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Pe n s e REV ISTA MINEIR

A DE FILOSO FIA E CULTU


RA

Número 2 | ISSN: 2238-9903


Novembro/2012 | R$8,00 • BRASIL

Do Ensino da Filosofia à Filosofia do Ensino:


contraposições entre Kant e Hegel
Geraldo Balduino Horn

Filosofia no Brasil Filosofia no vestibular da UFMG, Filosofia na História


O método estruturalista e o ensino da A teoria do gosto em David Hume, Poetas e filósofos segundo
REVISTA PENSE | brasileira
Nº 01 | Setembro/2012
filosofia na pós-graduação por Robson Araújo Aristóteles, por Luísa Severo
por Paulo Margutti Buarque de Holanda
Apresentação Sumário
Tempos de crise tornam-se momentos propícios para a reflexão 01 Pense I
filosófica, uma vez que em seu desenrolar conflituoso deixa expostas
as entranhas da sociedade, através de fendas estruturais que insti- 03 Educação
gam a curiosidade, a imaginação e a nossa capacidade de maravi- Do ensino da filosofia à filosofia do ensino: contraposições
lhamento diante das, ao mesmo tempo, aflitivas e espantosas obras
entre Kant e Hegel, por Geraldo Balduino Horn
do evolver histórico. As crises arrastam consigo os fundamentos
basilares da cultura e trazem em seu bojo impasses de ordem ética,
estética, política científica e ideológica. Impasses que atravessam e 08 Filosofia na História
determinam a vida social e, por isso mesmo, criam condições para a Poetas e filósofos segundo Aristóteles, por Luísa Severo
erupção de novas visões de mundo. É com essa intuição presente em Buarque de Holanda
nossas expectativas que entregamos aos leitores a segunda edição da
Pense: Revista Mineira de Filosofia e Cultura, e com ela reiteramos 12 Cultura e debates
nosso objetivo de oferecer à comunidade filosófica, principalmente “Filosofia” de Noel Rosa, por Marcos Carvalho Lopes
àqueles envolvidos com o ensino e a aprendizagem da filosofia, um
material que instigue o pensar. Em nossa época, essa atividade in-
16 Filosofia no Brasil
quiridora das ordenadas do ser torna-se novamente um imperativo
mais que necessário para aqueles que ainda acreditam na possibili- O método estruturalista e o ensino da filosofia na
dade de conduzir o processo histórico em direção a tendências afir- pós-graduação brasileira, por Paulo Margutti
mativas e emancipatórias.
Nada mais oportuno do que escolher a imagem do intelectual fren- 19 Para pensar
te às ruínas do seu tempo histórico para ilustrar a capa desta edição. Fanatismo e preconceitos,
Pois o nosso próprio tempo histórico nos coloca a exigência de repen- por Voltaire
sarmos as fundações sobre as quais estão assentadas as estruturas
da cultura contemporânea. Em verdade, esses são tempos propícios 21 Literatura
para questionamentos. De um lado, vivemos a euforia apologética de
À procura do outro - Pequena análise filosófica do conto
termos chegado a uma época cujo progresso técnico criou condições
para manipularmos a natureza com destreza jamais imaginada; por “O búfalo”, de Clarice Lispector, por Marília Murta
outro lado, rufam trombetas anunciando com temor a era das crises. de Almeida
Fala-se de crise de todas as espécies: crise econômica, crise de valo-
res, das virtudes e da família; crise das religiões, das instituições 24 Livros
burguesas, das ciências, das artes; crises do espírito e do meio am- O ensino de filosofia como problema filosófico,
biente. Ora o ser humano é acusado de ter substituído seus deuses por Flavio Fontenelle Loque
por dinheiro, ora acusam-no de ter o ego inflado a ponto de coroar a
si próprio como deus de uma época em que toda sorte de pecaminosi- 26 Artes
dade já está consumada. Não é de hoje que o desafio está posto: como
O incêndio do Palácio de Westminster, por Elias Mol
conduzir o desenvolvimento humano aos trilhos de uma perspectiva
positiva de desenvolvimento? Devaneando com Goethe e Hackert, por Rafael
Acreditamos que, assim como o médico, o engenheiro, o juiz, o Wingester
pedreiro, o carpinteiro e a dona de casa, o filósofo é um indivíduo a
serviço do progresso humano. Se esta é a premissa que anima a nossa 28 Cinema
empreitada, então cabe a nós a investigação pela natureza da filosofia Ágora, por Loraine Oliveira
em nossa época. Cabe a nós remover os escombros depositados ao
longo de anos sobre as bases da filosofia no Brasil em busca das pe- 31 Produção acadêmica
dras sobre as quais deve ser construída uma concepção filosófica que O Programa de Educação Tutorial em Filosofia da UFMG
atenda as demandas da nossa realidade. É tarefa do filósofo, que ha-
(PET FILSOFIA UFMG), por Eric Renan Ramalho
bita na periferia do mundo pretensamente desenvolvido, encontrar
o seu modo próprio de filosofar. Sendo assim, é de vital importância
interrogar as instituições que ensinam filosofia pela pedagogia que 33 Sala de aula
praticam. É preciso acusar e reparar os erros largados ao longo da O ensino como problema filosófico: reflexão sobre a forma-
história e reconhecer o esforço daqueles que, contra a correnteza, ção de professores de filosofia, por Rodrigo Marcos de
ainda insuflam ânimo na nervura que mantém viva a atividade re- Jesus e Alécio Donizete da Silva
flexiva no Brasil. E se não houve filósofos brasileiros, como alguns
insistem em afirmar, onde foi que a atividade filosófica foi deflagrada 36 Avalie seu conhecimento
com força? Na literatura e na música talvez encontraremos as mais
profundas e originais reflexões sobre a existência humana que nosso
37 Resumo de obras/Vestibular
país produziu, mas, ainda hoje, elas seriam suficientes?
É com certa veleidade que esse projeto está sendo concebido. Ali- A teoria do gosto de David Hume, por Robson Araújo
Estética: Olhares sobre o belo, por Jean Farias
2
mentamos, quixotescamente, mas com os pés no chão, o anseio de
ver florescer iniciativas intelectuais que se dediquem ao resgate da
atividade filosófica em nosso país. Não acreditamos que algo assim 43 Pense II
possa acontecer da noite para o dia, e certos de que esse trabalho
exige esforços múltiplos, a revista Pense é, antes de qualquer coi- 44 Eventos
sa, um convite e uma tentativa de ensejar reflexões coletivas sobre
o status quo da cultura contemporânea. Enfim, é um convite ao
pensamento.
Equipe Pense
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Capa:
Goethe em Roma visita o Coliseu
1786
Pense
Jakob Phillipp Hackert
Roma Goethe Museum

[Sócrates conversa com Antifonte]


É-lhe devido, a este propósito, que não se esqueça uma conversa que teve com Antifonte, o
sofista. Ora, Antifonte, querendo afastar dele os discípulos, procurou Sócrates e, na frente dos outros,
disse-lhe o seguinte:
— Sabes, Sócrates? Julgava eu que os filósofos acabam por se tornar os mais felizes de entre os
homens; agora, tu, parece-me que tiras da filosofia o proveito errado. Vê só! Vives de uma maneira que
nem um escravo sustentado pelo amo quereria ficar com ele: comes e bebes o que há de pior em termos
de comida e bebida; as roupas que trazes não só são pobres como são sempre as mesmas, seja verão seja
inverno; andas sempre descalço e sem manto. E também não recebes dinheiro nenhum, cujo ganho é
que traz satisfação e que permite viver com mais liberdade e prazer àqueles que o possuem. E é que
se, da mesma maneira que aqueles que ensinam outras atividades se empenham para que os alunos os
imitem, também tu te dispuseres a fazer o mesmo com os teus discípulos, podes considerar-te mestre de
infortúnio.
A estas palavras respondeu Sócrates:
— Parece-me, Antifonte, que a tua ideia é que o meu
modo de vida é penoso e estou convencido de que tu antes
quererias morrer do que viver como eu. Mas observemos,
então, o que é que de difícil encontras tu na minha vida.
Será o fato de que aqueles que recebem dinheiro têm mesmo
que levar até ao fim o contrato pelo qual são remunerados,
enquanto eu, que não recebo nada, não estou obrigado a con-
versar com quem não quiser? Ou será que menosprezas a 1
minha maneira de viver porque como coisas menos saudáveis do que tu e que me dão menos força? Ou
parece-te muito difícil porque os alimentos que preparo para mim são mais raros e mais caros que os
teus? Ou porque o que tu preparas te dá mais prazer a ti do que o que eu preparo me dá a mim? Não
sabes que aquele que come com mais prazer precisa de menos condimentos e que aquele que bebe com
mais prazer deseja menos a bebida que não tem à mão? Quanto às roupas, sabes bem que aqueles que
as mudam, mudam-nas por causa do frio ou do calor e que usam sapatos para poderem andar por ca-
minhos difíceis sem magoarem os pés. Ora, já me viste tu alguma vez preferir ficar em casa, por causa
do frio; ou, por causa do calor, lutar por uma sombra com alguém, ou deixar de ir pelo caminho que
quiser por me doerem os pés? Não sabes que aqueles que, por natureza, são mais fracos de corpo, se o
exercitarem se tornam mais fortes e, se tiverem cuidado, se tornam melhores naquilo que exercitarem
e o suportam com mais facilidade? E não te parece também que eu, se exercitar com paciência o meu
corpo, posso fazer tudo com mais facilidade do que tu que não o exercitas? E para não ser escravo, nem
do estômago, nem do sono, nem da luxúria, achas que há melhor razão do que dedicar-me a coisas mais
agradáveis, que não só me dão mais prazer enquanto as faço, mas também me trazem a esperança de
que sempre me serão úteis?
E tu bem sabes isso, que os que acreditam que não fazem nada bem também não têm qualquer
proveito e os que acham que podem ter considerável sucesso ou na agricultura ou na navegação ou em
qualquer outro trabalho que tenham de levar a cabo, esses sentem-se bem com o que fazem.
Não te parece, então, que, em todas essas coisas, o prazer é tão grande como o daquele que acre-
dita que se há de tornar o melhor e ganhar amigos preciosos? Olha, eu passo o tempo a pensar que sim.
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E, se por acaso, for preciso ser útil aos amigos ou à cidade, quem é que estará em melhores condições de
tempo para se preocupar com esses problemas: alguém como eu, agora, ou alguém cujo modo de vida
tu louvas como feliz? E qual lutaria com mais facilidade: o que não pode viver sem que lhe falte nada
ou aquele a quem chega o que tem? E qual dos dois aceitaria render-se mais depressa: o que precisa de
procurar as coisas mais difíceis ou aquele a quem chegam as coisas mais fáceis de encontrar?
Parece-me, Antifonte, que deves achar que a felicidade é indolência e abundância; eu, pelo con-
trário, acredito que não precisar de nada é uma dádiva dos deuses e precisar o menos possível é estar
perto do divino e, como esse divino é perfeição, estar perto dele é estar perto da perfeição.
Numa outra ocasião, também em conversa com Sócrates, disse-lhe Antifonte:
— Ó Sócrates, eu, de fato, tenho-te por um homem justo mas nada, nada inteligente, e parece-
-me que tu próprio também o sabes porque não tiras da tua companhia qualquer dividendo e decerto não
ias dar a ninguém, nem de graça, nem por menos do que valesse, nem roupa, nem casa, nem qualquer
outro dos teus bens, se acreditasses que ele valia dinheiro. É óbvio, pois, que se achasses que a tua com-
panhia tinha algum valor não ias oferecê-la por menos dinheiro do que ela valesse. Assim, pode que sejas
justo porque não enganas ninguém em teu próprio proveito mas não és inteligente porque não sabes
nada que tenha de fato valor.
Sócrates, a este comentário, respondeu:
— Olha, Antifonte, entre nós, acreditamos que a beleza e a sabedoria tanto podem ser belas
como vergonhosas: porque se alguém vender, por dinheiro, a sua beleza a quem a quiser, chama-se
prostituição, mas se alguém travar conhecimento com um amante bem formado e se tornar seu amigo,
consideramo-lo sensato. E com a sabedoria passa-se o mesmo: àqueles que a vendem por dinheiro cha-
mam-lhes sofistas [que é o mesmo que prostitutas] enquanto àquele que conhecer alguém de boa índole
e lhe ensinar o que tem de bom, tornando-se seu amigo, desse acreditamos que o que ele faz corresponde
à atuação do cidadão perfeito.
—Ora, eu, Antifonte, da mesma maneira que os outros sentem prazer num bom cavalo, num
cão ou num pássaro, do mesmo modo, a mim o que maior prazer me dá são os bons amigos, e se tenho
algo de bom, ensino-o, e levo-os à companhia de outros que julgo que lhes possam ser úteis no caminho
para a virtude. E quanto aos tesouros dos homens sábios de outrora, que eles deixaram escritos nos li-
vros, leio-os e desenrolo-os juntamente com os meus amigos e selecionamos o que encontrarmos de bom.
E acreditamos que é uma grande recompensa se ficarmos amigos uns dos outros.
A mim, que ouvi estas palavras, pareceu-me que ele [Sócrates] era feliz e que conduzia à perfei-
ção aqueles que o ouviam.
P
XENOFONTE. Memoráveis. Tradução do grego, introdução e notas: Ana Elias Pinheiro. Coimbra: Universidade
de Coimbra, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 2009, p.104-108.

Xenofonte (séc.V a.C.).


O historiador e ensaísta grego Xenofonte é importante na história da filosofia, por
ter sido discípulo de Sócrates e por constituir, depois de Platão, a fonte principal de
conhecimento de seu ilustre mestre. Em várias de suas obras, principalmente em
Memorabilia e em Apologia de Sócrates, encontramos reflexões éticas e pedagógicas
de inspiração socrática, além de informações menos idealizadas do que as de Platão
sobre Sócrates e seu pensamento.

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Do ensino da filosofia à filosofia
do ensino: contraposições entre
Kant e Hegel
por Geraldo Balduino Horn*
UFPR

INTRODUÇÃO -se campos de argumentação opostos e de disputa aca-


A filosofia está visceralmente ligada a seu pas- dêmica acirrada.
sado. A rigor não existe Filosofia como um sistema de Kant defende a tese de que se deve ensinar a
ideias prontas que serve para as pessoas integrarem-se filosofar, e Hegel defende a tese oposta de que se deve
à sociedade, orientarem suas vidas ou para autoajuda. ensinar os conteúdos da história da Filosofia. Estas
Ela precisa ser compreendida como um diálogo crítico posições estão alicerçadas em pressupostos filosóficos
com o seu passado no qual as grandes questões que que ambos construíram a partir de suas práticas como
os filósofos se perguntaram são constantemente reto- pensadores e professores de Filosofia. Kant tomou
madas; é por essa razão que para a Filosofia, muitas como princípio que não se deve aprender pensamen-
vezes, não importa tanto a resposta, mas muito mais tos, conteúdos, mas aprender a pensar. Há neste enten-
a pergunta que se faz. Se isto, por um lado, representa dimento uma influência clara e evidente de Rousseau e
uma dificuldade para a Filosofia, por outro, em certa do pensamento pedagógico de sua época.
medida, constitui-se no principal fator que a diferen-
cia das outras formas de conhecimento, como a arte,
a religião, o senso comum; diferencia-se, inclusive, do
ponto de vista metodológico, dentro da própria área de
ciências humanas, e é bem diferente em relação ao que
as ciências exatas propõem.
A esta dificuldade que é própria da natureza
da Filosofia se acrescenta outra igualmente complexa:
como ensinar esse tipo de conhecimento? Deve-se ensi-
nar conteúdos filosóficos ou deve-se ensinar uma ativi-
dade mental e moral de se fazer filosofia? Se a Filosofia
apresenta uma diversidade de ideias, sabendo-se que 3
não há uma Filosofia verdadeira, um sistema filosófico
que dê conta de explicar toda a realidade, se a Filoso-
fia se opõe aos dogmas — sistemas prontos e acaba-
dos —, se em cada filósofo se encontra um núcleo forte
de ideias que constituem as escolas filosóficas e se, na
maioria das vezes, há mais divergências que conver-
gências de ideias, como lidar didaticamente com esta
multiplicidade de sistemas e ideias? Constata-se que
ou o professor simplifica seu trabalho utilizando carti-
lhas, livros didáticos, ou ele tenta criar uma sistemati-
zação própria; mas quando isto ocorre, normalmente,
resulta em fracasso, ao que se pode denominar sopa de
ideias ou ecletismo. Diante desta dificuldade, a saída
mais comumente encontrada é defender que, ao invés
de ensinar conteúdos, melhor seria ensinar a pensar,
ensinar a filosofar.

CONTRAPOSIÇÕES ENTRE Kant E HEGEL No tempo de Kant a frequência à escola era


Duas teses, aparentemente contrárias, apren- absolutamente irregular, somada à total ausência de
der/ensinar Filosofia ou aprender/ensinar a filosofar, estabelecimento de ensino, além disso, a própria ideia
acompanham a história da Filosofia desde seu nasci- da valorização da infância era desconhecida. A inven-
mento. No entanto, é na contraposição do pensamento ção da infância é um fenômeno relativamente recente;
de Kant e Hegel que estas teses passaram a ter um deli- a criança era compreendida como um adulto em minia-
neamento mais definido e, por conseguinte, tornaram- tura, na medida em que ela era submetida a um pro-

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cesso de adestramento pelo adulto. Não existia ainda deria escolher outras alternativas capazes de mudar
uma pedagogia da criança, apenas do adulto. Daí a im- sua posição. Ele estaria determinado a ser o que ele é.
portância da obra de Rousseau na qual Kant muito se Assim como a ideia de esclarecimento em Kant está li-
inspirou. É a partir de século XVIII que a criança deixa gada à autonomia, a ideia de perfectibilidade só pode
de ser um adulto em miniatura e passa a ser valoriza- estar ligada à liberdade.
da como criança, como um ser que possui sua maneira
própria de pensar, sentir, agir e ser. Que porém um público se esclareça [‘aufkäreg‘] a si
Pelo fato de valorizar a experiência da criança, mesmo é perfeitamente possível; mais que isso, se lhe for
a pedagogia de Kant passou a ser considerada uma es- dada a liberdade, é quase inevitável. Pois encontrar-se-
pécie de empirismo lógico. Esta expressão justifica por -ão sempre alguns indivíduos capazes de pensamento
próprio, até entre os tutores estabelecidos da grande mas-
que ele entende que o ser humano é livre; isto significa
sa, que, depois de terem sacudido a si mesmos o jugo da
dizer que ele não pode ser compreendido como as coi- maioridade, espalharão em redor de si o espírito de uma
sas são — os objetos de ciência ou os animais em geral avaliação racional do próprio valor e da vocação de cada
—, mas ele precisa ser compreendido como objeto de homem em pensar por si mesmo. (...) Para este esclare-
conhecimento da ordem da razão prática. Quer dizer, cimento [‘Aufklärung‘] porém nada mais se exige senão
como afirma Kant, LIBERDADE. E a mais inofensiva entre tudo aquilo que
se possa chamar liberdade, a saber: a de fazer um uso pú-
O homem é a única criatura que precisa ser educada. Por blico de sua razão em todas as questões (Kant, 1974, p.
educação entende-se o cuidado de sua infância (a conser- 102-4).
vação, o trato), a disciplina e a instrução. Consequente-
mente, o homem é infante, educando e discípulo. (...) os A incompletude do ser humano não se vincula
animais, portanto, não precisam ser cuidados, no máximo a um pressuposto psicológico, sociológico ou religioso,
precisam ser alimentados, aquecidos, guiados e protegi-
mas ocorre em função de uma qualidade moral e meta-
dos de algum modo (Kant, 1996, p. 11).
física, essencialmente humana, que é sua liberdade. A
condição de ser livre possibilita ao ser humano a busca
A formação do ser humano passa, necessaria- de perfectibilidade. Não é por acaso que um dos silo-
mente, na concepção Kantiana, pela disciplina e pela gismos kantianos mais conhecidos afirma que se o ho-
instrução; a disciplina impede ao homem de desviar-se mem é livre, logo ele pode se aperfeiçoar. Kant, assim
do seu destino, tira-o de sua selvageria, transforma a como Rousseau, é extremamente otimista, racionalista
animalidade em humanidade, cumpre, neste sentido, e intui que o ser humano caminha para o melhor —
uma função negativa (de punição): “No homem, a bru- para a perfeição —, mas ele precisa ser educado. Por-
talidade requer polimento por causa de sua inclinação tanto, a teoria da aufkärung, que ele propõe tem ao me-
à liberdade; no animal bruto, pelo contrário, isto não é nos três elementos centrais, quais sejam: a autonomia
necessário, por causa de seu instinto” (Kant, p.14). Ao do pensamento — livre pensar —, o aperfeiçoamento
contrário da disciplina, a instrução é a parte positiva da — perfectibilidade — e a educação — formação.
educação; está intimamente ligada à razão, à capacida-
de de apreensão e perfectibilidade, características que Mas o que significa ser esclarecido? A esta per-
são intrínsecas à sua natureza: “O homem não pode gunta, Kant responde:
tornar-se um verdadeiro homem, senão pela educa-
ção. Ele é aquilo que a educação faz dele. Nota-se que Esclarecimento [Aufklärung] é a saída do homem de sua
ele só pode receber esta educação de outro homem, os menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menorida-
quais a receberam igualmente de outros” (Kant, p.15). de é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento
Portanto, a disciplina e a instrução constituem, para a sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio
pedagogia kantiana, duas pré-condições da educação culpado dessa menoridade se a causa dela não se encon-
do ser humano, e a educação, por sua vez, depende do tra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e co-
conhecimento e da experiência. ragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem.
Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio en-
Entretanto, o princípio fundamental da peda-
tendimento, tal é o lema do esclarecimento [aufklärung]
gogia Kantiana está relacionado à palavra aufklärung
(Kant, 1974, p. 100).
que significa esclarecimento: sair das trevas. Esclareci-
mento que é dado pelas luzes da razão e que possibili-
Esclarecimento significa ser livre, possuir au-
ta ao indivíduo abandonar a ignorância e permite sua
tonomia, ser senhor de si mesmo por um processo de
ascensão a um nível superior de cultura, educação e
uma melhoria moral e cultural. Por que os homens, em
formação. A aufklärung aplicada à educação tinha como
geral, gostam de obedecer e por que eles não alcança-
proposta a noção de perfectibilidade do ser humano.
4 Todo ser humano, tanto do ponto de vista da ontogê-
ram a maioridade moral e cultural? Em parte, respon-
de Kant (Kant, 1974, p.100), em função da preguiça e da
nese (ser) como do ponto de vista da filogênese (espé-
covardia: “A preguiça e a covardia são as causas pelas
cie), caminha para um aperfeiçoamento contínuo. O
quais uma tão grande parte dos homens, depois que a
ser humano se aperfeiçoa continuamente, basicamente
natureza de há muito os libertou de uma direção estra-
por duas razões: primeiro porque ele é um ser vivo,
nha — naturalistei maiorennes —, continuem, no entan-
segundo porque é um ser inacabado, é um ser que está
to, de bom grado menores durante toda a vida”. Mas
em projeto. Esta incompletude deve-se, em parte, à sua
também os tutores, professores, pois têm grande res-
condição de ser livre; se ele não fosse livre, ele não po-
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ponsabilidade sobre o estado de menoridade que atin- próprio professor tem de fazer uso do esclarecimento,
ge os subalternos. Existe, é claro, uma culpa recíproca da prática da reflexão, ou seja, pensar por si, pois se ele
entre aquele que é preceptor e aquele que é criança. De treina a memória dos alunos, simplesmente, o método
certa forma, toda criança tem de ser mandada e gosta será catequético, mas se ele se posicionar na razão, o
disto e todo adulto tem de mandar e se satisfaz com método será dialógico. Kant é um teórico racionalis-
isto. Trata-se de um pacto medíocre feito entre o man- ta que acredita na razão, jamais vai pensar que o ser
dante e o mandado. Situação cômoda para ambos, mas humano é incapaz de autonomia. Ele acredita no in-
principalmente para o segundo. divíduo do ponto de vista do seu agir prático e de seu
É por isso que Kant insiste na ideia de que o conhecimento teórico-científico. Resumindo, pode-se
ensino deve buscar o lema: “pensar por si mesmo”. Isto dizer que, para Kant, o ser humano atinge sua maturi-
quer dizer julgar questões segundo o exame próprio, dade ou sua maioridade se ele conseguir pensar por si,
segundo a autonomia intelectual e a ousadia moral. colocar-se no lugar do outro e pensar de forma conse-
Aprender a pensar não significa, portanto, aprender quente.
pensamentos ensinados pelo professor. Para Kant, po- Hegel vai criticar esta perspectiva kantiana.
de-se apenas aprender a filosofar, exercer o talento da Assim como Kant, Hegel parte da crítica dirigida ao
razão; aprende-se a filosofar pelo exercício e pelo uso laissez-faire pedagógico de sua época. O primeiro ele-
que se faz para si mesmo de sua própria razão. O papel mento de sua proposta é que há uma relação entre for-
da reflexão ou da razão autônoma não está em treinar mação do indivíduo e uma consequente elevação ao ní-
a memória e nem a erudição. vel superior do ponto de vista qualitativo. O segundo
Essa asserção Kantiana permite leques de in- aspecto é que o indivíduo deve se inserir numa univer-
ferência, a exemplo da improcedência de se fazer com salidade maior, ou seja, na cultura, no espírito de seu
que o aluno tenha simplesmente erudição ou que me- tempo — Bildung. O indivíduo plenamente formado
morize conteúdos. Tais parcialidades apenas consegui- acaba constituindo com isto uma segunda natureza.
rão torná-lo dependente, pois esta não é a maneira cor- Consequentemente, para Hegel, para que o indivíduo
reta de usar a razão. Quando o professor se deixa levar possa alcançar este estatuto maior da universalidade, é
por este tipo de laisser-aller — ou displicência — tem-se preciso que ele abandone os impulsos de sua primeira
a indicação de que ele não pensa, não tem coragem de natureza, em que predomina a imediatividade e apela-
posicionar-se, permanece numa condição de absoluta -se ao egoísmo. Uma vez superada a natureza primei-
menoridade; ele não pesquisa, não estuda e limita-se ramente biológica — egoísta —, o indivíduo poderá
a passar esquemas prontos, o que, na prática, significa ascender a um grau superior, constituindo-se nele uma
um servilismo. É isto que Freire chama hoje de educa- segunda natureza. Isto não acontece espontaneamente.
ção bancária: É preciso haver um trabalho pedagógico sistemático de
formação para aquele que não sabe, a fim de que, pelos
Para o ‘educador-bancário’, na sua antidialogicidade, a conteúdos e pela disciplina, ele possa alcançar um co-
pergunta, obviamente, não é a propósito do diálogo, que nhecimento maior, mais elevado.
para ele não existe, mas a respeito do programa sobre o
qual dissertará a seus alunos. (...) Para o educador-edu- 5
cando, dialógico, problematizador, o conteúdo progra-
mático da educação não é uma doação ou uma imposi-
ção... (...). A educação autêntica, repitamos, não se faz de
‘A’ para ‘B’ ou de ‘A’ sobre ‘B’, mas de ‘A’ com ‘B’, media-
tizados pelo mundo (Freire, 1975, p.98).

Mesmo considerando tudo isto, fica ainda


uma questão; mais do que isto, um paradoxo: como
aprender a pensar se o aluno não está amparado te-
oricamente, ou seja, se ele ainda não possui conheci-
mentos suficientemente sólidos? Kant não se preocupa
com este problema. Para ele, tanto o educando como o
educador têm uma disposição natural para aprender
— é um pressuposto socrático. Todo ser humano tem
naturalmente a mesma pré-condição para ser autodi-
data: só se aprende a nadar nadando, só se aprende a
andar andando, a pensar pensando; o autodidatismo
exige esforço, pois como se poderia aprender a andar
senão andando?
É necessário ficar atento, de acordo com Kant,
pois a prática pedagógica é determinada por dois mé-
todos, basicamente. O primeiro é o método do escla-
recimento, é quando o professor interroga sua razão,
buscando posicionar-se. O segundo é o método cate-
quético, quando ele interroga apenas a sua memória. O

REVISTA PENSE | Nº 02 | Novembro/2012


Este pressuposto pedagógico, que vincula dis- A Filosofia aparece de forma explícita como
ciplina e conteúdos como ponto de partida para rom- objeto de estudo no programa proposto por Hegel para
per com o estado de inércia da primeira natureza — o Ginásio de Nuremberg, ao lado de outras disciplinas
também entendido em Hegel como alienação —, toma consideradas por ele fundamentais para a formação do
como palco de realização e aperfeiçoamento dos seres que se subentende hoje como ensino médio.
humanos não tanto o indivíduo, mas a História. Hegel Estes objetos são, pois, em geral: o ensino da
concorda com Kant que a constituição humana acon- Religião, da Língua Alemã, juntamente com a familia-
tece a partir de sua formação, que tem seu sentido na rização com os clássicos nacionais, da Aritmética, mais
aufklärung e na perfectibilidade do gênero humano, no tarde Álgebra, Geometria, da Geografia, da História,
entanto isto se insere numa totalidade maior que ora é da Fisiologia — que compreende a Cosmografia, a
o Estado, ora a sociedade civil, ora a própria história. História Natural e a Física —, das Ciências Filosóficas
Portanto, a ascensão cultural do espírito é resultado de Preparatórias; e ainda de Francês e, também, para os
um processo de formação com certo nível de comple- futuros teólogos, da Língua Hebraica, do Desenho e da
xidade. Consiste no esforço de elevar o indivíduo do Caligrafia (Hegel, 1994, p.37).
em si, da imediatividade, para uma posição superior,
na qual ele possa identificar-se seu este outro que é a Hegel compara tal metodologia ao viajante que viaja sem
cultura. Transpondo esta situação para o ensino, para conhecer as cidades, os rios, os países, os homens e assim
que isto seja possível, o educando tem de aprender os por diante. Para ele quando se viaja deve-se não só conhe-
cer o que se nos oferece nesta viagem, mas também, neste
conteúdos filosóficos e não apenas a filosofar.
mesmo ato, conhecer os conteúdos dessa viagem, ou seja,
Hegel dá grande importância ao ensino huma-
viaja-se efetivamente (Ramos, 1980, p.91)
nístico, por isso dá tanto valor ao estudo das línguas e
à Filosofia grega:
O mesmo ocorre com o ensino da Filosofia;
As obras dos antigos contêm, portanto, o mais nobre dos
aprendendo-se a conhecer os conteúdos da Filosofia,
alimentos, na mais nobre forma, as maçãs douradas nas não se aprende apenas a filosofar, mas também já se fi-
taças de prata, e incomparavelmente mais do que qual- losofa efetivamente (Hegel, 1978, p.141). O pensamen-
quer outra obra de qualquer tempo ou nação. (...) Esta to hegeliano sobre o ensino da Filosofia pode ser assim
riqueza, porém, está ligada à língua, e apenas por meio resumido: a) a Filosofia, assim como qualquer outra
dela e no seu seio a atingimos na sua plena propriedade. matéria, pode ser ensinada; b) ela possui um conteúdo
(...) Esta circunstância coloca-nos a necessidade, aparen- próprio, e sua aprendizagem implica num estudo sis-
temente dura, de estudar a fundo a língua dos Antigos e temático, visando ao conhecimento da totalidade, pois
de torná-los familiares, para poder saborear as suas obras
a Filosofia contém pensamentos racionais, universais e
o mais possível, na extensão de todos os seus aspectos e
verdadeiros, além de que é preciso preencher cabeças
qualidades (Hegel, 1994, p. 33-4).
vazias sem nenhum conteúdo filosófico; c) uma vez que
se tem uma Filosofia rica em conteúdos, aprende-se,
Não propõe uma utopia regressiva — retorno
por consequência, a filosofar, isto é, a filosofia deve ser,
aos gregos, à Antiguidade clássica —, nem uma utopia
necessariamente, segundo Hegel, ensinada e aprendi-
progressiva — perfectiva. O papel da Filosofia é pen-
da tanto quanto qualquer outra ciência. Mas, como ele
sar aquilo que é e também aquilo que deve ser. Isto só
mesmo alerta, “...para que o ensino dado na escola dê
pode ser alcançado com o treinamento do próprio es-
frutos para os estudantes, para que estes, através deste
pírito, pelo ensino de línguas, da Filosofia; pela trans-
ensino, façam progressos efetivos, para tal é tão neces-
missão da cultura, que começa na infância e que deve
sária a sua própria aplicação pessoal como [é necessá-
prosseguir na adolescência fortemente ancorada no
rio] o próprio ensino” (Hegel, 1994, p. 45).
pressuposto da construção da cidadania no educando.
Trata-se de formar um cidadão crítico, consciente de
seus direitos e suas obrigações enquanto ser humano,
mas que está vinculado a uma eticidade maior, dada
pelos compromissos que assume na sociedade/comu-
nidade.
Voltando ao debate sobre o ensino de Filosofia,
a tese hegeliana contrapõe-se à tese Kantiana, justa-
mente porque, para Hegel, a Filosofia é algo que pode
ser ensinado. Ramos, ao analisar esta posição, diz que,
para Hegel:
6 ...não se pode aprender a filosofar sem aprender a filoso-
fia, do mesmo modo como só se aprende a pensar quando
se aprende os conteúdos do pensamento. Em relação ao
método de ensino da filosofia, Hegel insurge-se contra a
crença moderna da pedagogia que recomenda que não Hegel propõe, portanto, um estudo sistemático
se deve aprender um conteúdo da filosofia (Ramos, 1980, de Filosofia cujo objetivo é um conhecimento mais ver-
p.91). dadeiro, de tal forma que possa haver uma compreen-

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são da complexidade do sistema político-social como Enquanto Hegel insiste mais em conteúdos que preci-
um todo. Isto só poderá ocorrer por meio do ensino sam ser sistematizados, os conteúdos Kantianos são
sistemático de conteúdos que, em última instância, retirados dos próprios sujeitos (alunos).
confunde-se com a própria aprendizagem da Filosofia, É verdade que só se aprende Filosofia apren-
ou seja, com o próprio ato de filosofar. Quer dizer, só dendo a pensar, mas só se sabe pensar — filosofar —
se aprende a filosofar se se aprender os conteúdos filo- aprendendo-se a Filosofia. Esta é, certamente, a defesa
sóficos; assim como só se viaja efetivamente quando se de Hegel: apreendendo-se os conteúdos de Filosofia,
aprende os lugares por onde se passa, da mesma forma aprende-se a pensar. A Filosofia possibilita o livre-
só se filosofa efetivamente a partir do momento em que -pensar, e esta é uma de suas funções, mas com o livre-
se conhecem os conteúdos da Filosofia. -pensar pelo livre-pensar as cabeças podem continuar
O objetivo da Filosofia no ginásio, segundo sem fundamentos, ocas, na expressão de Hegel.
Hegel, é propiciar ao aluno uma iniciação ao pensa-
mento especulativo. Para tanto, o ensino da Filosofia P
deve ser propedêutico e distribuído por classes. Quan-
to à organização dos conteúdos filosóficos ministra- Referências bibliográficas
dos no Ginásio, Hegel, como enfatiza Ramos (Ramos,
1980, p.94-95), discorre sobre este tema numa carta HEGEL, G. W. F. Discursos sobre a educação. Trad. Ermelinda
a Niethammer, de 23/10/1812, e num relatório de Fernandes. Lisboa: Colibri, 1994.
07/02/1823 sobre Ensino da Filosofia nos Ginásios, di- _____. Textes Pédagogiques. Trad. Bernard Bourgeois. Paris:
Vrin, 1978.
rigido ao ministro de ensino do Reino da Prússia. Nes-
_____. Estética: a ideia e o Ideal; Fenomenologia do Espírito. Os
ta carta, ele propõe uma organização para os conteú- Pensadores: São Paulo: Nova Cultural Ltda, 1996.
dos das ciências filosóficas considerando as idades de HORN, G.B. Filosofia. In. KUENZER, A. São Paulo: Cortez,
14/16 anos a 18/20 anos, com a seguinte distribuição: 2000.
para a classe inferior, o conhecimento da religião, do _____. A presença da Filosofia no Ensino Médio brasileiro: uma
direito, dos deveres; para a classe média, o estudo da perspectiva histórica. In GALLO, S; KOHAN, W. O (Org.) Pe-
cosmologia e teologia; e para a classe superior, a enci- trópolis: Vozes, 2000.
clopédia filosófica. No relatório destinado ao ministro, Kant, I. Textos Seletos. Trad. Raimundo Vier. Petrópolis: Vo-
em 1883, Hegel reforça a ideia da manutenção da Filo- zes, 1974.
_____. Sobre a Pedagogia. Trad. Francisco Cock Fontanella. Pi-
sofia no ginásio como preparação material ao pensa-
racicaba: Unimep, 1996.
mento filosófico especulativo que deve, mais tarde, ser RAMOS, C. A O lugar e o sentido da Educação (Escola) na Etici-
desenvolvido na universidade. dade de Hegel. Dissertação de Mestrado. São Paulo: PUC-SP,
1980.

* Geraldo Balduino Horn é professor da UFPR.

CONCLUSÃO
Portanto, tem-se, de um lado, uma proposta
extremamente instigante e chamativa de Kant — um
convite a aprender a pensar —, mostrando que a for-
mação é uma autoformação, e, de outro, a perspectiva
hegeliana que diz que se deve aprender pensamentos
por meio do ensino de conteúdos filosóficos, em que
o professor tem um papel bem definido: ele represen-
ta a cultura, o espírito de seu tempo. Enquanto Hegel
olhava mais para a formação do indivíduo com con-
teúdos, visando a uma educação voltada à cidadania,
ao contexto sócio-histórico maior, Kant visava mais à
realização da autonomia individual — uma espécie de
emancipação do indivíduo — de crescimento pessoal.

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Poetas e filósofos segundo
Aristóteles*
por Luisa Severo Buarque de Holanda**
PUCRJ

No início do primeiro livro da Política, Aristó- ticidade do homem algo específico e sempre ligado à
teles afirma que “o homem é um animal político mais sua potência linguística e racional.
que todos os outros, abelhas ou animais gregários.”1
Conformemente a tal sentença, encontra-se em História
dos Animais a seguinte afirmação: “[Animais] políticos Na Poética, nota-se
são todos os que possuem alguma obra comum: e isso um processo semelhante:
nem todo o [animal] gregário faz. Tais [animais polí- ali, Aristóteles afirma que o
ticos] são o homem, a abelha, a vespa, a formiga e o homem é, de todos, o mais
grou.”2 Como se vê, nesse último contexto, o filósofo imitador, e que nisso difere
diferencia os animais simplesmente gregários dos po- dos outros viventes4. Ou seja:
líticos pelo fato de que os primeiros apenas vivem em paralelamente ao que ocorre
grupos e os segundos, além disso, trabalham em vista na Política, o argumento da
de uma obra comum. Esses dois contextos dão a enten- Poética em parte indica uma
der que existe uma certa continuidade entre os outros continuidade (quando su-
animais e os seres humanos, na medida em que estes gere que o homem seja ape-
são mais políticos do que os outros, ou seja: a variação nas o mais imitador), mas
entre as espécies, no que tange à politicidade, seria, se- culmina na ruptura de uma
gundo esses dois contextos, apenas quantitativa. diferença específica (já que
Todavia, logo em seguida à supracitada passa- no imitar os homens diferem, diaphérousi, dos outros
gem da Política, Aristóteles introduz o seguinte argu- animais). Essa diferença é logo em seguida esclarecida
mento: pela seguinte sentença: “Efetivamente, tal é o motivo
por que se deleitam perante as imagens: olhando-as,
Como nós dissemos, com efeito, a natureza nada faz em aprendem e discorrem sobre o que seja cada uma de-
vão; ora, dentre os animais, somente o homem possui las”5. Consequentemente, o mimetismo humano acaba
logos. Sem dúvida, os sons da voz exprimem a dor e o por ser transformado em um mimetismo especial, ou
prazer; ela também se acha nos animais em geral: sua na-
de outra ordem, pelo fato de que os homens são capa-
tureza lhes permite somente sentir a dor e o prazer e se
manifestar entre si. Mas o logos é feito para exprimir o
zes de aprender e raciocinar com o auxílio da mímesis,
útil e o desagradável e, por conseguinte, também o justo ou ainda, dos produtos miméticos. Como ocorrera na
e o injusto. Este é, com efeito, o caráter distintivo do ho- Política, em cujo contexto o logos faz da politicidade
mem em face de todos os outros animais: só ele percebe humana algo, de certa forma, único, na Poética a apren-
o bem e o mal, o justo e o injusto e os outros valores; ora, dizagem faz do mimetismo humano um mimetismo
é a possessão comum desses valores que faz a família e mais pleno e com mais consequências. Logo, uma di-
a cidade3. ferença inicialmente quantitativa torna-se claramente
uma diferença qualitativa. Como afirma S. Klimsis em
Esse acréscimo estabelece evidentemente uma artigo sobre o prazer derivado do reconhecimento se-
descontinuidade entre a voz dos animais em geral e o gundo a Poética (Klimsis, 2002, p. 469),
logos - isto é, a linguagem e a razão humanas - influen-
ciando retrospectivamente a continuidade sugerida se o humano é o vivente que mais representa (imita), isso
pela afirmação anterior, na medida em que o raciocínio supõe que outros animais também podem produzir uma
posteriormente apresentado termina com a afirmação mímesis. Ora, o superlativo é apresentado como vindo
de que é a possessão comum dos valores engendrados manifestar uma diferenciação (diapherousi). Mais precisa-
mente, ele indica uma passagem ao limite: a atualização
pela capacidade racional e linguística que faz a família
8 e a cidade. Por conseguinte, a introdução da observa-
humana da mímesis realiza o aperfeiçoamento último de
uma potencialidade animal, pois ela pode ser mobilizada
ção de que somente o homem possui logos - seguida da em vista de uma aprendizagem, isto é, da busca de um
afirmação de que este (o logos) seria o “próprio” (idíon) saber. Desde então, há um desprendimento em relação à
do homem, ou seja, a peculiaridade humana face aos escala do vivente: pertence à natureza do humano, e do
outros animais - é claramente da ordem da ruptura. humano somente, procurar compreender o mundo que o
Ainda que o caráter político seja compartilhado, por envolve. Essa continuidade é então paradoxal, já que ela
exemplo, pelas abelhas e formigas, o logos faz da poli- se verifica ser da ordem de uma ruptura.

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Como se pode notar, Aristóteles lança mão, “amargo e amarelo, então é bile”7. Finalmente, a sensa-
em ambos os contextos citados, de uma estratégia que ção por acidente é assim denominada porque seu obje-
consiste em apresentar uma espécie de continuidade to, enquanto tal, não afeta diretamente o sistema sen-
descontínua na escala natural que vai dos animais me- sitivo; ela está ligada a uma dedução mais complexa
nos complexos aos seres humanos. Pois bem, o que sobre o que seja a unidade dos próprios e dos comuns
se pretende enfatizar aqui, primeiramente, é que tal percebidos. Ela é exemplificada da seguinte forma:
estratégia não deixa de possuir analogia com a ques- “são chamados por acidente aqueles [objetos da sen-
tão da sensação, tal como é apresentada do De Anima. sação] que são como a coisa branca ser o filho de Dia-
Ali, como é sabido, os tipos de almas são posicionados res”8. O modo como a sensação por acidente difere da
em uma escala serial em que cada função mais sim- sensação dos comuns não é exatamente explicado por
ples, correspondente a um tipo de alma comum a um Aristóteles, mas o exemplo parece não ter sido escolhi-
maior número de seres vivos, esteja sempre contida no do por acaso, na medida em que se relaciona ao “filho
tipo mais complexo e mais raro de função anímica. A de Diares”, e não a um objeto denominado de maneira
alma nutritiva (treptikón) é a mais básica, e constitui direta. Ora, o que é importante extrair de tal esquema
uma condição sine qua non para que haja vida. A alma é que a escala dos tipos de sensação apresentada no
sensitiva, ou perceptiva (aisthetikón), é requisito para a De Anima demonstra que a passagem da sensação em
animalidade. Há ainda as funções desiderativa (orekti- geral para a estrutura linguística da nossa predicação
kón), locomotiva (kinetikón) e dianoética (dianoetikón). A comum constitui nada menos do que um salto, que
alma desiderativa é consequência direta da alma sen- permanece até certo ponto inexplicado. O que Aristó-
sitiva, na medida em que todos os animais, possuindo teles apresenta propriamente é uma predicação estéti-
no mínimo o tato, sentem algum tipo de dor e prazer, ca, ou sensitiva - “o branco é filho de Diares” - a qual,
os quais já são capazes de gerar apetites e desejos. A em relação à estrutura predicativa comum, “o filho de
alma locomotiva também é consequência da sensação, Diares é branco”, mostra-se completamente invertida,
mas não ocorre necessariamente, sendo compartilhada já que, em um caso, o branco é o objeto da sensação e
por apenas alguns dentre os animais. A alma dianoéti- o sujeito sintático da sentença e, noutro caso, o filho
ca, por sua vez, é exclusiva dos seres que possuem lo- de Diares é o objeto do discurso e o sujeito sintático da
gos, isto é, dos seres humanos, de modo que, segundo o sentença (cf. Cassin, 1999, p. 176). Desse modo, o filó-
esquema proposto, cada espécie de alma implique um sofo acaba por apresentar mais uma continuidade des-
tipo de faculdade, e de modo que a última das facul- contínua entre a sensação e a predicação, na medida
dades mencionadas seja caracterizada como algo que em que esta repousa na sensação por acidente, mas não
distingue os homens dos demais animais. coincide inteiramente com ela e, ainda assim, é capaz
Ainda segundo o esquema do De Anima, os de exteriorizá-la por meio do logos, enquanto estrutura
objetos dos sentidos (aisthetón) podem ser ditos de três de pensamento e de linguagem distintiva dos seres hu-
modos, que correspondem a três tipos de sensação - 1) manos. Em suma: por causa da sensação por acidente é
a sensação dos próprios, 2) a sensação dos comuns e 3) que pode haver a predicação, isto é, o discurso sobre os
a sensação dita por acidente, ou por concomitância - e
são explicados da seguinte
fenômenos complexos e compostos, mas o modo como
isso ocorre permanece sendo 9
forma: os próprios são qua- apresentado como um abismo
lidades passíveis de ser re- que separa a sensação por aci-
cebidas por um único sen- dente da estrutura predicativa
tido, e sobre as quais não é propriamente dita.
possível se enganar como,
por exemplo, as cores são Ora, o que se pretendia obser-
para a visão e os sons para var, em relação à estrutura da
a audição. Os comuns são sensação tal como resumida
assim denominados por- logo acima, é que, analoga-
que podem ser recebidos mente às faculdades da alma
por mais de um sentido - que só são compartilhadas
e não se direcionam para por outros animais que não os
nenhum órgão sensitivo homens até o ponto da facul-
específico. São exemplificados por Aristóteles por: mo- dade locomotiva - algo semelhante ocorre com a sen-
vimento (kínesis), repouso (stásis), número (aritmos), sação em geral e a predicação linguística dela deriva-
figura (schéma) e grandeza (megethós). A sensação co- da: esta última tem origem na sensação, que, como foi
mum é, por conseguinte, uma espécie de cruzamento visto, é comum aos animais em geral, mas permanece
de dados, ou, segundo as palavras de B. Cassin (Cas- sendo qualitativamente diferente dela e peculiar aos
sin, 1999, p. 173), uma capacidade de transversalização seres humanos. Logo, mais uma vez Aristóteles apre-
dos sentidos próprios6. Sempre que ocorrem ao menos senta um esquema que pretende dar conta tanto da
duas sensações próprias simultâneas de um mesmo continuidade quanto da ruptura entre as capacidades
objeto, a sensação dos comuns entra em cena e, nesse animais e humanas. Mais, uma vez, portanto, trata-se
momento, já pode haver algum tipo de engano. O cé- da apresentação de uma escala em princípio contínua,
lebre exemplo aristotélico para tal evento é a dedução: mas que termina por comportar algum grau de des-

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continuidade. Entre a alma dianoética e os outros tipos Na outra passagem, o filósofo trata do deleite
de alma, entre predicação e sensação - para resumir provocado pelo aprendizado, que é compartilhado por
alguns dos pontos investigados no De Anima - assim todos os homens, mas ocorre em maior grau nos filó-
como entre a mímesis humana e a mímesis animal da sofos: “Causa é que o aprender não só muito apraz aos
Poética e, finalmente, entre a politicidade humana e a filósofos, mas também aos demais homens, se bem que
politicidade animal da Política, verifica-se haver cons- menos participem dele.”10 O que essas duas passagens,
tantemente um hiato. tomadas conjuntamente, chegam a mostrar, é que em
Note-se, além disso, que Aristóteles não dei- pelo menos duas das diversas escalas mencionadas
xa de construir pirâmides hierárquicas. No caso das precedentemente, a saber, na escala do mimetismo e
almas, da nutritiva até a dianoética, a menos elevada na escala que vai da sensação ao logos, o autor atribui a
da série abarca todos os membros classificados e, de alguns homens ou, mais especificamente, aos poetas e
acordo com cada degrau que se galga, cada vez menos filósofos, respectivamente, um maior aproveitamento
componentes compartilham da faculdade correspon- de certas faculdades, ou uma maior concentração de-
dente, até que ela se torne rara o suficiente para per- las. Ou seja: segundo Aristóteles, ainda que todos os
tencer a apenas uma espécie, de modo que é possível homens imitem, certos homens são mais imitadores do
ver se estreitando, à medida que vai se elevando em que os outros e, analogamente, ainda que todos os ho-
forma piramidal, a hierarquia que tem como critério mens se deleitem perante os produtos miméticos por
as faculdades psíquicas e como objetos classificados causa do aprendizado e do raciocínio promovido por
os organismos naturais. Poder-se-iam fornecer ainda eles, os filósofos são os que efetivamente mais apren-
diversos outros exemplos ligados às características dem e se deleitam com isso.
distintivas dos seres humanos, tais como a escala apre- Essa continuação da escala no interior da es-
sentada no primeiro livro da Metafísica, que parte da pécie humana, por sua vez, pode ser caracterizada
memória, passa pela experiência e pela arte e atinge o por meio da diferença entre potência e ato: todos os
conhecimento: os dois últimos degraus, a saber, o da homens são potencialmente filósofos e poetas, mas
arte e o da ciência, só podem ser atingidos, segundo nem todos, evidentemente, atualizam essa potência
Aristóteles, pelos homens. (e ainda que, no caso da poesia, ligada também à har-
Não obstante, como já foi dito, o mais impor- monia e ao ritmo, o autor sugira uma certa tendência
tante a ser notado, no presente contexto, é que, embora natural, o fato é que tal tendência só é reconhecida a
haja hierarquias, degraus, passagens e continuidade, posteriori, quando o ser humano já se tornou um poe-
de modo que, em um certo sentido, cada nível descrito ta). É como se poetas e filósofos, portanto, efetivassem
se baseia sobre o outro e deriva do outro, nem todas mais plenamente certas capacidades inerentemente e
as passagens mencionadas são de fato explicadas. Eis universalmente humanas, fato que constrói, na Poética,
porque é lícito afirmar também que, de certo modo, há um evidente paralelismo entre filosofia e poesia. Um
hiatos e rupturas em alguns pontos dessas pirâmides. outro célebre paralelo entre filosofia e poesia pode ser
E esses hiatos se encontram geralmente, mas talvez encontrado ainda no nono capítulo desse mesmo trata-
não exclusivamente, naqueles pontos que distinguem do, onde, como se sabe, ambas se opõem à história por-
o pensamento universalizante da sensação particulari- que visam ao universal, e não ao particular. Pois bem, a
zante e, portanto, quando distinguem os homens dos hipótese final deste artigo, a ser esclarecida a partir de
outros animais. agora, é que esse paralelismo fica em parte elucidado
por algo que será chamado aqui de “tendência unifica-
Não obstante, é de se notar também que tais dora” da filosofia e da poesia, e que tal tendência, por
pirâmides aristotélicas não param de se afunilar no sua vez, encontra-se na origem dos diversos hiatos aci-
ponto em que alcançam as características exclusiva- ma verificados, no tocante à distinção entre os homens
mente humanas, ou seja: Aristóteles apresenta tam- e os demais animais.
bém, em alguns contextos, uma maior concentração A começar pela poesia, essa tendência uni-
de certas capacidades em um menor número de seres ficadora pode ser exemplificada pela função do mito
humanos, no interior de algumas das escalas apresen- trágico, que é considerado por Aristóteles justamente
tadas. Isso ocorre em pelo menos duas ocasiões, ambas como a parte mais importante da mais elevada espécie
no quarto capítulo da Poética. Em uma delas, Aristóte- poética (a saber, a tragédia). O mito desempenha um
les atribui aos poetas uma maior propensão à imitação papel fundamental precisamente porque é responsá-
que, por outro lado (como já foi visto), pertence a todos vel por selecionar não apenas o ponto inicial e o ponto
os seres humanos e os distingue dos outros animais. final de cada enredo, mas também os momentos que
Nesse contexto, a imitação é acrescida da harmonia e devem ser levados à cena para que a história se torne
10 do ritmo: inteligível. O mito, por conseguinte, ou se apropria de
uma história tradicional ou inventa um novo enredo,
Sendo, pois, a imitação própria da nossa natureza, e a dando sentido aos seus acontecimentos e entrelaçan-
harmonia e o ritmo (pois é evidente que os metros são do-os de tal maneira que nada venha a ser supérfluo
parte do ritmo), os que ao princípio foram mais natural- ou irrelevante. Ele decompõe uma massa de aconteci-
mente propensos para tais coisas pouco a pouco deram
mentos homogêneos para recompô-los segundo as leis
origem à poesia, procedendo desde os mais toscos im-
da necessidade e da verossimilhança, formando um
provisos.9
desenho reconhecível e inteligível. Para isso, segundo

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Aristóteles, a principal característica do mito deve ser outros animais, é a sua potência unificadora, ou ain-
a sua unidade, isto é: o bom mito precisa ser capaz de da, sua inerente capacidade de reunir aspectos inicial-
unificar ao máximo as ações apresentadas. mente díspares e separados. Essa potência foi chamada
Ora, a unificação do mito pode ser entendida pela filosofia grega de logos, e está presente de forma
também como intensificação da própria natureza da paradigmática na atividade filosófica. Entretanto, pos-
sensação, tal como apresentada no De Anima e resumi- to que imbricada em qualquer atividade realizada por
da logo acima. Se o que é propriamente captado pelos seres humanos, também aparece na atividade poética.
sentidos são os sensíveis próprios e comuns, ou seja: E o faz de um modo bastante especial, na medida em
se sentimos mais propriamente apenas cores, sons, que a poesia – e, sobretudo, o mito trágico, com seu
sabores, movimento, figura etc., o papel da sensação caráter claramente unificador – acaba por se tornar,
por acidente é justamente o de unificar as informações dentro de toda a obra aristotélica, um dos mais impor-
dispersas que a sensação dos próprios e dos comuns tantes exemplos da sua utilização.
nos fornece. Unificando-as, faz com que possamos re-
conhecer objetos unos e, reconhecendo-os, estruturar Notas
linguisticamente tal reconhecimento, do modo o mais
unificado possível. Da mesma forma que acontece
com o mito, decompomos massas indiscerníveis de
informações sensíveis, para recompô-las em unidades
inteligíveis. Eis, portanto, o paralelo entre o papel do
mito na poesia trágica e a estrutura da sensação tor-
nada predicativa, ou ainda, a estrutura da linguagem
como um todo: ambos visam a fornecer a maior uni-
ficação possível à multiplicidade de fenômenos sem
sentido previamente dado com a qual nos deparamos.
Além disso, quanto mais se eleva a escala da sensação
ao pensamento, tanto mais é possível não só discernir
as unidades, distinguindo-as, como também dar con-
ta das semelhanças entre elas, como mostra o próprio
Aristóteles na passagem da Retórica em que diz: “Em
filosofia, por exemplo, deve-se visar a considerar o se-
melhante em objetos que possuem entre eles uma gran-
de diferença”. Logo, quanto mais vastas as relações de
semelhança, tanto mais efetiva é a unificação, de modo
que a atividade filosófica torna-se afinal o paradigma
mais elevado, no que tange à questão da capacidade
unificadora. Finalmente, e como já ficou claro, tal ca-
pacidade, apresentada de modo exemplar na filosofia,
Referências bibliográficas
11
efetiva uma tendência geral da linguagem, de modo ARISTÓTELES. Politique. Paris: Gallimard, 1993 (Ed. Jean
que, em última instância, a capacidade humana res- Aubonnet)
ponsável por todo tipo de descontinuidade e ruptura ________. De Anima. São Paulo: Ed. 34, 2006. (Ed. Maria Ce-
cília Gomes dos Reis)
entre os degraus aparentemente contínuos da escala
________. De Anima. London: Penguin Books, 1986. (Ed.
natural é precisamente a tendência unificadora. Hugh Lawson-Tancred)
________. History of Animals; On the Parts of Animals; On the
Motion of Animals; On the Gait of Animals; On the Generation
of Animals; Nicomachean Ethics; Politics; The Atenian Constitu-
tion; Rhetoric; On Poetics. Chicago, London, Toronto, Geneva:
Encyclopaedia Britannica, Inc., 1952. (Ed. W. D. Ross)
________. Poética. São Paulo: Abril Cultural, 1973 (Ed. E. Sou-
za)
AUBENQUE, Pierre. Le problème de l’être chez Aristote. Paris :
Presses Universitaires de France, 1473.
CASSIN, Barbara. Aristóteles e o Lógos. São Paulo: Edições
Loyola, 1999.
KLIMSIS, Sophie. Voir, Regarder, Contempler: le plaisir de la re-
connaissance de l’humain. Les Études Philosophiques 2003, no.
4, 466-83.

* Publicado originalmente em ANAIS DE FILOSOFIA


CLÁSSICA, vol. 2, nº 3, 2008.
Em conclusão, é possível afirmar que, para ** Luisa Buarque de Holanda é doutora em Filosofia
Aristóteles, o que há de comum a todos os homens, e pela UFRJ e pós-doutora em Filosofia pela Sorbonne.
lhes é peculiar, distinguindo-os também de todos os Atualmente é professora da PUC-Rio.

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“Filosofia” de Noel Rosa

por Marcos Carvalho Lopes*


UNIRIO

Noel Rosa era chamado de “filósofo do sam- valer da descrição propositadamente radical e reducio-
ba”. Essa qualificação brinca com o significado da filo- nista – seguindo uma das formulações retóricas de Ri-
sofia no Brasil, da canção popular em nossa cultura e chard Rorty (1999) – que distingue duas visões da “fi-
da “ociosa” malandragem do compositor. Se a palavra losofia”: uma de orientação platônica, que se escreve
“filosofia” etimologicamente significa “amor à sabe- com letras maiúsculas e se orienta para o imutável, a
doria”, é certo que o tipo de saber que Noel cultivava outra – que se escreve com minúsculas – volta-se para
com seu samba não é o mesmo que teria valor dentro uma valorização da contingência e procura realizar a
das Academias. O que poderia significar chamar Noel tarefa hegeliana de traduzir seu tempo em pensamen-
Rosa de “filósofo do samba”? É comum que se subli- to.
nhe a distância entre o sentido da atividade filosófica Noel Rosa compôs a canção “Filosofia” em
praticada na direção da ciência, investigando os fun- 1933. Mas ela só alcançou sucesso quando foi regra-
damentos do conhecimento, da ética, da política, da vada por Chico Buarque, em seu álbum Sinal Fechado,
estética etc.; do uso vulgar e trivial da palavra filosofia, de 1974. Na época, Chico tinha suas composições su-
como quando um técnico de futebol fala em “filosofia mariamente censuradas pela Ditadura, por isso, além
de jogo”, ou uma empresa fala de sua “filosofia de tra- de assinar suas composições com outros nomes, gra-
balho” etc. Entretanto, ao preservar a distância entre o vou um disco com composições de outros autores. Por
uso técnico da palavra “filosofia” e a sua utilização na meio deste expediente, driblou a censura, já que esco-
linguagem ordinária, como se tratasse de uma separa- lheu canções que sinalizavam claramente sua oposição
ção radical entre realidade e aparência, a atividade filo- à Ditadura.
sófica não perde sua vinculação com o cotidiano? Tal- “Filosofia” começa justamente situando a po-
vez seja em parte devido a essa distância que, quando sição do “eu-lírico” no mundo e como ele (não) é reco-
alguém diz que o outro está “filosofando”, geralmente nhecido:
faz isso com um sentido pejorativo, como se estivesse
fugindo da tentativa de solucionar um problema, dire- O mundo me condena
cionando-se para abstrações sem valor prático. Aliás, E ninguém tem pena
é um clichê ouvir quem tenta explicar “o que é Filoso- Falando sempre mal
fia” afirmar que esta não “serve para nada” e que nesta do meu nome
inutilidade reside seu valor. Não é este o caminho que Deixando de saber
vou tomar. Se eu vou morrer de sede
É claro que é preciso Ou se vou morrer de fome.
diferenciar o significado de
um termo de acordo com
seu contexto, assim muito Ele recebe o julgamento social, é condenado,
daquilo que é visto como tal como Sócrates. Porém, seu destino brasileiro não é
um uso errado pode ser o de beber um veneno, mas sofrer ante o desinteresse
compreendido com uma daqueles que o caluniam e não se importam com o seu
dose maior de caridade fim. A ameaça de morte por falta de alimento é sinto-
interpretativa. Neste traba- ma da desigualdade cínica de uma sociedade viciada
lho, proponho a tentativa em práticas clientelistas, em que os mais pobres são es-
de entender o que seria a timulados a esperar o favor dos ricos. O remédio para
12 “filosofia do samba” de
Noel Rosa analisando sua
essa situação aparece na segunda parte da canção:

canção “Filosofia”. A deci- Mas a filosofia


são de “levar a sério” o que poderia significar o termo Hoje me auxilia
filosofia neste contexto já indica que a concepção que A viver indiferente assim.
tenho da atividade filosófica se aproxima de uma críti- Nesta prontidão sem fim
ca cultural mais do que de uma procura de fundamen- Vou fingindo que sou rico
tos atemporais e livres de qualquer contexto. Vou me Para ninguém zombar de mim.

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A filosofia fornece o expediente para que o po- aqueles que não precisam trabalhar durante todo seu
eta-cantor não se deixe levar pelo que “dizem” e per- dia na busca pela sobrevivência. Ao fingir que é rico e
maneça (também) inabalável ante a “prontidão” sem não se entregar ao mundo do trabalho, o “eu-lírico” ga-
fim. Ele resiste ao impessoal, do sujeito indeterminado rante o tempo de ócio que lhe permite a abertura para
que é todos e não é ninguém determinado: a filosofia o pensar. Mas há neste “fingimento” não uma mera inau-
vacina do que “se” diz, o que “se” faz, o que “se” julga tenticidade ou ironia.
correto. Por outro lado, a palavra “prontidão” indica Aristóteles coloca nos extremos entre a pessoa
aquele que está atento, preparado para desenvolver que age com veracidade aqueles que exageram seu
uma atividade; em sentido militar, designa aquele sol- próprio valor com soberba (alazoneia) e os que dissimu-
dado que está de serviço ou o estado de alerta de uma lam, por meio da ironia, a falsa modéstia (c.f. Aristóte-
unidade militar; mas também é uma gíria para a situa- les, Ética a Nicômaco,1108a20-22). Platão se valeu destes
ção de quem está sem dinheiro. No primeiro sentido, a dois termos, que antes faziam parte da comédia grega,
prontidão é uma “abertura”, uma forma de receptivi- para construir o discurso filosófico. Por um lado, utili-
dade. Seria a abertura que permite encontrar o próprio zou a soberba (alazoneia) para caracterizar os sofistas,
“eu” enfrentando a inautenticidade do que impessoal- uma vez que estes, retoricamente, tentavam aparentar
mente “dizem” sobre seu nome? ter um saber que não possuíam. É verdade que Aristó-
Ora, esta prontidão também é uma pobreza, fanes, em sua comédia As nuvens, toma a soberba como
despojamento que é muitas vezes relacionado com a característica do jovem Sócrates. Contudo, a descrição
possibilidade da atividade filosófica.Para não citar fi- que Platão fez de Sócrates, caracterizando-o pela iro-
lósofos europeus, recorro novamente àqueles que, de nia, é que moldou a máscara turva por trás da qual se
modo pioneiro, tentaram inventar uma filosofia na esconde o protótipo da vida filosófica. É controverso o
América. No Walden, Henry David Thoureau (1817- significado da ironia socrática, mas ela o aproxima da
1862) se dirige aos estudantes pobres conclamando figura folclórica do herói trapaceiro, que, apesar de sua
seus conterrâneos a buscar desenvolver um pensa- pobreza, feiura e de afirmar não possuir conhecimento,
mento que se ajuste a sua paisagem. Desgostoso ante com ardil prega peças nos adversários que se afirmam
uma sociedade que se voltava para o comércio e o lu- sábios. Seria ele uma espécie de intelectual trickster.
cro, procura viver junto à natureza de maneira isolada Neste sentido, no cultivo da razão, Sócra-
e despojada para romanticamente buscar a essência da tes possui sua malandragem. Já o malandro-boêmio
vida; acreditava que todos os filósofos seriam marca- precisa inventar subterfúgios para
dos pela ausência de bens exteriores, o que contrastaria sobreviver à margem do sistema
com sua riqueza interior. Para Thoureau, de classes, resistindo àqueles que
possuem o poder, aproximando-se
Ninguém pode ser um observador imparcial ou sábio da parcialmente da figura do malan-
vida humana a não ser da perspectiva que nós devería- dro. Porém, ao afirmar-se “filóso-
mos chamar de pobreza voluntária. O fruto de uma vida fo” ou alguém que faz uso prático
de luxo é o luxo, seja na agricultura, no comércio, na li-
teratura ou na arte. Atualmente existem professores de
filosofia e não filósofos. Mesmo assim é admirável pro-
da filosofia, o malandro poderia ser
acusado de soberba, já que atribui a 13
fessar, pois um dia foi admirável viver. Ser filósofo não é si mesmo um saber que não possui,
simplesmente ter pensamentos sutis, nem mesmo fundar no entanto há aqui, de modo mais
uma escola, mas amar a sabedoria a ponto de viver de proeminente, a ironia de quem é visto como pária e
acordo com seus ditames, uma vida de simplicidade, in- procura refúgio ante o julgamento da maioria através
dependência, generosidade e confiança. É resolver alguns de um discurso que seria próprio da aristocracia do
problemas da vida, não apenas teoricamente e sim na conhecimento. Armado desta “soberba ironia”, Noel
prática (Walden, 2012: p.27-28). pode exercer sua “autêntica inautenticidade” fingin-
do-se rico, fazendo sua diferença ao perceber e denun-
Já Emerson pensava que a pobreza da Amé- ciar/resistir à sina de pobreza da maioria. Ele resiste ao
rica de seu tempo, quando comparada à riqueza da conformismo. Por isso a marginalidade da condição de
Europa, indicava a necessidade e a oportunidade para pária não o assusta:
que criassem a si mesmos, cultivando a sabedoria para
diferenciar “o que é seu daquilo que é do outro”. A Não me incomodo
paisagem desolada também seria habitada por Deus, Que você me diga
enquanto “a necessidade cria, no âmbito moral, a vir- Que a sociedade
tude capital dá confiança em si. Precisamos nos afer- É minha inimiga.
rar a essa pobreza, por mais escandalosa que ela seja e, Pois cantando neste mundo
através de autorrecuperações mais vigorosas, após as Vivo escravo do meu samba
tomadas de ação, possuir o nosso eixo com mais firme- Muito embora vagabundo.
za” (Emerson, 1997: p.145).
A filosofia, na descrição de Noel Rosa, propor- Ora, segundo a descrição que Platão faz na
ciona o auxílio para fingir que é rico. Ora, já Aristóteles República, se quisermos formar uma sociedade em que
considerava que o pensamento seria fruto do ócio e, a justiça seja preservada, nela não deve haver espaço
por isso, uma possibilidade que se abre somente para para poetas, porque estes tendem a estimular não a

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nossa racionalidade, mas o comportamento imitativo geralmente tomamos a palavra “vagabundo” como
(mimetikos) que nos levaria á inautenticidade, mimeti- sinônimo de malandro, alguém sem valor, no entan-
zando comportamentos e atitudes sem levar em conta to o termo designa originalmente a condição errante
suas qualidades morais ou a responsabilidade que te- de quem vaga sem ter um pouso fixo. Uma das coi-
mos por estes atos. Os motivos pelos quais Platão ex- sas que Platão censura nos poetas e nos sofistas é que
pulsa os poetas de sua cidade ideal seriam os mesmos estes mantinham uma vida de errante, não se fixando
que levam hoje alguns a condenar a cultura de massa em uma cidade e, deste modo, não se comprometendo
(c.f. Nehamas, 1988). O poeta estimularia a parte iras- com a ordenação social. O malandro resiste ao siste-
cível da alma, aquela que busca satisfação imediata; ma de classes e o subverte, desafiando o que nele seria
ao passo que o comportamento sensato e calmo que marca de valor e poder. A letra de “Filosofia” se fecha
se mantém sempre igual a si mesmo não se presta a incitando:
ser facilmente imitado nem entendido pelas multidões
reunidas nos festivais (República, 604e, 1-5). Por conta Quanto a você
desta postura que se guia pelo contingente e não pela Da aristocracia
razão eterna e imutável, os poetas seriam inimigos de Que tem dinheiro
uma sociedade que quer manter sua estabilidade. Mas não compra alegria
Ora, Noel Rosa viveu em um momento em que Há de viver eternamente
a canção popular adquiria as características do produ- Sendo escrava desta gente
to de massa, com a ampliação dos números de estações Que cultiva hipocrisia.
de rádio e a transformação dos compositores em profis-
sionais. Do mesmo modo, presenciou os primeiros pas- Se como queria Oswald de Andrade é a alegria
sos do cinema do país, bem como dele participou. Não a prova dos nove, é com esta “moeda” que Noel nego-
tomava nenhum destes meios como intrinsecamente cia. Ao cultivar o samba, teria mais chances para ser
perniciosos, mas também questionava a propagação de feliz do que os aristocratas. Estes últimos haveriam de
atitudes imitativas, como daqueles que procuravam se “viver eternamente” como escravos “dessa gente que
comportar como personagens de cinema (ver “Tarzan, cultiva hipocrisia”. Ora, quem é essa gente que “cul-
o filho do costureiro”) ou substituir a língua brasilei- tiva hipocrisia”? Uma resposta possível é atribuir este
ra pelo inglês (como em “Não tem tradução”, quando comportamento aos filósofos (e religiosos) que plato-
diz: “Tudo aquilo que o malandro pronuncia/Com voz nicamente se voltam para a “eternidade”, perdendo a
macia,/ É brasileiro,/ já passou de português”). No en- própria vida.
tanto, não é a invasão do que é estrangeiro o grande O samba em Noel Rosa seria uma forma su-
problema, já que os próprios brasileiros, segundo Noel blime que nasce do corpo, um “feitiço sem farofa” que
em “Quem dá mais”, estão dispostos a vender o que há aponta para um horizonte utópico, desenvolvendo
de mais autêntico em nossa cultura. O inimigo maior uma crítica irônica a sua sociedade. Para alguns, a iro-
talvez fosse essa falta de um sentido comum, uma pro- nia é um recurso para deixar as coisas como estão, e
cura por uma dimensão nacional que marcaria a MPB. não alimentar o impulso efetivamente revolucionário.
Em verdade, os modernistas procuravam celebrar o De modo diferente, interpreto a ironia de Noel como
que seria autenticamente brasileiro; neste sentido, a uma forma de resistência que celebra possibilidades
invenção do samba como um produto genuinamente diferentes de vida. Neste sentido profético de crítica
nacional tornou este ritmo o mensageiro de uma forma cultural, o filósofo do samba continua tendo muito
de modernismo que valorizava a mestiçagem e certas para nos ensinar, assim como, dada a importância que
formas de sociabilidade que normalmente seriam con- a canção popular tem em nossa cultura, pensá-la é um
sideradas sintomas de atraso cultural (c.f. Viana, 1995). caminho para colocar em questão muitos discursos
Noel Rosa foi o “bacharel” que cantou a Utopia do sam- que tacitamente utilizamos como fundamento de nos-
ba; numa entrevista de 1935, explicava em resposta à sas práticas cotidianas no que elas têm de mais trivial.
polêmica causada pela canção “Não tem tradução”: “A É certo que a filosofia não pode somente se prender ao
princípio o samba foi combatido. Era considerado dis- sublime inarticulado: é preciso entrar no jogo de pedir
tração de vagabundo. Mas estava bem falado. Desceu e dar razões, questionar pressupostos e transformar o
do morro, de tamancos, com lenço no pescoço, vagou anseio utópico em projetos efetivos. Quem sabe pos-
pelas ruas com um toco de cigarro apagado no canto samos com a filosofia tentar pensar nosso país, nossa
da boca e, de repente, ei-lo de fraque e luva branca nos cultura e, além de traduzir nosso tempo, manter a es-
salões de Copacabana. Mas o companheiro do samba é perança em um futuro melhor.
o violão, que já obteve também a sua vitória definitiva. P
14 O samba é a voz do povo. Sem gramática, sem artifí-
cio, sem preconceito, sem mentira”.
Noel Rosa não se incomoda de ser considerado * Marcos Carvalho Lopes é professor de Filosofia na
um inimigo da boa sociedade, já que sua autenticida- UNIRIO, doutorando no PPGF/UFRJ e bolsista da CA-
de não está em seguir uma racionalidade impessoal, PES. Autor de Canção, estética e política: ensaios legioná-
mas sim em cultivar seu canto. O samba ocupa o lugar rios (Mercado de Letras, 2012).
da razão, e é a ele que o autor se submete como escra-
vo, embora tendo a liberdade de um vagabundo. Ora,

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Referências bibliográficas: E também faleceu por seu pescoço
O infeliz autor da guilhotina de Paris
CAVELL, Stanley. Esta América nova, ainda inabordável. Pales-
tras a partir de Emerson e Wittgenstein. Trad. Heloisa Toller Vai, orgulhosa, querida
Gomes. São Paulo: Editora 34, 1997. Mas aceita esta lição:
EMERSON, R. W. “O letrado norte-americano”. In: Ensaios.
No câmbio incerto da vida
Tradução de José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1966 p.11–
33. Disponível em: http://www.ufrgs.br/cdrom/emerson/
A libra sempre é o coração
emerson.pdf Consultado em 09/08/2012.
LEAR, J. Allegory and mith in Plato’s Republic. In: SANTAS, O amor vem por princípio, a ordem por base
G. The Blackwell Guide to Plato’s Republic. Oxford: Blackwell, O progresso é que deve vir por fim
2006. Desprezastes esta lei de Augusto Comte
LOPES, Marcos Carvalho. “Em cima das árvores: a filosofia E fostes ser feliz longe de mim
e o restante da cultura”. Trilhas Filosóficas. Ano IV, número 1,
jan.-jun. 2011. O amor vem por princípio, a ordem por base
NEHAMAS, Alexander. “Plato and the Mass Media”. The
O progresso é que deve vir por fim
Monist, 71, 1988. pp. 214-234
RORTY, R. Consequências do pragmatismo: ensaios 1972-1980.
Desprezastes esta lei de Augusto Comte
Lisboa: Instituto Piaget, 1999. E fostes ser feliz longe de mim
WEST, Cornel. La evasion americana de la filosofia: una genealogí-
adel pragmatismo. Trad. Daniel Blanch. Madrid: Complutense, Vai, coração que não vibra
2008. Com teu juro exorbitante
THOREAU, H. D. Walden.Trad. Denise Bottmann. Porto Ale- Transformar mais outra libra
gre: L&PM, 2012. Em dívida flutuante
VIANA, Hermano. O mistério do samba. 2ª Ed. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editora, 1995. A intriga nasce num café pequeno
Que se toma pra ver quem vai pagar
Para não sentir mais o teu veneno
Foi que eu já resolvi me envenenar
Filosofia
Noel Rosa

O mundo me condena, e ninguém tem pena


Falando sempre mal do meu nome
Deixando de saber se eu vou morrer de sede
Ou se vou morrer de fome
Mas a filosofia hoje me auxilia
A viver indiferente assim
Nesta prontidão sem fim 15
Vou fingindo que sou rico
Pra ninguém zombar de mim
Não me incomodo que você me diga
Que a sociedade é minha inimiga
Pois cantando neste mundo
Vivo escravo do meu samba, muito embora va-
gabundo
Quanto a você da aristocracia
Que tem dinheiro, mas não compra alegria
Há de viver eternamente sendo escrava dessa
gente
Que cultiva hipocrisia

Positivismo
Noel Rosa

A verdade, meu amor, mora num poço


É Pilatos lá na Bíblia quem nos diz
E também faleceu por seu pescoço
O autor da guilhotina de Paris

A verdade, meu amor, mora num poço


É Pilatos lá na Bíblia quem nos diz

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O método estruturalista e o
ensino da filosofia na
pós-graduação brasileira
por Paulo Margutti*
UFMG/FAJE
“Não sou filósofo, mas sei explicar um texto”. fico de suas raízes históricas e das idiossincrasias de
Essa frase é de Arthur Giannotti, um dos mais conhe- seu autor, para concentrar-se na descrição de sua coe-
cidos filósofos brasileiros. Ela expressa, ao mesmo rência interna.
tempo, uma excessiva modéstia quanto à própria ca- Quanto a Goldschmidt, ele afirma que há dois
pacidade de filosofar e uma opção por uma postura métodos interpretativos para os textos filosóficos: o his-
filosófica voltada para a exegese de textos. Essa frase tórico e o lógico. O primeiro deles busca as causas do
reflete uma tendência profundamente entranhada em sistema filosófico, explicando o sistema para além das
nossa prática filosófica: uma autoimagem negativa as- intenções de seu autor. O método histórico introduz o
sociada ao comentário de textos de pensadores estran- tempo histórico na consideração do sistema, tornando
geiros. É verdade que Giannotti, com o tempo, deixou o intérprete uma espécie de analista desse mesmo sis-
de lado a explicação de textos e se tornou filósofo, ao tema. Já o método lógico é eminentemente filosófico,
publicar obras que expressam um pensamento autôno- pois aborda o sistema de conformidade com as inten-
mo. Mas ele é uma exceção no quadro geral da pós- ções de seu autor. Essa abordagem faz abstração do
-graduação brasileira, toda ela marcada pela timidez tempo histórico, vendo o sistema filosófico como uma
quanto à reflexão crítica e pela ênfase exagerada na doutrina e um método articulados pela ordem das ra-
exegese de textos. Nesse artigo, procuraremos mostrar zões. O intérprete, aqui, é um discípulo do sistema. Na
as origens dessa tendência, bem como o estágio em que abordagem de Goldschmidt, o filósofo é um historia-
nos encontramos, muitos anos depois da implantação dor da filosofia que assimila estruturas filosóficas atra-
do ensino de pós-graduação em filosofia no país. vés de habilidades exegéticas sofisticadas. E o uso des-
Nossa história re- sas mesmas habilidades certamente dá a impressão de
monta a 1934, data da cria- que finalmente o trabalho filosófico alcançou um nível
ção do Departamento de Fi- próximo daquilo que poderíamos chamar de científico.
losofia da USP, que coincide Mas o preço a ser pago por essa postura está na ênfase
com os inícios dos estudos na postura exegética, em detrimento do pensamento
pós-graduados em filosofia autônomo. Para Goldschmidt, porém, não se trata de
entre nós. Ora, praticamen- acabar com a originalidade em filosofia. O importante
te desde o seu nascimento, o é prepará-la através do exercício dessa disciplina pré-
ensino de pós-graduação em via.
filosofia na USP foi marca- Os dois professores franceses não escreveram
do por uma forte influência para o caso específico do Brasil, mas as suas ideias, em
inicial francesa e pelo desen- especial as de Goldschmidt, adaptavam-se muito bem
volvimento de um método à nossa situação. Com efeito, essa última se caracteriza-
estruturalista para análise de va pelo desenvolvimento e estabelecimento, numa par-
textos. Os principais autores te da intelectualidade brasileira, de uma autoimagem
Arthur Giannotti franceses que exerceram in- negativa com respeito à nossa capacidade de fazer filo-
fluência no departamento de fi- sofia. Contra toda evidência histórica, principalmente
losofia e que ministraram cursos lá foram Martial Gué- aquela proveniente do século XIX, Tobias Barreto afir-
roult e Victor Goldschmidt. Vejamos alguns aspectos mou categoricamente que o brasileiro não tem cabeça
das ideias de ambos. filosófica. Ele foi seguido, nessa visão enviesada, por
Guéroult valoriza o exame interno do sistema autores como Sílvio Romero, Leonel Franca e Cruz
filosófico, buscando a ordem das razões no seu interior. Costa. Esse último era professor no Departamento de

16
Ele se coloca contra a vivência subjetiva, que constitui Filosofia da USP e, com sua tese sobre a história das
o fulcro da fenomenologia e do existencialismo. Com ideias no Brasil, posteriormente publicada sob a forma
base nessas ideias, Guéroult nega a diacronia, em bene- de livro, afirma que somos herdeiros dos lusitanos, um
fício da sincronia. Ele pensa que a história da filosofia povo pragmático, voltado para a ação, e que, em ter-
não é um sistema e que não existe “a” filosofia, e sim mos filosóficos, nada mais fizemos do que modificar
“filosofias”. Daí o seu interesse por cursos monográfi- selvagemente as filosofias estrangeiras, na tentativa de
cos, em oposição aos cursos panorâmicos. O cerne do adaptá-las aos nossos próprios problemas. Somos auto-
método gueroultiano está em separar o sistema filosó- didatas imaturos, amantes da novidade e estabanados

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teoricamente. Desse modo, nunca seremos capazes de estrangeiros. Fato curioso nesse processo é que o pró-
criar autonomamente sistemas filosóficos aceitáveis. prio Porchat, do mesmo modo que Giannotti, não su-
A autoimagem negativa elaborada por Cruz cumbiu à tentação da mera interpretação estruturalista
Costa era, de algum modo, partilhada por outros pro- de textos, optando pela reflexão crítica pessoal e desen-
fessores do Departamento de Filosofia da USP, como volvendo uma escola de pensamento conhecida atual-
Oswaldo Porchat, que fez seu doutorado com Golds- mente como neopirronismo. Mesmo assim, ele parece
chmidt na França. Isso levou Porchat a conceber uma nunca ter deixado de acreditar que a leitura adequada
proposta de ensino de filosofia que combina essa au- dos textos filosóficos se faz por meio do método lógico
toimagem com o método estruturalista, através de um de Goldschmidt.
raciocínio que poderia ser colocado nos seguintes ter- A consequência disso tudo para a pós-gra-
mos: se até agora a história mostrou que somos autodi- duação em filosofia em nosso país está em que ela se
datas imaturos, filoneístas e pouco dados à especulação iniciou e desenvolveu segundo as diretivas do que
abstrata, nada mais adequado para o ensino da filoso- poderíamos chamar de “Nova Escolástica Brasileira”.
fia no país do que disciplinar academicamente essa Essa última se baseia na combinação da mencionada
nossa imaturidade através do método exegético estru- autoimagem negativa com o método estruturalista e,
turalista, já que esse último nos oferece uma postura nesse retorno à exegese, não só repete uma tendência
científica, que nos capacitará a mover-nos com segu- histórica ibérica, mas também lhe dá uma nova face,
rança pelos meandros das abstrações metafísicas. Ado- repetindo, assim, o antigo procedimento lusitano de
tando essa postura científica por um tempo suficiente, colocar vinho velho em garrafa nova. A tendência his-
adquiriremos as condições de, no futuro, criar algo te- tórica que está sendo repetida é a do comentário esco-
oricamente adequado em termos filosóficos. Para que lástico de textos, muito bem caracterizada pela expres-
nos tornemos maduros intelectualmente, teremos de são “Segunda Escolástica Portuguesa”, a qual se refere
optar pela leitura disciplinada dos clássicos da filoso- ao período da filosofia lusitana que, em plena Idade
fia, enfatizando a exegese dos textos em detrimento da Moderna, ignorou as revoluções científica e cartesiana,
postura crítica em relação a eles. Isso equivale a sobre- retornando ao comentário dos textos aristotélicos. A
por o rigor da interpretação à reflexão criativa. Daí a nova face que caracteriza a escolástica brasileira está
necessidade de repressão, ao menos durante essa fase no fato de que, no século XX, o comentário não se apli-
probatória, das tentativas de criação pessoal por parte ca apenas aos escritos aristotélicos, mas se estende aos
dos alunos, tentativas essas a serem classificadas ne- mais variados textos da tradição filosófica europeia e
gativamente como formas de “achismo”. Daí também norte-americana. Mesmo assim, ainda se trata do velho
a importância conferida aos cursos monográficos, que comentário de tipo escolástico, que reduz o filosofar à
permitem concentrar a atenção num texto específico de explicação detalhada do texto clássico estrangeiro e
um autor específico. E as pesquisas filosóficas passam que marcou não só a filosofia praticada nas universi-
a ser direcionadas ao estudo detalhado de um determi- dades portuguesas do período colonial, mas também
nado problema num determinado aquela praticada nas universidades brasileiras desde
autor.
Essa proposta didática, ini-
sua criação no século XX.
Essa situação perdurou entre nós até aproxi- 17
cialmente implantada na USP, aca- madamente 1994, quando Paulo Arantes publicou o
bou por espalhar-se pela maioria livro Um Departamento Francês de Ultramar. Ali, esse
dos cursos de pós-graduação em autor faz uma lúcida autocrítica da proposta didáti-
filosofia do país, sobre eles exer- ca uspiana, mostrando o elevado preço em termos de
cendo influência até hoje. Ela nor- alienação e de ausência de reflexão crítica por parte
teia, inclusive, os critérios da CA- dos pesquisadores formados de acordo com os prin-
PES para avaliação dos cursos de cípios dela. Quatro anos depois, em 1998, foi a vez do
Oswaldo Porchat pós-graduação em filosofia e, por próprio Porchat, que, num famoso discurso proferido
vezes, até mesmo os critérios do aos estudantes da USP, fazia também uma autocrítica,
CNPq para a concessão de apoio embora em termos bem mais moderados que os de
financeiro a projetos. De certa forma, essa proposta Paulo Arantes. Mais ou me-
didática parece ter-se interiorizado de tal modo num nos na mesma época, diversos
grande número de pesquisadores de nossa comuni- membros da comunidade filo-
dade filosófica que eles a praticam sem terem refleti- sófica brasileira começaram a
do adequadamente sobre suas origens teóricas e sua discutir o problema, a partir da
validade para nossa circunstância histórica. O maior oposição entre filosofia e histó-
problema está no fato de que essa proposta didática ria da filosofia: o filósofo deve
contribui grandemente para a ausência de polêmica ser um pensador autônomo ou
filosófica entre nós e para a marginalização dos pensa- um mero historiador do pensa-
dores brasileiros autônomos, que, com raríssimas exce- mento alheio? Esse tema foi ob-
ções, são considerados desmerecedores da atenção de jeto de discussão em encontros
seus colegas. E o resultado disso é a formação de um de pesquisadores promovidos
exército de comentadores de textos, que não discutem pela ANPOF e pela CAPES, re-
entre si e que só se interessam por pensadores clássicos Paulo Arantes percutindo por vezes nas reu-

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niões do comitê assessor da área de filosofia do CNPq. tornando-se cada vez mais concreta a possibilidade de
Apesar disso, o debate não avançou em direção a uma uma decidida opção pela reflexão crítica autônoma en-
solução, mantendo-se o status quo pedagógico relativo tre nós. Mas muita coisa ainda precisa ser feita para
à filosofia no país. atingirmos esse objetivo. Ele só será atingido se partir-
Em que pese a sua sobrevivência até os dias de mos para uma crítica rigorosa tanto da nossa autoima-
hoje, a Nova Escolástica Brasileira tem mostrado sinais gem negativa quanto do método exegético estruturalis-
de perda de vitalidade. As autocríticas de Paulo Aran- ta, combinando isso com a reintrodução da disciplina
tes e de Porchat e as discussões relativas à alternativa Filosofia no Brasil nos nossos cursos de graduação e
fazer filosofia versus fazer história da filosofia refletem, com a introdução de disciplinas ligadas ao pensamento
de algum modo, a insatisfação da comunidade filosófi- filosófico brasileiro nos nossos cursos de pós-gradua-
ca brasileira em relação à pedagogia uspiana. Essa in- ção. E não podemos nos esquecer da retomada do es-
satisfação, embora ainda tímida, está crescendo e tem tímulo à reflexão crítica pessoal, que deveria constituir
encontrado as mais diversas formas de manifestação uma motivação básica já nos cursos de graduação em
em encontros de filosofia por todo o país. Além dis- filosofia. Na verdade, ela constitui uma condição sine
so, um número crescente de pesquisadores brasileiros qua non para a formação de pesquisadores autônomos.
tem deixado de lado a mera interpretação de textos e Somente com essas providências seremos capazes de
caminhado decididamente em direção à elaboração estimular o pensamento filosófico independente entre
de perspectivas pessoais, participando, inclusive, de nós. O desafio está colocado à nossa frente: só falta ter-
debates com seus colegas. Parece que as pessoas estão mos a coragem de agir em direção a essa imprescindí-
percebendo que, se de fato foi algum dia realmente vel e tardia mudança pedagógica na pós-graduação em
necessário, o tempo exigido para “disciplinar” a nossa filosofia no país.
imaturidade e paixão pela novidade já chegou ao fim, P
* Paulo Margutti é professor da UFMG e da FAJE. Tam-
bém é lider do grupo FIBRA.

… não é enquanto está ‘no meio’ de meu mundo que o outro me olha, mas é enquanto
ele vem em direção ao mundo e a mim com toda sua transcendência, é enquanto ele
18 não está separado de mim por distância alguma, por objeto algum do mundo, nem
real, nem ideal, por nenhum corpo do mundo, mas pela sua única natureza de outrem
(SARTRE, J.-P. L’être et le néant. Paris: Gallimard, 2003, p. 309).

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Fanatismo e preconceitos

por François-Marie Arouet Voltaire (1694–1778)

FANATISMO corta em pedaços o rei


Fanatismo é para a superstição o que o delírio Agague. Eles não veem
é para a febre, o que é a raiva para a cólera. Aquele que esses exemplos
que tem êxtases, visões, que considera os sonhos como respeitáveis para a an-
realidades e as imaginações como profecias é um entu- tiguidade são abomi-
siasta; aquele que alimenta a sua loucura com a mor- náveis na época atual;
te é um fanático. João Diaz, retirado em Nuremberg, eles haurem seus furo-
firmemente convicto de que o papa é o Anticristo do res da mesma religião
Apocalipse e que tem o signo da besta, não era mais que os condena.
que um entusiasta; Bartolomeu Diaz, que partiu de As leis são ain-
Roma para ir assassinar santamente o seu irmão e que da muito impotentes
efetivamente o matou pelo amor de Deus, foi um dos contra tais acessos de
mais abomináveis fanáticos que em todos os tempos raiva; é como se lêsseis
pôde produzir a superstição. Polieuto, que vai ao tem- um aresto do Conselho
plo num dia de solenidade derrubar a destruir as está- a um frenético. Essa gente está persuadida de que o
tuas e os ornamentos, é um fanático menos horrível do espírito santo que os penetra está acima das leis e que
que Diaz, mas não menos tolo. Os assassinos do duque o seu entusiasmo é a única lei a que devem obedecer.
Francisco de Guise, de Guilherme, príncipe de Orange, Que responder a um homem que vos diz que
do rei Henrique III, do rei Henrique IV e de tantos ou- prefere obedecer a Deus a obedecer aos homens e que,
tros foram energúmenos enfermos da mesma raiva de consequentemente, está certo de merecer o céu se vos
Diaz. degolar?
O mais detestável exemplo de fanatismo é De ordinário, são os velhacos que conduzem
aquele dos burgueses de Paris que correram a assassi- os fanáticos e que lhes põem o punhal nas mãos: as-
nar, degolar, atirar pelas janelas, despedaçar, na noite semelham-se a esse Velho da Montanha que fazia - se-
de São Bartolomeu, seus concidadãos que não iam à gundo se diz - imbecis gozarem as alegrias do paraíso e
missa. Há fanáticos de sangue frio: são os juízes que
condenam à morte aqueles cujo único crime é não pen-
que lhes prometia uma eternidade desses prazeres que
lhes havia feito provar com a condição de assassinarem
19
sar como eles; e esses juízes são tanto mais culpados, todos aqueles que ele lhes apontasse. Só houve uma
tanto mais merecedores da execração do gênero hu- religião no mundo que não foi abalada pelo fanatis-
mano, quanto, não estando tomados de um acesso de mo, é a dos letrados da China. As seitas dos filósofos
furor como os Clément, os Chatêl, os Ravaillac, os Gé- estavam não somente isentas dessa peste como cons-
rard, os Damien, parece que poderiam ouvir a razão. tituíam o remédio para ela: pois o efeito da filosofia é
Quando uma vez o fanatismo gangrenou um tornar a alma tranquila e o fanatismo é incompatível
cérebro a doença é quase incurável. Eu vi convulsioná- com a tranquilidade. Se a nossa santa religião tem sido
rios que, falando dos milagres de S. Páris, sem querer frequentemente corrompida por esse furor infernal, é à
se acaloravam cada vez mais; seus olhos encarniça- loucura humana que se deve culpar.
vam-se, seus membros tremiam, o furor desfigurava Assim, das asas que teve, Ícaro perverteu o
seus rostos e teriam morto quem quer que os houvesse uso; teve-as para seu bem e as empregou em seu dano
contrariado. (Bertaud, bispo de Séez).
Não há outro remédio contra essa doença epi-
dêmica senão o espírito filosófico que, progressiva-
mente difundido, adoça enfim a índole dos homens, PRECONCEITOS
prevenindo os acessos do mal porque, desde que o mal O preconceito é uma opinião sem julgamento.
fez alguns progressos, é preciso fugir e esperar que o Assim em toda a terra inspiram-se às crianças todas as
ar seja purificado. As leis e a religião não bastam con- opiniões que se desejam antes que elas as possam jul-
tra a peste das almas; a religião, longe de ser para elas gar.
um alimento salutar, transforma-se em veneno nos Existem preconceitos universais, necessários, e
cérebros infeccionados. Esses miseráveis têm inces- que representam a própria virtude. Por toda parte en-
santemente presente no espírito o exemplo de Aode, sina-se às crianças reconhecer um Deus remunerador e
que assassina o rei Eglão; de Judite, que corta a cabeça vingador; a respeitar, a amar seu pai e sua mãe; a con-
de Holoferne quando deitada com ele; de Samuel, que siderar o roubo como um crime, a mentira interessada

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como um vício, antes que elas possam adivinhar o que Preconceitos históricos
vem a ser um vício e uma virtude. A maioria das histórias foram cridas sem exa-
Há, pois, ótimos preconceitos: são os que o jul- me, e essa crença é um preconceito. Fábio Pictor relata
gamento ratifica quando se raciocina. que, muitos séculos antes dele, uma vestal da cidade
Sentimento não é mero preconceito, é alguma de Alba, indo buscar água com o seu cântaro, foi viola-
coisa muito mais forte. Uma mãe não ama a seu filho da e deu à luz a Rômulo e Remo, que eles foram nutri-
porque se lhe disse que o deve amar; ela o quer ex- dos por uma loba, etc. O povo romano acreditou nessa
tremosamente mesmo contra sua vontade. Não é ab- fábula; não perdeu tempo em examinar se naqueles
solutamente por preconceito que correis em socorro de tempos existiam vestais no Lácio, se era possível que a
uma criança desconhecida prestes a cair num precipí- filha de um rei saísse de seu convento com seu cântaro,
cio ou a ser devorada por uma fera. se era provável que uma loba amamentasse dois me-
É, porém, por preconceito que respeitareis um ninos em vez de os comer como fazem todos os lobos.
homem revestido de certos hábitos, andando grave- Estabelece-se, então, o preconceito.
mente, falando da mesma forma. Vossos pais vos disse- Um monge escreveu que Clovis, estando num
ram que devíeis inclinar-vos diante desse homem: vós grande perigo na batalha de Tolbiac, fez voto de se tor-
o respeitais antes de saber se merece vossos respeitos; nar cristão se conseguisse escapar; é porém natural que
cresceis em idade e conhecimentos – percebeis que esse uma pessoa se dirija a um deus estrangeiro em tal oca-
homem é um charlatão empedernido de orgulho, de sião? Não é precisamente num momento desses que a
interesse e artifício; desprezais o que reverenciáveis, e religião na qual se nasceu age mais fortemente? Qual é
o preconceito cede lugar ao julgamento. Acreditastes o cristão que, numa batalha contra os turcos, não se di-
por preconceito nas fábulas com que embalaram vos- rigirá antes à Santa Virgem que a Mafoma? Acrescenta-
sa infância; disseram-vos que os titãs moveram guer- -se que um pássaro levou a santa ampola em seu bico
ra aos deuses e que Vênus foi amante de Adónis; aos a fim de ungir Clovis e que um anjo trouxe a auriflâ-
doze anos tomastes tais fábulas por verdades, agora, mula para o conduzir. O preconceito crê em todas as
aos vinte anos, como alegorias engenhosas. historietas desse gênero. Os que conhecem a natureza
Examinemos em poucas palavras as diferentes humana sabem que o usurpador Clovis e o usurpador
espécies de preconceitos, a fim de pôr nossos negócios Rolão ou Rol se tornaram cristãos para governar mais
em ordem. Seremos, talvez, como aqueles que, no tem- seguramente a cristãos, como os usurpadores turcos
po do sistema de Law, perceberam que tinham calcula- se tornaram muçulmanos para governar mais segura-
do riquezas imaginárias. mente os muçulmanos.

Preconceitos dos sentidos Preconceitos religiosos


Não é curioso que nossos olhos nos enganem Se vossa sina vos contou que Ceres preside ao
sempre, mesmo quando temos a melhor vista do mun- trigo ou que Vichnú e Xaca se transformaram em ho-
do, e que, ao contrário nossos ouvidos, não nos enga- mens várias vezes, ou que Samonocodom veio destruir
nem nunca? Se vosso ouvido bem conformado ouvir: uma floresta, ou que Odin vos espera em sua sala lá na
“Sois bela, eu vos amo,” estais bem certa de que não Jutlândia, ou que Mafoma ou outro qualquer fez uma
vos disseram: “Odeio-vos, sois feia”. Mas vedes um es- viagem ao céu; enfim se vosso preceptor vem em segui-
pelho liso: está demonstrado que vos enganais, é uma da refundar em vosso cérebro o que vossa ama aí gra-
superfície muito desigual. Vedes o Sol com mais ou vou, tendes com que vos divertir para o resto da vida.
menos dois pés de diâmetro: está demonstrado que ele Vosso julgamento quer elevar-se contra tais preconcei-
é um milhão de vezes maior do que a Terra. tos; vossos vizinhos, e sobretudo vossas vizinhas, ber-
Parece que Deus tenha posto a verdade em ram contra a impiedade, e vos assustam; vosso dervís,
vossos ouvidos e o erro em vossos olhos; estudai, po- temendo ver diminuídas as suas rendas, denuncia-vos
rém, a ótica, vereis que Deus não vos enganou de for- ao cadi, e esse cadi vos manda empalar se o puder, por-
ma alguma, e que é impossível que os objetos vos pare- quanto o seu desejo é mandar sobre idiotas, e crê que os
çam diferentes do que os podeis ver no estado presente idiotas obedecem melhor do que os outros. E esse esta-
das coisas. do de coisas durará
até que vossos vi-
Preconceitos físicos zinhos e o dervís e
O Sol se ergue, a Lua também, a Terra está o cadi comecem a
imóvel: eis aí preconceitos físicos naturais. Mas que as compreender que a
lagostas sejam boas para o sangue, pois estando cozi- cretinice não serve
20 das são vermelhas como ele; que as enguias curem a
paralisia, pois se agitam; que a Lua influa nas nossas
para coisa alguma e
que a perseguição é
doenças, pois um dia observou-se que um doente teve abominável.
um aumento de febre durante o curso da Lua: essas P
ideias, e milhares de outras, são erros de velhos charla-
tães, que julgaram sem raciocinar e que, enganando-se, file:///C|/site/livros_gratis/dicionario_filosofico.htm (102
enganaram os outros. of 185) [19/06/2001 11:46:59]Dicionário Filosófico.

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À procura do outro −
Pequena análise filosófica do
conto “O búfalo”, de Clarice
Lispector
por Marília Murta de Almeida*

As relações entre a filosofia e a literatura confi- Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres e, mais tarde,
guram uma espécie de labirinto em que vários pontos vislumbrei uma temática comum à obra como um todo
de vista podem ser encontrados. Neste texto, parto da que poderia ser o germe para uma pesquisa de douto-
ideia de que a filosofia, ao abordar a obra literária, deve rado – projeto que não realizei, mas cuja semente de
trazer à explicitação filosófica aquilo que na literatura pensamento ainda me instiga. Tal temática seria uma
está implícito. Maria Helena Varela, em seu O hetero- quase antropologia filosófica, em que o ser humano é
logos da língua portuguesa1, usa a noção de filosofema visto como um ser que só se realiza em confronto com
para indicar núcleos de pensamento filosófico implíci- a alteridade, ou seja, um ser que é a partir do que não
tos na obra literária. A análise filosófica, portanto, tem, é. Podemos ver em toda a obra da Clarice um sem fim
diante da obra literária, um vasto campo de trabalho a de personagens às voltas com animais, objetos, vege-
partir dos filosofemas. Se em filosofia nada deve ficar tais, além dos confrontos com o outro humano e com o
implícito, tratemos de explicitar o que há de filosófico Deus. Todo este conjunto de seres forçam os persona-
no campo literário e, assim, trazer ao terreno da filoso- gens centrais a se confrontarem consigo mesmos; são
fia propriamente dita aquilo que lhe pertence: ideias figuras da alteridade com as quais os personagens se
e pensamentos sobre o mundo e a vida. É, portanto, defrontam em busca de si mesmos.
movido pelo velho desejo de conhecer que o filósofo se O conto que temos aqui em mãos nesta peque-
debruça sobre a obra literária – conhecer, mais do que na reflexão é exemplar desta hipótese mais ampla de
a obra estudada, pois este seria o trabalho já realizado compreensão da obra da Clarice. A personagem cen-
pelo crítico literário, o próprio mundo, ou seja, conhe- tral, não nomeada, vai ao jardim zoológico em busca
cer melhor o mundo a partir das ideias extraídas da de algo preciso: que algum animal a ensine a odiar, ou
obra. antes, a ajude a encontrar o ódio em si mesma. Ela es-
pera que o outro animal a faça encontrar algo dentro de
si, forjando, de forma intencional, a dinâmica do reco-
nhecimento de si a partir do outro. 21
Vejamos de perto o conto2.
A primeira frase já nos dá uma indicação do
tom da estória: “Mas era primavera” (126). A adversa-
tiva indica que a primavera não está de acordo com o
que se busca; está-se à procura de uma antítese da pri-
mavera, algo que não se coaduna com flores, nascimen-
to, cores, alegria, enfim, com todo o campo semântico
que normalmente se associa à primavera. Mais abaixo,
ainda no primeiro parágrafo, esta busca se explicita: “...
revoltou-se a mulher tentando encontrar-se com o pró-
prio ódio mas era primavera ...” (126); e somente ao fim
da segunda página, a explicação para a busca de ódio:
queria odiar “um homem cujo crime único era o de não
amá-la” (127).
Com esta primeira entrada no conto, temos a
configuração da cena: uma mulher, rejeitada pelo ho-
mem que ama, quer encontrar o ódio, mas era prima-
vera e esta busca se revela difícil. Para fechar a com-
preensão do que ela procura, temos, na página 131, a
Neste texto me dedico ao conto “O búfalo”, explicação final da busca do ódio: “onde aprender a
de Clarice Lispector, autora frequentemente visitada odiar para não morrer de amor?” Ou seja, o ódio seria
por pesquisadores da filosofia, atraídos pela enorme uma salvação, a libertação do amor que poderia levá-
riqueza de pensamento de sua obra. Eu própria escre- -la à morte. Podemos ver aqui a insinuação da ideia de
vi minha dissertação de mestrado sobre seu romance que o ódio faria uma abertura para o amor de si que

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garante a sobrevivência; o amor inteiramente lançado ser examinada pelo animal, como se fosse ela a enjau-
para fora levaria à morte, e o ódio ao outro seria um lada (130). E solta um gemido que vem do corpo intei-
modo de conter em si o amor necessário à sobrevivên- ro (130). A experiência está em curso, a mulher não se
cia. Mas aqui já estamos caminhando para além do que reconhece mais, ela que busca a si mesma no ódio e vê
o conto nos diz. Voltemos a ele. nascer, mais uma vez, “do ventre” (130) a vontade de
No primeiro movimento do conto, a mulher matar, o quase ódio, a esperança do ódio que a salvaria
fracassa em sua busca de ódio. Tudo o que ela vê é da morte por amor, pois “se aquela mulher perdoasse
amor, doçura, perdão. O leões se lambiam, e isto era mais uma vez, uma só vez que fosse, sua vida estaria
amor (126); a girafa, grande e leve, era inocente e não perdida” (131).
ajudava a encontrar a “doença” do ódio (126); o hipo- E é assim, então, toda preparada para o grande
pótamo, “rolo roliço de carne”, era humilde em sua acontecimento, mas também cansada e sem saber onde
carne que não pensava (127); os macacos, felizes e se encontrar o que buscava, que chega à jaula do búfalo.
amando, só mostravam amor, ainda amor (127); o ele- Com a testa encostada nas grades, abre os olhos deva-
fante, potência de carne que poderia esmagar, mas não gar (132), cansada, e ao mesmo tempo sentindo a pos-
o faz, e ainda tem aquela docilidade no olhar, evocava sibilidade do descanso – descanso do fim da procura
o oriente e as nascentes (128); o camelo evocava a pa- –, e olha o búfalo ao longe, calma. Continua assim por
ciência e, com a paciência, de novo a primavera (128). algum tempo, e era fim de tarde, e fazia silêncio. Até
Diante destas experiências, ela se contrai, cerra os pu- que o búfalo a olha também. E é o olhar do búfalo que
nhos no bolso do casaco marrom (126), cerra os dentes gera o movimento na mulher, o incômodo:
até doer a face (127), mas não encontra o ódio. Chega ao
mal-estar, mas não ainda ao ódio: “No estômago con- E mais uma vez o búfalo pareceu notá-la.
traiu-se em cólica de fome a vontade de matar” (128). Como se ela não tivesse suportado sentir o que sentira,
A vontade de matar se contrai em fome – aqui temos desviou subitamente o rosto e olhou uma árvore. Seu co-
ração não bateu no peito, o coração batia oco entre o estô-
uma ressonância da hipótese colocada acima da rela-
mago e os intestinos.
ção entre o ódio e a sobrevivência: vontade de matar e O búfalo deu outra volta lenta. A poeira. A mulher aper-
fome de algum modo se encontram; a fome, garantia tou os dentes, o rosto todo doeu um pouco (133).
primeira da sobrevivência física de qualquer animal, e
a vontade de matar, garantia simbólica da sobrevivên- É, então, quando se reconhece como o outro
cia frente ao inimigo. Mas tudo isto se configura ainda para o búfalo, deslocando-se da identidade, que con-
como um grande impasse diante do qual ela está sem segue se abrir para a experiência pela qual buscava. A
forças, e então evoca o Deus – “Oh, Deus, quem será mulher, tornada alteridade diante do olhar do animal,
meu par neste mundo?” (128) – e a busca de Deus é a abre-se para a alteridade em si mesma, no jogo para-
busca radical de alteridade. Se nada a ajuda, quem sabe doxal que identidade e alteridade encenam na vida
Ele, o outro absoluto, não pode trazer a solução? de cada pessoa. Desconhecendo-se, encontrará o ódio
Mas a mulher segue em frente e resolve buscar procurado em si mesma – e se ele lá está, se foi encon-
em solidão, e não mais diante do animal, o que deseja. trado na interioridade da mulher, constitui também o
Sozinha, foi “ter a sua violência” (128) na montanha que ela é, apesar de ser descoberto com o susto que
russa. Mas, apesar da solidão, a mulher ainda busca sentimos diante do que é estranho. Vejamos um pouco
na alteridade a experiência do ódio – o outro, neste desta experiência:
caso, é a própria montanha russa, máquina que fun-
ciona para ela como uma “Igreja” (129), ou seja, como O búfalo com o torso
um local propiciador de uma experiência do sagrado, negro. No entardecer lumino-
uma experiência de êxtase. Com o corpo violentado so era um corpo enegrecido
pela brutalidade da montanha russa, sozinha em meio de tranquila raiva, a mulher
aos namorados (129), espantada, volta à terra depois suspirou devagar. Uma coisa
de alguns minutos: “Pálida, jogada fora de uma Igreja, branca espalhara-se dentro
olhou a terra imóvel de onde partira e aonde de novo dela, branca como papel, fraca
fora entregue” (129), e a terra era difícil (130). A terra, como papel, intensa como uma
brancura. A morte zumbia nos
realidade crua de todos os dias, parecia ser o mais inal-
seus ouvidos. Novos passos do
cançável para a mulher, agora já tomada pela experi- búfalo trouxeram-na a si mesma e, em novo longo suspi-
ência transformadora. A violência da montanha russa, ro, ela voltou à tona. Não sabia onde estivera. Estava de
se ainda não a levara ao ódio buscado, tinha começado pé, muito débil, emergida daquela coisa branca e remota
nela a abertura à violência, tinha literalmente sacudido onde estivera (133).
22 seu corpo, suas ideias, sua resistência. O pensamento,
sacudido, atingia um rebaixamento que a aproximava

A coisa branca nos remete à massa branca do
do animal, do “não saber pensar” (127). E então ela vol- interior da barata em A paixão segundo G. H.3. Massa
ta aos animais, atordoada. branca que representa o que é neutro, o que é comum
A mulher agora não é a mesma do início do a tudo que é vivo, a massa disforme que remete a tudo
conto, o corpo tem mais espaço do que o pensamento, e que existe, a massa que nos faz idênticos à barata. É a
é o corpo perturbado pelo balanço da montanha russa partir deste neutro, desta coisa que é comum a tudo,
que chega à jaula do quati. E aí tem a experiência de que podemos nos identificar com o inteiramente ou-

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tro, e, a partir deste reconhecimento, nos encontrar de
forma mais plena – quanto mais parcelas de alteridade
conseguirmos reconhecer como nossas, mais plena é
nossa visão de nós mesmos, e mais amplo nosso hori-
zonte de visada do mundo.
É assim, então, que a mulher, diante do bú-
falo, depois da experiência extática na qual é tomada
pela coisa branca indescritível, diz “Ah!”, e lança uma
pedra em direção ao animal (134). Ah!, a coisa se re-
vela para ela, a novidade do ódio enfim encontrado, e
“dentro dela escorria enfim um primeiro fio de sangue
negro” (134). Dor, quase alegria, calor, tudo se mistu-
rando, quando o búfalo se volta para ela mais uma vez,
e ela então diz “eu te amo”, com ódio, ao homem que Confira:
a desprezara, e “eu te odeio”, “implorando amor ao
búfalo” (134). O amor do búfalo lhe dava, enfim, a pos-
sibilidade do ódio, oferecia finalmente o ensinamento
que tinha procurado.
Olimpíada Internacional de Filosofia
Na última cena do conto, o búfalo, próximo
A Olimpíada Internacional de Filosofia (IPO) é
às grades, olha a mulher de perto. Os dois, olhando-
organizada sob a égide da Federação Internacional das
-se nos olhos, estão parados, um em frente ao outro.
Sociedades Filosóficas (FISP) e pela UNESCO. É uma
Presos pelo olhar, em “mútuo assassinato” (135). Até
competição voltada para os alunos do Ensino Médio
que ela cai escorregando pelas grades, “em tão lenta
e ocorreu pela primeira vez em 1993, por iniciativa do
vertigem que antes do corpo baquear macio a mulher
Departamento de Filosofia da Universidade de Sofia,
viu o céu inteiro e um búfalo” (134).
Bulgária.
Este final enigmático nos remete à ideia de que
Os objetivos do IPO são:
a experiência transformadora leva a mulher à morte
- promover a educação filosófica ao nível do ensino
simbólica do eu que tinha antes. Entretanto, o conto
médio e aumentar o interesse dos alunos em filosofia;
chega ao fim aí, e não podemos saber sobre o que viria
- incentivar o desenvolvimento de sistemas nacionais,
depois, sobre como estará a mulher ao acordar deste
regionais, locais e concursos de filosofia entre os pré-
desmaio/morte. Podemos apenas reafirmar a obvie-
-universitários em todo o mundo;
dade de que uma transformação traz consigo o enig-
- contribuir para o desenvolvimento do pensamento
ma do que está por vir. Transformar-se é, deste modo,
crítico, questionador e criativo;
abrir-se ao inteiramente desconhecido, o que justifica o
- promover a reflexão filosófica sobre a ciência, a arte e
medo que leva à estagnação.
a vida social;
Deste modo, a mulher, ao dirigir-se ao jardim
zoológico à procura do ódio que não consegue ver em
- cultivar a capacidade de reflexão ética sobre os pro- 23
blemas do mundo moderno e,
si mesma está realizando “uma coragem”, como tantas
- incentivar o intercâmbio intelectual e assegurar opor-
outras personagens de Clarice Lispector.
tunidades de contatos pessoais entre os jovens de dife-
rentes países, para promover a cultura de paz.
Notas
1. VARELA, Maria Helena. O heterologos em língua portuguesa.
Elementos para uma antropologia filosófica situada. Rio de Janei-
ro: Espaço e tempo, 1996.
2. Citações feitas a partir da seguinte edição: LISPECTOR,
Clarice. “O búfalo”, em Laços de família. Rio de Janeiro: Rocco,
1998, pp. 126-135. Os números de páginas serão colocados
entre parênteses logo após as citações.
3. LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G. H. (1964) 12ª edi- No site do IPO podemos encontrar muitas infor-
ção. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
P mações: sobre as inscrições e a organização do evento,
sobre as provas, sobre a seleção dos alunos e os crité-
* Marília Murta de Almeida é mestre em Filosofia pela rios de avaliação do concurso. São muito interessantes
UFMG. as questões de filosofia e o site apresenta as redações
classificadas, mostrando um bom nível das respostas.
Vários países participam da olimpíada mas, in-
felizmente, o Brasil ainda não participou desse evento.
Confira:http://www.philosophy-olympiad.org.

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O ensino de filosofia como
problema filosófico
Resenha por Flávio Fontenelle Loque*
UF-Itajubá
Nos últimos anos, as discussões acerca do zer nascer em seus alunos. Primordialmente, o ensino
ensino de filosofia tornaram-se mais recorrentes no não se volta para a transmissão de conteúdos, mas para
Brasil, certamente como um dos efeitos de a filosofia o despertar dessa intencionalidade, dessa aspiração ao
ter se tornado disciplina obrigatória do Ensino Médio saber. É possível, porém, ensinar esse desejo? Eis aqui
graças à reformulação do artigo 36 da Lei de Diretrizes um limite da atividade docente, que, constituindo-se
e Bases da Educação Nacional (cf. sanção presidencial na tentativa de ensinar o perguntar filosófico, é incapaz
publicada no Diário Oficial da União de 3 de junho de de gerar nos estudantes a intencionalidade da qual de-
2008, página 1, a qual acompanha o parecer CNE/CEB pende. Como reconhece o próprio autor,
nº.4/2006 do Conselho Nacional de Educação). Deba-
te-se de maneira mais cuidadosa, portanto, a formação entre o perguntar do filosofar e o querer filosofar, há um
docente e os problemas relacionados com a implemen- salto que ultrapassa todo professor. (...) Isso nos lança
tação da disciplina nas escolas, tais como matriz cur- numa situação paradoxal: o essencial da filosofia é, cons-
titutivamente, inensinável, porque há algo do outro que é
ricular, recursos didáticos, carga horária, qualificação
irredutível: seu olhar pessoal de apropriação do mundo,
profissional. Por causa disso, não deve causar surpresa
seu desejo, enfim, sua subjetividade (p.38).
a abundância de publicações relacionadas à filosofia e
seu ensino. Há hoje, em algumas casas editoras, cole-
Todavia, tal impossibilidade não implica que
ções dedicadas exclusivamente a esse tema, das quais
se deva abandonar o ensino de filosofia, mas sim levá-
vale destacar: “Filosofia e Ensino” pela editora Unijuí,
-lo a seu limite. A partir do vínculo entre professor e
“Filosofia na Escola” pela Vozes, “Filosofar é Preciso”
alunos, o perguntar filosófico, feito conjuntamente,
pela Loyola e “Ensino de Filosofia” pela Autêntica, co-
deve buscar compreender tanto uma dimensão ob-
leção dentro da qual foi publicada a obra de Alejandro
jetiva, a qual diz respeito aos textos da tradição, aos
Cerletti, O Ensino de Filosofia como Problema Filosófico
dados históricos, aos comentários, quanto uma subje-
(Trad. Ingrid Müller Xavier - Belo Horizonte: Autênti-
tiva, relacionada à recriação dos problemas. Só aí ra-
ca, 2009. 101p. R$ 29,00).
dica a possibilidade de que os estudantes comecem a
reconhecer e reformular problemas, que deem início a
O livro divide-se em
uma nova interpretação e avaliação dos próprios sabe-
seis curtos capítulos, além
res. Sob essa perspectiva, Cerletti recorre ao conceito
de introdução e conclusão,
de repetição criativa de A. Badiou para ratificar a tese,
e estrutura-se com base nos
apresentada já na introdução do livro, de que o ensino
pontos conceituais estabe-
de filosofia é “uma construção subjetiva, sustentada
lecidos no primeiro capí-
por uma série de elementos objetivos e conjunturais”
tulo. Fundamentalmente, o
(p.37). Contudo, qual é o valor desse ensino? Por que
autor defende que ensinar
ensinar filosofia? Qual é, enfim, o sentido do ensino de
filosofia significa ensinar
filosofia na escola? Ele não reside no desenvolvimento
o perguntar filosófico. O
da capacidade argumentativa, como se tal habilidade
ensino exitoso seria aque-
também não pertencesse a outros campos do saber. O
le em que a relação entre
valor ou, se se quiser, a “utilidade” do ensino de filo-
professores e alunos cria as
sofia está na reflexão sobre o presente, o que o autor
condições necessárias para
sustenta, apoiando-se no O que é o iluminismo?, de M.
a elaboração de pergun-
Foucault. A atualidade, que erige como significativo à
tas filosóficas. No entanto,
praticidade, à rapidez, ao entretenimento, ao mercado,
dada essa finalidade, a qual remonta à concepção de
que coloca o discurso empresarial como chave de lei-
filosofia derivada de sua etimologia, é preciso esclare-
tura da realidade, precisa ser posta em xeque. Cabe à
24 cer o que constitui uma pergunta filosófica. Segundo
Cerletti, o caráter filosófico de um questionamento
filosofia desnaturalizar o que hoje se toma como ób-
vio e instaurar uma tensão radical na maneira como os
encontra-se na intencionalidade de quem interroga.
estudantes compreendem sua incorporação ao mundo
Uma mesma pergunta é passível de ser respondida de
contemporâneo. Ressalte-se, a esse respeito, a crítica de
diferentes maneiras, sendo que o próprio da filosofia
Cerletti às discussões que têm sido feitas (na Argenti-
é um perguntar radical, um perguntar que visa a um
na, sua terra natal, mas também nos países vizinhos)
saber último, isento de pressupostos. Tal é, por exce-
acerca da inserção da filosofia na grade curricular,
lência, a atitude filosófica que cabe aos professores fa-
discussões que são feitas no seio de uma comunidade
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acadêmica cujos profissionais, em sua maior parte, não mundo, a avaliação, compreendida como verificação
possuem inquietação quanto ao presente, presos que de conteúdos e habilidades, torna-se sem sentido, pois
estão a tecnicalidades e à erudição. não capta o fundamental. Mais do que isso, dado ser
Tendo chegado a esse ponto, Cerletti empreen- impossível despertar e apreender o desejo alheio, a
de certa inflexão no desenvolvimento argumentativo avaliação se torna inexequível, a menos que se trans-
ao voltar-se, nos capítulos subsequentes, para dois ou- forme em autoavaliação.
tros aspectos do ensino de filosofia: a formação docente Por fim, cabe afirmar que O Ensino de Filosofia
e a institucionalização da filosofia. No último capítulo como Problema Filosófico é um livro instigante e perti-
do livro, o autor tratará explicitamente da didática na nente. Sua leitura é bastante proveitosa, embora mui-
filosofia, buscando relacionar o que dissera nos capítu- tas vezes não aprofunde temas que mereceriam um
los I, II, III e IV ao que apresenta no V e no VI. Quanto à tratamento mais detalhado. Se fosse possível sintetizá-
formação docente, Cerletti destaca a impertinência da -lo em poucas palavras, talvez fosse o caso de dizer
separação entre conteúdos filosóficos e pedagógicos. que levanta boas questões e explicita com perspicácia
Na realidade, como muito bem aponta, a formação do muitos desafios com que os professores de filosofia se
professor ocorre ao longo dos anos, isto é, desde que deparam. Em suma, a obra deixa patente que pensar o
começou a ser aluno. Ou, para empregar termos mais ensino de filosofia somente à luz de estratégias meto-
precisos, a “formação” (aspas do próprio autor) ocor- dológicas, como se fosse um caso especial da didática,
re sobretudo nas matérias “não pedagógicas” (idem). implica destruir sua dimensão filosófica.
Por causa disso, é tarefa fundamental de quem se pre- P
tende professor repensar o que aprendeu inconsciente
ou acriticamente, a fim de descobrir um modo próprio * Flávio Fontenelle Loque (Universidade Federal de
de lecionar, donde a proposta para os professores de Itajubá – campus, Itabira)
didática: “mais do que transmitir formas standards de flavioloque@yahoo.com.br
ensinar – supostamente repetíveis por qualquer um,
em qualquer situação –, deveriam contribuir para que
cada um construa, da maneira mais meditada possível,
a própria forma de ensinar, de acordo com o que eles
ou elas são, e vão ser como docentes” (p.61). O docente,
contudo, tem de defrontar-se também com o fato de a
filosofia ter se institucionalizado. Que limites isso colo-
ca para o ensino? Até que ponto a liberdade filosófica é
restringida? Dado que é o Estado o grande responsável
pela institucionalização, Cerletti indica a existência de
um cerceamento, que ocorre com vistas à manutenção
do laço social. Há uma tensão entre, por um lado, a
educação para a soberania ou autonomia e, por outro,
para a obediência, a promoção de indivíduos gover-
25
náveis. Nesse sentido, é como se o ensino de filosofia
tivesse se circunscrito apenas ao que é tido como ad-
missível, ao que não questiona o alicerce das noções de FAFICH/UFMG
cidadania e direitos humanos, as quais representam o
entrelaçamento mor entre Estado e filosofia. Eis, por-
tanto, outro ponto delicado no qual a atividade docen- Tel: 031 3409-5066
te se encontra: a clareza acerca de seu potencial crítico 031 3492-3373
e o reconhecimento dos marcos impostos pela inserção copecfafich@veloxmail.com.br
institucional.
No último capítulo, Cerletti retoma seus apon-
tamentos anteriores de modo a tornar explícitas as
consequências didáticas do que dissera. Uma vez que FACE/UFMG
o ensino de filosofia visa ao perguntar filosófico, a di-
dática filosófica não poderia ser outra exceto a proble- Tel: 031 3409-7145
matização compartilhada, seguida de uma tentativa de
resolução, a qual se segue uma nova problematização 031 34950133
compartilhada e assim sucessivamente. Isso signifi-
ca que o professor terá de ser capaz de descobrir, nas copec@face.ufmg.br
circunstâncias sempre variáveis em que se encontra, o
meio mais propício para atingir seu fim, isto é, terá de
ser hábil para ensinar em situações diversas. Todavia,
se, como dito anteriormente, a finalidade é despertar
a atitude filosófica, que se radica no desejo de saber
e cujo resultado é a elaboração de uma nova visão de

REVISTA PENSE | Nº 02 | Novembro/2012


O incêndio do Palácio de
Westminster
por Elias Mol*
Faculdade Estácio de Sá
Outubro de 1834. O incêndio do Palácio de bém o faz propositalmente, é a partir de tal método que
Westminster, sede do Parlamento do Reino Unido, o pintor deixa a imaginação aflorar. Às vezes, da força
é testemunhado por um artista londrino quase sexa- colossal da natureza, podem surgir monstros2.
genário: Joseph Mallord William Turner. Depois de Também para Argan, Turner é o artista da luz.
esboços e versões menores em aquarela, Turner pinta O italiano destaca nele “sua tendência a levar todas as
em óleo dois quadros, um dos quais podemos ver na cores a seu grau mais alto de luminosidade, até ins-
imagem abaixo, atualmente pertencente à coleção do taurar uma espécie de cromatismo complementar, todo
Museu de Arte de Cleveland (EUA). intuitivo, que já em 1815 chamava a atenção e a censu-
Trata-se da vista a partir de uma das margens ra do crítico do Sun, que salientava a predominância
do Tâmisa. A coluna de fogo, bem como sua contraparte inatural do amarelo e azul” (Argan, 2010). Não esta-
refletida no rio, ocupa a porção central e de maior des- mos falando só de luz representada, mas luz enquanto
taque na pintura, e é de tal grandiosidade que as cons- qualidade e tom, o amarelo aparece porque é das cores
truções humanas, a Ponte de Westminster e o próprio com o tom de luz mais elevado. A luz em Turner é, de
Palácio, este no centro das chamas, parecem diminu- fato, uma qualidade real. Ela chega a assumir para o
tos. Também é diminuta, apesar de numerosa, a multi- artista londrino tal importância que ele lhe atribui um
dão que se aglomera sentido cósmico e mís-
para testemunhar a tico, religioso: “o Sol
tragédia, parte dela é Deus”, teriam sido
com suas figuras ilu- suas últimas palavras.
minadas pelo reflexo
vermelho das cha- Notas
mas, nas margens 1. Cores complemen-
inferiores do qua- tares.
dro, principalmente 2. Como, por exemplo,
à esquerda. Turner, nos quadros SlaveShip
um dos maiores re- (Navio Negreiro), de
presentantes do Ro- 1840, e Sunrise withSe-
mantismo inglês, aMonsters (Amanhecer
não escapa ao subli- com Monstros Mari-
me. O homem é in- nhos), de 1845.
significante perante
as forças destrui-
P
doras da natureza.
Suas figuras huma-
nas são proposital-
mente toscas, em algumas pinturas não diferem muito Referência da obra analisada:
de bonecos de pano, como que jogados para lá e para
cá por tempestades, ventos, erupções vulcânicas. The Burning of the Houses of Lords and Commons, 16 Octo-
O historiador da arte italiano Giulio Carlo ber, 1834, (O Incêndio do Parlamento, 16 de outubro, 1834)
Argan o considera um artista de “imagens mnemô- 1835. Óleo sobre tela; 92 cm x 123,2 cm. Museu de Arte
nicas”. Seu acabamento é impreciso, não há definição de Cleveland (EUA).
dos elementos constituintes do quadro: reconhecemos
as coisas em Turner pela sugestão e contraste de cores: Referências bibliográficas
26 o barco é uma mancha escura que reflete na água clara,
ARGAN, Giulio Carlo. A arte moderna na Europa: de Hogarth a
a ponte diáfana aparece porque é violeta próximo do
amarelo1, assim também é a massa de chamas, que se Picasso. São Paulo: Companhia das Letras, 2010
separa dos céus pela cor, não pela forma. Era do mé- SHANES, Eric. Turner. London: ParkstoneInternational, 2011
todo do artista realizar inúmeros esboços (fala-se que
teria deixado por volta de 10 mil), mas são esboços me- * Elias Mol é mestre em História da Arte pela Unicamp
ramente esquemáticos, a partir deles e da lembrança é e professor da Faculdade Estácio de Sá.
que Turner constrói seus quadros, já no atelier. E tam-
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Devaneando com
Goethe e Hackert
por Rafael Wingester Ribeiro de Oliveira*

A viagem que Johann Wolfgang von Goethe A composição amena do quadro supracitado,
(1749-1832) empreendeu pela Itália, entre setembro de junto à placidez reinante, atesta incontestavelmente
1786 e maio de 1788, rendeu incontáveis benefícios e os clichês árcades da época, em nada remetendo ao
contribuições à cultura universal. Além de seus diários duo Tempestade e Ímpeto da obra dos próprios Goethe
de viagem riquíssimos em anotações de cunho subjeti- e Schiller, e nem à emotividade que o romantismo
vo, altamente estilizadas, esta jornada possibilitou ain- traria à tona, em parte como herança da obra escrita
da que Goethe procedesse à publicação de sua famosa por esses alemães no fim do século XVIII. Somando-se
obra Viagem à Itália anos mais tarde. a isso, podemos ainda notar – ou melhor, sentir – na
pintura clássica de Hackert, certo ar do idealismo fi-
losófico aperfeiçoado no decorrer da Era da Razão e
muito presente na filosofia alemã do século posterior.
A colocação central dos sujeitos retratados na pintura,
apontando para as ruínas na paisagem distante e ligei-
ramente imprecisa, pode dar a entender – se forçarmos
um pouco – a posição de que a realidade como conhe-
cida é essencialmente um produto da interpretação de
nossas consciências, não se podendo manifestar de for-
ma concreta e objetiva ao ser pensante. Assim propõe
Immanuel Kant, em sua Crítica da Razão Pura:

Temos querido provar que todas as nossas intuições só


são representações de fenômenos, que não percebemos as
coisas como são em si mesmas, nem são as suas relações
tais como se nos apresentam, e que se suprimíssemos
nosso sujeito, ou simplesmente a constituição subjetiva
dos nossos sentidos em geral, desapareceriam também
No entanto, é interessante também tratar das todas as propriedades, todas as relações dos objetos no
parcerias e amizades estabelecidas por Goethe com
outras personagens ilustres na história da arte. Neste
espaço e no tempo, e também o espaço e o tempo, porque
tudo isto, como fenômeno, não pode existir em si, mas 27
sentido se destacam seus encontros com Jacob Philipp somente em nós mesmos.
Hackert (autor do quadro acima), com Tischbein (que Para nós é completamente desconhecida qual possa ser a
pintou seu famoso retrato Goethe na campina romana), e natureza das coisas em si, independentes de toda recepti-
com Agelica Kauffmann. Destes pintores, Hackert, cuja vidade da nossa sensibilidade. Não conhecemos delas se-
trajetória de vida revelou-se, por si só, absolutamen- não a maneira que temos de percebê-las; maneira que nos
é peculiar; mas que tão pouco deve ser necessariamente a
te ímpar, levando-o pela região da Alemanha, Suécia,
de todo ser, ainda que seja a de todos os homens.
França, e por fim à corte napolitana, foi quem, de fato, Kant, Imanuel. Critica da Razão Pura. Versão digitalizada
mais se aproximou do escritor alemão. Goethe não só disponível na pagina: http://www.psbnacional.org.br/bib/b25.
se tornou seu aluno de desenho, como, em 1811, publi- pdf, p.25.
cou uma biografia em honra à memória de seu mestre,
falecido em 1807. No fim das contas, podemos apontar a impor-
Do encontro entre Hackert e Goethe surgiram tância não somente da obra de Goethe, posterior a seu
obras de valor considerável por parte do aluno e do encontro com a Itália, como meio de difusão de con-
mestre. Dentro do classicismo, do fim do século XVIII, cepções estéticas e filosóficas, mas também daquelas
obras como a pintura Goethe visitando o Coliseu dão produzidas por outros mestres (muitas vezes repre-
mostra não só de grande conhecimento artístico, mas sentantes de correntes do pensamento diversas) que
de toda uma visão de mundo herdada do iluminismo se encontraram com o escritor durante essa mesma
alemão. Que o Sturm und Drang, movimentação literá- jornada. Tal conjunto de obras atravessa barreiras de
ria da qual participaram ativamente Goethe e Schiller, gênero artístico-literário e da estética de época, carre-
se opusesse à rigidez e racionalidade (e, de certo modo, gando beleza e filosofia com grande viço ao presente, e
ao elitismo) da poesia e prosa dessa vertente do ilumi-
nismo não impediu Hackert de fazer um quadro (em
prometendo o mesmo ao futuro.
P
que figurasse seu ilustre aluno) bastante influenciado Rafael Wingester Ribeiro de Oliveira é aluno da ter-
por essa corrente do pensamento filosófico. ceira série do Ensino Médio do Colégio Santo Antônio.

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Ágora
por Loraine Oliveira*
UnB

Ágora mostra a cidade de Alexandria na pas- filme mais oneroso do cinema espanhol – custou cerca
sagem do século IV d.C. para o século V d.C., onde a de 50 milhões de euros – e de ser reconhecido como
última aristocracia pagã convive com o novo poder um filme de alta qualida-
religioso cristão, representado por Cirilo e os parabo- de artística. Acontece que
lanos1, além de uma importante comunidade judai- Ágora transformou-se no
ca, que de lá será expulsa. A figura central de Ágora centro de uma polêmi-
é Hipácia de Alexandria, filósofa de estirpe platônica, ca em torno da religião.
matemática e astrônoma. Segundo as poucas fontes Para citar poucos exem-
antigas disponíveis, Hipácia foi professora admirada plos, o “Observatorio
por seus alunos e uma mulher de grande beleza. Filha Antidifamación religio-
do matemático Theon, com quem colaborava, no filme sa” alegou que o filme
morre esquartejada pelos parabolanos, aos 45 anos, em promovia o ódio aos cris-
415. Mas a intriga não é somente de cunho religioso, tãos, reforçando falsos
envolvendo pagãos e cristãos: Hipácia se vê em meio a tópicos sobre a Igreja Ca-
uma complexa trama política. Nas palavras do diretor tólica3. Os muçulmanos
Alejandro Amenábar: “Investigando sobre Hipácia e o fundamentalistas foram
período em que viveu, descobrimos que havia muitís- identificados com os pa-
simas conexões com nosso mundo atual, e nos pareceu rabolanos. Nas palavras
duplamente interessante. Alexandria era o símbolo de de Umberto Eco, os parabolanos eram “talibãs cristãos
uma civilização que estava se extinguindo nas mãos da época, milícia pessoal do Bispo Cirilo”4. Os parabo-
de distintas facções (...). Ágora é, em muitos sentidos, lanos de Amenábar vestem-se de preto, em oposição ao
uma história do passado sobre o que está acontecendo branco da elite pagã e da ordem católica à qual perten-
agora, um espelho para que o público olhe e observe ce Sinésio de Cirene. Eles são homens barbudos, deci-
com a distância do tempo e do espaço, e descubra, sur- didos a limpar a cidade de Alexandria não somente do
preendentemente, que o mundo não mudou tanto”2. paganismo, mas também do judaísmo. Andam arma-
Podem-se, deste modo, destacar alguns aspectos da dos com instrumentos cortantes e pedras, e sua fé é vi-
trama que são, sem dúvida, de interesse para a reflexão sivelmente ingênua. Há várias passagens do filme que
filosófica atual. Não podemos evidentemente eclipsar mostram este aspecto da religiosidade dos parabola-
o problema dos fundamentalismos religiosos, exposto nos, a qual anda de par com o seu fanatismo religioso.
no filme. Além disso, é bastante atual a representação Na interpretação oferecida por Amenábar, isso conflui
da mulher posta em cena por meio da figura de Hipá- para a morte de Hipácia. Incapazes de compreender a
cia. E uma nota mais sutil do filme, mas que me pare- fundo os textos bíblicos, os parabolanos, por exemplo,
ce a mais instigante do ponto de vista da filosofia, é aceitam a leitura literal, para não dizer tendenciosa, de
a opção pelo modo de vida filosófico, que, em última certo trecho de uma carta de Paulo5, que lhes oferece
instância, justifica a morte de Hipácia. Cirilo, em uma jogada política contra Orestes, o prefei-
O filme de Amenábar, lançado em outubro de to de Alexandria, na qual, para atingir Orestes, Cirilo
2009, na Espanha, foi censurado no Egito por insultar a alveja Hipácia. À antiga mestra, Orestes devota seu
religião. Teve dificuldades de distribuição nos Estados amor e amizade, além de se aconselhar com ela sobre
Unidos, aonde chegaram apenas duas cópias, em maio os assuntos do Estado. Este episódio marca o declínio
de 2010. E na Itália só entrou no circuito dos cinemas político de Orestes. E Hipácia, que até então gozava do
após a petição on-line para que o filme fosse distribuído respeito da elite alexandrina, passa a correr perigo.
naquele país. No Brasil, qual não foi minha frustração Esta mesma cena da leitura da epístola pauli-
ao constatar que em vão esperava pela distribuição co- na situa Hipácia em relação ao papel que as mulheres
28 mercial do filme. Ele não foi distribuído nos cinemas
comerciais, nem se encontra nas locadoras... Não ten-
cristãs devem desempenhar. Hipácia jamais se subme-
teu a um marido, apoiada por seu pai, que, em uma
ciono aqui lançar brasas no debate sobre a distribuição cena anterior do filme, declara que sua filha necessi-
de filmes em nosso país. Meu escopo é apontar algu- ta preservar sua liberdade para ensinar e estudar. Ela
mas questões importantes suscitadas por este filme. era livre, ao contrário das regras que prega Cirilo: as
Uma delas, evidentemente, concerne ao moti- mulheres deverão obedecer aos homens, vestindo-se
vo pelo qual este filme não obteve fácil distribuição, a com modéstia e portando-se de maneira submissa. À
despeito de ter recebido sete prêmios Goya, de ser o mulher também é interdito ensinar. Hipácia, em algu-

REVISTA PENSE | Nº 02 | Novembro/2012


mas representações, aparece como símbolo da mulher sequiando aqueles cujo poder cresce a olhos vistos. Ilu-
intelectualmente independente e criativa, em oposição são de liberdade, por certo. Fica implícito que ele não
ao silêncio e à dependência feminina mencionadas na se tornou um homem de fé, mas um guerreiro, lutan-
carta. Esta, de fato, parece ser a elaboração mais recen- do contra aquele poder que o oprimia. Por outro lado,
te da lenda de Hipácia, que vem interessando grupos ele está disposto a abandonar os parabolanos quando
de defensoras dos direitos das mulheres e grupos femi- a vida da sua amada Hipácia é ameaçada por eles. Li-
nistas (Dzielska, 2009, p. 30). A título de curiosidade, cença poética de Amenábar, Davo é um dos fios con-
ela figura em Dinner Party, uma instalação de 1979 de dutores da trama, juntamente com Orestes, membro da
Judy Chicago, artista feminista que coloca em um ban- elite pagã que faz parte do círculo de alunos de Hipá-
quete pouco mais de 30 mulheres intelectuais e artis- cia nas primeiras cenas do filme, e que se converte ao
tas6. cristianismo visando ao poder político. Sinésio é outro
Cabe observar que Amenábar teve como con- personagem relevante, embora não apareça durante
sultores para o filme sérios estudiosos que se ocupam toda a trama; no início é um aluno cristão de Hipácia,
com o período em questão. Logo, não deve ter-lhe pas- e depois reaparece na história já como bispo, a fim de
sado despercebido, ao reconstruir Alexandria da épo- tentar conciliar Orestes e Cirilo.
ca, um testemunho de Sinésio de Cirene, escrito por E sobre Hipácia, o que pode ser dito? Recons-
volta de 404. Sinésio, outro discípulo de Hipácia que truir a enigmática figura da Alexandrina não é tarefa
também aparece no filme, critica dois grupos sociais in- fácil, uma vez que dela não possuímos obras e sobre
feriores àquele no qual ele situa a si, seus colegas e sua ela e sua escola nos chegaram pouquíssimos documen-
mestra. Trata-se, por um lado, dos “mantos brancos”, tos7. Amenábar representa Hipácia e seus discípulos
ou seja, os filósofos que envergam mantos brancos, mas em aula, na Biblioteca de Alexandria. Os temas das
que não se ocupam seriamente de filosofia. São profis- aulas e das pesquisas que Hipácia realiza até o final
sionais prosélitos no saber, sofistas vulgares que difun- da sua vida referem-se mais especialmente à astrono-
dem as verdades da filosofia entre as massas. Por outro mia. Davo, o escravo, participa das aulas, auxiliando a
lado, censura os “mantos negros”, isto é, os monges mestra, antes de tornar-se parabolano. Embora Davo,
que considera bárbaros, incultos, fanáticos, cheios de diferente dos outros personagens citados, não seja uma
ódio pelo helenismo e que vestem aquela cor de man- figura histórica, sua construção é muito verossímil. A
to (Sinésio de Cirene, Dion, ou Sobre a sua vida, 4-11 presença de escravos não parece ter sido incomum no
apud Dzielska, 2009, p. 75-76). No filme Ágora, Hipácia ambiente das escolas platônicas tardo-antigas. Com
e seus discípulos vestem branco no início. Mas após respeito à hipótese de Hipácia ter dado aulas na Biblio-
a tomada da biblioteca de Alexandria pelos cristãos, teca, não há fontes que a assegurem completamente,
Hipácia aparece trajando tons mas é uma interpretação
de vermelho, alaranjado e verossímil de Amenábar. Se-
verde. Sempre com a cabeça, gundo as fontes, é provável
o colo e os braços descobertos, que ela fizesse preleções pú-
distingue-se das cristãs muito
cobertas com roupas cinzen-
blicas naquele local, mas que
suas aulas ocorressem na 29
tas e mantos na cabeça. Aqui sua própria casa, ou mesmo
temos uma nota interessante na rua8. Note-se, aliás, que
acerca do grupo de Hipácia: estamos tratando do Egito
seus discípulos eram jovens Romano, e que no Império
aristocratas de boas famílias, Romano as escolas de filo-
cristãos e pagãos, como era sofia privadas normalmente
comum nas escolas neopla- situavam-se na residência do
tônicas. Vinham de diversas mestre.
partes do Império, conforme indicam as cartas de Siné- Das obras de Hipácia chegaram apenas títulos
sio. Disso conclui-se que a fama de Hipácia se estendia relativos às matemáticas e à astronomia. Concernente
para além dos limites de Alexandria, e igualmente sua à filosofia, as epístolas de Sinésio indicam que Hipácia
influência. Nas escolas tardo-platônicas, o convívio en- estava ligada ao neoplatonismo de Plotino e de Porfí-
tre cristãos e pagãos era amigável, pois o objetivo do rio, mais do que ao de Jâmblico. As fontes antigas, de
ensino era a elevação da alma até a contemplação do modo geral, referem-se a ela como philosophos. Dizem
Um, e o aperfeiçoamento nas virtudes e na sabedoria que comentava Platão, Aristóteles e Plotino. Que ob-
constituíam o caminho para tanto. Discípulos e mestre jetivava e praticava a purificação e a ascese da alma.
mantinham uma relação muito próxima, de amizade Suas aulas, como atesta Sinésio, tinham a forma de di-
e de familiaridade. Como aparece no filme, e nas car- álogos sobre temas éticos e religiosos.
tas de Sinésio, Hipácia era considerada mãe e irmã dos Embora Amenábar enfatize a astronomia como
seus alunos. tema das suas perquirições, no meu entendimento ele
Além disso, vale mencionar a figura ficcional mostra a filosofia de Hipácia por meio do seu modo de
de Davo, que abandona a situação de escravo de Hipá- vida. Isso me parece plenamente justificável e interes-
cia para se tornar cristão. Mais precisamente um para- sante, do ponto de vista da filosofia antiga. Explico. Na
bolano, isto é, alguém que fiscaliza a ordem na cidade, Antiguidade, como mostrou Pierre Hadot9, a filosofia é

REVISTA PENSE | Nº 02 | Novembro/2012


um modo de vida. Ou seja, as especulações filosóficas (Dzielska, 2009, p. 111-112). A propósito, para o leitor interes-
não são meras abstrações acadêmicas. Aderir a uma es- sado na figura de Hipácia, sugiro DZIELSKA, M. Hipátia de
cola filosófica e estudar os textos do seu fundador sig- Alexandria. Lisboa: Relógio d’Água, 2009.
nifica transformar sua vida, tendo em vista um ideal de 2. Disponível em http://www.clubcultura.com/clubcine/
clubcineastas/amenabar/agora.html (consulta realizada em
sabedoria. Portanto, a cada escola filosófica correspon-
02 de julho de 2011).
de uma atitude interior fundamental. Vale observar 3. Disponível em http://www.oadir.org/index.
que o termo escola na Antiguidade guarda o sentido php?option=com_content&task=view&id=166&Itemid=47
de “tradição intelectual” ou “escola de pensamento”. (consulta realizada em 02 de julho de 2011).
E Hipácia provavelmente mantinha com seus discípu- 4. Eco, U. “Ipazziamo”. Comentário ao filme publicado em
los uma relação que não era meramente institucional. L’Espresso de 30 de abril de 2010. Disponível em http://es-
Amenabár mostra essa espécie de irmandade entre o presso.repubblica.it/dettaglio//2126072 (consulta realizada
grupo de Hipácia, estimulada por ela. em 02 de julho de 2011).
Com respeito ao modo de vida neoplatônico 5. Trata-se da Primeira Epístola de Paulo a Timóteo, 2, 9-12:
“Quanto às mulheres, que elas tenham roupas decentes, se
de Hipácia, podemos aludir a algumas cenas do filme.
enfeitem com pudor e modéstia; nem tranças, nem objetos de
Uma delas refere-se a uma narrativa de Damáscio. Se- ouro, pérolas ou vestuário suntuoso; mas que se ornem, ao
gundo ele, um aluno apaixonou-se por Hipácia e lhe contrário, com boas obras, como convém a mulheres que se
declarou seu amor. Hipácia, decidida a afastá-lo, mos- professam piedosas. Durante a instrução a mulher conserve
tra a ele um dos panos manchados de sangue das suas o silêncio, com toda submissão. Não permito que a mulher
regras, como símbolo do aspecto físico do seu corpo. ensine, ou domine o homem. Que conserve, pois, o silêncio”.
Conforme Damáscio, Hipácia quis mostrar ao jovem 6. Sobre esta obra, que pode ser de interesse para quem enseja
que ele não amava a própria beleza, mas um aspecto trabalhar o tema com seus alunos, pode-se consultar http://
físico dela. O significado do episódio é profundamen- www.brooklynmuseum.org/eascfa/dinner_party .
7. O mais próximo e talvez mais fidedigno seja o conjunto de
te platônico, mostrando a índole da filósofa. Não era
cartas de Sinésio de Cirene. Cento e cinquenta e seis epísto-
uma mulher voltada para a sedução e o agrado; as fon- las suas chegaram aos dias de hoje, incluindo algumas dirigi-
tes dizem que era dotada de uma força de caráter e de das à própria Hipácia e outras a companheiros de estudos da
uma firmeza ética excepcionais (Dzielska, 2009, p. 65). época em que frequentou seus cursos. Além disso, contamos
O gesto de Hipácia pode ser posto em paralelo com com uma fonte importante: um dos capítulos da História
o de Sócrates, quando rejeita Alcibíades, no Banquete Eclesiástica, de Sócrates Escolástico (379 -450). Outro con-
de Platão. Trata-se de mostrar ao jovem o sentido mais temporâneo de Hipácia, Filostórgio da Capadócia também
profundo de eros, e orientá-lo nessa direção. A propó- a menciona em sua História Eclesiástica. Além desses, pos-
sito, me parece que há outra alusão a Sócrates no filme, suímos outros textos antigos que mencionam a Alexandrina,
sendo digna de nota ainda a Vida de Isidoro, de Damáscio, o
notadamente quando Amenábar mostra os pés descal-
último diádoco da escola platônica de Atenas. Este é o texto
ços de Hipácia. antigo mais extenso sobre a filósofa.
Mas talvez a maior alusão à emblemática figu- 8. Ver Évrard, E. “A quel titre Hypatie enseignait-t-elle la phi-
ra de Sócrates seja a morte de Hipácia. Refiro-me pre- losophie”? Révue des études grecques, 90 (1977): 69–74.
cisamente à decisão da Alexandrina, conforme a cons- 9. Sobre o tema consultar HADOT, P. O que é a filosofia anti-
trução de Amenábar. No filme, Hipácia é instigada a se ga? São Paulo: Loyola, 1999.
converter ao cristianismo para tentar salvar sua vida, P
como haviam feito os pagãos que ocupavam cargos Ágora (No Brasil, Alexandria).
importantes na cidade. Mas ela é fundamentalmente Direção: Alejandro Amenábar. Produção: Álvaro Augustín
uma filósofa: não pode acreditar naquilo que não pode e Fernando Bovaira. Intérpretes: Rachel Weisz; Max Min-
ghella; Oscar Isaac; Ashraf Barhom; Michael Lonsdale; Ru-
questionar. E como neoplatônica, uma filósofa que de-
pert Evans; Richard Durden; Sami Samir e outros. Roteiro:
dicou seu tempo à sabedoria. As matemáticas eram um Alejandro Amenábar e Mateo Gil. Madrid: Mod Produccio-
instrumento para adquirir o conhecimento, para atin- nes; Himenóptero; Telecinco Cinema, 2009. (127 min.), color.
gir a verdade, como já se pôde ver na República de Pla-
tão. E de todas as matemáticas, a astronomia é a mais * Loraine de Fátima Oliveira é doutora em Filosofia e
profunda. Hipácia, portanto, passa a sua vida a filoso- professora da UnB.
far. Ao ter que optar pela conversão, sobretudo depois
da leitura da carta de Paulo, fica claro que Hipácia teria
que abrir mão não somente de uma atividade, mas do
seu modo de vida. E que sentido poderia fazer assumir
outro modo de vida, neste caso?

30 Notas
1. Os parabolanos eram jovens a serviço da Igreja de Alexan-
dria, que recolhiam os doentes e os pobres e os levavam para
a Igreja ou casas de beneficência. Também eram uma espécie
de guarda do patriarca de Alexandria. A maior parte deles
era ignorante e desprovida de instrução, mas obedecia a seus
dirigentes eclesiásticos. Nas palavras de Dzielska, “exaltados
e fáceis de manobrar e provocar, reagiam com atos de vio-
lência aos estados de espírito populares de Alexandria (...)”

REVISTA PENSE | Nº 02 | Novembro/2012


O Programa de Educação
Tutorial em Filosofia da UFMG
(PET FILOSOFIA UFMG)

por Eric Renan Ramalho*


UFMG

O Programa de Educação Tutorial em Filosofia logia, a Psicologia, a Linguística, entre outras. Este ano
está inscrito na proposta de aprimoramento discente o tema escolhido é Interseções entre os saberes acadê-
elaborada em 1979 na Coordenadoria de Aperfeiçoa- micos e a cidade.
mento de Pessoal de Nível Ensino Superior – CAPEs.
Gerido desde 2009 pela Secretaria de Educação Supe- No âmbito estritamente acadêmico, o desta-
rior (SESu), o Programa tem como objetivo desenvol- que fica por conta do Encontro de Pesquisa3, cuja dé-
ver atividades de ensino, pesquisa e extensão no inten- cima edição foi realizada em setembro. Este evento se
to de fomentar a produção acadêmica de excelência, a configura como um espaço para jovens pesquisadores
permuta contínua de saberes acadêmicos e comunitá- trocarem experiência e exporem suas pesquisas, dialo-
rios, e a formação dos membros discentes através de garem com seus pares. Além disso, o Encontro oferece
metodologias avançadas de ensino, sempre orientadas minicursos e palestras com professores especialistas
por um professor tutor. São objetivos primários do pro- em diversos temas da tradição filosófica, possibilitan-
grama: do o contato com pesquisas muitas vezes à parte da
• Contribuir para a elevação da qualidade da formação grade curricular de suas respectivas universidades.
acadêmica dos alunos de graduação. Ainda nesse âmbito, são realizadas pesquisas indivi-
• Estimular a formação de profissionais e docentes de duais similares à iniciação científica. O egresso tem a
elevada qualificação técnica, científica, tecnológica e oportunidade de desenvolver uma ou mais pesquisas
acadêmica. em áreas de seu interesse. As normas que regulamen-
• Formular novas estratégias de desenvolvimento e tam o funcionamento do PET orientam cada membro
modernização do ensino superior no país. a apresentar os resultados intermediários de seu tra-
• Estimular o espírito crítico, bem como a atuação pro- balho em encontros nacionais, além de uma exposição
fissional pautada pela ética, pela cidadania e pela fun- semestral aberta à comunidade local. A exposição dos
ção social da educação superior. resultados propicia ao petiano uma prática de pesqui-
• Desenvolver atividades acadêmicas em padrões de sa diferenciada, pois acrescenta ao seu trabalho de bi-
qualidade de excelência, mediante grupos de aprendi- blioteca o exercício constante de suas destrezas para a 31
zagem tutorial de natureza coletiva e interdisciplinar.1 exposição, contribuindo para a eloquência ao falar de
seu trabalho, o que nem sempre é possível na iniciação
Atualmente a UFMG mantém treze PETs2, científica na qual não há a mesma exigência da exposi-
dentre os quais o PET FILOSOFIA. Este foi criado em ção da pesquisa ao público, mas apenas através de um
1996 e teve como primeiro tutor o professor José Hen- relatório final.
rique Santos. Hoje o grupo é composto por 12 bolsistas
e um colaborador voluntário, além do professor Eduar- Do tripé pesquisa-ensino-extensão, a progra-
do Soares Neves Silva como tutor. As atividades de ca- mática extensionista é a que mais equaciona a forma-
ráter extracurricular desenvolvidas pelo PET Filosofia ção diferenciada, pois, além dos produtos nos quais
têm por prioridade propiciar a vivência de experiên- resulta, a extensão coaduna as três dimensões do tripé.
cias acadêmicas não presentes na grade curricular que Entretanto, a especificidade da filosofia, no mais das
complementam a formação acadêmica e cultural dos vezes, dificulta a atividade extensionista, visto que o
egressos. Essas atividades também se estendem a todo senso comum consolidou a prática filosófica como de
o corpo discente. Ao longo do ano são executadas doze caráter estritamente acadêmico. Nesse momento, em
atividades com esta finalidade. À guisa de apresenta- que a filosofia retornou aos currículos escolares, inves-
ção, faremos uma breve exposição daquelas atividades tir em projetos que se firmem como espaços formado-
que podem ser consideradas como sendo as de maior res é demanda de urgência. Reconhecendo esta urgên-
abrangência. cia, foi criado, em 2009, o Curso Pré-Vestibular. Esse
projeto aproveita a ideia seminal do projeto realizado
É realizado anualmente o projeto Interseções. pelo Coletivo Uirapuru, do qual participaram alguns
Estruturado no formato de palestras, o projeto promo- ex-membros do PET FILOSOFIA. Executado sempre
ve debates entre pesquisadores das mais diversas áre- em meados de dezembro, o curso tem como objetivo
as do saber e professores de filosofia sobre problemas oferecer aos vestibulandos aulas, ministradas pelos
teóricos e práticos abordados pela pesquisa em áreas bolsistas, em preparação para a prova específica de Fi-
como a Arte, a Economia, a Literatura, a Política, a Teo-
REVISTA PENSE | Nº 02 | Novembro/2012
losofia do Vestibular da UFMG. Nas duas primeiras ex- mais das vezes, os alunos de graduação, principalmen-
periências, convidamos responsáveis por ministrarem te os calouros, carecem de auxílio quanto à prática de
aulas introdutórias à parte sistemática do edital (Intro- pesquisa. Houve momentos em que alguns chegaram
dução, Ética e Lógica), ficando a cargo dos petianos as a interpelar os petianos em busca de informações sobre
aulas referentes as textos indicados. Diga-se de passa- referências bibliográficas, possíveis orientadores, como
gem, na atual gestão do PET, contam-se três bolsistas conseguir recursos para apresentar pesquisas em en-
que foram alunos do projeto, tanto na fase em que era contros realizados fora de Belo Horizonte, entre outras
realizado pelo Uirapuru, como no período em que o orientações básicas referentes à graduação. O “Con-
programa assumiu a execução dele. versas PET” foi criado na intenção de se replicar aos
colegas graduandos um pouco da tutoria existente no
A fim de atribuir uma organicidade aos proje- interior do projeto e, com isso, contribuir para elevar a
tos desenvolvidos, o Grupo de Estudos, espaço criado qualidade da graduação.
para oferecer aos egressos a oportunidade de discutir
temas da tradição filosófica não inclusos na grade cur-
ricular, tornou-se também um espaço de preparação
para o pré-vestibular. Semestralmente o tema é esco-
lhido pelo grupo e especialistas são convidados a apre-
sentar e a debater algumas posições sobre a questão.
Decidiu-se que, a partir de 2011, o segundo semestre
seria dedicado ao estudo das obras indicadas pela CO-
PEVE para o programa de filosofia do vestibular. As- Destacamos aqui as principais atividades de-
sim, a conjunção de duas atividades criou espaços que, senvolvidas pelo PET FILOSOFIA à guisa de apre-
concomitantemente, atendem a extensão, o ensino e a sentação do projeto à comunidade filosófica da região
pesquisa, em função de oferecer à comunidade extra- metropolitana de Belo Horizonte. O leitor interessado
-acadêmica um curso minimamente qualificado, e ao em adquirir maiores informações pode acessar o site
mesmo tempo exige o estudo prévio de obras, às vezes http//:fafich.ufmg.br/petfilosofia ou entrar em con-
não estudadas em sala, possibilitando a capacitação de tato pelo e-mail petfilufmg@gmail.com. Há ainda a
futuros professores. possibilidade de conhecer pessoalmente o projeto si-
tuado no quarto andar da FAFICH, sala 4131, com ex-
Há ainda duas atividades que aglutinam esfe- pediente de segunda a sexta-feira. Durante o semestre,
ras distintas do tripé acadêmico, quais sejam: o progra- as informações referentes ao plantão “Conversas PET”,
ma “Logofonia” e a revista Contextura. Desenvolvido bem como as respectivas áreas de interesses dos bolsis-
em parceria com a Rádio UFMG Educativa, o “Logofo- tas, serão disponibilizadas no mural situado ao lado da
nia” realiza entrevistas com pesquisadores de filosofia sala do PET e no site do programa.
e áreas conexas, exibidas semestralmente pela rádio. A
temporada anual do programa vai ao ar no segundo
semestre, sempre às terças, a partir das 22 horas, com Notas
reprise aos sábados às 7 da manhã. Cabe lembrar ainda 1. Os princípios que regem o programa estão disponí-
que todo o material produzido nas temporadas ante- veis no site do MEC: http://portal.mec.gov.br/index.
riores está disponível para download na página virtu- php?option=com_content&view=article&id=12223 ; Consul-
tado no dia 08 de maio de 2011;
al do programa4. A revista Contextura inicialmente foi
2. Para obter maiores informações sobre os PETs da UFMG, cf
idealizada e publicada por um grupo de alunos, com o blog: http//: petufmg.wordpress.com.
o apoio do Centro Acadêmico de Filosofia (CAFCA) e 3. Para maiores informações sobre o IX Encontro de Pes-
assumida pelo PET em 2009. Anualmente são publica- quisa em Filosofia da UFMG, acesse o blog do evento
dos textos resultantes de pesquisas de graduandos e http//:epfufmg.blogspot.com
pós-graduandos de todo o Brasil. A revista é distribuí- 4. http//:fafich.ufmg.br/petfilosofia/logofonia
da gratuitamente tão logo é publicada. Os interessados
podem se informar a respeito no e-mail: revistacontex- * Eric Renan Ramalho é graduando em Filosofia pela
turaufmg@gmail.com ou na sala 4131, no quarto andar UFMG.
da FAFICH. A julgar pelo caráter introdutório e pela
qualidade dos produtos que esses dois projetos geram,
eles se convertem em ótimos instrumentos para auxi- P
liar professores e alunos do ensino médio, ou mesmo o
32 estudo amador de ouvintes que, por diversas razões,
ainda não tiveram a oportunidade de frequentar a gra-
duação em filosofia, mas que nutrem interesses pela
área.

Por fim, com a finalidade de integrar o PET


com os demais discentes e contribuir para o aperfeiçoa-
mento da graduação, foi criado o “Conversas PET”. No
REVISTA PENSE | Nº 02 | Novembro/2012
O ensino como problema
filosófico: reflexão sobre a
formação de professores de
filosofia
por Rodrigo Marcos de Jesus*
e Alécio Donizete da Silva**

A experiência de ensinar filosofia na UFMT Nesse sentido, entendemos desde o início que
Este texto se baseia em nossa recente experiên- as disciplinas Filosofia e Educação e Seminário de Prá-
cia de ensino na graduação como docentes formadores tica de Ensino – intercaladas por Didática para o Ensino
de professores no curso de Filosofia no Departamento da Filosofia – formam um único eixo a desembocar na
de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso/ experiência teórico-prática do Estágio Supervisionado.
UFMT. Refletimos aqui sobre o ensino de filosofia, de Todas elas são ministradas por professores com forma-
uma maneira geral, e especificamente sobre atividades ção filosófica e em vários momentos, em prolongadas
de ensino, tomando como referências as disciplinas Fi- reuniões, nos esforçamos por sintonizar os planos de
losofia e Educação e Seminário de Prática de Ensino, ensino com vistas a atender concepções, perspectivas
ambas ministradas no segundo semestre de 2011. e objetivos comuns. Ou seja, preparar/formar profes-
sores competentes no trato dos conteúdos, mas tam-
bém munidos de recursos didáticos e metodológicos
de cunho filosófico. Não se trata, contudo, como adian-
tamos acima, de irresponsavelmente doutrinar ou di-
vulgar esta ou aquela ideologia, mas de, respeitando
as idiossincrasias de cada estudante ou de cada futuro
professor, e, levando em consideração seu contexto de
inserção social, bem como sua própria ideia do que seja
filosofia, fazê-los aproximarem-se o mais possível da
reflexão filosófica.
Mas, se é possível partir da ideia mais ou me-
nos comum de que o ‘ensino’ deve ser alçado à altu-
ra de um problema filosófico, sabemos, também, que 33
as concepções de filosofia podem variar; o que não se
deve admitir é a incoerência. A rigor, a filosofia poderia
ser entendida tanto como juízo sobre o conhecimento,
O ensino como um problema filosófico como tentativa de compreensão da realidade de modo
A tarefa de ‘ensinar a ensinar filosofia’ no cur- geral, como indagação sobre a existência humana em
so de licenciatura em filosofia, em nosso caso, passa particular, como o exercício de perguntar-se sobre ra-
pelas seguintes antevisões: por um lado, a ideia de que zões e pressupostos que engendram o sentido das
a pesquisa e a prática pedagógica nunca devem ser to- coisas ou ainda como reflexão, ou seja, o perguntar-se
madas como instâncias separadas; por outro, a noção sobre esse perguntar, etc.. Seja como for, nunca deveria
de que o ensino de filosofia deve ser compreendido ser tomada simplesmente como um produto resultante
como problema filosófico. disso ou daquilo nem dessa ou daquela atividade. A
Tal perspectiva não careceria de justificativas. filosofia é a própria atividade se realizando; é o proces-
Está ancorada na autoridade da própria história da fi- sar-se da compreensão, da pergunta e da reflexão. Des-
losofia e em representantes como Platão, Kant e Hegel, se modo, não se pode falar do ensino da filosofia senão
cujas obras não deixam dúvidas a respeito de suas pre- como uma atividade inserida num processo, qual seja,
ocupações e da importância que davam à educação e o perguntar e o agir filosóficos. Em outras palavras, o
ao ensino. Considerada, pois, dessa forma, a atividade filosofar. Isto não quer dizer que quem ensina pode se
de ensinar – no caso, ensinar filosofia – não deve ig- dar o direito de ignorar a história da filosofia ou des-
norar nem se distanciar de uma concepção própria de prezar o texto filosófico. Pelo contrário, pois a história
filosofia, a qual deve ser assumida com responsabili- da filosofia é a “história do filosofar”, e o texto o mo-
dade pelo professor. Esta, a nosso ver, seria a maneira mento privilegiado desse processo no qual o professor
mais simples e objetiva de não só postular, mas tam- e o aluno devem se inserir. Dessa maneira, não se cai
bém de exigir que o professor, que ora nos esforçamos no ativismo rasteiro e vazio. Por conseguinte, ante a
por formar, seja, em alguma medida, filósofo. tarefa de ‘ensinar a ensinar filosofia’, nunca foi possível

REVISTA PENSE | Nº 02 | Novembro/2012


fugir da tensão presente na discussão sobre em que se Na sala de aula:
deve colocar a ênfase: nos conteúdos (texto, produto, A disciplina Filosofia e Educação tinha como
currículo, etc.) ou na atividade (processos didáticos e objetivos:
pedagógicos). O que importa é que o futuro professor a) apresentar, de forma introdutória e extensiva, os
tenha suficientes conhecimentos e, independentemen- principais temas, problemas e conceitos concernentes
te de sua concepção, seja coerente, rigoroso e compro- à relação entre filosofia e educação;
metido. Fazemos nossas as seguintes palavras de Ale- b) investigar a relação entre educação, instituições es-
jandro Cerletti: colares e sociedade;
c) analisar as distintas reflexões filosóficas sobre a edu-
... postulamos a pertinência filosófico-didática de coerên- cação.
cia entre o que se assume que é filosofia e o que se ensina Optou-se por uma abordagem que privilegias-
em seu nome; sustentamos também que toda pergunta se o contato com um amplo arco histórico das relações
que seja genuinamente filosófica deverá envolver inten-
entre filosofia e educação. Tal opção justifica-se, pois os
cionalmente quem a formula (porque somente nesse caso
as possíveis respostas terão uma significação substancial
estudantes, nessa fase do curso, pouco adentraram na
para quem se pergunta) e finalmente um curso que pos- história da filosofia, uma vez que, durante o 1º período,
samos chamar filosófico deveria ser um âmbito fértil para apenas duas disciplinas de filosofia foram cursadas, a
o perguntar da filosofia (Cerletti, 2009, p. 23). saber: Introdução à filosofia e Metodologia filosófica. A
perspectiva extensiva, portanto, contribuiria para uma
Metodologia e didática próprias para a filosofia formação básica acerca da história da filosofia, ainda
A defesa do ensino de filosofia “filosófico” se que focada na dimensão da educação. Enfatizaram-se
justifica, portanto, sob vários enfoques. O mais contun- a análise e a pesquisa de autores significativos da fi-
dente deles é o seguinte: não se pode ensinar filosofia losofia da educação, mesclando pensadores europeus
sem filosofar. Do contrário a atividade não passaria de consagrados e filósofos latino-americanos que, infeliz-
um amontoado de informações, e isso não é incomum. mente, encontram pouco espaço na Academia.
No nível médio, não raro nos deparamos com aulas Procuramos articular a exposição, a análise e
baseadas em: curiosidades acerca da vida ou, com me- a pesquisa de textos de filosofia da educação por meio
lhor sorte, da obra dos filósofos, cadastros de datas e de exercícios de leitura e discussão e da elaboração de
de dados sobre a filosofia e até longas listas de temas e seminário. Para o seminário “Os filósofos e a educa-
problemas discutidos ao longo do tempo e da História ção”, por exemplo, foram criados oito grupos. Cada
da Filosofia. No ensino superior até lidamos com o tex- grupo responsabilizou-se pela pesquisa de um autor,
to filosófico, mas, de modo geral, fomos sempre esti- investigando-se textos dos próprios filósofos e de co-
mulados, no máximo, ao comentário, o que, em grande mentadores1. Desse modo, o aprofundamento temá-
parte das vezes, se reduz ao estudo de “comentadores tico-conceitual pode ser acompanhado de uma visão
consagrados”, estes sim “autoridades no assunto”. Em ampla de distintas concepções da relação entre política
ambos os casos somos repetidores, rigorosos ou não, e educação (liberal, socialista, anarquista, libertadora,
mas quanto mais rigorosos, mais inibidores da criati- integral, pós-moderna).
vidade filosófica. Para um ensino com programa e di- Buscou-se articular pesquisa e ensino por meio
dática filosóficos, exige-se um professor cuja formação de dois momentos principais: a) preparação do semi-
lhe capacite a ir além da simples transmissão de in- nário; b) exposição e debate. Detalhemos.
formações ou da transposição de conceitos estanques. A preparação do seminário consistiu numa
É preciso romper com a velha forma: um fala, outro tentativa de transformar a sala de aula em ambiente
escuta. Um, o sábio; outro, o ignorante. O primeiro, o de pesquisa, procurando sair da concepção, digamos,
professor; o segundo, o aluno. “aulista2”, para uma noção de ensino interativo3. A me-
Conforme Cerletti, na aula de filosofia, deve- todologia privilegiou momentos de pesquisa em sala
-se distinguir essas duas atitudes professorais: “em um sob orientação do professor, estabelecendo-se momen-
caso privilegiando a transmissão de saberes estandarti- tos de leitura, análise e sistematização do estudo por
zados (conteúdos), no outro, sustentando a tensão pro- meio de pequenos instrumentos de investigação, como
blematizadora do pensamento” (2009, p. 49). Essa dis- mapas conceituais, glossários, perguntas de compreen-
tinção é recorrente nos livros de crítica às pedagogias são e interpretação sobre os textos. A cada aula um dos
tradicionais, mas na prática a transmissão prevalece da instrumentos era elaborado e discutido entre o grupo e
pré-escola à pós-graduação. A partir da compreensão o professor-orientador.
dessas duas atitudes e optando abertamente pela se- O segundo momento envolvia a apresentação
gunda, entendemos por didática filosófica algo oriun- da pesquisa. Cada grupo dispunha de um tempo para
34 do das próprias atividades e/ou exercícios filosóficos
que deveriam marcar a formação do professor.
apresentação, seguido de um debate. Este debate se
iniciava com as perguntas formuladas pelos demais
Com base nessas reflexões, pensamos em pro- estudantes durante a apresentação do grupo. E se com-
gramas de ensino e metodologias das disciplinas já pletava com incursões do professor-orientador que
mencionados que pudessem enfrentar os problemas visavam à síntese entre as apresentações. O momento
concretos da formação do professor de filosofia na da apresentação mostrava-se importante como forma
UFMT. Exemplifiquemos. de incentivar os estudantes e proporcionar a eles um
pequeno exercício de prática docente, pois exigia ca-

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pacidade de articulação de pensamento e organização a) posicionar-se frente à questão e defendê-la com ar-
didática. gumentos convincentes;
Para a disciplina Seminário de Prática de En- b) formar grupos, transformar os argumentos em tex-
sino, cuja ementa privilegia a prática das atividades tos, trocando-os entre si e para cada texto exposto pro-
pedagógicas, traçamos os seguintes objetivos: criar es- duzir um comentário crítico;
paços para o aprofundamento do debate sobre o ensino c) investigar em Kant e em Hegel as raízes dessa dis-
de filosofia; discutir saberes e práticas sobre o ensino cussão;
de filosofia no Brasil; produzir propostas pedagógicas d) elaborar um plano de aula em que se discutisse esse
que aproximem a teoria e a prática em filosofia; promo- tema.
ver diálogo interdisciplinar, compreendendo o espaço
da filosofia no ambiente escolar; propor e debater pers-
pectivas metodológicas para uma efetiva contribuição Para continuar a reflexão...
da filosofia na gestão escolar. Estas são aproximações, observações e peque-
Analisada a ementa, o primeiro desafio foi nos apontamentos de uma experiência em processo.
justamente o de mostrar que a prática de ensino deve Optamos em nossa prática por um modelo que privi-
ser precedida pela prática da pesquisa, uma vez que legie a “tensão problematizadora do pensamento”, isto
a noção mais disseminada é a de que no bacharelado é, de um pensamento próprio que não se limite a enten-
se aprende a pesquisar e na licenciatura se aprende a der e dissecar problemas dos outros e às vezes extem-
ensinar. Para enfrentá-lo, procuramos o máximo de porâneos. E talvez o mais importante: uma perspectiva
sintonia com as disciplinas afins e adotamos metodo- que não hierarquize a pesquisa e o ensino, rompendo
logias parecidas, por exemplo, com a Filosofia e Edu- com a dicotomia entre ser professor e ser pesquisador.
cação mencionada acima, dando espaço e tempo para
que a sala de aula se tornasse realmente um ambiente
efetivo de produção de conhecimento. Nosso procedi- Notas
mento não se restringiu a discursos exaltando a práti-
ca educativa ou divinizando a profissão do professor 1. Os autores escolhidos foram: John Dewey, Anísio
ou ainda pleiteando, apenas com argumentos, elevar Teixeira, Mathew Lipman, A. Gramsci, J. Mariátegui,
o conceito de ensino. Várias foram as nossas apostas: José Martí, Paulo Freire, Sílvio Gallo, T. Adorno.
a) na autonomia (responsabilidade) do aluno ou pelo 2. Nesta o professor expõe um conteúdo qualquer e o
menos na tentativa de forjá-las; b) na solidificação da aluno apenas copia ou memoriza.
ideia (pela prática em sala de aula) de que a atividade 3. Relação entre sujeitos cognoscentes (professor e estu-
de ensinar e pesquisar devem se dar conjuntamente; c) dantes) em torno a um objeto cognoscível (o conteúdo).
na noção de que o rico patrimônio filosófico (a histó-
ria da filosofia e seus textos,) não são objetos sagrados
a serem apenas contemplados e admirados, mas que Referências bibliográficas:
são, sim, elementos ricos e vivos da cultura humana e
podem e devem ser antropofagicamente consumidos, ASPIS, Renata L.; GALLO, S. Ensinar filosofia: um livro 35
reciclados, debatidos e talvez recriados; e) na necessi- para professores. São Paulo: Atta, 2009.
dade de o professor-pesquisador criar ou elaborar seu CERLETTI, A. O ensino de filosofia como problema filosófi-
próprio material didático coerente com sua compreen- co. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
são de filosofia; g) na crença de que esse material a KOHAN, W. O. Ensino da filosofia: perspectivas. Belo Ho-
ser criado-pensado deveria levar em conta o contexto rizonte: Autêntica, 2002.
sociocultural no qual se insere (Brasil). OBIOLS, G. Uma introdução ao ensino da filosofia. Ijuí:
Unijuí, 2002.
Orientações Curriculares para o ensino médio. Brasília:
MEC. v.3, 2006.
Projeto Político-Pedagógico do Curso de Licenciatura Plena
em Filosofia da UFMT, 2009.
P
* Rodrigo Marcos de Jesus, professor da UFMT, Insti-
tuto de Ciências Humanas e Sociais/Departamento de
Filosofia. rodrigomarcosdejesus@yahoo.com.br
** Alécio Donizete da Silva, professor da UFMT, Insti-
tuto de Ciências Humanas e Sociais/Departamento de
Filosofia. aleciodonizete@yahoo.com.br

Atividade proposta:
Com base na afirmação “não se ensina filoso-
fia, apenas a filosofar”, realizar as seguintes tarefas:

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Avalie seu conhecimento
Teste seus conhecimentos. Envie sua resposta
para: pense-avaliacao@uol.com.br

Questão 01 Questão 02

(UFRJ – 2008) A disputa entre racionalismo e empiris- (UFMG-2003) Observe este quadro:
mo se dá no ramo da filosofia destinado ao estudo da
natureza, das fontes e dos limites do conhecimento.
Essa disputa diz respeito à questão sobre se e em que
medida somos dependentes da experiência sensível
para alcançar o conhecimento. Os racionalistas afir-
mam que nossos conhecimentos têm sua origem inde-
pendentemente da experiência sensível, isto é, inde-
pendentemente de qualquer acesso imediato a coisas
externas a nós. Os empiristas, por sua vez, consideram
que a experiência sensível é a fonte de todos os nossos
conhecimentos. Em relação ao tema, considere a se-
guinte afirmativa:

Primeiramente, considero haver em nós certas noções


primitivas, as quais são como originais, sob cujo padrão
formamos todos os nossos outros conhecimentos.
(DESCARTES, R. Carta a Elizabeth de 21 de maio de 1743.
Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978).

René Magritte, “A reprodução proibida” (1937)

Agora, leia esta citação:

A imaginação não é, como o sugere a etimologia, a facul-


dade de formar imagens da realidade; ela é a faculdade
de formar imagens que ultrapassam a realidade.
BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos. São Paulo:
Martins Fontes, 1968. p. 17-18.

REDIJA um texto estabelecendo uma correla-


ção entre aquele quadro e esta citação.

36
Com base no que foi exposto acerca da opo-
sição entre racionalismo e empirismo, responda: a
frase de Descartes é mais representativa da posição
racionalista ou da posição empirista? Justifique
sua resposta, indicando o(s) elemento(s) da frase que a
sustenta(m).

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A teoria do gosto
de David Hume
por Robson Araújo*
FIBRA e Grupo Scientia da UFMG

1. Introdução namentos acerca da indução e dos fundamentos da ci-


ência.
O objetivo desse trabalho é apresentar a con- Aos 30 anos de idade, após concluir três vo-
tribuição do pensamento de David Hume (1711-1776) lumes do Tratado, Hume começou a publicar ensaios
para a estética na dissertação Do padrão do gosto. O ar- sobre temas morais e políticos. Seus Ensaios morais e
tigo de Hume encontra-se na obra Ensaios morais, polí- políticos vieram a público em 1741. Várias alterações e
ticos e literários. Nesse texto, como em toda a sua obra, edições sucederam-se até 1758, quando, pela primeira
o pensador continua com seu propósito inabalável de vez, reuniu os ensaios sob o título Ensaios morais, polí-
querer ligar os assuntos filosóficos ao modelo interpre- ticos e literários, divididos em parte I e parte II. Nessa
tativo empirista do conhecimento e de tomar a natu- obra, cabe ressaltar que, embora o seu título expresse
reza humana o eixo principal de estudo para chegar à três gêneros: políticos, morais e literários, os temas
verdade. Como podemos ler em uma carta de 1734, ele abordados são mais abrangentes e tratam também de
comunica suas intenções: questões econômicas, históricas e de diversos outros
assuntos discutidos na época, como a estética.
Eu achava que a filosofia moral transmitida pelos antigos Nos ensaios literários, a posição de Hume é se-
padecia do mesmo inconveniente que a sua filosofia da melhante à moral, visto que a fonte do gosto encontra-
natureza, a saber, o de ser inteiramente hipotética e de de- -se no sentimento de prazer ou de dor que um determi-
pender muito mais da invenção que da experiência. Cada
nado evento pode causar a um
um consultava seu humor para erigir programas de vir-
tude e felicidade, sem levar em consideração a natureza
observador, proporcionando-lhe
humana, de que qualquer conclusão moral deve forçosa- paixões tranquilas ou violentas.
mente depender (Huisman, 2001, p. 515). Assim, para Hume, o refinamen-
to do gosto ou o senso de beleza
David Hume, filósofo escocês, nasceu em ou fealdade, numa obra de arte
Edimburgo, de uma família da pequena nobreza fundi- e literária, também é uma paixão
ária, em 26 de abril de 1711. Muito cedo apaixonou-se tranquila, que não causa qual-
quer tipo de agitação forte na
37
pelo estudo dos clássicos e da filosofia. Com 18 anos de
idade, surgiu-lhe a intuição de um novo panorama de mente do observador e do agen-
pensamento — a new sceneofthought: a Ciência da Natu- te, conduzindo-os ao deleite da
reza Humana, como uma novíssima visão filosófica da obra contemplada.
totalidade do mundo. Essa intuição proporcionou-lhe
efetivamente a ideia básica do Tratado da Natureza Hu-
mana, sua principal obra, trabalho profundo e a mais De modo geral, pode-se apontar que os en-
discutida de suas ideias. saios humeanos, além de tentarem introduzir nos as-
A filosofia humeana suntos gerais o método empírico de raciocínio, tornam
está fortemente marcada a filosofia mais reflexiva do ponto de vista do compor-
pela tentativa de funda- tamento humano, o que impediria, em sua visão, que
mentar todo saber e toda qualquer análise mais profunda ou radicalmente céti-
a ciência humana a partir ca ou dogmática viesse a predominar.
do método experimen-
tal e criticar o comporta- 2. Dialética da beleza
mento que não decorre
de crenças sustentadas O século XVIII é geralmente interpretado
na observação de even- como o século do culto da razão, do rigor, do empre-
tos. Nessa mesma pers- endorismo, das sistematizações e do pedagógico, típi-
pectiva, Hume tornou-se cos da burguesia ascendente. Há, no entanto, no olhar
conhecido como historia- atual, no campo das artes principalmente, quem inter-
dor, literato e, principal- prete esse período de uma forma mais ampla, mais di-
mente, como filósofo que, pelo seu ceticismo, conduziu versificada. Por exemplo, para Umberto Eco, o Século
o empirismo às últimas consequências e pelos questio- das Luzes é rico em contrastes, paixões desenfreadas e
violentas, pessoas tanto cruéis como virtuosas. Essas
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características podem ser encontradas nas discussões início da estética. Nele Hume discutirá nossos erros de
de reformadores e críticos que, nos salões parisienses, abordagem ao discutir o belo e o feio naquela época e
onde se expressam aqueles que leem a Encyclopédie, tentará estabelecer regras interpretativas para o bom
querem opinar sobre a verdadeira natureza do belo na gosto. Sua carga empirista é notória e ele inaugurará
arte (Eco, 2004, p. 237). É nesse clima, em meio à che- um formato de análise do padrão do gosto diferencia-
gada de um novo classicismo, de debates e polêmicas, do dos outros modelos na época, argumentando prin-
após um barroco e rococó exuberante, que a discussão cipalmente que “não julgamos de maneira diferente
do gosto é dialetizada. Segundo Eco, do que em qualidade de gosto, no sentido próprio do
termo”, pelos sentidos.
A esta complexa dialética de categorias e classes corres-
ponde uma igualmente complexa dialética do gosto: à
variada beleza rococó não se opõe um único, mas mui-
tos classicismos, respondendo a exigências diversas, por
vezes contraditórias entre si. O filósofo iluminista reivin-
dica a liberação da mente das névoas do obscurantismo,
mas simpatiza sem remorsos com o soberano absoluto e
com os governos autoritários; a razão iluminista tem seu
lado luminoso no gênio de Kant, mas um lado escuro e
inquietante no teatro cruel do marquês de Sade; da mes-
ma forma, a beleza do neoclassicismo é uma reação vivi-
ficante ao gosto do ancien régime, mas também uma busca
de regras certas e, portanto, rígidas e vinculantes (Eco,
2004, p. 239).

É razoável pensar que a busca de uma exigên-


cia maior sobre o belo fosse um tema apaixonante e
recorrente naquela época. Nesse campo de divergên-
cias sobre concepções estéticas, temos duas correntes
filosóficas opostas: racionalistas e empiristas. Também
podemos apontar, por um caminho diferente, sobre o
sentimento do belo, aquele lado luminoso, citado por
Umberto Eco, que expressa a alegria do homem mo-
derno ao experimentá-la, com vivacidade e uma liga-
ção íntima com o sentimento moral, virtuoso; e, por
outro viés, o lado obscuro do período iluminista que
se expressa sadicamente, descontroladamente e sem
escrúpulos: “O que me importa, desde que eu me satis-
faça”, dizia François de Sade, em Justine, em 1791. Mas
nosso objetivo aqui é mais simples, menos histórico,
mais filosófico. Pretendemos apenas discutir o que é o 3. Do padrão do gosto
gosto, como ele se forma e se é possível configurar um
padrão para ele. A partir do século XVIII, as noções de arte e
Para iniciar nossa análise sobre a teoria do gos- belo são vistas como objetos de investigação filosófica;
to em Hume, é bom ressaltar o que se discutia na épo- essa conexão foi fruto do conceito de gosto, entendi-
ca. Para os críticos, a estética barroca é bela, na medida do como faculdade de discernir o belo, tanto dentro
em que nos maravilha, nos encanta com suas linhas re- quanto fora da arte. Dissemos “arte e belo” porque as
curvas e de redundantes excessos. No entanto, o olhar investigações em torno desses dois objetos coincidem
racional do século XVIII acha no barroco um modelo ou, pelo menos, estão estreitamente mescladas na fi-
artificioso, negativo e descompromissado com a beleza losofia moderna e contemporânea. Isso não ocorria,
da natureza. Essa crítica mira um modelo de arte mais porém, na filosofia antiga, em que as noções de arte e
equilibrado, naturalista e de composição harmoniosa: de belo eram consideradas diferentes e reciprocamente
o neoclassicismo. Nele há uma busca da “verdadeira” independentes. A doutrina da arte era chamada pelos
antiguidade (febre pelas pesquisas arqueológicas), e antigos com o nome de seu próprio objeto, poética, ou
as teorias do bom gosto buscam algo inovador, livre e seja, arte produtiva, produtiva de imagens, enquanto o
descompromissado do tradicional (que eles acreditam
38 deformado pelos humanistas).
belo (não incluído no número dos objetos produzíveis)
não se incluía na poética e era considerado à parte (Ab-
bagnano, 1999, p. 367).
O ensaio que analisaremos a seguir, Do pa- Gosto, segundo Hume, é a fonte dos nossos
drão do gosto, na obra Ensaios morais, políticos e literários julgamentos relativos à beleza natural e à moral. Nós
(doravante citado como EMPL), é esclarecedor sobre confiamos no gosto, e não na razão, quando julgamos
o pensamento dos empiristas da época, na figura de que uma obra de arte é bonita ou que uma ação é vir-
Hume, e também contribui para o entendimento do tuosa (Hume, EMPL, p. 367). O gosto “nos dá o senti-

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mento de beleza e deformidade, de vício e virtude”, Mas, embora todas as regras da arte assentem unicamen-
como ele declara na obra Investigações sobre os princípios te na experiência e na observação dos sentimentos co-
da moral, apêndice 1. Para Hume, o gosto é o funda- muns da natureza humana, não devemos supor que, em
mento tanto da moral quanto da crítica. Ou, em termos todos os casos, os homens sintam de maneira conforme a
essas regras. Estas emoções mais sutis do espírito são de
mais objetivos, gosto e criticismo se confundem, para a
natureza extremamente delicada e frágil, e precisam do
análise humeana. concurso de grande número de circunstâncias favoráveis
No início de sua exposição, Hume aponta as para fazê-las funcionar de maneira fácil e exata, segundo
divergências entre as pessoas sobre o bom gosto, sobre seus princípios gerais e estabelecidos (Hume, EMPL, p.
o belo e a feiura. Em um mesmo local, segundo ele, es- 375).
sas divergências são pequenas, mas entre culturas dis-
tintas; por exemplo, entre pessoas de países diferentes,
as comparações de valor se mostram contrárias, incon-
sistentes. Daí:

É natural que se procure encontrar um padrão de gosto,


uma regra capaz de conciliar as diversas opiniões dos ho-
mens, um consenso estabelecido que faça com que uma
opinião seja aprovada e outra condenada (Hume, EMPL,
p. 371).

Hume considera a busca por uma regra para


o gosto como algo natural. Ele concorda que a percep-
ção criteriosa do observador é a base fundamental do
julgamento estético. Dessa forma, acredita que a ob-
servação e a nossa liberdade de julgamento, de certo
modo, tenham limites e que, especialmente na arte,
não podemos considerar iguais todos os julgamentos
de valor. Assim, há condições restritivas para o belo, ou
De acordo com essa abordagem, temos um
seja, também há critérios de qualidade na arte e, conse-
problema filosófico, antropológico e estético1: há ou
quentemente, regras para nosso critério de julgamento.
não regras universais e definitivas para o gosto? Gosto
Essas regras seriam, para Hume, procuradas nos prin-
é relativo? Em que se baseiam nossas análises do belo?
cípios do padrão clássico, nas obras da Antiguidade.
Como afirma Hume,
O filósofo escocês busca enquadrar o cânone clássico
em literatura e artes plásticas dentro da natureza dos
39
... nem todas as determinações do conhecimento são cer-
tas, porque elas têm como referente alguma coisa além de seres humanos. Desse modo, há correlações entre de-
si mesmas, isto é, os fatos reais, que nem sempre estão de terminadas formas e qualidades dos objetos e a nossa
acordo com o seu padrão (Hume, EMPL, p. 371). disposição em reagir a elas com prazer ou repulsa, com
aprovação ou desaprovação. Obras de arte que encon-
Todas as vozes se unem na exaltação da ele- traram aprovação em todos os tempos e em todos os
gância, da propriedade, do espírito e da simplicidade lugares foram testadas empiricamente, e por isso fun-
no escrever, bem como na censura do estilo bombásti- damentam a aceitação de que tais obras corporificam
co, da afetação, da frieza e do falso brilhantismo. Mas, objetivamente aquilo que o ser humano (de acordo
quando os críticos discutem os casos particulares, essa com sua natureza) aprecia e aprova. O artista genial
aparente unanimidade se deve compreender essa correlação, intuitivamente, ou
desvanece e então se des- seja, dedicar-se à observação da arte clássica, tomando-
cobre que muitos sentidos -a como padrão para o seu trabalho.
diferentes eram atribuídos
àquelas expressões (Hume, Nós seremos capazes de determinar a sua influência, não
EMPL, p. 368). a partir da atuação de cada beleza em particular, mas a
partir da admiração duradoura despertada por aquelas
obras que sobreviveram a todos os caprichos da moda e
Para Hume, os sen-
a todos os erros da ignorância e da inveja (Hume, EMPL,
timentos são mais eficazes p. 375).
que a razão ao se julgarem
questões sobre moral e gos- Na opinião de Hume, podemos deduzir leis
to. Para ele, essa tendência é gerais sobre o gosto artístico com base na igualdade
universal e complexa. universal da natureza humana buscada no cânone clás-
sico. As discrepâncias nas questões de gosto, para ele,
seriam apenas uma questão de grau:
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4. Considerações finais
como há costumes mais finos e mais rudes, assim também
há sensibilidade estética mais e menos apurada,e como Ao descrever como nos portamos apreciando
os sentidos somente são confiáveis em condições normais uma obra de arte, Hume propõe, em sua teoria do gos-
e em estado de boa saúde, assim também somente uma
to, uma abordagem totalmente naturalista e empirista.
capacidade estética em bom funcionamento é capaz de
Para ele, em matéria de avaliação artística, por prin-
fornecer julgamento correto (Kulenkapff, p. 174).
cípio, julgamos por meio dos sentidos. Esse realismo
humano coloca-o em oposição a qualquer tentativa
imaginosa ou preconceituosa de abordar o belo ou o
feio.
Hume aposta na regularidade do uso da apre-
ciação, da educação dos sentidos, usando toda a expe-
riência adquirida do passado ao tratar do bom gosto.
Propõe o método da busca de regularidades das obser-
vações, e isso passaria a ser o critério estético e o princí-
pio geral do agir humano, orientando nossa percepção
do mundo. As inferências obtidas, pressupondo uma
regularidade, trariam um padrão do gosto (o qual ex-
clui a hipótese do acaso) e passariam a ser também um
princípio que traduz o mundo e o conhecimento a res-
peito dele.
Enfim, Hume acredita que gosto se discute,
que se aperfeiçoa, que evolui com a delicadeza dos
sentidos.
O filósofo sugere que há uma educação e um
aprimoramento da sensibilidade estética, e por isso
Notas
não podemos considerar todas as pessoas como juízes 1. O termo estética não era usado na época. Estética, do grego
competentes, mas sim aqueles que julgam com base em aisthêsis, faculdade de sentir, é a ciência que trata da arte, do
exercício, comparação e amplos conhecimentos, além belo e do sentimento que ele faz nascer em nós. O substantivo
de boa vontade e sem quaisquer preconceitos. A ava- foi introduzido por Baumgarten, por volta de 1750, num livro
liação desses competentes juízes será o parâmetro para (Aesthetica) em que defendia a tese de que são objeto da arte
o gosto e a beleza. as representações confusas, mas claras, isto é, sensíveis, mas
“perfeitas”, enquanto são objeto do conhecimento racional
as representações distintas (os conceitos). Esse substantivo
significa propriamente “doutrina do conhecimento sensível”.

40

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Referências bibliográficas:

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: 04) Leia o trecho a seguir:
Martins Fontes, 1999.
ECO, Umberto. História da beleza. Tradução Eliana Aguiar. O mesmo Homero que encantava Atenas e Roma dois mil
Rio de Janeiro: Record, 2004. anos atrás ainda é admirado em Paris e Londres. Todas as
HUISMAN, Denis. Dicionário dos filósofos. São Paulo: Martins diferenças de clima, governo, religião e linguagem não
Fontes, 2001. foram capazes de obscurecer a sua glória. A autoridade e
HUME, David. Ensaios morais, políticos e literários. Tradução: o preconceito podem dar prestígio temporário a um mau
Luciano Trigo. Rio de Janeiro: Topbooks Editora, 2004. poeta ou orador; mas a sua reputação nunca será dura-
HUME, David. Hume. Trad. João Paulo Gomes Monteiro e doura nem geral. Quando as suas obras forem examina-
al. São Paulo: Editora Abril, 1980. P. 319-329: Do padrão do das pela posteridade ou por estrangeiros, seu encanto
gosto. (Os pensadores). será dissipado, e suas deficiências aparecerão com suas
KULENKAMPFF, Jens. “David Hume – Uma nova ciência da cores verdadeiras. Ao contrário, no caso de um verda-
natureza humana”, in KREIMENDAHL, Lothar (org.), Filó- deiro gênio, quanto mais tempo durarem as suas obras,
sofos do século XVIII. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2000. maior será o seu reconhecimento, e mais sincera a admi-
PHILÓSOPHOS 10 (1): 111-115, jan./jun. 2005. Cláudio Edu- ração que ele desperta (Hume, EMPL, p. 376).
ardo Rodrigues. Universidade do Estado de Minas Gerais.

P EXPLIQUE como Hume relaciona os clássicos


artísticos com o padrão do gosto.
* Robson Araújo é graduado e especialista em Filosofia,
mestre em História da Ciência e professor do Ensino 05) David Hume, no trecho abaixo, argumenta sobre a
Médio. experiência estética e seu aperfeiçoamento:
Questões
Mas se deixarem adquirir experiência desses objetos seu
01) Leia o trecho abaixo: sentimento se tornará mais exato e mais sutil. Não ape-
nas perceberá as belezas e defeitos de cada parte, como
... os mil e um sentimentos diferentes despertados pelo também assinalará o caráter distinto de cada qualidade
mesmo objeto são todos certos, porque nenhum senti- e proferirá a aprovação ou censura adequada. Toda a sua
mento representa o que realmente está no objeto. Ele se contemplação dos objetos é acompanhada por um senti-
limita a assinalar uma certa conformidade ou relação en- mento claro e distinto, e é capaz de distinguir o próprio
tre o objeto e os órgãos ou faculdades do espírito, e, se grau ou o tipo de aprovação ou desprazer que cada parte
essa conformidade realmente não existisse, o sentimento está naturalmente destinada a provocar. Dissipa-se aque-
jamais poderia ter ocorrido. A beleza não é uma qualida- la névoa que antes parecia pairar sobre o objeto. O órgão
de das próprias coisas, existe apenas no espírito que as adquire maior perfeição em suas operações, e torna-se
contempla, e cada espírito percebe uma beleza diferente capaz de pronunciar-se, sem perigo de erros, sobre os
(Hume, David. Ensaios morais, políticos e literários. Tra- méritos de qualquer produção. Numa palavra, a mesma
dução: Luciano Trigo. Rio de Janeiro: Topbooks Editora, competência e destreza que a prática dá à execução de
2004, p. 370). qualquer trabalho é também adquirida pelos mesmos
meios, para a sua apreciação
41
(Hume, David. Ensaios morais, políticos e literários. Tra-
REDIJA um texto explicativo, relacionando a dução: Luciano Trigo. Rio de Janeiro: Topbooks Editora,
relatividade dos sentimentos e a padronização do gos- 2004, p. 373-374)
to segundo David Hume.
REDIJA um texto contemplando o pensamen-
02) INTERPRETE o excerto abaixo e REDIJA um texto to do autor e a explicação do que ele queria dizer com
sobre as limitações da arte segundo David Hume. a frase: “dissipa-se aquela névoa que antes parecia pai-
rar sobre o objeto”.
Muitas das belezas da poesia, e mesmo da eloquência, as-
sentam na falsidade e na ficção, em hipérboles, metáforas
e no abuso ou perversão dos termos em relação a seu sig- 06) Leia o trecho abaixo.
nificado natural. Eliminar as investidas da imaginação,
reduzindo toda expressão a uma verdade e uma exatidão Sabe-se que, em todas as questões apresentadas ao conhe-
geométricas, seria inteiramente contrário às leis da críti- cimento, o preconceito destrói a capacidade de raciocínio
ca. Porque o resultado seria a produção do tipo de obra e perverte todas as operações das faculdades intelectuais,
que a experiência universal mostrou ser o mais insípido e e não é menor o prejuízo que causa ao bom gosto, nem é
desagradável (Hume, David. Ensaios morais, políticos e lite- menor a sua tendência a corromper o sentimento de bele-
rários. Tradução: Luciano Trigo. Rio de Janeiro: Topbooks za. Cabe ao bom senso contrariar a sua influência, e nesse
Editora, 2004, p. 373-374). caso, tal como em muitos outros, a razão se não constitui
uma parte fundamental do gosto, é no mínimo necessária
para o funcionamento dessa faculdade (Hume, EMPL, p.
03) No campo da publicidade, é comum a utilização de
385).
obras de arte em anúncios para a divulgação de dife-
rentes produtos. EXPLIQUE por que obras de arte são
REDIJA um texto explicativo como o precon-
utilizadas como recurso para persuadir o consumidor
ceito pode prejudicar uma avaliação de uma obra de
a usar um determinado produto.
arte.

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Aula: Kant nos diz que é a partir da experimentação singular
Estética que se estabelece o universal; de tal modo, os conceitos
universais para o Belo seriam alcançados por meio de
Olhares sobre o belo reflexões singulares de cada espectador. Para Kant, o
Belo é o que apraz universalmente, pois o estado de
por Jean Farias* ânimo é universal, mas não há o conceito que defina o
UFMG que é o Belo. Não é o objeto que causa a qualidade de
Belo, mas causa o sentimento de Belo.
Aisthésis, o termo grego para aquele que per- No século XX, a Estética como disciplina volta
cebe pelos sentidos. Nós transliteramos por Estética, seu olhar para a produção da arte enquanto elemento
transformamos em uma ciência; nas palavras do pro- cultural. Dois importantes filósofos do século passa-
fessor Charles Feitosa, é a ciência da sensibilidade1. A do, Max Horkheimer e Theodor Adorno, cunharam o
rigor, a estética como domínio da sensibilidade é uma termo Indústria Cultural3, em que se tem uma reflexão
tese platônica, muito embora o próprio Platão não te- acerca da cultura industrializada, ou seja, a produção
nha utilizado o termo para fundamentar um âmbito do artística é fundamentalmente moldada sob padrões
saber filosófico. Poiesis o termo que nos rendeu a pala- comerciais, é mercadoria, desprovida de crítica e sem
vra “Poesia”, significa criação. Poética é a arte da cria- qualquer objetivo de promover o conhecimento.
ção de imagens, Platão dá uma significação ética para Fundamentalmente podemos dizer que a arte
a poesia, pois o poeta, aquele que fabrica as imagens, sempre teve grande importância para a formação da
em certa medida, interfere na educação dos homens. alma humana. Mesmo antes, como tentamos mostrar,
“Para o filósofo, os artistas são o excesso de uma cida- de a Estética se constituir como uma disciplina da Fi-
de em que tudo funciona segundo um sistema de ne- losofia, os filósofos já dedicavam suas reflexões para
cessidades racionais” (Feitosa, 2004, p. 116). Segundo especular como o homem era afetado pelo produto ar-
Platão, a arte é imitação da realidade; até aí nenhuma tístico. É importante dizer que a preocupação filosófica
novidade, entretanto esta imitação (mimese) causa um com o tema não se restringe a estes exemplos paradig-
efeito na parte irracional da alma, a parte apetitiva, que máticos que apresentamos. Nossa escolha por apresen-
é responsável pelos desejos e pelas sensações. O que é tar estes filósofos é em vista de sua importância dentro
sensível, para Platão, é imperfeito, o homem não pode da história da Filosofia e não meramente pessoal, sem
ser educado a partir da imperfeição. que com isso queiramos reduzir estes modelos.
Quem promove uma ordenação para a doutri-
na da arte é Aristóteles. Em sua Poética, o discípulo de Notas:
Platão nos apresenta, quase que em forma de receita, 1. FEITOSA, Charles. Explicando a filosofia com arte. Rio de Ja-
os métodos para a poesia. Entende o filósofo de Esta- neiro: Ediouro, 2004.
gira que as emoções causadas pela arte mimética são 2. VALERY, Paul. Poesia e Pensamento Abstracto – Discurso so-
importantes, pois a catarse é responsável por expurgar bre Estética. Edição/Reimpressão: 1996.
os sentimentos prejudiciais da alma. Diz Aristóteles: 3. ADORNO, Theodor W. Indústria cultural e sociedade. São
“Duas causas naturais parecem dar origem à poesia. Paulo: Paz e Terra, 2002. 71p.
Ao homem é natural imitar desde a infância – e nisso P
difere ele de outros seres, por ser capaz da imitação e
por aprender por meio da imitação, os primeiros co- * Jean Farias é professor do Ensino Médio, graduado e
nhecimentos –; e todos os homens sentem prazer em licenciado em História e Filosofia.
imitar” (Poética, IV, 13).
O século XVIII foi responsável por organizar a
Estética como disciplina, a arte aparece como perfeição
da sensibilidade a partir da elaboração do conceito de
gosto. Immanuel Kant, em A Crítica do Juízo, busca for-
malizar os conceitos fundamentais para a Estética. E se
em Aristóteles o juízo do Belo era formado pelo poeta,
que organizava a arte de modo tal a expressar da forma
mais perfeita possível, a partir dos filósofos modernos,
o juízo do Belo é formado no espectador. Em Discurso
sobre a Estética2, Paul Valery afirma que a estética clás-
sica se dá a partir do processo de criação e tem por fim
42 ensinar o que se deve amar e o que se deve repudiar,
tal como se deve produzir o objeto artístico. Por outro
lado, a estética moderna ensina a sentir.
A novidade apresentada em Kant é o posicio-
namento intermediário entre o que é chamado de esté-
tica universalista, ou seja, que diz haver um conceito
universal de belo, e a estética empirista, que diz que a Nossa Senhora das Dores, de Aleijadinho (1730-1814).
noção de belo depende de cada experiência individual. Museu de Arte Sacra de São Paulo

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Pense

[A função social do filósofo]


O papel dos filósofos pertencentes ao mundo subdesenvolvido na compreensão do seu mundo, das razões
de tal estado e na proposta de rumos e ações políticas e culturais transformadoras da realidade ambiente é decisi-
vo. Para isso, porém, faz-se mister, antes de tudo, compreender o que significa ser filósofo no país pobre e depen-
dente. A primeira exigência consiste em admitir que não pode significar a mesma coisa ser filósofo no pais desen-
volvido, dominador e autônomo, e no que ainda vegeta no subdesenvolvimento, na ignorância do saber letrado e
na carência de soberania e capacidade de definição e direção de seus processo de existência enquanto ser histórico
particular. No mundo subdesenvolvido e na maior extensão analfabeto, o filósofo, para pensar autenticamente
a realidade, precisa ser analfabeto. Não que, evidentemente, ignore a habilidade de ler e escrever - mas sabemos
bem não ser exclusivamente esta falta que constitui o analfabetismo – , e sim porque coloca em primeiro lugar,
na tentativa de conceber e interpretar o mundo, as condições reais dele, entre as quais inclui a de ser um mundo
de analfabetos. Considerará a acumulação da cultura estranha e as diversas cogitações, passadas e presentes,
conhecidas pelo estudo dos livros, uma fonte subsidiária, embora indispensável, para a formação da consciência
de si. Mas terá de aprender muito mais com o que vê do que com o que lê. A consciência filosófica só será legítima
se explicar o estado do seu meio, não por reflexo passivo exterior, mesmo verídico, mas pela apreensão da essência
do ser social do qual o pensador é parte. O filósofo tem de identificar-se com as massas analfabetas, constituir a
figura aparentemente paradoxal do analfabeto alfabetizado, para alcançar as bases nas quais fundar seu pensa-
mento com máximas possibilidades de legitimidade. Tal como têm sido redigidos até hoje, os poucos, confusos e
irrelevantes ensaios designados no país atrasado pelo nome de “filosofia” são uma modalidade de alienação cultu-
ral em forma praticamente pura. O filósofo, não tendo nada de próprio a pensar, satisfaz-se em respirar os zéfiros
divinos provenientes das regiões ocidentais cultas, ridas, pensantes por direito natural. Algumas consequências
bizarras, e até cômicas, derivam dessa situação. No país subdesenvolvido, o filósofo, como só registra o que foi
pensado e dito nos centros metropolitanos, pode ser chamado de tabelião das ideias. A cultura, em conjunto, 43
constitui o cartório dos conhecimentos alheios. Obrigado a colecionar e registrar os produtos do pensamento
de origem externa, o filósofo, na verdade, nunca chega a ser escritor; não passa de escrevente. Realmente, não
escreve, porque não consegue ter nada de original para deixar escrito. Apenas lavra escritura do que os outros,
os sábios estrangeiros, declaram perante ele. No país subdesenvolvido é impossível o surgimento de verdadeiros
livros de filosofia. A verdade não consiste na descoberta de algum novo aspecto de ser, mas na fidedignidade das
cópias e traslados de documentos recebidos. A cultura é o registro dos bens intelectuais fielmente reproduzidos,
fabricados por pensadores de fora e apenas adquiridos por nativos com especial inclinação e suficiente tempo vago
para se dedicarem a este gênero de dissipação espiritual. Não é preciso acrescentar que fazem dessa prerrogativa
um valioso título de destaque social. A alienação torna-se o melhor sinal de capacidade intelectual. Brilha com
mais nitidez esse papel egrégio se o estudioso não se limitar à exclusiva atividade manducadora, mas se revelar
um legítimo expoente do meio desprovido de autoconsciência, engendrando livros, artigos de toda espécie de
publicações destinadas a difundir o pensamento dos outros, o que é feito com
grande satisfação pelos ressoadores indígenas, pois com esses documentos fica
comprovado em registro com fé pública seu convício com a ciência, as letras e as
artes.

VIEIRA PINTO, Álvaro. O Conceito de Tecnologia. Vol 1. Rio de Janeiro:


Contraponto, 2005, pp. 45-46.

* Álvaro Borges Vieira Pinto (1909-1987).

P
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Eventos

Convite ao pensar - 2012


PUCMINAS/ INSTITUTO DE FILOSOFIA E TEOLOGIA DOM JOÃO RESENDE COSTA
Curso de Filosofia
27 /10 Blaise Pascal: Delmar Cardoso
10/11 Michel de Montaigne: Reginaldo Horta
Aos sábados, às 10h15.
Informações: (31) 3319.4550.

XV Encontro Nacional da ANPOF


www.anpof.org.br
Estão abertas as inscrições para o XV Encontro Nacional da ANPOF, que será realizado no período de 22 a 26 de
outubro de 2012, na cidade de Curitiba, PR.
Contato: Vinicius de Figueiredo/diretoria@anpof.org.br

ENPERFI - Primeiro encontro nordestino de pesquisa sobre religião e


filosofia da India
João Pessoa/Pb
19 a 21 de Novembro 2012
enperfi.blogspot.com.br
enperfi@gmail.com

CONGRESSO BRASILEIRO DE PROFESSORES DE FILOSOFIA


12/12/2012 – 14/12/2012
Local: campus da Universidade Federal de Pernambuco

II CONGRESSO LATINO-AMERICANO DE FILOSOFIA DA EDUCACÃO


“A filosofia da educação: tradição e atualidade”
21 a 23 março de 2013
UNIVERSIDAD DE LA REPÚBLICA, MONTEVIDÉU - URUGUAI
Blog do congresso: 2docongresofilosofiadelaeducacion.blogspot.com/

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Expediente

Pense
REVISTA MINEIRA DE
FILOSOFIA E CULTUR
A

NÚMERO 2 | Novembro/2012 | BRASIL


ISSN 2238-9903
A revista Pense é aberta à colaboração de todos os
Conselho editorial estudiosos de filosofia. Os textos devem ser enviados
Eric Renan Ramalho pelo correio eletrônico ao Conselho Editorial, que ava-
Jean George Farias
liará previamente a adequação destes à linha editorial.
Marcelo Pimenta Marques
Paulo Margutti Avaliados positivamente nesta etapa, os textos serão en-
Robson Jorge de Araújo caminhados a pareceristas, membros do Conselho Con-
Rodrigo Marcos de Jesus sultivo ou especialistas ad hoc, para apreciação. Uma
Tiago Luís Oliveira vez aprovados, serão publicados no próximo número
Sílvia Contaldo
da revista com espaço disponível.
Exigências referentes às colaborações:
Secretária
Rayane Batista de Araújo 1. os temas tratados deverão ser de natureza filosófi-
ca ou apresentar estreita vinculação com a filosofia, po-
Revisão dendo ser de natureza crítica ou informativa (divulga-
Giovanna Spotorno ção de pesquisas ou quaisquer assuntos considerados
Maria Amélia Nascimento de relevância filosófica);
2. modificações e/ou correções sugeridas pelos pa- 3
Tiragem receristas quanto à redação (ortografia, pontuação, sin-
500 exemplares
taxe) ou ao conteúdo das contribuições serão devolvi-
das aos respectivos autores. Para isso, um pequeno
Arte
Juliana Nunes Saiani prazo lhes será concedido;
Robson Araújo 3. os originais deverão ser digitados e enviados por
e-mail para revistapensefilosofia@gmail.com e deverão
obedecer ao limite de 3.000 palavras. Ao final, deverá
constar a bibliografia consultada. As citações e referên-
cias deverão obedecer às normas da ABNT;
Contracapa:
O desespero do artista diante da 4. o artigo deve conter o vínculo institucional do au-
grandeza dos fragmentos antigos, tor e, quando necessário, a indicação da entidade patro-
1778-1780. Zurique, Kunsthaus. cinadora do trabalho.
Autor: Joahann H. Füssli (1741-1825)
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