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OS BAOBÁS DO FIM DO MUNDO: TRECHOS LÍRICOS DE UMA

ETNOGRAFIA COM RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA NO SUL DO


RIO GRANDE DO SUL
The Baobás of the end of the world: lyrical excerpts from a african religion ethnography on the south region of
Rio Grande do Sul
Los Baobás del fin del mundo: fragmentos líricos de una etnografía de religiones de origen africana en la parte
sur de Rio Grande del Sur

Marília Kosby [Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UFRGS]*


José Darci Barros Gonçalves [Artista independente]**

RESUMO O ensaio reúne poemas de Marília Kosby e pinturas de José Darci, que compõem a primei-
ra edição do livro Os Baobás do fim do mundo. Realizada em parceria entre a poeta e o pintor, a obra
investiga possibilidades líricas através do encontro etnográfico realizado junto a terreiras na região de
Pelotas, sul do Rio Grande do Sul. Os poemas e as imagens descrevem guias, caminhos e vertentes de
uma força chamada axé, cuja arte de brotar, se desdobrar e espalhar é um saber gerado, transmitido e
atualizado a partir da experiência da diáspora africana.

ABSTRACT The present essay assembles poems written by Marília Kosby and paintings from José Darci,
which compose the first edition of the book Os Baobás do fim do mundo. Resulting from the partnership
between poet and painter, the book investigates poetic possibilities through the ethnographic encounter with
terreiras communities in the region of Pelotas, located on the southern region of Rio Grande do Sul state. The
poems and images picture guias and pathways of a force called axé, with an ability to root and to spread
itself that constitute a shared knowledge, informed by the experience of the African diaspora.

RESUMEN El ensayo recoge poemas de Marília Kosby y pinturas de José Darci, que componen la primera
edición del libro Os Baobás do fim do mundo. Realizada a través de la colaboración entre poeta y pintor, el
trabajo investiga posibilidades poéticas mediante el encuentro etnográfico realizado junto a terreiras en la
región de Pelotas, al sur del departamento de Rio Grande do Sul. Los poemas y imágenes describen guías y
caminos de una fuerza llamada axé, portadora de una capacidad de germinar y de extenderse que consti-
tuye un saber generado y transmitido a través de la experiencia de la diáspora africana.

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* A poeta Marília Kosby, nasceu no ano de 1984, na cidade de Arroio Grande, extremíssimo sul do Brasil. Suas principais pesquisas e
escritos percorrem esta região do planeta e suas emanações, abordando a presença negra e afrodescendente nos limiares austrais da
América Latina, as relações entre humanos e animais na pecuária pampiana, e a condição de mulher nas sociedades pastoris do meridião
americano. Publicou os livros de poesia Os baobás do fim do mundo (2011) e Mugido [ou diários de uma doula] (2017), este finalista do
Prêmio Jabuti de Literatura 2018. Doutora em Antropologia Social (UFRGS), com pós-doutorado em Filosofia (Uni-
KOSBY, Marília;
versité de Liège/Bélgica), publicou o ensaio “Nós cultuamos todas as doçuras”: as religiões de matriz africana e a
DARCI, Zé. Os
tradição doceira de Pelotas, pelo qual recebeu o Prêmio Açorianos de Literatura/2016 e o Prêmio Boas Práticas de
Baobás no fim do
Salvaguarda do Patrimônio Imaterial Brasileiro/2015. Publica poemas em revistas literárias brasileiras e internacio-
mundo, trechos
nais, participa de antologias. Tem poemas publicados em espanhol e inglês. Como compositora, foi premiada em
líricos de uma etno- festivais de música popular. Faz vídeos-poema e experimentações com poesia falada e música. Sua trajetória pode
grafia com religiões ser acompanhada no blog-portfólio https://aletraxucra.blogspot.com/ email: floorkosby@gmail.com
de matriz africana https://orcid.org/0000-0003-1037-5490
no sul do Rio Gran- ** O artista plástico José Darci Barros Gonçalves, também conhecido como Zé Darci, nasceu na cidade de
de do Sul. Revista Arroio Grande/RS, em 1960. Desde 2000, José Darci participou de cerca de 70 exposições, entre individuais
Poiésis, Niterói, v. e coletivas, por todo o Estado do Rio Grande do Sul, tendo sido premiado pelos trabalhos “Fome Zero” e “Fome
23, n. 39, p. XXXXX, 2” nas edições de 2005 e 2006 do concurso Sesi Descobrindo Talentos. Ainda em 2005, participou do Salão
jan./jun. 2022. de Arte Afro-Brasileira, em Porto Alegre/RS e, em 2006, expôs no Museu Farroupilha de Piratini/RS e participou
[DOI: ] do III Salão Sesi Artes Visuais Do Trabalhador, com exposições na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul
e no Museu da Fiergs (Porto Alegre/RS). Em 2009, participou do XIV Circuito Internacional de Arte Brasileira,
Este documento expondo no Museu Pablo Neruda – Isla Negra / Santiago – Chile e no Museu de Arte da Pampulha – Belo
é distribuído nos Horizonte /MG. Em 2010, o trabalho “Brasil na África do Sul” participa do XV Circuito Internacional de Arte
termos da licença Brasileira, percorrendo mostras na Alemanha, República Tcheca e São Paulo. José Darci realizou exposições
Creative Commons no Memorial do Rio Grande do Sul, durante o Fórum Social Mundial de 2016; na Câmara de Vereadores de
Atribuição-NãoCo- Porto Alegre, em 2014 e 2015. Expôs em diversos eventos de cunho antirracista e de valorização do protagonis-
mercial 4.0 Interna- mo negro no campo intelectual e artístico. Entre os anos de 2010 e 2012, trabalhou no projeto “Cultura, Terra e
Resistência: Matrizes por onde construir materiais didáticos para quilombos” (Faculdade de Educação/UFPel e
cional (CC-BY-NC)
MEC), escutando e pintando histórias contadas em comunidades quilombolas da região sul do Rio Grande do
©️ 2022 Marília
Sul. Desde 2009, integra o grupo de artistas Quilombos Urbanos.
Kosby, Zé Darci

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A primeira edição do livro Os baobás do fim do Os três capítulos em que o livro se divide marcam a
mundo teve lançamento em 11 de novembro de passagem de diferentes momentos da experiência
2011, na Bibliotheca Pública Pelotense, esgotando etnográfica da autora, trazendo textos que expres-
no mesmo ano, depois de realizar exposições de sam como foi sendo elaborado o conhecimento a
lançamento por diversos municípios do extremo respeito do modo de viver junto aos grupos com os
sul do Brasil. Primeiro livro de poesia da poeta e quais estudava.
antropóloga Marília Kosby, a obra foi uma parce-
O primeiro capítulo, Etnodelírios, traz versos
ria com o artista plástico José Darci Barros Gon-
construídos em sonhos relacionados ao diário de
çalves (Zé Darci), tendo sido publicada pela hoje
campo, transcritos entre março e julho de 2008,
extinta editora Novitas, de Vera Cruz/RS.
durante a realização do curso “Jogos, performan-
É bem possível ser “Os Baobás do Fim do Mundo” ces e simbolismos – etnografias afro-brasileiras”,
uma obra carente de definições mais precisas – ministrado pelo professor Marcio Goldman, no
às vistas de quem por estas se interessar, é claro. Programa de Pós-Graduação em Antropologia So-
Talvez seja sua publicação a expressão mesma cial do Museu Nacional, na Universidade Federal
desta busca por um lugar legítimo dentre as do Rio de Janeiro.
construções textuais que se erigem do encontro
Os textos apresentados no capítulo Do Banzo
etnográfico; e que, simultaneamente imprimem
foram escritos juntamente com sua dissertação de
neste a pretensão de ser uma experiência em
mestrado, intitulada “Se eu morrer hoje, amanhã
parte apreensível pelos outros, os leitores.
eu melhoro: sobre afecção na etnografia dos pro-
O que se pode dizer a respeito dessa primeira cessos de feitura da pessoa de religião no Batu-
compilação de textos em verso é que o material que, em Pelotas/RS”, trabalho defendido em abril
reunido foi escrito por uma antropóloga, e surgiu de 2009 e orientado pela professora Flávia Rieth,
durante a fase de conclusão de seu mestrado no Programa de Pós-Graduação em Ciências So-
acadêmico, cujo projeto de pesquisa se tratou da ciais da Universidade Federal de Pelotas.
continuidade de um trabalho etnográfico realiza-
Por fim, no capítulo Os Baobás do Fim do Mundo,
do junto a terreiras na região de Pelotas, sul do
tem-se os guias, os caminhos, as vertentes, de uma
Rio Grande do Sul.
força chamada axé, cuja arte de brotar, se desdo-

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brar e espalhar, é um saber gerado, transmitido com o universo filosófico afro-brasileiro, esta obra
e atualizado a partir da experiência de pessoas consta de um glossário alfabeticamente organiza-
negras trazidas como escravas da África para as do para as palavras sinalizadas em itálico.
Américas, e que, apesar disto, se constitui não ape-
Enfim, antes e além de tudo, este livro é uma forma
nas em um patrimônio étnico, mas numa significa-
de retorno ao pessoal “de religião”, que encarregou
tiva potência de dignidade e vitalidade de imensas
sua autora de “levar a beleza de suas religiões para
minorias americanas. Os textos que compõem este
fora dos muros das terreiras”. Beleza das “coisas
último capítulo foram escritos entre 2009 e 2010,
que nos comovem, na medida em que, traduções
e se relacionam com a experiência de retorno ao
míticas de nossa estrutura interior, lançam luz sobre
campo, o que culminou na atualização de proces-
nós mesmos ao mesmo tempo em que resolvem
sos religiosos iniciáticos.
nossas contradições num acorde único”.¹
Os capítulos são
ilustrados com repro-
duções fotográficas de
pinturas do artista plás-
tico Zé Darci (José Dar-
ci Barros Gonçalves),
integrante do Grupo
de Artistas Quilombos
Urbanos, da região de
Pelotas, e parceiro da
autora em outros proje-
tos artísticos.

Visando uma leitura


mais compreensível ao
leitor que tem seu pri-
meiro contato literário
João Saudade, acrílica s/ tela.

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O OUTRO
Eu sou como você
porque tenho medo de você
Medo
de ser você
e nunca mais encontrá-lo
noutro lugar
fora daqui
Te perco tanto mais te sou

ANTROPOLOGIAS
Eu tenho as tuas palavras
e uma dose quase nula
de certeza
para ser capaz
de evitar as minhas

Pai Silvério, acrílica s/ tela.

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SACRIFÍCIO

Sacrificai o vosso corpo


em nome de um espaço que aguente vossos tempos
de consciência e sanidade
Explicai vossos desejos
nos desenhos sujos de vossa pele intacta

Atravessai as horas, os metros cúbicos,


os anos bissextos
emaranhados em vossas palavras
sempre tão pequenas
compartimentos transbordantes
de uma vida que não sabe e nem conhece nada de irreal

Comparai o valor de vosso sangue


e percebei que o mundo que vos deram vossos planos
não abarca sonhos nem lampejos
Ele não contempla beleza e movimento

Orai ao vento
rogai ao vento
entregai ao vento
Ele que organize as contas
da desgraça que é ser Piá, acrílico s/ tela.
ao mesmo tempo
chão e bolha
céu e âncora

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IANSÃ
Sobre um mar que mais parece à noite uma lâmina
num pequeno barco sem vela
carrega com ela a morte
Pois Iansã é vento
Nunca está
Nem aqui nem lá
E assim fica
“cada um no seu lugar”
Baobá, acrílico s/ tela.

IEMANJÁ
Transfiguração foi um primeiro nome dado aos corvos
Mas como corvos frequentam cemitérios
a palavra virou insígnia
E quando contra os piratas
se voltou o vento,
o oceano,
que também tem seu lado de dentro
revirou-se em marés
para que depois de mortas
as estrelas do mar
virassem pedras

Tudo evolui!
Tudo apodrece

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OS BAOBÁS DO FIM DO MUNDO
Zimbábue
Com “z”, de beiço
O meu pai tem um pé no Xingu e outro no fogo
A minha mãe, a boca de quem come flor
e gosta
Meus irmãos são só saudade
Os avós, um bicho grande
Sangram entre o céu e eu
Enquanto os santos banqueteiam
agarradas às costas do mundo
as figueiras se eternizam

A SAIA DE MAMÃE
É tão linda a saia de mamãe
na beirinha da praia
É tão bonito ver o mar
todinho aos seus pés
Que ela lavre meu peito em segredos
Vó preta, óleo s/ tela.

Que desfaça o feito em claridades


no meio dessa noite cega NOTAS
é tudo o que eu posso pedir
Mamãe verte o mar com os olhos
ela embala as ondas no colo
1 LEIRIS, Michel. Espelho da tauromaquia. São Paulo: Cosac
& Naify, 2001.

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