Você está na página 1de 14

VIVIAN SCHELOTJC

A PRESENÇA
DO POVO NA
CULTURA
BRASILEIRA
Ensaio sobre o pensamento de
hilário de Andrade e Paulo Freire

Tradução:
Federico Carotti

EDITORA DA
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
UNICAMP
Reitor. Carios Vogt
Coordenador Geralda Universidade: José Martins Filho
Conselho EtStoríat Aécio Pereira Chagas, Alfredo
Miguel Ozorio de Almeida, Attílio José Giarola, César
Francisco Ciacco (Presidente), Eduardo Guimarães,
Hcrmògcnes de Freitas Leitão Filho, feyme Antunes
Madel Júnior, Luiz Cesar Marques Filho, Geraldo
Severo de Souza Ávila
DiretorExectttivcr. Eduardo Guimarães
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA
BIBLIOTECA CENTRAL-IJNICAMP
Schelling, Vivian
Sch26p A presença do povo na cultura brasileira:
ensaio sobre o pensamento de Mário de Andrade e
Paulo Freire / Vivian Schdling; tradução: Federi­
co Carotti -- Campinas, SP: Editora da UNI- AGRADECIMENTOS
CAMP, 1990.
(Coleção Momento)
Tradução de: Culture and underdevelopment
in Brazil 1930-1968, Mário de Andrade e Paulo Eu gostaria de agradecer a T. P. Ancona Lopes pela sua
Freire. assistência, orientação e apoio durante o ano que passei no Brasil,
1. Cultura popular. 2. Antropologia educacio­
nal. I. Andrade, Mário de, 1893-1945. n. Freire, reunindo materiais sobre Mário de Andrade. Sou particularmente
Paulo, 1921- HL Título. grata a Vaniida Paiva e Sytvia Maria Manfredi, que me permitiram o
ISBN 85-268-0189-9 20. CDD- 306.4
-370.19 acesso a uma parte considerável dos documentos e materiais
pertencentes aos movimentos de cultura popular e alfabetização de
índices para catálogo sistemático: adultos. Priscila Martins da Silva, do Centro Cultural São Paulo, e a
1. Cultuia popular 306.4 equipe da Biblioteca Municipal Mário de Andrade foram
2. Antropologia educacional 370.19 extremamente gentis em sua constante assistência à minha
Coleção Momento
pesquisa. Meus agradecimentos especiais a Octavio lanni, cujos
Copyright(c) 1991 by Vivian Schelhng
Coordenação Editorial comentários à minha primeira versão foram inestimáveis, e a
Carmen Silvia Pakna Maurício Tragtemberg, Ferreira Gullar, Lise Aron, Zaira Ary Farias e
Editoração Cecília Pacheco, por me fornecerem outros materiais fundamentais.
Nfvia Maria Fernandes Agradeço também ao professor Tom Bottomore pelo seu apoio e
Revisão
Alzira DiasSterque leitura críttca do manuscrito e ao Social Science Research Council
Marta Maria Hanser que providenciou o financiamento sem o qual esta pesquisa não teria
Composição / Diagramação / Impressão a Laser sido possível. Sou ainda muito grata a Claire Villisied, pela paciência
Serifa e boa vontade em datilografar os manuscritos.
Desenhos
Francisco Bremand
Capa
VktdCanargo
1991
Editora da Unicamp
Rua Cecílio Feltrin, 253
Cidade Universitária - Baião Geraldo
CEP 13083 - Campinas - SP - Brasil
Tel.: (0192)39.3157
O CONCEITO DE CULTURA
1.1 Conceito de cultura

A natureza de um fato, sua objetividade, e conseqüentemente


a natureza do procedimento metodológico adequado a ser seguido
não podem ser consideradas como imediatamente dadas. Um fato
sob análise é constituído pelo arcabouço teórico em que está situado
e pelos pressupostos que o sustentam. Um arcabouço teórico
específico, por sua vez, está radicado no contexto de uma tradição
intelectual mais abrangente, e assim também tem uma história.
Portanto, ao discutir a natureza da cultura, é necessário começar
pela gênese do termo ‘‘cultura”, pela qual ela se constituiu como um
tipo de fato específico.
Poucos conceitos são de elucidação tão difícil quanto o
conceito de cultura. ísso se deve não à dificuldade intrínseca de
analisar um determinado fenômeno objetivo chamado “cultura”, mas
à própria complexidade de sua história como conceito, que
impossibilita qualquer fácil acesso a seu significado.
Assim, é seguindo sua história como conceito e distinguindo as
diversas experiências que contribuíram para sua formação que se
esdlarecerão seus diferentes significados e as origens de uma série
de conceitos de cultura.
Em outras palavras, pode-se dizer que o termo "cultura” é efe
próprio çultural, na medida em que, como produto de um
desenvolvimento histórico, de um diálogo da sociedade consigo
mesma, ele traz as marcas de sua formação. Partes desse diálogo
social podem ser retraçadas até suas origens e fixadas dentro de
diferentes "universos de discurso" — tradições e estruturas
cognitivas determináveis — nos quais o termo era utilizado para
designar classes particulares de objetos e suas relações, para
responder a diversas questões sobre a natureza da vida social.
Segundo Raymond Williams,1 o termo “cultura” como conceito
controverso surgiu inicialmente como resposta à emergência do
industrialismo e da democracia política na Europa, durante os
séculos XVII! e XIX. Antes desse período de transformação social,
na civilização urbana da Inglaterra e da França que se seguiu à

21
dissolução de ordem feudal, a cultura coincidia com o termo concepção do homem como homo economicus nas teorias sociais
“civilização”. Os dois conceitos denotavam um ideal humanista dos economistas políticos. A cultura se tornou guardiã dos valores
positivo do desenvolvimento humano, possibilitado pelo poder da “humanidade”, em contraste com o efeito desumanizador da
iluminador da razão, que se realizava peia criação de uma ordem perda da comunidade e do predomínio do princípio de troca.
natural e social racional, de um mundo civilizado. O ideal do Desenvolveram-se esferas específicas onde essa vida interior
desenvolvimento secular do homem erguia-se em oposição à ordem negligenciada poderia se objetivar: as artes, as ciências humanas e
teocrática da Idade Média. a religião, onde se possibilitava o desenvolvimento daquelas
Mas, a seguir, a cultura começou a ser considerada à parte e qualidades e faculdades que caracterizavam a “humanidade”. Essas
em contraposição à civilização. Esse afastamento gradual dos dois eram as áreas reservadas onde a “subjetividade” e a imaginação
termos foi um sintoma de declínio da crença no ideal iluminista do poderiam encontrar um meio especializado de expressão, a elas
conhecimento, como um grande corpo cumulativo de conhecimento negado nas instituições externas da sociedade: o sistema fabril e as
abstrato sistemático, criticado por sua dissociação do processo crescentes burocracias. De forma semelhante, em contraste com a
orgânico e concreto da vida e por sua concepção abstrata e progressiva mecanização da vida e a mentalidade quantificadora que
desencarnada de razão. Simultaneamente, a sociedade era criticada a acompanhava, a cultura continuou a julgar por critérios qualitativos
pela vacuidade de seus ideais civilizatóríos, de suas formas de e a gerar modelos de perfeição. Assim, à medida que se expandia a
educação e excessivo refinamento, ao passo que a moral, brotando sociedade industriai, a cultura passou a ser cada vez mais
de um autêntico impulso interior, estaria sendo progressivamente considerada como uma esfera “superior" e separada do progresso
minada pela artificialidade e injustiça na França absolutista.2 técnico da "civilização”. Na exposição de Tõnnies sobre a transição
Esse ataque à civilização ilustra a brecha que começava a se da Gemeinschaft (comunidade) para a Geseischaft (associação
abrir entre os conceitos de cultura e civilização. Em oposição à contratual), a cultura, a vida da comunidade baseada na religião e
concepção iluminista da história como um processo civilizatório costumes compartilhados, é contraposta ao modo de relacionamento
universal das trevas para a luz, da irracionalidade para a razão, que egoísta e instrumental da civilização contemporânea.3
deveria culminar na sociedade contemporânea, o Movimento
Romântico enfatizava os costumes e artes qualitativamente diversos O ideal de educação defendido pela cultura era concebido mais
das culturas nacionais. A História Universal de Herder, no limiar do em termos de crescimento livre e criativo do ser humano integral,
Movimento Romântico, é uma das primeiras formulações como um fim em si mesmo, do que como uma formação
importantes da noçãó de expressões culturalmente variáveis da vida instrumentalizante onde ele setvia a um fim exterior a si próprio. O
humana nas artes e costumes de um povo. Assim, gradualmente conceito de cultura era utilizado para designar tanto uma denúncia
passou-se a pensar a civilização como expressão, não mais de um quanto uma alternativa à sociedade. Essa idéia de cultura como arte,
ideal de desenvolvimento e crescimento, e sim de uma forma literatura, esfera superior e destacada da sociedade, tornou-se uma
"meramente" material e exterior de desenvolvimento, sem relação espécie de defesa compensatória da subjetividade e das noções
necessária com o progresso da vida interior e espiritual do homem. correlatas de criatividade, imaginação e espontaneidade.
Ao invés dela, foi a cultura que se tornou a metáfora para esse
processo de crescimento. Essa oposição se acentuou ainda mais É nessa separação entre o cultural e o social que podemos
com o surgimento do industrialismo, a racionalização do trabalho, o distinguir claramente o que Adorno denominou “a natureza
desenvolvimento do capitalismo iaissez-faire e a correspondente ambivalente da cultura”.4

22 23
Na tentativa de salvaguardar urna área onde o homem é visto esfera da sociedade, ele desviava homens e mulheres da
como um fim em si mesmo, a cultura, ao se tornar um ramo transformação de suas condições:
especializado da atividade humana, reconheceu sua própria
impotência frente à progressiva racionalização e mecanização da À necessidade e miséria do indivíduo, ela (a cultura) responde com a
vida, e assim contribuiu involuntariamente para a manutenção de humanidade genérica, ao sofrimento físico com a beleza da alma, ao
uma condição social contra a qual originalmente se erguera. Nesse egoísmo brutal com a virtude do reino do dever.6
processo, porém, ela também criou uma plataforma de onde se
poderiam criticar a sociedade e suas instituições. Assim, os efeitos
Ao sustentar a validade de um modo de vida onde a realização,
desse desenvolvimento foram que, de um lado, ao ser integrada
a felicidade e a humanidade associadas à cultura podiam se efetivar,
como um compartimento especializado da sociedade, a cultura
a afirmatividade desse conceito também continha um momento
perdeu seu poder crítico, mas paradoxalmente, por outro lado, ela o
utópico e crítico negativo:
manteve ao declarar seu próprio princípio como mais verdadeiro do
que o da forma dominante da sociedade, e portanto como
fundamentalmente separado dela. Mas o idealismo burguês não é apenas ideologia: ele também
expressa um conteúdo objetivo correto. Contém náo só a justificativa
Esse processo em que a cultura veio a significar cada vez mais da forma estabelecida de existência, mas também a dor pela sua
o âmbito superior do espírito deu origem ao que Marcuse definiu continuidade, não só a concordância com o que existe, mas também
como o conceito “afirmativo” de cultura: a lembrança do que poderia existir. Ao converter o sofrimento e a dor
em forças universais eternas, a arte estilhaçou nos corações dos
homens a resignação fácil da vida cotidiana.7
Por cultura afirmativa entende-se aquela da época burguesa que, no
curso de seu desenvolvimento, levou à segregação do mundo mental
e espiritual em relação à civilização, como um âmbito independente Foi assim que um tipo particular de experiência foi identificado
de valor também cons ide rado superio r à civil izaçáo. Sua característica com as artes e utilizado como critério do valor da sociedade: o modo
decisiva é a postulação de um mundo universalmente obrigatório, mecânico de apreensão gerado pelo industrialismo era criticado com
eternamente melhor e mais valioso, que deve ser afirmado a idéia devida como uma totalidade orgânica e criativa (incluindo
incondicionalmente: um mundo essencialmente diferente do mundo tanto a natureza quanto os seres humanos). O artista, por sua vez,
fatual da luta cotidiana pela existência, mas realizável por cada foi enaltecido pela sua capacidade de reproduzir imaginativamente
indivíduo por si mesmo, a partir de dentro, sem nenhuma
essa estrutura orgânica, revelando com seu gênio a natureza da vida
transformação do estado de fato. É somente nesta cultura que as
atividades e objetos culturais ganham aquele valor que os eleva acima
universal. O artista tornou-se o portador daquelas faculdades
da esfera cotidiana. A acolhida deles se toma um ato de celebração capazes de penetrar, dar sentido e conferirforma à realidade, assim
e exaltação.5 se convertendo no exemplo da vida autêntica dotada de finalidade,
isto é, no exemplo de cultura.
Ao declarar que os valores encarnados pela cultura, a vida do Como assinalou R. Williams, esse papel do artista como crítico
espírito e a alma da humanidade, eram realizáveis sem a da sociedade levou a uma consciência da inter-relação entre formas
“simultânea” humanização do processo real de reprodução real, esse artísticas, o conhecimento e a sociedade em geral. Assim, a causa
conceito afirmativo de cultura preenchia um papel ideológico. Ao da arte poderia se transformar, e se transformou, numa questão
atuar como um paliativo para os conflitos e frustrações gerados na política; a transformação social das condições materiais e sociais

24 25
criticadas peía arte e pela cultura tomou-se o meio de realização No entanto, e para voltar ao nosso ponto inicial, essa mudança
daquela qualidade de vida associada à idéia de cultura. também teve resultados ambíguos. De um lado, a cultura era vista
como parte da sociedade como um todo, e como parte do processo
Tanto o pensamento conservador como o pensamento
de autoformação do homem, de sua práxis histórica, criando, em seu
socialista utilizaram o conceito de cultura para defender uma
concepção alternativa de ordem social, e, somado ao conceito de intercâmbio com a natureza, diferentes “modos de vida". Por outro
comunidade, ele se tornou um meio de atacar o agrupamento sem lado, a cultura foi reduzida a um produto derivado, um mero reflexo
alma ou, para empregar a expressão de Tõnnies, a mera da "base” das relações materiais. Essa interpretação da cultura é
"associação" de pessoas nos centros urbanos em expansão da particularm ente acentuada nas interpretações m arxistas
sociedade industrial. O concerto de cultura, dessa forma, ligou-se a "instrumentais” e "positivistas” da cultura. O processo de autocriação
um conceito de comunidade, no sentido de que apenas no contexto dos homens e mulheres é concebido de acordo com a lógica do
social adequado para o desenvolvimento desse tipo de experiência processo tecnológico. Cada fase sucessiva na história torna-se a
é que seria possível a realização do ideal de cultura. Evidentemente, solução necessária para as disfunções no sistema social, através de
os programas conservador e socialista para a realização da cultura uma revolução na organização da produção. A cultura, desse ponto
ideal diferiam de modo radical: enquanto o primeiro se voltava para de vista, simplesmente acompanha essas transformações da base
o corporativismo da Idade Média, o segundo procurava criar uma material. Assim, embora apontando para as interligações entre elas,
democracia socialista através da revolução social. Contudo, ambos as conseqüências dessa crítica materialista particular foram, em
levantavam o problema da ordem política, assim abrangendo a primeiro lugar, o fortalecimento da cisão entre sociedade e cultura,
questão da democracia, do poder, da participação e da educação em e, em segundo lugar, a neutralização do efeito crítico que a religação
suas discussões sobre o conceito de cultura. A sociedade não era entre essas esferas poderia ter sobre os que procuravam defender
mais vista como uma área neutra onde todos os indivíduos os valores da cultura, reafirmando sua diferença em relação à
perseguem seus fins egoístas e racionais, como no pensamento civilização material. Na virada dò século, o desenvolvimento
liberal; pelo contrário, a sociedade era considerada como aquilo que subseqüente dessa idéia de cultura deu origem à distinção entre
mediava o homem em relação a si mesmo.8 cultura erudita e cultura de "massa”, e para a hostilidade reacionária
contra as “massas” e a civilização em geral, como na obra de
Embora as necessidades materiais e sua organização não Spengier.^
estivessem , no pensam ento so cia lista , separadas do
desenvolvimento do ser autêntico e da finalidade humana, ele Um segundo conceito de cultura para o qual contribuiu o
também perpetuou, ainda que de outra maneira, a divisão entre desenvolvimento do pensamento socialista foi o da cultura
cultura e sociedade. “Cultura” e “civilização” eram termos modernos, constituindo “todo um modo de vida”. As origens dessa noção
no sentido de expressarem a convicção de que o homem poderia também brotam da reação romântica ao ílumlnismo. Em oposição às
não só compreender, mas também conscientemente construir sua categorias analíticas e generalizadoras dos sistemas científicos do
ordem social, através do estudo e da orientação do desenvolvimento iluminismo, ela postulava uma compreensão genética da realidade
social. Essa concepção da história como um processo social como uma totalidade abrangente onde se expressava o
autoconstitutivo foi incorporada ao pensamento socialista, “espírito” de um determinado povo. Seguindo Herder, ela enfatizava
particularmente ao marxista, com a diferença de ser interpretada o crescimento orgânico das culturas nacionais e a complexidade de
materialisticamente como história do processo de trabalho, do qual sua expressão individual em suas crenças e costumes e em todo seu
a cultura fazia parte. modo de vida.10

26 27
Essa corrente deu origem ao que se conhece como o conceito modelação simultânea e concorde da mente humana e da
diferencial ou antropológico de cultura. Aqui, a cultura se torna um sociedade. Como o antropólogo contemporâneo Clifford Geertz
substantivo coletivo para padrões de comportamento sociaimente afirma em A interpretação das cuituras:
adquiridos através da tradição: linguagem, costumes, crenças e
instituições. Torna-se um processo social modelando diferentes A cultura é pública porque o significado o é,.. ela consiste em
modos de vida, constituindo uma totalidade complexa. Como estruturas de significado socialmente estabelecidas... um universo
afirmam Kluckhohn e Kelly, em sua definição de cultura: imaginativo onde os atos são signos... Como sistemas entrelaçados
de signos interpretáveis, a cultura não é um poder, não é algo a que
A cultura é um sistema historicamente derivado de intenções se possam atribuir causalmente acontecimentos, comportamentos,
explícitas de viver, que tende a ser partilhado por todos os membros instituições ou processos sociais; é um contexto, algo dentro do qual
de um grupo, ou pelos membros especialmente designados.11 eles podem ser descritos de maneira inteligível.13

E como sustenta Margaret Mead: Em segundo lugar, com a descoberta de sociedades


consideravelmente diferentes das européias, durante o período de
A cultura significa todo o complexo de comportamento tradicional que expansão colonial, o conceito diferencial de cultura recebeu uma
foi desenvolvido por cada raça humana e é sucessivamente aprendido legitimação ainda maior. A aceitação e sistematização da
por cada geração.12 relatividade dos modelos culturais num paradigma “científico” está
relacionada com a consciência crescente da crise da sociedade
Portanto, a cultura, segundo a definição antropológica, é um burguesa e de sua perda de capacidade em sustentar uma crença
fenômeno “supra-individual”. Ela é aprendida, partilhada e adquirida, confiante na universalidade dos valores, que havia acompanhado
tornando-se permanente através do tempo e independente de seus seu desenvolvimento. A crença otimista no progresso unilinear da
portadores. sociedade liberal estava sendo minada pelo caráter anárquico e
co n tra ditó rio do capitalism o, criando ao longo de seu
Outros desenvolvimentos posteriores na história da Europa nos desenvolvimento não só riqueza, civilidade e controle racional sobre
séculos XVIII e XIX contribuíram para a criação do conceito a nature/a, mas também, simultaneamente, miséria, alienação e
antropológico de cultura. uma nova forma de barbárie.
Ele foi influenciado, em primeiro lugar, pela tradição oitocentista Finalmente, deve-se considerar uma terceira tradição de
alemã das Geisteswissenschaften (ciências humanas) (Rickert, importância considerável na formação do conceito de cultura, a
Windelband, Dilthey), segundo a qual a sociedade constituía uma
saber, a tradição metafísica do idealismo alemão. Os sistemas
cultura na medida em que era uma comunidade espiritual de filosóficos elaborados pelo idealismo alemão, particularmente a obra
significados partilhados. Alcançar-se-ia o conhecimento do mundo de Kant e Hegel, constituíram uma tentativa de alcançar um domínio
humano não através da análise causal, como nas ciências naturais, conceituai unificado sobre a realidade e a experiência em sua
mas através da compreensão da ação humana e suas objetivações totalidade.
num mundo inteligível de significados, intenções e valores.
Semelhante à distinção entre história e natureza já estabelecida por De acordo com Kant, a realidade pode ser dividida entre mundo
Vico, essa escola definiu uma “ciência cultural” que descrevia o modo sensível e mundo inteligível. A estrutura transcendental da razão a
especificamente cultural do desenvolvimento dos seres humanos, a priori constitui o primeiro como mundo empírico, sujeito a leis, e o

28 29
segundo como mundo dos valores inteligíveis. Posteriormente, no através de uma integração entre o indivíduo e o conjunto social, o
final do século XIX, esse dualismo viria a formar a base para a idealismo de Hegel prolonga a critica da perda da comunidade já
distinção metodológica entre as ciências naturais e as ciências contida na idéia romântica de cultura. Assim, embora existam muitas
culturais, entre a explicação e a compreensão, discutidas acima. Na diferenças entre a concepção de mundo romântica e o idealismo
crítica de Hegel a Kant, o dualismo do mundo sensível e do mundo alemão, ainda assim a ênfase de ambos sobre a cultura como uma
inteligível, do sujeito raciocinante e do mundo empírico era totalidade intersubjetiva constitui uma das idéias dominantes da vida
questionado em favor de um conceito de razão que abarcava tanto intelectual européia do século XIX.
o sujeito quanto o objeto; considerava-se que a razão se manifestava
Uma das características marcantes do idealismo hegeliano
em ambos como um princípio unificador, subjacente a todas as
consiste em sua ênfase sobre a razão, como capacidade do sujeito
manifestações fenoménicas. O papel da filosofia consistia na
em compreender a totalidade da realidade e suas contradições,
reconstrução da realidade como um processo racional inteligível; a
inclusive a natureza do homem e suas finalidades. A razão era
filosofia, na verdade, era a realidade tomando-se autoconsciente.
entendida não só como a capacidade de ordenar o mundo e
Visto que a razão era o processo da realidade, o desenvolvimento
selecionar os meios adequados para perseguir determinados fins
histórico e todo o mundo histórico do homem assumiam grande
(Verstandj, como também o grau de harmonia entre as ações dos
importância.14 Assim, Hegel tenta demonstrar que a realidade é a
homens e mulheres e a natureza objetiva da realidade, alcançado
razão em seu movimento rumo ao autoconhecimento. Em outros
na prática da vida (Vernunft). Assim, os conceitos de cultura, razão
termos, esse autoconhecimento da razão é o processo do
e prática humana estavam interligados e viriam a se desenvolver
conhecimento humano em desenvolvimento acerca de tudo o que
posteriormente no conceito de cultura como práxis, conceito esse
constitui seu mundo: a natureza, ele mesmo e a história. Dessa
que agora vou discutir.
forma, a razão existe como uma entidade objetiva, a saber, como o
mundo tal como o vivemos na história e nas instituições. Mas ela Incluída no conceito diferencial de cultura há ainda uma terceira
também é uma categoria moral, pois a obtenção do conhecimento idéia. Na visão antropológica, a cultura constitui um meio
absoluto se equipara à obtenção da liberdade, que se dá graças à especificamente humano, um mundo "supra-orgânico”, que surge
penetração na natureza da realidade.15 como resultado da incompletude do homem em sua capacidade
Muitos dos temas mencionados acima, como portadores de puramente biológica, pela qual ele se distingue do animal. A cultura,
uma contribuição à formação do conceito de cultura, aparecem e são portanto, é não só aquilo que diferencia um “modo de vida” em
relação a outro, como também corresponde à capacidade, específica
em larga medida formulados por essa tradição filosófica. A síntese
idealista entre sujeito e objeto sugere uma consciência crescente da do gênero humano, de criar um meio artificial. Assim, a própria
interligação entre as formas sociais e culturais. Ela também possibilidade da cultura é o atributo genérico do homem; ela
concerne àquelas propriedades da espécie humana que delimitam
desenvolve a idéia de cultura como um processo e uma condição
atingida pelo conjunto da sociedade. E ainda dá à razão, à as fronteiras do humano.
consciência, o papel de um modelo crítico para avaliar a que ponto De acordo com Zygmunt Bauman, essa capacidade genérica
a realidade se aproxima da idéia. Ao construir um sistema que para a cultura se radica na capacidade humana de linguagem, que
descrevia o desdobramento da razão, Hegel concebia o mundo como não deve ser confundida com a capacidade de formação de
um processo inteligível e como o avanço da consciência humana em símbolos, também presente nos animais. A linguagem humana
direção à liberdade. Em sua ênfase sobre a realização da liberdade abrange especificamente a combinação de símbolos capazes de

30 31
O animal forma uma unidade com sua atividade vital. Ela não distingue
expressar relações entre coisas, indivíduos e acontecimentos. a atividade de si mesmo. Ele é sua atividade. Mas o homem faz de
Devido a essa capacidade de criar novas combinações de símbolos sua atividade vital um objeto de sua vontade e consciência. Ele tem
e estruturas de relações, os seres humanos são capazes de uma atividade vital consciente. Não é uma determinação com a qual
invenção e criatividade, de estruturar e desestruturar, de formar ele se identifique completamente. A atividade vital consciente
novas sínteses com o material fornecido pelo contexto do meio distingue o homem da atividade vital dos animais... Apenas por essa
natural e social. Dessa forma: razão sua atividade é atividade livre. O trabalho alienado inverte a
relação, na medida em que o homem, por seu autoconsciente, faz de
sua atividade vital, seu ser, apenas um meio para sua existência...
Enquanto os outros animais não podem se alterar a não ser
modificando sua espécie, o homem pode se transform ar
Os animais, evidentemente, também produzem. Constroem ninhos,
transformando o mundo, e pode se estruturar construindo estruturas;
casas, como no caso das abelhas, castores, formigas etc. Mas
e essas estruturas são suas, pois não são predestinadas nem de
produzem apenas o que é estritamente necessário para eles ou suas
fora.16
crias. Produzem apenas numa única direção, ao passo que o homem
produz universalmente. Produzem apenas sob a compulsão da
Esse atributo humano genérico de estruturar e ser estruturado necessidade física direta, ao passo que o homem produz quando está
livre da necessidade física e produz verdadeiramente apenas quando
encontra-se na base do conceito de cultura como práx/s, pois através
livre de tal necessidade. Os animais só produzem a si mesmos, ao
da práxis o homem não só se adapta ao mundo, como também o passo que o homem reproduz o conjunto da natureza. Os produtos da
transforma. Essa transformação ocorre em dois níveis: em primeiro produção animal pertencem diretamente a seus corpos físicos, ao
lugar, no nível de interação do homem com a natureza e como ser passo que o homem é íivre frente a seu produto. Os animais só
da natureza, modificando o ambiente natural com o uso de constroem de acordo com os padrões e necessidades da espécie a
ferramentas. Ocorre também no nível da consciência, da interação que pertencem, ao passo que o homem sabe produzir de acordo com
comunicativa entre os indivíduos e sua organização social. Portanto, os padrões de todas as espécies e sabe aplicar o padrão adequado
a espécie humana não só se adapta instrumentalmente à natureza, ao objeto. Assim, o homem também constrói de acordo com as leis
transformando-a, como também passa por um processo de formação da beleza.17
{Biidunçft como ser consciente. Por um lado, o homem como ser 0
natural depende da natureza; por outro, sua capacidade de estruturar Duas importantes conseqüências decorrem dessa noção de
o mundo através da práxis dota-o com uma certa liberdade para práxis como característica distintiva da espécie humana. Em primeiro
ultrapassar os limites postos pela natureza. lugar, ela foi utilizada por Marx como um instrumento analítico para
desvendar a natureza alienada do trabalho na sociedade capitalista
O conceito de práxis constitui uma categoria central na obra de e, assim, assinalar que a divisão do trabalho numa formação social
vários pensadores na tradição marxista. Para as finalidades deste específica não é um fato natural, mas particular de uma determinada
estudo, porém, consideraremos aqui apenas a reflexão de Marx época histórica. A práxis, portanto, era conceito descritivo e, ao
sobre a natureza da práxis e a elaboração particular de Gramsci mesmo tempo, crítico-normativo. Em segundo lugar, ela se tornou a
deste conceito. base da epistemología materialista apresentada nas Onze teses
sobre Feuerbach. Sintetizando a ênfase do idealismo alemão sobre
O atributo genérico do modo humano de existir, estruturando e
o importante papel da razão e da consciência na constituição da
sendo estruturado, acima discutido, foi desenvolvido por Marx em
realidade, e a doutrina materialista de que as condições materiais
sua análise do trabalho alienado:

33
32
determinam a consciência, Marx definiu a práxis como "a
Precisamos nos livrar do hábito de ver a cultura como conhecimento
coincidência entre a transformação das condições e a atividade
enciclopédico, e os homens como simples reoeptáculos a serem
humana ou autotransformação".18 preenchidos com fatos empíricos e um amontoado de fatos brutos
Essa noção de práxis abrange numa nova síntese alguns dos isolados, que têm de ser catalogados no cérebro como nas colunas
de um dicionário, permitindo a seu proprietário responder aos vários
significados centrais presentes nos dois conceitos anteriores de
estímulos do mundo exterior. Essa forma de cultura é realmente
cuttura. Ao ressaltar a capacidade do ser da espécie em “construir
perigosa, em particular para o proletariado. Serve apenas para criar
de acordo com as leis da beleza”, ela preserva a significação do pessoas mal-ajustadas, pessoas que acreditam ser superiores ao
conceito de cultura como conjunto de realizações artísticas e resto da humanidade por terem memorizado um certo número de fatos
intelectuais e enquanto busca da realização humana como um fim e datas, e que os desfiam em todas as oportunidades, assim quase
em si mesma. Abrange ainda o conceito de cultura como todo um que os convertendo numa barreira entre eles e os outros. Serve para
modo de vida, concebido como um processo de autoconstituição. criar o tipo de intelectual fraco e inexpressivo... que gerou uma massa
Finalmente, ao apontar como uma prática particular, a saber, a de falastrões pretenciosos que têm um efeito sobre a vida social mais
apropriação do trabalho alienado na sociedade burguesa, inverte o prejudicial do que os germes da tuberculose ou da sífil is sobre a beleza
modo particular da produção do eu e do mundo, característico da e a saúde física do corpo... eles acabam se considerando diferentes
espécie humana, a noção de cultura como práxis também aborda a e superiores até mesmo ao mais qualificado trabalhador, que realiza
questão da razão na vida social. Em outras palavras, ao investigar a uma tarefa precisa e indispensável na vida e é cem vezes mais valioso
em sua atividade do que eles nas suas. Mas isso não é cuttura, e sim
racionalidade subjacente a uma ordem social fundada na
pedantismo, não é inteligência, e sim intelecto, e é absolutamente
apropriação do trabalho alienado, o ponto de vista da práxis tenta
correto reagir contra isso.
desvendar a irracionalidade fundamental dessa ordem segundo os
critérios da razão objetiva, isto é, até que ponto uma sociedade livre
A cultura é algo totalmente diferente.20
e harmoniosa foi criada.

Logo, como assinala 2. Bauman, a noção de práxis também Em contraposição a essa noção de cultura como conhecimento
deve ser diferenciada de certas interpretações antropológicas da enciclopédico, Gramsci entendia a cultura como intimamente ligada
cultura que procuram identificá-la com a sobrevivência adaptativa: à vida social: os movimentos sociais e os conflitos entre classes, que
faziam avançar o desenvolvimento histórico; as instituições da
sociedade civil, particularmente a escola e a igreja, onde em larga
A cultura humana, longe de ser a arte da adaptação, é a mais medida se formavam a consciência, a linguagem e a visão do mundo
audaciosa tentativa de se livrar dos grilhões da adaptação como o dos indivíduos. A verdadeira cultura ia além dos “fatos brutos
supremo obstáculo ao pleno desdobramento da criatividade humana. isolados*', consistia na consciência crítica dessas relações, cujo
A cultura, sinônimo de existência especificamente humana, é uma
ponto de partida é “a consciência do que se é realmente, o
ousada arremetida pela liberdade frente à necessidade e pela
liberdade de criação.19 ‘conhece-te a ti mesmo’ como um produto do processo histórico até
o presente, que depositou em você uma infinidade de traços, sem
deixar um inventário”.21
Talvez a melhor maneira de elucidar a elaboração pessoal de Longe de ser entendida como uma esfera separada da
Gramsci sobre o conceito de práxis seja a de observar sua crítica ao sociedade, a cultura era vista como uma "força material”.
concerto afirmativo de cultura: Determinadas filosofias se tornaram dominantes numa determinada

34 35
época não em virtude do esforço de um filósofo isolado ou de grupos consciência e a realidade material se dá através da relação dos
de intelectuais, nem tampouco porque constituísse a filosofia das agentes sociais, especialmente a relação de hegemonia entre
massas “populares", mas porque, a partir da interação de todos dominantes e dominados. A dinâmica de sua relação prática e
esses elementos, ela se converteu em “uma norma de ação coletiva”. intelectual modifica a natureza dos grupos dominantes e
Assim, afirma Gramsci: subordinados, de seus membros individuais e da estrutura social
objetiva, constituindo aquilo que Marx considerava como a práxis: a
A filosofia de uma época histórica, portanto, não é senão a “história* ‘‘coincidência entre a transformação das condições e a atividade
daquela própria época, não é senão o conjunto de variações que o humana de autotransformação”. Assim, a cultura, na primeira
grupo dirigente conseguiu impor sobre a realidade precedente. A acepção como cultura erudita, e a sociedade são unificadas por
história e a filosofia, nesse sentido, são indivisíveis: elas formam um Gramsci. O terreno onde ocorre essa fusão forma uma parte
bloco.22 importante das áreas da vida social estudadas pelos antropólogos,
a saber, a linguagem, a religião popular e o folclore. No entanto, na
A história era um processo em que uma classe, através de uma concepção de Gramsci, a relação de hegemonia entre a cultura
série de conflitos e compromissos, tornava-se dominante na erudita dos intelectuais e a “filosofia espontânea” das “massas
sociedade, em termos não só econômicos, como também populares” é um elemento essencial do estudo da cultura no sentido
intelectuais e morais. antropológico. A produção cultural da sociedade está, pois,
intimamente vinculada às relações .do poder econômico, político e
Fundamental para o estabelecimento desse domínio era a ideológico na vida social entre os grupos, classes, nações e
relação de hegemonia, pela qual a população dava um civilizações dominantes e subordinados:
consentimento "espontâneo” à “direção geral imposta à vida social
pelo grupo dominante".23 E essa relação de hegemonia, por sua vez,
Essa forma de relação existe em todo o conjunto da sociedade, para
era possível devido ao fato de todos os seres humanos serem cada indivíduo em relação aos outros indivíduos. Ela existe entre os
filósofos, possuírem uma “filosofia espontânea”, formando o terreno setores intelectuais e não-intelectuais da população, entre dominantes
onde se estabeleceria a relação de hegemonia entre os “dominantes" e dominados, as elites e seus seguidores, dirigentes e dirigidos, a
e os “dominados”. Essa ‘filosofia espontânea” poderia ser dividida vanguarda e o corpo do exército. Toda relação de “hegemonia" é
em três esferas diferentes: a linguagem, "uma totalidade de noções necessariamente uma relação educacional, e ocorre não só dentro de
e conceitos determ inados, e não apenas de palavras uma nação, entre as várias forças que compõem a nação, mas
gramaticalmente vazias de conteúdo"; a religião popular, “o sistema também no campo internacional e mundial, entre complexos de
completo de crenças, superstições, opiniões, modos de ver as coisas civilizações nacionais e continentais.26
e agir, coletivamente reunidos sob o nome de “folclore”; e o “senso
comum”.24 A dimensão "senso comum” da ‘'filosofia espontânea” Além disso, as categorias de hegemonia, ideologia e senso
refere-se à "concepção mais difundida da vida do homem” criada e comum, desenvolvidas por Gramsci, não são apenas instrumentos
sustentada por todos os estratos da sociedade. Situando-se entre o analíticos a serem utilizados para entender cientificamente a
pensamento sistemático da filosofia e o folclore, ele não constitui realidade social. Elas também incorporam a instância
uma concepção coerente e unificada.25 crítico-normativa do ponto de vista da práxis, na medida em que o
Na elaboração de Gramsci, o conceito marxista de práxis se conceito de práxis, ou seja, enxergar a história como processo
concretizou de uma maneira particular. A interação dialética entre a coletivo de autocriação do homem, coloca a possibilidade de criar

36 37
uma ordem social de maior liberdade e justiça, de razão e na estrutura social do Brasil no período 1920-1964. Além disso, o
democracia, definida por Gramsci da seguinte maneira: Brasil é um país dependente na "periferia" dos “centros
metropolitanos”, onde ocorreram os desenvovimentos históricos dos
Entre os múltiplos significados de democracia, o mais realista e quais derivaram os três conceitos de cultura. Nesse sentido, os
concreto, a meu ver, pode ser formulado em relação com o conceito universos de discurso significados por cada um deles também
de "hegemonia*. No sistema hegemônico, existe democracia entre o contribuem para a compreensão do desenvolvimento da sociedade
grupo “dominante” e os grupos que são "dominados1' na medida em brasileira. No entanto, dada a formação do Brasil como um país
que o desenvolvimento da economia e, por conseguinte, a legislação
dependente e subdesenvolvido— em outras palavras, como um país
que expressa tal desenvolvimento favorecem a passagem (molecular)
subordinado aos “centros” —, eles adquirem uma fisionomia própria,
dos grupos "dominados’’ para o grupo "dominante".27
relacionada e, em alguns aspectos, análoga aos significados que
surgiram nos “centros”, não deixando no entanto de ser diferente.
Para alcançá-lo, o objetivo último de uma análise da cultura do
Portanto, observar a relação entre cultura e subdesenvolvimento
ponto de vista da práxis era efetuar um tipo particular de unidade
permite uma visão não só da natureza da sociedade brasileira, como
entre o conhecimento sistemático dos intelectuais e a ‘filosofia
ainda da natureza dos próprios “centros metropolitanos”. Assim,
espontânea” do “povo":
antes de nos voltarmos para a obra de M. de Andrade e P. Freire, é
necessário discutir rapidamente o conceito de dependência, para
A posição da filosofia da práxis é a antítese da católica. A filosofia da
observarmos, a seguir, a formação cultural do Brasil como país
práxis não tervde a deixar os “simples" em sua filosofía primitiva do
senso comum, mas, pelo contrário, a conduzi-los para uma concepção dependente.
mais elevada de vida. Se ela afirma a necessidade de contato entre
os intelectuais e os "simples", não é com o fito de restringira atividade
científica e preservar a unidade ao baixo nível das massas, mas NOTAS
exatamente a fim de formar um bloco intectual-moral capaz de
possibilitar politicamente o progresso intelectual da massa, e não 1. R. Williams, Culture and society, 1780-1950. Penguin Books, 1976.
apenas de pequenos grupos intelectuais.28
2. J. J. Rousseau, First and second discourses. Nova York, Roger D. Masters,
1964, p. 36.
Nos capítulos que se seguem, a análise da obra de Mário de
3. F. Tonnies, Community and association. Londres, C. P. loomis, trad, 1955,
Andrade e Paulo Freire será inspirada pelos três conceitos de cultura p. 262.
acima discutidos. As noções de cultura como uma esfera “superior”
4. T. W. Adorno, Gesellschaftstheorie und kulturkritik. Frankfurt, Main, Suh rkamp,
e separada da atividade humana, como um "modo global de vida”, 1975.
como práxis, hegemonia e senso comum, formarão, por assim dizer,
5. H. Marcuse, Negations. Boston, Beacon Press, 1969 (trad. J. Shapiro), p. 95.
os pilares centrais em torno dos quais seus discursos serão * Salvo indicação em contrário, todas as traduções são da autora. (N.E.)
reconstruídos, tendo em vista elucidar suas contribuições para o
6. Ibid., nota 5, p. 98.
entendimento da relação entre cultura e subdesenvolvimento. Para
tal, também se discutirão as questões e significados que participaram 7. Ibid., nota 5, pp. 97-98.
da formação histórica dos três conceitos de cultura, na medida em 8. Cf. R. Williams, op. cit., nota 1, p. 314.
que lançam luz não só sobre a formação dos conceitos de cultura no 9. a The Frankfurt Institute of Sociology, “Culture and civilisation", Aspects o f
Brasil, como também revelam e expressam mudanças fundamentais sociology. Londres, Heinemann, 1973.

38 39
10. Cf. J. G. vort Herder, Menschhert und nation. Amsterdã, Akademische
Veriagsanstaít, Pantheon, 1914, e F. M. Bamand, Herder's social and political
thought. Cambridge University Press, 1965.

11. Kluckhohn e Kelly, “The concept of culture’, org. Relph Linton, The science o f
man in the world crisis. Nova York, Columbia University Press, 1945, p. 98.

12. Cit. in A. L. Kroeber & C.KIuckhohn, Culture, a critical review o f concepts and
definitions. Nova Yori<, Vintage Books, 1952, p, 90.

13. Qeertz, The interpretation o f cultures. Londres, Hutchinson & Co., 1975, pp.
3-30.

14. G. W. F. Hegel, Lectures on the Philosophy o f History. Londres, Routledge &


Kegan Paul, 1962.

15. H. Marcuse, Reason and revolution. Londres, Routledge & Kegan Paul, 1969.

16. Jean Piaget, dt. em Z. Bauman, Culture as praxis. Londres, Routledge & Kegan
Paul, 1973, p. 52.

17. K. Marx, Eariy writings, trad, e ed. T. B. Bottomore. Londres, G.A.Watts & Co., 2
1963, pp. 127-28.

18. K. MarxeF. Engels, The German ideology, org. C.J. Arthur. Londres, Lawrence
& Wishart, 1970, pp. 121-23. AS ORIGENS DA
19. Z. Bauman, op. dt., nota 16, p. 172. DEPENDÊNCIA CULTURAL
20. A. Gramscl, Selections from the political writings, 1910-1920, org. Q. Hoare.
Londres, Lawrence & Wishart, 1977, pp. 11 -3.

21. A. Gramsci, Selections from prison notebooks. Londres, Lawrence & Wishart,
1978, pp. 324-25.

22. Ibid., nota 21, p. 345.

23. Ibid., nota 21, p. 12.

24. Ibid., nota 21, p. 323.

25. Ibid., nota 21, p. 327.

26. Ibid., nota 21, p. 350.

27. Ibid., nota 21, p. 56, nota.

28. Ibid., nota 21, p. 333.

40

Você também pode gostar