos colegas, a presença de
filósofos na TV, tal como nos casos recentes da Viviane
mental é a proposição de uma outra relação entre con- Mosé (no Fantástico, da Globo) e da Márcia Tiburi (no
ceitos e imagens, ou, de forma mais abrangente, entre Saia Justa, da GNT). Ambas fizeram mais pela divul-
filosofia e arte. Tradicionalmente, a filosofia tem duas gação da filosofia no Brasil do que muitos dos livros e
atitudes em relação à arte: ou levanta suspeitas sobre artigos que produzimos anualmente na academia5.
sua capacidade de contribuir para uma ampliação da Minhas próprias experiências de participação
compreensão humana do mundo ou então instrumen- na TV não foram muito felizes, em parte por conta de

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problemas de edição, em parte por conta da própria mentais: ensino, pesquisa e extensão. Somente quando
mentalidade que domina a área. Em 2004 fui convida- houver um entendimento de que essas três dimensões
do pelo canal GNT para participar, junto com outros têm força e importância equivalentes, a questão da “di-
professores e pesquisadores de diversas áreas (antro- vulgação” deixará de ser uma questão “menor” para
pologia, psicanálise, etc.), de uma série de mini docu- a ciência. Faz parte do processo de pensar, de modo
mentários em torno de pessoas, antes e depois de cirur- estrutural e não acidental, a partilha dos saberes e o
gias plásticas. O objetivo era discutir a importância da compartilhamento das questões e dos conceitos.
beleza e do corpo na cultura nacional. Lembro-me de
ter participado de um longo (quase seis horas) e insti- Por fim, gostaria de citar uma frase de Nie-
gante debate com meus colegas, mas, para minha sur- -tzsche, que serve de inspiração para a filosofia pop:
presa, na edição final, não apenas nossas longas falas “Os maiores problemas [da filosofia] estão na rua”. A
foram reduzidas a poucos segundos como também o filosofia pop é uma filosofia de rua, na rua, para a rua,
critério de seleção das nossas colocações me pareceu quer dizer, ligada ao cotidiano, à existência, ao aqui e
bastante questionável. [Até hoje penso que era tudo agora, em nome de outros e melhores futuros. Lembro-
uma espécie de pegadinha, nós, os professores, é que -me de ter conversado com um jovem coreógrafo bra-
éramos tema daquele reality show]. sileiro, hoje famoso internacionalmente, que me con-
Para divulgar a ciência e a filosofia, as mídias tou que não obtinha apoio dos pais, nem de ninguém,
de massa são incontornáveis. Mas ao invés de demoni- quando dizia que queria fazer dança de rua, mas que
zá-las ou de se deixar subordinar por elas, será preciso quando começou a chamar seu trabalho de “street dan-
descobrir mecanismos através dos quais obtenhamos o ce”, tudo mudou de figura. Aparentemente “street dan-
mínimo de controle sobre os critérios de edição. Mais e ce” soa mais nobre, profundo e digno do que uma reles
melhores editais de apoio à divulgação científica serão “dança de rua”. Quem sabe não obteremos pareceres
sempre muito bem-vindos nesse contexto. Certa vez mais positivos dos órgãos de fomento, se começarmos
fui convidado para participar como mediador de um a nomear nossos projetos também de “street sciences”
programa de debates na TV voltado para adolescentes. ou “street philosophy”?
Quando perguntei qual era o tema do programa, fiquei
um pouco surpreso. O debate, que reuniria cientistas,
religiosos e estudantes de ensino médio seria em torno Notas
da questão: “Existe vida inteligente em outros plane-
-tas?” Retruquei que não sabia nada sobre o assunto, 1. Por “transdisciplinaridade” entendo uma prática ainda mais radi-
no máximo poderia imaginar gravar uma breve parti- cal de associação e parceria entre diferentes áreas do que a “interdis-
ciplinaridade”, já que aquela se constitui como uma atitude transitó-
cipação levantando algumas questões sobre o solo de ria e estratégica, enquanto esta normalmente visa ao estabelecimento
onde provavelmente surgem tais inquietações. Então institucional de novas disciplinas consolidadas. Sobre a distinção
o produtor me disse que não haveria problema, afinal entre os termos ver: C. FEITOSA: O ensino da filosofia como uma
“filósofo pode falar sobre qualquer coisa”. Recusei o estratégia contra a tarefa da interdisciplinaridade. In: KOHAN, Wal-
ter (Org.) Filosofia - Caminhos para seu Ensino. Rio de Janeiro: DPA,
convite alegando falta de tempo e fiquei com a sensa-
ção de que a pergunta mais apropriada deveria ser:
2004, p. 87-100.
2. Agora já está disponível o título Filosofia em 60 segundos, de um
15
“Existe vida inteligente na TV?”. A resposta para tal certo Andrew Pessin, editado pela Leya Brasil.
pergunta pode ser sim, não ou talvez, depende tam- 3. Para uma tentativa mais apurada de definição ver FEITOSA, C.
O Que é isto - Filosofia Pop? In: LINS, Daniel (Org.). Nietzsche e De-
bém do engajamento de nós, participantes da comuni- leuze - Pensamento Nômade. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001, p.
dade acadêmica. 95-105.
4. Cf. FEITOSA, C. No-nada. Formas Brasileiras do Niilismo. Disponí-
vel em: Flusser Studies, v. 3, 2006, (http://www.flusserstudies.net/
6. Street Philosophy pag/03/no-nada.pdf).
Divulgar, assim como ensinar ou traduzir, 5. Nesse sentido, recomendo enfaticamente a leitura do mais recente
envolve uma escuta atenta do outro, é sempre um ca- livro de Marcia Tiburi (O Olho de Vidro, Rio de Janeiro: Record, 2011),
minho de mão dupla. O problema da divulgação cien- em que a autora ousa uma bem-sucedida interpretação ontológica,
estética e política da suas experiências na televisão.
tífica está associado ao tipo de ensino superior que 6. NIETZSCHE, F. Aurora (1881), §127, São Paulo: Companhia das
costumamos praticar. A separação rígida não apenas Letras, 2004.
entre as grandes áreas (humanas x naturais, ou “de-
sumanas”, como gosto de dizer em tom de provoca-
P
ção), ou entre disciplinas (filosofia x psicologia, etc.),
ou mesmo no interior das próprias disciplinas (filo-
sofia analítica x “filosofia continental”), é um indício
significativo da crença na associação entre excelência * Charles Feitosa é doutor em Filosofia pela Universidade
e especialização do conhecimento. Essa associação não de Freiburg i. B./Alemanha, professor do Departamento de
é óbvia, nem dada, é resultado de uma longa história, Filosofia e Ciências Sociais (DFCS) da UNIRIO.
não deveria portanto ser vista como definitiva. Nem
sempre foi assim, não tem que continuar sendo assim.
As nossas ins-tituições universitárias costumam tam-
bém trabalhar com uma distinção muito rígida e hie-
rárquica entre suas três áreas de atuação mais funda-

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Aspectos filosóficos e
pedagógicos do pensamento
de Rubem Alves
por Antônio Vidal Nunes*

A preocupação filosófica fundamental de Ru-


bem Alves é o homem. Neste sentido, podemos dizer
que o seu pensamento é, antes de tudo, antropológico.
O homem sempre ocupou o centro de sua reflexão.
Quando Alves estende o seu humanismo a uma com-
preensão da educação, vemos surgir o seu pensamento
pedagógico em um contexto muito particular do seu
itinerário reflexivo. Concebendo o homem como um
ser de desejo, de amor, seu pensamento educacional
postulará a essencialidade da vida e de componentes
afetivos no processo de aprendizagem, estabelecendo
crítica a toda visão intelectualista da educação presente
no sistema oficial de ensino brasileiro.
A reflexão alvesiana sobre o homem tem como ição foi destruída, muitos de seus membros foram
ponto de partida sua própria experiência pessoal após presos, outros partiram para o exílio. Entre estes pen-
o golpe militar de 1964. Posteriormente à sua saída do sadores destacamos Nelson Wernek Sodré, Guerreiro
seminário, em 1957, Alves, como jovem teólogo, sensí- Ramos, Rolando Corbisier e Álvaro Vieira Pinto. Este
vel ao processo histórico brasileiro, buscou estabelecer último não apenas marcará Alves, mas o próprio Paulo
um pensamento religioso que motivasse a participação Freire, que terá nele o seu grande mestre brasileiro.
dos cristãos nas realidades do mundo. Deus não pro- Com a tomada do poder pelos militares, ocorre
voca a retirada do homem do mundo, mas o estimula a um aborto em relação às esperanças alimentadas. Os
assumir o mundo natural como uma dádiva. A encar- canais de participação popular foram fechados, al-
nação de Jesus Cristo representou uma afirmação do gumas lideranças foram presas, outras foram mortas
mundo. Ele viveu em tudo a condição humana. Nasceu e muitos tiveram de abandonar sua pátria. Entre eles
de uma mulher e participou das vicissitudes humanas: se encontrava Rubem Alves. Esta experiência marcará
sentiu medo, fome, fez amigos, participou de banquete, profundamente a sua vida e o levará a uma crise pro-
morreu, etc. (Alves: 2004). Os cristãos são, na reflexão funda, que o fará avaliar as suas convicções e ideias. O
de Alves desse período, convidados a contribuir para a que parecia tão certo e inevitável tornou-se impossível
construção de uma sociedade mais humana, ajudando com a ação repressiva dos militares. Toda esta situação
na construção de uma nação, que, naquele contexto levará Alves a perceber um certo otimismo ingênuo
histórico, após séculos de dominação, poderia consti- que até então ele alimentava. O sonho foi desfeito, as
tuir um projeto para si. Acreditava o pensador mineiro esperanças estavam profundamente comprometidas.
que o Brasil vivia um processo revolucionário e que as É no interior deste sofrimento que ele procurará um
mudanças nas estruturas sociais e políticas eram inevi- caminho novo de reflexão. A questão fundamental
táveis, pois havia amadurecimento das consciências, e em meio ao caos experienciado será exposta em um
a sociedade brasileira estava prestes a ganhar autono- de seus livros: Como se manter íntegro em um con-
mia em relação aos centros imperialistas de domina- texto de dominação e dor? Creio que é esta reflexão
ção colonialista. Havia participação intensa das orga- que estará no coração do humanismo que ele desen-
nizações populares na vida do país, a pátria brasileira volverá no exílio. Mas essa interrogação tem a ver com
nunca tinha conhecido uma efervescência social e cul- a própria situação existencial do pensador brasileiro.
tural como a da década de 1960. Nesse contexto, Alves Era preciso continuar vivendo: diante de um sonho
16
se apoiou nas ciências sociais em sua interpretação da desfeito, em que se deveria se agarrar? No próximo
realidade brasileira. Ressalto aqui a contribuição do momento de sua atividade intelectual, Alves não será
Instituto de Estudos Brasileiros – Iseb. Esta instituição, mais um otimista, mas um esperançoso. Como ele mes-
formada por intelectuais brasileiros a partir de mea- mo dirá, o primeiro acredita em um futuro possível a
dos da década de 1960, buscava, com a contribuição partir das evidências percebidas no presente. Olhando
de profissionais das várias áreas – história, sociologia, as coisas que ocorrem em nossa volta, somos capazes
filosofia, política –, repensar novos caminhos, um novo de prever as possibilidades vindouras. O homem de
projeto para o Brasil. Com o golpe de 1964, esta institu- esperança acredita em novas verdades e realidades a

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despeito das evidências do presente. Pois na dinâmica é uma mistura de desejo e linguagem. É na inter-rela-
complexa da vida muitas coisas ocorrem para além das ção desses componentes (afetivos e simbólicos) que o
nossas possibilidades de percepção. A vida não se dei- homem trabalha com a sua inconclusão. Assim, Alves
xa engaiolar em nossas representações. Haverá sempre lançará mão de vários conceitos para apresentar seu
mais vida para além daquilo que podemos apreender humanismo: história, linguagem, desejo, corpo, etc.
e dizer. Esta foi a grande lição que Alves tirou da ex- Vejamos como ele vai tecendo sua rede simbólica hu-
periência amarga desse primeiro momento da sua manista.
atividade como teólogo. Com esse acontecimento, ele Primeiro ele retoma certas posições filosó-
se distancia do imediato, da realidade mais próxima, e ficas que definem o homem como ser histórico, que
procura novas fundamentações para o seu pensamen- foram postuladas na história mais recente da filosofia
to, torna-se mais filosófico. Vai buscar novas formas (Hegel, Marx, Heidegger, etc.). A existência humana,
explicativas adequadas a uma nova maneira de inteli- diferentemente da dos demais animais, é aberta. Não
gibilidade do homem, do mundo e dos processos de sendo pronto e acabado, o homem está sempre se fa-
transformações sociais. É na busca de uma compreen- zendo. Tanto ele como o mundo estão inconclusos. O
são de si e da sua ação no mundo que Alves estabelece homem enquanto pertencente ao reino da liberdade é
o seu humanismo. Neste sentido, o seu pensamento convidado e desafiado a refazer a si e ao seu mundo
está colocado a partir de sua própria vida. Mas ele permanentemente. Desta forma, ele é um ser capaz de
mesmo diz: primeiro vem a vida, depois vem o pensar. responder, de projetar, de sonhar, de modo diverso
dos animais, que, imersos na ordem biológica, apenas
O homem enquanto preocupação central respondem aos estímulos recebidos, não sendo capa-
Algum tipo de consideração sobre o homem zes de fazer história (Alves, 1987, p 45). O mundo se
podemos encontrar em vários sistemas filosóficos. Em coloca como um convite ao homem, como uma dádiva
grande parte deles, o homem é pensado com base em em virtude da qual ele se constrói e se faz. O seu pre-
concepções ontológicas mais amplas. Ou seja, estabe- sente nunca é dado de maneira absoluta. Por ser um ser
lecia-se uma metafísica, uma forma de compreender a histórico, ele pode recusá-lo e gerar um novo amanhã,
realidade do mundo e, decorrente dela, explicitava-se mediante sua ação política. Política, neste sentido, seria
uma antropologia possível. Neste sentido, a reflexão a atividade por meio da qual o homem, mediatizado
antropológica estava subordinada à realidade trans- pelo seu poder, realiza a sua liberdade, sendo esta nun-
cendente e a-histórica, na qual o homem encontrava ca algo fixo e imutável, mas sempre em processo de
o seu próprio sentido e razão de ser. O entendimento construção (Alves, 1987, p. 60).
que Alves tem de homem não é derivado de alguma Como ser histórico, o homem é tensão perma-
realidade que se coloque na sua anterioridade. Para nente; por sua vocação política, ele é chamado à criação
ele, o homem é o centro. É a partir do homem que de um novo futuro quando o presente constitui uma
tudo se explica. Por isso dissemos anteriormente que negação da sua liberdade e de seu desejo de felicidade.
o pensamento de Alves se caracteriza essencialmente Mas aí entra um outro conceito importante: a lingua-
por uma reflexão sobre o homem, embora ela ocorra
de maneiras diversas, de acordo com cada fase do
gem. Alves entende o homem como um ser simbólico.
Na linguagem, entramos no mundo humano e, por 17
seu pensamento. No labor cognitivo de sua primeira intermédio dela, podemos dar novas configurações à
fase reflexiva, a qual denominei teológica, havia pre- ordem estabelecida. Podemos dizer que a linguagem é
ocupação sobretudo com aquele que se encontrava uma das mais revolucionárias tecnologias inventadas
excluído, marginalizado, desumanizado e sem pos- pelo homem; por meio dela criamos mundos novos.
sibilidade de participação na riqueza produzida. Mas As novas realidades não ganham existência sem que
no seu momento posterior e filosófico, sua investiga- novos símbolos sejam criados para nomeá-las. A lin-
ção objetivava explicitar quem é este homem e qual a guagem faz parte das respostas novas que o homem
sua participação no processo de transformação social. dá ao seu mundo. Desta forma, ela é, antes de tudo,
Busca resgatar o homem como partícipe no processo um espelho da historicidade do homem (Alves, 1987,
de transformações sociais, como um ser concreto, e não p. 46). Ressalta ele que a linguagem também padece de
como ser abstrato. Esta iniciativa não ocorre por acaso; ambiguidade. Uma vez criada, pode querer perpetuar-
ela é uma resposta a certas concepções filosóficas que se para além de seu tempo de validade. Ela se cristaliza
consideravam o homem um ser abstrato ou um sim- e busca paralisar a própria história: fica presa ao pas-
ples joguete em meio a forças que lhe eram transcen- sado. Mas Rubem Alves falará também de uma lin-
dentes. Não negará Alves os condicionamentos sociais, guagem histórica, fluida, móvel, que não perde o seu
políticos e econômicos sofridos pelo homem enquanto tempo e permite ao homem uma nova compreensão de
ser situado e datado, mas, analogicamente a Kant, que si e do mundo. É a linguagem que expressa mais uma
via a atividade criadora e participativa do homem no procura, uma busca. Ela se alimenta da esperança, não
processo de construção do conhecimento dentro de reforça nem reproduz o status quo e as velhas represen-
uma perspectiva estritamente epistemológica, advo- tações que o homem tem de si.
gará Alves que o homem, com base em componentes Outro conceito importante na filosofia de
que lhe são definidores, torna-se também um produtor Alves é o de corpo. Não entendido como uma realidade
de novas realidades, de novos mundos, enquanto ser biológica, mas uma realidade construída, perpassada
histórico. Mas como ele define o homem? O homem por sonhos, símbolos. Nele se encontra nossa memória

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histórica, tecida pela linguagem nele abrigada que se pensadores da educação brasileira após o golpe militar
fez carne. Ele também é a sede dos nossos desejos, é o de 1964. Entre eles, Dermeval Saviani, um dos funda-
centro estruturante de tudo o que realizamos. É uma dores da tendência filosófica brasileira da educação,
potência subversiva capaz de tirar o mundo de seu denominada “tendência crítico-social dos conteúdos”.
eixo. Para Alves, não existe algo maior do que o corpo. Também fará parte dessa faculdade Maurício Trag-
Cada corpo é como se fosse o centro do mundo. “Qual- temberger, vinculado à pedagogia libertária de inspi-
quer que seja a realidade que me atinge, nada sei sobre ração anarquista. Com o processo de abertura política,
ela. Só a conheço como reverberação do meu corpo. chegará do exílio Paulo Freire, com sua pedagogia li-
Os limites de meu corpo denotam os limites do meu bertadora. Aos poucos, com suas publicações, Rubem
mundo” (Alves, 1982, p. 37). Talvez o homem possa ser Alves forjará uma nova forma de conceber a educação.
minúsculo diante do mundo, mas o desejo faz com que Não podemos dizer que Alves tenha estabelecido uma
o mundo fique pequeno diante dele. Ressaltará Alves teoria da educação de forma sistematizada e rigorosa.
que Nem era essa a sua preocupação.
Nesse novo espaço, Alves terá a oportunidade
o corpo é a origem do imperativo categórico da ação com de estender o seu humanismo, que ele continuará de-
o fito da sobrevivência. Ou mais precisamente: da ação senvolvendo após sua volta do exílio, à compreensão
que tenha por fim uma vida plena de satisfações. O corpo da educação. Inicialmente ele começou a escrever
tem, assim, uma prioridade axiológica sobre tudo, pois pequenos artigos, que eram discutidos com os alunos
consiste no fundamento e na meta do mundo humano
da Faculdade de Educação, tanto da graduação como
(Alves, 1986, p. 156).
da pós-graduação. Esses textos foram compilados, e
É a partir dele que tudo acontece. O que é a no início da década de 1980, saiu o primeiro livro, de-
cultura senão uma criação da imaginação, que, por sua nominado Conversas com quem gosta de ensinar. Foi um
vez, constitui as asas do próprio corpo? Mas o corpo livro bastante lido pelos educadores brasileiros. Pos-
coloca-se como a força da imaginação. Nesta articula- teriormente, ele publicará outro: Estórias de quem gosta
ção, a cultura faz emergir nova linguagem, capaz de de ensinar. É bom lembrar que, nesse período, o pensa-
nomear novos mundos. mento de Alves passava por um processo de radicaliza-
O que são as revoluções sociais senão a reali- ção. Aos poucos, ele estava abandonando a linguagem
zação dos corpos movida pela esperança de que tudo acadêmica e escrevendo de forma poética. O filósofo,
possa ser diferente do que é? As mudanças começam que falou por algum tempo, foi substituído pelo poeta.
com a dor do corpo oprimido. Quando o sofrimento Além dos livros citados, poderíamos lembrar: Alegria
aperta, libera a imaginação para buscar pátrias novas, de ensinar, Educação: entre a ciência e a sapiência, Educação
em que a vida possa ser possível e vivida em plenitude. dos sentidos etc.
Viver é muito mais do que sobreviver; é ter a plenitude
do corpo. Alves fala da utopia em sentido ontológico, é Uma educação significativa e em fun-
o sonho de quem sonha acordado. ção da vida
Podemos perceber que, ao contrário de boa Como já ressaltamos antes, a concepção edu-
parte de nossa tradição filosófica ocidental, que priv- cacional de Alves encontra-se intimamente articulada
ilegia a lógica e a razão, Alves vai estabelecer o pri- ao seu humanismo. Nele o homem é afirmado como
mado da razão afetiva. Identificado está com Nie- ser de desejo, de criação. Não se trata de negar a cul-
tzsche, quando este diz que a grande razão é o corpo. tura estabelecida e a necessidade dela para nossa so-
O intelecto é apenas um pequeno instrumento desta brevivência e nosso ingresso no mundo humano. As
grande razão. Podemos dizer que a filosofia alvesiana receitas passadas não são indispensáveis, o legado de
é dionisíaca sem negar a presença apolínea. Talvez ele nossos antecessores não pode ser renunciado. Ele nos
procure realizar o ideal de um pensamento que sente e permite caminhar sobre terra firme, como lembrará
um sentimento que pensa. Alves: “Terra firme: as milhares de perguntas para as
quais as gerações passadas já descobriram as respos-
Aspectos pedagógicos do pensamento de tas. O primeiro momento da educação é a transmissão”
Rubem Alves (Alves, 1994, p. 83). E ele se constitui no processo me-
A educação torna-se objeto da reflexão de Ru- diante o qual vamos sendo empanados, enrolados com
bem Alves após o ano de 1976, quando ele começa a símbolos, nos quais estão guardadas as conquistas dos
trabalhar na Faculdade de Educação da Unicamp. nossos antepassados.
Alves chegara ali transferido da Faculdade de Filoso-
Desde que nascemos, continuamente, palavras nos vão
fia, Ciências e Letras da mesma universidade, lugar
18 onde encontrara vários amigos. Alguns deles havi-
sendo ditas. Elas entram no nosso corpo, ele vai sendo
transformado, virando uma outra coisa diferente do que
am estudado com ele no Seminário Presbiteriano de era. Educação é isto: um processo pelo qual o corpo vai
Campinas. Depois, fará amizade com Antonio Muniz ficando igual às palavras que nos ensinam. Eu não sou, eu
de Rezende, Augusto Novaski, Aquiles Von Zuben e sou as palavras que os outros plantaram em mim (Alves,
outros. A Faculdade de Educação, nesse contexto, era 1994, p. 34).
um dos mais importantes centros da reflexão educa-
cional do país. Ali se encontravam os mais importantes Desta forma, somos filiados a uma tradição,

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disto não há como escapar, ainda que certas linhas da introdução do seu livro Assim falava Zaratustra. Falará
psicologia da educação recusem essas premissas. O o pensador alemão que primeiro somos o camelo que
que Alves critica nos sistemas oficiais de ensino é a for- carrega de maneira subserviente a carga que lhe é colo-
ma como o conteúdo é transmitido, descolado da vida cada nas costas. Mas o camelo se rebela e se transforma
e daquilo que é significativo aos alunos. Para o corpo em leão, cujo nome é “Eu quero”. O leão brigará com
torna-se difícil carregar um conhecimento morto que o grande dragão, chamado “Tu deves”. Embora o leão
ele não é capaz de assimilar e integrá-lo à própria vida brigue com a tradição, ele não é capaz de criar. Ele pre-
(Alves, 1994, p. 22). O resultado é que o corpo logo para o caminho para a próxima metamorfose, quando
trata de se desfazer desses conhecimentos. O meio que então se transformará em criança. Esta sim tem poder
ele usa é o esquecimento. Assim, poderíamos postular para criar. Nietzsche está se referindo a cada um de
um primeiro princípio da visão educacional alvesiana: nós. Primeiramente assimilamos e carregamos o pas-
o processo de aprendizagem deve necessariamente estar pre- sado; em seguida, acontece a recusa. Nem tudo o que
so àquilo que é significativo para os alunos. O pensador nos disseram que era bom de fato o é. Para criarmos o
brasileiro é conhecedor das dificuldades que se encon- novo, temos de nos tornar criança, perder o passado,
tram presentes nas atividades educativas. Sabe ele que ganhar leveza e nos aventurar pelo mundo do pos-
uma pianista, para adquirir leveza e habilidade com sível. Na metamorfose do espírito está o essencial da
o teclado, precisa passar por um trabalho cansativo, prática educativa.
que exige muita disciplina, mas, quando há motivação,
tudo se torna mais fácil. O aluno é capaz de desenvol- Uma educação amorosa e sedutora
ver suas atividades de forma prazerosa. Não se trata de O processo educativo implica sempre um
buscar facilidade, mas de articular os saberes com sua lançar-se, um trocar as estradas batidas pelas veredas
própria vida e com os projetos que os alunos poderão desconhecidas. De certa maneira isso nos dá medo;
estabelecer na sua busca. Na sociedade o processo edu- trocar o mundo conhecido pelo desconhecido causa
cativo faz parte das atividades sociais globais. E nem insegurança. Neste processo o educador tem um du-
sempre a educação se articula a uma afirmação da vida plo papel. Trata-se, em primeiro lugar, de estimular os
e ao sentido erótico da existência. As pessoas estudam, alunos a irem um pouco além do lugar onde se encon-
antes de tudo, em função de atender uma racionali- tram. É importante que o educando saiba que o que
dade, que, guiada pelos interesses econômicos e pela ele conhece não é tudo, que há algo além. Por outro
lógica que a preside, subjuga a própria vida. lado, é importante propiciar aos alunos percepção de
suas possibilidades de realização e de sua capacidade
Uma educação questionadora e criadora de transcender. Alves falará da importância de desper-
Alves sabe da dinâmica de morte e ressur- tar a beleza adormecida que existe dentro de cada um.
reição pela qual passam os símbolos e os mundos a Isso acontecendo, a busca de conhecimento torna-se
eles articulados. Mas o que ocorre é que os saberes mais fácil. É importante a observação de Rubem Alves
disponíveis são transmitidos de forma autoritária, e de que “conhecimento é coisa erótica, que engravida.
as verdades socializadas são tidas como absolutas. As
representações, as ideias, entretanto, são de natureza
Caso contrário, permanecem os olhos impotentes e in-
úteis. Para conhecer é preciso primeiro amar” (Alves, 19
histórica, ainda que tenham pretensão de eternidade. 1995, p. 97). Lembremos que um dos postulados essen-
Nossas explicações do mundo têm o seu tempo de ciais do seu pensamento filosófico é o de que o homem
validade, ainda que possam perpetuar-se para além do é um ser de desejo, de amor. Não somos movidos pelas
tempo a que foram pertinentes. Para o pensador pátrio, ideias, mas pelas paixões que podem encontrar-se
nossas escolas têm contribuído para a reprodução dos subjacentes às ideias. Quando o educando é tomado
legados culturais, mas não têm ajudado a criar nos alu- por certos sonhos, por determinados ideais, quando se
nos uma postura crítica e questionadora. Possibilitar sente responsável por um projeto, o processo de apren-
ao educando um comportamento crítico e criativo é dizagem torna-se prazeroso, afirmando a própria vida.
permitir-lhe versatilidade no trato com o mundo, em Por isso fala Alves que o trabalho do educador é
suas possibilidades de recriação. Para isso os alunos
devem aprender a fazer perguntas. É nessa direção [...] mostrar a frutinha. Comê-la diante dos olhos dos alu-
que nossas escolas têm de trabalhar. Como dirá Alves, nos. Provocar a fome. Erotizar os olhos. Fazê-los babar
as escolas existem não apenas para nos ensinar respos- de desejo. Acordar a inteligência adormecida. Aí a cabeça
fica grávida: engorda com ideias. E quando a cabeça en-
tas, mas para ensinar as perguntas. “As respostas nos
gravida não há nada que segure o corpo (Alves, 1999, p.
permitem andar sobre a terra firme. Mas somente as
28).
perguntas nos permitem entrar pelo mar desconheci-
do” (Alves, 1994, 83). É preciso oportunizar ao aluno
um comportamento não dogmático, mas aberto, na Uma educação dos sentidos
realização de sua liberdade, em um mundo sempre Em Alves, há uma reabilitação dos sentidos. É
inconcluso e convidativo. A capacidade crítica e ques- a partir dela que podemos falar de uma educação da
tionadora é importante para colocar sob suspeita o es- sensibilidade. Fomos profundamente marcados por
tabelecido; é um passo necessário e preparador para um racionalismo que desqualificou nossos sentidos.
a atividade criativa. Alves lembrará sempre das “três De certa forma isso reflete na prática escolar. Qual im-
metamorfoses do espírito” de que fala Nietzsche na portância se tem dado à educação estética em nossas

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escolas? Para Alves, temos de passar de uma educação esforço foi na tentativa de explicitar os caracteres es-
intelectualista para uma outra, da sensibilidade. Certa- senciais desse ser histórico, que, morando também na
mente ele estaria identificado com as palavras de Ber- linguagem, vive uma tensão entre o passado e o futuro
nardo Soares no Livro do desassossego, por ele bastante a partir das situações concretas colocadas por seu pre-
conhecido. sente. Diante das situações de opressão a imaginação
Há uma erudição do conhecimento, que é pro- emigra para mundos onde o prazer e as possibilidades
priamente o que se chama erudição, e há uma erudição de uma vida plena tornam-se possíveis. Nós nos torna-
do entendimento, que é o que se chama cultura. Mas mos grávidos das realidades do amanhã, que vão sen-
há também uma erudição da sensibilidade. A erudição do nomeadas com símbolos. E, assim, o ainda não vai
da sensibilidade nada tem a ver com a experiência se fixando e ganhando lugar e concretude, afirmando
da vida. A experiência da vida nada ensina, como a o homem como homo creato. Em consonância com es-
história nada informa. A verdadeira consciência con- ses pressupostos, advoga uma educação significativa,
siste em restringir o contato com a realidade e aumen- que possa, além de transmitir as conquistas dos nossos
tar a análise desse contato. Assim, a sensibilidade se antepassados, promover a reeducação dos sentidos e
alarga e aprofunda porque em nós está tudo; basta que as possibilidades de criação de um corpo erotizado em
o procuremos e o saibamos procurar (Soares, 1996, p. todas as suas dimensões. O processo educativo deve
287-8). contribuir para a ressurreição do corpo no interior de
Para explicar a tarefa da educação, Alves fala uma ordem econômica que o deserotizou e reduziu to-
de duas caixas que carregamos. Na mão direita trans- dos os sentidos a um único: o ter.
portamos a caixa do trabalho e da destreza. Na mão P
esquerda carregamos a caixa de brinquedos, a do cora-
ção. Uma se vincula às coisas que nos são úteis para so-
brevivermos, a outra às coisas que são inúteis, que não * Antônio Vidal Nunes, professor da UFES.
servem para nada, são fim em si mesmas. Servem para
ser gozadas, não são meios para nada. Poesia, música, Referências bibliográficas
teatro, pintura, escultura são brinquedos que criamos
para dar alegria ao corpo. Santo Agostinho também fa- ALVES, Rubem. A Igreja no Mundo. Brasil Presbiteriano. Rio de
lava da ordem da utilidade e da ordem da fruição, coisa Janeiro, a. 5, p. 1-2, dez. 1962.
muito próxima dos dois princípios falados por Freud: ______. Livrai o espoliado da mão do seu opressor. Brasil
o da realidade e o do prazer. Para Alves, a escola tem Presbiteriano. Rio de Janeiro, a. 7, p. 1-2, 1. quinz. jan. 1964a.
ensinado apenas as coisas úteis, mas não tem ensinado ______. Jeca Tatu. Brasil Presbiteriano. Rio de Janeiro, a. 7, p.
1-2, 2. quinz. jan. 1964b.
a brincar, não tem realizado um trabalho de erotização
______. Dogmatismo e tolerância. São Paulo: Paulinas, 1982.
do corpo, para que o estudante, por meio dos senti- ______. Variações sobre a vida e a morte. 4. ed. São Paulo: Pau-
dos, possa viver prazerosamente e acolher tudo o que linas, 1982.
se encontra à sua volta. É preciso aprender a ver. Para ______. Conversas com quem gosta de ensinar. São Paulo: Cor-
Alves, o ato de ver não é natural; precisa ser aprendido tez/Autores Associados, 1984.
(Alves, 2005, p. 23). Da mesma forma, a sensibilidade _____. Estórias de quem gosta de ensinar. São Paulo: Ars Poé-
auditiva deve ser ensinada: que escola ensina arte e o tica/Speculum, 1985.
prazer do silêncio? É condição necessária para ouvir as ______. Gestação do futuro. Campinas: Papirus, 1986.
músicas do mundo e outras músicas. Aliás, diz Alves: ______. Da esperança. Campinas: Papirus, 1987a.
______. O suspiro do oprimido. 2. ed. São Paulo: Paulinas,
1987b.
A educação da nossa sensibilidade musical deveria ser
______. O enigma da religião. 4. ed. Campinas: Papirus, 1988.
um dos objetos da educação. Os conhecimentos da ciên-
______. Filosofia da ciência: uma introdução ao jogo e suas regras.
cia são importantes. Eles nos dão poder. Mas eles não
13. ed. São Paulo: Brasiliense, 1990.
mudam o jeito de ser das pessoas. A música, ao contrário,
_______. Crônica. O olhar do professor. Campinas: O Correio
não dá poder algum. Mas ela é capaz de penetrar na alma
Popular de Campinas, 24-10-1999.
e de comover o mundo interior onde mora a bondade.
______. Sobre o tempo e a eternidade. Campinas: Speculum,
Afinal, esta não deveria ser a primeira tarefa da educação:
1995.
produzir a bondade? (ALVES, 2005, 43).
______. Navegando. São Paulo: Ars Poética, 1997.
______. O amor que acende a lua. 4. ed. Campinas: Papirus,
Segundo Alves, Marx tinha razão quando de- 2001.
nunciou o capitalismo nos Manuscritos econômicos e ______. Lições de feitiçaria: meditações sobre a poesia. São Paulo:
filosóficos de 1844; nossa sociedade capitalista desero- Loyola, 2003.
tizou o corpo e destruiu a vida dos sentidos. O único ______. O velho que acordou o menino: infância. São Paulo: Pla-
20 sentido que permanece é o do ter. O gozo se dá medi- neta, 2005.
______. Educação dos sentidos. Campinas: Verus, 2005.
ante a posse dos objetos (ALVES, 2005, p. 44).
PESSOA, Fernando. Livro do desassossego. São Paulo: Brasil-
iense,1996.
Conclusão NIETZSCHE, F. Assim falava Zaratustra. São Paulo: Hemus,
Alves se defrontou com tradições filosóficas 1981.
metafísicas e racionalistas. Em sua trajetória reflexiva,
descobrirá não um homem ideal e abstrato, mas um ser
concreto, de carne e osso, movido pelo desejo. O seu
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Meditação sobre a
obediência e a liberdade1
por Simone Weil (1909-1943)
Tradução: Emilia Maria M. de Morais.

A submissão do maior número ao menor, esse de força social4. A sociedade não pode ter seus enge-
fato fundamental de quase toda organização social, nheiros enquanto não tiver seu Galileu. Existe neste
não deixa de assombrar todos os que refletem um pou- momento, sobre toda a face da terra, um espírito que
co. Na natureza, observamos os pesos mais pesados conceba, mesmo vagamente, como é possível que um
prevalecerem sobre os menos pesados, as raças mais homem no Kremlin tenha a possibilidade de fazer rolar
prolíficas sobrepujarem as outras. Entre os homens, qualquer cabeça nos limites das fronteiras russas?
essas relações tão claras parecem invertidas. Decerto, Os marxistas não facilitaram uma visão clara
sabemos por uma experiência cotidiana que o homem do problema ao escolherem a economia como chave
não é um simples fragmento da natureza e o que nele do enigma social. Se se considera uma sociedade como
existe de mais elevado – a vontade, a inteligência, a fé um ser coletivo, então esse grande animal5, como todos
– produz, todos os dias, espécies de milagre. Mas não os animais, define-se principalmente pelo modo como
é disso que se trata se assegura a nutrição, o sono, a proteção contra as in-
aqui. A necessidade tempéries, em resumo, a vida. Mas a sociedade con-
impiedosa que man- siderada em sua relação com o indivíduo não pode se
teve e mantém de definir simplesmente pelas modalidades da produção.
joelhos massas de Por mais que se recorra a toda espécie de sutilezas
escravos, massas de para fazer da guerra um fenômeno essencialmente
pobres, massas de econômico, salta aos olhos que a guerra é destruição
subordinados, nada e não produção. A obediência e o comando são tam-
tem de espiritual; ela bém fenômenos dos quais as condições de produção
é análoga a tudo o não são suficientes para dar conta. Quando um velho
que existe de brutal operário sem trabalho e sem assistência perece silen-
na natureza. Como ciosamente na rua ou em um casebre, essa submissão
se, na balança social, que se estende até a morte não pode ser explicada pelo
o grama excedesse o jogo das necessidades vitais. A destruição massiva do 21
quilo. trigo, do café, durante a crise, é um exemplo não menos
claro. A noção de força, e não a noção de necessidade,
Há quase quatro séculos, La Boétie, no seu constitui a chave que permite ler os fenômenos soci-
Contra-um, colocava a questão2. Ele não a respon- ais6. Galileu não teve de se louvar, pessoalmente, por
deu. Sobre quantas ilustrações comoventes podería- ter decifrado a natureza com tanto gênio e probidade;
mos apoiar seu pequeno livro, nós, que vivemos em pelo menos ele se chocava apenas com um punhado de
um país que cobre a sexta parte do globo, um único homens, poderosos especialistas na interpretação das
homem sangrar toda uma geração3. É quando inflige Escrituras. O estudo do mecanismo social é entravado
a morte que o milagre da obediência salta aos olhos. por paixões que se encontram em todos e em cada um.
Que muitos homens se submetam a um só por medo Não existe quase ninguém que não queira seja subver-
de serem mortos por ele é bastante espantoso; mas que ter, seja conservar as relações atuais de comando e de
eles permaneçam submissos a ponto de morrer sob submissão. Um desejo e o outro colocam uma névoa
suas ordens, como compreendê-lo? Quando a obediên- diante do olhar do espírito e impedem de perceber as
cia acarreta tantos riscos quanto a rebelião, como ela se lições da história que mostram por todo lado as massas
mantém? sob o jugo e alguns erguendo o açoite. Uns, do lado que
O conhecimento do mundo material no qual faz apelo às massas, querem mostrar que essa situa-
vivemos pôde se desenvolver a partir do momento ção é não somente iníqua, mas também impossível, ao
em que Florença, depois de tantas maravilhas, trouxe menos para um futuro próximo ou longínquo. Os ou-
à humanidade, por intermédio de Galileu, a noção de tros, do lado que deseja conservar a ordem e os priv-
força. Foi somente então que a organização do meio ilégios, querem mostrar que o jugo pesa pouco, ou que
material pela indústria pôde ser empreendida. E nós, ele é mesmo consentido. Dos dois lados, lança-se um
que pretendemos organizar o meio social, dele não véu sobre o absurdo radical do mecanismo social, em
possuiremos sequer o conhecimento mais grosseiro vez de se enxergar de frente esse absurdo aparente e
enquanto não tivermos concebido claramente a noção analisá-lo para encontrar nele o segredo da máquina.

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Em qualquer domínio que seja, não existe outro mé- sua vitória se esfumam; a situação primitiva ou uma
todo para refletir. O espanto é o pai da sabedoria, dizia situação equivalente restabelece-se pouco a pouco;
Platão. posto que no intervalo os chefes tenham mudado, são
sempre os mesmos que obedecem. Os poderosos não
Visto que o grande número obedece, e obedece têm interesse mais vital senão impedir essa cristaliza-
até deixar-se impor o sofrimento e a morte, enquanto o ção das massas submissas ou, ao menos, como eles não
pequeno número comanda, não é verdade que a maio- podem sempre impedi-la, torná-la o mais rara possí-
ria seja uma força. O número, apesar do que a imagi- vel. Que uma mesma emoção agite, ao mesmo tempo,
nação nos leva a crer, é uma fraqueza. A fraqueza está uma grande quantidade de desgraçados é o que acon-
do lado onde se tem fome, onde se está esgotado, onde tece com frequência pelo curso natural das coisas; mas
se suplica, onde se treme, não do lado onde se vive habitualmente essa emoção apenas despertada é repri-
bem, onde se concedem favores, onde se ameaça. O mida pelo sentimento de uma irremediável impotên-
povo não está submisso apesar de ser a maioria, mas cia. Manter esse sentimento de impotência é o primeiro
porque é a maioria. Se na rua um homem se bate contra artigo de uma política hábil por parte dos senhores.
vinte, sem dúvida, ele será deixado como morto sobre O espírito humano é incrivelmente flexível,
a calçada. Porém, sob um sinal de um homem branco, prestes a imitar, prestes a se curvar sob as circunstân-
vinte coolies anamitas7 podem ser espancados com gol- cias exteriores. Aquele que obedece, aquele cuja pala-
pes de chicote, um depois do outro, por um ou dois vra de outrem determina os movimentos, as penas, os
chefes de equipe. A contradição, talvez, seja somente prazeres, sente-se inferior, não por acidente, mas por
aparente. Sem dúvida, em qualquer ocasião, aqueles natureza. No outro extremo da escala, sente-se do mes-
que ordenam são menos numerosos do que aqueles mo modo superior, e essas duas ilusões se reforçam
que obedecem. Mas precisamente porque são poucos uma à outra. É impossível ao espírito mais heroica-
numerosos, eles formam um conjunto. Os outros, pre- mente firme guardar consciência de um valor interior,
cisamente porque são muito numerosos, são um, mais quando essa consciência não se apóia em nada de exte-
um, mais um, e assim por diante. Desse modo, a potên- rior. O próprio Cristo, quando se viu abandonado por
cia de uma ínfima minoria repousa apesar de tudo so- todos, ultrajado, desprezado, sua vida valendo nada,
bre a força do número. Essa minoria prevalece muito perdeu por um momento o sentimento de sua missão;
em número sobre cada um daqueles que compõem o o que pode querer dizer de diferente o grito: Meu
rebanho da maioria. Não se deve concluir que a orga- Deus, por que me abandonaste? Aos que obedecem
nização das massas inverteria a relação, pois ela é im- parece que alguma inferioridade misteriosa os predes-
possível. Não se pode estabelecer a coesão senão entre tinou a obedecer por toda a eternidade; e cada marca
uma pequena quantidade de homens. Para além disso, de desprezo, mesmo ínfima, que eles sofrem da parte
não há mais que justaposição de indivíduos, quer di- de seus superiores ou dos seus iguais, cada ordem
zer, fraqueza. que eles recebem, sobretudo cada submissão que eles
próprios cumprem, confirma-lhes esse sentimento10.
Há, entretanto, ocasiões em que não é bem as-
sim. Em certos momentos da história, um grande alento Tudo o que contribui para dar àqueles que es-
passa sobre as massas; suas respirações, suas palavras, tão embaixo na escala social o sentimento de que eles
seus movimentos se confundem. Nada, então, resiste- têm um valor é, em certa medida, subversivo. O mito
lhes. Os poderosos conhecem, enfim, por sua vez, o da Rússia Soviética é subversivo pelo quanto ele pode
que é sentir-se só e desarmado. Tácito, em algumas dar ao trabalhador de fábrica demitido por seu con-
páginas imortais que descrevem uma sedição militar, tramestre o sentimento de que, apesar de tudo, ele tem
soube perfeitamente analisar o caso. “O principal signo por trás de si o exército vermelho e Magnitogorsk11 e,
de um movimento profundo, impossível a apaziguar, assim, permite-lhe conservar seu amor-próprio. O mito
é que eles não estavam disseminados ou manobrados da revolução historicamente inelutável desempenha o
por alguns, mas juntos pegavam fogo, juntos se cala- mesmo papel, se bem que mais abstrato; já é alguma
vam, com tal unanimidade e tal firmeza que se acredi- coisa quando se é miserável que se tenha a história a
taria que agiam sob comando”. Nós assistimos a um seu favor. O cristianismo, em seu início, era também
milagre desse gênero em junho de 1936 e a impressão perigoso para a ordem. Não inspirava nos pobres a
ainda não se apagou8. cobiça dos bens e do poder, muito ao contrário; mas
dava-lhes o sentimento de um valor interior que os
Momentos como esses não duram, se bem que situava sobre o mesmo plano ou mais alto que os ri-
os desgraçados9 desejem ardentemente vê-los durar cos, e era o bastante para colocar a hierarquia social
22 para sempre. Eles não podem durar porque essa una-
nimidade, que se produz no fogo de uma emoção viva
em perigo. Bem depressa ele se corrigiu, aprendeu a
colocar entre os casamentos, os enterros dos ricos e dos
e geral, não é compatível com nenhuma ação metódica. pobres, a diferença que convém e a relegar os últimos
Ela sempre tem por efeito suspender toda ação e frear lugares das igrejas aos desgraçados.
o curso cotidiano da vida. Esse tempo de parada não A força social não se sustenta sem mentira.
pode se prolongar; o curso da vida cotidiana deve ser Tudo o que existe de mais elevado na vida humana,
retomado, e as tarefas de cada dia realizadas. A massa todo esforço de pensamento, todo esforço de amor
se dissolve de novo em indivíduos, as lembranças de também é corrosivo para a ordem. O pensamento

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pode, a justo título, tanto ser descreditado como revo- e valioso livro (http://www.simoneweil.com.br/).
lucionário, de um lado, como contrarrevolucionário, 2. Étienne de la Boétie (1530-1563), escritor francês; em seu
de outro. Porquanto ele constrói sem cessar uma es- Contra-um ou Discurso da servidão voluntária, refletiu sobre o
cala de valores “que não é deste mundo”, é inimigo domínio de todo um povo por um tirano. Note-se o paradoxo
do título: a servidão, embora não natural, ou seja, histórica e
das forças que dominam a sociedade. Porém, ele não é
contingente, é qualificada como um ato da vontade de um
mais favorável aos propósitos que tendem a subverter povo que se apequena, mantendo-se de joelhos diante de seu
ou a transformar a sociedade e que, antes mesmo de cruel dominador. Avesso à equidade, incapaz de nutrir todo
ter tido sucesso, devem necessariamente implicar, para sentimento real de afeição (amor ou amizade), por sua cru-
aqueles que se voltam à submissão do grande número eldade, injustiça ou posição de superioridade frente a seus
ao pequeno, o desdém dos privilegiados pelas mas- subordinados, o tirano empobrece a si mesmo e poderia ter
sas anônimas e a manipulação da mentira. O gênio, a seu lado apenas cúmplices, muito dificilmente amigos. Em
o amor, a santidade merecem plenamente o reproche sua breve vida, la Boétie foi o grande amigo de Montaigne
que muitas vezes lhes é feito de tender a destruir o (1533-1592), o qual resumiu o sentimento excepcional que os
unira apenas com esta frase lapidar: porque era ele, porque
que existe sem nada construir em seu lugar. Quanto
era eu - Ensaios, De l’amitié, livro I, capítulo XXVIII. O texto
àqueles que querem pensar, amar e transpor em toda de la Boétie foi publicado no Brasil, em edição bilíngue, pela
pureza, na ação política, o que lhes inspira seu espírito Brasiliense, em 1987.
e seu coração, eles não podem senão perecer decapita- 3. A autora se refere a J. Stálin.
dos, abandonados pelos seus, difamados pela história 4. É também a partir da noção de força que a autora analisa
depois de sua morte, como ocorreu com os Gracos12. a poesia de Homero. Cfr. A Ilíada ou o poema da força, in:
WEIL, S. A condição operária e outros escritos sobre a opressão.
De uma tal situação resulta, para todo homem Organização e introdução de Eclea Bosi. Trad. Alfredo Bosi.
aficionado ao bem público, um dilaceramento cruel e São Paulo, Paz e Terra, 1996.
5. Grande animal é a expressão de que se vale Platão n’ A
sem remédio. Participar, mesmo de longe, do jogo das
República (livro VI, 493 a-c) para denominar a formação so-
forças que movem a história quase nunca não é pos- cial. Lembremos também que, no século XVII, T. Hobbes in-
sível sem se sujar ou sem se condenar de antemão à titulará com o nome do monstro bíblico, Leviatã, seu principal
derrota. Refugiar-se na indiferença ou numa torre de tratado político.
marfim é também raramente possível sem muita in- 6. A autora se refere à depressão econômica que, nos anos 30,
consciência. A fórmula do “mal menor”, tão desacredi- no século passado, ocasionou a destruição de gêneros de pri-
tada pelo uso que dela fizeram os social-democratas, meira necessidade, tais como o algodão e o trigo, nos EUA; o
permanece, então, a única aplicável, com a condição de café no Brasil e o açúcar em Cuba.
aplicá-la com a mais fria lucidez13. 7. Em inglês, no original, trabalhadores ou camponeses da
costa leste da Indochina, região do Vietnã atual.
A ordem social, embora necessária, é essen-
8. S. Weil evoca o Front Populaire, as greves entre maio-ju-
cialmente má, qualquer que seja. Não se pode reprovar nho de 1936 e o governo socialista, cujo conselho, presidido
aqueles que ela esmaga de sabotarem-na tanto quanto por Léon Blum, entre 04/06/36 até 21/06/37, contou com o
possam; quando se resignam, não é por virtude, ao apoio dos três principais partidos de esquerda da França: a
contrário, é pelo efeito da humilhação que neles apa-
ga as virtudes viris. Não se pode tampouco reprovar
SFIO, Seção Francesa da Internacional Operária, que deu ori-
gem ao atual PS, o PCF, Partido Comunista, e o Partido Radi- 23
aqueles que a organizam por defenderem-na, nem cal Socialista, além de sindicatos, combatentes e intelectuais
representá-los como formando uma conjuração contra ligados às forças populares. Simone Weil celebrou a vitória
o bem geral. As lutas entre os concidadãos não sur- eleitoral da esquerda e os breves tempos de alegria que con-
feriram dignidade ao proletariado. Em 7 de junho de 1936,
gem de uma falta de compreensão ou de boa vontade;
duas leis votadas pelo parlamento instituíram as primeiras
elas pertencem à natureza das coisas e não podem ser licenças de trabalho remuneradas, e a semana de trabalho
apaziguadas, mas somente sufocadas pela coerção. foi reduzida de 48 para 40 horas. Foi também o primeiro go-
Para quem quer que ame a liberdade não é desejável verno francês com a participação direta de mulheres, três ao
que elas desapareçam, mas somente que permaneçam todo, no secretariado de Estado.
aquém de um certo limite de violência. 9. No original: malheureux.
10. Essas amargas observações concernem ao que a própria
Simone Weil não somente observou de muito perto, mas vi-
veu como operária metalúrgica, entre 1934-1935, nas fábricas
Notas Alsthom e Renault.
11. Cidade da Rússia, na região dos montes Urais, fundada
1. WEIL, Simone. Meditação sobre a obediência e a liberdade em 1929, onde Stálin mandou construir uma grande fábrica
(1937) (Projeto de artigo) in: Oppression et liberté, Paris, Ed. siderúrgica que, por vários anos, foi a maior do mundo. Ali,
Gallimard, 1955, p. 186-1931. Reimpresso em Oeuvres com- durante a Segunda Guerra Mundial, empreendeu-se uma in-
plètes, Écrits historiques et politiques, v. II, t. 2, Paris, Galli- tensa produção de tanques de guerra, obuses e balas.
mard, 1991, p. 128-133. Tradução e notas Emilia Maria M. de 12. Tibério e Caio Graco, tribunos romanos das últimas déca-
Morais. das do séc. II a.C, que tentaram reformar as estruturas sociais
Opressão e liberdade foi publicado no Brasil pela e políticas de Roma e foram assassinados por seus oposi-
EDUSC, Bauru, trad. de Ilka Stern Coehn, 2001, p. 175-182. tores. Plutarco dedicou-lhes um capítulo nas Vidas Paralelas.
A presente tradução deste artigo, com fins pedagógicos, di- 13. Em agosto de 1932, Simone Weil viajou a Berlim para con-
verge pouco da anterior e foi motivada sobretudo para que ferir de perto a situação na Alemanha, onde constatou o im-
algumas breves notas fossem anexadas ao texto; que sirva passe do movimento revolucionário, espremido, de um lado,
como um aperitivo para os leitores adquirirem esse original por uma social-democracia reformista, cujos líderes, bastante

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próximos dos governantes da República de Weimar, eram
por demais estranhos ao proletariado ativo na produção
industrial; do outro, por um partido comunista fragilizado,
agrupando desempregados e elegendo os social-democratas
como seus principais adversários. Ambos deixavam o campo
aberto para o avanço de Hitler e do nacional-socialismo. Ela
notou a subordinação, seja da social democracia à burguesia
gestora do Estado capitalista, seja da Internacional Comunis-
ta ou Komintern, à burocracia gestora do Estado Soviético.
Suas impressões de viagem foram registradas em alguns
artigos escritos entre 1932 e 1933. Cfr. Oeuvres Complètes, t.
2, v. 1, Écrits historiques et politiques – L´engagement syndical
(1927-juillet 1934), Paris, Gallimard, 1988, p. 116-212.

P
Para saber mais sobre Simone Weil, visite o site:
http://www.simoneweil.com.br/

Simone Weil nasceu em Paris, em 1909. Filó-


sofa, militante pacifista e sindicalista, ensina filoso-
fia, trabalha na agricultura, é operária numa fábrica
de automóveis. Em 1936, parte para a Espanha, onde
participa, ao lado dos republicanos, da Guerra Civil,
sem empunhar armas, por causa dos seus princípios
pacifistas. Nascida judia, converte-se ao catolicismo
em 1940, o que virá a influenciar toda a sua vida e obra
futura. Colaboradora em jornais ligados à Resistên-
cia, em 1942 deixa a França e parte para Nova Iorque
com os pais, fugindo do extermínio nazista. Irá depois
para Londres, onde continua a sua luta contra o na-
zismo, integrando o gabinete da Resistência Francesa
liderado por De Gaulle. Morre nesta cidade em 1943,
com apenas 34 anos, durante uma greve de fome em
solidariedade àqueles que viviam e sofriam sob a ocu-
pação nazista. A maioria dos seus livros é publicada
postumamente.

24

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Monteiro Lobato e Edgar
Morin: a excelência da
literatura como veículo
dos Sete Saberes
por Angelina Maria Ferreira de Castro1

“A arte abrindo caminho à ciência. Quando compreenderão os professores que o


segredo de tudo está aqui?” (Monteiro Lobato)

“A literatura tem a missão de revelar a complexidade humana que se esconde sob a


aparência de simplicidade.” (Edgar Morin)

A fragmentação do conhecimento, que se ge- futuro surgiu dessa inspiração. Nela, Edgar Morin, a
neraliza e se reproduz por meio da organização social, pedido da UNESCO, discute e aprofunda sete temas
tem configurado o modo de ser e de pensar dos su- transversais que poderão servir de elo entre as disci-
jeitos. Como consequência desse processo, a estrutura plinas, preenchendo as lacunas dos programas educa-
educacional induz os educadores a uma prática de en- tivos.
sino insuficiente para uma compreensão significativa
do conhecimento, gerando a insatisfação e o desinte- O Primeiro Saber nos coloca a provocação de
resse dos alunos. Em meio a essa crise contemporânea, perceber e questionar o próprio conhecimento, reco-
ainda resta aos educadores a possibilidade de encantar nhecendo sua relatividade. Para enfrentar esse desafio,
e reencantar, por meio da imaginação, o mundo racio- os educadores devem contribuir para que se cristalize
nal e despoetizado em que vivemos. e se enraíze um novo paradigma, cujo pressuposto se
Uma metodologia adequada para resolver abra para a dúvida, estimulando o exercício de interro-
esse impasse seria a educação da sensibilidade estéti- gar.
ca, por meio de uma abordagem transdisciplinar, uma Nesse sentido, a obra infantil de Monteiro Lo-

25
vez que esta pode promover o desenvolvimento de bato tem muito a ensinar, visto que apresenta, como
uma visão holística da vida. Dentre todas as artes, a um de seus objetivos principais, a reforma do pensa-
literatura de ficção talvez seja o meio mais adequado mento, proposta por Edgar Morin. Questionar é a pa-
para desenvolver tal habilidade, já que, pelo poder lavra-chave do Sítio. A Chave do Tamanho, por exemplo,
de sua narratividade, amplia horizontes, tornando os constitui, por si mesma, um questionamento das ver-
leitores aptos a dar sentido às próprias experiências e dades preestabelecidas e, portanto, uma transgressão
a construir conhecimentos a partir da observação di- ao pensamento linear.
reta da realidade, aprendendo a exercitar a tolerância, A história gira em torno da comparação entre
elemento imprescindível a uma convivência pacífica dois universos - o macro e o micro. Emília, ao mover
nesse mundo plural que os coloca frente aos desafios a chave que regula o tamanho dos seres humanos, re-
do multiculturalismo, da fragmentação e da imprevisi- duz drasticamente o tamanho da humanidade. Dessa
bilidade. forma, ao tentar aproximar esses mundos, o autor es-
A obra infantil de Monteiro Lobato, inteira- tabelece uma “dialogia”2, buscando articular elemen-
mente voltada para a concepção de um novo modelo tos aparentemente opostos. Tal aproximação expande
educacional, atende às exigências da moderna Teoria a percepção do leitor, remetendo seu olhar para o ní-
da Complexidade, exibindo uma potência hipertextu- vel da realidade integrada - razão-emoção - criando,
al, que permite efetuar leituras em rede. Esse processo, assim, situações de maior envolvimento na construção
ao auxiliar na conexão dos saberes, contribui, ao mes- de novos significados.
mo tempo, para o aumento da percepção e consequen- Os diálogos entre Emília e Visconde, ou en-
te desenvolvimento de uma visão holítica da vida. tre Emília, Visconde e Dr. Barnes, dentre outros, são
O Sítio do Picapau Amarelo sugere um feliz en- exemplos desse tipo de estratégia. Ao longo de toda a
contro entre o escritor Monteiro Lobato e o sociólogo narrativa, percebe-se a utilização do princípio da com-
Edgar Morin, ambos preocupados em contribuir para plementaridade dos opostos – proposto pela Teoria da
a construção de uma epistemologia da complexidade, Complexidade3 – por meio da aproximação de vários
que desse conta de articular as diversidades e as opo- pares contrastivos que servem ao propósito de ques-
sições. A obra Os sete saberes necessários à educação do tionar o paradigma cartesiano, buscando instaurar um

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novo modelo para a aquisição do conhecimento. cido, é a vez do grupo. Este vai tentar contextualizar
Por meio desse procedimento, um diálogo o conhecimento adquirido, procurando vivenciar as
tenso instaura-se entre as partes, permitindo perceber histórias ouvidas, por meio de sua criatividade. Assim
que, devagar, o Visconde começa a aceitar as ideias é que, a partir de uma aula de Dona Benta sobre os
da boneca. A imagem da Emília, que passa a habitar astros, surge a ideia de se fazer uma viagem ao céu;
a cartola do Visconde, também é um apelo a essa arti- de uma história sobre a Grécia, surgem projetos para
culação entre ideias opostas. Emília, a contraparte do duas importantes aventuras: uma, na Grécia Heróica
“sábio pernóstico e radical”, pode acrescentar os dados – Os doze trabalhos de Hércules; e a outra, no iluminado
da intuição e da prática que faltam ao paradigma tradi- século de Péricles – O minotauro.
cional. O trecho abaixo ilustra essa atitude: Muitos procedimentos são utilizados pelo nar-
rador para transversalizar os saberes, e a leitura hiper-
O Visconde suspirou. textual ajuda o leitor a identificá-los e a conectá-los por
– Você usa das palavras da ciência, mas não sabe. Re- meio dos princípios orientadores do hipertexto. Essa
pete-as como papagaio. Isso da adaptação é certo, mas metodologia de leitura, inserida nas modernas práti-
é coisa de milhares de milhões de anos, Emília. Pensa cas pedagógicas, é altamente recomendada, porque,
então que do dia para a noite essa enorme população
ao desenvolver estratégias cognitivas revolucionárias,
humana, que você apequenou e está nos maiores apu-
ros, vai ter tempo de adaptar-se? Morre tudo antes disso,
gera o pensamento complexo, permitindo que o leitor
como peixe fora d’água – e adeus Homo Sapiens! efetue leituras em profundidade, as quais lhe permi-
– Homo Sapiens duma figa! Morrem muitos, bem sei. tirão uma compreensão cada vez mais abrangente da
Morrem milhões, mas basta que fique um casal de Adão realidade.
e Eva para que tudo recomece. A vida agora vai come- O Terceiro Saber que postula o conhecimento
çar de novo – e muito mais interessante. Acabaram-se da condição humana – “Quem somos nós”? – tem como
os canhões, e tanques, e pólvora e bombas incendiárias. horizonte o reconhecimento da nossa complexidade:
Vamos ter coisas muito superiores – besouros para voar, não somos apenas seres culturais, mas biológicos e psí-
tropas de formiga para o transporte de cargas, o proble- quicos, movidos pela razão e pela emoção.
ma da alimentação resolvido, porque com uma isca de Nesse aspecto, também a literatura – território
qualquer coisa um estômago se enche, et coetera e tal.
favorável para ilustrar a dimensão humana das gran-
– Mas... des questões filosóficas – é seguramente aquela que
O Visconde, como bom sábio que era, engasgou e come-
çou a achar uma razãozinha nas ideias da Emília (A chave
melhor pode nos ensinar. É por ela que passam os con-
do tamanho, p. 44-45).
flitos humanos, os dramas, as tragédias, as indagações
e tentativas de explicação de nossa origem e passagem
O Segundo Saber estabelece o princípio do co- pelo planeta, bem como a reação dos homens diante
nhecimento pertinente, contrário à ideia da fragmen- dessas emoções, nas mais diversas épocas e socieda-
tação. É impossível conhecer as partes, sem conhecer des. Portanto, por nos sensibilizar, provocar a catarse e
o todo, tampouco conhecer o todo sem conhecer as incitar o questionamento, tais gêneros literários são in-
partes. O mundo, hoje, tornou-se interligado e extre- dicados para se trabalhar o conhecimento da condição
mamente interativo, e conhecer os dados isolados não humana. Mas como introduzir a criança nesse universo
é suficiente para apreender a complexidade planetária. assustador?...
Essa carência estende-se ao cotidiano escolar, cujos Lobato faz isso com mestria: poesia, drama,
programas de ensino fragmentam as disciplinas, não tragédia, humor e ironia misturam-se nas páginas de
capacitando o estudante a apreender a visão do todo sua literatura. Duas obras do Sítio são adequadas para
e colocando em risco o desenvolvimento de sua inte- tratar desse saber. Os doze trabalhos de Hércules e O
ligência geral. Hoje, nós, professores, cientes de que a minotauro poderão introduzir a criança e o jovem em
inteligência não é genética, que se desenvolve a partir temas que trabalham a complexidade da vida huma-
dos desafios externos, devemos estimular a capacida- na, assuntos abordados com respeito e seriedade nas
de de contextualizar em qualquer área do conheci- histórias, mas, ao mesmo tempo, mesclados ao humor,
mento. Considerando tal perspectiva, a obra infantil à ironia e à poesia. Essa fusão, além de suavizar os te-
de Monteiro Lobato, por contemplar o paradigma da mas destacados, instiga a curiosidade, sensibilizando,
rede4, visa a desenvolver uma percepção cada vez mais humanizando, desmistificando e libertando a mente
abrangente da realidade, narrando histórias sem fim, aprisionada pela ignorância. O episódio da loucura do
num movimento circular incessante, que as interligam Visconde, por exemplo, – em tudo semelhante à loucu-
e as conectam, formando uma verdadeira teia de sa- ra de Dom Quixote – mostra o lado cômico da tragédia,
beres e contextualizando, portanto, os conhecimentos. mas não deixa de emocionar o leitor.
26 O narrador e os conarradores, dentre eles O Quarto Saber propõe o ensino da identida-
de terrena, que está ligado à ideia da sustentabilidade
Dona Benta, – a principal “contadora de histórias”
– está sempre atenta, procurando explicar os aconte- planetária. Ensinar que a Terra é a nossa mãe, a nos-
cimentos, situá-los num dado momento, numa deter- sa pátria, um pequeno planeta que precisa ser “culti-
minada região, ligando-os ao cotidiano e adequando vado” para que a vida se torne viável para as futuras
a sua linguagem para que os leitores compreendam a gerações, pode criar vínculos afetivos e gerar respon-
situação que está sendo narrada. sabilidades. A identidade terrena – a ser ensinada às
Após a narrativa, com o imaginário enrique- nossas crianças e aos nossos jovens – deve estar alicer-

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çada numa atitude de respeito ao outro, incluindo aí o sobre as contradições presentes em uma sociedade tão
planeta. E isso passa pela compreensão da singularida- avançada como a de Péricles, no século V a.C.
de de cada um, seja no nível individual, seja no nível
dos povos e nações. Assim que puseram os pés no cais, um homem de corpo
alentado aproximou-se respeitosamente.
– Esse seu gênio exaltado não dá certo, Lelé. Por qual- – Minha senhora, o Estrátego, manda pôr à vossa dispo-
quer coisinha fica fora de si, enxerga tudo vermelho e sição a sua liteira - disse ele apontando para uma liteira
lá vem a hecatombe. Matar cinco lindos centauros, que estacionada ali perto, ladeada de cinco latagões. Eram
judiação! Bastava dar-lhes uma boa sova. De sova a gen- escravos de Péricles.
te sara, mas ninguém morre. Era o que você devia fazer Dona Benta respirou. “Ora graças!” e encaminhou-se
aqui: pôr a nocaute esses centauros, mas só. Que direito para o veículo.
tem uma criatura de tirar a vida de outra – não é mesmo, Narizinho, porém, revoltou-se. Não podia admitir que
Visconde? seres humanos fossem usados como bestas de transpor-
te.
– Sim – respondeu o escudeiro. Entre os mandamentos
da Lei há um que diz: “Não matarás”. – Não tenho coragem de entrar nisso, vovó! Desaforo.
Gente como nós a nos carregar. Nunca! E ainda chamam
– Está vendo, Lelé? Até o seu escudeiro sabe que isso de
matar é só quando se trata de hidras de Lerna ou de le- a isto democracia (O minotauro, p. 128).
ões da Lua. Matar cinco centauros é contra todas as leis,
porque há poucos centauros no mundo, e no dia em que O Quinto Saber, enunciado por Edgar Morin,
todos desaparecerem o mundo ficará vários pontos mais é o que ele chama de “Enfrentar as incertezas”. Diante
sem graça (Os doze trabalhos de Hércules, p. 71). delas, o sociólogo nos incita à ecologia da ação. É pre-
ciso agir com cautela diante da imprevisibilidade con-
Monteiro Lobato, acusado injustamente de ra- temporânea e cabe aos educadores preparar as mentes
cismo, sempre almejou a formação de uma democracia para o inesperado, planejar o futuro tendo consciência
racial. Descobrimos, nas páginas de sua literatura in- dos riscos, elaborar estratégias para que, quando sur-
fantil, percepções de uma democracia racial que eram girem os imprevistos, estejamos preparados para resol-
inéditas na época em que ele viveu e que, possivelmen- ver os problemas.
te, representavam um grande avanço na educação de
gerações inteiras para a caminhada rumo à tolerân-
cia. Por esse motivo, as histórias do Sítio - vividas por
uma equipe multiétnica – realçam, a todo momento,
a importância do diálogo, da utilização do raciocínio
e da intuição no planejamento das ações, trabalhando
pela construção coletiva do conhecimento e discutindo
questões que levam à reflexão e ao desenvolvimento
do pensamento crítico da criança e do jovem. Exem-
plos desses tipos de atitudes é que não faltam nas his-
tórias. A chave do tamanho, por exemplo, constitui uma 27
denúncia à violência e à guerra, e Os doze trabalhos de
Hércules e O minotauro são obras voltadas para a trans-
formação dos seres humanos por meio da arte e da cul-
tura:
Edgar Morin
– Meus amigos: não sei falar. Não recebi a educação...
Emília olhou para Pedrinho. É visível a preocupação com a ecologia da ação
–...que é o que transforma as criaturas. Minha educação em toda a obra infantil de Lobato. A turma do Sítio,
foi só física, como bem diz o meu escudeiro. Criaram- sempre que vai agir, prepara-se para o incerto e para as
-me ao ar livre, ensinaram-me a desenvolver unicamente consequências de seus atos. Pensa, analisa, prevê o que
os músculos e a agilidade. Quanto ao resto, fiquei como
pode dar certo e se prepara para o incerto:
nasci: um terreno baldio, como diz a Emília, onde o mato
cresceu sem disciplina. A educação é que transforma
Emília ia pensando em todas as hipóteses imagináveis. O
esse terreno em canteiro de cultura das artes e ciências
certo era estarem mortos, reduzidos à lama ou afogados
úteis e belas (Os doze trabalhos de Hércules, p. 236).
nas lagoas que a chuva forma no tijuco. Isso era o certo.
Mas havia o incerto – e era no incerto que Emília levan-
Hoje, o planeta está se redimensionando. O tava suas hipóteses (A chave do tamanho, p. 47).
mundo inteiro entra em nossas casas, instantaneamen-
te, em palavras e imagens, pelas diversas mídias, e o Dentre todas as histórias do Sítio do Picapau
maior desafio para todos é conviver na multiplicidade Amarelo, A chave do tamanho é a que mais nos prepa-
de um mundo interligado e neoliberal onde os lucros ra para as incertezas, devido à sua natureza ambígua.
são avidamente buscados. Nessas condições, muitos A história, lida pela primeira vez, causa um grande
serão os excluídos. Não desfrutaremos de nossas liber- impacto emocional. É como se a situação, ali vivida,
dades, portanto, se tanta gente permanecer excluída e nos remetesse a algum desastre que nos despojasse de
humilhada. O trecho, a seguir, pode provocar reflexões tudo que vínhamos acumulando. Um novo mundo se
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apresenta aos olhos do leitor e exige desapego do anti- – Realmente, o progresso do homem é um fato.
go: novas experiências, novos comportamentos, novos Não parará nunca, apesar das longas interrupções da
conceitos e novos rumos para a nossa vida. Adaptação barbárie. Esta maravilhosa Grécia de hoje, por exemplo,
é a palavra de ordem dessa nova vida. E quem não se desaparecerá esmagada pela avalanche da estupidez
adapta, quem não supera está fadado a sucumbir. A barbaresca - mas nem tudo ficará perdido. O pensamen-
to de Sócrates e a arte de Fídias ressuscitarão numa fase
história nos prepara para vivermos situações de emer-
chamada Renascimento, a qual virá depois de longos
gência. séculos de torpor. E os homens retomarão o archote de
O Sexto Saber inspira o educador a “ensinar luz e prosseguirão na marcha. Infelizmente, parece que
a compreensão” que, segundo Morin, deve ser o meio há uma coisa irredutível: a estupidez humana. Por mais
e o fim da educação porque, hoje, nossas instituições que a inteligência se desenvolva, a estupidez não deixa
são caracterizadas pelas incompreensões. Comprehen- o trono - e as guerras, filhas dessa estupidez, vão sendo
dere significa apreender junto, abraçar junto (o texto e cada vez mais terríveis. E não quero desiludi-los, meus
seu contexto, as partes e o todo, o múltiplo e o uno). senhores, porque também não me desiludi totalmente.
Mas é preciso estimular não apenas uma compreensão Mas afirmo que daqui a 2377 anos Sua Majestade, a Es-
tupidez Humana estará mais gorda e forte do que hoje
intelectual e, sim, uma compreensão humana, que im-
(O minotauro, p.172).
plica uma identificação com o outro. O exemplo abaixo
elucida esse tipo de saber:
Nas entrelinhas da história, os leitores são
conscientizados de que, sem liberdade, o homem fica
– Ártemis, ou Diana, a caçadora - disse Pedrinho. Uma
danada para perseguir animais ou gente. Vovó contou
meramente acomodado, perdendo totalmente a sua ca-
a trágica história das Nióbidas, filhas daquela desgraça- pacidade criativa. Através da ação do homem que faz e
da Niobe, princesa da Lídia. Niobe, orgulhosíssima dos refaz, a criança aprende que ela é o agente de sua pró-
doze filhos que tinha, cometeu, certa vez, a imprudência pria história e que, se vier a destruir seu patrimônio,
de gabar-se de sua superioridade sobre a deusa Latona, perderá o contato com suas raízes e será um ser sem
que só tivera dois filhos, Apolo e Diana. Latona, irrita- identidade:
da, mandou que Apolo e Diana matassem os doze filhos.
Apolo flechou os rapazes e Diana flechou as meninas. – Ah, o que se perdeu da arte grega! Quase tudo. Da
Tão grande foi a dor de Niobe, que Zeus, compadecido, pintura, que era muita e ótima, nada, nada se salvou; e
a transformou em pedra. da escultura basta dizer que nos museus modernos não
Emília indignou-se. existem cinquenta estátuas antigas das grandes – e entre
– Quem os vê tão belos não imagina a dureza de seus co- estas, só quinze gregas (O minotauro, p.124).
rações. Vão matando os pobres mortais como quem mata
pulga, sem a menor cerimônia (O minotauro, p. 140).
A história não só
traça um painel político e
A tarefa maior das personagens da obra Os cultural de Péricles, como
doze trabalhos de Hércules parece ter sido a de ensinar também procura resgatar a
a compreensão ao “brutamontes” Hércules. Ele que só beleza e a poesia contidas
exaltava o poder da força física, de repente descobre o na Hélade, a Grécia primi-
valor da educação, a varinha mágica que ensina a ver tiva, com sua flora e fauna
as coisas com o coração. No desenrolar da história, po- intocáveis. Nessa obra, tudo
demos acompanhar a ação da turma do Picapau Ama- conspira para a transforma-
relo ensinando Hércules a pensar por meio do trabalho ção de uma sociedade mo-
em equipe, procurando desenvolver nele habilidades derna e racional, distante de
intelectuais, sensibilidade – ao presenciar as ações po- suas fantasias e sonhos.
sitivas dirigidas aos seus semelhantes – dando lições
de limites, mostrando-lhe a importância da contenção – Já consultei a vovó a respeito. Ela acha que os nossos
emocional e física diante de situações emergenciais. olhos modernos é que não veem as ninfas, mas que elas
Ensinar a antropoética, ou seja, a ética do gê- tanto existem lá quanto aqui e também dançam por lá
nero humano, que, segundo a obra Os sete saberes neces- estas mesmas danças. Só que nos são invisíveis.
sários à educação do futuro, está alicerçada na interação – Que triste coisa ser moderno! - suspirou Emília. Ima-
entre o indivíduo, a sociedade e a espécie, constitui a gine se conseguíssemos ver a alma das coisas como aqui
essência do Sétimo Saber. Podemos identificá-lo em nesta Grécia! Se, por exemplo, víssemos as dríades, as
toda a série lobatiana, principalmente na obra O mino- hamadríades dos flamboyants, dos ipês, dos mulungus
tauro, cuja história, abolindo as barreiras entre dimen- vermelhos! A dríade do mulungu! Que linda não será...
(O minotauro, p.161-162).
28
sões, permite ao leitor o trânsito por entre diferentes
espaços e tempos, oferecendo-lhe a oportunidade, por
meio desse confronto, de comparar e refletir sobre as O aspecto sociopolítico da história nos mostra
relações do homem consigo mesmo, com a sociedade e que tudo depende de um sistema que, se for bem con-
com sua espécie em culturas diferentes. O fio do tem- duzido – como foi a Atenas de Péricles –, fará brotar de
po, no trecho abaixo, permite-nos visualizar, de manei- seu seio gênios que poderão conduzir a sociedade com
ra mais abrangente, as ações humanas: sabedoria, bom senso e discernimento. O minotauro,
enfim, nos leva a uma profunda reflexão do nosso tem-
po. E como sugere a antropoética, a forma de sermos
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responsáveis começa com essa reflexão. dialógico, recursivo e hologramático.
Em síntese, podemos concluir que o Sítio do 3. A teoria da complexidade está associada à teoria da trans-
Picapau Amarelo é uma obra que, certamente, levará disciplinaridade. O pensamento complexo foi sistematizado
o leitor a aspirar a uma vida mais consciente, plena e pelo pensador francês Edgar Morin (1991) e a transdisci-
plinaridade, pelo físico teórico, romeno, Basarab Nicolescu
prazerosa, ao vivenciar histórias que se transformam
(1999). Essas teorias surgiram em decorrência do avanço do
em saberes indispensáveis à prática de relações sociais conhecimento e do desafio que a globalidade coloca para o
tecidas em harmonia com as leis da natureza. século XXI. Seus conceitos se contrapõem aos princípios da
fragmentação do conhecimento, sugerindo outra forma de
Da articulação entre a obra de Monteiro Loba- pensar os problemas contemporâneos.
to e a teoria de Edgar Morin, fica, portanto, a certeza 4. Modelo que privilegia um modo de pensar articulado e
de que, juntos - histórias e saberes – poderão proceder contextualizado.
à reforma do pensamento proposta pelos dois intelec-
tuais, transformando as mentes e os corações tanto dos
professores quanto dos alunos, os quais, sensibilizados Referências bibliográficas
pela estética literária e humanizados pelo senso ético,
transformar-se-ão em cidadãos do mundo, compro- CASTRO, Angelina Maria Ferreira de. Sítio do Picapau Ama-
metidos com a paz, com a solidariedade, com a justi- relo: uma leitura hipertextual. In: Revista Presença Pedagógica.
ça e com a sustentabilidade planetária, prontos para a v15. n.89. set./out. 2009.
realização de ações positivas que poderão resgatar o LOBATO, Monteiro. A chave do tamanho. São Paulo: Brasilien-
planeta das garras da violência, da ganância, do indi- se, 2005.
_____________ Os doze trabalhos de Hércules. São Paulo: Bra-
vidualismo, da irresponsabilidade e do preconceito.
siliense, 1973.
P _____________ O minotauro. São Paulo: Brasiliense, 1973.
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro.
Notas Tradução de Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya.
Brasília: Cortez / UNESCO, 2003.
1. Angelina Maria Ferreira de Castro foi mestre em Teoria ___________ A cabeça bem-feita. Repensar a reforma, reformar o
Literária pela UFMG, professora do Colégio Santo Antônio e pensamento. Tradução Eloá Jacobina. Rio de Janeiro: Bertrand
do Colégio Padre Eustáquio. Brasil, 2000.
* A professora Angelina, muito querida por todos nós, fale- PEREIRA, Maria Antonieta. Transdisciplinaridade e hipertexto.
ceu no princípio de julho deste ano. A foto abaixo, no lança- In: Revista Presença Pedagógica, v.14. n. 83. set/out. 2009.
mento de um dos seus livros, é uma simples homenagem de SANTOS, Akiko; SOMMERMAN, Américo (Orgs.) In: Com-
agradecimento pela sua amizade e dedicação. plexidade e transdisciplinaridade: em busca da totalidade perdida.
2. Edgar Morin propõe a substituição do termo dialética por Porto Alegre: Sulina, 2009.
dialogia, um dos três operadores que auxiliam no desen-
volvimento do pensamento complexo. São eles: operador

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i v r o s d e filosofia
L
elo
indicados p
MEC

O Ministério da Educação publicou recente- não apresentando a multiplicidade do debate filosófico,


mente, pela primeira vez na história do Programa Na- que deveria advir de um bom trabalho em História da
cional do Livro Didático (PNLD), o guia para a área de Filosofia. Além disso, foram comuns os sectarismos, os
Filosofia. Segundo o MEC, “é o resultado de um longo incontáveis erros conceituais, a falta de precisão teórica
processo de avaliação, que envolveu diversos atores, e e histórica, os anacronismos conceituais ou equívocos
tem a intenção de auxiliá-lo (o professor) na delicada na apresentação do pensamento de um autor ou de
e importante tarefa de selecionar o livro didático que um período, os problemas na composição da obra, a
mais bem se adapte ao seu planejamento, à sua prática falta de coerência na abordagem teórico-metodológica,
didática em filosofia e ao projeto político-pedagógico levando à inadequação entre o livro do aluno e o livro
de sua escola”. do professor, a utilização sistemática e indevida de
Os critérios de avaliação utilizados são dis- fontes sem as necessárias referências, etc.
cutíveis (vide ficha de avaliação no site indicado Segundo o guia, a definição dos critérios es-
abaixo) e os livros indicados não são os melhores li- pecíficos para a área de filosofia contou, de um lado,
vros didáticos de filosofia que conhecemos, em caráter com debates sobre ensino de filosofia anteriormente
absoluto, e sim aqueles que melhor se apresentaram no existentes, e, do outro, com um quadro de professores
processo avaliativo do PNLD 2012, o qual definiu cri- e pesquisadores na prática do ensino de filosofia.
térios que representam um padrão consensual mínimo O guia, além de conter as resenhas das obras
de qualidade para as obras didáticas. sugeridas pela equipe do PNLD, apresenta algumas
A importância desta primeira seleção de livros informações sobre o Programa, a equipe, os processos
didáticos de filosofia reside fundamentalmente na falta de avaliação e seleção das obras e a ficha utilizada para
de uma tradição anterior consolidada de livros didáti- este escopo. É um bom trabalho e sugerimos a sua lei-
cos da área. Isso pode ser notado pelo reduzido núme- tura.
ro de livros aprovados, três, dos quinze inscritos. As Você pode obter o Guia pela internet no site:
obras que não foram aprovadas revelaram inconsistên- http://www.fnde.gov.br/index.php/pnld-guia-do-
cias no que tange aos critérios específicos para a com- livro-didatico
ponente curricular Filosofia, visão restrita da filosofia,
31

FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA
Gilberto Cotrim e Mirna Fernandes
Editora Saraiva

FILOSOFANDO
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA INICIAÇÃO À FILOSOFIA
Maria Helena Pires Martins Marilena Chauí
Maria Lúcia de Arruda Aranha Editora Ática
Editora Moderna

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Abaporu
por Carlos Simões*

O Modernismo Brasileiro, no decorrer da Andrade a escrever o Manifesto Antropófago, com a


década de 1920, inaugurou um paradigma que se es- intenção de “deglutir” a cultura europeia e transfor-
forçava na direção de uma redescoberta do Brasil e de má-la em algo bem brasileiro.
sua autêntica identidade. Os jovens intelectuais de São A simbologia do quadro, portanto, constrói-se
Paulo declaravam-se livres da “Moléstia de Nabuco”, por extrapolação à sua dimensão estética, pois o con-
que assolava a elite brasileira. Essa “doença de colo- texto histórico e cultural de sua produção deve ser con-
nizado” provocava uma invariável tendência a buscar siderado. A Antropofagia, nome dado ao movimento
exclusivamente no Velho Mundo as matrizes de uma artístico-cultural, que “deglutiu” ainda mais radical-
nacionalidade em formação e, insistentemente, igno- mente referências culturais estrangeiras em um ambi-
rava todo o processo histórico que foi naturalmente ente brasileiro adotou o Abaporu como uma espécie de
construído com a amál- logomarca, tornando-o uma
gama cultural que se con- obra inaugural.
cretizou no Brasil desde o O quadro mais fa-
início da colonização. moso de Tarsila apresenta
A pesquisa da uma figura enigmática e dis-
cultura popular, de suas forme, com cabeça minúscu-
expressões artísticas e de la e pés enormes, traduzindo
sua linguagem era, antes uma absoluta despreocupa-
de tudo, uma espécie de ção da artista com qualquer
religião para os moderni- verossimilhança. Nessa
stas. Seu nacionalismo obra, Tarsila afasta-se da
forçava-os ao dever de ditadura estética do gosto
construir esteticamente, apurado passando à tela,
seja por meio da literatu- como ela própria diz: “azul
ra, da música ou das artes puríssimo, rosa violáceo,
plásticas uma expressão amarelo vivo, verde can-
de brasilidade que nunca tante, tudo em gradações
houvera no país. Essa mais ou menos fortes con-
busca sintetizava-se no forme a mistura de branco.
encontro com a “alma Pintura limpa, sobretudo,
nacional” legítima. Isso sem qualquer apego aos câ-
significava expressar as nones convencionais”.
raízes da nacionalidade Tarsila evade-se da
longe do modelo român- eternidade estética, que só
tico, que representava a se dirige ao intelecto, e re-
gênese do povo brasileiro age com a volta ao senti-
no encontro amoroso da mental, ao humano, já que,
índia selvagem com o herói civilizador português, que “no complexo humano, os sentidos também têm seus
desbravava as matas, adentrava o sertão e preparava o direitos”. Nenhum artista, antes dela, atingiu aquela
terreno para a catequese e para a conquista. força plástica, tentativa ousada de traduzir pelo insóli-
Em 1928, Tarsila do Amaral entrega a seu to uma imagem irracionalmente brasileira, isso porque
marido Oswald de Andrade um estranho quadro ao o Abaporu – comedor de gente – nunca existiu a não
qual batizara Abaporu que, em língua Tupi, significa ser na imaginação da artista, é tão arquetípico como
32 “homem comedor de gente”. Oswald ficou tão impres- forma quanto tematicamente inaugural. Seu sentido,
sionado com o que viu que, em companhia de Tarsila portanto, construiu-se plenamente após ser criado, a
e de Raul Bopp, inspirados pelo quadro, fundaram o partir do momento de sua recepção.
Movimento Antropofágico, uma vertente radical do
Modernismo que buscaria as fontes primitivas da bra- P
silidade, localizando em tempos pré-cabralinos uma * Carlos Simões é professor de literatura do Ensino Mé-
origem mítica da identidade nacional. A composição dio.
– um homem, o Sol e um cacto – inspirou Oswald de
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Aproximações estéticas ao
cinema de Andrei Tarkovski
por Fernando Rey Puente*

A filmografia poética de Tarkovski de 1962, ganhador do Leão de Ouro do Festival de


Morto em dezembro de 1986 aos 54 anos de Veneza. Aqui também continuam a se formar algu-
idade, o diretor russo Andrei Tarkovski legou-nos uma mas imagens fundamentais da gramática imagística
obra enigmática, mas que, ao mesmo tempo, desperta do cinema de Tarkovski: por um lado, paisagens em
cada vez mais o interesse de nossos contemporâneos. ruínas, áreas alagadas e sombrios lamaçais; por outro,
Esse fascínio exercido pelos poucos filmes que dirigiu edênicas imagens da natureza em sua misteriosa força
parece originar-se de sua concepção a um tempo única telúrica. Águas puras e imaculadas ou turvas e polu-
e medularmente russa do fenômeno artístico. São esses tas, mas ainda e sempre a água. Um outro elemento
pressupostos estéticos ínsitos à obra cinematográfica que desponta neste filme é a referência, cada vez maior
de Tarkovski que procuraremos investigar neste ar- no decorrer do seu trabalho, às obras de arte funda-
tigo. Antes disso, porém, convém recordar, ainda que mentais de artistas gráficos e pintores da humanidade.
muito esquematicamente, os seus filmes. Nesta tare- Em A Infância de Ivan, são as gravuras de A.
fa, todavia, já nos deparamos com as especificidades Dürer que despertam a atenção do protagonista; pos-
do universo tarkovskiano, pois como resumir, como teriormente teremos um verdadeiro desfile de refer-
apreender discursivamente a infinita beleza de seus ências explícitas: os ícones (obviamente em A. Rublov,
poemas visuais? Os enredos mas também no quarto de
de seus filmes, sete ao todo, Chris Kelvin em Solaris, e
são aparentemente simples, no livro folhe-ado por Ale-
mas o campo de associações xandre, em O Sacrifício, P.
poéticas aberto é ilimitado. Brueghel os quadros na
Já no seu primeiro filme, Rolo biblioteca de Solaris). Piero
Compressor e o Violino, de dela Francesca (na igreja
1961, realizado para obter a de Nostalgia) e soberana-
graduação na Escola de Cine-
ma de Moscou, encontram-se
mente o sibilino Leonardo
da Vinci (no livro folheado 33
em germe alguns dos temas pelo garoto em O Espelho e
e metáforas fundamentais de em O Sacrifício). Estas refer-
seus filmes posteriores que o ências explícitas imiscuem-
tornariam tão famoso: o con- se, porém, na própria con-
flito do artista em relação à cepção cinematográfica de
sua sociedade, a luta dele para libertar-se dos cânones Tarkovski. Deste modo, as grandes tomadas em amp-
estreitos de sua arte (o jovem músico sendo discipli- las perspectivas desde um balão no início de A. Rublov
nado por sua professora em suas aulas de violino é um ou as paisagens na neve evocadas pelo protagonista de
precursor da disputa artístico-iconológica entre Teófi- O Espelho mostram uma clara influência da perspec-
lo, o Grego, e Andrei Rublov em Andrei Rublov), as cri- tiva bruegheliana. Já no tocante a Da Vinci, as influên-
anças, os espelhos e a infindável água em todas as suas cias se fazem sentir principalmente pelos tons sépias e
formas – poças, regatos, névoas, neve e a enigmática pela iluminação indefinida e difusa, que nos remetem
chuva. Neste seu primeiro filme, Tarkovski descreve a diretamente à enigmática iluminação e ao sfumato dos
amizade entre um garotinho de sete anos que aprende quadros de Leonardo. O próximo filme que ele dirigiu
a tocar violino e um trabalhador que conduz um rolo foi Andrei Rublov, de 1964/66. Aqui, seu objetivo não
compressor. A promessa de uma amizade iniciada, era relatar fidedignamente a vida do monge e pintor
mas logo interrompida, entre os dois deixa como única de ícones Andrei Rublov, que viveu aproximadamente
opção ao pequeno músico mergulhar no seu mundo de entre 1365 e 1427, mas sim explicitar o tortuoso pro-
fantasia. cesso de criação artística, razão pela qual o verdadeiro
herói espiritual do filme é, para ele, o jovem Boriska,
O filme seguinte de Tarkovski narra precisa- o inexperiente, mas astuto construtor de sinos, cuja
mente o dilaceramento deste mundo idílico e cheio de coragem e fé no próprio poder criador tiram A. Rublov
lirismo de um garoto de doze anos pelos horrores e do silêncio voluntário e da recusa em voltar a criar a
pela indiferença brutal da guerra. É A Infância de Ivan, que ele havia se imposto, oriundos do assassinato por

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ele cometido – durante a invasão dos tártaros –, com em O Espelho; Ravel e Beethoven em Stalker; Debussy,
o fim de salvar uma jovem demente. Tarkovski prin- Verdi, Wagner e Beethoven, em Nostalgia, culminando
cipia a fazer uso aqui do colorido do filme para expres- em O Sacrifício com a união estética tão almejada por
sar as diferentes dimensões ontológicas da realidade. ele entre Ocidente e Oriente – J.S. Bach e W. Shuso.
Enquanto o primeiro filme foi totalmente colorido e o
segundo totalmente em branco e preto, A. Rublov mis- A fala de um dos personagens de Solaris, o
tura essas duas possibilidades, realizando, ao término cibernético Snaut, como que introduz o próximo filme
do filme, uma apoteose policrômica dos ícones de A. de Tarkovski. Ele afirma: “Não queremos outros mun-
Rublov que sobressaem dentre um mundo acrômico, dos, só queremos um espelho”. E será diante deste
apático e quase desprovido de esperança, não fosse o que Tarkovski se colocará no seu filme subsequente,
misterioso fenômeno da arte. O Espelho, de 1973/4, certamente o mais autobiográfico
de todos. Se o enredo em forma linear de seus filmes
Em 1971/2, Tarkovski realiza o seu quarto sempre havia sido sucinto, agora ele praticamente se
filme, Solaris, inspirado no romance homônimo escrito desfaz. E num contraponto visual de imagens do pas-
pelo polonês Stanislav Lem, ganhador do Prêmio Es- sado e do presente, entrecortadas por visões oníricas
pecial do Júri do Festival de Cannes de 1972. Em um e documentários, o protagonista, Alexei, relata a sua
primeiro momento, parece que Tarkovski distancia-se vida através de suas memórias, seus sonhos, suas fan-
aqui de sua temática usual, penetrando no campo da tasias e, principalmente, através das poesias de Arseni
ficção científica, mas essa impressão logo se desfaz. Tarkovski (1907-1989), pai do cineasta e poeta russo. O
Como ele mesmo o disse, seus filmes procuraram sem- filme passa do branco e preto dos documentários aos
pre mostrar “que os homens não habitam solitários e tons em sépia das primeiras recordações infantis ao
abandonados um universo vazio, mas que eles, acima colorido nas cenas do passado e presente do protago-
de tudo, estão nista, criando um universo de rara beleza visual, mas
ligados por in- de difícil apreensão. A citação dos versos de abertura
contáveis fios da Divina Comédia de Dante: “No meio do caminho
ao passado e da nossa vida, encontrava-me em uma floresta escu-
ao futuro” (Die ra”, por uma personagem no início do filme, dá o tom
versiegelte Zeit, iniciático e interiorizante desta aventura única que Tar-
210 – doravante kovski nos incita a realizar diante do espelho de nossas
citado como vidas. No seu próximo filme, talvez o seu opus magnum
VZ). Assim, – Stalker de 1978/9, Tarkovski nos propõe um mer-
não se tratava gulho nos recônditos mais obscuros da alma humana
neste filme de – a Zona – conduzidos por um guia experimentado,
uma viagem ou seja, por um Stalker. Aqui o debate com a ciência,
ao cosmo exte- principiado em Solaris, corporifica-se nos dois persona-
rior, mas sim gens, um cientista e o outro escritor, que guiados pelo
de uma jornada Stalker buscam um misterioso Quarto em uma casa em
às profundezas ruínas nesta estranha área, a Zona, onde, nas palavras
labirínticas e er- do Stalker – em uma óbvia alusão ao dístico nos portais
ráticas da psique do Inferno de Dante – “só entram os que não têm mais
humana. Não esperanças”. Neste “lugar mais silencioso do mundo”,
por acaso, é o psicólogo Chris Kelvin que é enviado à onde o caminhar em linha reta afasta-nos do nosso ob-
estação orbital Solaris, onde estranhas aparições ocor- jetivo e onde a fragrância das flores não mais existe,
rem. É ele quem deve determinar até que ponto esses tem lugar a quase totalidade do filme. No seu penúl-
relatos seriam ou não fidedignos. A ação dramática do timo filme, Nostalgia, de 1982/3 e o primeiro a ser ro-
filme se desenrola a partir do seu contato com o miste- dado fora da URSS, Tarkovski nomeia, por assim di-
rioso Oceano, em cuja órbita a nave Solaris se encontra. zer, um dos sentimentos que perpassa toda a sua vida
Neste filme e nos próximos, Tarkovski joga com todas e obra: a nostalgia, esse “sentimento funesto de ligação
as possibilidades da cor e de sua ausência no cinema, e dependência do próprio passado”, essa “doença cada
demarcando os diferentes estratos ontológicos em que vez mais insuportável” (VZ, 211). É importante ressal-
vivemos: a realidade presente, as lembranças do pas- tar, porém, que este sentimento, para Tarkovski, não
sado, as fantasias e a arte. Novos elementos caracte- define apenas um desenraizamento geográfico, mas,
rísticos da obra de Tarkovski aparecem. No âmbito da acima de tudo, um desenraizamento do próprio Ser
34 imagem, a levitação do casal na biblioteca é um precur-
sor tanto do casal levitante de O Sacrifício, quanto da
(VZ, 209). Esse filme narra a aventura de um escritor
russo que se encontra na Itália, acompanhado de sua
levitação da mãe do protagonista em O Espelho. Essa tradutora italiana, a fim de colher dados sobre um com-
imagem nos remete, também, às figuras flutuantes de positor de óperas, conterrâneo seu, é mais uma viagem
um outro russo genial – M. Chagall. No plano musi- tarkovskiana ao âmago da psique humana. Este filme
cal, inicia-se aqui, com variações sobre o Prelúdio em revelou-se profético em relação ao próprio Tarkovski,
Fá Menor de J.S. Bach, a referência constante à grande que, tendo decidido durante as filmagens não mais re-
tradição musical do Ocidente: G.B. Pergolesi e J.S. Bach tornar à então URSS devido às infindáveis dificuldades

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que enfrentava em rodar e para poder colocar em car- erática e mágica) alusões e sugestões a algo indizível,
taz os seus filmes, morrera aproximadamente quatro a algo não apreensível pelas palavras. Ele possui mui-
anos depois no seu exílio em Paris. Em consequência tas faces e significados mas permanece, no seu mais
desta emigração, o governo soviético retirou todos os recôndito cerne, sempre obscuro” (VZ, 111). Com isso,
seus filmes de cartaz, destruiu uma nova edição da En- evidencia-se que o que Tarkovski não aprovava era
ciclopédia de Filmes (Kinoslovar), onde havia referên- um determinado conceito de símbolo, uma certa uni-
cias a Tarkovski, e as revistas especializadas nas quais vocidade hermenêutica que roubasse a caleidoscópi-
ele costumava escrever não mais puderam sequer citar ca riqueza visual de suas imagens cinematográficas.
o seu nome. Deste modo, devemos considerar as imagens recorren-
tes em muitos de seus filmes como sendo as variações
A situação só se reverteu a partir de outubro possíveis de um mesmo tema musical que, todavia,
de 1986, dois meses antes de sua morte. No seu úl- permaneceria em última instância, indecifrável. Estas
timo filme, O Sacrifício, rodado na Suécia em 1985/6 imagens possuem, portanto, um amplo campo semân-
e ganhador do Prêmio Especial do Júri no Festival de tico que não devemos limitar. Um exemplo disso é a
Cannes de 1986, Tarkovski retoma um tema já presente presença ou ausência de cores nos seus filmes. Ora as
em Nostalgia na autoimolação de Domenico, o alterego filmagens em branco e preto correspondem à realidade
do protagonista russo Andrei (a tese de que Domeni- (como em A. Rublov), ora ao sonho (como em Nostal-
co seja o duplo de Andrei pode ser corroborada por gia). Não podemos fixar um significado unívoco quer
vários indicativos no filme, por exemplo: quando ele ao colorido, quer às imagens, que, como num catálogo
mostra a Andrei que duas gotas de óleo se misturam borgeano, repetem-se inúmeras vezes: os vidros e moe-
constituindo, na verdade, uma só. A equação pintada das espalhadas pela terra ou pela água, o leite derrama-
na parede de sua casa 1+1 = 1 aponta para o mesmo do, os cães silenciosos que aparecem repentinamente,
fenômeno). os enigmáticos espelhos que muitas vezes refletem o
inusitado (a jovem mãe em O Espelho, vê-se como an-
Em O Sacrifício, diante de uma catástrofe nu- ciã; já Andrei em Nostalgia vê-se como Domenico), a
clear, é Alexandre que está resolvido, caso Deus atenda onipresente água, em especial sob a forma de chuva e
ao seu apelo de desfazer a funesta desgraça, a silenciar- os misteriosos telefones que ressoam nos lugares mais
se e separar-se para sempre de tudo aquilo e de todos a inesperados (como em Stalker). O que significam es-
que mais ama. tas e outras imagens? Muitas coisas, mas isto deve ser
uma descoberta constante e gradativa dos espectado-
O conceito de símbolo para Tarkovski res, segundo Tarkovski. Ele não fechava as portas da
Após este preâmbulo, ocupemo-nos das con- significação, como julgava que Eisenstein fazia; ao con-
cepções estéticas de Tarkovski. Na literatura, encontra- trário, escancarava-as, conferindo ao espectador uma
mos duas linhas de interpretação, as quais procurare- miríade de possíveis interpretações. Esta ambiguidade
mos expor resumidamente e criticamente. Finalmente é justamente o que mais lhe fascinava em Leonardo da
esboçaremos uma terceira via interpretativa. Antes,
porém, de iniciar a exposição dessas possíveis exege-
Vinci. Após refletir sobre este em seu livro Esculpir o
Tempo, Tarkovski faz uma afirmação reveladora para 35
ses, alertamos para um receio do próprio Tarkovski. a compreensão das suas ambíguas imagens: “Não se
Ele não queria ver seus filmes reduzidos nem a uma pode captar o momento em que o positivo transforma-
interpretação racional-analítica, nem a uma leitura se no negativo e, respectivamente, em que o negativo
filológico-artística, que procuraria estabelecer por penetra no positivo. O infinito é imanente à estrutura
meio das imagens mais frequentes nos seus filmes da imagem” (VZ,1l5), ou seja, nunca teremos absoluta
como que um léxico simbólico do seu cinema. Embora certeza quanto à carga: semântica – positiva ou nega-
ele próprio tenha repetido muitas vezes – em entrevis- tiva – de uma dada imagem (a humilde Maria em O
tas que concedeu – que seus filmes não têm um sentido Sacrifício, é uma bruxa ou a própria Mãe de Deus?).
oculto, que suas imagens não simbolizam nada, é pre-
ciso compreender este receio a partir do seu contexto;
ele procurava um caminho para a sua arte equidis- Ruínas românticas
tante tanto do Realismo Socialista quanto do cinema A primeira e fértil via interpretativa alinha a
de S. Eisenstein. O que Tarkovski receava era que se obra de Tarkovski ao Romantismo alemão. F. Allardt-
tivesse uma apreensão intelectualizada do símbolo, Nostitz investiga as múltiplas semelhanças entre o
como para ele ocorria com Eisenstein, a quem ele, em cineasta russo e os autores do Romantismo alemão,
função disto, criticava veementemente. A sua posição embora ela se limite, infelizmente, apenas ao domínio
estava muito mais próxima dos Simbolistas russos, em da literatura. De fato, esta filiação é bastante óbvia
especial de W. I. Ivanov, cuja definição dos símbolos o para qualquer pessoa que conheça um pouco o pensa-
próprio Tarkovski cita em seu livro, como uma possí- mento filosófico e a produção estética daquela época.
vel definição que ele mesmo poderia fazer para definir Além disso, e caso fosse necessário mais um elemento
as suas imagens. O símbolo, diz Tarkovski citando a para assegurar esse parentesco, o próprio Tarkovski
Ivanov, “é apenas e tão somente um verdadeiro sím- escreveu um roteiro denominado Hoffmanniana, pu-
bolo quando o seu significado é inesgotável e ilimita- blicado em 1976 em uma revista especializada. Neste
do, quando ele expressa em sua linguagem secreta (hi- roteiro, ele narra a vida do escritor romântico alemão

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E. T. A. Hoffmann, por quem tinha grande admiração. espaço/Aqui o futuro no passado”. Nesta passagem de
A influência de Hoffmann fez-se sentir fortemente na Novalis, surge uma paisagem quase que emblemática
Rússia na obra de Gogol, Puschkin e Dostoiévski os do Romantismo e do cinema de Tarkovski: a paisagem
quais, obviamente, marcaram medularmente Tarkovs- em ruínas. Presentes em quase todos os seus filmes, as
ki (que os cita direta ou alusivamente em seus filmes). ruínas atingem a sua importância máxima nos poemas
A. Sokurov (1951), importante cineasta russo, afirmou visuais de Tarkovski em Stalker, único filme em que ele
que tudo o que Tarkovski criou já existia em uma ou também atuou como cenógrafo. G. Simmel (1858-1918),
outra forma na filosofia e poesia russa. fundador do ensaio propriamente filosófico, escreveu
um perspicaz ensaio sobre as ruínas, “A Ruína”, de
Alguns temas muito explorados pelo Roman- 1911, no qual atribuía o encantamento provocado por
tismo e que estão presentes na obra de Tarkovski são: estas ao fato de uma obra humana ser sentida como
as crianças, os andarilhos, os monges, as ruínas e a na- um produto da natureza. Ele interpreta, dentro de uma
tureza. A seguir, ilustraremos, com alguns exemplos, posição herdeira do iluminismo, essa admiração pelas
esse parentesco espiritual entre o cineasta russo e o ruínas como um sinal da inversão da ordem que os ho-
Romantismo. A infância e suas lembranças ocupam mens deveriam se esforçar por manter entre espírito
grande parte dos filmes de Tarkovski. Já em A infân- e natureza. Nas ruínas, o espírito humano sucumbiria
cia de Ivan, seu primeiro filme, poderíamos ilustrar a aos apelos da Mãe Natureza, o planejamento ao acaso
poesia visual de Tarkovski com os versos de um im- e o presente ao passado. Já M. Zambrano, a filósofa es-
portante romântico, P.B. Shelley: “Com solene visão e panhola, infelizmente pouco conhecida entre nós, con-
sonho de brilho argênteo/Sua infância foi alimentada” sagra um belíssimo ensaio a este tema, “As Ruínas”,
(Alistor). No âmbito da pintura, convém lembrar que de 1985, no qual apresenta uma posição diferente da
foi a partir do Romantismo que as crianças passaram a de Simmel e, sem dúvida, mais próxima da de Tar-
ser representadas na plenitude de seu mundo infantil, kovski. Para ela, as ruínas são, ao invés do naufrágio, o
especialmente nos quadros de P.O. Runge (em O Es- símbolo daquilo que sobreviveu à destruição, ou seja,
pelho, aparece uma criança em uma cama que irradia elas seriam os frutos de uma tragédia cujo único au-
uma luz e energia típicas das crianças de Runge). Na tor é apenas e tão somente o tempo. Zambrano vê nas
obra de Tarkovski, as crianças, sempre inocentemente ruínas, principalmente nas ruínas de templos, tanto o
enigmáticas, estarão presentes em praticamente todos fim do que o homem orgulhosamente edificou quan-
os seus filmes. O tema dos monges e andarilhos apa- to a sobrevivência daquilo que ele não pode alcançar
rece em seus filmes exemplarmente nas figuras de A. na sua edificação: “a realidade perene do frustrado, a
Rublov e do Stalker. A figura do
andarilho-pintor era bastante co-
nhecida pelos românticos alemães:
Francesko, aluno de Leonardo da
Vinci no conto Elixires do Diabo,
de Hoffmann, e Franz Sternbald,
aluno de A. Dürer, no romance de
L. Tieck, As Peregrinações de Franz
Sternbald, eram os mais conhecidos.
Nas artes plásticas, este tema era
também bastante comum entre os
pintores (lembremo-nos apenas do
conhecido quadro O Monge ao Mar,
de C.D. Friederich). Algumas pas-
sagens da obra de Novalis pode-
riam servir até mesmo como epí-
grafes poéticas a muitos dos filmes
do cineasta russo, por exemplo, o
fragmento 16 de Polem. Ele poderia
ser a divisa poética de Solaris: “Nós
não conhecemos as profundezas de nosso espírito. O vitória do fracasso”. A posição de Tarkovski é muito
misterioso caminho conduz para dentro de nós. Em semelhante. Para ele, as ruínas de uma civilização são
nós ou em nenhum lugar encontra-se a eternidade com “como túmulos da vaidade das ambições humanas,
36 seus mundos, o passado e o futuro”. Como epígrafe ao
Stalker poderíamos pensar em alguns versos da segun-
uma marca do caminho funesto no qual a humanidade
se perdeu” (VZ, 209). Em uma observação penetrante
da parte do romance inacabado de Novalis, Heinrich de Zambrano corroborada pelo trecho de Novalis por
von Ofterdingen: Irrompe o novo mundo/E obscurece a nós citado, por inúmeros quadros tanto de Friederich
mais luminosa luz do sol/Vê-se então desde musgosas como de outros e pelos próprios filmes de Tarkovski,
ruínas/Brilhar um futuro inusitado/E o que anterior- não pode haver ruína sem vida vegetal. Já que é esta
mente era cotidiano/Aparece agora estranho e mara- que, como expressão da vida, leva a ruína a ser um
vilhoso/ ... Nenhuma ordem mais segundo tempo e lugar sagrado, um lugar onde, em uma misteriosa

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hierogamia vida e morte se entrelaçam, onde história A arte, declara Tarkovski, é um “hieróglifo da
e natureza se reconciliam. Na vegetação que cresce verdade absoluta” (VZ, 43). A imagem, por sua vez,
entre as ruínas “com ímpeto inigualável”, Zambrano “aspira ao infinito e conduz ao absoluto” (VZ, ll0). O
reconhece “a pacífica vingança da terra humilhada” infinito, porém, não pode ser expresso em palavras, “a
pelas soberbas construções humanas. Na cena final de arte, todavia, proporciona esta possibilidade, ela torna
Nostalgia nós temos quase que uma transposição para o infinito passível de ser experimentado. O absoluto é
o cinema de um quadro de Friederich (Ruma Eldena, alcançável apenas através da fé e da criação artística”
de 1825). No âmbito deste parentesco espiritual com (VZ, 45). Aqui bastaria remeter o leitor para as belas
o Romantismo, cabe-nos ainda citar outros elementos. páginas finais da sexta e última parte do Sistema do Ide-
O primeiro é o sentimento fundamental e estruturante alismo Transcendental, de Scheling, em que não faltam
tanto dos românticos quanto de Tarkovski, a melan- elogios à arte e às suas possibilidades. Nestas passa-
colia. As ruínas – como já vimos – evocam um nostál- gens conclusivas, encontra-se a conhecida definição
gico passado e a própria natureza, para os românticos, de Schelling de que a arte seria “o único verdadeiro
parece querer ser compreendida por meio de uma e eterno organon” da filosofia, organon, compreendido
linguagem esquecida pelos homens (em O Espelho, o aqui não apenas em sua função instrumental mas tam-
médico, no início do filme, expressa claramente este bém em sua função orgânica. Cabe lembrar que, para
anseio de compreender a natureza no seu mais íntimo). Tarkovski, a obra de arte significa, em última instância,
Este desejo indefinido, este anelo a algo indizível, mas “a ligação orgânica entre ideia e forma (VZ, 30). Infeliz-
necessário, dá o tom fundamental dos poetas, pintores mente não há espaço neste trabalho para desenvolver
e, quase poderíamos dizer anacronicamente, cineastas a fascinante e quase inexplorada recepção de Schelling
românticos. Uma outra imagem que capta este clima na Rússia no século passado o qual, através de filósofos
romântico é a das figuras solitárias que, de costas para como W. Soloviev, N. Berdiaev e P. Florenskij influen-
o espectador, contemplam a natureza como que bus- ciou Dostoiévski e alguns poetas do Simbolismo russo,
cando nos longínquos horizontes vestígios evanescen- como W. I. Ivanov, com quem – como vimos acima –
tes de uma outra era. C.D. Friederich criou muitas des- Tarkovski mostra-se esteticamente muito aparentado.
sas cenas como, por exemplo, em O Peregrino sobre a Seja dito apenas de passagem que o grande fascínio
Névoa ou em Mulher ao pôr-do-sol, ambos de 1818. Este despertado por Schelling na Rússia não ocorreu de-
último quadro encontra um interessante paralelo no vido à sua obra inicial que poderíamos descrever como
filme Solaris, no qual a mãe do psicólogo Chris Kelvin, essencialmente romântica, mas principalmente devido
afastando-se deste, que queimava papéis e cartas antes a sua obra final, na qual Schelling buscava transcender
de embarcar para a sua viagem espacial, procura con- os próprios limites do Idealismo. Foi esta fase final de
solo para a dor da separação na natureza enevoada e sua filosofia, essencialmente religiosa, que fascinou os
misteriosa que a circunda. A mesma construção – per- ânimos místicos de muitos russos. Mencionamos esta
sonagem de costas contemplando a natureza – também herança filosófica de Tarkovski apenas para poder
aparece em O Espelho no início com a jovem mãe, ou em melhor defendê-lo das acusações injustas que lhe são
O Sacrifício, em uma rápida cena final, Alexandre, após
iniciar o incêndio de sua casa, contempla a natureza
frequentemente atribuídas de defender uma subjetivi-
dade antirracional oposta à razão iluminista. Dizemos 37
de costas para o espectador. Uma variante deste tema, isto porque o próprio Schelling, sobretudo, o da última
muito apreciada pelos pintores do Romantismo, é a fase, recebeu e ainda recebe, injustamente, o epíteto
representação de um personagem de costas, no interior de irracionalista (lançado principalmente pela obra
de uma casa, olhando para o mundo externo através de preconceituosa e reducionista de G. Lukács, A Destru-
uma janela. Aqui, expressa-se a tensão entre o anseio ição da Razão, de 1954, e denominada ironicamente por
pelo desconhecido e o apego ao conhecido. Não nos Adorno “A Destruição da Razão de Lukács”).
esqueçamos de que janelas e portas representam tan-
to o limite como o limiar. Esta tensão irresolúvel era, Nesta obra, a totalidade da filosofia alemã
para os românticos, a própria matéria-prima da poesia. desde Schelling, com a óbvia exceção do marxismo,
Tarkovski tem uma bela cena no seu filme Stalker, no é considerada como um prolegômeno ao governo de
qual este, contemplando uma janela na anticâmara ao Adolf Hitler. Os filósofos russos, acima mencionados,
sibilino Quarto, recita uma lindíssima poesia de Arseni também foram objeto ou de chacota ou do monstruoso
Tarkovski – lamentavelmente quase desconhecido en- silêncio ideológico. Obviamente Tarkovski está sujeito
tre nós – que capta muito bem a essência da melanco- às mesmas críticas, por não alinhar-se com o projeto da
lia. Nesta poesia, sempre após cantar algumas dádivas razão iluminista. O problema é que não se alinhar com
do mundo, o verão e os raios de sol ou as alegrias e uma dada posição não significa, necessariamente, opor-
benesses da vida, ressoa sinistramente o fatídico verso: se-lhe em sua totalidade. Assim parece-nos lamentável
“Mas isto não basta”. Por fim, as conceptualizações ler em tantos artigos e livros sobre Tarkovski a eterna
estéticas do próprio Tarkovski em seu livro parecem crítica ao seu pretenso irracionalismo.
como que tiradas da obra inicial do filósofo alemão
F. J. W. Schelling, do escritor e teórico da literatura F. Alegorias barrocas
Schlegel ou do próprio poeta e pensador Friederich Diante desses preconceitos que a linha inter-
von Hardenberg mais conhecido sob seu pseudônimo pretativa acima tratada pode evocar, é interessante
Novalis. voltar-nos ao arguto e erudito ensaio de Böhme, Paisa-

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gens em Ruínas, de 1988, no qual este autor, professor nos filmes de Tarkovski em que se esboça esta recon-
de Teoria Literária da Universidade de Hamburgo, ciliação, só que para ele estes momentos já são sempre
vincula Tarkovski à tradição da Dialética do Iluminismo, passados; fragmentos, ruínas de uma nostalgia que só
de Adorno e Horkeimer. Para ele, não se pode acusar será plenamente realizada na morte. Essa interpretação
Tarkovski de irracionalista e anti-iluminista, já que ele tem o mérito de desfazer o equívoco do Tarkovski ir-
estaria alinhado a pensadores como Walter Benjamin. racionalista e anti-iluminista; cristaliza, porém, a ideia
Na leitura de Böhme, Stalker narra o fracasso do projeto de Tarkovski como um típico romântico, ansiando
hegeliano. Stalker demarcaria, deste modo, o fim da Fi- melancolicamente pela noite e pela morte. Esta posição
losofia da História. Böhme vê na arte de Tarkovski o tampouco nos parece adequada para abarcar o univer-
uso de alegorias no sentido benjaminiano do termo, por so profundamente religioso de Tarkovski. O principal
isso, o cineasta russo é, para ele, um artista essencial- argumento que nós teríamos para nos contrapor a essa
mente barroco. As alegorias, elucida Walter Benjamin interpretação da obra de Tarkovski, são as próprias
no capítulo sobre alegoria em Origem do Drama Barroco afirmações do cineasta em seu livro. Para ele, “o artista
Alemão, estão para os pensamentos, assim como as ruí- para descrever o vivo representa o morto e para falar
nas para as coisas; a alegoria está além da beleza en- do infinito representa o finito” (VZ, 45), ou seja, não se
quanto mera harmonia. Considerada alegoricamente, podem considerar as suas imagens pelo que elas apa-
a imagem é, então, fragmento, ruína. A alegoria opõe- rentam ser. Um exemplo que ele mesmo dá é o suicídio
se ao símbolo para Benjamin, porque ela não se refere de Domenico (em Nostalgia), considerado por ele como
a um sentido último, mas propõe múltiplos sentidos, a demonstração da ausência de egoísmo deste (VZ,
porque ela não é apreensível imediatamente, como o 210). Seu interesse pelo homem de nossos dias, “im-
símbolo, mas necessita de um trabalho exegético para potente espiritualmente”, não significa que ele tivesse
ser compreendida. H. Böhme vê nos personagens de esse tipo de homem como modelo. Ele próprio afirmou:
Stalker alegorias à Ciência (o professor de Física), à “O homem moderno ... não quer se sacrificar, embora
Arte (o escritor) e à Religião (o próprio Stalker). Esses a individualidade verdadeira só possa ser alcançada
personagens, diante de sua impotência em atravessar por meio de um sacrifício” (VZ, 44). Assim, atentos ao
o umbral do misterioso Quarto, demonstram-se inap- que nos parece ser o grandioso momento de Stalker, ou
tos a apreender o Absoluto, o Sentido Último. Assim a seja, a aproximação dos três personagens ao misterioso
História desfaz-se em pós-histórias. Quarto, esquecemo-nos, talvez pela simplicidade da
cena, do mais importante: o amor gratuito da mulher
A ruína, para Böhme “uma construção estética do Stalker por ele. “Este amor e dedicação, diz-nos Tar-
da melancolia”, opõe-se a uma construção inacabada kovski, é o último milagre que pode ser contraposto à
que seria antes uma alegoria da esperança. Esta flu- descrença, ao cinismo e ao vazio do mundo moderno”
idez de significados, para Böhme, na medida em que (VZ, 203). Por julgar o mais importante no homem a
tudo pode significar tudo, sem ater-se a nenhum centro sua “capacidade de amar”, ele se dizia favorável a uma
organizado e hierarquizado de significações, produz, arte que desse ao homem “esperança e fé” (VZ, 197).
necessariamente, a melancolia pela dispersão e pela Arte que ele belamente definia “como uma
morte. Por fim, vemos que, embora por outro per- declaração de amor. Como uma declaração da própria
curso, retornamos a um problema semelhante ao do dependência dos outros homens. Ela é uma confissão.
parágrafo precedente. Nesta interpretação, Tarkovski Um ato inconsciente que reflete o verdadeiro sentido
passa a ser um artista becketiano que narra o fim de da vida – o amor e o sacrifício” (VZ, 240). Como dizer-
toda a esperança. Tudo acabaria, para ele, então, em se de um tal artista que ele aspira apenas à morte?
derrelição, ruína. Ora, esta exegese, se, por um lado, é
muito fecunda em sua aproximação ao conceito de ale- Reticências taoístas
goria em Walter Benjamin, por outro, mostra-se muito Por fim, gostaríamos de propor uma terceira
parcial tanto em relação a Tarkovski quanto ao próprio via exegética. Não encontramos nos trabalhos por nós
Benjamin, já que ela enfatiza apenas o lado melancólico consultados nenhum desenvolvimento deste cami-
destes. Um outro interessante paralelo, não tratado por nho, mas ele nos parece profícuo. Quando Tarkovski
Böhme, mas que mereceria um estudo mais acurado, é descreve o tempo como a matéria-prima da arte cine-
entre a ideia de Benjamin sobre a perda da experiência matográfica, ele especifica que, ao contrário do caráter
(e a consequente dissolução da narração) na Moderni- abstrato dessa outra arte do tempo que é a música, o
dade e a concepção de Tarkovski de que é devido à tempo no cinema precisa ser apresentado como fato, e
pobreza de experiência espiritual dos homens de hoje este é, por sua vez, representado apenas por meio de
que o cinema é tão frequentado (VZ, 90). Para Böhme, uma observação cuidadosa. Resumindo: “a imagem
38 “em nenhum lugar a natureza adquire a aparência de
uma reconciliação” na obra de Tarkovski. A natureza
cinematográfica é, em essência, a observação de um
fenômeno situado no tempo” (VZ, 70). Ora, ao falar
aparece nos seus filmes como “nature morte da socie- de observação cuidadosa, Tarkovski aproxima seu tra-
dade” que para Böhme seria a única forma de repre- balho ao da elaboração de um haiku. Esta aproximação
sentação da natureza na pós-história, já que esta dis- entre Tarkovski e a estética japonesa e, como veremos a
tanciou-se tanto do Princípio Esperança (de E. Bloch) seguir, a chinesa, parece-nos muito iluminadora (lem-
quanto de uma reconciliação com a natureza (como no bremo-nos dos motivos orientais de seu último filme).
Romantismo). Ele menciona até mesmo várias cenas Ele, que não poupava elogios ao cineasta francês R.

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Bresson, aproximava a arte deste ao Zen-Budismo Referências bibliográficas
(VZ,102). Para Tarkovski, a imagem deveria ser como
um haiku, ou seja, como um súbito satori (iluminação) 1 BÖHME, Hartmut. “Ruinen-Landschaften” in: Natur
capaz de transmutar a irrepetibilidade do instante na und Subjekt, Frankfurt, 1988.
eternidade (VZ,1l2). Esse micropoema japonês carac- 2. GREEN, Peter. The Nostalgia” in: Sight & Sound, vol.
teriza-se, segundo Octavio Paz, principalmente por 54, Nr.1 (1984/5).
sua indeterminação; e é justamente nessa parte não ex- 3. GREEN, Peter. “Apocalypse & Sacrifice” in: Sight &
pressa do poema que jaz a verdadeira poesia. Tarkovs- Sound, vol. 56, Nr. 2 (1987).
ki compreendia isso muito bem, pois logo após falar do 4. PAZ, Octavio. “A Tradição do Haiku” in: Sendas de
haiku, refere-se à grandiosidade de Leonardo Da Vinci, Oku – Bashô. São Paulo, 1983.
louvando-o pela ampla ambiguidade semântica com 5. RACIONERO, Luís. “Las Cuatro Claves de la Estet-
que podem ser interpretados os seus quadros. Ora, L. ica Taoísta” in: Textos de Estética Taoísta, L. Racionero
Racionero, em uma bela introdução à compilação de (ed.), Madrid, 1983.
textos de estética taoísta que traduziu, afirma precisa- 6. SCHLEGEL, H. -J. et alii. Andrej Tarkowskij, München,
mente ser Leonardo o artista ocidental com mais afini- 1987.
dades com a estética taoísta. Os quatro conceitos fun- 7. SCHMID, Eva M.J. “Nostalghia/Melancholia” in:
damentais da estética taoísta são, segundo Racionero, Jahrbuch Film 83/84.
a empatia, o ritmo vital, a reticência e o vazio. Dentro 8. SIMMEL, Georg. “Die Ruine” in: Philosophische. Kul-
do âmbito da primeira categoria, os artistas procura- tur, Berlin, 1986.
vam transmitir o chi, ou seja, “a comunicação a nível 9. TARKOWSKIJ, Andrej. Die versiegelte Zeitt, Frank-
de vibrações e produzir com ela uma alquimia percep- furt/Berlin, 1988.
tual, emocional e vital”. Estaremos muito distantes de 10. TARKOWSKIJ, Andrej. Opfer. Münchem, 1987.
Tarkovski que se dizia fascinado por “aquela energia 11. TARKOWSKI, Arseni. Auf der Anderen Seite des
humana que se opõe à rotina materialista” (VZ, 213)? Spiegels. Berlin, 1990.
12. TUROWSKAJA, M. J. Allardt-Nostitz. F., Andrej
A segunda categoria, o ritmo vital, apresenta Tarkowskij. Poesie als film. Film als Poesie, Bonn, 1981.
também uma forte semelhança com a concepção Tar- 13. ZAMBRANO, Maria. “Las Ruínas” in; El Hombre y
kovskiana da estética cinematográfica. Tarkovski afir- lo Divino. México: 1986.
ma ser o ritmo, por exemplo, “o elemento formador
decisivo do cinema” (VZ,127). O terceiro elemento, a
reticência, a sugestão, também era seguido por Tar- Nota: Este texto foi originalmente publicado na revista
kovski, que acreditava que “o estado de um homem, Cultura Vozes, no 1, janeiro-fevereiro, 1995.
que o artista expressa, deve (...) sempre guardar algo
de misterioso” (VZ,1l6). A última categoria, o vazio, a
mais difícil de ser apreendida pelos ocidentais, parece-
me poder estar presente nos inúmeros enquadramen-
tos de Tarkovski a portas e janelas. Afinal não são estas 39
– segundo a ótica taoísta – o vazio emoldurado? Tar-
kovski, um cineasta mestre na arte de um haiku visual?
A chuva que cai silente sobre uma xícara de chá, a eté-
rea queda de uma pena n’água, o inaudito fogo devo-
rando as páginas de um livro, os espetaculares reflexos
da luz na água – o que Tarkovski nos propõe é que
rompamos com nossas habituais categorias de obser-
vação, alterando para este fim o ritmo no qual estamos
acostumados a observar as pessoas e o mundo circun-
dante. Parafraseando o que disse Octavio Paz de Bashô
e da sua poesia, poderíamos dizer que para Tarkovski
o cinema é “um caminho em direção a uma espécie de
beatitude instantânea”, por isso ele nos propõe que,
rompendo com todas as nossas categorias visuais e
perceptuais – e aqui retornamos ao Romantismo na
figura de William Blake – possamos ver “o mundo in-
teiro espelhado em uma gota d’água” (VZ, 117).

P
* Fernando Rey Puente é professor de Filosofia da
UFMG.

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A mudança nas ciências
segundo Paul Feyerabend
por Tiago Luís Oliveira*

Em 26 de junho de 2011, Tiago Luís defendeu conheceu diversos momentos de revoluções, nas quais se ope-
sua dissertação de mestrado em filosofia pela UFMG. raram mudanças conceituais significativas. A explicação
O tema foi “A mudança nas ciências segundo Paul desse processo de superação de uma teoria por outra rival e a
Feyerabend”, e o trabalho foi realizado sob a orienta- definição clara de critérios de escolha entre teorias competi-
ção da Profa. Dra. Patrícia Kauark Leite. doras ocupou boa parte de pensadores da filosofia da ciência,
cujas correntes mais destacadas foram o positivismo lógico e
Abaixo um trecho de sua apresentação: o racionalismo crítico. O filósofo vienense, que já fora adepto
de ambas em fases diferentes de seu pensamento, procura
Paul Feyerabend (1924-1994) já fora citado como mostrar a insuficiência epistemológica dessas duas vertentes
“o pior inimigo da ciência”. Esse apelido é injustificado na filosóficas. No seu lugar, Feyerabend propõe princípios como
medida em que o autor não rejeita a ciência, mas apenas ten- o da proliferação, da contraindução e da recusa de um mo-
tativas abstratas da filosofia da ciência de reduzir a comple- nismo teórico e metodológico.
xidade da atividade científica a critérios formais. Feyerabend Nosso texto procurou abordar o tema sugerido em
nasceu em Viena, onde se doutorou em Física. Também se três capítulos, de forma a clarificar o posicionamento fey-
interessou por filosofia, frequentando um grupo de estudos erabendiano sobre os critérios de seleção teórica. Resumida-
ligados ao positivismo lógico e, com suas anotações, candi- mente podemos dizer que a posição feyerabendiana rejeita
datou-se e ganhou uma bolsa de doutorado em filosofia na um cientificismo, com a sustentação do princípio de que a
London School of Economics, onde teve Karl Popper como sociedade em geral (e não apenas os especialistas) deve dis-
orientador. Mais tarde acenderia várias críticas tanto ao cutir os rumos da ciência baseada em critérios pragmáticos
positivismo lógico quanto ao racionalismo popperiano, en- e hedonistas. Longe, no entanto, de ser um repúdio à prática
quanto lecionava em Berkeley, na Califórnia e no Instituto científica, é por apreço à ciência que Feyerabend sustenta as-
Federal de Tecnologia (ETH) de Zurich. No teatro, foi as- pectos epistemológicos normativos: se queremos uma ciên-
sistente de Bertolt Brecht. cia cada vez mais capaz de descrever a realidade, é preciso
considerar alternativas, é necessário um espaço democrático
para discutir os objetivos e critérios da pesquisa. Sobretudo é
imprescindível liberdade para desenvolver novidades supos-
tamente incoerentes com o conhecimento já aceito.

Referências bibliográficas

1. FEYERABEND, Paul K. Contra o método. São Paulo:


Ed. UNESP, 2007, pp. 54-55.
2. FEYERABEND, Paul K. Realism, rationalism and scien-
tific method. Cambridge: Cambridge University Press,
1981.

Site para obter a dissertação do Tiago Luís: http://


40 Paul K. Feyerabend (1924-1994)
w w w. b i b l i o t e c a d i g i t a l . u f m g . b r / d s p a c e / b i t -
stream/1843/BUOS-8N7FCN/1/disserta__o_tiago.
pdf
O problema que apresentamos diz respeito à inter-
* Tiago Luís Oliveira é mestre em Filosofia pela UFMG
pretação que Feyerabend faz das mudanças científicas nas
e professor do Ensino Médio.
quais uma teoria substitui outra dentro de um processo de
competição. A história da ciência, mesmo a mais recente,

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Filosofia
no vestibular da UFMG
por Robson Araújo*

Em julho de 1999, ficou decidido que haveria mais livre do candidato, geralmente uma questão
prova de Filosofia no vestibular da UFMG, uma de- polêmica e de difícil abordagem.
cisão ousada na época. Lembro-me de que não houve Em todos os tipos de questão a capacidade de
um grande impacto nas escolas e nos cursinhos da ci- argumentação do vestibulando é um item avaliado.
dade. A maioria dos jornais não se interessou pela dis- A organização do raciocínio, a apresentação clara das
cussão da introdução de filosofia nas provas da UFMG ideias e o conhecimento da natureza do pensamento
(Direito e Filosofia, inicialmente). Hoje são nove os cur- filosófico são imprescindíveis para a realização de uma
sos que exigem filosofia no exame do vestibular: Ciên- boa prova.
cias Sociais; Filosofia; Artes Visuais; Cinema de Ani- Os erros mais comuns nas respostas dos alu-
mação e Artes Digitais; Comunicação Social; Ciências nos nas avaliações são: respostas sem argumentos ou
do Estado; Direito; Conservação e Restauração de Bens argumentos sem coerência, falta de consistência das
Culturais Móveis; e Design de Moda. A preparação ideias apresentadas, desconhecimento do texto in-
para a prova de filosofia, no início desprezada, tomou dicado para leitura, dificuldade em interpretar ade-
um rumo diferente atualmente, foi levada mais a sério, quadamente o enunciado ou o texto. Recomendamos
apesar de não ser pelos motivos desejados – uma edu- que o candidato, para fazer uma boa prova, evite dar
cação em filosofia –, mas para simplesmente passar no opiniões ou usar termos disposicionais (muito difícil,
vestibular, infelizmente. intolerável, fácil, etc.), não use referências não filosó-
A prova de Filosofia do Vestibular da UFMG ficas, trabalhe o problema filosófico envolvido e não
ocorre então desde 2000. De um modo geral, na prova apenas a interpretação do texto, elabore um texto com
encontramos três tipos de questões: questões sobre os a máxima clareza, esquematize sua resposta e só inicie
livros, questões sobre o programa e questões livres. Se- a redação quando estiver com o raciocínio completo.
gundo a Comissão de Vestibular, não há necessidade Fizemos uma análise das provas de filosofia
na elaboração das respostas do uso de termos técnicos da UFMG e apresentaremos a seguir alguns dados es-
ou referências à História da Filosofia. tatísticos que podem ajudar a traçar um perfil dessas
Nas questões sobre os livros escolhidos, ava- avaliações.
lia-se a capacidade de compreensão e interpretação
de textos filosóficos. Um pequeno trecho dos textos Temas mais explorados 41
indicados para leitura é reproduzido na prova. Exige-
se nessas questões identificar uma posição filosófica,
explicar uma noção presente no trecho, justificar as
razões de uma determinada afirmativa ou desenvolver
uma determinada ideia, assim como estabelecer rela-
ções entre as ideias apresentadas no trecho selecionado
e outras ideias presentes na mesma obra do autor. O
trecho reproduzido na prova fornece alguns elemen-
tos para a elaboração de uma resposta; o conhecimento
prévio dos textos em sua íntegra é, porém, necessário
para uma resposta mais precisa e de qualidade.
Nas questões sobre o programa, explora-se um
ponto específico do conteúdo indicado. Geralmente o
candidato conta com um suporte textual com base no
tema que ele deve desenvolver, e que lhe dá elementos
para a construção de sua resposta; entretanto, uma res-
posta de bom nível requer preparação do candidato.
Requer domínio de conteúdo.
O terceiro tipo de questão (questão livre) exige Legenda:
uma tomada de posição do candidato sobre um tema IF: Introdução à filosofia ANT: Antropologia
ou problema filosófico. Nesse caso, para que o candi- ETI: Ética POL: Política
dato possa fazer o que lhe é pedido, é preciso que ele LO: Lógica EPI: Epistemologia
identifique, primeiramente, o problema filosófico pro- EST: Estética
posto. Esse tipo de questão abre-se para uma reflexão

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Básico Operatório Global
Podemos concluir que na UFMG há uma forte
tendência para o tema Epistemologia. Essa é ou foi Apresentar Associar Aplicar
uma característica do departamento de filosofia da Denominar Determinar Avaliar
UFMG nesses últimos anos. Notamos, por outro lado, Relatar Enumerar Contestar
o crescimento do interesse pelas questões de Estética.
Relatar Enumerar Contrapor
Mas geralmente não percebemos uma preocupação em
equilibrar os temas nas provas. Resumir Esclarecer Discutir
Redigir Explicar Questionar
Características das questões Transcrever Relacionar Justificar

Um cuidado que devemos ter em nossas au- No nível básico, encontram-se as ações que
las é se os nossos alunos interpretam corretamente os possibilitam a apreensão das características e pro-
verbos de comando. É um tipo de erro muito comum priedades permanentes e simultâneas de objetos com-
os candidatos não atenderem ao que se pede por con- paráveis, isto é, propiciam a construção de conceitos a
fundir ou desconhecer o sentido do termo. Uma aula partir dos primeiros passos ou da procura e constata-
para discutir esses verbos, tomando algumas questões ção.
como exemplos, seria muito útil para o vestibulando. No nível operatório, encontram-se as ações
Observe no gráfico que redigir é fundamental (bási- coordenadas que pressupõem o estabelecimento de
co) nas provas de filosofia e que o verbo explicar é o relações entre os objetos. Essas competências que, em
mais usado. geral, atingem o nível da compreensão e da explicação
supõem a tomada de consciência dos instrumentos uti-
lizados para aplicação em diversos contextos.
No nível global, encontram-se as operações
mais complexas, que envolvem a aplicação de conhe-
cimentos a situações diferentes e à resolução de pro-
blemas inéditos.

As competências

Entende-se por competências cognitivas as mo-


dalidades estruturais da inteligência, ou melhor, o
conjunto de ações e operações mentais que o sujeito
utiliza para estabelecer relações com e entre os objetos,
situações, fenômenos e pessoas que deseja conhecer1.
Há variações na classificação das competências. Uma prova bem equilibrada utiliza-se dos três
Geralmente os agrupamentos são três e cada um in- níveis na mesma proporção para não termos uma pro-
dica competências que representam qualidades dis- va nem muito difícil, nem muito fácil. Geralmente con-
tintas de ações e operações mentais que se diferenciam sideramos o nível básico como fácil, o nível operatório
pela natureza das relações a serem estabelecidas entre como médio e o nível global como difícil. De acordo
o sujeito e o objeto do conhecimento. O exame interna- com esse critério, a prova de 2005 foi difícil e a de 2006
cional PISA usa a classificação das competências em foi fácil.
reprodução, conexão e reflexão. Lino Macedo, piag-
etiano, classifica as competências em representativas, Filósofos mais citados
42 procedimentais e operatórias. Vamos simplificar nossa
classificação das competências nomeando-as em bási- A preferência pelos filósofos antigos e moder-
co, operacional e global, usando um critério do MEC nos é notória na UFMG. Isso poderia dar a impressão
(tabela a seguir). de uma tendência errada nessas provas, um sectaris-
mo. Pelo contrário. As provas caracterizam-se pelos
pro-blemas fundamentais tratados na filosofia, em
qualquer período, nas várias correntes estudadas.

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mas de uma razão absoluta que perpassa a intimidade
de todos os objetos e acontecimentos mundanos. Em
outros termos, para Hegel, a filosofia lida com os pen-
samentos de Deus encarnados na realidade material.
Já Marx descobriu que a filosofia, assim como todas as
outras ciências, possui um vínculo orgânico e espiri-
tual com a classe que a produz, portanto, é um produto
da subjetividade humana e tinha como missão atuar
na transformação da realidade. E Nietzsche acreditava
que a filosofia não era nada além de uma perspectiva
através da qual o homem valora o mundo, e seria ne-
cessário que essa mesma filosofia ajudasse a transva-
lorar o real, desvencilhando o ser humano de todos os
constrangimentos que lhe impedem de realizar. Em re-
Finalizando esta abordagem esquemática, sumo, todos os filósofos apresentam uma formulação
podemos dizer que as provas da UFMG são bem feitas, da filosofia que se adequa ao modo como ele mesmo
elegantes, não se descuida da clareza de propósitos e faz filosofia.
são coerentes com a proposta de trabalho. A História Não obstante, a despeito dessa polissemia em
da Filosofia é um eixo condutor, mas não se perde no que todas as vozes disputam entre si a primazia de ser
historicismo ou na cronologia da evolução do pensa- a filosofia por excelência, sem que nenhuma delas de
mento humano. fato o seja, é possível oferecer uma formulação genérica
P acerca do que é a filosofia, claro está que essa definição
Notas: não esgota a necessidade de constantemente retornar-
1. Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais, Inep/MEC, mos ao estudo da natureza dessa disciplina considera-
Documento Básico do Enem – Exame Nacional do Ensino da a mãe de todas as ciências, tampouco estamos livres
Médio, Brasília, 2002, p.11. de críticas. A filosofia é, antes de tudo, uma atividade
intelectual cuja finalidade última é a formação da sub-
* Robson Araújo, professor do Ensino Médio, bacharel jetividade para que os indivíduos possam se orientar
em Filosofia e mestre em História das Ciências. na realidade ambiente que os circunda. É um inces-
sante esforço intelectual para decifrar os hieróglifos

A natureza da constitutivos da realidade e atribuir um sentido a eles


de tal maneira que possam fornecer uma interpretação
possível dessa mesma realidade. Ademais, a filosofia
Filosofia não se limita ao domínio das veleidades individuais,
ela é desde sempre uma atividade coletiva, pois visa
por Eric Renan*
mediar as relações intersubjetivas dos homens entre
si e com a natureza. Em outras palavras, a atividade 43
filosófica sempre estará circunscrita pela cultura, pelo
Certamente, todo professor de Filosofia já se
meio social no qual ela emergiu. Há ainda que conside-
deparou com dificuldades diante da pergunta “o que
rar que essas características exigem que a filosofia seja
é a filosofia?”. E essas dificuldades não se devem ao
uma atividade reflexiva, isto é, que ela se volte para si
fato de o professor não estar preparado para ministrar
mesma e questione a cultura na qual foi gestada a fim
a disciplina, tão pouco ao fato de ele não conhecer o
de desvelar as contradições que perpassam a realidade.
sentido imanente da atividade que escolheu como seu
Donde podemos concluir que toda filosofia, apesar de
“ganha-pão”. As raízes dessas dificuldades são mais
ser teórica, tem sempre uma vocação subversiva, que
profundas e estão fincadas no fato de a pergunta “o
exige a dissolução dos muitos preconceitos que nor-
que é a filosofia” ser imediatamente um problema fi-
teiam a vida cotidiana a fim de redefini-la e ampliar as
losófico, com o qual todo filósofo é obrigado a depa-
condições de possibilidades da emancipação humana.
rar. Ao principiar a construção de um sistema filosó-
fico, mesmo os mais imponentes pensadores sentem a
íntima necessidade de delimitar com precisão qual a Sugestões de leitura
ARANAHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena
concepção de filosofia eles estão movendo para funda- Pires: O que é filosofia in Filosofando: Introdução à filosofia, 2ª edição.
mentar as proposições que defenderão. Editora Moderna, São Paulo, 1993.
Não existe somente uma filosofia unívoca, MATTOS, Olgária Chaim Feres: Filosofia: a polifonia da razão. São Pau-
lo: Editora Scipione, 2006.
mas uma heterogeneidade de discursos filosóficos que, Bornheim, Gerd. Introdução ao filosofar: o pensamento filosófico em
investigando todas as ordenadas do ser, converte a bases existenciais. São Paulo: Editora Globo, 2009.
filosofia em uma verdadeira “polifonia da razão”. Os RUSSEL, Bertrand. O Valor da Filosofia in Os problemas da filosofia.
antigos, por exemplo, entendiam que a filosofia estava Tradução de Jaime Comte. Florianópolis, 2005.
na base de toda busca humana pelo conhecimento, nes-
ta acepção toda ciência era filosófica, ou pelo menos * Eric Renan Ramalho é graduando em Filosofia pela
estava enraizada na filosofia. Para Hegel, a filosofia é UFMG.
a forma mais elevada da razão, não da razão humana, P
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Teste seus conhecimentos. Envie sua resposta
para: pense-avaliação@uol.com.br

Essa seção é uma oportunidade para você PRECONCEITO MUITO PRA FRENTE
avaliar seu conhecimento. Pretendemos, em cada ed-
ição, propor uma questão discursiva dos vários ves- Toda hora eu vejo, em jornais, revistas, televisão, e
tibulares e concursos realizados no Brasil. Envie sua na rua, pessoas cada vez mais “livres” de preconceitos e ...
resposta e, no prazo de sete dias, enviaremos nossa E no entanto todas estão convencidas de que a Terra gira em
correção e uma nota média da equipe de 0 a 10. torno do Sol. Por quê?
Pergunte a elas e elas responderão: “Ué, Galileu
provou isso há muito tempo”. Mas provou pra quem? Pode
(UFMG-2009) LEIA o texto ao lado: ser que tenha provado pros cientistas. O homem comum e
mesmo nós, os pejorativamente chamados intelectuais, aceit-
amos e pronto. Sem pensar. “Preconceituosamente.” Como
antes de Galileu aceitávamos que o Sol girava em torno da
Terra. Mas, entre Galileu – de cujas “provas nunca tomamos
conhecimento, muito menos sabemos dizer quais são – e a
realidade, que literalmente salta (gira) a nossos olhos, temos
que acreditar é em nossos olhos. Nossos olhos vêem, com ab-
soluta certeza, que o Sol nasce ali (a leste, pra mim no Ar-
poador, no momento em que escrevo às 5h43 do dia) e morre
do outro lado (a oeste, pra mim na Pedra da Gávea, às 7 h
53 da noite), girando em torno de uma terra absolutamente
parada (terremotos à parte), sobre a qual caminhamos sem
sentir o menor movimento. De agora em diante, respondam
com convicção: o Sol gira em torno da Terra e não quero mais
papo sobre isso.
O Millôr provou.

FERNANDES, M. Millôr. Veja, São Paulo, n. 48, p.34,


dez. 2007.

Com base na leitura desse texto e consideran-


do outros conhecimentos sobre o assunto, REDIJA um
texto, argumentando a favor de ou contra esta posição:

se todo o conhecimento deriva da observação, então,


é justificável acreditar que o Sol gira em torno da Terra.

44

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Eutidemo de Platão
Resumo e análise da obra
por Jean Farias

Introdução cia sobre as pessoas, assim como, também, o interesse


Eutidemo é um complexo diálogo platônico que os sofistas tinham por jovens de bom nascimento.
que versa principalmente sobre o tema da educação. Eram eles que pagavam para serem ensinados. Ctesipo
A filosofia de Platão é intrinsecamente relacionada mostra-se preocupado com a educação de Clínias, tem
a este tema. A República, sua obra mais conhecida, é, afeição pelo amigo e procura estar próximo dele, que
além de um dos mais importantes tratados políticos da é mais jovem. Platão cria uma cena só para mostrar o
história da filosofia, um escrito sobre educação. Porém, interesse de Ctesipo de se aproximar de Clínias.
se na República a crítica de Platão é ao modelo oral de Por meio da dramaticidade da narrativa per-
educação promovido pelos poetas com a arte mimé- cebemos mudanças de atitudes dos personagens den-
tica1, em Eutidemo, obra do período intermediário de tro do desenvolvimento do diálogo. Clínias, por exem-
Platão, portanto, anterior à própria República, a crítica é plo, fica intimidado quando conversa com os sofistas,
ao modelo de educação sofista2 e à prática da erística, envergonha-se cada vez que é refutado pelos irmãos
que, a saber, é a arte dos jogos de palavras e argumen- estrangeiros, mostra-se encurralado. Quando conversa
tos, com o mero propósito de vencer debates públicos. com Sócrates, aparece bem articulado, discursa per-
Outro importante paralelo que podemos fazer feitamente e se sente à vontade quando tem a palavra.
a partir de Eutidemo é em relação à Apologia de Sócrates, Ctesipo tem o temperamento impetuoso, quando vê o
discurso considerado o segundo escrito por Platão. Na constrangimento de seu amado diante do aperto que os
Apologia Platão defende Sócrates das acusações feitas sofistas impõem, fica irritado, ofende-os, depois, sob a
por Mileto, em Eutidemo Platão defende seu mestre das influência de Sócrates, recua. Eutidemo e Dionisodoro
acusações do comediógrafo Aristófanes3, que escreve- são irônicos o tempo todo e, eventualmente, agressi-
ra a comédia As Nuvens4 e nela retrata Sócrates como se vos, inclusive com o próprio Sócrates, que insiste em
fosse um sofista atrapalhado e medíocre. O fato é que não responder simploriamente às perguntas de modo
Aristófanes faz uma interpretação bastante alegórica a não facilitar as armadilhas sofistas.
de Sócrates e de seu método, o comediógrafo trata o Esse jogo de cena que Platão compõe nos leva
método dialético de Sócrates em pé de igualdade com
a erística sofista. Esta interpre-
a perceber certas oposições dentro do diálogo, o filó-
sofo contrapõe seriedade e
45
tação é possível, pois, tanto a brincadeira, dialética e erísti-
dialética quanto a erística em- ca. Sócrates em dois momen-
pregam essencialmente as pala- tos chama a atenção ao fato
vras e a argumentação em seus de que talvez os sofistas não
métodos. Todavia, enquanto a estejam levando a sério a pro-
erística tem como objetivo a re- posta de demonstrar o que
futação a todo custo, na dialé- ensinam e que estão a brin-
tica5 o constante interrogatório car com eles. É importante
acerca de um tema tem por ob- enfatizarmos que Clínias é o
jetivo fazer aparecer o conheci- objeto de desejo, aquele que
mento, é a chamada maiêutica6 deve ser educado, e, segundo
socrática. Sócrates, os sofistas não estão
encarando o assunto como se
O diálogo deve. Após a primeira acusa-
Eutidemo é um dos ção de que os estrangeiros não
diálogos mais teatrais de Platão, estão se comportando com
cada personagem tem uma fun- seriedade, Sócrates e Clínias,
ção a ser exercida, e as cenas dialeticamente, desenvolvem
expressam detalhes determi- argumentos até relacionarem
nantes, como, por exemplo, o boa fortuna com sabedoria. E
fato de Sócrates estar sozinho e assim mostram como tratar o
Clínias, ao vê-lo, dirigir-se a ele, tema com seriedade. Em outro
enquanto os sofistas procuram se aproximar do jovem. momento, Sócrates se dirige a Ctesipo, que estava ir-
Isso representa o poder de atração que Sócrates exer- ritado com Eutidemo e Dionisodoro, acalmando-o, re-
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faz a afirmação de que os irmãos não estão a tratá-los Clínias e Sócrates. (277d – 282e)
com seriedade. Em seguida, Clínias volta a participar 2.3. Diálogo com os sofistas, presentes na cena: Eutide-
do diálogo. É quando se desenvolve, dialeticamente, mo, Dionisodoro, Sócrates e Ctesipo. (283a – 288d)
a busca pela ciência capaz de proporcionar o bom uso 2.4. Segunda exortação socrática, presentes na cena:
das artes. O que Platão certamente tenta nos indicar Clínias e Sócrates. (288d – 290e)
com estas passagens é que a busca pela excelência, 2.5. Segundo diálogo entre Críton e Sócrates. (290e –
pela virtude, pelo saber, ou seja, a busca por tornar 293a)
um homem bom, é algo importante. O método de 2.6. Diálogo com os sofistas, presentes na cena: Eutide-
educação pode determinar uma boa alma. Como na mo, Dionisodoro, Sócrates e Ctesipo. (293b – 304b)
República, em que Platão faz Sócrates afirmar que uma 3. Epílogo – (304c – 307e)
boa alma sob má educação resulta em grande prejuízo. Diálogo final entre Críton e Sócrates.
Clínias é um jovem de boa alma, por isso deve ser
conduzido a uma boa educação. Devemos fazer aqui
uma referência a Alcibíades, primo de Clínias, célebre AS TRÊS PARTES DO EUTIDEMO
ateniense, retratado no diálogo O Banquete, de família A seguir, faremos a exposição dos temas trata-
proeminente e inúmeros atributos, mas cuja educação dos nos três momentos de Eutidemo, procurando agru-
imperfeita teria causado males a sua alma, tornando-o par as partes que no texto estão separadas, os diálogos
um homem repleto de vícios. com os sofistas, as exortações à Filosofia e as conversas
A narrativa de Platão é encenada em dias dis- com Críton.
tintos. No primeiro cenário há uma conversa entre
Sócrates e Críton, que está dividida em três partes, uma PRIMEIRA PARTE
abrindo o diálogo, a segunda interrompendo a narrati- Nos debates de Sócrates com os sofistas ocor-
va de Sócrates e a terceira finalizando o diálogo. Críton rerão importantes passagens do diálogo. São apresen-
quer saber o que e com quem conversava Sócrates no tadas as falácias7, sendo quatro as mais importantes,
dia anterior. O segundo cenário é a conversa relatada pois englobam questões filosóficas relevantes: entre as
por Sócrates ao amigo, na qual participaram, além do passagens 283d – 284c aparece a falácia da natureza dos
próprio filósofo, Eutidemo e Dionisodoro, e Clínias e predicados; em 285e – 286b temos a falácia da impossi-
Ctesipo. bilidade de contradição; entre as passagens 295a – 296d
Eutidemo tem uma estrutura labiríntica, há uma surge a falácia acerca do relativo e do absoluto e por
constante troca de vozes, pois as frases são geralmente fim, entre 297e – 299a a falácia de relação do princípio
curtas ou em forma de perguntas, fazendo com que lógico com a não contradição.
seja necessária a constante explicitação do personagem
que está falando. Os sofistas se alternam no falatório, Da natureza dos predicados (283d –
agem em perfeita harmonia, se completam, são dois,
284c)
mas articulam-se como se fossem um. Também, os
complexos jogos de linguagem, as ambiguidades nos
Dizeis que querer que ele (Clínas) se torne sábio? – Per-
sentidos dos termos e das sintaxes das frases dão o tom feitamente (resposta de Sócrates) – Mas agora, disse ele
desorientador do diálogo. Tanto o leitor do diálogo, (Dionisodoro), Clínias é sábio ou não? – Certamente não
quanto os participantes dele estão correndo sérios ris- ainda, <é o que> diz ele, pelo menos; mas ele não é de se
cos de se perderem no emaranhado de argumentos. gabar, disse eu (Sócrates). – Mas vós, disse ele, quereis
que ele se torne sábio e que não seja ignorante? (...) Então,
não é?, quem não é quereis que venha a ser, e quem agora
é, que não seja mais. (283d)

Clínias é sábio x Clínias é ignorante. Segundo


o argumento dos sofistas, fazer com que Clínias deixe
de ser uma coisa e passe a ser outra coisa o aniquilaria.
Temos como pano de fundo dessa falácia a tese par-
menidiana8 da impossibilidade da mudança: “tudo é e
não tem como não ser.” Clínias é algo, então tudo que
está além desse algo, no caso ignorante, não é Clínias.
Quando Sócrates e Ctesipo desejam que Clínias deixe
de ser ignorante, eles querem que Clínias deixe de e-

46
xistir, pois tudo que ele é está expresso no que se diz
ESTRUTURA ESQUEMÁTICA DO DIÁLOGO
dele. Impossibilita-se o “vir a ser”.
1. Prólogo – (271a – 275c)
Diálogo inicial entre Críton e Sócrates
2. Desenvolvimento – (275a – 304b) Da impossibilidade da contradição
2.1. Diálogo com os sofistas, presentes na cena: Eutide- (285e – 286b)
mo e Dionisodoro, os sofistas estrangeiros, Sócrates e o
jovem Clínias. (275c – 277c) E então? Disse ele (Dionisodoro). Há enunciado para
cada uma das coisas que são? – Perfeitamente. - <Que
2.2. Primeira exortação socrática, presentes na cena:

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enunciam,> portanto, cada uma como é [/sobre cada Da relação com o princípio lógico com
uma, que é]? – Como é. – Com efeito, se recordas, Ctesi- a não contradição (297e–299a)
po, agora mesmo demonstramos que ninguém diz como
[/que] não é, pois ficou evidente que ninguém diz o que Se pois, com certeza, disse Eutidemo, tomando a palavra,
não é. (...) contradir-nos-íamos dizendo ambos o enuncia- Queredemo é pai, Sofronisco, sendo outro que pai, não é
do da mesma coisa ou estaríamos certamente dizendo as
pai, de sorte que tu, Sócrates, não tiveste um pai. (298b)
mesmas coisas? (...) Mas é quando nenhum de nós, disse
ele, diz o enunciado das coisas, é que nos contradiríamos?
Ou, assim, nenhum de nós estaria, absolutamente, men- Esta falácia se realiza por meio de um jogo de
cionando a coisa? (...) Mas, por conseguinte, é quando eu, valores atribuídos aos termos, pois se confere o valor
da minha parte, digo e enunciado da coisa, tu porém di- absoluto ao termo “pai” e ignora o valor relativo “pai
zes outro, de outra coisa, é então que nos contradizemos? de alguém”, assim nega a possibilidade de diferen-
Ou eu digo a coisa, e tu nem mesmo falas <dela> absolu- ciação entre dois pais. Temos como pano de fundo a
tamente? Ora, quem não está falando, como estaria con- lógica eleática9. Um homem que é pai, não interessa de
tradizendo quem está falando? (286a – 286b) quem, é pai. O pai de Sócrates é pai no sentido relativo,
relativo a Sócrates, mas é pai no sentido absoluto, ou
Esta falácia também tem como pano de fundo seja, é pai. Acerca do pai de Pátrocles temos o mes-
a tese parmenidiana: Está por trás da impossibilidade mo princípio. Dizer que o pai de Sócrates, Sofronisco,
de se contradizer a impossibilidade de se dizer o falso, é diferente do pai de Pátrocles, Queredemo, é dizer
pois o falso é o não ser e sobre o não ser não se pode que um não é outro, então, dizer que um deles é pai
dizer. Quando se diz do não ser, ele é. Se se diz que Clí- (no sentido absoluto) quer
nias é ignorante, não há nada mais que se possa dizer a dizer que o outro não é pai
respeito de Clínias. Portanto, torna-se impossível dizer e vice-versa. A falácia se
que é falso que Clínias seja ignorante. O Clínias igno- sustenta do mesmo modo
rante é outro que não o Clínias sábio. da primeira, o que é é e
não pode não ser, se Que-
Do relativo para o absoluto (295a– redemo é pai e Sofronisco é
296d) outro que não Queredemo,
então Sofronisco não é pai.
Então Sócrates, disse ele (Eutidemo), és alguém que sabe A individualização das par-
alguma coisa, ou não? – Sim, sou. – aquilo por meio do tes esclarece a falácia, isto
que és alguém que sabe, é por meio disso também que é, Sofronisco é diferente do
sabes, ou por meio de outra coisa? – É por meio disso que
pai de Pátrocles, mas não
sou alguém que sabe. Pois falas da alma. Ou não é disso
que falas? (285b) (...) Por meio dessa mesma coisa sempre, do sentido absoluto de pai.
disse ele, ou há ocasiões em que por meio disso e ocasiões
por meio de outra coisa? – Sempre, quando sei, disse eu, é
SEGUNDA PARTE
47
por meio disso. (...) É sempre por meio disso que sabes? –
Sempre, disse eu – (...) Então, sempre por meio disso que Após o primeiro e o segundo diálogo com os
sabes, não é? Mas, sempre sabendo, sabes algumas coisas sofistas, temos as exortações de Sócrates à filosofia. São
por meio disso, outras por meio de outra coisa, ou bem dois momentos que Platão insere Clínias na discussão
todas as coisas por meio disso? (286a – 286b) fazendo com que o jovem apareça como importante
interlocutor de Sócrates. O objetivo das exortações é
Os irmãos sofistas tentam mostrar a partir da fazer o contraponto entre a erística e a dialética, ex-
passagem direta do valor relativo dos termos para o pressando assim as diferenças entre uma e outra arte.
valor absoluto que Sócrates sabe tudo e desde sempre.
O pano de fundo desta falácia é a doutrina platônica da
Primeira exortação – Sobre os bens
anamnese, ou seja, aprender é recordar, quem aprende
algo está apenas recordando, pois a alma já conhece, o
externos e internos (277d–282e)
A conversa com Clínias começa com Sócrates
processo de aprendizado é um processo de (re)conhe-
perguntando se todos os homens querem ser bem- su-
cimento. Este é o aspecto que Sócrates insere ao fazer
cedidos. No contexto da antiguidade, ser bem sucedi-
pequenos acréscimos que irritam Eutidemo, Sócrates a
do tem um valor ético associado. E ética, no contexto
todo o momento está a dizer que não é ele quem sabe,
em questão, não se relaciona diretamente com condu-
mas sua alma. O que Eutidemo quer é fazer a passa-
tas, mas sim com excelências, é a chamada ética das
gem direta do valor relativo para o valor absoluto, “sa-
virtudes, ou seja, virtuoso é possuir a excelência em
ber algo” tem valor relativo ao que se sabe, o “saber”
algo, ser um bom médico, ser um bom guerreiro, ser
tem valor absoluto. Segundo a falácia proposta pelos
corajoso, ser um bom orador, entre outros exemplos.
sofistas, Sócrates é uma pessoa que sabe algo, portanto
Todos os homens querem ser homens virtuosos. Para
ele é uma pessoa que sabe.
tanto devem possuir bens que podem ser externos:
riqueza, beleza, boa saúde, nobreza, honra na cidade;
ou bens internos, que são virtudes da alma. No Eutide-
mo serão mencionadas as quatro virtudes cardeais10,
exploradas em outros diálogos platônicos, são elas a

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temperança, a coragem, a justiça e a sabedoria (279b- TERCEIRA PARTE
c). Na República a virtude principal é a justiça, em As conversas com Críton têm três funções dis-
Eutidemo é a sabedoria. Logo depois de relacionar as tintas.
quatro virtudes cardeais, Sócrates pergunta se estão se
esquecendo de alguma, ele mesmo se lembra de citar a Primeiro diálogo entre Sócrates e
boa-fortuna, no entanto, em seguida, desqualifica essa Críton (271a – 275c)
candidata, pois boa-fortuna foi a tradução escolhida No prólogo, Críton faz o papel do leitor do
para o termo eutukhía, que pode significar sucesso sob diálogo, ouvindo a narrativa de Sócrates. Curioso, Crí-
duas acepções uma é o sucesso alcançado através do ton pergunta para Sócrates com quem ele estava con-
esforço e outra é o sucesso alcançado através do acaso. versando no dia anterior, fazendo o filósofo enumerar
Sócrates elimina a possibilidade de o acaso interferir os participantes do diálogo central, depois mostra se
na boa-fortuna e enfatiza que o sucesso depende da interessado no assunto e Sócrates inicia a narrativa.
sabedoria. Quem tem sabedoria necessariamente tem
boa-fortuna. A sabedoria vai proporcionar o bom uso Segundo diálogo entre Sócrates e Crí-
de todos os outros bens. A riqueza, a boa saúde, a bele- ton (290e – 293a)
za, a honra, a coragem todos esses bens dependem de A conversa intermediária de Críton com
um bem maior que é a sabedoria. Ter um bem e fazer Sócrates se dá a partir de uma interrupção da narra-
mau uso dele é pior do que não ter bem algum. Quan- tiva. Críton chama a atenção ao que é dito na passagem
to à pergunta acerca da possibilidade de se ensinar a anterior. “Nenhuma <espécie> da arte da caça propria-
sabedoria, Sócrates, primeiro, suspende o juízo, depois mente dita, disse ele (Clínias), vai além de caçar e cap-
da afirmativa de Clínias, que acha que sim, Sócrates turar. Depois que capturam aquilo que tiverem caçado,
concorda com ele e acrescenta que a sabedoria é algo <essas artes> não são capazes de fazer uso disso; ao
que se ensina e faz o homem feliz. invés, caçadores e pescadores, por um lado, entregam
aos cozinheiros, <o que tiverem caçado>, enquanto,
Segunda exortação – O cultivo do saber por outro lado, os geômetras, os astrônomos, os calcu-
é a busca pela ciência (288d–290e) ladores – com efeito, são caçadores estes também, pois
Mais uma vez, em um diálogo com Clínias, é não produzem, cada um deles, as figuras, mas desco-
apresentado o raciocínio dialético. Desta vez procuran- brem as que são – não sabendo eles mesmos usá-las,
do encontrar uma ciência que seja superior às outras. como é o caso, mas apenas dar-lhes caça, entregam,
Ironicamente Sócrates alude para o fato de que adquirir presumivelmente, aos dialéticos suas descobertas, para
uma ciência é algo trabalhoso, mas mesmo que fosse que façam uso delas, pelo menos aqueles dentre eles
fácil, antes deveria se ter a ciência de como usá-la. Há que não são completamente insensatos. (...) Também
aqui uma crítica aos próprios sofistas, Eutidemo e Di- com os generais passa-se assim, da mesma maneira.
onisodoro, que cerca de um ano antes ainda não eram Quando tiverem capturado alguma cidade ou exér-
“sábios” na arte que agora dizem professar. O cerne cito, entregam-nos aos políticos – pois eles mesmos
da questão é a relação do discurso com o seu fim, “se não sabem fazer uso disso que capturaram, da mesma
aprendêssemos a arte de produzir discursos – será que forma, creio, que os caçadores de codornizes <as> en-
é esta que seria preciso para nós sermos felizes?” (289c) tregam aos criadores de codornizes. Se pois, disse ele,
Vejamos a resposta dentro do próprio texto, “nem que precisamos daquela arte que, daquilo que ela adquirir,
tivéssemos a ciência de fazer, das pedras <pedras> de quer produzindo, quer caçando, ela própria saiba fazer
ouro, tal ciência não seria de nenhum valor. Se, com uso, e se é tal <arte> que nos fará felizes, uma outra é
efeito, não tivéssemos também a ciência de como usar preciso procurar, disse ele, em vez da arte do general.”
o ouro, ele pareceu ser de nenhum proveito” (289a). (290c-290d). O amigo de Sócrates fica espantado com as
O que Platão procura mostrar é que a ciência por ex- palavras atribuídas a Clínias e diz que se fora mesmo o
celência não está subordinada a nenhuma outra. E ele jovem que disse tais palavras ele não precisaria de mes-
não acredita que seja a arte de Eutidemo e Dionisodoro tres. Sócrates recua e diz não lembrar quem teria dito e
esta arte. A pergunta é qual arte que produz sabedoria Críton sugere que “seguramente um dos seres superi-
e não está sujeita a nenhuma outra? A dialética. Em ores” (291a) teria dito tais palavras. Se considerarmos o
Eutidemo “Platão utiliza o termo dialética para indicar tema da passagem, a saber, a dialética provavelmente
o ápice do saber e, nessa acepção, dialética equivale a como saber superior, temos em voga um assunto que
Filosofia. Logo, no passo de Eutidemo, os dialéticos são é retomado na República, obra considerada expressão
os filósofos, aqueles aos quais, precisamente, as artes do pensamento platônico, de tal modo, segundo ob-
caçadoras confiam suas presas, porque são os úni- serva Lucia Palpacelli11, estes “seres superiores” seria o
48 cos que sabem fazer uso desta”(Palpacelli, 2011, p.31).
Percebemos nesse ponto algo que estará desenvolvido
próprio Platão. O espanto de Críton representa o quão
polêmica é a afirmação de que a dialética12 é um saber
na República de outro modo, quando Platão defenderá superior. Vale a pena lembrar que não é de hoje que a
que o governo da cidade deve ser entregue aos filóso- Filosofia é tida como um saber que nada produz. “E
fos, não porque eles assim desejam, mas porque são os eu (Críton) disse: No entanto, é uma coisa bem aprazí-
únicos que sabem governar. vel, a Filosofia. – Como aprazível, ó bem aventurado?,
disse ele (o retórico). Antes, sim, coisa que nada vale.”
(305a)
REVISTA PENSE | Nº 01 | Setembro/2012
Terceiro diálogo entre Sócrates e Referências bibliográficas
Críton (304c – 307e) ARISTOFANES; As nuvens. Tradução: BRANDÃO, Ju-
Por fim, nas considerações finais com Sócrates, nito de Souza. Rio de Janeiro: 1976. 75 p.
Críton reproduz para o amigo um breve diálogo com KIRK, Geoffrey Stephen; RAVEN, John Earle. Os filó-
outro dito sábio de Atenas, enquanto tentava ouvir sofos pré-socráticos. 2. ed. Lisboa: Fundação C. Gulben-
o que era debatido na roda. Nessa passagem Platão kian, 1982, c1966. 510p
apresenta uma crítica à erística, por via do retórico que MARQUES, Marcelo P. A significação dialética das apo-
conversara com Críton. O retórico diz que tudo dito rias no Eutidemo de Platão. Revista Latinoamericana de
no debate não passou de tolices, as questões discuti- Filosofia XXIX 1 (2003) p.5-32.
das nada valem. A retórica é a arte dos belos discursos, PALPACELLI, Lucia. Um exemplo de escritura protrép-
do convencimento pelo bem falar, diferente da erística, tica: O Eutidemo. Archai: revista de estudos sobre as
que faz jogos de entendimento. Temos a oposição entre origens do pensamento ocidental, No 6. janeiro/2011.
duas formas de lidar com a lingagem. Mas, por fim, p 45 – 61
ele acaba também por desvalorizar a Filosofia e dá a Parmênides de Eleia – Fragmentos. In: SOUZA, J.C.
oportunidade de Sócrates, mais uma vez, defender o (Dir). Os pré-socráticos. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
modelo de educação filosófico. “Não vás, pois, fazer PESSANHA, J.A. “Platão, vida e obra”. In – Platão
o que não deve, Críton. Antes, manda passear os que Diálogos. São Paulo: Abril Cultural, 1979 (Col. Os Pen-
se ocupam de filosofia, quer sejam úteis, quer sejam sadores)
maus, e, pondo à prova, muito bem e cuidadosamente, PLATÃO. Eutidemo. Tradução: Maura Iglesias. São
a coisa mesma, se te parecer que é ruim, desvia dela to- Paulo: Loyola, 2011.
dos os homens, não somente teus filhos; mas, se te pa-
recer que ela é tal como eu próprio creio que ela é, con- P
fiantemente persegue-a, exercita nela, segundo aquele
ditado, a ti mesmo e também as crianças.” (307c) Platão Notas
termina o diálogo propondo que, caso a Filosofia seja 1 Arte mimética é a arte da representação, da imitação. Se-
um bom modelo de educação, ela deve ser seguida. gundo Platão, os poetas reproduziam, imperfeitamente, a re-
Embora pouco antes tenha dito que ele próprio gos- alidade em seus poemas. Para Platão tudo que era produzido
taria de frequentar as aulas dos sofistas, tal como fre- por mãos humanas era uma imitação. Em última instância,
mesmo o mundo como nós o vemos é imitação, imitação de
quenta um professor de cítara.
ideias. Sendo assim, a representação artística do mundo seria
uma imitação ainda mais afastada das ideias, mais afastada
CONCLUSÃO da verdade, pois a verdade está nas ideias.
A estrutura do diálogo, como foi elaborada por 2 O termo Sofista é uma classificação moderna, não havia
Platão, vai além da simples explicitação dos limites en- a rigor um grupo que se denominasse assim. Tratava-se de
tre a erística sofista e a dialética filosófica. Marcelo Pi- mestres em algum saber que se propunham a ensinar alguma
menta Marques13, faz uma considerável observação: “O arte em troca de um salário. Platão criticava tais mestres pois,

49
objetivo do diálogo não é, simplesmente, tornar clara a eles ensinavam a defesa do interesse particular por meio do
uso da palavra. O saber que eles transmitiam não tinha por
diferença entre dialética filosófica e erística, através da
fim o conhecimento.
solução de falácias lógicas, mas encenar as suas dife- 3 Dramaturgo Grego que viveu entre 447 e 385 a.C.
renças, de modo a mobilizar o discernimento tanto de 4 Comédia escrita por Aristófanes em 423 a.C.
Críton quanto do leitor, e não simplesmente oferecer 5 Dialética é um método de diálogo que, a rigor, pauta-se por
de modo não crítico uma série de conteúdos positivos, dar e receber razões, ou seja, contraposição de argumentos e
totalmente explicitados e inequívocos”(Marques, 2003, ideias com o fim de fazer surgir o conhecimento. A dialética
p.11). Dialética e erística têm semelhanças, empregam, socrática se fazia por meio de interrogatórios, Sócrates, que
essencialmente, o uso da palavra e da argumentação, dizia nada saber, e por meio de um constante interrogatório
a diferença se faz notar no confronto da alteridade. pretendia eliminar do espírito ideias falsas ou preconcebidas.
Passo a passo, ao lado do interlocutor, Sócrates construía o
Sutilmente Platão mostra que a erística realiza o que
conceito que pretendia definir.
promete, vence discursos, cala o interlocutor, contudo, 6 O significado de maiêutica é “dar a luz ao conhecimento”.
utilizando-se de falácias que conduzem ao erro de Pela maiêutica Sócrates auxiliava o interlocutor a encontrar
raciocínio, não progride na busca pelo conhecimento. a resposta por meio de um trabalho de reflexão. Sócrates se
A dialética prepara o solo para plantar um conhe- propunha a ajudar as pessoas a aceder à compreensão cor-
cimento, pois abre espaço para a aporia14, que, como reta.
diz Marques, torna possível a continuidade do diálo- 7 Falácia é um argumento que não tem sustentação lógica. O
go (Marques, 2003, p. 14). É encenada nesse diálogo argumento falacioso é inválido ou incorreto.
platônico a diferença entre erística e dialética, Sócrates 8 O pré-socrático Parmênides de Eleia estabeleceu sua filoso-
fia sob duas vias: a via da verdade, que se ocupa do que é e
foi silenciado pelos jogos de palavras dos sofistas, pois
não pode não ser e o que não é e não pode vir a ser. Em sín-
é isso que a erística consegue fazer, entretanto, foi nos tese, não se pode pensar o não ser, o não ser é inapreensível,
momentos entre Clínias e o filósofo que o conhecimen- indizível. A segunda via é a via da aparência, a mudança é
to acerca de algo se desenvolveu. Fica explicitado o causada por um erro de percepção provocado pela falibili-
modelo socrático, que se pauta pela busca da verdade dade humana, toda mudança é simplesmente aparente.
e do conhecimento, não reduzindo a virtude à arte de 9 Escola eleática é o nome atribuído à corrente filosófica se-
saber calar um interlocutor. guida por Parmênides de Eleia.

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10 Em nota da 12a edição de sua tradução da República, pub- 11 Doutora em História da Filosofia pela Universitá degli
licada pela Fundação Calouste Gulbekian, Maria Helena da studi di Macerata, Itália
Rocha Pereira afirma que na passagem 427e da República 12 É importante lembrarmos que em Eutidemo a acepção do
há a mais antiga enumeração das quatro virtudes cardeais. termo Dialética é usada como corresponde à Filosofia.
Entretanto, observamos em Eutidemo, que é tomada como 13 Professor de Filosofia Antiga da UFMG
sendo anterior à República, a relação das quatro virtudes 14 Pode ser definido como dificuldade de se encontrar uma
cardeais. saída ou uma resposta.

Questões - Eutidemo

01) Considere a passagem:


Nenhuma <espécie> da arte da caça propriamente dita, disse ele, vai além de caçar e capturar. Depois que capturam
aquilo que tiverem caçado, <essas artes> não são capazes de fazer uso disso; ao invés, caçadores e pescadores, por um
lado, entregam aos cozinheiros, <o que tiverem caçado>, enquanto, por outro lado, os geômetras, os astrônomos, os cal-
culadores – com efeito, são caçadores estes também, pois não produzem, cada um deles, as figuras, mas descobrem as que
são – não sabendo, eles mesmos usá-las, como é o caso, mas apenas dar-lhes caça, entregam, presumivelmente, aos dialé-
ticos suas descobertas, para que façam uso delas, pelo menos aqueles dentre eles que não são completamente insensatos.
(...) Também com os generais passa-se assim, da mesma maneira. Quando tiverem capturado alguma cidade ou exército,
entregam-nos aos políticos – pois eles mesmos não sabem fazer uso disso que capturaram, da mesma forma, creio, que
os caçadores de codornizes <as> entregam aos criadores de codornizes. Se pois, disse ele, precisamos daquela arte que,
daquilo que ela adquirir, quer produzindo, quer caçando, ela própria saiba fazer uso, e se é tal <arte> que nos fará felizes,
uma outra é preciso procurar, disse ele, em vez da arte do general (Eutidemo, 290c -290d).

A partir do trecho acima, REDIJA um texto argumentativo explorando a ideia de que a Dialética pode ser uma
arte superior às outras.

02) Sob o prisma da leitura de Eutidemo, REDIJA um texto respondendo por que Queredemo, pai de Pátrocles, é
pai, enquanto Sofronisco, pai de Sócrates, não é pai.
...Queredemo é pai, Sofronisco, sendo outro que pai, não é pai, de sorte que tu, Sócrates, não tiveste um pai (298b).

03) Considere a passagem:


Conforme já vimos, é do gênero lucrativo, da arte erística, da arte de disputas, das controvérsias, da arte do combate, da
arte da luta e do ganho, segundo neste momento provou nossa argumentação, que o sofista provém.
O Sofista, Platão Tradução: Carlos Alberto Nunes
Fonte: “O Dialético” www.odialetico.hpg.ig.com.br/
RESPONDA:
(a) Qual a virtude que os irmãos Eutidemo e Dionisodoro se propõem a ensinar?
(b) Como está caracterizada a Erística no diálogo Eutidemo, de Platão?

04) Os irmãos Dionisodoro e Eutidemos foram a Atenas propondo ensinar a virtude a quem quisesse aprender.
Entretanto, disseram não existir ignorância e nem homens ignorantes. Sócrates, então, expôs a contradição entre
o que os sofistas se dispõem a fazer e o que eles falaram. A partir da leitura do diálogo e de conhecimentos filosó-
ficos, REDIJA um texto explicando por que houve tal contradição entre a fala e a prática dos sofistas.

05) Considere a passagem:


Vamos, pois, responda-me, disse ele, existe algo que sabes? – Perfeitamente, disse eu, até muitas coisas, de pouca im-
portância pelo menos. – Isso basta, disse ele. Parece-te então ser possível a alguma entre as coisas que são, aquilo que <
ela> acontece ser, isso mesmo não ser? – Por Zeus, não!, a mim não parece. – Então disse ele, sabes alguma coisa, não é?
Sim, sei. – Então, és alguém que sabe, se realmente sabes, não é? – perfeitamente, pelo menos em relação a isso precisa-
mente <que sei>. Não importa. Mas, a necessidade não te constrange a saber tudo, sendo tu alguém que sabe? Por Zeus,
não!, disse eu, uma vez que muitas outras coisas não sei. – Então, se alguma coisa não sabes, és alguém que não sabe. Em
aquilo <que não sei>, amigo, disse eu. – És, por isso alguém que não sabe? Ainda agora afirmaste ser alguém que sabe. E,
assim, acontece seres aquele mesmo que és, e por outro lado, inversamente, não o és, ao mesmo tempo, relativamente as
mesmas coisas. (Eutidemo, 293c – 293d)

50 EXPLIQUE a contradição em dizer que Sócrates é alguém que sabe e, ao mesmo tempo, alguém que não sabe.

06) A partir da leitura de Eutidemo e de outros conhecimentos sobre o assunto, RESPONDA:


(a) Quem eram os sofistas?
(b) Qual a posição de Platão em relação ao modelo de educação proposto pelos sofistas?

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Pense

[Ousa-te ensinar]
Nenhum tema mais adequado para constituir- de modo algum, que o ensinante se aventure a ensinar
se em objeto desta primeira carta a quem ousa ensinar sem competência para fazê-lo. Não o autoriza a ensi-
do que a significação crítica desse ato, assim como a nar o que não sabe. A responsabilidade ética, política e
significação igualmente crítica de aprender. É que não profissional do ensinante lhe coloca o dever de se pre-
existe ensinar sem aprender e com isto eu quero dizer parar, de se capacitar, de se formar antes mesmo de
mais do que diria se dissesse que o ato de ensinar e- iniciar sua atividade docente. Esta atividade exige que
xige a existência de quem ensina e de quem aprende. sua preparação, sua capacitação, sua formação se tor-
Quero dizer que ensinar e aprender se vão dando de nem processos permanentes. Sua experiência docente,
tal maneira que quem ensina aprende, de um lado, se bem percebida e bem vivida, vai deixando claro que
porque reconhece um conhecimento antes aprendido ela requer uma formação permanente do ensinante.
e, de outro, porque, observado a maneira como a cu- Formação que se funda na análise crítica de sua práti-
riosidade do aluno aprendiz trabalha para apreender o ca.
ensinando-se, sem o que não o aprende, o ensinante se Partamos da experiência de aprender, de
ajuda a descobrir incertezas, acertos, equívocos. conhecer, por parte de quem se prepara para a tarefa
O aprendizado do ensinante ao ensinar não se docente, que envolve necessariamente estudar. Obvia-
dá necessariamente através mente, minha intenção não é
da retificação que o aprendiz escrever prescrições que de-
lhe faça de erros cometidos. O vam ser rigorosamente segui-
aprendizado do ensinante ao das, o que significaria uma
ensinar se verifica na medida chocante contradição com
em que o ensinante, humilde, tudo o que falei até agora.
aberto, se ache permanente- Pelo contrário, o que me in-
mente disponível a repensar
o pensado, rever-se em suas
teressa aqui, de acordo com o
espírito mesmo deste livro, é
51
posições; em que procura en- desafiar seus leitores e leitoras
volver-se com a curiosidade em torno de certos pontos ou
dos alunos e dos diferentes aspectos, insistindo em que há
caminhos e veredas, que ela sempre algo diferente a fazer
os faz percorrer. Alguns dess- na nossa cotidianidade edu-
es caminhos e algumas dessas cativa, quer dela participemos
veredas, que a curiosidade às como aprendizes, e portanto
vezes quase virgem dos alu- ensinantes, ou como ensin-
nos percorre, estão grávidas antes e, por isso, aprendizes
de sugestões, de perguntas também.
que não foram percebidas an-
tes pelo ensinante. Mas agora,
ao ensinar, não como um burocrata da mente, mas re-
construindo os caminhos de sua curiosidade — razão FREIRE, Paulo. Cartas a quem ousa ensinar. In: Profes-
por que seu corpo consciente, sensível, emocionado, se sora sim, tia não. Editora Olho D’Água, 10ª ed., p. 27-28.
abre às adivinhações dos alunos, à sua ingenuidade e
à sua criatividade — o ensinante que assim atua tem,
no seu ensinar, um momento rico de seu aprender. O P
ensinante aprende primeiro a ensinar mas aprende a
ensinar ao ensinar algo que é reaprendido por estar
sendo ensinado.
O fato, porém, de que ensinar ensina o ensin-
ante a ensinar um certo conteúdo não deve significar,

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II Congresso Brasileiro de Retórica
Eventos
27 a 30 de agosto de 2012. Belo Horizonte - MG
Endereço: contatosbretorica@gmail.com site www.letras.ufmg.br/sbretorica

Colóquio Internacional Rousseau 300 anos


18 a 21 de setembro de 2012
Departamento de Filosofia da PUC/SP e da USP
Informação: http://www.pucsp.br/rousseau300anos/

V Encontro Nacional de Pesquisa em Filosofia


Universidade Federal de Ouro Preto - ENPF - UFOP
De 15 a 19 de outubro
O Encontro Nacional de Pesquisa em Filosofia da UFOP é uma iniciativa dos alunos de graduação do curso de
Filosofia da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), com o apoio do Instituto de Filosofia, Artes e Cultura
(IFAC), e do Departamento de Filosofia (DEFIL) da UFOP. O objetivo central do encontro é promover a interação
entre graduandos e pós-graduandos de diversas universidades do país em um ambiente propício para a dis-
cussão e divulgação de pesquisas filosóficas.
http://www.ufop.br/

X Encontro de Pesquisa em Filosofia da UFMG


O Programa de Educação Tutorial (PET) e o Departamento de Filosofia da UFMG convidam graduandos e pós-
graduandos para o X Encontro de Pesquisa em Filosofia, a ser realizado de 24 a 28 de setembro de 2012, na
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH), Campus Pampulha. As inscrições estarão abertas do dia
http://epfufmg.blogspot.com.br

O XV Encontro Estadual de professores de filosofia: A questão ético-política


na filosofia contemporânea: A visão produtivista do saber filosófico.
Acontecerá nos dias 13 e 14 de setembro de 2012 na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
www.blog.llpefil-uerj.net

I congresso internacional Nietzsche e a tradição filosófica: Nietzsche e a


tradição kantiana
O Grupo Nietzsche da UFMG (GruNie) promove entre os dias 02 a 06 de outubro de 2012 o I Congresso Inter-
nacional Nietzsche e a Tradição Filosófica. O evento, realizado em parceria com os programas de Pós-graduação
em Filosofia da UFMG e do Mestrado em Estética e Filosofia da Arte da UFOP, terá lugar na FAFICH/Belo Hori-
zonte nos dias 02 a 04 de outubro, e no IFAC/Ouro Preto, nos dias 05 e 06 de outubro.
http://sites.google.com/site/nietzscheandkantufmg2012/home

XV Encontro Nacional da ANPOF


www.anpof.org.br
Estão abertas as inscrições para o XV Encontro Nacional da ANPOF, que será realizado no período de 22 a 26 de
outubro de 2012, na cidade de Curitiba, PR.
Contato: Vinicius de Figueiredo/diretoria@anpof.org.br

52 II CONGRESSO LATINO-AMERICANO DE FILOSOFIA DA EDUCACÃO


“A filosofia da educação: tradição e atualidade”
21 a 23 março de 2013
UNIVERSIDAD DE LA REPÚBLICA, MONTEVIDÉU - URUGUAI
Blog do congresso: 2docongresofilosofiadelaeducacion.blogspot.com/

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Expediente

Pense
REVISTA MINEIRA DE
FILOSOFIA E CULTUR
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ISSN 2238-9903
A revista Pense é aberta à colaboração de todos
Conselho editorial os estudiosos de filosofia. Os textos devem ser envia-
Eric Renan Ramalho dos pelo correio eletrônico ao Conselho Editorial, que
Jean George Farias
avaliará previamente a adequação destes à linha edi-
Marcelo Pimenta Marques
Paulo Margutti torial. Avaliados positivamente nesta etapa, os textos
Robson Jorge de Araújo serão encaminhados a pareceristas, membros do Con-
Rodrigo Marcos de Jesus selho Consultivo ou especialistas ad hoc, para aprecia-
Sílvia Contaldo ção. Uma vez aprovados, serão publicados no próximo
número da revista com espaço disponível.
Secretária Exigências referentes às colaborações:
Rayane Batista de Araújo
1. os temas tratados deverão ser de natureza filosófi-
Revisão ca ou apresentar estreita vinculação com a filosofia, po-
Giovanna Spotorno dendo ser de natureza crítica ou informativa (divulga-
Maria Amélia Nascimento ção de pesquisas ou quaisquer assuntos considerados
de relevância filosófica);
Impressão 2. modificações e/ou correções sugeridas pelos pa- 3
Artes Gráficas Almeida Ltda.
receristas quanto à redação (ortografia, pontuação, sin-
agal.almeida@gmail.com
taxe) ou ao conteúdo das contribuições serão devolvi-
Tiragem das aos respectivos autores. Para isso, um pequeno
1.000 exemplares prazo lhes será concedido;
3. os originais deverão ser digitados e enviados por
Arte e-mail para revistapensefilosofia@gmail.com e deverão
Juliana Nunes Saiani obedecer ao limite de 3.000 palavras. Ao final, deverá
constar a bibliografia consultada. As citações e referên-
Contracapa:
Portrait of a Scholar, 1620. cias deverão obedecer às normas da ABNT;
Gemäldegalerie, Dresden 4. o artigo deve conter o vínculo institucional do au-
tor e, quando necessário, a indicação da entidade patro-
Autor: Domenico Fetti (1589-1623)
cinadora do trabalho.

Conselho Editorial da revista Pense

www.pensefilosofia.com.br
revistapensefilosofia@gmail.com
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REVISTA MIN
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LTURA

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