Você está na página 1de 7

Como um leão

Haroldo Conti (1925-1976?)

Todas as manhãs a sirene da Ítalo me desperta. Aí começa o meu dia. O som atravessa a
favela envolta em sombras, rebate nos galpões da ferrovia e por fim se perde na cidade. É um som
grave e lamuriento e soa como a trombeta de um anjo sobre um monte de ruínas. Então, abro os
olhos na escuridão e digo a mim mesmo, enquanto ainda dura o som: “Levanta e anda como um
leão.” Não sei onde escutei isso, porque sozinho eu não teria pensado nisso, talvez na televisão,
talvez de um pastor da escola do Exército da Salvação; mas isso é o que eu digo a mim mesmo toda
manhã e para mim tem seu sentido: “Levanta e anda como um leão.”
Minha velha sempre me pergunta em quê diabos estou pensando. A pobre velha me pergunta
isso porque, na verdade, acha que não penso em nada. Entretanto, eu sempre tenho a cabeça tão
cheia de coisas que não me surpreenderia se um dia destes ela saltasse em pedaços. Tenho certeza
de que, se a velha soubesse o que realmente eu penso, cairia dura. Digo isso, justamente quando
ouço o som que passa sobre a minha cabeça, porque ninguém que me olhe poderá pensar que me
passam tantas coisas pela cachola. Entretanto, somos uma família de pensadores. Meu pai, por mais
pé-rapado que fosse, pensava e dizia coisas do tipo, e talvez foi dele que escutei algo semelhante.
Às vezes, como agora, acordo um pouco antes de tocar a sirene. Largado na cama, com a
cabeça metida na escuridão, tenho a impressão de estar sobre uma balsa abandonada há tempos no
meio do mar. Então, penso em todas as coisas da vida. Como se estivesse morto ou melhor a ponto
de nascer. Ainda que em qualquer um desses casos eu não pensaria em nada, percebe-se, porém
quero dizer que é como se estivesse de um lado do caminho, e não no próprio caminho, e dali visse
melhor as coisas. Ou, pelo menos, o que vale a pena que a gente veja.
Minha mãe acaba de se levantar e se move na penumbra da cozinha. Daqui eu vejo seu rosto
magro e pálido, iluminado pela chamazinha zumbidora do aquecedor. Parece o único ser vivo de
toda a Terra. Eu também estou vivo, mas eu não sou mais que uma cabeça louca que pensa no meio
da escuridão.
Penso no meu irmão, por exemplo. Faz uns dois meses que o mataram. O cana veio e disse
com essa cara de filho da puta que colocam em todos os casos, que tinha acontecido um acidente. O
acidente foi que moeram ele de porrada. Fomos na viatura eu e minha mãe, até a 46ª e lá estava meu
irmão esticado sobre uma mesa com um lençol que cobria ele da cabeça aos pés. O cana levantou o
lençol e vimos a cara dele, nada mais que a cara dele, debaixo de uma lâmpada coberta com uma
folha de jornal. Não soltei uma lágrima para não dar o gostinho a eles e, além disso, não se parecia
com meu irmão. Na verdade, não acredito que tenha morrido. Meu irmão estava tão cheio de vida
que não acredito que um par de canas possam ter acabado com ele. Não me surpreenderia se
aparecesse um dia destes e, de qualquer forma, ainda que não apareça nunca mais, o que também
não me surpreenderia, para mim continua tão vivo como sempre esteve. Ou até mais. Quando digo
que penso nele, na verdade quero dizer que sinto e até o vejo, e na maioria das vezes não é outro
senão meu irmão quem me diz isso de que me levante e ande como um leão. Das sombras. As
palavras ecoam dentro da minha cabeça, mas é meu irmão quem as diz.
Também penso no velho, só que com menos freqüência. Ele também está morto. Melhor
dizendo, ele sim é que está morto. Se o vejo alguma vez, é apenas um rosto embaçado e
melancólico que se inclina sobre minha cama ou, de repente, se vira entre as pessoas e me pergunta,
como a velha, em que diabos eu estou pensando. Ele me perguntava de outra forma, com um sorriso
suave e carinhoso, como se visse para além do tempo. Meu pai foi um vagabundo, não resta dúvida,
mas sabia levar as coisas a sério e acho que elas andariam muito melhor se as pessoas as
entendessem à maneira dele. Claro que minha mãe é que teve que se matar de trabalhar, mas eu
acho que, de qualquer modo, essas figuras têm um lugar na vida e há muito que se aprender com
2
eles, por mais que meu pai jamais se propusesse a nos ensinar nada. Além disso, minha mãe nunca
se queixou dele e por muito tempo foi a única que pareceu compreendê-lo.
Se me esqueço do meu pai, quer dizer, se nunca chego a vê-lo de corpo inteiro e menos vivo
e intenso como meu irmão, entretanto, há algo dele em cada coisa que me rodeia, em toda essa vida
de cão, como a chamam, e se vejo algo que os outros não conseguem ver é justamente porque ali
está meu pai. Eu não sei o que os outros pensam, digo os milhares de tipos que vivem na favela, que
suam e tremem, que riem e maldizem no meio de todo esse poeirento montão de latas; mas eu não
troco nada disso por nenhum desses malditos galinheiros que se apertam ao longe e chegam até o
céu, do outro lado da via. Aqui está a vida, a minha pelo menos. Esta é uma terra de homens, com o
sangue que impulsiona sob a pele. Não há lugar para os mortos, e nem para os canas. E quando, às
vezes, subo no teto de algum vagão abandonado e contemplo toda essa vida que se move entre as
paredes deformadas dos barracos ou os campos pelados ou as ruas ressecadas, tenho a impressão de
que contemplo uma festa. Os trens passam zunindo de um lado com toda essa gente meio indefinida
colada nas janelas, os carros e os barcos correm e resfolegam do outro, os aviões do aeroporto
furam o céu com seus motores a toda, a vela de um barquinho cabeceia sobre o rio, um menino
enrola linha num carretel, um bando de pássaros plana ao sabor do vento e em meio à poeira e à
miséria uma árvore se ergue solitária. Aí está meu pai. Nisso tudo.
A velha se vira e olha para a escuridão onde eu estou encolhido. Então vejo apenas a sua
sombra, como se minha mãe se apagasse e sobrasse somente um buraco. Ela pensa que estou
dormindo e tenta aproveitar o tempo.
Tem vezes que não penso em nada e olho pra ela simplesmente porque é a única maneira de
ver minha mãe. Está sozinha no mundo. Meu pai o foi primeiro a ir embora, depois meu irmão e um
dia ou outro vai ser a minha vez. Ela sabe disso.
Outras vezes penso nos garotos. O Túlio, o Negro, Pascualito. Andam diante de mim, sobre
a via férrea. Gritam e empurram uns aos outros, mas eu não escuto nada. Suas caras sujas brilham
debaixo da luz, mas eu estou nas sombras e, quando quero falar com eles, fogem velozmente.
Flutuam no ar como balões de gás e se afastam. Tento pensar em cada um separadamente e então
parecem outras pessoas.
O irmão de Túlio era amigo do meu irmão e naquela noite se salvou por um triz. Melhor
dito, por um montão deles, porque estava com a Beba num barraco do bairro Imigrantes. Assim
mesmo, ocupado como estava, sentiu eles se aproximarem, ou melhor, sentiu o cheiro deles, pulou
pela janela e se perdeu na noite. Depois que foram embora, procuramos por ele junto com o Túlio.
Estava metido na caldeira de uma velha Caprotti encostada num desvio do ramal San Martín. O
Túlio levou pra ele um embrulho com comida e as calças que ele tinha deixado no barraco. Ele
perguntou pelo meu irmão e disse alguma coisa sobre a puta vida que ecoou no ventre da Caprotti.
Depois desapareceu da favela. Já faz uns meses que isto aconteceu.
Bem, é assim que todos se vão. Mais cedo ou mais tarde. De qualquer maneira, para cada
um que se vai, há outro que chega. As favelas mudam e se renovam continuamente. São mais que
um montão de latas. São algo vivo, quero dizer. Como um animal, como uma árvore, como o rio,
esse velho e taciturno leão. Como o leão, justamente. Eu o sinto em meu corpo que cresce e se
dilata nas sombras e de repente e todo o pessoal das favelas, toda essa gente que começa a se mover
neste mesmo momento e não se pergunta o que será dela no resto do dia e menos ainda no dia de
amanha, simplesmente começa empurrar para adiante.
Minha mãe abre a porta. Minha mãe e as cosas aparecem cobertas de cinza. A própria chama
do aquecedor fica opaca e descolorida. É o dia.
― Lito!... Levanta, Lito!
Me levanto cambaleando, não precisamente como um leão, mas sim como um cachorro vira
latas no qual acabam de dar um pontapé no traseiro. Parado no meio do quarto, com o cabelo
revolto e a bexiga a ponto de explodir, tremo e me sacudo até o último osso.
A velha me olha e antes que abra a boca começo a me vestir. Quando desata a falar não pára
nunca mais. Eu sei quando está para falar e, além disso, sei o que vai dizer. Em geral, é inútil
interromper ela e acho que, no fim das contas, isso lhe faz bem. Na verdade, ela não fala comigo
nem com ninguém em particular, apenas fala e fala. E assim parece mais solitária. Quando o velho
estava vivo aquilo era uma verdadeira música.
3
Uma boa xícara de café e um pedaço de biscoito me devolvem a vida e a cabeça se enche
outra vez de ideias. Do lado de fora, os trens passam com mais freqüência e o barraco se treme
todinho. Isso também me alegra. Tenho a impressão de que a qualquer momento vamos saltar pelos
ares e não sei porque isso me alegra. Depois, visto o maldito jaleco, meto outro pedaço de biscoito
na maldita pasta e me encaminho para a maldita escola.
As favelas ainda estão envoltas em névoa e aquilo parece o começo do mundo, quando as
cosas estavam por tomar a sua forma. Os barracos oscilam como balões de gás, as luzes brotam dos
buracos das chapas como galhos acesos, as janelas dos trens pontuam velozmente a penumbra, se
esticam como chiclete e lá mais adiante se reduzem a um ponto sanguinolento, depois de fazer a
curva. A cabine de sinais do ramal Mitre, um pouco mais acima, balança igual a una balsa de areia
e, se a gente não conhecesse o lugar, a tomaria justamente por isso. Um jorro de faíscas e, um pouco
mais abaixo, una chama alaranjada que rebate num trecho das vias se deslocam lentamente,
seguindo o perfil escuro de una “catanguera”. Uma luz vermelha muda para verde e um número
colorido salta no ar. Há luzes por todas as partes, mas só servem para confundir a gente. Ao fundo,
o brilho lívido de Retiro se desvanece com o dia, e mais atrás ainda tremem e se encolhem as luzes
da cidade. De um lado da costa, a espiral acesa do edifício de Telecomunicações, as lanternas
embaçadas dos automóveis que se agitam como um tropel de tochas, os mastros e os guindastes das
docas e, por cima de tudo, as chaminés da usina que se empinam sobre a suja claridade do
amanhecer.
Levanto a cabeça e respiro fundo o áspero cheiro do rio. Então tudo isso se mete dentro do
meu sangue e me sinto vivo da cabeça aos pés, como um fogo aceso na noite.
O pai do Túlio caminha alguns passos mais à frente com um pacote embaixo do braço.
Trabalha na doca B com um guindaste móvel de cinco toneladas. Sai ao amanhecer e retorna quase
de noite. No domingo, como não pode ficar sem fazer nada, mete a porrada na velha. O Túlio se
mantém à distância e, se dorme, põe um monte de latas entre a porta e a cama. Quando o velho se
acalma, se senta na porta do barraco e toma chimarrão até que a cara ficar verde. Nunca o ouvi falar
uma palavra, nem seque quando está enfurecido.
Há outros que caminham na mesma direção. Saem das ruas laterais e se juntam à fila que
marcha em silêncio em direção ao portão de entrada. Enquanto isso, os grandões dormem lá longe
em seus leitos de rosas. Onde foi que eu ouvi isso? Se um dia eles decidissem ficar na favela mesmo
que tocassem todas as sirenes do mundo ao mesmo tempo, não sei o que seria desses grandões.
Teriam que limpar, transportar, perfurar, construir, destruir, armar, desarmar ou enganar e por fim
roubar com suas delicadas mãos de maricas. Mas a pobre gente não entende. Tudo o que pedem na
vida é um pedaço de pão, uma garrafa de vinho e que não encontrem com um cana pelo caminho.
Outro grupo de meninos e mulheres faz fila em frente a uma das torneiras. Vejo o Pascualito
com dois baldes nas mãos. Falo com ele.
O Pascualito engraxa sapatos na estação de Retiro, o Túlio vende jornais numa parada de
Alem e o Negro junta trapos e garrafas nos monturos e quando chega o verão vende melões e
melancias na Costanera. Às vezes eu o acompanho até os monturos e ganho uns trocados. O Negro
gosta do que faz. Puxa como um condenado a carroça e ao mesmo tempo grita ou canta sem parar.
Só vendo. Eu também ganho uns trocados abrindo as portas dos carros no Retiro até aparecer algum
cana. Existem muitas formas de ir levando a vida até que chegue o dia, mas a velha não gosta que
eu faça nada disso. Toda hora me faz um puta sermão sobre o assunto. Assim como o meu irmão,
quer que eu termine a escola, e embora eu não entenda bem o motivo, não tenho outro remédio
senão fazer a vontade deles. A pobre velha, enquanto isso, arrebenta o espinhaço limpando casas
como diarista. Isso me envenena por dentro porque, enquanto ela entrega a própria alma, eu estou
na escola esquentando a cadeira.
O Negro passa puxando a carrocinha com o gordo Luján, que é o cérebro do assunto, como
se diz, e por isso não puxa a carrocinha, apenas fuma e pensa em coisas grandes.
Abaixo a cabeça e grudo nas paredes dos barracos porque detesto que me vejam com o
jaleco e a pasta, como um filhinho de mamãe.
A avenida está cheia de caminhões que esperam há dias para descarregar nos silos. As filas
chegam até a favela e só não se metem lá dentro porque não estão seguros de sair interos. O Beto
puxou mais de um ano por um par de pneus Firestone 12.00-20, catorze camadas de náilon, se bem
4
que passou cerca de um mês na caldeira da Caprotti, enquanto os canas reviravam a favela de cima
a baixo. Sempre que vejo os caminhões me lembro do Beto, ou seja, me lembro dele todos os dias.
Não pelos pneus, ainda que me lembre disso também, mas sim porque desapareceu da favela em um
Skania Vabis há dois anos. Se escondeu na carreta engatada quando o caminhão saía do porto e vá
saber aonde diabos foi parar. A verdade é que não é uma má idéia. Se não fosse pelo meu irmão, já
teria feito isso há muito tempo.
As chaminés da usina giram lentamente e mudam de lugar enquanto a gente caminha. São
cinco no total, mas nunca tenho certeza disso porque é difícil ver as cinco de uma vez só.
As pessoas se espalham ao chegar à avenida Antártida e eu dobro em direção à escola cujo
prédio aparece duas quadras mais adiante entre um grupo de árvores cobertas de cinza. Assim que
a vejo me dá um nó na garganta. Não duvido, ou pelo menos não discuto, o que seria perfeitamente
inútil com a velha, de que a escola seja algo tão bom como ela diz, mas ainda duvido muito que eu
sirva para isso. É coisa minha e de nenhuma maneira generalizo. A essa altura acho que nem
mesmo a gorda tem dúvida disso e tenho certeza de que se livraria de um peso, dos poucos que pode
se livrar entre os muitos que lhe sobram, se alguma manhã dessas eu não aparecesse por ali. A
gorda é a professora. No primeiro ou no segundo dia, colocou sua mãozinha rosada sobre minha
cabeça de estopa e disse que faria de mim um homem de bem. Parecia estar convencida, e com isso,
saltaram lágrimas dos olhos da velha. Um mês depois já não estava tão segura, e a velha voltou a
soltar lágrimas, claro que por outro motivo. Desta vez lhe disse, com outras preciosas palavras, que
eu era um degenerado. Isso ela quis dizer, em resumo.
A coisa explodiu algum tempo depois, no dia em que a gorda me encontrou espiando pelo
basculante do banheiro das professoras. Por sorte não era eu que estava espiando nesse momento, e
sim o Cabeção, que, parado sobre meus ombros, esticava o pescoço o quanto podia. O Cabeção foi
expulso sumariamente, e agora penso que ele ficou com a melhor parte. Desde então ele leva uma
boa vida e eu, de certa forma, continuo sustentando ele sobre os ombros, sobre a própria cabeça, eu
diria. Já esteve na 46ª por furto e dano intencional.
Nessa ocasião veio meu irmão. Ele não derramou lágrimas, claro, apenas escutou em
silêncio e com palavras corteses disse que ia se ocupar do assunto. Estava bem vestido como que
para impressionar, com um anel enorme nesse dedo e um cabelo brilhante como a carroceria de um
carro. Só vendo.
Depois que a professora terminou de falar (achei que não ia parar nunca), meu irmão
cumprimentou como um cavalheiro e depois, sempre com os mesmo gestos discretos, me levou para
um canto, entre as árvores. Ali me segurou pelo pescoço e me quebrou os ossos, colocando o dedo
atravessado sobre os lábios cada vez que eu ia gritar. Não sei como fez isso porque não pude prestar
muita atenção, mas quando terminou não tinha desarrumado um fio de cabelo.
Depois que eu sacudi a poeira, apoiou um braço sobre os meus ombros e, caminhando
juntos, começou a falar sobre a vida. Eu nem sequer respirava e lhe respondia que sim a tudo.
Falava como um pastor ou pelo menos como o velho nos seus melhores momentos. Sua voz soava
áspera e contida, só que havia uma certa tristeza em sua expressão. É o que mais lembro.
Esperou a que eu limpasse o catarro e então me fez prometer que ia terminar a escola, ainda
que demorasse mil anos. Eu olhei pra ele brevemente nos olhos e disse que sim. Não tinha outra
escolha, mas de qualquer forma disse de coração.
É isso que me traz toda manhã até aqui. Quando tenho vontade de voltar do meio do
caminho, o que é só um jeito de falar porque vontade eu tenho sempre, vejo seu rosto diante de mim
e até escuto a sua voz
― Entramos acertados, Lito?
Eu volto a dizer que sim com a cabeça e entro na escola.
Desde que o mataram, porque essa é a verdade, a gorda me trata um pouco melhor. Na
realidade não sabe o que fazer. Ela queria fazer de mim um homem, mas aqui o homem vem
sozinho, e em todo caso, com um irmão desse eu não preciso de mais ninguém. Por outro lado, não
sei que diabos ela entende por um homem, seja de bem ou de qualquer outra coisa, e não creio que
tenha conhecido nenhum até que apareceu meu irmão.
Tento aprender o que posso, mas na maior parte do tempo a cabeça voa como um pássaro.
Voa e voa, cada vez mais alto, cada vez mais longe. Não é para menos. A vida zumbe e se sacode
5
do lado de fora, e eu estou metido aqui dentro esperando o dia que de sair e saltar sobre ela como
meu irmão; quer dizer, como um leão. Cada vez o entendo melhor.
Nesse momento, vejo através da janela a tromba da velha Caprotti adormecida sobre os
trilhos e lá vai minha cabeça.
Meu pai sempre sentiu uma grande admiração por essas montanhas de ferro. Vivia aqui
muito antes de aparecerem as favelas e acho que trabalhou um tempo na ferrovia. Nunca entendi
essa mania do velho, mas de qualquer maneira acabei tomar gosto por toda essa sucata. Suponho
que ele não via elas inúteis e em ruínas como eu vejo. Na sua cabeça sopravam e funcionavam
como em seus melhores tempos. Muitas vezes, sentados sobre una pilha de dormentes, me falou
delas, assim como eu penso ou falo do meu irmão, do Baldo, de todos os que se foram. Talvez por
esse caminho eu o entenda. Assim conheci a Caprott», não esse montão de ferro, mas sim aquela
máquina soberba que competia com as famosas 2.000 do Central Argentino. A Garrat com duplo
tênder e a caldeira ao centro; a Mikado, que não conheci e, portanto, me parece mais fabulosa ainda
e da qual meu pai falava com verdadeira emoção, tremendo o corpo inteiro, como se a locomotiva
passasse neste momento diante dele a cem por hora, levantando roupas e papéis. As 1.500, as
“capuchinas”, as 100. À medida que falava, o velho ia se empolgando e estou convencido de que no
final via as máquinas verdadeiramente. Eu não via nada, por mais que forçasse a vista, porém me
contagiava com essa louca alegria e tentava pelo menos imaginar todo o barulho e a vida daquelas
velhas locomotivas que corriam pela cabeça dele.
A professora bate com o giz no quadro e volto à prisão. Mas num segundo já estou pensando
em outra coisa. Quando chega o verão parece que vou explodir.
Somos liberados às cinco, o que nessa época do ano é quase de noite. Eu sigo atrás de todos
porque sou um dos mais altos, por isso tenho que esperar até o último sair. Paciência. Mal atravesso
a porta e começo a correr como um louco e antes da quadra passo na frente de todos.
Os caminhões continuam esperando na fila e parece que não se moveram em todo o dia. Eu
sei que se moveram, alguns já foram embora, mas não creio que os outros prestem a mesma
atenção.
Os carros vêm e vão entre os caminhões. Alguns passam como se os levasse o diabo, e foi
assim que arrebentaram com o Tito. Lembro do Tito porque era meu amigo e, além disso, vi quando
foi arremessado no ar por um Fiat 1.500; mas detonam um por mês, pelo menos. Os carinhas ficam
nervosos e até choramingam, os que param, mas enquanto isso os carros continuam correndo sem se
preocupar e em pouco tempo ninguém mais se lembra. Outros passam tão devagar que dá pra seguir
caminhando. Ficam com o rádio ligado e geralmente alguma mulher com as saias levantadas.
Suponho que isto faz bem aa saúde, mas de qualquer forma todos eles parecem doentes. Alguns nos
olham com curiosidade e outros sorriem com tristeza. Sentem pena de nós, a gente percebe, mas os
que merecem toda a pena do mundo são eles e não acho que seja suficiente. Não os invejo em nada.
Bem ou mal, nós estamos vivos. Isso é algo que eles não sabem, e é melhor assim porque se não se
lançariam em cima da gente.
Acho que aquele carinha percebeu. Precisamente foi na época que atropelaram o Tito. Tinha
parado o carro num lado, não muito longe do portão, e parecia dormir. Era um Peugeot novinho,
com um par de retrovisores sobre o paralamas que deviam valer uma grana.
Eu estava olhando o carro quando o carinha pareceu acordar e me sorriu tristemente, um
pouco mais que os outros. Também dava um pouco mais de pena que os outros. Era um cara velho e
refinado. Abriu a porta e deixou que eu olhasse para dentro. Depois me perguntou se eu queria subir
e eu, naturalmente, disse que sim. Digo naturalmente porque os carros me entusiasmam tanto como
as locomotiva a meu velho, e se tivesse um ia passar por cima de tudo. Meu irmão apareceu um dia
com um carro impressionante e nos levou pra dar uma volta. O Túlio, o Negro, o Tito, que ainda
vivia nessa época; o Beto. Foi um grande gesto. Eu ia ao lado do meu irmão, com o rádio a todo
volume. Na Costanera foi a cem e depois eu não quis mais olhar. Os carinhas, nos carros, nos
ameaçavam com os punhos e gritavam coisas que não conseguíamos ouvir, embora não fizesse
falta. Meu irmão nem sequer olhava pra eles. Parecia mais tranqüilo do que nunca e como se, na
verdade, não estivesse conosco, com ninguém no mundo, e sim completamente sozinho sobre a
pista a cento e vinte por hora. Então me prometi que algum dia teria um carro como esse. É a única
coisa que invejo desses carinhas, só que nem por isso trocaria de lugar com eles.
6
O cara deu uma volta pela Costanera e em pouco depois eu tinha me esquecido dele. Não
via nada mais que aquela paisagem em chamas que corria e saltava pra atrás, corria e saltava, e meu
coração saltava e corria também.
O carinha parou entre as árvores, em frente ao rio, colocou o rádio baixinho e, depois de
suspirar por um momento, começou a falar em tom meloso sobre coisas que não entendi muito bem.
Segundo parece, era muito infeliz, e na verdade não tinha necessidade de me dizer isso. Tinha se
virado e me sussurrava ao ouvido toda essa infelicidade, uma infelicidade muito particular, porque
eu nunca teria pensado que alguém pudesse ser infeliz por causa desse monte de bobagens. Se via
que nunca tinha perambulado pela rua com o estômago vazio, nem teve que saltar entre os vagões
com um par de canas atrás. O carinha me olhava nos olhos com sua cara magra e pálida tão perto da
minha que tinha que torcer a vista para olhar pra ele. Eu tentava me mostrar cortês porque, se é para
dizer a verdade, o pobre tipo me dava pena. Bom, primeiro apoiou sobre minha perna uma das
mãos, secas e chatas como espátulas. Não vi nada de particular nisso, embora eu não esteja
acostumado a esses tratamentos. Depois, sem deixar de se queixar nem de suspirar, deslizou a mão
em direção a braguilha e começou a me esfregar delicadamente. Dava a impressão de que era outro
que fazia isso, porque nem ele próprio demonstrava não perceber o que fazia a sua mão. Eu fiquei
duro, o que é algo mais do que uma frase porque no momento seguinte, e contra minha vontade,
tinha o passarinho em pé e esticado como uma mola. Sempre falando e suspirando, o carinha abriu
minha braguilha, e o passarinho mostrou a cabeça alegremente. Nessa altura eu não sentia desgosto
propriamente dito, mas de repente me lembrei do meu irmão. Quando estou confuso penso nele,
porque senão me perco completamente, e a partir daí minhas idéias se organizam. Me lembrei do
meu irmão, pois, e então vi aquele rosto em toda sua mísera e desgraçada solidão. Afastei o cara
com um empurrão e saltei do carro com o passarinho ainda pra fora. Fui para o outro lado da rua e
dei uma banana. A pobre figura me olhava tristemente da janela do Peugeot e ainda me sorriu, com
o sorriso mais desgraçado do mundo. Então senti uma pena enorme. Queria sorrir para ele de volta,
mas talvez não tivesse me entendido. Dei meia volta e fui fechando a braguilha.
São cinco e meia. O pessoal começa a voltar pra casa. A favela está envolta numa luz
sonolenta. As chaminés da usina pendem no meio de uma nuvem de fumaça que paira sobre o rio.
Os vidros do edifício de Telecomunicações brilham com um esplendor poeirento. Do outro lado, os
trens evaporam numa mancha alaranjada que apaga a paisagem de barracos e galpões em direção ao
Oeste. Um monte de pirralhos grita e corre nos terrenos baldios junto aos trilhos.
Nessa hora, a favela surge melhor do que em qualquer outra. Não sei quanto tempo durarei
aqui, mas não trocaria isto por nada do mundo.
Nem a velha nem os garotos voltaram ainda. Deixo a pasta e o jaleco que trago enrolado
debaixo do braço, pego um pedaço de pão e dou uma volta antes de voltarem.
O pai do Túlio está sentado na porta do barraco com as calças enroladas e o chimarrão na
mão. Um avião do aeroporto passa trovejando sobre nossas cabeças.
Cruzo as vias e depois de vagar um pouco entre os galpões e as locomotivas abandonadas,
me sento sobre uma pilha de dormentes, como fazia quando estava com o velho. Naturalmente, me
lembro dele, e depois do Tito ou de qualquer outro e, é claro, do meu irmão. De todos os que se
foram. É como se estivessem aqui, a essa hora. Alguns me olham, outros me dizem coisas. Eu sorrio
pra eles e às vezes respondo. Sei que mais cedo ou mais tarde irei atrás deles. Mais cedo ou mais
tarde a vida se colocará diante de mim e saltarei no caminho. Como um leão. (Trad. Ary Pimentel)

(Con otra gente, 1967)

Haroldo Conti – Nasceu em 1925 em Chacabuco, província de Buenos Aires. Foi professor primário, seminarista,
professor de Latim, empresário de transportes, bancário, piloto civil, nadador, navegante e roteirista de cinema.
Graduou-se em Filosofia. Começou escrevendo para teatro: em 1955 sua peça Examinado foi selecionada para ser lida
no teatro Odeón. Em 1960 seu conto "La causa" obteve uma menção na edição em espanhol da revista Life e dois anos
depois Fabril Editora premiou seu primeiro romance, Sudeste. Haroldo Conti se converte então numa das figuras
centrais da chamada “geração de Contorno”. Publica depois os romances Alrededor de la jaula (Prêmio Universidad de
Veracruz, México, depois levado ao cinema em 1977 por Sergio Renan com o título Crecer de golpe) e En vida (1971,
7
Prêmio Barral, Espanha, com júri integrado por Vargas Llosa e García Márquez) e os livros de contos Todos los
veranos (1965, Prêmio Municipal), Con otra gente (1967) e La balada del álamo Carolina (1975). Colaborou com a
revista Crisis e viajou a Cuba, onde participou como jurado do Prêmio Casa das Américas. Em 1975 publicou Mascaró,
que ganha o Prêmio Casa de las Américas. Na madrugada de 5 de maio de 1976, após o golpe militar, foi seqüestrado
por uma brigada do Batalhão 601 de inteligência do Exército Argentino. Desde então seu nome figura entre os milhares
de “desaparecidos” do regime ditatorial argentino.

Curta metragem Como um leon


http://www.youtube.com/watch?v=JnTS7y-GTgQ

Você também pode gostar