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dossiê

4 Agontimé: Representação e representatividade em


uma versão artística da fundação da Casa de Minas
(Agontime: Representation and representativeness in one

version artistic foundation of Casa de Minas)

Edson Silva Farias*


Henrique Borralho**
Edvania Gomes da Silva***

arquivos do cmd, v. 09, n. 01, jan/jul 2021


ropa (Portugal): construção de identidades, afirmação de senti-
* Edson Farias é pesquisador do CNPq (Conselho Nacional de dos, financiado pela FAPEMA (Fundação de Amparo à Pesquisa
Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Professor do PGSOL/ do Estado do Maranhão) através do edital Apoio ao IECT: Gestão
UnB (Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universida- pública e economia criativa nº 008 / 2017 – IECT, que custeou
de de Brasília) e do PPG em Memória: Sociedade e Linguagem a tradução e a publicação do romance em questão, e pelo CNPQ,
da UESB (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia). Líder do através da chamada Universal MCTIC/CNPq.
grupo de pesquisa Cultura, Memória e Desenvolvimento (CMD/ *** Professora Titular/Pleno da Universidade Estadual do Sudo-
UnB). Coordenador do Comitê de Pesquisa em Sociologia da Cul- este da Bahia (UESB); docente do Programa de Pós-Graduação
tura da SBS. Editor da revista Arquivos do CMD. Email: nilosed@ em Memória: Linguagem e Sociedade (CAPES / UESB) e do
gmail.com. ORCID: 000-0002-9406-3269. Programa de Pós-Graduação em Linguística (CAPES / UESB). É
** Professor do Departamento de História, Universidade Estadu- membro do Grupo de Pesquisa em Análise de Discurso (GPADis/
al do Maranhão (UEMA), São Luís. Coordenador do Programa de UESB/ CNPq). Atua na área de Linguística, área de concentração
Pós-Graduação em Letras (UEMA), do Núcleo de Estudos em His- em Análise de Discurso, com ênfase nos seguintes temas: discurso
toriografias e Linguagens – NEHISLIN, UEMA, coordenador do religioso; polêmica discursiva e interdiscurso; aforização. Email:
projeto de pesquisa: Périplo Literário: Brasil (Maranhão) África edvaniagsilva@gmail.com. ORCID: 0000-0002-6201-7583.
(Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Cabo Verde) e Eu- 69
edson silva farias, enrique borralho, edvania Gomes da Silva

Resumo – Neste ensaio, analisamos o ro- ano mina-jeje na América portuguesa, seja
mance Agontime, her legend, de autoria da da participação negroafricana na formação
escritora estadunidense Judith Ilsley Glea- do povo brasileiro.
son. Antiga rainha do Daomé, Agontimé te-
ria vivido entre o final do século XVIII e início Palavras-chave: Agontimé; representa-
XIX. Ao longo deste período, fora escravizada ção/representatividade; versão artística; li-
ainda na África e trazida ao Brasil. Desem- teratura; patrimônio cultural maranhense.
barca em Salvador, na Bahia, onde viveu até
rumar para São Luís, capital do Maranhão, Abstract – In this essay, the novel Agontime,
no início do século XIX. A ela é atribuída à her legend, by the American writer Judith Ils-
fundação da Casa das Minas – espaço-sím- ley Gleason, is analyzed. Former queen of Da-
bolo da matriz religiosa do Tambor de Mina- homey, Agontimé would have lived between
-Jeje, com devotos sobretudo no Maranhão e the late 18th and early 19th centuries. During

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no Pará. Espaço hoje reconhecido como pa- this period, she was still enslaved in Africa
trimônio cultural maranhense. Os objetivos and brought to Brazil. She disembarks in Sal-
deste texto se concentram no exame de como vador, Bahia, where she lived until she moved
o conjunto resultante das articulações simbó- to São Luís, capital of Maranhão, in the early
licas, na materialidade expressiva do roman- 19th century. It is attributed to the founda-
ce, conduz ao entendimento de algumas das tion of Casa das Minas – a symbol-space of
facetas decisivas à montagem do mosaico the religious matrix of Tambor de Mina-Jeje
discursivo-institucional, contido na ideia de with devotees mainly in Maranhão and Pará.
patrimônio cultural do Maranhão. Isto, ao se Space today recognized as a cultural heritage
considerar como a versão romanesca traduz of Maranhão. The objectives of this text focus
esse patrimônio cultural e, ao o mediar ar- on the examination of how the resulting set of
tisticamente, difunde-o como representativo, symbolic articulations, in the expressive ma-
seja da presença diaspórica do povo daome- teriality of the novel, leads to the understand- 70
edson silva farias, enrique borralho, edvania Gomes da Silva

1. Judith Gleason nasceu ing of some of the decisive facets to the as- Maranhão, em início do século XIX3. Ali, seguindo os
em 1929, em Pasadena, sembly of the discursive-institutional mosaic, desígnios do seu vodum, seria a fundadora do templo
e faleceu em 2012, em
Nova York, nos Estados contained in the idea of cultural
​​ heritage of Querebentã Toi Zomadonu (Casa Grande das Minas
Unidos. Realizou seu Maranhão. This, when considering how the Jeje) – instituição de referência religiosa afrobrasi-
mestrado em literatura novel version translates this cultural heritage leira no norte do país e, desde 2002, tombada como
no Radcliffe College e
seu doutorado em litera- and, by artistically mediating it, spreads it as patrimônio imaterial pelo Instituto do Patrimônio
tura comparada na Uni- representative, either of the diasporic pres- Histórico Artístico Nacional (IPHAN).
versidade de Columbia. ence of the Mina-Jeje Dahomean people in Judith Gleason se baseou na pesquisa etnográ-
Atuou como consulente
de faculdades e organi- Portuguese America, or of the Negro-African fica4 em torno de Agontime, que teria influenciado
zações que iniciam pro- participation in the formation of the Brazilian as tradições culturais do Maranhão, a partir da fun-
gramas de humanidades people. dação da Casa das Minas – espaço-símbolo da ma-
e literatura africana.
Autora dos livros This triz religiosa do Tambor de Mina-Jeje, com devotos
Africa: Novels by West Keywords: Agontimé; representation/rep- sobretudo no Maranhão e no Pará. Contudo, além
Africans in English and

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resentativeness; artistic version; literature; de muito difundida nesses dois Estados, a referida
French (Northwestern
University Press, 1965), Maranhão cultural heritage. Matriz religiosa, que hoje desfruta do prestígio de se
Orisha, the Gods of Yo- constituir em um ícone do povo-nação brasileiro5,
ruba Land (Atheneum, o qual teria entre as suas características as variadas
1971), A Recitation of
Ifa, Oracle of the Yo- Neste ensaio, analisamos o romance Agontime, her mesclas etnicorraciais, é encontrada em outros Esta-
ruba (Grossman, 1973), legend, de autoria de Judith Ilsley Gleason1. Anti- dos do Norte e do Nordeste, a exemplo da Bahia, e em
Santeria, Bronx (Ath- ga rainha do Daomé – sendo uma das mulheres do algumas cidades de outras regiões do Brasil, como
eneum Books, 1975) e
Leaf and Bone: African rei Agonglo2, segundo a tradição poligâmica vigente Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília, para onde foi
Praise Poems (Puffin, ainda hoje em diferentes sociedades horizontalmen- levada principalmente por migrantes do Maranhão
1994). Seu livro Oya. te estratificadas – Agontimé, entre o final do século e do Pará. O romance de Gleason atravessa essa te-
In Praise of an African
Goddess foi editado pela XVIII e início XIX, fora escravizada ainda na Áfri- citura, mas com a finalidade de apreender e expor
Bertrand Brasil (Rio de ca e trazida ao Brasil. Desembarca em Salvador, na como as tradições daomeanas são repostas no trân-
Janeiro, 1993) com o tí- Bahia, onde viveu até rumar para São Luís, capital do sito diaspórico pela crucial agência da rainha escra- 71
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tulo de Oiá. Um Louvor


à Deusa Africana. vizada. Importa-lhe fazer o caminho da África para povos negros. No caso particular do Brasil, em suas
2. Governou o Daomé de as Américas em busca de desvendar as interferências respectivas especificidades, a obra assinada por Gle-
1789 a 1797. que se reverberam no tambor de mina, sem recorrer ason se inclui nas mobilizações artísticas e intelectu-
3. Em 2001, a Escola à fórmula narrativa da miscigenação. O romance se ais contra a narrativa da miscigenação e, na mesma
de Samba Beija-Flor de demora, portanto, na descrição e nos comentários perspectiva, na exigência pela correção da presença
Nilópolis apresentou no
Sambódromo carioca o acerca dos episódios que antecedem o deslocamento negroafricana na história do país. Quando se trata
enredo A Saga de Agoti- da rainha subjugada ao Novo Mundo. de São Luís e do seu patrimônio histórico e cultural,
me, Maria Mineira Nãe. Na base deste ensaio estão as versões da tradi- deve-se levar em conta que, o acolhimento do tema
A narrativa da Escola foi
inspirada nos relatos da ção oral popular que focalizam Nã Agontimé e são multiculturalista do reconhecimento da identidade
pajé marajoara Zenaide retomadas e transliteradas pela linguagem artística negroafricana tem por embasamento as alterações
Lima. literária. Assim, interessa-nos a posição sociossim- sensíveis ocorridas nos modos de conceber e repre-
4. O tradutor, Carlos bólica ocupada por essa personagem tão histórica sentar a noção de povo naquela unidade da federação
Eugenio Marcondes de quanto mítica na articulação contemporânea do pa- brasileira. Segundo Antônio Evaldo Almeida Barros
Moura, na apresentação

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do romance (2022, s/ trimônio histórico-cultural maranhense. A narrativa (2007)6, no início do século XX, deu-se a reatualiza-
pd), menciona que: “A do romance remonta e dialoga, vale sublinhar, com ção do mito da “Athenas” brasileira7, no instante em
leitura de autores como o debate de viés pós-colonialista que, desde do ter- que esse tropo fora ressignificado pelo inserção em
Melville Herskovitz
(Dahomey, an ancient ço final do século XX, acentua e faz ressoar a luta seu escopo de elementos da cultura popular, incluin-
west African kingdom empreendida em favor do reconhecimento das jus- do nisso as manifestações religiosas afrodescenden-
(1936), Manuel Nunes tificativas morais próprias a grupos sociohumanos tes, mesmo diante de ataques da imprensa local. Ou
Pereira (A Casa das Mi-
nas: contribuição ao es- alvos de expropriações materiais, sobretudo, no que seja, reconfigura-se uma memória acerca desse pas-
tudo das sobrevivências diz respeito àquela autoridade para se autodesignar sado luvidocense, que se refere, em princípio, ao pa-
do culto dos voduns, e nomear. Mobilizações estas que, em se tratando triarcado ruralista branco escravocrata, e se passa-se
do panteão daomeano,
no Estado do Mara- das Américas, manifestam-se nas interpelações de a se considerar não apenas as lembranças relativas
nhão (1947) e Octávio nações indígenas contra a tutela estatal e pelo res- à presença lusitana, mas, sobretudo, dá-se visibili-
da Costa Eduardo (The peito aos saberes tradicionais dos povos das flores- dade à existência da gama tão ampla quanto diversa
negro in northern Bra-
tas, mas também de afirmação identitária racial dos de práticas e significados inerentes à diáspora ne- 72
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zil (1948), deu grande


suporte às pesquisas de groafricana no Maranhão8. É possível defender que quando remetemos a este conceito, estamos nos refe-
campo que ela realizou há, nesse processo de releitura do mito fundador da rindo ao modo como um grupo ou mesmo uma socie-
primeiramente no Brasil
“Athenas” brasileira e da consequente retomada de dade se representa num bem simbólico, respaldado
e mais tarde em algumas
regiões da Nigéria e, so- uma narrativa acerca do Maranhão, a ação de uma em significados admitidos não só como irredutíveis,
bretudo, em Abomey, no memória discursiva, a qual, segundo Pêcheux (2007 mas cuja autoridade moral lhe concede o status de
Benin, onde reinaram
[1983]), “marca uma tensão contraditória no pro- valor-parâmetro no acolhimento ou rechaço de ou-
doze reis, entre 1625
e 1900. Em Abomey, cesso de inscrição do acontecimento no espaço da tros significados e na afirmação da proposição com a
para onde retornou vin- memória”, o que, ainda segundo o referido autor, qual essas unidades justificam sua imagem identitá-
te e cinco anos após suas
funciona sob uma dupla forma-limite, marcando, ria. As muitas e variadas clivagens, que determinam
primeiras pesquisas,
Judith Gleason teve a por um lado, “o acontecimento que escapa à ins- a existência e funcionamento de unidades sociais tão
oportunidade de encon- crição, que não chega a se inscrever”; e, por outro amplas como as sociedades nacionais e as formações
trar-se com Gagbadjou
lado, “o acontecimento que é absorvido na memó- de menor monta que as integram, colocam em xeque
Glèlè, um neto em quin-
to-grau da rainha Agon- ria, como se não tivesse ocorrido” (PÊCHEUX, 2007 o alcance do efeito de totalização dessas represen-

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timé e de seu esposo, o [1983], p. 50). Nesse caso, inscreve-se, nessa tradi- tações. Logo, uma questão desde já se impõe: des-
rei Agonglo, que a ela
ção do patriarcado ruralista branco e escravocrata, cartada a moção espontaneísta do automatismo na
mostrou seu santuário
pessoal, onde estavam que, em certa medida obliterava outras narrativas, relação entre representados e representantes, a con-
várias esculturas relati- pelo choque do acontecimento, o novo, que já estava cessão dessa autoridade representacional obedece a
vas ao vodum Zomadô-
lá, mas não “podia” ser dito. Esse acontecimento se quais critérios? Mais ainda, como se fabrica a legiti-
nu e, para sua imensa
surpresa, uma escultura configura tanto nas manifestações culturais e de re- midade e a visibilidade de um patrimônio cultural?
que representava Agon- ligiosidade popular, dentre as quais está exatamente Os objetivos deste texto, logo, se completam na
timé. Ao visitar o Museu
o tambor-de-mina e na resistência dos movimentos aposta de que o exame do conjunto resultante das ar-
Histórico local deparou,
na Sala dos Tronos, com populares, quanto na ação institucional do próprio ticulações simbólicas na materialidade expressiva do
o pequenino trono de Estado que, devido à ideologia subjacente ao Estado romance pode conduzir ao entendimento de algumas
Agontimé e o guia do
Novo, busca, como salienta Almeida Barros (2007), das facetas decisivas à montagem do mosaico discur-
museu informou que
ali não havia o trono de integrar o negro maranhense à história da região. sivo-institucional contido na ideia de patrimônio cul-
nenhuma outra rainha a No que se refere à noção de patrimônio cultural, tural do Maranhão, mas do ponto de vista da Casa do 73
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não ser o dela!”.


Tambor de Mina. Isto, ao se considerar como a ver- vento do feminismo negro, em meio ao movimento
5. De acordo com Yeda são romanesca traduz esse patrimônio cultural e, ao de reafricanização detonado nos Estados Unidos, por
Pessoa de Castro (2002), mediá-lo artisticamente, difunde-o como represen- volta da década de 1960, são mobilizadas no sentido
o tronco etnolinguístico
mina-jeje compreende tativo, seja da presença diaspórica do povo daomea- de potencializar a reflexão sobre agência e descen-
um arco dialetológico no mina-jeje na América portuguesa, seja da partici- tramento identitário nas condições da diáspora ne-
composto em torno da pação negroafricana na formação do povo brasileiro. groafricana. Já a segunda, à título de digressão final,
língua adjá com as suas
variantes adjá-ewe e Para além da problematização em torno da maneira atenta às repercussões da mediação artística literá-
adjá-fon, faladas por como se desenrolam processos de intermediação en- ria na visibilização e legitimação da Casa das Mina, a
grupos provenientes da volvendo distintas formas de simbolização com suas partir da tônica posta no romance nos agenciamen-
Costa da Mina – ou Cos-
ta dos Escravos, na Áfri- linguagens artísticas afins (MOLLIER, 2016, p.615- tos de Agontimé na sua característica identitário-
ca centro-ocidental –, 630), mas diante das descrições esboçadas nesta -descentrada diaspórica, com o objetivo de refletir
chegados ao Brasil em introdução, a visibilidade conferida ao exemplar do acerca dos nexos possíveis entre formações artístico-
maior intensidade en-
tre séculos XVII e XIX. patrimônio cultural maranhense precipita dois ques- -estéticas, representação/representatividade e pen-

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Povos cujas denomina- tionamentos que levam à investigação dos atravessa- samento nos mercados de sentidos.
ções, em terras brasilei- mentos que delimitam as possibilidades de tais me-
ras, multiplicaram-se no
compasso da dissemina- diações: a) a escolha mesma desse bem simbólico Ecos feministas na vocalização de uma rai-
ção dele em diferentes como digno de ostentar a representação sublinhada nha negra
regiões do país: mina, no romance; b) a conversão dessa escolha em arran-
jeje, adra, lada, lano,
uidá, mahí, maí, makim, jos semióticos que, a um só tempo, sintetizam estilis- O romance Agotime, her legend foi publicado ori-
marri, mundubi, ou bu- ticamente injunções poético-formais, mas também ginalmente em língua inglesa, no ano de 1970, pela
tubi, savalu, sabaru, aquelas de natureza institucionais, epistêmicas, po- editora Grossman and Viking Compass Books, de-
anexo ou nejo, cobo ou
cobu. líticas, econômicas, entre outras. pois reeditado em 1974, pela mesma editora, com
6. A tese central do autor A distribuição do ensaio nas duas seguintes desenhos do artista plástico argentino radicado em
(ALMEIDA BARROS, seções persegue, justamente, um e outro questio- Salvador, Caribé. O texto foi traduzido para o por-
2007), é indicar como o
Maranhão passou a ser namentos. Assim, na primeira, as confluências dos tuguês por Carlos Eugenio Marcondes de Moura9.
representado enquanto contornos da narrativa sobre Agontimé, com o ad- Em português, com a permissão dos filhos de Gle- 74
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mescla de padrões eru-


ditos e populares en- ason (tutores da obra da escritora), o livro se inti- autora no Benin, no final da década de 1960. Em-
tre brancos, mestiços e tula Agontimé e sua lenda: Rainha na África, mãe bora não seja dever da literatura de dizer a verdade
negros, construindo-se
de santo no Maranhão, em fase de impressão pela (supondo-se, aqui, apenas hipoteticamente, a exis-
uma identidade regional
via manifestações cultu- Editora da UEMA (2022)10. Cabe uma inflexão acer- tência de uma verdade única e definitiva, o que sabe-
rais, o que cognomina ca do acréscimo do subtítulo incorporado pelo tradu- mos é consiste em verossimilhança, afinal, se disser,
de “identidade mode-
tor. A opção por Rainha na África, mãe de santo no deixa de ser literatura –, o romance preenche uma
lada”. Esse processo de
“adaptação” (a modela- Maranhão se relaciona com o lugar que o tradutor lacuna sobre a biografia de Agontimé. Adotamos,
gem da identidade, em posiciona a autora, isto, ao estabelecer certa afinida- nesta seção, portanto, duas perspectivas teórico-
meados do século XX),
de eletiva entre o contexto no qual se deu a primeira -analíticas distintas, mas não incongruentes entre
está, segundo o autor,
alicerçado em três mo- publicação em inglês, 197011. Há, nesse caso, a pres- si. De um lado, assumimos o viés da análise literária
vimentos “complemen- suposição de existirem possíveis semelhanças entre de uma obra, seguindo, para tanto, aportes teóricos
tares” e “interdependen-
o contexto em que a autora se inscrevia como uma defendidos por Compagnon13 (2006), Terry Eagleton
tes”: as manifestações
culturais e de religiosi- feminista negra, nos Estados Unidos, e a condição (2006)14, Antonio Candido15 (1988), cujas perspec-

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dade popular, mestiça e que resulta da trajetória de vida de Agontimé. Sob tivas assumem a intencionalidade de uma autoria,
negra, como o bumba-
esse ponto de vista, haveria afinidades entre a pro- em contraposição a argumentos como os Maurice
-meu-boi, tambor-de-
-mina e pajelança, por tagonista da obra ficcional (e a figura histórica) e a Blanchot16 (2011), Josefina Ludmer17 (2014), em que
exemplo, apropriados romancista; tratam-se de mulheres negras, narra- repousam argumentações sobre a “autonomia do
por segmentos como a
doras, cujos agenciamentos ocorreram em situações texto” e “imaginação pública”. De outro, partimos
imprensa, ressignificado
pelo clero e por parcelas diaspóricas, embora situadas em marco histórico-so- do entendimento da literatura do ponto de vista da
da intelectualidade ma- ciogeográficos diferentes12. Algo assim, acreditamos, “invenção”, isto é, admitimos a concepção da narra-
ranhense; pelo interes-
depreende-se do fato de Judith Gleason assumir o ção literária inscrita no campo da verossimilhança,
se crescente do Estado
Novo, a partir dos inte- papel de narradora, dividindo a vocalização da nar- no qual o recontar uma história obedece a regras da
lectuais, em integrar, de rativa com a personagem principal, o que estabelece, mimesis ficcional.
forma simbólica, o negro
em última instância, literariedade entre ambas. Como falamos, o texto recompõe a trajetória
maranhense à história
da região; e pela resis- O romance se define como etnohistórico, ten- histórica da Casa das Minas – ver imagem 01 –, ou
tência de segmentos po- do sido realizado a partir de uma pesquisa feita pela melhor, do Querebentan (templo) de Zomadônu (rei 75
(EDUARDO, 1996; PRANDI, 1997; FERRETI, 2002; BARROS, 2007). Nelas, há
predominância de um matriarcado de sacerdotisas, já os homens – de um modo geral –
edson silva farias, enrique borralho, edvania Gomes
desempenham da Silva
as funções de abataes, ou seja, de tocadores de tambores. Agrupadas em
famílias extensas, as divindades estão no centro dos protocolos rituais. Durante a
pulares aos preconceitos
e perseguições a que es- do espírito da água), vodum de Agontimé. Templo
realização dos ritos,
Imagem 01:embalados pela
Altar a Nã percussão,– os
Agontimé cânticos
Casa em jejêSão
das Minas evocam
Luís os voduns e
tão sujeitos, quer pelo que teria sido fundado por ela em início do sécu- do Maranhão
encantados que se incorporam, mediante transe, nos iniciados (PERES, 1997).
Estado, imprensa, clero, Imagem 01
lo XIX, cujo espaço foi tombado como patrimônio
intelectualidade. Nesse
âmbito é que a Athenas cultural em 2005. Hoje, constitui-se num dos mais
brasileira é reapropria- importantes terreiros de tambor de mina do Mara-
da, de forma singular e
nhão, referência para estudos antropológicos e etno-
até então inusitada. Se-
gundo Barros (2007, p. gráficos, cuja trajetória ajuda a elucidar o advento e
17): “Tenta-se construir a sedimentação dos cultos afro-brasileiros (ALVA-
a ideia de que a Atenas
RENGA, 1948; NUNES, 1979; PACHECO, 2004). Si-
Brasileira só teria sido
possível por causa da tuada no bairro luvidocense de São Pantaleão – onde
mistura racial; que o também está localizada a Casa Nagô –, a Casa das
fundamental do mara-
Mina compõe um sistema de sociedades secretas,
nhense havia sido infil-
trado pela seiva imagi- caracterizada por restrições à entrada dos não-ini-

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nativa do africano; e que ciados e sem exposições públicas das suas cerimô-
deste viera os elementos Altar a Nã Agontimé – Casa das Minas São Luís do Maranhão
nias (EDUARDO, 1996; PRANDI, 1997; FERRETI,
essenciais da identidade
regional: o amor e o ape- 2002; BARROS, 2007). Nelas, há predominância de Como já comentado, o romance nasceu da pes-
go à terra. um matriarcado de sacerdotisas, já os homens – de quisa etnográfica realizada durante a estada da au-
7. A discussão sobre um modo geral – desempenham as funções de aba- tora em Abomey, antiga capital do reino de Daomé
a Athenas brasileira é taes, ou seja, de tocadores de tambores. Agrupadas – ver imagem 2. Na ocasião, ela visitou o museu da
vasta. Foi iniciada na
década de 40 do século em famílias extensas, as divindades estão no centro família real Abomey, onde, inclusive, conheceu, se-
XIX e perdura até hoje. dos protocolos rituais. Durante a realização dos ri- gundo relatos da filha da autora, o trono de Agon-
Ao longo desse período, tos, embalados pela percussão, os cânticos em jejê timé, o que a influenciou profundamente. De certa
muitos autores têm se
debruçado em entender evocam os voduns e encantados que se incorporam, forma, quando recorremos ao campo da verossimi-
esse mito, sobretudo por mediante transe, nos iniciados (PERES, 1997). lhança, é possível afirmar que o livro é um romance
se constituir como um histórico, tanto por preservar os elementos da ficcio-
dos pilares da identida-
nalidade, quanto por assumir características de uma 76
edson silva farias, enrique borralho, edvania Gomes da Silva

de de São Luís, e até do


Maranhão pois, no sé- narratologia que não se resume apenas a ficcionali- mesma obra, uma espécie de “guia” ou programa de
culo XIX, o Maranhão zar uma história, mas didatizá-la, contá-la, assumin- leitura, o qual, ainda segundo Pêcheux (2007 [1983],
era compreendido por
do características políticas. Tais característica dizem p. 51), funciona como “um percurso escrito discursi-
São Luís e vice-versa.
Espécie de efeito meto- respeito, principalmente, ao feminismo, bem como vamente em outro lugar: tocamos aqui o efeito de re-
nímico, a “Ilha do Ma- a denúncias de atrocidades do período escravocrata, petição e de reconhecimento que faz da imagem (no
ranhão” traduziria toda
o que ocorreu, como sabemos, em meio às múltiplas nosso caso, faz do romance) como que a recitação de
a unidade geopolítica
regional. Grosso modo, relações transnacionais envolvendo os impérios co- um mito.
nesse longevo debate, loniais encabeçados por estados modernos. Tais de- De tudo isso, enfim, sobressai um funciona-
a ideia central é de que
núncias recaem, principalmente, sobre os traficantes mento da narrativa que materializa posicionamen-
São Luís, na segunda
metade do século XIX, de gente, muitos deles, além de ricos, vigorosos ope- tos como o do feminismo contra a dominação sim-
mas se estendendo até radores de um comércio tricontinental, cujas prá- bólica masculina, mas também responde a algumas
a metade do século XX,
ticas perduraram até fins do século XIX. Contudo, das características que tipificam o feminismo negro,
seria um celeiro de poe-
tas, romancistas, in- quando passa a funcionar como uma outra história, emerso na década de 70, do século XX, nos Esta-

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telectuais, jornalistas, antagonizando antigas interpretações legitimadas dos Unidos. Agotime, her legend está, nesse senti-
tipógrafos, políticos,
sobre a escravização de africanos/as, o livro assume do, comprometido com a onda de reafricanização
dentre outros de gran-
de expressão nacional, o caráter de uma literatura engajada, afastando-se daquele país, em meio aos processos de luta contra
por estarem emulando do objetivo de tão somente entreter. Trata-se, aqui, a discriminação e injúria racial que conduziram às
grandes ideias e cons-
assim como indicamos na introdução deste artigo, lutas protagonizadas por movimentos negros pela
truindo um projeto re-
gional e nacional no im- de um choque entre uma memória que está, em certa conquista dos direitos civis contra décadas de injus-
pério brasileiro e depois medida, legitimada, pela ideologia dominante e que tiças simbólicas e materiais sustentadas por aportes
na República. Nomes
passa a ser questionada, pelo viés da arte, mais pre- jurídicos. Período em que, igualmente, a evocação de
representativos seriam
os de Antônio Gonçal- cisamente, da literatura, a qual, nesse caso, funciona medidas de reparação diante dos efeitos derrisórios
ves Dias, João Lisboa, como um operador de memória social, possibilitando da discriminação racial vicejou bandeiras afirmativas
Odorico Mendes, Sote-
“uma passagem do visível ao nomeado” (PÊCHEUX, dos modos de apresentação da história e da presen-
ro dos Reis (Grupo Ma-
ranhense, 1844-1866), 2007 [1983], p. 51). Nesse caso, as imagens ficcionais ça negra na sociedade estadunidense. Em particular,
Antônio Henriques Leal, criadas na/pela obra comportam, no interior dessa no romance, é notório o compromisso crítico – no 77
edson silva farias, enrique borralho, edvania Gomes da Silva

Sousândrade, Manuel
de Bethencourt, Frede- plano da reflexão e do ativismo – com a extensão e víduos, a partir das marcas físicas que os classificam
rico José Correa, Aluízio a realização da justiça social e econômica em favor como “caucasoides”, sobre os demais relacionados à
Azevedo, Arthur Azeve-
da coletividade das mulheres negras norte-america- taxonomia que distribui as matrizes fenotípicas entre
do, Raimundo Correa,
depois, Graça Aranha, nas, mas também de outros grupos oprimidos. Tal “negroides” e “mongoloides”. Se a intriga da narrati-
Humberto de Campos, comprometimento ratifica a importância dos sabe- va do livro, então, se vincula à rainha negra escravi-
Benedito Leite, Josué
res subalternos, para além dos âmbitos dos conhe- zada, a problematização proposta conduz, na obra,
Montello. O “Grupo Ma-
ranhense”, por exem- cimentos legitimados por instâncias de consagração à relevância do aspecto racial, inscrita na situação
plo, seria o emulador de sintonizados aos status quo, resultantes da intersec- de diáspora, em detrimento da questão nacional. A
questões relacionadas:
ção das opressões envolvendo raça, gênero e classe missão da protagonista não está em corroborar o tra-
à fundação de uma poe-
sia brasileira (Gonçalves (COLLINS, 2019, p.42-43). No protagonismo exerci- jeto formativo do povo-nação brasileiro, e sim, em re-
Dias), à construção de do pela sua principal personagem, vemos a manifes- compor a dignidade étnica – racialmente referida nas
um outro modelo his-
tação de uma postura de luta contra o colonialismo condições escravocratas – dos povos do Daomé nas
toriográfico interpre-
tativo do Brasil e de di- escravista. O livro também enaltece a astucia e a pers- Américas. Enquadrada à maneira de uma epopeia, a

arquivos do cmd, v. 09, n. 01, jan/jul 2021


datização na imprensa picácia da referida personagem, ambas relacionadas trajetória de vida de Agontimé é classificada como um
das grandes questões
a saberes dos povos da África pré-colonial. A condu- patrimônio etnicorracial dos povos negroafricanos na
do império (João Lis-
boa), às traduções de ta autonomista e indissociável do reestabelecimen- diáspora promovida pelo tráfico escravagista.
obras gregas e latinas to dos quadros de memória daomeanos, nas difíceis Em termos da sua composição formal-artística,
para o português (Odo-
condições da diáspora da personagem é recuperada, no romance, o narrador ora aparece em primeira
rico Mendes, além de ter
feito parte da Regência portanto, mediante o registro ficcional etnohistórico, pessoa na fala de sua protagonista, ora em terceira
Trina), à construção de como um signo que antecipa a luta contra o entrela- – aquela da escritora. Isso corresponde às alternân-
uma história da literatu-
çado dos planos epistêmicos, institucionais e intera- cias entre os momentos em que Agontimé toma as
ra brasileira e da língua
portuguesa brasileira cionais, que define o racismo como um padrão de rédeas da narrativa, como se ela desse o tom inter-
(Sotero dos Reis). Den- conduta, fundamentando sua justificativa na classi- pretativo de como gostaria que o leitor ouvisse de
tre os muitos trabalhos
ficação biorraciológica – hoje amplamente contesta- sua própria boca ou enxergasse com os olhos dela.
que tratam da historio-
grafia maranhense so- da (SCHWARCZ, 1993; APPIAH, 1997). Justificativa Das vezes em que o narrador está em terceira pessoa,
bre a “Athenas” brasilei- que arroga a supremacia cognitiva e moral dos indi- explora-se elementos semióticos das narrativas típi- 78
edson silva farias, enrique borralho, edvania Gomes da Silva

ra, ver Borralho (2010,


2011). cas do realismo mágico, como se fosse uma câmera O foco dramático incide sobre a realeza do an-
8. Em outra oportuni- acompanhando a cena se desenrolar em seus muitos tigo Daomé (atual República de Gana), decisiva no
dade (FARIAS, 2008, detalhes. Ou, como se o expectador estivesse nas pol- desenrolar da trama narrativa, pois ressaltam-se o
p. 571-594), ocupamo-
-nos da dinâmica sócio- tronas de um teatro assistindo a um espetáculo cêni- esplendor e a potência da África dos antigos impé-
-histórica posta à an- co. Essa posição assumida pelo narrador é proposi- rios (tais como o do Mali, Songai e o próprio Daomé),
tecedência reflexiva da tal, não basta apenas ouvi-lo, é preciso descortinar deixando-se na penumbra a imagem do continente
12
tradição no perfil da mo-
dernização turística que as minucias das tantas cenas explorando o cotidiano grassado como fornecedor de sujeitos escravizados,
narrador está em terceira pessoa, explora-se elementos semióticos das narrativas típicas
se desenrolou em Salva- emoldurado pelo tramado mítico, quer do Daomé, submetido ao colonialismo moderno. Sem esquecer
dor e suas adjacências,do realismo mágico, como se fosse uma câmera acompanhando a cena se desenrolar em
quer do Maranhão. E isso é absolutamente intencio- que os próprios reinos africanos também possuíam
entre os anos de 1930 seus
e muitos detalhes. Ou, como se o expectador estivesse nas poltronas de um teatro
2000. A pesquisa bus- nal, pois o romance é uma prolepse, na medida em
assistindo a um espetáculo cênico. Essa posição assumida pelo narrador é proposital, não
práticas escravagistas18, ao enfatizar o vigor do reino
cou verificar os diver- que consiste
basta apenas em um
ouvi-lo, é preciso conhecimento
descortinar as minuciasantecipado,
das tantas cenaspois,
explorandodoo Daomé, mesmo com suas contradições, a narra-
sos mundos da vida que naemoldurado
cena de peloabertura
cotidiano tramado da narrativa,
mítico, um pássaro
quer do Daomé, conta E issotiva
quer do Maranhão. é privilegia a condição humana e as suas vicissi-
abrigaram práticas, ce-
absolutamente
o que intencional,
aconteceu poisnoo romance
Maranhão,é uma prolepse,
mas a na medida
cena em que consiste
é narra- tudes no desenrolar existencial das pessoas que ali
nários e artefatos, alvos
em um conhecimento antecipado, pois,das
na cena de abertura
Nadaúltima
narrativa, um pássaro
do conta

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da trama intertextual da no futuro, na Casa Minas. cena viviam, deixando em segundo plano a objetificação,
referida à sedimentaçãoo que aconteceu no Maranhão, mas a cena é narrada no futuro, na Casa das Minas. Na
romance, Zomadônu retoma o que o pássaro falara que foi o fundamento do tratamento dispensado a es-
institucional, subjetiva
última cena do romance, Zomadônu retoma o que o pássaro falara inicialmente à
e intersubjetiva, em que inicialmente à Agontimé: “– filho amor mal do rei ses mesmos sujeitos ao chegarem no Brasil colonial.
Agontimé: “– filho amor mal do rei acaba” (2022, s/pd).
se teceu a Bahia como acaba” (2022, s/pd). Abre-se, com isso, o caminho para trazer ao centro
uma tradição, fazendo da narrativa a agência de Agontimé.
Imagem 02
com que tal concepção
ganhasse status de sím-
bolo de comunicação
e hábito mental. Mun-
dos sociais, a princípio,
díspares em termos de
classe social, dos nichos
religiosos e das marca-
ções etnicorraciais, mas
ajustados numa espé- Imagem 02: Área antes abrangida pelo Reino do Daomé na
cie de reconhecimento Costa ocidental da África 79
Área antes abrangida pelo Reino do Daomé na Costa ocidental da África

O foco dramático incide sobre a realeza do antigo Daomé (atual República de


edson silva farias, enrique borralho, edvania Gomes da Silva

mútuo em que se dão


auto-identificação e au- a) Agencia diaspórica fossem os mercadores e/ou os representantes da re-
toconhecimento de pes- ligião cristã, são pontuadas pelo narrador para evi-
soas e grupos no e como
De início, quando centrado na África, o período denciar, de um lado, a cumplicidade do rei daome-
escopo da mesma tra-
dição. Concluímos que, apresentado no romance tem por pano de fundo o ano com o processo de demonização das práticas e
em tal encadeamento de reinado de Agonglo. Ele esposou Agontimé após sa- cultos dos voduns; de outro, como Adandozan não
longa duração históri-
quear sua vila, no ataque que levou à morte da mãe apenas manteve relações comerciais, mas estreitou
ca, a tradição se dispôs
à maneira de um dispo- da futura rainha19. A ida para a capital do Império, laços com mercadores de escravos, tal como Fran-
sitivo de reflexividade, Abomey, insere Agontimé, que figura ao lado das de- cisco Félix de Sousa23 – figura emblemática e hoje
igualmente pessoal e
mais esposas do soberano, na rotina de protocolos, cultuada no Benin. Há uma associação, portanto,
institucional, servindo à
sedimentação de recur- privilégios e intrigas, próprios à vida palaciana. No no romance, entre o reinado de Adandozan e a cor-
sos para agenciamentos romance, porém, Agonglo já é morto. Àquela altura, rupção dos costumes no Daomé, que se fizera ver na
e aos mais diversificados
por ordens no novo rei, Adandozan, ela já está presa miscigenação e na degeneração moral. Ao passo que
usos.
e mantida cativa no forte de São João da Mina por Agontimé representaria a preservação de práticas

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9. Doutorou-se em So- cinco anos20. A narrativa o descreve como déspota ancestrais, como o relato sobre a origem totêmica da
ciologia na Universidade – e isso contrasta com determinadas historiografias casa real daomeana – o mito da pantera.
de São Paulo.  Também
na USP, Moura fez pós- que o apresentam como provedor da prosperidade e Ao explorar a arrogância de Adandozan, que
-doutorado no Instituto bondoso21. Após mais uma discussão com Agontimé, por vezes se comportava como dono do Daomé, a
de Estudos Brasileiros e o soberano se decide por vendê-la para mercadores narradora contrapõe a posição de mando de um rei
se formou em Interpre-
tação pela Escola de Arte europeus, o que tornava notório o rebaixamento do espúrio versus a de uma rainha, dignificada e respei-
Dramática. Como bolsis- status dela, excluída da família real. tada, afinal, mesmo na prisão, todos e todas não só
ta da Fundação Fullbri- É bem possível que o romance seja um dos a respeitavam como a cultuavam, mesmo as mulhe-
ght, cursou o ano letivo
de 1965-1966 na Escola responsáveis pela retomada da imagem positiva res do rei, que no fundo, a temiam. Sendo assim, em
de Arte Dramática da de Agontimé na contrapartida de caracterizar termos dos padrões de autoridade – para explorar
Universidade Yale, Es- Adandozan22 como personificação do mal, sobretu- uma analogia proposta por Hannah Arendt (2016)
tados Unidos. É, ainda,
ex-professor da Escola do pelo fato da rainha ter sido por ele vendida e tra- –, Adandozan usa o atributo da força para o exercí-
de Teatro e Dança, da ficada. As relações de Adandozan com os europeus, cio do poder, enquanto Agontimé goza de autoridade 80
edson silva farias, enrique borralho, edvania Gomes da Silva

Universidade Federal do
Pará e do Departamento sem uso de tal recurso. Para ainda nos valer da ar- são, Agontimé retoma todo o repertorio espiritual que
de Artes Cênicas, da Es- gumentação de Arendt, há momentos em que se faz envolve o Daomé. Ela remonta o já aludido mito da
cola de Comunicações e
imperativo o uso da força como parte do exercício do pantera – tratamento totêmico consagrado às mães
Artes (Universidade de
São Paulo). Organizou, é poder, no entanto, se uma autoridade necessita con- dos reis, pois supunha que estes eram descendentes
coautor e publicou oito tinuamente do recurso à brutalidade, é porque não de Agassou, o ancestral da família real. A pantera é
coletâneas sobre reli-
tem autoridade de fato, falta-lhe legitimidade. No ro- a figura totêmica reverenciada no culto a Zomadônu
giões brasileiras de ma-
triz africana, com ênfase mance, nega-se, portanto, ao domínio de Adandozan – o rei dos espíritos das águas, considerado o vodum
no Candomblé. O livro o vínculo autêntico com a tradição, com isso se expõe mais poderoso do reino Fon, em Abomey. O nome da
Estou Aqui.  Sempre Es-
a natureza espúria da sua dominação. Por se relacio- entidade significa “não se põe fogo na boca”. Se o re-
tive. Sempre Estarei. In-
dígenas do Brasil. Suas nar de forma tão próxima a mercadores de escravos lato mítico volta à origem daomeana24, a lembrança
Imagens.  1505-1955, e aos cristãos, o rei teria maculado as bases ances- desse culto conduzirá Agontimé à consulta ao Legba.
recebeu o Prêmio Jabu-
trais sobre as quais se legitimou o reino daomeano. Embora na Casa das Minas, em São Luís, esta últi-
ti 2013, concedido pela
Câmara Brasileira do Li- A prisão do traficante de pessoas Francisco Felix de ma entidade esteja associada a um tipo de demônio,

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vro. Sousa, após este cobrar uma dívida do rei, sinalizaria no Daomé, de acordo com as crenças de alguns dos
10. Carlos Eugenio Mar- à cooptação subalternizadora do domínio africano aos povos da África ocidental, o Legba25 se relaciona à
condes de Moura de- ditames mercantis europeus, porque o episódio evi- guarda de templos e das casas, daí porque o invocam
tém os direitos autorais
da tradução. Já a Fun- dencia a dívida do soberano africano com o mercador na abertura das cerimônias, afinal é o vodum apto a
dação de Pesquisa do português. Já o poder atribuído a Agontimé, por sua abrir caminhos e tem direta relação com o tema do
Maranhão (FAPEMA) vez, como trataremos à frente, estaria pautado na se- destino. A escuta da fala do oráculo evidenciou a sen-
financiou a publicação
do livro em português, dução das palavras e não no emprego da brutalidade. tença do destino que fora traçado para rainha caída
através do projeto de Com a imposição do desterro, Adandozan pre- em desgraça: ela deveria ser a mensageira e guardiã
pesquisa coordenado tendia apagar a memória da rainha. Na discussão de Zomadônu no outro lado do Atlântico, nas exten-
pelo Professor Henri-
que Borralho: Périplo com Agontimé, ele decidiu vendê-la, algo que a levou sas terras da colônia portuguesa nas Américas.
Literário: Brasil (Ma- ao autorreconhecimento da inexistência do status de Já no Brasil, mais propriamente em Salvador,
ranhão) África (Ango- autodeterminação, naquele momento. Chama aten- a certa altura, sentindo, no sopro do vento, o pres-
la, Moçambique, São
ção como, a essa altura do romance, durante sua pri- sente dos desígnios sagrados que determinou os seus 81
edson silva farias, enrique borralho, edvania Gomes da Silva

Tomé e Príncipe e Cabo


Verde) e Europa (Por- rumos na direção do Novo Mundo, uma vez mais de Agontimé. Afinal, sendo o culto à pantera reverência
tugal): construção de modo aforismático, Agontimé diz: ao ancestral totêmico da dinastia daomeana, sua vin-
identidades, afirmação
da ao Brasil corresponderia à recriação da tradição
de sentidos. Como dito,
o referido projeto foi fi- Ele é o respirar do meu destino, não é uma rajada, não do Daomé, ainda que em outras terras.
nanciado pela FAPEMA, é um vendaval, não é um vento cálido, mas é um ar su- Ante à designação recebida quando da comuni-
por meio do edital Apoio
til, repleto de espíritos d´água muito temidos no reino cação mística em que se revela o destino de Agonti-
ao IECT: Gestão pública
e economia criativa nº de que provenho, mas tanto quanto eu saiba, eles ainda mé, salta aos olhos uma concepção de agenciamento
008/2017 – IECT. Vale não se estabeleceram aqui (MOURA, 2022, s/pd). não passível de ser encaixada no entendimento posto
observar que Carlos
à noção de agência tal como proposta pela cosmolo-
Eugenio de Marcondes
Moura, mesmo tendo Se outras mulheres acolhidas no círculo matri- gia euroamericana27. Nesta última, tem prioridade a
recebido propostas para monial da pantera respeitavam-na e mesmo a pante- concepção de ação em que são privilegiadas as repre-
a publicação em outros
ra a admirava, ainda que relutasse contra a sua sorte, sentações dos agentes, enquanto elementos mentais
estados e por outras
instituições, entendia Agontimé estava ciente da confiança nela depositada de percepção e orientação dos atos. Logo, os indivídu-

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ser importante que tal para cumprir uma tarefa de tamanha envergadura. os são identificados como artífices da inteligibilidade
tradução se realizasse
No translado intercontinental, cruzando o mar, ca- do mundo; artífices calcados em suas convicções e
no Maranhão, objeto de
parte do romance e para bia-lhe repor a narrativa do culto, mas, no Brasil, a no uso das competências cognitivo-judificativas para
onde Agontimé supos- realização dos procedimentos e preceitos rituais de- avaliar e validar episódios e atitudes. Mas, se cada
tamente teria passado
finiram uma forma de organização política capaz de indivíduo é uma particularidade radical e irredutí-
seus últimos dias. Ales-
sandro de Lima Francis- agregar e mobilizar o povo daomeano àquela altura vel entre si, levando-se em consideração as múltiplas
co, integrante do Núcleo disperso na situação de diáspora26, portanto, a re- infinitudes dos seus respectivos fluxos vivenciais,
de Estudo Eric Weil, do
composição da memória do culto adquiria o estatuto então, importa observar os indivíduos na dimensão
qual Francisco Valdério
e Henrique Borralho, de resistência política e cultural, em meio à vulnera- interacional, em que compartilham com outros indi-
ambos professores da bilidade socioeconômica e à depreciação moral im- víduos representações. A tragédia da cultura, posta
UEMA, fazem parte, e
posta pelo regime escravocrata. A missão que lhe foi ao fundo da sociologia simmeliana, é particularmen-
amigo de Carlos Eugê-
nio, propôs, então, que conferida deixava patente não só sua responsabilida- te ilustrativa a respeito. Na busca da compreensão
o romance fosse publi- de, mas, sobretudo, ressaltava a distinção gozada por sobre o ajuste da parte (no caso, o indivíduo) na di- 82
edson silva farias, enrique borralho, edvania Gomes da Silva

cado pela UEMA, com a


intermediação dos cita- mensão objetiva do social, Simmel se insere como o autor, a escalada que vai da maneira como a no-
dos docentes. um dos pioneiros na disputa entre os defensores do ção de individualidade é tratada no Renascimento
11. Entre as versões em primado do indivíduo contra aqueles que defendem até o liberalismo do século XVIII e o individualismo
inglês (1970, 1974) e a inscrever-se a antecedência moral e ontológica da do século XIX, ao sedimentarem a associação entre
tradução em português
e sua publicação pela sociedade na condição mesma da modernidade e nas igualdade e liberdade, consistiria no anátema histó-
editora UEMA (2022), modalidades nela prevalecentes de teoria do conhe- rico da modernidade. A seu ver, tal anátema funcio-
existem inúmeras dife- cimento centradas na oposição subjetivo e objetivi- naria como suporte “metafísico” dos princípios que
renças de formato, tama-
nho, acréscimos de tex- dade, portanto, indispostas com o tema da plurali- assinalam a livre-concorrência e a divisão do traba-
tos, até a não existência dade (SIMMEL, 1971, p.251-293) e da autoimagem lho, sendo, portanto, símbolo inequívoco da cultu-
da versão em português de pessoa. A indagação do autor, de início, se move ra moderna, mas, ao mesmo tempo, a complexidade
dos desenhos de Caribé.
Portanto, todas as cita- pela curiosidade a respeito de como se dá a perma- social, gerada no compasso da intensa diferenciação
ções relativas à tradução nência do vínculo social em meio ao fluxo contínuo institucional promovida nas e pelas relações sociais,
para o português nesse de vida e morte dos indivíduos de geração a geração. define-se como um aprofundamento sem prece-
artigo aparecerão sob o

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formato da sigla “s/pd” Constata como as teias sociais são formas de recipro- dentes entre os limites subjetivos e a objetividade
(sem página definida), cidades, mostrando que delas derivam outras formas societária. Esta última se autonomiza da função de
pois, como se encontra e excedem espaço-temporalmente a particularidade mediatizar a formação do eu com seus pares para
em fase de editoração/
publicação, não é possí- do indivíduo. Mas ressalta que algo assim não ocor- se tornar um fim em si mesmo, enquanto rede sis-
vel mensurar a exatidão re à revelia das singularidades humanas que lhe em- têmica técnico-institucional expressa na vitalidade
das páginas. Há, como prestam seus conteúdos (SIMMEL, 1998, p.41-78). É dos artefatos. O desfecho da dialética entre criador
dito, diferenças entre a
versão em língua inglesa desta plataforma teórico-metodológica que Simmel e criatura, intrínseca à perspectiva simmeliana sobre
e a portuguesa: a versão se volta às experiências sociais e às representações a modernidade, encerra-se na queda do indivíduo no
em português, tradução, que traduzem o modo de vida moderno como o enca- alheamento lacônico diante e em meio ao conjunto
apresenta textos de Car-
los Eugenio Marcondes deamento de episódios qualificados pelo desmonte formal de regras comportamentais, o qual é possui-
de Moura, um artigo do das autoridades comunitárias medievais e, em con- dor de dinâmica e propriedades independentes dos
falecido professor e an- trapartida, a emergência da singularidade pessoal e desejos individuais (SIMMEL, 1998, p.294-323). A
tropólogo Sérgio Ferre-
da tônica posta na autorresponsabilidade. Mas, para “tragédia” moderna da cultura, de acordo com Sim- 83
edson silva farias, enrique borralho, edvania Gomes da Silva

ti, autorizado pela viúva,


antropóloga e professo- mel, resulta do quão excessiva se torna a rede sis- tariam acostumadas a relegar um grande número
ra, Mundicarmo Ferre- têmica técnico-institucional, com isso, imolando, e de funções, expressões instintivas e desejos a encla-
ti, também estudiosa no
mesmo esvaziando, o traço conjuntural da triangula- ves privativos de sigilo, logo, afastados do olhar do
assunto, além de notas
explicativas, glossário, e ção estabelecida entre escolhas individuais, autorres- “mundo externo”, ou invisibilizados nos porões de
um texto de apresenta- ponsabilidade e liberdade. seu psiquismo, como propriedades do semiconscien-
ção da versão portugue-
O diagnóstico simmeliano, a um só tempo, fun- te. A consciência enclausurada, ou “homos claustro”
sa contando a publica-
ção da tradução feita por damenta-se na fé depositada na substância autono- corresponderia à estrutura psíquica estabelecida em
Henrique Borralho.  mista e criativa da agência individual e, igualmente, certos estágios do que o referido autor chama de pro-
12. Carlos Eugenio Mar- na oposição entre os postulados lógico-conceituais cesso civilizador, desenrolado na Europa ocidental
condes de Barros, na das forças sociais mecânicas contra o das forças in- por doze séculos.
apresentação do roman-
ce (2022, s/pd), men- dividuais atomísticas. Caso optarmos por sintonizar À Agontimé é confiada uma missão heroica:
ciona: “Judith Gleason a referência à ideia de forma individual às especificas cabe-lhe o empreendimento civilizatório nas
(1929-2012) não é co- formas sociais, podemos recorrer à reflexão socioló- vicissitudes diaspóricas, a saber, tornar coeso um
nhecida de nossos lei-

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tores. Seu livro Oyá. gica de Norbert Elias (1994) sobre o tipo de antropo- repertório sociossimbólico pulverizado no compasso
Um Louvor à Deusa logia filosófica apreendida na categoria de “clausura da dispersão das pessoas provenientes da costa oci-
Africana foi publicado existencial”. Segundo o autor, esta concepção de pes- dental africana, quando traficadas e submetidas aos
em 1993 pela editora
Bertrand Brasil, do Rio soa parte da certeza de que o núcleo subjetivo está interesses escravocratas. Para isto, deveria cruzar o
de Janeiro. É plausível blindado na consciência, a qual teria por localização Atlântico, para se aventurar em terras desconheci-
imaginar que consti- o aparelho mental humano. Com o emprego da cate- das, mantendo o silêncio do seu passado nobiliár-
tui uma homenagem ao
orixá Oyá/Iansã, divin- goria de “clausura existencial”, Elias pretende des- quico, para viver no anonimato de mais um corpo
dade de sua devoção. O crever o tipo de autoconsciência de pessoas, emerso racializado, subalterno e à serviço do mercantilismo
interesse da autora pela no compasso da montagem dos estados centraliza- colonial. Em princípio, o seu anonimato é revelador
legendária figura da Rai-
nha-Mãe Agontimé nas- dos europeus, cujas formações psíquicas levaram do fato de que cada corpo humano desembarcado sob
ceu da leitura do artigo à adoção de um grau elevadíssimo de refreamento, a marca do cativeiro no Brasil possuía uma trajetória
de Pierre Verger intitu- controle afetivo, quer dizer, de renúncia e transfor- pessoal, intrincada a histórias coletivas na compo-
lado “Le culte des vo-
mação dos instintos. Nesse sentido, as pessoas es- sição da sua subjetividade. Mas, em Agontimé, im- 84
edson silva farias, enrique borralho, edvania Gomes da Silva

duns d´Abomey aurait-


-il été apporté à Saint porta mesmo observar que destino e agência não se meano. Voltamos uma vez mais à formulação sobre
Louis du Maranhão par contradizem, permanecendo em polos opostos, mas o feminismo negro por Patrícia Hill Collins (2019).
la mère du roi Ghezo”
se dialetizam. A senda traçada pelas divindades de- A subjetividade da personagem está condicionada
(Mémoire de l´IFAN, n.
27, Dakar, 1953), segun- termina os rumos a serem tomados na vida da rainha pelos atravessamentos promovidos pela matriz de
do nos informa sua filha, submetida à escravidão, para além das razões da sua dominação colonialista. Nesta, as coordenadas pa-
a Professora Doutora
autodeterminação. Mas, os atributos que a singulari- triarcal-escravocrata branco-europeia se aliariam ao
Maud Gleason. Judith
Gleason cita, no final do zam são reconhecidos como imprescindíveis, mesmo domínio cristão católico. Mas, o valor que determina
livro, “alguns autores, incontornáveis, à realização do projeto civilizatório as qualidades principais (sua estima) de Agontimé
artistas e viajantes que
mais tarde materializado na territorialidade socio- tem por fundamento a intercessão dos planos pesso-
abriram o caminho para
Abomey, a Bahia co- política delimitada no âmbito religioso da Casa das ais e interpessoais, sabendo-se estarem um e outro
lonial e o candomblé”. Minas. As escolhas que fará e os modos como equa- relacionados aos desígnios normativos cujas bases
Entre esses autores,
cionará situações não são meros acessórios à trans- ancestrais divinas imprimem suas marcas no desen-
destacam-se: Melville
Herskovitz (Dahomey, formação da potência dos desígnios em fatos. Logo, rolar dos episódios que se sucedem na vida da des-

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an ancient west African o desfecho da sua individualização é a condição para terrada daomeana; sustentáculos simbolizados na fi-
kingdom (1936), Ma-
o êxito da empreita cósmico-coletiva, na medida em gura mítico-totêmica da pantera28. As possibilidades
nuel Nunes Pereira (A
Casa das Minas: con- que sua libertação é indissociável do acabamento de agenciamentos dessa mulher são definidas pela
tribuição ao estudo das dado a essa epopeia. Não estamos diante, portan- incontornável responsabilidade para com a criação
sobrevivências do culto
to, daquela intrusão dos titãs nas vidas e rumos dos de meios que resultem no reagrupamento sociossim-
dos voduns, do panteão
daomeano, no Estado mortais, fazendo destes espécies de fantoches para bólico do “povo” daomeano, mas sob os ditames do
do Maranhão (1947) e os seus caprichos, tal como narram os mitos gregos. culto aos voduns. Igual traço da agência de Agonti-
Octávio da Costa Eduar-
Tampouco, estamos diante de agenciamentos que se mé interliga a autonomia pessoal tanto às forças so-
do (The negro in nor-
thern Brazil (1948). afirmam no movimento de confrontação frente aos ciopolíticas e culturais hegemônicas na colônia por-
13. Antonie Compagnon tramados estruturais e funcionais societários. No tuguesa, quanto às injunções divinas sobre o curso
parte de duas premissas caso, concluiríamos sobre a mutualidade estabeleci- da sua própria vida.
na análise de uma obra,
dentre outras questões: da entre as finalidades pessoais da protagonista e as Mas no que propriamente incide o atributo que
da crítica da ideologia funções de reprodução do arranjo sociocultural dao- torna o encadeamento dos atos de Agontimé um 85
edson silva farias, enrique borralho, edvania Gomes da Silva

e da análise linguística.
Ademais, ele mesmo fator prático de indexação de significados e, como las eram e ao mesmo tempo não eram sensatas, quando
afirma: “Tudo o que se agenciamento, apto em gerar desvios na mera ratifi- as narrasse noite após noite a seus atentos ouvintes.
pode dizer de um texto
cação dos acontecimentos? Havia, porém, uma narrativa que era de seu conheci-
literário não pertence,
pois, ao estudo literário” mento, envolta em proibição. Por mais elaborada que
(2006. p. 45). Zan-ku, o dia dos mortos, era o momento em que ti- fosse, era impossível escamotear sua origem. Não se
14. Segundo Terry Ea- nham início as fantasias noturnas. Dispostas num semi- tratava de modo algum da sabedoria de Fa, mas de um
gleton: “Por que ler lite- círculo em torno de Agontimé, bem juntinhas umas das conto ancestral narrado por cada rei ao príncipe es-
ratura? A resposta, em
suma, era a de que tal li- outras, as crianças desafiavam qual delas mataria a me- colhido para o suceder. Sabendo que o Destino estava
teratura tornava as pes- lhor charada e enquanto isso as mulheres terminavam determinado no sentido de que o filho dela finalmen-
soas melhores. Poucas a limpeza, iluminada pelo clarão das fogueiras. Lá no te acabaria herdando o trono, Agontimé, sem o menor
razões poderiam ter sido
mais persuasivas. Quan- pé de tamarindo, a árvore que nenhum machado con- compungimento, persuadiu Agonglo a narrar o conto,
do, alguns anos depois seguiria cortar, espíritos invisíveis se juntavam, plenos certa noite em que ele estava deitado, doente, com pre-
da criação de Scrutiny, de expectativas. “O que acontecerá esta noite?” alguém monições de que a presença dela afastaria seus males.
as tropas aliadas chega-

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ram aos campos de con- murmurou, “o que acontecerá?” Ela prometeu ao ansioso rei que jamais revelaria esse
centração para prender Os olhos de Agontimé brilharam. Ela sabia. Quando um segredo de origem a quem quer que fosse, com exce-
comandantes que ha- homem morre, sua gente arrasa a cabana onde ele dor- ção de Gankpe e unicamente a Gankpe, quando chegas-
viam passado suas horas
de lazer com um volu- mia e assim ela sabia que, aquela noite, haveria apenas se o momento de ele substituir seu irmão mais velho.
me de Goethe, tornou- uma história apropriada. Manteria o conto sob reserva, a menos que o reinado de
-se clara a necessidade As mulheres comentavam que para alguém tão jovem Adandozan fosse a tal ponto corrupto que os sacerdotes
de explicações. Se a lei-
tura de obras literárias o repertório dela era de notável amplitude. Ela, porém, e adivinhos não mais ousariam falar. A leitura do signo
realmente tornava os tivera a sorte de passar longas horas com o adivinho do de seu filho estava a salvo, continha a sombria metade
homens melhores, en- palácio. Mesmo que não conseguisse se lembrar das in- de seu destino, o lado sombrio de seu patrimônio, guar-
tão isso não ocorria de
maneira imaginada pe- contáveis fábulas que compunham a sabedoria do orá- dados na cabaça de lembranças devidamente levada e
los eufóricos partidários culo de dezesseis vezes e de dezesseis olhos, Agontimé trazida da casa do adivinho.
dessa teoria. Era possí- teve pelo menos o decoro, que devia a Fa, de as adaptar Ela sabia muito bem o que queria. O debilitado rei aca-
vel explorar ‘a grande
para seus propósitos, de tal modo que todas essas fábu- bou concordando, após ela muito o cortejar, mas não 86
edson silva farias, enrique borralho, edvania Gomes da Silva

tradição’ do romance in-


glês e acreditar que com foi nada fácil. Como poderia saber, ela que com tama- cífico social que fornece uma imagem e concepção de
isso levantam-se ques- nha facilidade se lembrava de leituras dos signos sob a pessoa peculiar a um grupo. A noção de técnica em
tões de valor fundamen-
forma de fábulas, que as antigas cantigas da Terra têm Mauss (1974b) se resolve não como a utilização de
tal – questão de uma re-
levância vital para a vida vida própria e vigorosa? Elas se recusam a ser insípi- um instrumento; à luz da noção de pessoa como uma
de homens e mulheres das e simplificadas. Terminado o relato, as palavras de unidade triádica histórico-psicobiológico-sociossim-
desperdiçadas em tra-
Agonglo se enrolaram como uma serpente na base do bólica, ele entende a técnica como ato coletivo em
balhos infrutíferos nas
fábricas do capitalismo cérebro de Agontimé. Elas se repetiram durante cinco que o corpo é, ao mesmo tempo, tanto instrumen-
industrial” (2006, p. anos, algumas vezes sob novos disfarces, nos sonhos e to quanto sujeito; portanto, diz respeito à maneira
53).
nos momentos abstratos de vigília. No início repeliu- como as pessoas se servem do corpo em distintas so-
15. Antônio Candido tra- -as, temendo que elas a consumissem, tornassem sua ciedades. Assim, se tais “montagens fisio-psico-so-
balha c om o conceito de cabeça confusa, mas começou a se dar conta lentamente ciológicas de séries de atos” são vivificadas de modo
literatura empenhada
para denominar a arte de que aquele mistério proibido era uma força, a fon- natural, tais maneiras dizem respeito a construções
literária, comprometida te secreta de toda energia narrativa de que dispunha. E históricas, são habitus, ou seja, disposições que, ad-
com o enfrentamento

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também de toda vida suprimida, pois em seu isolamen- vindas do saber incorporado, propiciam aos sujeitos
dos problemas e das ini-
quidades sociais (1988). to ela somente se satisfazia com e através das histórias os atualizarem no corpo e este, na especificidade das
16. Para Blanchot (2011), que narrava para aquela dupla audiência – os espíritos situações, com isto estendendo um sistema interpre-
existe a solidão da obra, que circulavam à noite e a vivaz comunidade de crian- tativo (MAUSS, 1974, p. 368-369, 371,384).
sempre inacabada, sem-
pre dispensada de sua ças. (GLEASON, 2022, s/pd) Sob os rastros das formulações maussianas,
autoria, o espírito quer ao longo do trecho acima, extraído do romance, so-
realizar no infinito da De acordo com as suas formulações sobre a mú- bressai o entrosamento aparentemente instintual de
obra. A obra de arte não
é acabada ou inacaba- tua relação do “fato social total” com “homem total”, Agontimé com a função de narrar (“toda energia nar-
da, ela apenas é. Aquele Mauss (1974) volta à temática do corpo individual, rativa de que dispunha”) e, por meio dessa pulsão, a
que depende da obra se vislumbrando este último como ponto de interação disponibilizava para o cuidado tanto com as crianças
encontra na solidão. A
obra é solitária. É a obra das representações coletivas e das técnicas sociais quanto com a tradição. O fundo de saberes coletivos
que domina o autor. arroladas intergeracionalmente, as quais facultam o contidos nos relatos encontra nela uma depositá-
17. Segundo Ludmer controle do biológico pelo social, ou melhor, de espe- ria demiúrgica. É fato que as fábulas lhe moldaram 87
edson silva farias, enrique borralho, edvania Gomes da Silva

(2014, p. 93): “Hoje


concebo a crítica como o complexo neurocerebral, delineando as funções reproduzir, ter a sensatez de adequar os conteúdos e
uma forma de ativismo mentais com reverberação na definição dos padrões as formas de expor às circunstâncias da narração.
cultural e preciso definir
motriz-musculares, no tocante aos seus potenciais Os agenciamentos narrativos de Agontimé re-
o presente para poder
atuar. Uso alguns ins- expressivos e, portanto, com decisivas consequên- querem, pelas mudanças abruptas provocadas pela
trumentos conceituais; cias sobre a conformação da sua estrutura psíquica. diáspora, o cotejo de propostas sociológicas calcadas
um deles é o que chamo
À maneira de como sociedades recrutam determina- na observação das alterações nas modalidades de so-
de imaginação pública,
que me permite ler sem dos corpos individualizados para as funções de guer- lidariedade e interação sociais (DURKHEIM, 2000;
as categorias de autor e reiros e caçadores, a socialização pautada nas coor- MEAD, 2021), porque elas dão ensejo à reflexão so-
de obra, fora das divi-
denadas contidas nos relatos míticos e nas técnicas bre a triangulação entre as estruturas de racionali-
sões entre privado, indi-
vidual e social. A imagi- de adivinhação, estando enraizadas nas tramas de dade expressas nas imagens de mundo, nos ideais
nação pública seria tudo significados próprias ao sistema social daomeano, ti- morais e nas formações identitárias com incidência
o que circula em forma
veram relevo na individualização de Agontimé, caso prática nas instituições e nos distintos padrões de
de imagens e discursos
e uma força e um traba- entendamos esse processo como aquele de habilita- subjetivação e igualmente nos sistemas de papeis a

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lho coletivos que fabri- ção do corpo para a autorregulação relativa por parte serem desempenhados, que derivam da natureza das
cam a ‘realidade’. Pode-
de um indivíduo inscrito em determinado padrão de redes sociofuncionais29.
-se imaginá-la também
como um território real pessoa. Mas seria incorreto atribuir somente aos re- Ocupado das condições para o advento e efetiva-
virtual sem foras, como sultados dessa socialização à disposição narrativa de ção do agir comunicativo, Habermas (1989) entende
uma rede que tecemos e
Agontimé, sem considerar o trajeto biopsíquico que que o pensamento moderno decorre de estágios de
nos envolve, nos penetra
e constitui. A literatu- tornara à sua corporalidade aderente ao esquema de aprendizados cognitivo-culturais e, nesta sequência
ra seria um dos últimos transmissão oral seja dos preceitos à produção mítica de etapas, o que se galgaria é a desvalorização dos
fios da imaginação pú-
do sentido seja ao desempenho do papel adivinható- potenciais explicativo interno às tradições. Inspiran-
blica” (2014, p. 93).
rio. Ao mesmo tempo, por estar à contrapartida desse do-se nas formulações etnológicas de Lévi-Strauss
18. Na África do período cruzamento a fonte a partir da qual, continuamente, (1982) e Godelier (1974), sua proposição é de que a
em que se situa o roman- ela mobiliza subsídios nas falas como parte da pró- modernidade implicaria na desmitologização e des-
ce, a conquista e expan-
são europeia era marca- pria realização dos seus modos de ser, agir e pensar. naturalização da tradição, isto é, distinguir-se-ia das
da por uma diversidade Tornando-a, com isso, consistente para, bem além de imagens míticas, pois estariam estas desprovidas de 88
edson silva farias, enrique borralho, edvania Gomes da Silva

de estruturas sociais e
por tráfegos sociohu- reflexividade ao definirem seu fundamentalismo so- ra ao mero suporte da fala originária (a linguagem).
manos intensos (MACE- bre o concretismo como forma de pensamento intui- Derrida conclui que seria a origem do privilégio do
DO, 2021, p. 77-104). As
tivo. O trajeto evolutivo-histórico e psicológico com logos a constelação histórico-cultural na qual a escri-
múltiplas e discrepan-
tes estruturas sociais, o qual Habermas descreve o trajeto de conjuntos hu- tura é remanejada ou ressemantizada enquanto me-
muitas vezes postas em manos menos complexos aos que exigem identida- táfora de alguma coisa intocável. Mas, ainda assim,
situações conflitivas en-
des abstratas e descentradas, transcurso no qual se se faz a corporeidade na qual se manifesta algo au-
tre si, deixavam como
saldo o aprisionamento destacaria a tendência ao descentramento progressi- sente. Para ele, desde a conexão entre Parmênides,
de membros de grupos vo em termos das identidades coletivas que regulam Sócrates e Platão, o que se impôs-se foi a modulação
das congêneres derrota-
intersubjetivamente a formação do eu. da escritura pela dualidade corpo e alma: a consciên-
das. Eram essas pessoas
transladadas e tornadas Por sua vez, a especulação de Derrida (1999; cia, a voz da alma; a paixão, a voz do corpo30.
escravas das frações que 2002) sobre semelhante dinâmica histórica parte da O ato de narrar tal como Agontimé o realiza, de
ocupavam posições pri-
hipótese de que, em solidariedade estrutural com a um lado, integra aquelas traduções simbólicas pró-
vilegiadas nas unidades
sociais vencedoras. Nes- economia, à técnica e à ideologia, a “linha” (a line- prias às intervenções mítico-poéticas características

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se sentido, historiadores aridade) define um modelo, diríamos, civilizacional de griôs, aedos, rapsodos, bardos, entre outros afins,
sublinham que a escra-
que se sedimenta a quatro mil anos de “escritura”. e compreendem os modos de transmissão e consoli-
vidão africana favorecia
à manutenção do status Consiste o ínterim desta trajetória, para o autor, na dação de esquemas cosmológicos fundado na ante-
dos segmentos prestigia- concatenação entre instrumentalidade e metafísi- cedência de princípios essenciais regentes de todas
dos (RUSSELL-WOOD,
ca; intervalo no qual a humanidade teria ingressado as coisas. Segundo Campbell (2000, p. 28-30), no
2001, p. 11-50). Algo dis-
tinto, portanto, do tráfi- crescentemente no império mundial das distinções que concerne à propriedade arquetípica (arché) da
co mercantil instaurado entre a fala e a escrita. O arcabouço histórico-cultu- religiosidade grega antiga, o relato mítico respalda-
pelos europeus. Iniciado
ral do sistema que denomina do “ouvir-se falar” te- va-se na concepção de que a ordem universal se im-
pelos portugueses, esse
tráfico seguiu ao avanço ria imprimido o privilégio da “phoné” e esta última põe ao caos mediante a depuração da instabilidade
das naus, provenientes responderia ao tipo de economia em que o mundano pela ordem atemporal e transcendente, estabelecen-
da costa da África, mo-
e não-mundano, o fora e o dentro, a idealidade e o do finalidades precisas (moira, o destino31). Deste
vido pelo interesse em
peças como o marfim. não-ideal, o universal e o não-universal, o transcen- modo, concedendo certezas inamovíveis à existência
A implantação de for- dental e o empírico decidiram a redução da escritu- humana na medida em que a ultrapassa. Portanto, 89
edson silva farias, enrique borralho, edvania Gomes da Silva

tificações assegurou o
domínio da coroa lusi- constituindo-se em algo de objetivo, não redutível próprias aos sistemas simbólicos africanos, que res-
tana e, paulatinamente, à mera opinião pessoal e impassível de ser falseada paldam a cultura negra de diáspora no Brasil, Mu-
fomentou economias de
pela imaginação. niz Sodré (1983) sublinha o traço agonístico que os
enclaves no seu entorno
(HALL, 2017, p. 100). O As intervenções narrativas de Agontimé, por caracterizaria. O autor ressalta os aspectos de luta,
acirramento do tráfico outro lado, introduzem componentes que problema- o jogo e a troca como peculiares aos esquemas pre-
humano esteve direta-
tizam a tônica arquetípica que seria própria à cos- dominantes nessas cosmovisões, facultando às signi-
mente vinculado a es-
ses enclaves e, com eles, mologia grega antiga, na medida em que, vimos, as ficações, simultaneamente, propiciarem o preenchi-
consolidou-se a coorde- designações ancestrais do destino de Agontimé estão mento e esvaziamento do sentido. Sob esse ponto de
nada de conversão dos
em sintonia com os agenciamentos por ela realiza- vista, para ele, os processos de simbolização contor-
aprisionamentos por
status para aqueles com dos na história, levando em conta a interveniência de nam o unívoco na medida mesma em que reage às
a finalidade mercantil. ditames circunstanciais. Nesse sentido, a correlação provocações da incompletude do real, gerando am-
Nos casos específicos
estabelecida entre descentramento identitário e mo- bivalências. Posta nessa dinâmica da incompletude,
dos Axantes e do Dao-
mé, houve forte resis- dernidade, no raciocínio evolutivo-histórico haber- o que denomina de “arkhé” não se define pela trans-

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tência à escravização dos masiano, mostra-se ineficaz para lidar com a análise e cendência e pelo absoluto, mas se realiza no devir em
grupos étnicos inseridos
a interpretação da permanência do norteamento mí- observância das oportunidades (“kairós”). Ou seja,
em seus domínios. O
mesmo não ocorreu em tico em experiências marcadas pelo descentramento não estando determinado pela profundidade refe-
relação a outros grupos identitário, à exemplo de representantes de culturas rente a um passado originário de um ser canônico,
que se localizavam nas
de diásporas negroafricanas, sintetizados na figura de na sua exemplaridade normativa, ou pela promessa
respectivas vizinhanças.
Algo assim se deu com Agontimé. Por isso mesmo, em diálogo com as ideias teleológica moderna de irrupção de um futuro res-
os maki e saburu, situa- de Derrida, podemos sugerir que os agenciamentos taurador, o protagonismo é exercido pela concretude
dos nas imediações dao-
narrativos da daomeana se deixam deslocar da disjun- aparencial dos atos postos nas imprecisões da trama
meanas (HALL, 2017, p.
52-53). ção que opõe a transcendência atemporal do sentido dos acontecimentos. De acordo com Sodré, em lugar
19. Segundo Carlos que se ausenta do empírico à imanência corpórea da da imobilidade assertiva da verdade, portanto, a ime-
Eugenio Marcondes fala como ato inscrito na temporalidade secular. Um e diaticidade da sedução, naquilo que revela e esconde,
de Moura (2022, s/
pd): “Desposou a jo- outro ponto merecem maiores desdobramentos. atrai e se desvia, é o fator inerente às significações.
vem Agontimé, nascida Quando escreve a respeito das cosmovisões As coordenadas da cosmovisão africana des- 90
edson silva farias, enrique borralho, edvania Gomes da Silva

na aldeia de Gbohuele,
no Mahi, região situa- critas por Sodré se manifestam no que peculiariza mútua confiança entre os participantes. Isto significa
da no extremo norte no à agência narrativa de Agontimé. Vale observar não que, para o autor, o compartilhamento de expectati-
que era então o Daomé,
ser fortuita a conexão da arte divinatória com o mito, vas ideais (morais) goza de primazia, porque o acor-
e que, devido a guer-
ras internas, foi levada afinal, a verbalização da profecia se faz no diálogo do das partes inteiradas pressupõe a reciprocidade
como cativa para Abo- místico em que, por aforismas e imagens, são comu- de confiança e esta, por sua vez, exige a valorização
mey, com seu pai e dois
nicadas as destinações32. O dever do agente divina- moral do indivíduo, mas também a veracidade ex-
irmãos”.
tório está em combinar à tarefa oracular de exege- pressiva deste último é a condição básica à manuten-
20. Segundo Ferreti se dos sinais o exercício de predicar junto aos seus ção da sua dignidade. Tal expectativa está na base,
(2008). consultores, baseando os aconselhamentos no trata- então, do que ele denomina de padrão de ação, ou
21. Dentre elas, PA- mento interpretativo a que submete os desígnios di- seja, os limites que demarcam e emolduram as apre-
RES (2013), ARAUJO vinos relatados. Tão decisivo quanto o cuidado com sentações das práticas dos indivíduos, conformando
(2010), VIVEIROS DE
CASTRO (2019). a maneira de expor – na escolha das palavras, a sin- o papel social pela coerência esperada entre os ide-
22. Governou o Daomé taxe empregada no fraseado, a cadência da entona- ários que informam direitos e deveres previstos na
entre 1789 e 1818, obe-

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ção adotada –, é se ater à circunstância da narrativa, condução de determinada prática. A luz das ilações
diente ao desígnio do
pai que o indicou como considerando para quem se fala, quando se diz, an- goffmanianas, podemos voltar à escolha de Agonti-
seu sucessor na qua- tevendo-se os possíveis encadeamentos de episódios mé para tornar viável a recomposição do domínio
lidade de regente até decorrentes do enunciado. Para além da eloquência e sociossimbólico daomeano em terras tão longín-
Gankpé (Ghezo) – filho
de Angotimé – pudesse capacidade de persuasão, portanto, responsabilidade quas. Já vimos, esta escolha em nada fora fortuita.
assumir, pois era uma e confiança são qualidades insubstituíveis postas em A argúcia por ela demonstrada, quando submetida
criança à época. A es- cumplicidade na execução da habilidade do adivinho. às condições tão adversas da diáspora negroafricana
colha de Ghézo foi feita
após consulta ao orácu- Na análise sociológica das formas sociais de- no contexto colonial português nas Américas, de um
lo. Ghézo destronou do fendida por Goffman (1995), em que se focalizam lado, pautou-se no entendimento da simbolização
poder seu irmão com os encontros entre indivíduos que geram trocas re- cuja coerência responde ao esquema de retorno ao
ajuda do comerciante de
escravos Francisco Félix cíprocas de influência a partir das atividades (dos raciocínio originário que, no enfrentamento da in-
de Sousa (1754-1849). desempenhos) de cada um dos participantes, as si- completude contínua do real, abre-se à instabilidade
23. Nascido em Salva- tuações, os “consensos operacionais”33 requerem a no desdobramento do encontro entre desiguais. De 91
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dor (1754), morto em


Uidá, no Benin (1848), outro, sem empreender à busca do idêntico, a aplica- Impõe-se, para finalizar este item, retomar o
Francisco Félix de Sou- ção que faz de tal raciocínio opera com a ambiguida- encadeamento dos episódios no romance. Agora,
za reúne muitas con-
de dos signos, em que sabedoria e desconhecimen- focalizando-os desde a travessia do Atlântico à fun-
trovérsias em torno de
si, a começar pelas suas to, novidades e permanências se fazem conflitivos dação da Casa de Minas, em São Luís. Isto, com a
origens, deixando inter- e repulsivos entre si, no movimento mesmo em que finalidade de examinar como o nexo entre descentra-
rogações se seria branco
se fazem recíprocos. Os agenciamentos narrativos mento identitário e experiência diaspórica embasa a
ou um mestiço afrobra-
sileiro. Integrante das e divinatórios de Agontimé se destacam não pela descrição acima da agência da Agontimé.
embarcações que reali- obediência rígida às prescrições míticas e aos desíg-
zavam o tráfico humano
nios divinos. Ela, portadora da competência herme- b) Descentramentos na reposição histórica
transatlântico entre a
África e o Brasil, ele se nêutica de decifrar os segredos, exercera a lideran- do mito
fixou na região da Baía ça profética34 com base na confiança depositada na
do Benin onde se situa-
sua sensibilidade para apreender as linhas de força No continuado esforço de motivar no leitor a empa-
vam benfeitorias portu-
guesas. A sua proximi- impressas nas situações. Com isto, sabe ponderar, tia, por afeição, mais ainda consumiseração, com a

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dade com a realeza do medir as decisões, estabelecer relações, antecipar-se protagonista, o narrador testemunha as agruras de
Daomé se deu em razão
aos acontecimentos e criar meios de seguir os rumos Agontimé. Ela fora marcada a ferro antes de vir ao
dos negócios envolven-
do pessoas escravizadas. que deveriam ser cumpridos. A reputação desfrutada Brasil, como se marca animais de um rebanho, con-
Os lucros auferidos com por ela advém do estabelecimento de uma conexão juntamente a outras pessoas submetidas ao cativeiro.
essas transações permi-
entre o autocontrole exercido das próprias expres- No navio tumbeiro, junto desses/as sujeitos/as escra-
tiram que ele expandisse
os negócios para contra- sões e as tentativas de manter também sob controle vizados/as, também sofreu a coação para se conver-
bandos, incluindo, num as impressões dos/as demais participantes da mes- ter à religião cristã, devido à execução de ordens da
comércio triangular,
ma situação sobre o seu desempenho. A confiança e coroa portuguesa, representada na figura áspera do
bens manufaturados da
Europa, tabaco, cacha- o prestígio estiveram inseparavelmente mútuos, não padre Martinho, clérigo português que tomava par-
ça e rum da América, e apenas em relação ao plano das forças divinas invi- te da tripulação e a todo custo demoniza as práticas
búzios africanos. Depois
síveis; igualmente, nos encontros interativos com os dos cultos aos voduns. Estavam os/as aprisionados/
de cair em desgraça, ao
afrontar Adandozan, ele seus/suas conterrâneos/as e mesmos/as aquelas/as as submetidos/as a ritos de exorcismo; os/as africa-
foi conduzido ao conse- cujas trajetórias cruzaram com as dela. nos/as foram batizados à força, sob a justificativa de 92
edson silva farias, enrique borralho, edvania Gomes da Silva

lheiro real, por Ghèzo,


quando este destronou que a escravidão mercantil os livrariam dos males África banto podiam encontrar-se, através das palavras,
o seu meio irmão. Época da condição de pagãos. Tais infortúnios resultantes não apenas no mesmo ‘barco’ semântico, mas no mes-
então em que passou a
do aprisionamento motivaram, contudo, modos de mo mar ontológico”. No idioma em kimbundu malungo
ser chamado de Cháchá
e gozou de amplo pres- solidariedade fomentadas pelo fato de conhecerem tem o significado de barco e navio, literalmente canoa
tígio e poder. Bem mais o peso dos “libandos” – as pesadas correntes que os gigantesca, além do sentido de companheiro. Já no idio-
tarde, já arruinado eco-
articulavam ao mesmo destino do desterro submer- ma umbundu foi anteriormente associado a uma forma
nomicamente, tornou-
-se referência e protetor so nos porões daquelas naves onde conheciam os antiga de dizer embarcação, mas que atualmente se re-
de ex-escravos retorna- fantasmas do medo e da humilhação, igualmente, o fere à ideia de companheiro. Entre os atuais falantes de
dos do Brasil, que se fi-
suplício dos corpos imersos na degradação sanitária kikongo o vocábulo não está associado ao conceito de
xaram naquela região da
África (SILVA, 2004). e alvos de brutais imolações. Nas condições tão hos- companheiro, utilizado somente para barcos e navios.
24. O relato genea- tis daquele encontro, a emergência da solidariedade Roberto Slenes (sic) (encerra) essa discussão citando
lógico apresenta Zo- entre aqueles/as pessoas se fez manifestar na forma- que “não pode haver dúvida de que falantes de kimbun-
madonu  como um
dos  “torroçus” (ou seja, ção de símbolos de pensamento e de comunicação du e umbundu, juntos com os de kikongo, teriam che-

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pigmeus), porque seria comuns que expressavam a condição de companhei- gado a ‘malungo’ como companheiro de embarcação”
um dos filhos do  “ar- rismo suscitado na diáspora que se precipitou sobre (CARVALHO, 2017, p. 20)
roçu”,  do  Reino de
Daomé  Acabá. De acor- as suas vidas. Referindo-se a grupos bantos relativos
do com relato mítico, à África Centro-Ocidental, Flávia Maria de Carvalho As três são companheiras na mesma “malun-
Zomadonu e Pelu (outro observa o seguinte sobre a palavra “malungo”, origi- ga”35 – ou seja, a um só tempo, a travessia do Atlân-
torroçu nascido de Aga-
já), ao lado de Adomu nário do repertório idiomático kimbundu: tico e a passagem histórico-ontológica –, que as fez
(também torroçu, filho desembarcar nas terras americanas sob domínio do
de Tebessú), estiveram à Vários idiomas utilizados entre povos da África Centro império ultramarino português. Decaídas à substân-
frente das tropas torro-
çus, na invasão de Abo- Ocidental têm origem no ramo linguístico banto, como cia de meras peças do sistema mercantil de trocas –,
mey. E para conseguir o kimbundo, o kikongo e o umbundo. Mesmo entre essa as já próximas Agontimé e Saliabson (Sally), mais a
tal conquista, teriam diversidade a palavra malungo encontra significados jovem cabocla fulani, Suuana, praticaram uma ami-
eles dizimado pratica-
mente toda a população semelhantes. A expressão malungo de forma genérica zade diária no cotidiano instaurado durante a esta-
local. O único sobrevi- entre as línguas bantos “ilustra como os escravos da dia naquela embarcação, em que experimentaram os 93
edson silva farias, enrique borralho, edvania Gomes da Silva

vente seria Abadá Ho-


medovó. Ele fora pou- abusos dos europeus, o amotinamento dos escravi- o vômito. “Vamos, Sali”, eu disse, “não a culpe se ela
pado do massacre em zados, o tormento do mar. Em meio à angustia com a não consegue acostumar-se com o navio. Foi a morte do
razão da amizade com o
perda das referências deixadas na África, somada as peixe que levou o peixe ao mercado. Como todas nós ca-
torruçu Azacá. Já a cura
da elefantíase de que dores que latejavam fustigadas pela premunição do ímos na mesma rede, precisamos necessariamente ser
padecia se deu graças à quanto de sofrimentos ainda viveriam, a aliança por amigas”. Decorrido um tempo ficamos amigas depois
intervenção de Zomado-
elas forjada, envolvendo empatia e companheirismo, que nasceu o bebê de Sali, nos tornamos passageiras
nu, que também lhe en-
sinou o acesso aos mis- favoreceu-lhes a sobrevivência. Inclusive, Agontimé inseparáveis e, muito tempo depois, malungas. (GLE-
térios necessários para amparou o parto da filha de Saliabson, acolhendo a ASON, 2022, s/pd)
agradar os soberanos
pequena cria da diáspora. Antes da aproximação com
torroçus. Após a partida
dos pigmeus, Homedov Suuana, entretanto, sem conhece-la melhor, apenas Uma vez mais, na postura dos personagens do
iniciou o culto aos tor- calcada em preconceitos alimentados pelos litorâne- romance, a autora estabelece a antecedência de ele-
roçus reais de Abomey,
os daomenos em relação ao povo fulani, do interior mentos mais tarde destacados como marcas do femi-
sendo que o mais impor-
tante era dedicado a Zo- do reino, Sali desenvolveu por ela uma antipatia, nismo, em particular o feminismo negro – no caso, a

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madonu – desde então muitas das vezes vertida em animosidade. As pon- ideia de “sororidade”, pregada em favor da equipari-
cultuado como protetor
derações de Agontimé iam na direção de fazer Sally dade ética, política e moral dos gêneros, mas posta em
da residência real, onde
se localiza o  humpame ver o quanto era imperioso manterem-se “amigas”, funcionamento nas interações entre mulheres, tendo
(templo) em seu louvor. fortalecendo a adesão das três à moralidade funda- por moção o não julgamento e a solidariedade como
Mesmo que Zomadonu
da no entrosamento da tradição com a contingência, fundamentos dessas relações. Tal solidariedade se
esteja também presen-
te no  vodum haitiano, para tanto cabia se desfazer de sentimentos e certe- marca na construção narrativa por meio de constru-
em São Luís, na casa zas tornadas tão temerárias como era o futuro delas ções como: “foi a morte do peixe que levou o peixe
do Tambor de Mina, a
e daquele contingente de africanos aprisionados nos ao mercado”. Nesse caso, há a materialização de um
versão diaspórica impõe
alterações significativas porões daquele navio: efeito de resistência, que se constrói na adversidade.
ao culto. Ainda que seja Ou seja, diante da impossibilidade de fugir ao desti-
reverenciado como o
Embora o mar estivesse muito calmo nos primeiros no cruel da escravização (a morte do peixe), busca-
mais importante entre
os voduns e a quem dias, Suuna era muito sensível ao menor balanço do -se construir, à revelia desse destino, algo de posi-
são devotados os pri- navio, passava mal, vomitava e nada havia para limpar tivo (estar no mercado). Tal elaboração metafórica 94
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meiros toques do tam-


bor na seção, Zoma- é complementada na continuidade do texto, quando de experiências surtidas nas circunstâncias do des-
donu não apresenta Agontimé diz que “Como todas nós caímos na mes- terro. Seria imperioso se mostrarem criativas/os e
as característica do
ma rede, precisamos necessariamente ser amigas”, sagazes no sentido de forjar outros conhecimentos,
pigmeu, fazendo parte
do tronco dinástico real como se fora essa amizade a única forma de fazê-las crenças, costumes, sentimentos. Desde já, a memó-
de Davice, cuja coman- resistir às agruras da situação em que estavam, o que ria obtinha o status de valiosa habilidade para aque-
do está a cargo de Nochê
se marca, linguisticamente, na ênfase atribuída pelo la gente descentrada em relação às suas referências
Naê – a um só tempo,
matriarca ancestral e uso do advérbio “necessariamente”. Por outro lado, originárias. Isso porque, o sentimento de perda e a
rainha. a confluência de determinações que tornou as três inovação, amalgamados, fariam parte da sua estru-
25. Há muitas denomi- mulheres mutuamente identificáveis como malun- tura psíquica desde então, habilitando-a para o que
nações para esse vodum: gas, companheiras daquela travessia que transfor- Stuart Hall (2002) define quando entende a diáspora
em fom, Lebá; mas tam-
bém pode ser chamado mou suas existências, dotando-as de outra ontologia, como um processo contínuo de “tradução cultural”,
por Legbà,  Legbá,  Ele- no romance, sinaliza para a instauração da condição inexoravelmente caracterizado pela incompletude,
gbá,  Elebá; no contex- diaspórica que doravante as marcaria sem retorno, logo, indissociável da transitividade. De acordo com
to cubano responde

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por  Légua  ou  Eleguá. afinal, já a agora entendida como “África”, o torrão os termos do autor, na medida em que os “seus re-
O traço em comum é a natal se manteria uma lembrança permanente, po- sultados não podem mais ser decompostos em seus
função de guardião dos rém sempre sujeita à reacomodações nas vicissitu- elementos originais”, torna-se inviável “voltar para
templos, seja nas al-
deias africanas ou áreas des intrínsecas às novas territorializações que as casa” (Hall, 2016, p.120).
de cultos nas Américas. aguardavam. Com isto, não havia cabimento em se Ainda no percurso pelo Atlântico na direção
Função manifesta no apegar de maneira inflexível ao que estava à mercê do Brasil, um episódio deixou patente estarem as/
espaço na forma de um
montículo de barro do de um porvir sobre o qual nem elas, tampouco os os africanas/os sob a égide dessa irresoluta dialética
qual emerge um enor- seus irmãos “raciais” tinham qualquer controle. Se a mnemônica – a saber, o encontro de Agontimé com
me falo ereto. Embora descentralização identitária impusera-se a elas e eles Santo Antônio, ou melhor, com o oratório em que es-
haja total predomínio
da sua figuração mascu- irrevogavelmente, o desafio a ser enfrentado con- tava a imagem deste esculpida na madeira. De um
lina (Abô-Lebá), há per- sistiria em encontrar alternativas para equacionar a lado, a semelhança da escultura de madeira com o to-
fis femininos, destacado interseção do que sabiam e – ao contrário do pre- tem dos voduns, de outro, o fato de dizer respeito ao
pela vagina (Assi-Lebá
gado na catequese católica – não deveriam esquecer santo cristão padroeiro das embarcações, por exercer 95
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ou Lebaionu), cultuados
na proteção de mulhe- poderes sobre os ventos, para Antônio convergiram Já desembarcada e acomodada na Bahia, Agon-
res e crianças. Conce- as energias de Zomadônu. Contudo, ao dissipar a ten- timé dividia-se nas tarefas da casa dos seus senhores
bido como fator desen-
tativa do ente daomeano de se apropriar daquela sua e, ainda, como escrava de ganho, lavando roupas de
cadeador da desordem
e confusão no plano di- representação, o santo entabula diálogo com a rainha outras famílias brancas para obter rendimentos. Nem
vino e também devido a desterrada, relatando o seu percurso de vida. Frente por isso, esquecia-se da responsabilidade dispensa-
sua natureza dinâmica,
ao encontro forçado, provocado pelo desterro, o cru- da aos cuidados com as crianças e a tradição. Rode-
ao Lebá é atribuída a
função de abrir cami- zamento civilizatório do Daomé com a Europa preci- ada aos pequenos e pequenas, em primeira pessoa,
nhos para uma nova or- pita a dinâmica de tradução cultural como terreno da Agontimé sentencia: “Na África só contamos histó-
dem.
experiência possível; detonada, tal dinâmica provê de rias a noite” (GLEASON, 2022, s/pd). Submetida às
26. O emprego da noção ambiguidades as significações que dela decorrem. Por injunções da jornada pesada de trabalho, na sua fala,
de “povo” daomeanos, um lado, Agontimé se reconhece na busca de Antônio a posição pela noite compreende a semioforização de
visando abranger uma
diversidade étnica, so- por “ventos mais suaves”. Ao mesmo tempo, o insóli- antagonismo ao dia, pois contar histórias, além do
fre de evidente anacro- to da situação lhe desperta a incerteza provocada pelo aspecto gregário, comunitário, remete a uma forma
nismo nacionalcêntrico.

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receio de ser mal interpretada nas próprias atitudes e, de entrega ao desconhecido, às forças ocultas, que
Isto, se não for observa-
do que o efeito da homo- assim, jamais conseguir cumprir o que fora determi- durante o dia são dispersas pelo ritmo do trabalho,
geneização é um produ- nado pelo destino. Como um oráculo de Ifé, Antônio a não permitindo o acesso às zonas de sensibilização,
to da diáspora. Pêcheux tranquiliza até onde seria possível: do imaginário, da imaginação, do oculto e do que se
(1997 [1975]) também
discute essa questão esconde no inconsciente.
do uso de expressões (...) talvez eu possa ser-te útil algum dia. Dou-me conta Por estar imersa no cotidiano sob o fardo de jor-
homogeneizantes, como de que agora possuis poucos bens, mas no Novo Mun- nada tão árdua de tarefas que, à certa altura, pensou em
“o povo” ou “a nação”,
indicando que funciona, do tu, sem dúvida, começarás a acumular coisas, mo- fugir para o Maranhão, no que foi repreendida por Vi-
nesse caso, o efeito destamente no início e... Ah, este belo colar que usas... valdo, seu revolucionário interlocutor, que a interpõe:
ideológico da evidência Como foi que conseguiste ficar com ele? Se algum dia o
do sentido. Remetemos,
portanto, à leitura perderes poderás, sem maiores instruções quanto à fé Mas que absurdo! Há quanto tempo você vive neste
desse autor, para uma ou à moral, rezar para mim a fim de o recuperar. (GLE- país e ainda não sabe que o Maranhão não é um lugar
discussão verticalizada ASON, 2022, s/pd ) onde se refugiar, como se fosse um quilombo. É um lu- 96
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dessa questão.
gar para onde são mandados os mais teimosos, gente de ficamente a Casa das Minas. O tratamento pejorati-
27. Fazemos um em- ralé, assassinos! (GLEASON, 2022, s/pd). vo por parte da imprensa local a essas manifestações
préstimo dessa catego- afrobrasileiras, pode ser tomado como uma pista do
ria junto ao repertório
teórico de Marylin Stra- Ainda que, em princípio, tenha sido dissuadida que leva Agontimé a São Luís. Isto porque evidencia
thern (2017, p. 26-34). por Vivaldo, permaneceu a pergunta: qual intuição a larga presença de africanos naquela região do país.
Em particular, quando guiou-lhe no desejo de ir para o Maranhão? Mas esta é apenas parte da resposta. Afinal, ela esta-
a autora reflete (a partir
da etnografia realizada Quando Agontimé, ainda em Salvador, procura va obstinada em realizar a destinação que lhe trouxe
entre os Hagen situado um terreiro de candomblé com a finalidade de obter às Américas, ou seja, reencontrar seus conterrâneos,
na Papuá-Nova Guiné) autorização para entrar em contato com Zomadônu, instaurando um domínio daomeano nas condições
sobre a sintaxe cosmoló-
gica que opõe natureza e ela é rechaçada pela ialorixá, que abomina a presen- histórico-socais da colônia portuguesa. São os tam-
cultura, divisando como ça do vodum naquele espaço reservado aos orixás, bores de minas, que antecedem a fundação da Casa
ontologias irredutíveis reclamando da intemperança do ente, mas também das Minas, o sinal de estarem no Maranhão as/os
entre si, mas indisso-
ciáveis; sintaxe própria avivando as lembranças das violências cometidas pe- irmãs/ãos etnicorraciais que ela buscava, pois eram

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à tradição intelectual los daomenos contra os iorubás, ainda na África. O relativos aos grupos étnicos, principalmente, vimos,
empiricista do Ocidente romance remonta aos antigos conflitos interétnicos os mina-jejes e mina-nagôs, provenientes da região
europeu. O primeiro ter-
mo da oposição consiste que funcionaram como contrapartida dos reencon- do Golfo do Benin, na costa africana, cuja denomina-
na natureza humana tros entre os povos africanos no Brasil. Mesmo ante ção remete ao Castelo de São Jorge da Mina, símbolo
bem como no ambiente a tensão provocada pela hostilidade, Agontimé ob- da invasão portuguesa (VERGER, 1987, p.12).
desprovido de qualquer
envolvimento sócio- tém naquela situação os sinais de que deveria seguir O mesmo tratamento dispensado ao tambor
-histórico. Por sua vez, a mais para o Norte até o litoral maranhense. O que de minas e a Casa das Minas pela imprensa de São
cultura implica na inter- fará numa longa caminhada. Mas o que havia em São Luís, no início do século XX, também chama atenção
venção humana inventi-
va sobre essa natureza, Luís para lhe atrair? para o padrão de relações sociais em que ocorreram
absorvendo e transfor- Como observa Antonio Evaldo Almeida Barros os agenciamentos de Agontimé, entretendo história
mando esta última na (2019), ainda nos primeiros decênios do século XX, mítica e secular – entendida como aquela em que a
produção de artifícios.
Destaca-se, portanto, o os jornais ludovicenses detratavam o tambor de mina sucessão dos episódios não responde ao vetor de de-
gesto empreendedor hu- no Maranhão de forma geral e não apenas e especi- terminação inexorável, mas está à mercê das vicissi- 97
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mano, a sua ação trans-


formadora que imola a tudes, concretizadas em possibilidades, infortúnios e política e econômica do Maranhão, no século XVII,
substância passiva na- limites, oriundos da confluências não premeditadas a alta hierarquia eclesiástica católica em Roma,
tural. De acordo com
das práticas humanas. em acordo com a coroa portuguesa, designou para
a autora, o construto
cosmológico euro-ame- Em 1621, a Carta Régia de 13 de junho36 cons- a região o Padre Antônio Vieira. Dentre outras in-
ricano “natureza versus titui o Estado do Maranhão, ficando responsável por tervenções na vida local, ele salientou o comporta-
cultura” prima pela con-
uma parte significativa do que, no futuro, seria en- mento lascivo, insubordinado dos “nativos”, o que
cepção de um controle/
colonização da primeira tendido como Brasil, durante a fase da América co- mancharia as terras maranhenses com “mentiras.
que domestica a selva- lonial portuguesa. A última estava dividida em dois No sermão da Quinta da Quaresma, o padre afirma
geria da segunda. Nos
espaços administrativos distintos: o Estado do Brasil que, no Maranhão, até o céu mente, porque embora
desdobramentos deste
construto, o indivíduo se estendia da Bahia até o extremo meridional (o atu- se iniciasse ensolarado, logo em seguida, toldar-se-ia
ocuparia posição ambí- al Rio Grande do Sul), e Estado do Maranhão, depois de nuvens38. A acoima manifesta nesse trecho deixa
gua, porque se inscreve
Grão-Pará e Maranhão, avançando sobre toda terri- entrever a disputa pela tutela moral dos povos indí-
na biologia como natu-
reza, daí está à mercê torialidade atualmente conhecida como amazônica. genas por parte da igreja. Tal tutela estava implica-

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das moldagens cultu- Houve alternâncias da sede dessa unidade político- da à expansão espiritual do cristianismo e, ao mesmo
rais, ao mesmo tempo,
-administrativa setentrional, porque ora a capital es- tempo, ratificava o compromisso de assegurar o poder
compreende o sujeito
cuja agência é a produ- teve em São Luís, ora em Belém. Belém fora criada temporal da igreja, mantendo-a como guia e guardiã
ção inventiva, que dizer, em 1615, após São Luís (1612). A fundação de uma e ideológica da colonização ibérica nas Américas.
a interpelação controla-
de outra cidade se deu a partir de fortes erguidos com A disputa envolvia, no entanto, a percepção
dora e transformadora
exercida pela cultura. a finalidade de proteger os domínios coloniais lusi- de outros setores da empresa colonial sobre a po-
28. Fazemos um em- tanos contra os “invasores”, leia-se outros europeus sição estratégica do Maranhão na entrada para a
préstimo, aqui, ao pen- que não os portugueses. Em particular, a estratégia Amazônia. Ainda, davam-se conta do quanto o es-
samento de John Her-
bert Mead (2021), mais de defesa fora concebida calcada no entendimento toque de terras férteis existentes na região seria pro-
especificamente a sua de ser o Maranhão a porta de entrada à passagem missor para incrementar o sistema de plantation.
proposta de equaciona- que conduziria ao “Eldorado”37, o qual estaria locali- Deste modo, é criada, em 10 de março de 1649, a
mento do problema da
autorrelação por meio zado na foz do rio Orinoco, no Peru. Primeira Companhia Geral de Comércio do Brasil.
do conceito de “outro Em consideração a importância estratégica, A companhia era uma derivação da congênere já 98
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generalizado”, para o
tratamento analítico re- existente no arquipélago de Cabo Verde (África), do Brasil que, além de importar colonos açorianos
servado à interligação cujas operações se davam a partir de Ribeira Grande para incrementar atividades rizícolas e algodoeiras,
da autoestima de Agon-
de Santiago, depois cognominada de Cidade Velha, também empreendeu o aprisionamento e escraviza-
timé com a designação
divina do seu destino, na ilha de Santiago. Mais tarde, após a expulsão dos ção de indígenas, o que culminou na Revolta de Be-
concebendo a designa- jesuítas em 1759 – posteriormente estendida para ckman (1684). Já no século XIX, abriu-se um outro
ção como uma figura
toda a América Portuguesa39 –, um novo modelo con- ciclo de agroexportações, período em que são ergui-
normativa-institucional
referente a determinada ciliou a política mercantilista com a ideologia ilustra- dos os casarios luxuosos em São Luís, em particular
coletividade. A autorre- da. No processo de aquiescência dos interesses me- no bairro da Praia Grande (centro da cidade); edifi-
lação se manifesta, para
tropolitanos, tendo por objeto a Amazônia, deu-se cações ornadas com azulejos vindos de Portugal. No
o autor, como originá-
ria na conformação de a fundação da segunda Companhia de Comércio do mesmo momento, também ocorreu a construção dos
um self e este se consti- Grão-Pará e Maranhão, com a edição do Alvará Ré- casarões suntuosos na cidade de Alcântara, nos ras-
tui como objeto de uma
gio de 07 de junho de 1755, pelo Marques de Pombal. tros do enriquecimento de agricultores em toda a re-
interação; em outros
termos, o ponto de par- Pelo menos em tese, a finalidade seria impulsionar gião produtora de algodão, arroz e açúcar. A segunda

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tida não é de um ente a economia agroexportadora, para isto se ampliou metade do mesmo século, entretanto, trouxe crises
isolado, mas sim refe-
consideravelmente o contingente de pessoas africa- econômicas sucessivas para as então prósperas regi-
rente a um outro inscri-
to e apenas possível em nas escravizadas por meio do tráfico Atlântico, so- ões maranhenses, devido ao fim das agroexportações
determinada interação, bretudo, foram desembarcados representantes das sustentadas pela mão-de-obra escravizada.
mesmo sendo esta con-
etnias jejês, nagôs, bantos. O fôlego adquirido pe- Sobre as correlações possíveis entre Agontimé e
textualizada nos mean-
dros do sujeito. O “eu” las monoculturas de algodão e fumo, estritamente o Maranhão, diante do quadro sumariamente acima
corresponde à instância orientadas para a exportação, favoreceu a prospe- traçado, antes de qualquer ilação, vale constatar o se-
que, na personalidade
ridade do Maranhão, elevando-o a um dos lugares guinte: segundo Ferreti (2008), Agontimé ao fundar
de um indivíduo, com-
parece como comentá- mais ricos da América Portuguesa, sustentada pela a Casa das Mina se torna Maria Jesuína, de toi Zo-
rio ao ‘Me’ em situações mão-de-obra escravizada. madônu. As principais festas ritualizadas na casa são
práticas. Este último é
O conflito de interesses do clero católico com ou- as de Averequete – parte do ciclo de reverência a São
justamente a genera-
lização normativa in- tras fracções dominantes se deu, principalmente, em Benedito; o banquete dos cachorros, em homenagem
ternalizada nos indiví- razão da presença da Companhia Geral de Comércio a São Lázaro; o arrambam, que fecha os terreiros de 99
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duos. Ressalta-se assim


o quanto importante é tambor de mina no início da quaresma; a festa do di- em São Luís, representa a restauração do Daomé no
para Mead o resgate da vino Espírito Santo. Ou seja, a Casa das Minas possui Maranhão e não somente a restituição do antigo rei-
ideia de reconhecimento
profundo enraizamento nas tradições orais do Ma- no em solo africano, fazendo do Maranhão um lu-
tomada de empréstimo
à teoria do conhecimen- ranhão, com os festejos, folguedos, com o carnaval, gar possuidor de uma rainha – um elo encantado. A
to hegeliana. Para ele, a com o São João. Essas relações rementem, por certo, narradora do romance a classifica não apenas como
identidade de um indi-
a cruzamentos que, por sua vez, sinalizam às movi- rainha, mas vê nela uma entidade que articula po-
víduo não se realiza na
ausência de um segun- mentações sócio-históricas e simbólicas deflagra- deres divinos e temporais. Ante o quadro sumaria-
do sujeito cuja interfe- das ao longo do período colonial. Isto, em especial, mente descrito, fica a pergunta: Agontimé construiu
rência simbólica se faz
no que toca às remissões mnemônicas, redesenhos o templo da Casa das Minas como forma de agradar
a fonte e o destinatário
da própria formação da de costumes, recomposição de saberes e invenções Zomadônu e se libertar dele, saldando uma dívida
consciência prático-mo- institucionais interétnicas de grupos africanos, mas com a divindade? Afinal, se Zomadônu jamais incor-
ral. Deste modo, o autor
também às interpenetrações civilizatórias relativas porou em Agontimé no Maranhão, algumas suges-
deixa em segundo plano
o problema da manipu- aos encontros no mesmo contexto colonial com po- tões podem ser arroladas.

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lação instrumental-cog- vos nativos e os conquistadores europeus. Além dis- A primeira delas diz respeito ao fato de que,
nitiva dos objetos em
so, como indicamos, um outro aspecto é a compo- no Daomé, Agontimé era uma rainha, no Maranhão
favor das expectativas
morais que lastreiam nente mítica indissociável da construção da epopeia uma desconhecida, embora admirada, principiadora
a atuação dos sujeitos de Agontimé. Trata-se, principalmente, a restituição de uma nova prática espiritualista em terras do novo
e torna a questão nor-
desse elemento mítico na temporalidade histórica, o mundo, ou seja, a sua respeitabilidade estava rela-
mativa constitutiva da
própria personalidade que se plasma na fundação da Casa das Minas. cionada ao que as pessoas apreendiam dos seus atos
no trato da consciência Desse ponto de vista, uma primeira observação que lhe conferiram uma glória própria, não atrela-
com ela mesma, mas
a ser feita é que, se no Daomé, Zomadônu foi somen- da ao seu passado de realeza. Sendo assim, Zoma-
mediada pela intersub-
jetividade comunicati- te um chefe Tohosu, porque lá existiria força políti- dônu passa a enxergá-la como uma entidade dotada
va. O seu conceito de ca maior, em São Luís ele se sentou sobre o status de uma epopeia constituída de feitos próprios, não
outro generalizado diz
de força suprema e o feito não pode ser descolado apenas como uma mera devota. O segundo ponto se
respeito, justamente, à
proposta de que a con- das consequências dos agenciamentos de Agontimé. relaciona à suspeita de que Zomadônu “desistiu” de
firmação do outro so- Sob esse aspecto, a presença dela, uma antiga rainha Agontimé ou reconheceu o desfecho do destino tra- 100
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bre a particularidade
essencial de um sujeito çado para ela, tendo sido cumprida a sua função de licismo, as encantarias dos povos nativos e aos ritos
é elementar ao desen- protetor. Nesse caso, ele teria percebido o advento transladados seletivamente pelos grupos da diáspora
volvimento psíquico do
de novas forças em curso. Entre essas estava, no Ma- negroafricana. O Bumba-meu-boi representa, nesse
indivíduo. O outro ge-
neralizado se refere à ranhão, o encontro de Agontimé com o Currupira sentido, um processo de semioforização. Cabe uma
atuação do agente não – entidade da floresta, protetora dos animais que a breve síntese da trama desse folguedo. O personagem
para um outro imediato;
respeitou de imediato. Além de caracterizar a relação negro, “Pai Francisco”, mesmo recebendo o aviso do
os gestos de cada indiví-
duo teria como endereço de duas forças, o encontro apontaria para um rito de “Amo” (o dono acoima da fazenda) – de que todos
um outro social genera- passagem: entidades americanas e africanas se in- os outros novilhos poderiam ser abatidos, menos o
lizado internalizado no
terpenetram seletivamente. Terceiro, o abandono “Brilho da Lua”, por ser o mais amado –, ainda assim
processo de socialização
do indivíduo, mediante de Zomadônu deu-se após Agontimé banhar-se nas ele atende aos desejos da mulher, a negra “Catirina”.
o qual se dá a formação águas do rio Itapecuru40. Sendo ele o rei dos espíri- Grávida, ela vocaliza a urgência do desejo de comer
da sua personalidade.
tos das águas, reconhecera a força daquele rio, um dos a língua de boi. Quando o Amo da fazenda acorda,
E, deste modo, o autor
destaca a maneira como mais importantes do Maranhão, o de maior extensão, pressente que algo está errado, busca por Brilho da

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entende a integração da e um dos dois genuinamente maranhense. Rio este Lua e não o encontra. Ao saber do rapto por Pai Fran-
contingência empírica
em que, por suas águas, os escravizados eram condu- cisco e Catirina, ele sai a procura com seus capatazes.
com a ordem coletiva.
zidos do porto de São Luís para outras paragens. Ao encontrá-los, açoita Pai Francisco, a ponto deste
29. Em relação às di- O quarto e último ponto, talvez, sintetize os último desfalecer. Quando Catirina clama pela vida
ferentes formas ou pa- anteriores. Agontimé conhece a festança em torno do companheiro, afirmando ter sido ela a responsá-
drões de subjetivação,
é válido destacar que a do auto folguedo do Bumba-meu-boi e toda a força vel pelo sacrifício do novilho, por conta de seu dese-
Análise de Discurso en- da analogia que isso carrega: dos fatores que condi- jo, ela se compromete a ressuscitar o animal, caso o
campada por Pêcheux, cionam a formação de um ethos – ou seja, um con- Amo da fazenda permitisse que fossem evocados os
autor ao qual recorre-
mos algumas vezes aqui, junto de práticas no qual se manifesta determinado seus orixás. Porém, não há resultado. No desespero,
também defende que o plano dos valores e ideários – maranhense. Bumba- Catirina pede às senhoras católicas moradoras das
sujeito é convocado a -meu-boi cujas ritualísticas remontam a danças pro- redondezas que rezem em prol do bezerro. Também
assumir diferentes luga-
res na estrutura social e venientes da África ocidental e costumes indígenas, sem sucesso. Por fim, os indígenas são convocados
que tais lugares ou posi- também ao sincretismo religioso envolvendo o cato- para, com auxílio dos “Kazumbás” – outros espíritos 101
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ções-sujeito dependem
das relações ideológicas da floresta –, trazerem à vida à rês, igualmente, sem mé, africana, depois do encontro com Currupira, as-
que se estabelecem no êxito. Somente com a soma das forças de Catirina e sume um nome português (Maria Jesuína, derivada
bojo de uma determi-
Pai Francisco, das rezadeiras católicas e dos Kazum- de Jesus) e inicia uma prática ritualística de matriz
nada formação social.
Para uma discussão bás o boi reage, tornando a viver. africana que engloba santos católicos (São Lázaro,
mais aprofundada a esse A representação do auto do bumba-meu-boi, São Benedito etc.), no centro histórico de São Luís,
respeito, remetemos a
que se repete todos os anos em louvor a Santo An- cujos festejos, inclusive, ocorrem durante o carnaval
Pêcheux (1997 [1975]).
tônio, São Pedro, São João e São Marçal, retoma o e o São João. Sua ontologia, agora, não compreen-
30. O tributo pago à obra princípio da insubordinação, indolência, maledicên- de algo pleno, que não se resume a uma substância
de Nietzsche na formu- cia, encetada pelos maranhenses presentes tanto nos sintética na qual se superam as propriedades e con-
lação derridadiana se
revela no descortinar textos do Padre Antonio Vieira, quanto na fala do in- tradições que a originam. Diz respeito, sim, a des-
da interpretação socrá- terlocutor de Agontimé, quando ela ainda se encon- centramentos bruscos, resultados de deslocamentos
tica tomada como parâ- trava na Bahia. Entendemos que o bumba-meu-boi, violentos e encontros/desencontros permanentes,
metro do pensamento,
comprometendo-o com ainda que não seja uma prática cultural especifica do deixando a sucessão precária de traduções como um

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a unidade harmônica Maranhão, mas de todo o Brasil, é a própria simboli- traço subjetivo permanente.
inscrita no princípio da zação da negação, da contraposição, da insubordina- Ao final do romance, Agontimé é encontrada
temperança como filtro
dos instintos, mas sub- ção, da revolta, da afronta a um sistema de opressão pelos embaixadores (muito provavelmente Francis-
metida à transcendência e injustiça social. O Maranhão enriqueceu às custas co Félix de Sousa participou da comitiva41) a mando
do invisível, à qual se do trabalho escravo e foi justamente esse trabalho do já então rei do Daomé, Ghézo42. A narrativa faz
manteria imaculado em
razão da desigualdade que operou as maiores discrepâncias sociais. Além mais outra prolepse, ao dizer que ela já sabia que o
frente à inconstância do disso, por reunir elementos africanos – à exemplo da filho se tornaria rei e, por isso, ela se recusa a voltar
empírico. A tônica esta- dança, tambores, orixás –, também indígenas, como para a África, mesmo depois que os embaixadores
ria posta na cisão entre
corpo e alma, razão e as concepções antropomórficas, além das orações em a encontraram em São Luís. Da mesma forma que,
empírico, verdade e fal- homenagem a entes do panteão da cristandade ro- ainda na praia de Udá, em Abomey, negou ser uma
sidade, disjunções sin- mana, o folguedo junino remonta algo similar aos de lenda, manteve-se uma discreta sacerdote do templo
tetizadas na passagem
do Fedon (de Platão) rituais como as pajelanças: um e outro são metáforas na Casa das Minas e não retornou para perto do seu
em que Sócrates, ime- da construção do Brasil mestiço, compósito. Agonti- filho, bem como também não permaneceu em São 102
edson silva farias, enrique borralho, edvania Gomes da Silva

diatamente antes da sua


morte, elogia esta como Luís, segundo o romance, tomando rumo inespera- com o próprio corpo parte da história da trama na
a libertação dos incon- do. As recusas, ou seja, do título de mãe do rei e de qual as consequências do colonialismo subverteram
venientes da matéria.
se ver reverenciada como uma importante vodunisi, referenciais de pertencimento. Assim, o perfil da
A princípio, ele conclui
esperando que o inter- talvez, resultaram da compreensão de não pertencer rainha tornada profeta escravizada nas Américas si-
locutor, da ocasião, revi- a nenhum dos dois mundos; nem ao Daomé, por con- naliza para um padrão de subjetividade fomentado
sasse o próprio entendi-
ta da conivência da realeza com os mercadores na es- no exílio, o qual se define pela disposição psíquica
mento: “(...) Considera
agora, Cebes (...), se de cravização dos seus/suas malungos/as, sobretudo, ela para as mesclas impostas nas reinvenções de propo-
tudo o que dissemos não que sentiu as dores do desterro e do cativeiro; nem ao sições de si em sintonia com as reacomodações dos
se conclui que ao que for
Maranhão, justamente, por ter vivido ali diariamente seus pares de convivência. Não seria demais dizer
divino, imortal, inteli-
gível, de uma só forma, os sofrimentos e humilhações da prática escravista. que esses/essas sujeitos da diáspora se anteciparam
indissociável, sempre Em um primeiro momento, a leitura do roman- como agentes da modernidade, quanto aos proces-
no mesmo estado e se-
ce sugere a existência de uma aliteração entre os dois sos de descentramentos identitários. Nesse sentido,
melhante a si próprio é
com o que a alma mais mundos: África e Maranhão. Ambos não estariam a narrativa histórico-ficcional do romance de Glea-

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se parece; e o contrá- conectados apenas pelo cruzamento transatlântico, son pode ser compreendida como o relato da atua-
rio: ao humano, mortal
mas também pelo estigma de algo que gozou de pas- lização do mito na história, em duas dimensões. Na
e ininteligível, multifor-
me, dissociável e jamais sado brioso porém, em se tratando do Maranhão, na primeira, é possível identificar os efeitos da inscri-
igual a si mesmo, com primeira metade do século XIX, já havia iniciado o ção forçada da memória africana na dinâmica his-
isso é que o corpo se pa-
processo do seu “declínio econômico”43. Mas, ao re- tórica da centralização estatal estendida da Europa
rece? Poderemos, amigo
Cebes, argumentar de fletirmos acerca da sua representatividade a ponto ao Brasil, como também da sua subordinação aos
outro modo e dizer que de compor o patrimônio maranhense, Agontimé pa- ditames da divisão romano-católica, separando sa-
não é dessa maneira?”.
rece personificar uma espécie de nó das teias múlti- grado do profano, divisão pela qual se decide a cisão
Diante do assentimen-
to do parceiro no diálo- plas que subsidiam a figuração de um território da entre o atemporal e o secular. Fatores que levaram
go, o mestre prossegue diáspora negroafricana em São Luís. O tenso entre- à conversão das sobrecamadas não necessariamente
categoricamente: “(...)
cruzamento entre desígnios divinos e a historicidade coesas das crenças daomeanas em um sistema sim-
Ao passo que a alma,
a porção invisível, que secular na trajetória da daomeana embasou os des- bólico religioso, o qual requer pôr em sintonia a coe-
vai para um lugar seme- terros e reterritorializações de alguém que escreveu rência teológica e a unidade política estabelecida no 103
edson silva farias, enrique borralho, edvania Gomes da Silva

lhante a ela, nobre, puro


e invisível, o verdadeiro entrosamento de uma suposta homogeneidade iden- acesas as lembranças de um lugar de retorno im-
Hades, ou seja, o Invi- titária (no caso, a linhagem étnica mina-jeje) com a possível – a da ancestralidade africana, cuja presen-
sível, para junto de um
circunscrição territorial – a Casa das Minas –, sob o ça jamais deve ser esquecida, porque diz respeito à
deus sábio e bom, para
onde também, se Deus alcance de mando e comando de uma liderança a um transubstanciação daquilo que se tornou a fonte de
quiser, dentro em pou- só tempo espiritual e política. A dubiedade inerente valores postos como suportes normativos da uto-
co irá minha alma: essa
a essa instituição parece estar no alicerce do seu re- pia de conquista da justiça social, da afirmação cul-
mesma alma, dizia, com
semelhante origem e conhecimento como patrimônio do Maranhão, sin- tural e do respeito à dignidade de pessoas e grupos
constituição, ao separar- gularizado como um dos espaços sociogeográficos da identificados em suas origens no Velhíssimo Conti-
-se do corpo, no mesmo
diáspora, fazendo recíprocos o colonial, o nacional nente. Agontimé e Gleason tem muito em comum,
instante se dissiparia e
viria a destruir-se, con- e o pós-colonial. Aqui, é possível identificar a exis- principalmente, o entendimento de que a reposição
forme crê a maioria dos tência de uma relação entre memória e atualidade, do mito na história é condição para a conquista do
homens? Nunca, meus
marcando o que Pêcheux (2006 [1983], p. 17) cha- futuro. Para ambas, passado e devir estão sob a égi-
caros se ela é pura no
momento de sua liberta- ma de “acontecimento”, pois, se, por um lado, há a de das invenções permanentes do presente, em que

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ção e não arrastar con- retomada das raízes daomenas, vemos, por outro a incompletude legada pelo desterro e a escravidão
sigo nada de corpóreo,
lado, o entrelaçamento dessas com as determinações deixou por marcas lacunas psíquicas e existências
por isso mesmo que du-
rante a vida nunca man- que lhes foram impostas pelo agenciamento político- sociopolíticas, exigindo equacionamentos, ainda que
tivera comércio voluntá- -estatal que se configurou nas relações estabelecidas parciais, hábeis em proporcionar sentidos em meio a
rio com o corpo, sempre
desse lado do atlântico. tantos vazios44. À luz do argumento posto no roman-
isso como preocupação
exclusiva, que outra coi- A outra dimensão é aquela relativa ao metar- ce, ambas são tecelãs cujas agências atuam sobre fios
sa não é senão filosofar, relato da empatia deflagrada com o encontro da ro- simbólicos urdindo mundos possíveis de palavras,
no rigoroso sentido da
mancista com Agontimé: as duas, mulheres negras que antecipam ou sugerem possibilidades experien-
expressão, e preparar-se
para morrer facilmen- inscritas na mesma diáspora; elas, comprometidas ciais situadas na sensatez frente à incompletude in-
te (...). Pois tudo isso politicamente com os destinos dos povos de ascen- dissociável da aspiração de um vir a ser que suture
não será um exercício
dência africana nas Américas. E o fazem no aciona- tudo o quanto se lhes impôs como dispersão.
para a morte?”. Em ou-
tro trecho, Sócrates ob- mento da agência de narradoras, pois uma e outra
tém a coalescência de cumprem a tarefa intelectual de cuidar em manter 104
edson silva farias, enrique borralho, edvania Gomes da Silva

Cebes e chega ao des-


fecho do argumento, já Digressão Final empírica espaço-temporal, em saberes que
convicto da acolhida da cruzam gerações, é indissociável do problema em
sua ilação pelo discípu-
Sob o estatuto de uma categoria de pensamento e torno dos liames entre história natural e história
lo: “Assim constituída,
dirige-se para o que lhe comunicação, a finalidade quando do emprego da cultural. Logo, o que está em pauta – em termos
assemelha, para o invi- denominação bens simbólicos, de um modo geral, é dos empreendimentos intelectuais analíticos – é a
sível, divino, imortal e
tipificar vasto e heterogêneo conjunto de usos cor- reconstrução histórico-genética da cognição, porque
inteligível, onde, ao che-
gar, vive feliz, liberta do porais cujos efeitos se deixam notar nas relações o seu maior desafio está na obtenção de um modelo
erro, da ignorância, do estabelecidas entre coisas diversas. Assim, posicio- pertinente à lógica processual no desenvolvimento
medo, dos amores selva-
nando-as umas em relação às outras, diferenciando- das estruturas sociais, bem como no desenvolvimento
gens e dos outros males
da condição humana, -as entre si, ao designar – ainda que precariamente da cognição (DUX, 2012). Ora, algo assim conduz à
passando, tal como se – o valor que as torna, a um só tempo, irredutíveis proposição sobre a modulação mútua entre os de-
diz dos iniciados, a vi-
e intercambiáveis (BOURDIEU, 2009). Tais práticas senvolvimentos históricos sociogenético e psiquico-
ver o resto do tempo na
companhia dos deuses. de simbolização são estratégicas na composição das genético, o que diz respeito às dinâmicas nas quais

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Falaremos desse jeito, experiências, por realizarem a nevrálgica função de os padrões de personalidade humana e determinado
Cebes, ou de outra for-
tecer a malha dos sentidos. Com isto se quer dizer perfil de sociedade compõem uma mesma constelação
ma?” (PLATÃO, 2002,
p. 284-285). que, mediante elas, sensações e conceitos se fazem de interdependências sociofuncionais (ELIAS, 1994).
31. Tema posteriormen- recíprocos, mas também opostos, no emolduramen- Os bens simbólicos, portanto, estão inapelavel-
te retomado e reelabora- to de imagens sonoras, visuais, gustativas, olfativas mente relacionados diretamente à centralidade go-
do, entre os séculos V e
IV antes de Cristo, pelo etc. A deflagração dessa contínua dinâmica ocorre no zada pela linguagem nos processos de hominização,
círculo dos dramatur- compasso da transformação das valências neurocere- mas, em particular, ao quanto estratégico se torna-
gos, os chamados trági- brais em funções mentais, dinâmica pela qual se dá a ram os meios de simbolização/comunicação na ins-
cos, principalmente na
célebre trilogia tebana individualização psíquica das materialidades corpóre- tauração dos mundos naturais, históricos, psíquicos
de Sófocles: Antígona, as na hominização, no plano onto e filogenético. que compõem a totalidade dos distintos mundos so-
Ájax, Rei Édipo. (REI- À luz dos delineamentos das simbolizações ciohumanos. Sem dúvida, entendida como aparelho
NHARDT, 2007, p.09-
18). que estão à contrapartida dos bens culturais, a formal da enunciação (BENVENISTE, 1989 [1970],
32. A interligação de metamorfose dos acontecimentos, na sua restrição p. 81-91), o qual integra diferentes níveis, do fono- 105
edson silva farias, enrique borralho, edvania Gomes da Silva

memória e tradição pre-


sente ao agenciamen- lógico ao semântico, entrosando potencialidades de com determinada situação e seus objetos.
to místico-narrativo da flexibilidade da pauta sonora emitida pelas cordas A eleição da Casa das Mina como patrimônio
arte divinatória, talvez,
vocais com a modulação pelas normas idiomáticas, a cultural maranhense na medida em que referencia
torne-se melhor apreen-
dida mediante à remis- língua sobressai como o bem simbólico por excelên- a lendária história de vida de Agontimé, reconhece
são à figura de Iroco. cia. Mas, se tivermos em conta que a expressividade, aquele espaço, ao se considerar os saberes e as prá-
Afinal, ele é identificado
tal como a recepção, requer a sensibilização mútua ticas nele realizadas, como representativo dos sofri-
como a “morada de Zo-
madônu”. Reconhecido aos diferentes sentidos corporais, a língua não atua mentos e dores, também das lutas e conquistas, mas
– na tradição nagô-io- solitária, o mesmo não acontecendo com as demais também dos feitos e tantas contribuições das mu-
ruba – como o “orixá da
linguagens e seus específicos encadeamentos sígnicos. lheres e homens aprisionadas/os e tornadas/os es-
árvore”, Iroco é uma re-
ferência de origem para Os fundos coletivos intergeracionais de saberes cravas/os, submetidas/os ao forçado translado tran-
diferentes grupos étni- atuam, justamente, na sensibilização dos sentidos satlântico. Condição de desterro que lhes impôs, na
cos da África ocidental.
corporais. Logo, mediante aqueles são acionadas as sua relocalização nas Américas, seja como indivíduos
O orixá Iroco, para os
iorubas; vodum Loco, virtuais potencialidades neurocerebrais, transfor- seja como povos, equacionamentos à sobrevivência

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para os fon; a inquice mando-se em funções mentais, básicas ao movimen- física e espiritual. O enquadramento como patrimô-
Nizara Ndembu, para
to de delineamento das distintas individualidades. nio, porém, é bem posterior ao desenrolar das muitas
os bantus. Numa tra-
dução simplista, pode- De acordo com o compasso em que se dão as indivi- odisseias sintetizadas na patrimonialização da Casa
ríamos aproximá-lo da dualizações, estas últimas são remissivas ao decan- das Mina. Inclusive, a identificação como “epopeias”
ideia ocidental de tempo
tamento simbólico de experiências tornadas anôni- protagonizadas por gente em grande medida deixa-
e tem por representa-
ção simbólica, na África, mas, quando convertidas nos fundos impessoais que da ao sabor do anonimato é efeito de outras práticas,
Clorophora excelsa – subsidiam os múltiplos enquadramentos dos sentidos dispostas em condições socioespaciais distantes, que
imensa árvore; no Bra-
com o desenvolvimento dos dispositivos de percepção podem ou não ter alguma proximidade com aquelas
sil, as gameleiras foram
consagradas como suas próprio aos indivíduos. Sob esse ponto de vista, em- vidas marcadas pela nódoa da escravidão. A patri-
substitutas. Sua nature- bora sujeitos tanto à história biológica de cada um dos monialização, portanto, requer especial atenção. Em
za dúplice compreende
indivíduos quanto às circunstâncias de acionamento, particular, porque reclama examinar quais media-
que Iroco é, ao mesmo
tempo, a morada dos os enquadramentos são tributários de acervos de sa- ções – exercidas nas suas especificidades histórico-
encantados e estes pró- beres que, não necessariamente, tem imediata relação -sociais – intervêm na transformação da vulgaridade 106
edson silva farias, enrique borralho, edvania Gomes da Silva

prios. Ele consiste, por-


tanto, na ligação tran- em algo cuja excepcionalidade justifica as ingerên- mico e juridicamente formais ou não que compõem
sitiva entre os céus e a cias de salvaguardá-lo, especialmente por parte do o racismo como um dos mais potentes dispositivos
terra (MARTINS & MA-
Estado, enquanto força concentrada em sociedades de dominação contemporâneos. Ao mesmo tempo,
RINHO, 2010). No limi-
te, é substância mesma definidas pela laceração contínua do advento e inci- ainda nos fundamentando em Hooks (2019), uma
da tradição que, no caso siva penetrabilidade dos marcadores sociais de raça, e outra estariam empenhadas em fazer visíveis e
de Agontimé, respalda
classe, gênero, orientação sexual, entre outros, em audíveis outras representações, para bem além da-
do todo o seu exercício
divinatório. correlação com os graus distintos de influência dos quelas resultantes dos enquadramentos de signos
33. Considerando dada grupos de status (FARIAS, 2020, p. 56-107). que, de acordo com a forma como são mobilizados,
situação de encontro en- Anotamos, ao longo da argumentação desenvol- evidenciam visões de mundo que mascaram,
tre participantes de uma
mesma interação, pro- vida neste ensaio, os paralelismos estabelecidos en- mutilam, sobretudo, rebaixam proposições de ser,
põe Goffman(1995), os tre a saga de Agontimé e o feminismo negro estadu- esquemas de pensamento, conteúdos de saberes,
acordos operacionais di- nidense contemporâneo, por meio da intervenção da enfim, modos de vida cuja extensão espaço-temporal
zem ao tratamento con-
cedido a determinados autora do romance. Ao se colocar na descendência “escapa” as cosmologias euroamericanas. Trata-

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temas e questões que diaspórica da rainha daomeana, que também fora se, aqui, de uma espécie de negociação entre um
são temporariamente uma narradora, Judith Gleason reafirma o compro- acontecimento histórico singular e um dispositivo
acatadas, evitando com
isto a deflagração de um misso daquela com a luta pela liberdade e justiça so- complexo, que antecede esse acontecimento e, até
acirramento entre os cial dos povos africanos, em particular, as mulheres certo ponto, lhe dá sentido, pois o circunscreve.
pontos de vista e, logo, inscritas nas condições da diáspora negroafricana Contudo, tal circunscrição não impede que esse
atenuando o conflito. O
consenso operacional nas Américas. As duas manifestariam afinidades em acontecimento vaze pelas bordas da memória,
caracterizar-se-ia pela torno do que Bell Hooks (2021, p.50) denomina de constituindo o novo, sem, contudo, abdicar daquilo
tendência de um partici- “amor verdadeiro”, porque a função narrativa é exer- que está discursivamente inscrito em outro lugar
pante de uma interação
em aceitar as definições cida conciliando “cuidado, compromisso, confiança, (PÊCHEUX, 2007 [1983]).
predominantes em uma sabedoria, responsabilidade e respeito” com todas as Há, contudo, uma diferença significativa que
situação a partir das in- vidas humanas negroafricanas vitimadas pelos gri- diz respeito ao teor das respectivas ontologias histó-
formações que a princí-
pio obtenha, isto condu- lhões do desrespeito moral, legado pela escravidão ricas, referentes a uma e a outra narradora. As fun-
ziria o modo como ele e perpetuado pela miríade de procedimentos epistê- ções narrativas exercidas por Agontimé não a defi- 107
edson silva farias, enrique borralho, edvania Gomes da Silva

não apenas se inteira-


ria, mas principalmente nia com uma produtora da imaterialidade simbólica ana, por parte Judith Gleason, está sintonizada à
irá planejar as linhas de inscrita nos sistemas de significação que compõem ampliação, para além das fronteiras e conteúdos
ação futuras como res-
a esfera cultural. Posição essa ocupada por Gleason europeu-ocidentais, do alcance do regime estético
postas ao ponto inicial.
– intelectual romancista atuante nos mercados aca- da arte em que se sincronizam “pensamento com o
34. Nos textos que com- dêmico e editorial dos Estados Unidos da América. não-pensamento, de certa presença do pensamento
põem a sua Sociologia Sob esse ponto de vista, as duas mulheres experi- na materialidade sensível, do involuntário no pen-
da Religião, Max We-
ber (2001) persegue a mentaram distintos estágios e composições da expe- samento consciente, do sentido no insignificante”
racionalização pelo mo- riência diaspórica negroafricana. Para a primeira, o (RANCIÈRE, 2009, p.10-11). Mas é preciso lembrar
vimento em que o que seu percurso dos agenciamentos, foram inaugurais que emergência do regime do estético está nas artes
denomina “intelectua-
lização” corresponde de uma linguagem, concatenando o secular e o divi- correlato à profunda redefinição do espaço geral do
à mudança das razões no, com isso fazendo afins a África inatingível com a saber na modernidade. Observa Foucault (1999) que
e dos níveis de funda- tangibilidade das provações no desterro. Para ela, o este último não mais compreendia aquele da repre-
mentação. Daí porque
lhe é tão decisivo o es- trajeto não correspondeu à tecelagem de representa- sentação, que marcou a “era clássica”, caracterizado

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tudo da eticização das ções novidosas, coligindo os pontos na instauração pelo jogo entre identidades e diferenças – a topologia
formas religiosas pré- de uma tradição. A mediação exercida por agencia- das ordens não-quantitativas –, enfim, aquele da ca-
-universais, no anda-
mento das lutas contra mentos como os de Gleason são cruciais, justamente, racterização universal na contrapartida de uma taxo-
as práticas mágicas, e na depuração da raridade de itinerários à maneira do nomia geral compondo uma “mathesis do não-men-
das rejeições do mundo de Agontimé. Ou seja, em razão da autoridade que surável”. Para o autor, o novo espaço se constituía
daí decorrentes. Por en-
volver a maneira como dispõe de designar sentidos, a intervenção cultural por organizações, ou seja, correlações internas entre
justificar a desigualdade da escritora facultou o translado qualitativo do que elementos cujo conjunto asseguraria uma função.
na distribuição de bens se constituía na insignificância da história de uma As organizações são descontínuas, ainda de acordo
entre os homens, o pro-
blema da “teodiceia” se escrava preta, transmitida pela oralidade popular, com a perspectiva foucaultina, pois não formam um
impõe nevrálgico à sua para o núcleo da representatividade gozada pelo sta- quadro de simultaneidades sem rupturas, afinal al-
reflexão sobre a ques- tus de patrimônio imaterial, expressivo das lutas dos gumas correlações são do mesmo nível, enquanto
tão ética fundamental,
decorrente do desen- povos africanos escravizados. outras traçam séries ou sequências não lineares. A
cantamento instaurador A interpelação da biografia da rainha daome- situação europeia, na passagem do século XVIII para 108
edson silva farias, enrique borralho, edvania Gomes da Silva

das religiões e civiliza-


ções universais. Para os o XIX, abrigou a mutação da ordem para a história e consistem em tecnológicas oriundas da confluência
nossos propósitos neste nessa esteira a alteração fundamental das positivida- entre saber e poder, que fabricam o homem como a
artigo, retemos, do au-
des, que durante um século e meio teriam dado lugar priori histórico (FOUCAULT, 1997, p.88-97). O seu
tor, a triangulação típico
ideal entre os perfis do a tantos saberes vizinhos – análise das representa- movimento de realizar a genealogia do sujeito mo-
mago, do profeta e do ções, gramática geral, história natural, reflexões so- derno concentra-se na busca por:
sacerdote. Em particu-
bre o comércio e a riqueza. De acordo com o seu vo-
lar, interessa-nos a pro-
posição sobre o profeta cabulário, Foucault apreende o registro dos saberes (...) descobrir o ponto no qual estas práticas tornaram-
como o portador da “boa da modernidade nos sinais do que interpreta como -se técnicas refletivas coerentes com objetivos defini-
nova”, isto é, aquele que
uma “profunda ruptura”. Seriam emblemáticos, nes- dos; o ponto no qual um discurso particular emergiu
anuncia a promessa com
suas propriedades de sa perspectiva, os seguintes elementos: a emergência destas técnicas e passou a ser visto como verdadeiro;
salvação, renascimento de várias ciências positivas; o aparecimento da lite- o ponto no qual estas técnicas estão conectadas com a
ou purificação.
ratura; a volta da filosofia sobre o seu próprio devir; obrigação de procurar a verdade e de dizê-las. (RABI-
35. Em Yáyá Massem- a ascensão da história ao mesmo tempo como saber NOW, 1999, p.31)
ba, João Campos Cari-

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e como modo de ser da empiricidade. A outra face
be Mendes e Capinam
traduzem em canção o dessas cisões invenções seria composta pelos novos Insumo fundamental à sua postura transgres-
sentimento malunga: aportes metodológicos voltados às áreas temáticas sora, Foucault os encontra em uma concepção não
“Que noite mais funda como a da medida do trabalho, da organização dos representativa da linguagem, extraída de literatos-
calunga/No porão de
um navio negreiro/Que seres (a noção de vida), radicalizando a separação do -pensadores como Blanchot e Bataille, mas também
viagem mais longa can- orgânico e do inorgânico e, ainda, o da flexão das pa- de determinadas experiências literárias, como a do
donga/Ouvindo o ba- lavras. Os três métodos (trabalho, organização e siste- escritor Raymond Roussel – a quem coube pelo re-
tuque das ondas/Com-
passo de um coração de ma flexional) são cúmplices da triangulação crucial ao curso das homonímias aliar o artístico com a psicose
pássaro/No fundo do domínio do saber na modernidade, como o quer Fou- (FOUCAULT, 1979). Essas experiências, ver-se-ia,
cativeiro/É o semba do cault, isto é, ao primado das organizações revelado no funcionam na contramão da centralidade do homem,
mundo calunga/Baten-
do samba em meu peito/ valor das riquezas, nas estruturas vivas e na sintaxe. indicando que o que há, antes, é a linguagem. Pois:
Kawo Kabiecile Kawo/ No projeto foucaultiano de tornar visível a dis-
Okê arô okê/Quem me posição antropológica dos saberes modernos, estes (...) só existe linguagem; escrever é repetir palavras já di- 109
edson silva farias, enrique borralho, edvania Gomes da Silva

pariu foi o ventre de um


navio/Quem me ouviu tas, o já dito da linguagem; escrever é um jogo da linguagem ponto de vista da correlação arte, tempo e política, o
foi o vento no vazio/ com a linguagem. Neste sentido, dizer que a imaginação é mesmo Rancière (2021, p.14-16) se aplica à concei-
Do ventre escuro de um
tudo, diferentemente de uma perspectiva fenomenológica, tuação do que chama de “racionalidade da ficção”. A
porão/Vou baixar no
seu terreiro/Epa raio, por exemplo, que remeteria a imagem à consciência e ao partir da Poética aristotélica, o autor descreve uma
machado, trovão/Epa mundo, significa dizer que a linguagem é tudo, que a lin- lógica que preside o enquadramento de pessoas, coi-
justiça de guerreiro/Ê
guagem é autônoma: ela não tem nenhuma relação com sas e situações como partes de um mundo comum,
semba ê/Samba á/O
Batuque das ondas/ o mundo exterior e é de suas descrições impossíveis que logo, os acontecimentos estão mutuamente relacio-
Nas noites mais longas/ nasce um mundo de coisas jamais ditas, impossíveis, ab- nados nos planos da coexistência, sucessão e cau-
Me ensinou a cantar/Ê
surdas, inverossímeis. (MACHADO, 1979, p.79) salidade. À contramão, porém, do mesmo esquema
semba ê/Samba á/Dor
é o lugar mais fundo/É de Aristóteles, sublinha o filósofo, a instauração da
o umbigo do mundo/É Interpretando os temas da arte e da loucura sob “revolução estética”, em meados do século XIX, im-
o fundo do mar/Ê sem-
o prisma do tratamento dado ao mito de Dionísio pôs a ruptura na mesma racionalidade, afrontando o
ba ê/Samba á/No ba-
lanço das ondas/Okê pelo poeta alemão Hölderlin, para Foucault, a opor- duplo enquadramento temporal, o qual separa aque-

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aro/ Me ensinou a bater tunidade literária se traduz na modelagem própria les cujas vidas desfrutam de distância em relação ao
seu tambor/Ê semba ê/
do literário na modernidade, em que a obra e a não- tempo das coisas, podendo se dedicarem à reflexão
Samba/No escuro po-
rão eu vi o clarão/Do -obra estão próximas apenas no limite e este se im- sobre a ação e suas finalidades, ao se devotarem ao
giro do mundo/Que noi- põe como obstáculo a ser ultrapassado na radicalida- conhecimento e ao lazer, daqueles premidos pelo
te mais funda calunga/
de poética. Isto porque, em sua aparição literária, a desenrolar dos episódios, despossuídos que são dos
No porão de um navio
negreiro/Que viagem linguagem deixa a fresta pela qual o autor reconcei- meios para refletir sobre os atos e os fins que os mo-
mais longa candonga/ tua a história pelo teor trágico da temporalidade em vem. Ao absorver o teor da história da emancipação,
Ouvindo o batuque das
que o acesso à verdade apenas se possibilita no ultra- pondera Rancière, essa profunda alteração descartou
ondas/Compasso de um
coração de pássaro/No je do sentido pleno, ou seja, com o vazio – a abertura a dupla divisão entre os que tem e não tem tempo,
fundo do cativeiro/É o no absoluto da falta. em favor do deslocamento da ignorância ao saber, da
semba do mundo/ca-
Tal abertura consiste no dínamo das reviravol- desigualdade à igualdade. Ao mesmo tempo, conclui,
lunga/Batendo samba
em meu peito/Kawo Ka- tas artísticas no andamento da modernidade. Por essa ficcionalidade revolucionária teria se desvenci-
biecile Kawo/Okê arô isto, quando reflete sobre os “tempos modernos”, do lhado do desígnio do teleologismo progressista, com 110
edson silva farias, enrique borralho, edvania Gomes da Silva

okê/Quem me pariu foi


o ventre de um navio/ suas etapas fixas, porque comporia com a concepção rainha daomana não se limitava apenas a confrontar
Quem me ouviu foi o de relações não prefixadas, viabilizando progressões as arbitrariedades de gênero exercida por homens
vento no vazio/Do ven-
insuspeitamente inéditas. Reconhecendo a inteligên- brancos, mas também negros como Adandozan,
tre escuro de um porão/
ou baixar no seu terrei- cia como presente em todos humanos, não somente tampouco se fecha nas fronteiras da dominação racial.
ro/Epa raio, machado, nos vitoriosos escolhidos, a literatura paulatinamente Ela ter-se-ia se solidarizado com homens e mulheres
trovão/Epa justiça de
se volta para o “tempo de todas essas vidas que lutam postos à sombra dos despotismos das mais diversas
guerreiro/Ê semba ê
Samba/É o céu que co- contra a ordem que as mantêm do lado ruim das par- ordens, dos/as quais foi parceira, também se aproxi-
briu nas noites de frio tilhas das formas de vida” (RANCIÈRE, 2021, p.42). mando de pessoas indígenas. O arrebatamento pelo
minha solidão/Ê sem-
Voltamos, assim, aos caminhos que conduzem folguedo do bumba-meu-boi, vimos, em grande me-
ba ê Samba/É oceano
sem fim, sem amor, sem às afinidades estabelecidas entre Gleason e Agonti- dida, fora consequência de encontrar na encenação
irmão/É kaô quero ser mé, no modo como a primeira mergulha na duração do auto, ainda que cifradas, denúncias e táticas de re-
seu tambor/Ê semba
vivencial da última, concebendo uma memória pró- sistência dos oprimidos diante dos prepotentes atos
ê Samba/Eu faço a lua
brilhar o esplendor e pria das relações cujas vicissitudes geraram um des- autocráticos (CERTEAU, 1994).

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clarão/Luar de Luanda fecho desconcertante à história da progressão relati- Mostra-se notório, porém, que entre Gleason e
em meu coração/Um-
va às lutas movidas pela emancipação e à conquista Agontimé há amplo e variado interregno espaçotem-
bigo da cor/Abrigo da
dor/Primeira umbigada do respeito moral. Se a autora mergulha nos átomos, poral, o qual deixa seus condicionamentos diferen-
Massemba Yáyá/Yáyá a princípio dispersos, da personagem, igualando-a a ciais sobre as consequências premeditadas, também
Massemba é o samba
tantas outras vidas equalizadas pelo anonimato, tece nas vicissitudes dos gestos de uma e outra mulher,
que dá/Vou aprender a
ler/Pra ensinar meus ca- daí uma odisseia extensiva a todos/as sob o julgo da tornando-os reconhecíveis como agenciamentos.
maradas/Vou aprender opressão, mas dispostos ao enfrentamento das in- Sobretudo, molda a natureza desses mesmos agen-
a ler/Pra ensinar meus
justiças. As proposições de Bell Hooks (2019b) uma ciamentos. A apreensão de Agontimé, rainha negra
camaradas/’Prender a
ler/Pra ensinar meus vez mais se fazem pertinentes, agora ao evocar a sua escravizada no Brasil, pela escritora estadunidense,
camaradas/Vou apren- prerrogativa sobre o feminismo, isto porque, de acor- exaltando-lhe a perspicácia audaciosa se inscreve
der a ler/Pra ensinar
do com o romance, a luta de Agontimé poderia ser to- nas reacomodações internas à sociedade norte-ame-
meus camaradas/Vou
aprender a ler/Pra en- mada como a antecipação do que a intelectual estadu- ricana sacudida pelas lutas orientadas à conquista
sinar meus camaradas/ nidense denomina de “revolução feminista”. Afinal, a dos direitos civis, mas também em favor da instala- 111
edson silva farias, enrique borralho, edvania Gomes da Silva

Prender a ler/Pra ensi-


nar meus camaradas/Vou ção das políticas afirmativas protagonizadas por gru- em diante, com ênfase na luta pelo reconhecimento,
aprender a ler.” pos afroamericanos. Empreendimentos que poten- isto é, no respeito moral às diferenças culturais, em
36. Estado do Grão-Pa- cializaram os movimentos feministas, colocando em grande parte adveio da canalização das feministas
rá e Maranhão  foi uma xeque a postura essencialista da identificação do gê- negras respaldas nas memórias relacionadas à escra-
unidade administrativa
portuguesa na  América nero, no caso o universalismo da classificação “mu- vidão, ao trabalho estigmatizado e de baixa remune-
do Sul. Criado com a de- lher”. As críticas desconstrutivistas focavam a des- ração, além dos mutualismos, resultantes das vivên-
nominação de  Estado do consideração na silhueta dessa identidade de outros cias comunitárias (FRASER, 2022, p. 205-222). Este
Maranhão,  em  13 de ju-
nho  de  1621, por  Filipe marcadores como “raça”, sexo e classes sociais. Ope- foi o cenário em que adquiriu assonância as vozes
II de Portugal  (ou  Filipe racionalizando as reconstruções históricas de tais di- reclamando atenção às experiências diaspóricas nos
III da Espanha), ferenças, à medida mesma que as intersecionaliza, Estados Unidos, em particular, aquelas de vidas ra-
no  Norte  da  América
Portuguesa  (atual  Brasil), as tomadas de posição na cena política e intelectual cializadas e deixadas no esquecimento pelo racismo.
e renomeado  Estado radicalizaram as bandeiras democráticas embasadas A intercessão entre Gleason e Agontimé ressalta
do Maranhão e Grão- na normativa cosmopolita dos direitos humanos, a crucialidade das mediações artísticas no andamen-
-Pará  em 1654, e  Estado

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do Grão-Pará e Mara- pressionando em favor de estendê-las para alcançar to de processos afins de diferenciação sociossimbó-
nhão  em 1751, o qual foi e reconhecer, como sujeitos, frações humanas a prin- lica, seja naqueles semelhantes ao que redefiniu a
dividido em 1772. cípio não admitidas como vetores de transformação Casa das Mina como espaço de exceção patrimonial,
37. Segundo Barbosa de revolucionária das estruturas sociais. Algo assim se seja na celebração de Agontimé como personagem
Godóis, em A História do pôs à contramão da concepção de justiça social, cuja paradigmática da diáspora negroafricana e da cul-
Maranhão (2008, p, 76),
“A lenda do El-dorado que tônica, depositada pela economia política no tema da tura afrobrasileira. Por um lado, somos incitados
havia desviado os piratas redistribuição dos meios de produção e do produto a interrogar a concepção mesma de mediações. A
ingleses para o Orenoco coletivo, atendo-se à dimensão instrumental-cogni- considerar pelas ilações de Adorno (2000), faz con-
e exerceu influência nos
aventureiros que busca- tiva da sociedade capitalista, priorizou a determina- tracenar ante o problema da emancipação humana,
vam a América, domina- ção classista e, com ela, a figura dos trabalhadores mais tarde retomadas criativamente por Raymond
dos pela cobiça de fáceis como sujeito universal da história. O vigor empres- Williams (2011), nas suas reflexões sobre a hegemo-
e consideráveis riquezas,
teve em Gabriel Soares tado à vigência das políticas de significado nas ondas nia cultural, as medições compreendem mais que a
um crédulo expedicioná- de movimentos sociais, emersos na década de 1960 mera interligação de aspectos. Para ambos, dizem 112
edson silva farias, enrique borralho, edvania Gomes da Silva

rio em procura do falado


reino do Grão-Paititi ou respeito ao problema da formação da subjetividade, questão cultural ter se imposto um objeto de disputa
Grão-Mocho. Foi ele o mas levando-se em conta os tantos, e contraditórios e detonador de conflitos.
chefe da primeira expe-
entre si, condicionantes com direta atuação na pro- O reposicionamento do status de representa-
dição portuguesa diri-
gida por terra ao norte dução e na reprodução da vida humana, o que requer tividade galgado por Agontimé é indissociável das
do Brasil”. O Maranhão atentar de maneira dialética para as relações trava- tramas narrativas e institucionais que a subjetivam
era, então, Norte, pois a
das no plano societário e deste com a natureza. Deste como representação da epopeia negroafricana que
invenção do Nordeste só
se deu no século XX. ponto de vista, o exame de mediações como aquela deixou por saldo as culturas diaspóricas nas Améri-
38. Padre Antonio Viei- exercida por Gleason, na curadoria literária das lem- cas. A transformação das memórias da rainha dao-
ra viveu no Maranhão branças de Agontimé, impõe reter o predicado que meana e da Casas das Mina em patrimônio cultural,
entre 1652 e 1661. Se-
gundo o seu Sermão as adjetiva, a ideia de cultura. sintetiza sinuosos processos pelos quais foram en-
da Quinta Dominga da Com emprego bastante generalizado no mundo quadrados como bens culturais, alguns dos ingre-
Quaresma: Amanhece o contemporâneo, a um só tempo hábito mental e sím- dientes dos modos de vida peculiares às estruturas
sol muito claro, prome-
tendo um formoso dia, bolo de comunicação, o termo cultura é controverso sociais pluriétnicas e multiculturais africanas, não

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e dentro em uma hora na medida em que há muitas e variadas semânticas definidas pela intervenção de um Estado centrali-
tolda o céu de nuvens, que o descrevem. Hoje, de um lado, ele se intersec- zado detentor do monopólio da imputação sentido
e começa chover como
no mais entranhado in- ciona com planos políticos, econômicos, morais, legítimo atuado na homogeneização constituinte do
verno.... Esta é a subs- expressivos, o que o faz contracenar com posicio- povo-nação. Ingredientes mesclados, reinventados,
tância do apólogo, nem namentos ideológicos, condições de inscrição em es- transliterados pelo trânsito mercantil escravagista
mal-formado, nem mal
repartido, porque, ainda truturas coletivas (de classe, etnicorraciais, de gêne- e pelas reterritorializações, seja nos domínios colo-
que a aplicação dos ví- ro, de orientação sexual, de referência socioespacial niais europeus nas Américas, seja nas sociedades na-
cios totalmente não seja e outras), além de anteparos morais e epistêmicos, cionais surgidas nesse mesmo continente. O enqua-
verdadeira, tem, con-
tudo, a semelhança de até de enquadramentos cosmológicos os mais diver- dramento que os significa como “coisas da cultura”,
verdade, que basta para sos. De outro, a multiplicação das suas semânticas, sem dúvida, é o signo por excelência desse denso,
dar sal à sátira. E, su- sobretudo por estarem muitas das vezes essas ver- tenso e longo percurso de recomposições, guardando
posto que à Espanha lhe
coube a cabeça, cuido sões em contradição entre si, sinaliza tanto as lutas suas possibilidades e restrições contracenando com
eu que a parte dela que sociais das quais participa, quanto o fato mesmo da dores, alegrias, derrotas e conquistas. 113
edson silva farias, enrique borralho, edvania Gomes da Silva

nos toca ao nosso Portu-


gal é a língua, ao menos Referências
assim o entendem as na-
ções estrangeiras que de
ADORNO, Theodor Wiesegrund. Teoria estética. Lisboa, Edições 70, 2000.
mais perto nos tratam.
Os vícios da língua são
tantos, que fez Drexélio ALVARENGA, Oneyda. Tambor de mina e tambor de crioula. São Paulo: Biblioteca Pública Municipal, 1948.
um abecedário inteiro e
muito copioso deles. E
se as letras deste abe- ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. A Ideologia da decadência: leitura Antropológica a uma história da
cedário se repartissem Agricultura no Maranhão. São Luís: FIPES, 1983.
pelos estados de Portu-
gal, que letra tocaria ao
nosso Maranhão? Não ARAUJO, Ana Lúcia. Aquele que “salva” a mãe o filho. Revista Tempo. 2010, pp. 43-66. Dossiê: Patrimônio
há dúvida, que o M. M e memória da escravidão atlântica – História e Política • Tempo 15 (29), Dez, 2010.
– Maranhão, M – mur-
murar, M – motejar, M
– maldizer, M – malsi- APPIAH, Kwame Anthony. As ilusões da raça. IN: Na Casa de Meu Pai. A África na Filosofia da Cultu-

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nar, M – mexericar, e, ra. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
sobretudo, M – mentir:
mentir com as palavras,
mentir com as obras, ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo: antissemitismo, imperialismo, totalitarismo. 1. ed. São Pau-
mentir com os pensa- lo: Editora Companhia das Letras, 2016.
mentos, que de todos e
por todos os modos aqui
se mente” (itálicos nos- ALMEIDA BARROS, Antonio Evaldo. O Panteão encantado. Culturas e Heranças Étnicas na For-
sos). mação de Identidade Maranhense (1937-65). Dissertação apresentada ao Programa Multidisciplinar
39. De acordo com Lan- de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos, Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO), Faculdade de
ger (1997, p 68): “Segun- Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (FFCH-UFBA), 2007.
do os planos de Pombal,
após a superação desses
desafios, a revitalização ALMEIDA BARROS, Antonio Evaldo. Ao ritmo de Tambores e Maracás: tambor de mina e pajelança no Ma-
da economia se daria ranhão de meados do século XX. Projeto História, São Paulo, v. 65, pp. 130-168, Mai.-Ago., 2019.
mediante a reestrutura-
114
edson silva farias, enrique borralho, edvania Gomes da Silva

ção do mercantilismo e
de um conjunto de refor- BARRETTO, Maria Amália Pereira. Os voduns do Maranhão. São Luís: Fundação Cultural do Maranhão, 1977.
mas no âmbito social e
cultural. Em 1759, todos
BENVENISTE, Émile. O aparelho formal da enunciação. In: Problemas de Lingüística Geral II. São Pau-
os jesuítas, bem como os
que atuavam como mis- lo: Pontes, 1989 [1970]. cap. 5. p. 81-92.
sionários nas aldeias do
Grão -Pará e Maranhão,
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
foram expulsos dos do-
mínios portugueses. A
partir de então, o efeito BORRALHO, Henrique. Itapecuru: o rio da vida maranhense e sua múltipla poética história e possível tragé-
do vínculo entre a po-
dia. Revista Pergaminho, Volume 1, número 1 2021a, pp 25-39.
lítica econômica mer-
cantilista e a ideologia
ilustrada tomaria um BORRALHO, Henrique. Os silêncios da história. Rev. Interd. em Cult. e Soc. (RICS), São Luís, v. 7, n. 1,
caráter irreversível nos
jan./jun. 2021, p. 56-79.
aldeamentos missionei-
ros no Brasil colonial”.

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40. Segundo Borralho BORRALHO, Henrique. Uma Athenas Equinocial: A literatura e a fundação de um Maranhão no império
(2021a, p. 26) “Itapecu- brasileiro. São Luis: Prefeitura de São Luís, 2010.
ru é de origem indígena,
antigo lar dos Tapuias,
enquanto derivação lin- BORRALHO, Henrique. Terra e Céu de Nostalgia: tradição e identidade em São Luís do Maranhão. São
guística”. (BORRALHO, Luís, FAPEMA; Café e Lápis, 2011.
2021a, p. 30-31): “Por
que o Rio Itapecuru é o
rio da vida maranhen- BOURDIEU, Pierre. O senso prático. Petrópolis: Vozes, 2009.
se? Quem responde é
Raimundo Lopes, quan-
do afirma (1970, p. 74): CALDEIRA, Arlindo Manuel (2013). Escravos e Traficantes no Império Português: O comércio negrei-
“no Maranhão, o povoa- ro português no Atlântico durante os séculos XV a XIX. Lisboa: A Esfera dos Livros. p. 269-270.
mento partiu sobretudo
do litoral, mas particu-
larmente do Golfo, da CASTRO, Yeda Pessoa de. A língua mina-jeje no Brasil: um falar africano em Ouro Preto do século XVIII.
ilha, da capital. Os rios Belo Horizonte: Sistema Estadual de Planejamento, 2002. 115
edson silva farias, enrique borralho, edvania Gomes da Silva

foram as grandes vias do


povoamento, os distri- CAMPBELL, Joseph. A Epopeia do pensamento ocidental: para compreender as idéias que moldaram
buidores e os concentra- nossa visão de mundo. Rio de Janeiro: Bertrand, 2000.
dores dos movimentos
demográficos, e foram
na razão de sua acessi- CANDIDO, Antônio. O direito à literatura. In: CANDIDO, Antônio. Vários escritos. São Paulo: Duas cidades, 1988.
bilidade como artérias
navegáveis. O povoa-
CASTRO, Yeda Pessoa de. A língua mina-jeje no Brasil: um falar africano em Ouro Preto no século XVIII.
mento deteve-se junto à
grande mata, na faixa de Belo Horizonte: Secretaria de Cultura de Minas Gerais, 2002.
transição onde surgiram
as zonas agrícolas. Só no
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano 1: Artes do Fazer. Tradução de Ephraim Ferreira Alves –
Itapecuru e no Mearim é
que a corrente humana 6ª. ed. Petrópolis: Vozes, 1994.
partida do Golfo, lenta
e fraca, transpôs o obs-
COLLINS, Patrícia H.  Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empode-
táculo, já encontrando,
em Pastos Bons, a cor- ramento. São Paulo: Boitempo, 2019.

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rente baiano-piauiense,
também enfraquecida, e
COMPAGNON, Antonie. O demônio da teoria. Literatura e senso comum. Belo Horizonte: UFMG, 2006.
no Tocantins e também
a paraense.
41. Na prisão, Francisco DE CASTRO CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros. A Casa das Minas de São Luís do Maranhão e a saga de
Félix de Sousa, vimos, Nã Agontimé. Rio de Janeiro, Revista de Sociologia e Antropologia, v.09.02: 387 – 429, mai. ago, 2019.
preso por cobrar Adan-
dozan, conhece Agonti-
mé e trama destituir seu DE GODOIS, Barbosa. História do Maranhão: para uso da Escola Normal. São Luís, Editora AML, UEMA.
algoz do trono, conspi- 2ª Edição, acrescida de 23 ilustrações do álbum Maranhão Ilustrado, 1899.
rando para que Ghézo
se tornasse rei, como de
ocorreu, por isso é reve- DO LAGO, Antônio Bernardino Pereira. Estatística histórico-geográfica da província do Maranhão.
renciado no atual Benin São Paulo, Editora Siciliano, 2001.
– país para onde parte
dos retornados africa-
nos partiram, fundan- DERRIDA, Jacques. Gramatologia. SP: Perspectiva, 1999. 116
edson silva farias, enrique borralho, edvania Gomes da Silva

do um bairro conhecido
como de descendentes DERRIDA, Jacques. A escrita e a diferença. SP: Perspectiva, 2002.
de africanos que mora-
vam no Brasil e que tive-
DUX, Gunter. La teoria histórico-genética de la cultura. Bogotá: Aurora, 2012.
ram filhos no Brasil.

42. Segundo Carlos Eu- EDUARDO, Octávio da Costa. The negro in Northern Brazil: a study in acculturation. Seattle: University
genio Marcondes de of Washington Press, 1966.
Moura, na apresentação
do romance, afirma: “ao
assumir o trono o jovem ELIAS, Norbert. O processo civilizador, vol. II. Rio de Janeiro: Zahar, 1994, 2 vols.
Gankpé, daí em diante
passa a ser conhecido
como Guezo, cujo rei- FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
nado foi longo (1818-
1858)”. Vale lembrar, FARIA, Regina Helena Martins de. Trabalho escravo e trabalho livre na crise da agroexportação escra-
nesse sentido, que o
reinado de Ghézo (1818- vista no Maranhão. São Luís: UFMA. Monografia de especialização em História econômica regional, 1998.

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1858) fora marcado pela
busca de sua mãe por FARIAS, Edson. O lugar e a mobilidade: a Pequena África carioca no anverso da circulação turística. Políti-
anos a fio por todo con-
tinente americano, na cas Culturais em Revista, Salvador, v. 13, n. 2, p. 57-107, jul./dez. 2020.
tentativa de “restaura-
ção” do reino de Dao- FARIAS, Edson. Quando inovar é apelar à tradição: a condição baiana frente à modernização turística. Ca-
mé. A volta de Agontimé
seria um símbolo desse derno CRH, v. 21, p. 571-594, 2008.
resgate. O desfecho da
busca possivelmente FERRETI, Mundicarmo. Pureza nagô e nações africanas no tambor de minas no Maranhão. Ciencias So-
teria ocorrido ao tê-la
encontrado em São Luís, ciales y Religión/ Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, año 3, n. 3, p. 75-94, oct. 2001.
porém há controvérsias
a respeito e a historio- FERRETTI, Mundicarmo. Desceu na Guma: o caboclo do tambor de mina no processo de mudança de um
grafia não confirma o
episódio. terreiro de São Luís - a Casa Fanti-Ashanti. São Luís: UFMA, 2002.
43. Não é objeto des- 117
edson silva farias, enrique borralho, edvania Gomes da Silva

te artigo problematizar
o discurso da suposta FERRETI, Sergio Figueiredo. Repensando o sincretismo. A casa das minas de São Luís do Maranhão.
decadência econômica, Edusp/Fapema, 1995.
narrativa propalada pelo
setor o agroexportador.
Sobre a discussão em FERRETI, Sergio Figueiredo. Notas sobre querebentan de zomadonu. Etnografia da casa das minas. Co-
torno, ver, dentre outros leção Ciências Sociais. Serie Antropologia 1. São Luís do Maranhão: Universidade Federal do Maranhão, 1985.
autores: FARIA (1998),
BORRALHO (2010,
2011) e, principalmente, FERRETI, Sergio Figueiredo. Estórias da casa grande das minas jêje. São Luís: IPHAN, 2008, p 15-24.
ALMEIDA (1983).
44. Quando se refere FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
à “epidermalização”,
Franz Fanon (2008) está
atento aos modos como FOUCAULT, Michel. Michel Foucault: resumo dos cursos do Collège de France (1970-1982). RJ: Jorge
as “máscaras brancas” Zahar Editor, 1997.
se se inscrevem nos cor-
pos negros, racializados,

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na composição de uma FOUCAULT, Michel. Raymond Roussel. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998.
economia psíquica mar-
cada pelo estigma e pela FANNON, Frantz. Peles negras, máscaras brancas. Rio de Janeiro: Pallas, 2008.
subalternidade. Fazen-
do dialogar Fanon e La-
clau, Stuart Hall (2016, FRASER, Nancy. Justiça interrompida: reflexões críticas sobre a condição “pós-socialista”. São Paulo:
p.10) assevera que as Boitempo, 2022.
equivalências estabele-
cidas entre os códigos
socioculturais e os tra- GODELIER, Maurício. Economía, fetichismo y religión en las sociedades primitivas. Madrid: Siglo XXI, 1974.
ços biológicos, “apesar
dos efeitos de ‘clausura’
de seus mecanismos”, GOFFMAN, Erving (1995). A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis (RJ)): Vozes, 1995.
estão se deslocando de
modo permanente, mas HABERMAS, Jürgen (1989). Teoria de la ación comunicativa, Vol. I. Madrid: Taurus.
sempre articuladas às
118
edson silva farias, enrique borralho, edvania Gomes da Silva

hierarquias raciais e
aos discursos do racis- HOOKS, Bell. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. São Paulo: Elefante, 2021.
mo que lhes servem de
matriz gerativa. Segun-
HOOKS, Bell. Olhares negros: raça e representação. São Paulo: Elefante, 2019.
do ele, estão “(...) na
realidade, em constan-
te deslocamento histó- HOOKS, Bell. Teoria feminista: da margem ao centro. São Paulo: Elefante, 2019b.
rico: suas ‘equivalên-
cias’ são reorganizadas
discursivamente, na HALL, Gwendolyn Midlo. Escravidão e etnias africanas nas Américas: restaurando os elos. Petrópolis:
medida em que são Vozes, 2017.
atreladas a diferentes
configurações de poder.”
HALL, Stuart. Diásporas, ou a lógica da tradução cultural. Revista da USP, vol.10 - nº 3 set/dez. 2016, p. 47-58.

LANGER, Protásio Paulo. A aldeia Nossa Senhora dos Anjos. A resistência do guarani-missioneiro ao
processo de dominação do sistema luso (1762-1798). Porto Alegre, Edições EST/Correio Riograndense, 1997.

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