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INDIGESTOS TRÓPICOS

ORGANIZAÇÃO: ANA CAROLINA PRUDENTE


NASCIMENTO; ANA CLARA MATTOSO;
ANA SAYEG TRANCHESI; AUGUSTO MELO
BRANDÃO E THIGRESA

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APRESENTAÇÃO DOSSIÊ: INDIGESTOS TRÓPICOS
tradução
tradução

Ana Carolina Prudente Nascimento; Ana Clara Mattoso;


Ana Sayeg Tranchesi; Augusto Melo Brandão e Thigresa

Indigestão: algo que fica, incomoda; embrulho no Na contramão do projeto positivista de ordem e
estômago, mas também retorno à boca. Necessi- progresso emergem práticas políticas e artísticas
dade de processar de outra forma. Adesão ao corpo que denunciam certo estado de indigestão. Da
diferenciada, impertinente, no entanto, eficaz em negativa ao banquete conciliatório de uma imagem
dar notícias sobre transgressão – indigestão não se apaziguadora, esses experimentos parecem querer
contém nos limites, é perigosa, precisa transbordar. roer os contornos dos mapas, operando através
desse gesto de borramento, novas estórias, ima-
Com o título Indigestos Trópicos, o Dossiê da edi-
gens e ações. Quem sabe, para perguntar à terra,
ção 39 da Revista Poiésis, visa propor uma reflexão
de suas fendas, de sua fome e de seu grito.
crítica em torno do processo - geográfico, históri-
co e simbólico - de construção de um discurso da Indigestos Trópicos apresenta-se assim como uma
brasilidade. Diante do contexto político e social dos baliza, não determinante.
últimos anos, observamos um crescente interesse
No precipício dessas inquietações, decidimos que
nas produções de algumes artisties, em questionar
além de coletiva, nossa indigestão seria também
não apenas os símbolos da identidade nacional -
imprevisível. Assim, acionamos um convite-dispo-
bandeiras, estandartes e monumentos - como os
sitivo a 6 artisties-pesquisadories com a seguinte
espaços em que o discurso hegemônico sobre a
proposta performativa:
identidade brasileira se produziu historicamente.

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1. Convide outra pessoa, de sua livre escolha, para de a borda pensamos e articulamos este Dossiê.
realizar com ela seu trabalho; Desde o seu lugar da contra-exterioridade dispara-
2. A forma e o conteúdo são livres, mas a proposta, seja mos um gatilho: produzir uma dissonância no (ao?/
ela qual for, deve surgir do encontro de vocês, em co- em direção ao?/para?) centro.

Depois de organizar, reorganizar estas ordens, de


autoria;

entender na prática, nas escritas, nas fotografias e


3. Pedimos que, sempre que possível, levem em

relatos os Indigestos Trópicos, o que se configurava


consideração o formato da revista, que não comporta

como uma provocação, um gatilho e até mesmo


vídeos, apenas imagens e textos.

Fosse através de um trabalho visual, um ensaio, uma baliza, transfere-se para uma ação. Corpus
um texto literário ou o que mais lhes apetecesse, Indigestos Trópicos, conceito Indigestos Trópicos,
nossa proposição fundamentava-se no desejo de performance e ação Indigestos Trópicos.
incrementar com dissonância uma receita intuitiva Pensar neste dispositivo convidativo de produção
de curadoria aberta. Não sabíamos, naquele para este trabalho de curadoria proporcionou
momento, que o acaso direcionado traria consigo que cada trabalho presente formasse sua própria
contribuições tão pulsantes sobre transversalidade, teia com outres sujeitos, sejam pelas centenas de
fronteiras, imaginários sonhados-cruzados, e vozes que foram ouvidas pelo artista, professor e
fricções entre a História contada e as estórias pesquisador Elilson e transmitidas em seu trabalho
desviantes. Fabular o presente para sonhar com 123 ponteiros de Brasil; ou seja pela presença dos
futuros mais possíveis e alegres para todes. artistas fortalezenses Ednardo e Augusto Pontes; da
Os trópicos podem ser enfim remodelados em artista cearense que nasceu no distrito de Quitaiús
margens fluídas, vibrantes e furtivas, configurando do município de Lavras da Mangabeira-CE, Maria
resistências abrigadas em comunalidades e comu- Macedo; do artista da região do sertão do Ceará,
nidades transitórias, espaços onde a borda invade Lívio Pereira ou escritor cearense,Thiago Florêncio,
o centro, e o centro se espalha sem retorno. Aqui, que foram presentificados no texto A arte brasileira
falamos de uma contra-exterioridade daquela pro- não se resume ao eixo Rio de Janeiro – São Paulo:
duzida pelo que se convenceu chamar de centro. A sotaques poéticos do Nordeste por uma urgente
borda produz, quebra e reorganiza os olhares. Des- história da arte escrito às seis mãos de Eduardo
Bruno, João Paulo Lima e Waldírio Castro.

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Ou ainda, nas localidades e nas imagens dos traba- para compreender o fazer da performance. Re-pen-
lhos Os Baobás do fim do mundo: trechos líricos de sar a arte brasileira, os fazeres artísticos desde ou-
uma etnografia com religiões de matriz africana no tros poros e porosidades que podem e vão expandir
sul do Rio Grande do Sul de Marília Kosby e Zé Dar- olhares das formas de contar a performance em
ci e na Série Mapas de Talles Lopes, assim como os seus dissensos brasilis.
atravessamentos entre cinema e etnografia, emba-
Na sequência, trombamos com Julia Raiz e Maré
lados pelo tambor da macumba no texto de Camila
em uma especulação futurista denominada: Com
Freitas e José Miguel Olivar.
o que sonha Lula? Krenak sonha com lives. Sonha-
Nesse sentido, Imagens trans: transe, fabulação e -se sonhos úmidos, sonhos de terra, de hormônios
sobrevivências na fronteira, é encruzilhada na flo- e formigas, o que é profundo e perpassa todas as
resta, dando início as contribuições do dossiê com existências – mesmo a das bisas em suas vidas
texto partilhado por Camila Freitas e José Miguel aparentemente pacatas. Assim segue o baile, a
Olivar. Contextualizado na Tríplice Fronteira Ama- prosa, o poema-experimento que provoca os os
zônica entre Brasil, Peru e Equador, o “entre” é o elo sentidos, imbrica imagens, panos de bandeira em
fundamental para se orientar frente às experiências um certo sarcasmo, elemento imprescindível a toda
de corpos dissidentes em um território transfrontei- receita indigesta.
riço – sempre em trânsito. Habitar a fronteira ecoa Numa reverberação não programada dos últimos
como aposta do encontro entre cineasta e antropó-
trechos de Raiz e Maré, seguimos em outra parce-
logo, nos alcançando com imagens-vagalumes de
ria, dessa vez de Marília Kosby e José Darci Bar-
um tempo além do tempo.
ros Gonçalves com Os Baobás do fim do mundo:
Nossa bússola sem norte segue adiante nos levan- trechos líricos de uma etnografia com religiões de
do até o enlace entre Eduardo Bruno, João Paulo matriz africana no sul do Rio Grande do Sul. Entre-
Lima e Waldírio Castro, um texto-labirinto para tecidos em poemas e pinturas, o axé é materiali-
repensar as produções deslocalizadas do sudeste zado em caminhos plurais, apontando direções
a partir de outras localidades geográficas, históri- singulares e ainda assim coletivas.
cas e simbólicas. A arte brasileira não se resume
Talles Lopes, com sua Série Mapas, torna quase
ao eixo Rio de Janeiro - São Paulo se estabelece
tátil a experiência de fronteiras insubordinadas
perante a urgência de se produzir outras trajetórias

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que desejávamos evocar no Dossiê. Não à toa, um Lembrete para seguirmos atentes aos murmúrios
de seus trabalhos, A Marcha (2018), foi escolhido do solo, ao que está acontecendo agora nas fen-
como capa da Revista, onde nos inclinamos ao das insurgentes de um trópico amargo. Atentes às
método cartográfico a partir de uma perspectiva práticas artísticas engajadas num fazer partilhado,
confusa. As métricas seguidas pelo artista não se fazer este que ensaia metodologias experimentais
sujeitam a um olhar óbvio. No miolo de nosso Dos- abertas ao imprevisível. Nosso palpite é que doses
siê, já chegando ao fim das contribuições, chega- homeopáticas – ou overdoses em alguns casos,
mos ao ensaio visual de Talles, onde outros mapas quem sabe – de indisciplina, são capazes de, ao
nos convidam a distorcer as concepções tortas menos, transformar o indigesto em um motivo de
de um Brasil inventado. Em seus mapas, as linhas reconhecimento de pares; reunião daqueles que
institucionalizadas da cartografia ocidental, já não seguirão conosco nas lutas por terras mais habi-
são tão rígidas e inquestionáveis. táveis e que celebram a possibilidade de traçar,
juntes, outras formas de experimentar fronteiras.
123 ponteiros incrementam nosso caldo com o
tempero final, pois se antes pensávamos numa co-
laboração em dupla, Elilson traz à dança 123 vozes,
coletando-as e colocando em movimento o passa-
do de 123 anos de Juquery, complexo hospitalar e
colônia psiquiátrica de São Paulo. A memória é viva,
assim como as composições coletivas. Ao frisar o
caráter da escuta em seu trabalho – no qual os re-
latos foram coletados a partir da oralidade – Elilson
brinca com um cinema de voz, onde a contação de
histórias pode criar novas imagens para estórias já
esboroadas pelo tempo.

Assim fluímos, sentindo-nos também parte, par-


ticipantes de uma rede costurada a muitas mãos,
ouvidos, bocas e línguas. Olhares vastos para terri-
tórios de caminhadas infinitas. Nunca se esgotam.

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