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NAS ORGANIZAÇÕES
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CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte.
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
ISBN 978-85-352-5717-5
CDD: 658.406
12-0129 CDU: 005.332.3
Para Maria Helena Bresser,
companheira
e figura indispensável.
Nota do autor
E ste livro foi editado pela primeira vez em 1998, sob o impacto da
dissolução da União Soviética, da introdução acelerada da internet
e do primeiro governo Fernando Henrique Cardoso no Brasil, expoente
da social-democracia que jugulou a hiperinflação com o Plano Real e
modernizou o mastodôntico Estado brasileiro.
Como a obra enuncia conceitos e trata de realidades cuja validade não
perdeu atualidade, é lícito revisitá-la mais uma vez, como já o foi na 2a
edição de 2005. Ocorre que ela incluía então um capítulo que estudava os
“sistemas de regulação social” e propunha uma tipologia das economias à
luz da sociologia econômica. A 2a edição também incorporava um capítulo
intitulado “As formas de gestão”, voltado especificamente para a análise
das articulações possíveis entre relações de poder e de saber no seio das
organizações. Os dois capítulos encontram-se agora, na atual 3a edição, no
Web site da Editora.
Ademais, dois exercícios bastante úteis permanecem acessíveis no site:
um convida o leitor a conhecer sua própria ideologia política e econômica
e denomina-se “Qual é seu perfil ideológico?”; e o outro dá ao leitor a
oportunidade de descobrir a forma de gestão predominante na empresa
em que trabalha e tem por título “Conheça sua organização”.
O livro traz conhecimentos sociológicos e históricos indispensáveis ao
claro entendimento do mundo contemporâneo e, por isso, preserva seu
interesse intelectual.
ANTONIO ANGARITA
Professor titular da EAESP/
Fundação Getulio Vargas — São Paulo, 1998
Poder, Cultura e Ética nas Organizações, 3a ed.
• Anexos do livro
Introdução
sarial;
Louvam e abominam, num contraponto de amor e ódio, o caráter
iconoclasta da reengenharia.2
da informação?
O caráter volátil do capital especulativo, à procura de lucros fáceis
res;
A inclusão de ações da empresa na remuneração dos funcionários
ou universalista;
Facilita o acesso da população aos benefícios gerados pelas inovações
tecnológicas;
Distingue as organizações estatais das organizações públicas (vincu-
Mundo;
Abala o modelo conhecido de Estado do Bem-Estar Social do Pri-
meiro Mundo.15
Notas
1. Como sói acontecer com datas cujos números redondos parecem carregar prenúncios indecifráveis,
o fim do século ensejou uma crença em arremates. Fala-se em fim: dos empregos, da democracia,
dos militantes, da Ordem Militar, do comunismo, do capitalismo, da educação, do racismo, da
ciência, da evolução, da natureza, do mundo, do futuro, do Estado-Nação, das certezas. Fala-se
também em morte: da literatura, do teatro, da música, da pintura, da filosofia, da política, do
homem econômico, do dinheiro e da economia. Aposta-se, de algum modo, em profecias cata-
clísmicas como se estivéssemos à beira do Juízo Final, embora se aponte, de quando em vez, para
novos e indefiníveis começos.
2. O redesenho organizacional proposto com base em processos geradores de valor foi confundido
com demissões massivas.
3. O conceito de sociedade industrial tem base técnica, pois repousa nos efeitos da Revolução In-
dustrial sobre a organização da produção. Abrange, portanto, vários sistemas socioeconômicos
(modos de produção), como o capitalismo ou o socialismo real, que é um sistema estatista e
corporativista.
4. O que conta numa sociedade de serviços não é a força muscular ou a energia física, mas a infor-
mação e a qualificação dos profissionais que geram riqueza.
5. Um lance dado por investidores norte-americanos na bolsa eletrônica Nasdaq dá a volta do mun-
do em 2,5 segundos, enquanto a notícia da morte do presidente Abraham Lincoln, em 1865, só
chegou a Londres 12 dias depois do assassinato, pelos jornais norte-americanos transportados
pelo primeiro navio que deixou o porto de Baltimore em direção à Inglaterra (Ethevaldo Siqueira.
“A velocidade das notícias”. O Estado de S.Paulo, 8 de novembro de 2011).
6. As ideias de Marx de que o proletariado, ou o operariado manual, por ser a classe majoritária,
estaria destinado a converter-se em “sujeito universal” e teria por missão libertar a humanidade
10 Poder, Cultura e Ética nas Organizações
das peias do trabalho assalariado e da exploração do homem pelo homem, estão perdendo base
empírica, uma vez que os operários de hoje são numericamente minoritários.
7. Trabalho informal, temporário, autônomo complementar ou eventual, e emprego em tempo
parcial.
8. A atual revolução econômica é também capitalista, ainda que seu caráter seja “associativista”,
o que vem temperar o privatismo egoísta do antigo capitalismo excludente com um privatismo
socialmente responsável.
9. Segundo a expressão de Bernard-Henri Lévy. No Estado-espetáculo, a forma prevalece sobre o con-
teúdo, a imagem sobre a palavra, a aparência sobre a ideia, a arte de se exibir sobre a arte de ser.
10. A eletrônica substituiu peças mecânicas movimentadas eletricamente por elétrons que se movimen-
tam a velocidades próximas à da luz, em válvulas, transistores ou circuitos integrados (chips).
11. Nos equipamentos digitais, as quantidades são representadas por números (dígitos), variam de
forma descontínua e realizam operações lógicas com dados discretos, diferentemente das máquinas
analógicas, cujos dispositivos físicos medem quantidades contínuas (régua que mede comprimento
em milímetros, relógio de ponteiros que indica minutos). A base técnica que permitiu a explosão
da “era da informação” é, sem dúvida, a eletrônica. A Revolução Digital ganhou evidência no
último quartel do século XX, graças à disseminação das novas tecnologias e de muitos de seus
aspectos: informática, Internet, cibernética, telecomunicações, inteligência artificial, engenharia
genética, ciberespaço, química fina, robótica, fábrica automática flexível, realidade virtual,
multimídia, materiais sintéticos em manufatura molecular, supercondutores, tecnologia do laser,
nanotecnologia.
12. Os Estados de Bem-Estar Social, ou welfare states, são apenas, em parte, exemplos de tal con-
figuração. Não só porque seu caráter assistencialista está sendo reformulado, mas porque, em
função da dinâmica econômica competitiva e das pressões políticas da sociedade civil, o setor
privado torna-se cada vez mais parceiro na formulação e na implantação de programas sociais,
valorizando assim a responsabilidade social do capital.
13. É clássica a remissão à fabricação de alfinetes feita por Adam Smith em A Riqueza das Nações:
enquanto um trabalhador fazia sozinho 20 alfinetes por dia, a introdução do parcelamento das
tarefas — 18 tarefas conferidas singularmente a operários especialmente treinados — elevou a
produção diária a 4.800 alfinetes por cabeça. A produção cresceu 240 vezes!
14. Etimologicamente, informação é o processo que organiza a ação. Os dados, ao provocarem al-
guma intervenção por parte dos receptores, convertem-se em informação. Para os economistas,
informação é redução ou remoção da incerteza, à medida que tornam mais seguras as decisões
públicas ou privadas. Para os administradores, a informação é um insumo do processo de tomada
de decisão, além de conferir às ações que dele se originam uma avaliação consciente. Em ambos
os casos, a informação constitui um recurso que agrega valor a processos e a produtos.
15. Num contexto de democracia representativa, o Estado de Bem-Estar Social associa políticas
sociais universalistas e políticas econômicas voltadas para o pleno emprego com a distribuição
da renda.
1
As revoluções tecnológicas
A multiplicidade de leituras
A Terceira Onda
Como um dos representantes da chamada corrente de autores pós-
industrialistas, é preciso creditar a Alvin Toffler a genial intuição de uma
Terceira Onda quando, ainda na década de 1960, boa parte dos pesquisa-
dores acadêmicos mal concebia o que acabou sendo denominado “Terceira
Revolução Industrial”. Toffler se distingue ao afirmar que a era da chaminé
(ou da máquina) foi superada. Não haveria mais razões para falar de civi-
lização industrial, mas de uma economia supersimbólica, que se baseia nos
computadores, na troca de dados, de informações e de conhecimento. Toffler
confere, assim, um mesmo estatuto teórico a três “ondas”:
e movem essa mesma história. Ora, há excelentes razões para crer que,
dissociadas das relações econômicas, as invenções técnicas não frutificam
ou não encontram aplicação.
De fato, alguns casos clássicos do século I merecem lembrança. O moinho
de água não teve uso geral na Roma antiga, nem a máquina de ceifar montada
sobre rodas foi adotada em larga escala. Por quê? Por causa dos interesses
em jogo nas relações escravistas: enquanto o suprimento da força de trabalho
escrava permaneceu abundante e viável, a necessidade de investimentos em
equipamentos, que viessem a poupar mão de obra, foi restringida.
De forma similar, as máquinas a vapor não foram adotadas na pro-
dução, ainda que tenham sido concebidas por Heron de Alexandria, no
século I a.C., por Leonardo da Vinci durante a Renascença e por vários
outros inventores nos primórdios da Idade Moderna. Quais as razões? As
restrições impostas pelas relações escravistas na Antiguidade e, nos períodos
posteriores, pelas relações feudais e latifundiárias. Aliás, mesmo quando al-
gumas dessas máquinas foram montadas, elas acabaram nas cozinhas régias
para girar espetos, ou foram parar nos palcos e nos templos para operar
“milagres teatrais”, perfazendo os efeitos especiais da época. Em vista da
abundância de força de trabalho, do uso extensivo da força animal e da
larga habilidade técnica dos trabalhadores, o maquinário tinha utilidade
absolutamente marginal. Então, para que se valer de fator substituto?
Abordaremos mais adiante, e de forma pormenorizada, a terceira
revolução tecnológica que Toffler tanto apregoou.
A revolução da qualidade
Outras interpretações, ao lado da de Toffler, pretendem dar conta das
transformações por que passa o mundo contemporâneo. Cada uma delas
destaca alguma faceta decisiva. É o caso da revolução da qualidade, que
projetou o Japão como um exemplo mundial a partir da década de 1980.
O país, aliás, foi responsável por um importante ponto de inflexão na
concepção dos processos produtivos. Trata-se da ruptura com o fordismo
— linha de montagem e produção em massa de produtos padronizados
— e sua substituição pelo toyotismo. Esse novo padrão abarca automa-
ção, informatização, robôs na produção e alta qualificação técnica dos
trabalhadores. Implica também a responsabilização da equipe executante
pelo controle de qualidade e um tipo de gestão que integra produção,
administração e engenharia de projetos.
1. As revoluções tecnológicas 13
qualidade total;
Fazem com que a cúpula se engaje na implantação do processo de
Kaisen;
Institucionalizam as opiniões e as sugestões vindas do chão da fábrica
A revolução na gestão
Outra leitura, de origem europeia, diz respeito a uma revolução na
gestão ou nas relações de trabalho. Trata-se da revolução organizacional
promovida pela gestão participativa à moda sueca (grupos semiautônomos)
ou à moda alemã (sistema de cogestão). O essencial dessa ruptura com o
taylorismo nos remete: à democracia industrial, que projeta a colaboração
entre patronato e sindicatos; e à democracia no local de trabalho, que leva
gestores e trabalhadores a partilhar certa autoridade e responsabilidades
técnicas.5
Duas vertentes são constitutivas da gestão participativa: a vertente po-
lítica da participação nas decisões e a vertente econômica da participação
nos lucros ou nos resultados (mais difundida).
A revolução do marketing
Outra leitura relevante remete à revolução do marketing. Trata-se do
forte choque sofrido pelas empresas que cresceram como “umbigos do
mundo”, sob a égide de uma política de reservas de mercado; passaram a
ser obrigadas a focalizar os clientes e reorientar-se por inteiro para eles.
Anteriormente, as empresas:
cliente;
A “engenharia da confiabilidade” para garantir o uso adequado dos
A Revolução Digital
Um só momento de reflexão sobre essas várias “revoluções” em anda-
mento nos leva a constatar que elas não são excludentes. Bem ao contrário
complementam-se. Tanto é que elas podem desembocar em outra leitura,
de caráter mais inclusivo, e cujo conceito é o de Revolução Digital. Nessa
esteira, mais uma vez, é preciso evitar uma leitura tecnicista. Os cuidados
consistem em inscrever a revolução tecnológica na revolução econômica
que está em curso, subordinando o fator técnico às relações capitalistas
sociais (“associativistas”) que lhe dão substância e o precedem. Eis pro-
vavelmente uma das razões que mais impactou a União Soviética: suas
relações de propriedade corporativo-estatistas (base essencial de seu tota-
litarismo) não tinham condições de acolher nem de tolerar a liberalização
das relações de trabalho, fenômeno indispensável para levar à frente os
processos digitais de produção.
20 Poder, Cultura e Ética nas Organizações
A presente leitura:
Os azares do evolucionismo
Em geral, conceitos macro-históricos tendem ao determinismo linear
e acreditam que forças transcendentais impulsionam a história da huma-
nidade, como se existisse alguma lei natural do Progresso ou da Razão
Superior. Os ecos recentes do ideário evolucionista, que tanto marcou o
imaginário do século XIX, provêm da crença em “sucessões necessárias”
entre tipos de sociedade ou entre etapas do movimento histórico. Anun-
ciam a marcha ascendente da humanidade para um futuro melhor. Por
exemplo, é o caso de:
A Revolução Neolítica
Afastadas essas filosofias da história, de caráter linear e teleológico —
que supõem um destino predeterminado e certo fatalismo — e deixando
de lado o longo período paleolítico que é pré-histórico, a primeira grande
aceleração da história ocorreu no sudoeste da Ásia e nas regiões ao redor do
mar Mediterrâneo, entre 8.000 e 5.000 anos antes da era cristã. A Revolu-
ção Neolítica, ou nova idade da pedra, contrasta com o período paleolítico,
ou antiga idade da pedra, em que armas e utensílios resultavam da fratura
e da separação de lascas. O método utilizado passou a ser o polimento
das pedras e seu desgaste. Os agrupamentos primitivos deixaram de viver
exclusivamente da caça, da pesca e da coleta de alimentos e passaram a
viver da agricultura, da domesticação dos animais e do artesanato. Como
22 Poder, Cultura e Ética nas Organizações
A Revolução Industrial
A Revolução Industrial foi, acima de tudo, uma revolução capitalista.
Não foram as inovações técnicas que criaram o capitalismo, mas o capital
investido nas manufaturas da Idade Moderna que levou à introdução da
máquina-ferramenta, além de desenvolver o sistema fabril e aplicar força
motriz não animal à produção.
A Revolução Industrial, ou a grande indústria maquinofatureira,
não resultou da simples existência do capital comercial — este existiu
nos séculos precedentes ao século XVIII, em inúmeras sociedades cujos
intercâmbios distantes exigiam a existência de algum tipo de moeda. Ela
dependeu essencialmente do capital produtivo investido na manufatura e
só foi possível mediante a chamada “acumulação primitiva” que ocorreu
durante o período moderno e mercantilista, entre os séculos XVI e XVIII.
A aquisição e a concentração dessa importante riqueza decorreram de
vários processos: a espoliação das riquezas coloniais, o tráfico negreiro,
o confisco dos bens da Igreja Católica, a expropriação dos camponeses
independentes, a usurpação das terras comunais e a transformação da
propriedade partilhada feudal em propriedade patrimonial latifundiária.
De fato, a conversão do capital comercial em capital produtivo fez
com que a Revolução Industrial fosse filha dos interesses conjugados das
24 Poder, Cultura e Ética nas Organizações
elétrica;
A revolução nas comunicações com o telefone, o telégrafo sem fio
e o rádio;
A invenção da luz elétrica com a universalização da lâmpada de fila-
A Revolução Digital
O totalitarismo soviético e seu sistema de relações corporativo-esta-
tistas ruíram em boa parte por causa de sua rigidez burocrática e de sua
intolerância ideológica. Preso aos paradigmas do planejamento central e
do messianismo do partido único, não conseguiu responder às exigências
de flexibilidade, inovação contínua e competitividade que vincam o fim
do século XX. Não conseguiu dar o salto qualitativo em direção a uma
sociedade da informação, ainda que sua indústria bélica demonstrasse
certa capacidade para absorver avanços tecnológicos, ao contrário do resto
da indústria civil. O “socialismo real” morreu nos braços da Revolução
Industrial sem ser capaz de realizar a Revolução Digital: não conseguiu
converter a ciência e a tecnologia em novas fontes de produção de valor,
sufocado pelas restrições inerentes ao caráter policial do Estado. Não
concedeu aos trabalhadores coparticipação no comando do processo téc-
nico de produção e não logrou liberalizar as relações de produção, uma
vez que foi uma revolução de gestores. Não se empenhou em apagar a
antiga separação taylorista entre gestores e executantes e não partilhou os
frutos do sobreproduto social, embora fosse ideologicamente igualitário.
Generalizou tão somente a saúde básica e a educação fundamental, e sub-
sidiou a moradia popular e a alimentação. Afundou de vez quando foram
desperdiçados enormes recursos numa corrida armamentista suicida com
os Estados Unidos, nos apoios ou nas intervenções militares empreen-
didas (Coreia, Hungria, Tchecoslováquia, Vietnã, Angola, Afeganistão)
e nos privilégios exclusivos da nomenklatura partidária — efetiva classe
dominante e detentora corporativa dos meios de produção.
Em contraposição, as relações capitalistas sociais foram geradas por
décadas de lutas políticas e sindicais no seio do capitalismo excludente.
Embora mantivessem a propriedade privada, elas alargaram fortemente
a base social da apropriação dos excedentes, permitindo com que amplas
parcelas da população se beneficiassem de uma maior qualidade de vida.
As ações militantes da sociedade civil forçaram as empresas a efetuar
pesados investimentos para preservar o meio ambiente e para garantir
a qualidade de seus produtos e serviços.16 A necessidade de contar com
profissionais qualificados, que pudessem processar enormes quantidades
de bens e serviços personalizados e que soubessem operar equipamentos
sofisticados, demandou intensa capacitação prévia de quem produz. Muitos
trabalhadores obtiveram assim corresponsabilidade no processo técnico
28 Poder, Cultura e Ética nas Organizações
de produtos e de serviços;
A cidadania organizacional prevalece assentada em direitos e deveres,
Outro exemplo diz respeito à televisão, que deixou de ser tirânica com
seu punhado de redes nacionais de sinal aberto impondo a programação.
Embarcou num processo de interatividade, cujo espectro mal se esboçou,
graças ao canal por assinatura, cujo sinal é diretamente captado de um
satélite por uma pequena antena parabólica. Suas vantagens são patentes
em relação à televisão a cabo ou à televisão com sinais codificados em
microondas. Pois, enquanto esses dois últimos sistemas restringem o aces-
so às residências localizadas em bairros “cabeados” ou às que recebem
retransmissão local, a antena parabólica capta o sinal em qualquer ponto
do território e com qualidade digital. De modo que centenas de canais de
imagem e de áudio têm sua difusão assegurada, e um serviço de pagamento
(pay-per-view) permite aos assinantes selecionar eventos esportivos ou
culturais de transmissão fechada, ou filmes inéditos que serão transmiti-
dos nos mais diversos horários do dia ou da noite. Com isso, o acesso à
informação e ao entretenimento torna-se uma vertiginosa escolha.
É importante destacar ainda o papel da robotização em todas as ativi-
dades produtivas e de serviços, pois a utilização de robôs não se resume
apenas a funções que envolvam riscos, exijam precisão, sejam repetitivas
ou exercidas em ambientes insalubres. Em virtude de sua rapidez e fle-
xibilidade, os robôs ultrapassam o âmbito da indústria automotiva, da
produção de bebidas, alimentos, componentes, remédios, cosméticos etc.
para avançar no terreno do manuseio de cargas, no acondicionamento de
hambúrgueres e na colocação de garrafas e latas em embalagens. Seu uso
tende a generalizar-se, desde as indústrias em grande escala até a produção
de poucas unidades de aviões e navios. Isso faz com que a presença dos
robôs se torne indispensável na paisagem de uma economia globalizada.
Resta dizer que, no capitalismo excludente da Revolução Industrial,
algumas tendências sobressaem:
quenas;
A universalização das imposições autoritárias na frente interna das
Notas
1. A ciência da informação nasceu na década de 1960, e o entendimento da informação como conceito
unificador, subjacente ao funcionamento dos sistemas organizados, ganhou corpo na década de
1. As revoluções tecnológicas 39
1970 — momento preciso da história da cultura em que a produção científica e tecnológica foi
tida como fator de produção e fonte de riqueza. Clara coincidência com a mudança que se operava
na base técnica dos processos produtivos, passando da eletromecânica para a eletrônica.
2. Toffler, Alvin. Powerschift: As Mudanças do Poder. Rio de Janeiro: Editora Record, s/d. E, do
mesmo autor: A Terceira Onda (da mesma editora), além da obra seminal: O Choque do Futuro.
Rio de Janeiro: Editora Artenova, 1973.
3. Tais como talheres, copos e pratos de plástico, vestidos ou roupas íntimas feitas em papel, reci-
pientes sem retorno, móveis e eletrodomésticos com tempo de uso deliberadamente curto.
4. Hoje em dia, a reciclagem é uma indústria. Recicla-se de tudo: papéis, plásticos, metais, vidro,
madeira, asfalto e até concreto.
5. Esta discussão encontra-se mais desenvolvida no Anexo III, disponível no Web site da Editora,
sob o título de “As formas de gestão”.
6. O próprio autor, em sua tese de doutorado (Srour, Robert Henry. Modos de Produção: Elemen-
tos da Problemática. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978, pp. 264-265), escrita em 1976-77,
caracterizou a base técnica eletrônica como “revolução cibernética”. Mas falhou ao considerar
que essa revolução desdobraria a Revolução Industrial, sem perceber que as relações de trabalho
seriam redesenhadas no seio das próprias relações capitalistas de propriedade.
7. A natureza dessa profunda transformação nos remete à possibilidade da distribuição universal
da informação e, portanto, à questão da posse democrática da informação que faculta maior
participação decisória e potencializa a produtividade dos agentes sociais.
8. Há vários tipos de polivalência. Os mais simples, de caráter multifuncional, envolvem tarefas
parceladas e máquinas semelhantes, seguindo a lógica de “vários homens/várias tarefas/várias má-
quinas”: de forma vertical, eles integram tarefas indiretas de manutenção preventiva, controle de
qualidade e supervisão às atividades produtivas, além de realizar a rotação por diferentes postos de
trabalho. O mais elaborado tipo de polivalência tem caráter multiqualificante: envolve atividades
complexas e máquinas diferentes; opera também a rotação por diferentes postos de trabalho,
com a importante diferença de levar à formação de grupos semiautônomos que fabricam um
produto completo ou uma parte significativa dele. Nesses grupos, o repertório de conhecimentos
dos trabalhadores é ampliado e a supervisão de processos produtivos altamente automatizados
e complexos é assumida por eles. Conforme Salerno, Mário S. Flexibilidade, organização e tra-
balho operatório: elementos para análise da produção na indústria. Tese de Doutorado. POLI/
USP, São Paulo, 1991, apud Noela Invernizzi: “Qualificação e novas formas de controle da força
de trabalho no processo de reestruturação da indústria brasileira: tendências dos últimos vinte
anos”, ANPED 2000.
9. O fato de que os fundos de pensão e os fundos de investimento tenham adquirido boa parte dos
haveres financeiros de muitos países capitalistas não elimina o caráter privado da apropriação
dos lucros. Os fundos apenas respondem “em conjunto”, e profissionalmente, aos detentores de
cotas que podem se desfazer delas no mercado quando bem lhes aprouver, sendo, por isso mesmo,
proprietários privados.
10. O economista norte-americano Marc Uri Porat retirou dos famosos setores econômicos de
Colin Clark (primário/agrícola, secundário/industrial, terciário/de serviços) todas as atividades
de informação, e compôs o conceito de setor quaternário ou de informações. Pressupôs que a
atividade de informação devesse incluir todos os recursos envolvidos na produção, processamento
e distribuição de mercadorias, bem como os dos serviços de informação.
11. Houve estudiosos que apreenderam a evolução social como movimento cíclico. É o caso de So-
rokin, que identificava três estágios de civilização — um bom, um mau e um transitório — que
se sucediam numa espécie de eterno recomeço, assim como Oswald Spengler, que descreveu a
história das civilizações como o da vida humana — nascimento, maturidade, declínio e morte.
Ver Rocher, Guy. Sociologia Geral. Lisboa: Editorial Presença, 1971, pp. 101-102.
12. Em Modos de Produção..., o autor estuda exaustivamente esta questão e mostra as virtualidades
estruturais das rupturas socioeconômicas e das passagens de uma sociedade para outra.
13. Ver Srour, Robert Henry. Classes, Regimes, Ideologias. São Paulo: Editora Ática, 1987, pp. 119-
129, ou, de forma bem mais desenvolvida, Modos de Produção..., pp. 313-347.
40 Poder, Cultura e Ética nas Organizações
14. Esse sistema baseava-se na produção realizada por artífices, em suas casas, com instrumentos de
trabalho próprios ou não, mas com matéria-prima fornecida pelos mercadores que patrocinavam
a operação. O pagamento era feito por empreitada.
15. Burns, Edward M. História da Civilização Ocidental. Porto Alegre: Editora Globo, 1959, pp.
674-684.
16. É interessante lembrar que os chamados produtos verdes ou ecoprodutos supõem: reduzido
consumo de matérias-primas e elevado índice de conteúdo reciclável; produção não poluidora
e materiais não tóxicos; não realização de testes desnecessários com animais e cobaias; não
produção de impacto negativo ou de danos a espécies em extinção; baixo consumo de energia
durante a produção, a distribuição, o uso e a disposição dos resíduos; embalagem mínima ou
nula; possibilidade de reutilização ou reabastecimento; período longo de uso, permitindo atua-
lizações; possibilidade de coleta ou desmontagem após o uso; possibilidade de “remanufatura”
ou reutilização (Gazeta Mercantil. Gestão Ambiental, fascículo 8, 8 de maio de 1996).
17. Valemo-nos aqui da elucidativa contribuição de Tauille, José Ricardo. “Aspectos sociais da auto-
mação no Brasil.” In: Lúcia Bruno e Cleusa Saccardo (coordenadoras). Organização, Trabalho e
Tecnologia. São Paulo: Atlas, 1986, pp. 19-26.
18. É preciso diferenciar claramente os conceitos de gestor e de líder. O primeiro haure sua força
do cargo ocupado e do mando que exerce (sua legitimidade deriva da confiança que desfruta
junto a seus superiores), o segundo da ascendência sobre outrem e da influência que irradia (sua
legitimidade deriva da confiança que desfruta junto a seus liderados). Ver o Capítulo 4 sobre “O
poder nas organizações”.
2
Sistemas mundiais
e capitalismo social
Os sistemas mundiais
A partir da Revolução Neolítica, formaram-se sistemas mundiais ou
mundos constituídos por sociedades desiguais entre si.1 A forma de orga-
nização desses sistemas lembra o figurino dos círculos concêntricos. No
núcleo, localizam-se um ou mais Estados centrais e reitores; na periferia,
gravitam regiões ou Estados dependentes. Os níveis de subordinação dos
espaços periféricos diferem entre si, assim como diferem as articulações
internacionais que vinculam essas sociedades.
As articulações são: o comércio distante, o tributo, a renda fundiária,
os pactos coloniais, as religiões e, mais recentemente, os blocos militares, a
mídia e os blocos econômicos. Em outros termos, estabeleceram-se várias
divisões internacionais do trabalho no seio de “espaços mundiais” em que
se combinam mecanismos econômicos, políticos e simbólicos.
Figura 1
Os sistemas mundiais
A globalização econômica
A internacionalização dos processos produtivos, bem como a dos mer-
cados financeiro e comercial, transcende as fronteiras nacionais. De que
forma? Pela migração dos fatores de produção e pela intensificação dos
fluxos mundiais do comércio e dos ativos monetários. O processo tende a
ocupar todo o espaço planetário e a formar um mercado e uma economia
46 Poder, Cultura e Ética nas Organizações
Os tipos de capitalismo
Estamos vivendo uma nova revolução capitalista, em particular no
Primeiro Mundo. Essa revolução rompe a lógica da exclusão e instala, do
ponto de vista estrutural, o imperativo da inclusão, porque:
dias;
As condições de segurança no trabalho, e a gradativa eliminação
diversificados;
A universalização dos sistemas de educação, saúde e seguridade
social;
O amplo acesso às redes de energia elétrica, de água tratada e de
esgotos;
O transporte coletivo subsidiado;
do ócio.
52 Poder, Cultura e Ética nas Organizações
O capitalismo excludente
A organização do trabalho no sistema capitalista excludente assumiu
o caráter de linha de produção ao estilo taylorista-fordista, lídima ex-
pressão da Revolução Industrial. Foram claramente separadas a função
de gerir (conceber e controlar), conferida aos gestores pelos empresários
ou exercida por eles mesmos, e a função de executar tarefas parceladas,
exclusiva dos trabalhadores.25
Tal processo de produção requer trabalhadores desqualificados ou
semiqualificados, de quem se extrai principalmente força física. Esses tra-
balhadores são descartáveis, porque são substituíveis por outros igualmente
despojados de habilidade técnica. Afinal de contas, seu preparo se resume
a um curto período de treinamento ou a uma aprendizagem com base no
“ver fazer” — o que precisam saber é bastante sumário. Em contrapartida,
o monopólio do saber técnico é detido pelos gestores e pelo staff de espe-
cialistas, e isso provoca a cristalização de relações autoritárias de poder.
Por que conceder cidadania organizacional a trabalhadores destituídos
de capacidade de barganhar, a não ser em situações extremas de greve
ou em conjunturas em que a economia está muito aquecida? Não estão
eles ansiosos por manter o emprego, uma vez que não possuem meios de
produção e não têm como prover a subsistência da família?
Em vista disso, o capitalismo excludente assenta-se em algumas âncoras
políticas e simbólicas:
2. Sistemas mundiais e capitalismo social 55
deveres;
Matriz autoritária de pensamento;
a gestão participativa.
Notas
1. O conceito, seus desdobramentos e suas aplicações, com a exceção do Sistema Mundial Compe-
titivo, foram concebidos e desenvolvidos por Fossaert, Robert. A Sociedade. Uma Teoria Geral.
Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979, pp. 98-109.
2. Desde 1947, o processo envolveu dezenas de países e consistiu em tentar liberalizar o comércio
internacional e definir regras sistêmicas. A negociação desdobrou-se em oito rodadas no chamado
Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (Gatt) que, em 1995, se transformou na Organização
Mundial do Comércio. A OMC é o exemplo clássico do multilateralismo, cujos acordos supõem
complexas urdiduras, feitas de paciência e diplomacia, para acomodar os interesses variados de
muitas dezenas de partícipes. As outras duas opções de inserção internacional, não necessaria-
mente excludentes, eram: o bilateralismo que visa a acordos entre duas nações; e o regionalismo
dos blocos econômicos, associações de países de uma mesma região geográfica que estabelecem
relações comerciais privilegiadas entre si e atuam de forma conjunta no mercado internacional.
3. União Europeia, Nafta (Tratado de Livre Comércio da América do Norte), Apec (Cooperação
Econômica Ásia-Pacífico), Mercosul (Mercado Comum do Sul), Pacto Andino, CEI (Comunida-
de de Estados Independentes, na ex-URSS), SADC (Comunidade da África Meridional para o
Desenvolvimento), Asean (Associação das Nações do Sudeste Asiático), Caricom (Comunidade
do Caribe), MCCA (Mercado Comum Centro-Americano) e Alca (Área de Livre Comércio das
Américas).
4. Os países do Terceiro Mundo transformaram-se em polos de atração para atividades industriais
de baixa qualificação (confecções, calçados, bolsas, produtos de madeira, palha e vime) e para
atividades de serviços de média qualificação (processamento de documentos, reservas de passa-
gens, atendimento em call centers). Mas trabalhos qualificados, que exigem educação refinada e
experiência comprovada, também estão migrando dos Estados Unidos, Japão e União Europeia.
Alguns exemplos são a pesquisa de medicamentos, a interpretação de tomografias e de ressonân-
cias magnéticas, as cirurgias, a engenharia de software e os serviços de contabilidade, radiologia
e consultoria.
5. A mão de obra abundante e pouco qualificada assim como as matérias-primas baratas constituem,
cada vez mais, vantagens comparativas menores, à medida que representam parcelas declinantes
do valor agregado. Em contrapartida: “O trabalho qualificado e criativo, de alto nível, tornou-se
fator ‘escasso’, em comparação com a relativa abundância de capital que circula pelo mundo.”
E, “na terminologia de Marx, o capital variável cresce em importância com relação ao capital
constante, à medida que o processo produtivo vai ficando mais ‘intensivo em conhecimento’”
(Fernando Henrique Cardoso. “O impacto da globalização nos países em desenvolvimento: riscos
e oportunidades.” O Estado de S.Paulo, 21 de fevereiro de 1996).
6. Do ponto de vista histórico, a globalização lança suas raízes no processo de internacionalização
iniciado cinco séculos atrás com as grandes navegações ibéricas. Estas abriram as rotas marítimas
do Oriente e das Américas e, já no século XVI, estava em curso um processo de internacionaliza-
ção do comércio distante. A globalização atual, porém, não se resume ao comércio, mas alcança
a própria produção e as finanças mundiais.
7. Isso para não falar da “cidadania fictícia” vigente em países liberais e que acomete boa parte das
camadas subalternas: elas se veem discriminadas social e racialmente, marginalizadas em relação
ao mercado de trabalho e de consumo, e patinam no analfabetismo funcional.
8. Um documento emblemático do Grupo Islâmico Armado (GIA) — organização argelina integrista
empenhada na derrubada do governo laico —, pregado à porta de algumas mesquitas, sentenciou:
“à exceção dos que estão conosco, todos os outros são apóstatas e merecem a morte” (O Estado
de S.Paulo, 23 de janeiro de 1997).
9. Nelson Mandela, antigo líder da oposição, que purgou 28 anos de prisão.
10. O tráfico internacional de drogas, a Aids, as radiações nucleares, a poluição ambiental, o buraco
na camada de ozônio, o efeito-estufa, o lixo radioativo, o mercado negro de material fóssil, a
alteração dos ritmos das estações, a erosão do solo, o desemprego tecnológico, a defesa dos di-
reitos humanos, a redução dos arsenais nucleares e a contenção de sua proliferação, assim como
o terrorismo internacional.
64 Poder, Cultura e Ética nas Organizações
11. Na Espanha, o governo do premiê José María Aznar do Partido Popular apoiou a invasão do
Iraque e mandou tropas para assegurar a ocupação, a despeito da rejeição da maioria do povo
espanhol. Preocupado em não deixar transparecer que o atentado poderia ser uma represália
islâmica — o que de fato foi — Aznar culpou o grupo separatista basco ETA. Três dias depois,
seu partido perdeu as eleições gerais para a oposição socialista. Em sua posse, o novo primeiro-
-ministro Zapatero anunciou e cumpriu a retirada das tropas espanholas do Iraque.
12. Além da cooperação internacional necessária para enfrentar as “comunalidades”, outras ques-
tões candentes como a miséria, a fome, o analfabetismo e o combate às endemias exigem amplo
desprendimento por parte dos países centrais.
13. Esta preocupação foi enunciada pelo então secretário-geral da ONU, Boutros Boutros-Ghali,
no Fórum Econômico Mundial, em Davos, Suíça (Folha de S. Paulo, 5 de fevereiro de 1995) e
delineou, como proposta, a formação de uma “Comissão pelo Governo Global” que apreciaria
três cenários: uma liderança global e democrática, por meio do aperfeiçoamento da ONU e de
outros sistemas de cooperação internacional; a concessão a uma ou duas superpotências para que
decidam pelo resto do mundo; o lento deslizamento rumo à anarquia.
14. Nos anos 90 foram os casos da libra inglesa, do franco francês, da coroa sueca, do peso mexicano,
do rublo russo, do real brasileiro e de várias moedas asiáticas.
15. Os bens simbólicos são conhecimentos, técnicas, softwares, invenções, patentes, fórmulas, músicas,
projetos, estudos, designs, pesquisas, obras de arte, vídeos, gravações, livros, marcas, códigos
morais, valores culturais, fotos etc. Sua divulgação permite fácil assimilação e plágio por parte dos
receptores, devido à sua captação mental e em função da possibilidade ilimitada de reprodução
a custos ínfimos ou até sem custo. Por exemplo, um pensamento, uma poesia, uma descoberta
científica, uma melodia, códigos de computador, fórmulas de biotecnologia, processos secretos
de manufatura podem ser repetidos e difundidos ao infinito, desde que se tenha acesso a eles.
Tal não é o caso dos bens econômicos e dos bens políticos, cuja “inelasticidade” é patente. Assim,
por ser material, o bem econômico tem uma apropriação rival, portanto excludente. E o bem
político, por sua vez, não se multiplica por mera difusão, pois o exercício do poder pressupõe que
os agentes disponham de um “cacife político” para a defesa dos próprios interesses — apoio de
outros agentes, alguma forma de organização e instrumentos de pressão, para não dizer armas.
Isso não significa que, por meio da chamada engenharia reversa e no tocante aos bens econômi-
cos, não se possa replicar equipamentos como os microcomputadores da IBM, falsificar relógios
Bulgari, bolsas Louis Vuitton, canetas Mont Blanc ou perfumes Chanel. O que se copia no caso
é a ideia, a marca, a grife. Afinal, prevalece aqui o velho adágio de que as ideias não têm dono.
16. Kenichi Ohmae, Revista Exame, 24 de maio de 1995, escreve: “Por terem sido criadas para
satisfazer às necessidades de um período histórico muito mais antigo, as nações-Estados não têm
o objetivo, o incentivo, a credibilidade, as ferramentas ou a base política para desempenhar um
papel efetivo na economia sem fronteiras de hoje. Por tradição, as nações-Estado são tolerantes
com a mão invisível do mercado somente quando podem controlá-la ou regulá-la. Suas decisões
são tomadas de acordo com as consequências políticas, não econômicas. Pela lógica eleitoral
ou pela expectativa popular, as nações-Estado precisam sempre sacrificar benefícios indiretos,
gerais e de longo prazo, em favor de decisões tangíveis e imediatas. Elas são reféns voluntárias
do passado porque o futuro é um eleitorado que não rende votos. Elas se tornaram artificiais —
até disfuncionais — como protagonistas de uma economia globalizada porque são incapazes de
colocar a lógica global em primeiro lugar ao tomar decisões.”
17. Não existem raças do ponto de vista científico, pois somos todos homo sapiens sapiens: as “raças”
são construções sociais, elaborações histórico-culturais.
18. Os dirigentes da confederação sindical alemã (DGB), que reunia nove milhões de filiados, aban-
donaram qualquer referência retórica à luta de classes e reconheceram os aspectos positivos de
uma economia de mercado — desde que social e ecologicamente condicionada — num congresso
extraordinário mantido em Dresden, em novembro de 1996. O presidente da DGB, Dieter Schulte,
afirmou que “o Estado social não é uma cornucópia” e que, embora a questão do financiamento
da proteção social seja prioritária, não se pode permitir que seus custos aumentem ainda mais. O
movimento sindical alemão propôs, assim, uma alternativa ao “espírito neoliberal” e à “sociedade
2. Sistemas mundiais e capitalismo social 65
lhões, o maior “pool” de dinheiro de todos os tempos, enquanto, no início da década de 1990,
cobriam mais de 45% da força de trabalho norte-americana. Não deixa de ser curioso que a maior
acumulação de capital da história da humanidade esteja basicamente ligada aos trabalhadores e não
aos capitalistas! “Estes últimos, porém, através de bancos, seguradoras, empresas de consultoria
e de fundos de investimentos estão mergulhados até o pescoço nos lucros e negócios gerados por
aquela soma fabulosa” (conforme Relatório da Gazeta Mercantil, 5 de dezembro de 1995). Por
fim, vale lembrar que os fundos de pensão gozam de várias isenções fiscais e seus investimentos
estão isentos de imposto de renda, pelo menos nos Estados Unidos.
33. Não se trata aqui, é claro, de confundir a responsabilidade social com a concepção neoliberal de
Milton Friedman, bastante conhecida, que consiste em maximizar de forma exclusiva os lucros
dos acionistas e em descartar toda solidariedade social.
34. É o caso de um agricultor que cuida mal de seus campos e deixa proliferarem ervas daninhas que
invadem as plantações de seus vizinhos; de um pecuarista que deixa vagarem seus animais sem
cercas, pondo em risco os pastos dos outros; de uma fábrica mal cheirosa que incomoda todo um
bairro; da poluição sonora e atmosférica causada pelos automóveis; da perda de produção agrícola
provocada por uma indústria de cimento. Ou, ainda, de uma fábrica que gera efluentes industriais
lançados diretamente no rio: os efluentes contaminam as águas e a poluição força os municípios
a jusante a construir estações de tratamento. Ora, quem assumirá o incremento dos custos? Os
municípios atingidos ou a empresa poluidora? Se não houver pressão política sobre a empresa por
parte dos habitantes da região afetada, os empresários não costumam se dispor a adotar medidas
antipoluentes, dado o tamanho do investimento a ser feito. Mas, caso os cidadãos se organizem,
caso a mídia disponha de margem de manobra para veicular seus reclamos e o debate possa ser
traduzido em votos, os governos acabam intervindo e exigindo da empresa poluidora que arque
com as despesas indispensáveis para prevenir e sanar os efeitos da contaminação ambiental.
35. Além dos benefícios sociais tradicionais outras práticas são adotadas nas empresas mais compe-
titivas tais como planos de saúde extensivos aos familiares; tíquetes-refeição; transporte fretado;
liberdade dos empregados para desenhar seus próprios horários e até, quando possível, para
trabalhar em casa; períodos sabáticos; empréstimos sem burocracia em situações emergenciais;
instalação no próprio local de trabalho de creche, escola, restaurante e academia de ginástica;
fornecimento de serviços que facilitem a vida dos empregados (lavanderia, locadora de filmes,
cabeleireiro, consertos de roupas, loja de conveniência, especialistas para pequenos consertos em
casa, serviço de assistência psicológica e serviço de orientação para encontrar escolas ou casas de
repouso para parentes). Não se trata de bom-mocismo, filantropia ou assistencialismo empresarial,
mas de uma política de recursos humanos que visa a equilibrar trabalho e família para tornar mais
produtiva a vida profissional dos funcionários.
36. O Prêmio Nobel da Paz de 2006, professor Muhammad Yunus, o famoso “banqueiro dos pobres”
que difundiu o microcrédito para as camadas mais carentes da população com sua bem-sucedida
experiência do Grameen Bank, é o criador da chamada “empresa social”. Trata-se de um empreen-
dimento que substitui a maximização do lucro pelos benefícios sociais que gera. Por exemplo,
produtos alimentícios nutritivos e de boa qualidade a preços baixos para crianças subalimentadas;
seguro-saúde a preço acessível para os pobres; sistemas de energia renovável a preços razoáveis
para comunidades rurais; reciclagem de lixo, tratamento de esgoto e outros dejetos que poluem
bairros pobres. Embora não pague dividendos a seus acionistas, os investidores podem receber de
volta a quantia que desembolsaram após dado período e continuar proprietários. A empresa tem
que ser sustentável e todo o lucro obtido se destina a financiar a expansão, criar novos produtos
ou serviços e fazer o bem ao mundo. Ver Muhammad Yunus Um mundo sem pobreza: a empresa
social e o futuro do capitalismo. São Paulo: Ática, 2008.
37. Em meados dos anos 1990, os gastos do governo na Suécia alcançaram 67% do PIB, enquanto
a França chegava a 54% e a Alemanha a 50%. Somente nos Estados Unidos, país menos assis-
tencialista, tais gastos atingiram 34% do PIB. Ficou cada vez mais claro para a opinião pública
internacional que há gastos demais e eficiência de menos (o custo burocrático de cada dólar
“social”, nos Estados Unidos, atingiu cinquenta centavos). Afinal, aquilo que o governo gasta é o
2. Sistemas mundiais e capitalismo social 67
sociais e dos públicos, mas diferentes desses todos pelo caráter de-
liberado de sua criação;
Unidades de ação e de decisão, portadoras de necessidades e de
interesses corporativos;
Agrupamentos que desenvolvem vida própria, apesar de serem
seus fundadores;
Representam fenômenos de ordem coletiva, entidades com vida
Psicologia e a Sociologia;
Assumem no mais das vezes um caráter informal por serem relações
Domínios da realidade
Em virtude da complexidade da realidade social, certas confusões
repontam e campos científicos acabam superpostos de forma inadequada.
A saber:
ções de consumo);
Relações interindividuais que conectam agentes individuais entre si
(relações interpessoais).
As dimensões da organização
O espaço social não é povoado por indivíduos, mas por relações so-
ciais: os agentes individuais são apenas os portadores dessas relações. Toda
organização constitui um microcosmo social, não importa sua textura ou
seu arcabouço (seja uma associação voluntária ou uma empresa lucrativa,
3. O lugar da organização 81
trabalhadores;
Nas relações corporativistas ou socialistas estatais, medem forças
e plebeus.
A interdependência organizacional
As organizações são sistemas abertos e campos de forças: competem para
absorver mais energia ou valor do ambiente externo; processam insumos e
geram produtos; administram pressões e apoios; dependem da credibilidade
pública que vão construindo, quer dizer, da reputação de que desfrutam.
Mas também se inscrevem num espaço hostil e belicoso, cujo caráter é
político: convivem de maneira permanente com outras tantas coletividades
com interesses contraditórios. Por isso é que o ambiente externo exige delas
enorme capacidade de adaptação e grande flexibilidade — qualidades que
costumam decorrer de uma competente análise estratégica.
3. O lugar da organização 85
serviços;
Os fornecedores ou os prestadores de serviços que estabelecem
tipos de manifestações;
As associações ambientalistas que formulam demandas e restringem
Notas
1. As Ciências Sociais abrangem todas as ciências que estudam fenômenos sociais. Afora a Psicologia
Social, que forma uma charneira entre a Sociologia e a Psicologia, todas as demais ciências citadas
86 Poder, Cultura e Ética nas Organizações
são Ciências Sociais gerais — de caráter sistemático e inclusivo — ou ciências aplicadas ao estudo
de fenômenos específicos.
2. Na esteira de Talcott Parsons (Structure and Process in Modern Societies. Glencoe, Ill: The Free
Press, 1960, p. 17), Amitai Etzioni as definiu como unidades sociais devotadas primacialmente
à consecução de metas específicas (Análise Comparativa de Organizações Complexas. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1974. p. 11) ou que procuram atingir finalidades ou objetivos especí-
ficos (Organizações Modernas. São Paulo: Pioneira, 1976). Nesse caso, importam os objetivos
reais das organizações, e não apenas os objetivos declarados ou intencionais de seus dirigentes
e membros. A observação das práticas efetivas da organização, notadamente do montante dos
recursos alocados e de seu destino, fornece o verdadeiro termômetro dos fins que estão sendo
perseguidos. Assim, ao conhecer os efetivos esforços que estão sendo desenvolvidos, capta-se o
rumo e as prioridades adotados pela organização, em vez de apenas confiar na subjetividade dos
agentes.
3. Michels, Robert. Os Partidos Políticos. São Paulo: Editora Senzala, s/d. Michels escreve, sinteti-
zando seu pensamento a este respeito: “Uma representação permanente equivalerá sempre a uma
hegemonia dos representantes sobre os representados” (p. 20).
4. Muitos órgãos públicos e empresas estatais perdem de vista a satisfação dos interesses públicos
e defendem zelosamente a permanência de programas cujas necessidades sociais já caducaram.
Passam a considerar as vantagens alcançadas por suas burocracias como “direitos adquiridos”.
E teimam em conservar o monopólio de determinadas atividades, apesar de não apresentar — e
talvez por isso mesmo — um desempenho adequado às expectativas coletivas.
5. O conceito de meios de produção integra as matérias-primas e os instrumentos de trabalho
necessários para o processamento de produtos. Em nossa concepção, recobre tanto a produção
material dos bens econômicos como a produção imaterial de serviços, de bens políticos e de bens
simbólicos.
6. Sejam elas objetos da natureza ou objetos sociais (dimensão econômica), sejam elas interesses
sociais (dimensão política) sejam elas signos ou representações mentais (dimensão simbólica).
7. Não cabe descaracterizar o conceito de gestor como se faz correntemente, nomeando funções
que não implicam gestão de pessoal com o título de gerente. Por exemplo: gerente de conta ou
gerente de produto.
8. O processo de produção abarca não só o processo de trabalho, mas também o processo de apro-
priação do sobreproduto ou a propriedade econômica propriamente dita.
9. É preciso distinguir propriedade econômica e propriedade jurídica: ao passo que a primeira
remete especificamente à apropriação do sobreproduto (excedentes econômicos em relação às
necessidades de reposição da força de trabalho e dos demais insumos), a segunda se refere a uma
relação politicamente definida — o direito de dispor dos meios de produção e dos produtos do
trabalho. Geralmente, os dois tipos de propriedade coincidem, mas nem sempre. Posseiros, por
exemplo, não detêm a propriedade jurídica da terra, mas dispõem dos frutos de seu labor, até
serem eventualmente expulsos dela. Os arrendatários também se encontram na mesma situação:
não são proprietários da terra, mas se apropriam de parte dos excedentes, após o pagamento do
arrendamento.
10. Dependendo do tamanho da empresa, o empresário delega as funções gestoras a um estado-maior
de sua confiança.
11. Patrícios versus plebeus, amos versus escravos, senhores feudais versus servos, latifundiários versus
peões, burgueses versus operários. Tal leitura é da vulgata marxista, baseada numa frase célebre
do Manifesto Comunista (“a História é a história da luta de classes”). Essa vulgata não leva em
consideração um fato notável: a referência à História não pode excluir a Pré-História, em que
comunidades humanas desconheciam a divisão da sociedade em classes sociais. E mais: não capta
o peso altamente significativo das categorias sociais e de suas lutas, tais como os gêneros, as etnias,
as confissões religiosas, as gerações ou as raças.
12. Civilizações, nações, blocos econômicos, regiões, classes sociais, categorias sociais, cidades, tribos,
fratrias e clãs, bairros, organizações de variados gêneros, públicos, subunidades organizacionais,
equipes diretivas, redes informais de poder.
3. O lugar da organização 87
13. Bens simbólicos são, por exemplo, novelas televisivas, notícias radiofônicas, conhecimentos
científicos, músicas populares ou eruditas, filmes publicitários ou de arte, projetos básicos ou
executivos para a construção de um imóvel, livros, sermões, receitas médicas. Bens políticos são,
por exemplo, ordens militares, decisões administrativas, sentenças judiciais, leis ou regulamen-
tações processuais. Serviços são, por exemplo, serviços educacionais, meteorológicos, turísticos,
artísticos, de assistência médica, de consultoria, de entretenimento, de hotelaria, de turismo, de
segurança, de trânsito, de transporte, de advocacia, de coleta de lixo etc.
14. Em regra geral, as circunstâncias fazem o homem. Isso não quer dizer que não possam existir
empresários socialistas ou trabalhadores conservadores, como qualquer observação empírica
comprova.
15. As mulheres, por exemplo, pugnam nas empresas por ter creches, licenças maternidade e me-
canismos de controle contra o assédio sexual, demandas que não são de interesse direto dos
homens.
16. Isso não significa que certas lideranças não possam “dar o tom” a certos processos históricos. Mas
daí a considerá-los “autores” ou “criadores” ad hoc desses processos, há uma grande distância:
a distância que falta percorrer entre a superficialidade do senso comum e a análise sociológica.
17. Isso não quer dizer que as Ciências Sociais não possam desenvolver conceitos gerais, válidos para
quaisquer épocas e lugares, tais como os conceitos de sociedade, divisão do trabalho, relações
sociais, agentes coletivo e individual, organização, instituição, valor cultural, norma social, co-
operação social etc. Só que tais conceitos, de caráter abstrato-formal, são corpos exangues que
nada explicam em si mesmos, a não ser quando investidos na historicidade dos fenômenos sociais.
Somente então, corporificados em conceitos específicos e conceitos singulares ganham sentidos
explicativos (ver do autor a este respeito Classes, Regimes..., pp. 28-37, e Modos de Produção...,
pp. 31-62.
18. Tais como o são as indústrias, as fazendas, as empresas de mineração, as construtoras, as lojas
comerciais, os bancos, as empresas de transporte, de limpeza e de manutenção.
19. Tais como o são as corporações policiais ou militares, as prisões, as empresas de vigilância, os
reformatórios, as penitenciárias, os campos de trabalho forçado, as administradoras de bens, as
repartições públicas, os tribunais, os escritórios de advocacia, os parlamentos.
20. Tais como o são as igrejas, as ordens religiosas, os conventos, os meios de comunicação, as esco-
las, as universidades, os centros de pesquisa, os museus, os teatros, as agências de publicidade,
os escritórios de arquitetura, as clínicas médicas, os hospitais, as empresas de consultoria ou de
software, as produtoras de filmes.
21. A regulação processa-se, é claro, através de normas jurídicas ou administrativas, cuja desobediência
implica sanções negativas. Uma delas — e das mais fortes — é a exclusão do transgressor dos
quadros da organização, para não citar punições como a reclusão dos recalcitrantes ou a morte
dos traidores em algumas organizações totalitárias (grupos terroristas, campos de concentração,
sociedades secretas, gangues mafiosas, seitas apocalípticas).
22. As razões para tanto são óbvias: não há sociedade que não viva de pão, ainda que não se viva
apenas de pão. O inverso, entretanto, não é verdadeiro: ninguém vive de espiritualidade ou de
domínio sobre os outros, sem antes e para tanto assegurar os próprios meios de subsistência.
23. Os servos são partes integrantes do feudo, ao mesmo título que a terra e as árvores.
24. Uma das razões dos fracassos de muitas consultorias organizacionais reside justamente na aplicação
de uma mesma receita a entidades estruturalmente diversas.
25. Leitura imediata da essência na aparência ou crença no reflexo objetivo.
26. Existem dezenas de tipos de propriedade, radicalmente diversos entre si. Para uma análise por-
menorizada dos tipos de propriedade, ver Srour, Robert Henry. Modos de Produção..., 2a Parte.
4
O poder nas organizações
As práticas sociais
Vamos abordar um conceito-chave para o conhecimento das organi-
zações — o de práticas sociais. Antes, porém, relembremos: as relações
sociais que articulam os agentes coletivos constituem o objeto de estu-
do das Ciências Sociais. São elas as relações de haver (de produção), de
poder e de saber. A combinação desses três gêneros de relações define a
arquitetura do espaço social. Por quê? Porque as relações coletivas arti-
culam agentes empenhados em intervenções sobre as realidades material
e imaterial, tangível e intangível. Demarcam, portanto, processos de
transformação da natureza e da sociedade, atividades padronizadas que
constituem as práticas sociais. Milhares de exemplos podem ser pinçados
no cotidiano.1
As práticas sociais envolvem dispêndios de energia e movimentação
de bens e de agentes. No mais:
tudo isso nos remete à política. Sem regras comuns, freios ou coibições,
a vida social torna-se impossível. Com a vigência delas:
em jogo.
A relação de forças
Nos exemplos enunciados anteriormente, ficou evidente que trabalho,
mando e influência são relações sociais, esforços concertados entre agen-
tes sociais, processos de cooperação, de emulação, de competição ou de
antagonismo.27 Todavia, entre essas três capacidades humanas, o trabalho
desfruta de uma peculiaridade determinante. Ao intervir sobre a natureza,
ele a integra ao domínio social como espaço humanizado e permite trans-
mutar os produtos obtidos em propriedade econômica.28
Mesmo assim, na dinâmica da vida cotidiana, toda relação social confi-
gura uma polarização de interesses e de disposições, uma relação de forças.
Implica, pois, uma leitura dominantemente política, embora não se reduza
a essa única dimensão. Cada polo da relação entre agentes coletivos ou
individuais dispõe de um cacife complexo: recursos (haveres ou riquezas);
concursos (poderes ou apoios); e discursos (saberes ou conhecimentos).
E, por isso mesmo, cada polo da relação pode sofrer o impacto da
usura do tempo ou o peso do cacife do outro. Como isso se processa? Os
recursos econômicos sofrem desgastes e perdas pelo seu mero uso, como
se fosse uma questão de “fadiga dos materiais”. A agregação de forças
ou os concursos políticos sofrem pressões e oposições provocadas pelas
resistências alheias, em virtude das diferenças de interesses. Os discursos
dos agentes ou os conhecimentos de que dispõem sofrem restrições e re-
jeições, em função dos ideários divergentes e do avanço dos saberes. Por
4. O poder nas organizações 103
O processo político
À semelhança do que acontece na competição econômica, quando
empresários se empenham em conquistar consumidores e em desenvolver
novas oportunidades de negócio, a disputa política se processa numa arena,
em que diversas forças se digladiam. Isso ocorre quando, por exemplo, no
intuito de enfrentar coligações adversárias, os gestores se lançam à conquista
de apoios entre seus pares, superiores, subordinados ou outros stakeholders
(públicos de interesse). Para terem sucesso, eles levam em conta os interesses
em jogo, negociam vantagens e prerrogativas, tecem alianças ou mobilizam
concursos. À medida que visam a se manter nos cargos ou a ampliar seus
espaços de poder, propõem uma plataforma para atrair certa soma de
apoios, como se fossem angariar votos para concorrer a eleições.30
Todo processo político representa uma disputa de interesses, opera
como um fogo cruzado de pressões. Com qual propósito? O de satisfazer
alguns interesses em detrimento de outros, fazendo com que algumas deci-
sões sejam tomadas e se tornem imperativas. Ou seja, todo processo político
corresponde a uma produção, à semelhança da produção econômica que
processa matérias-primas materiais. Na entrada, em vez de insumos físicos,
irrompem demandas e pleitos, exigências e reivindicações; entram na liça
interesses sociais que funcionam como objetos de trabalho, ainda que in-
tangíveis. Na saída, em vez de produtos físicos, fluem decisões que afetam
diretamente os interesses envolvidos: vão ao encontro de uns quando os
satisfazem e vão de encontro a outros quando os contrariam. O processo
todo se subordina a duas forças opostas: apoios que legitimam a tomada
de decisões e resistências que visam a modular ou a impedir certas ações.
Assim, os agentes medem forças nas organizações:
Figura 2
redes
informais pressões
de poder (resistências) lobbies
interesses
demandas
(pleitos) Tomada de decisões (satisfeitos/
contrariados)
As formas do poder
Embora o poder tenha sempre a força a respaldá-lo, existem formas
diversas de exercício do poder. A forma mais nua ou mais bruta é aquela
que repousa sobre o uso da violência ou sobre as armas. Trata-se da capa-
cidade de coagir, capacidade essa que, obviamente, prescinde da prévia
aquiescência do agente coagido e serve de fundamento à relação de do-
minação. Embora as sociedades modernas não a consagrem formalmen-
te, uma vez que elas costumam adotar a famosa tripartição dos poderes
de Montesquieu, tal forma de poder nem sempre se queda oculta. Para
apreender o poder nu, basta olhar para as variantes militares dos Estados
autoritários ou para todas as formas de regime totalitário, sobretudo em
seu período de afirmação. É também suficiente lembrar o poder ilimi-
tado que exerceram as coroas absolutistas sobre súditos indefesos, os
feitores sobre a escravaria submetida a toda sorte de trabalhos exaustivos,
lacerações, amputações e outras mil perversidades, a Inquisição sobre os
heréticos sujeitos a torturas atrozes, os piratas sobre os habitantes de
portos tomados de assalto com suas pilhagens, crueldades, devastações e
estupros. Basta ainda ver o arbítrio contemporâneo das polícias políticas
sobre dissidentes ou guerrilheiros encarcerados, dos exércitos invasores
sobre populações subjugadas ou dos guardas sobre presidiários.
Entretanto, é importante assinalar que o poder nu não perdura como
força bruta por um longo período de tempo. Logo após a “submissão dos
corpos”, os detentores do poder tendem a garantir a lealdade dos súditos
pela “domesticação das mentes”. Procuram estabelecer sua hegemonia
simbólica porque a violência física aliena, e há necessidade de que a nova
ordem instituída seja aceita ou, pelo menos, tolerada. Aí entra o processo
de manipulação, quando se infunde nos submetidos a esperança de que
algumas de suas aspirações serão satisfeitas, com vistas a obter o mínimo
indispensável de colaboração.
Nos Estados em que prevalece um regime político de direito, contu-
do, o poder coercitivo acompanha de modo quase sub-reptício a função
de administrar. Esta é outra forma que o poder assume. Ela consiste em
realizar objetivos em nome da racionalidade pública. De fato, o planeja-
mento das ações, a organização das atividades ou a direção dos esforços
coletivos requerem que regulamentos e disciplinas sejam estabelecidos.
Afinal, qualquer empreendimento coletivo implica a definição de dire-
trizes e a emissão de ordens. Implica, sobretudo, que os agentes levem
as decisões a cabo.
108 Poder, Cultura e Ética nas Organizações
na esfera da administração;
Jurídico-judiciário ou Poder Judiciário com seus tribunais na esfera
da justiça;
Parlamentar ou Poder Legislativo com seus parlamentos na esfera
da deliberação.
de seus bens e de seu negócio da forma que bem lhes aprouver, a não ser
que sejam judicialmente interditados. A propriedade é fonte de benefícios
econômicos, mas é também a base legal do poder nas empresas. Afinal, por
que os donos abdicariam do controle de que dispõem sobre a produção de
excedentes que representa o cerne de seu negócio? Para tanto, designam e
cooptam os gestores, em função da confiança que esses lhes inspiram.
Os gestores, por sua vez, não só prestam contas aos proprietários, como
lhes devem lealdade por dever de ofício, à medida que exercem um poder
atribuído — o mando. E comprometem-se a defender os interesses patro-
nais sejam quais forem as circunstâncias. De maneira que a detenção do
poder — privilégio dos proprietários — pode se dissociar do exercício do
poder, que é concedido aos gestores assalariados. Isso implica reconhecer
que os gestores nutrem interesses diferenciados e, eventualmente, chegam
a contrapor-se aos proprietários. Com efeito, valendo-se das posições que
ocupam, podem agir e manobrar em seu próprio proveito.32
A liderança
Isso nos leva a comparar a figura do gestor e a do líder, no intuito de
resgatar conceitos que o senso comum e boa parte da literatura da admi-
nistração norte-americana confundem. De fato, a liderança (leadership),
em sua acepção vulgar, acaba equivalendo a “estar em primeiro lugar” ou
em “ocupar o posto principal”.36 É também costume batizar os ocupantes
de altos cargos com a denominação de líderes. Isso nem sempre é verda-
deiro. Gestores não são necessariamente líderes e vice-versa. A liderança
transcende cargos ou posições formais, não carece de institucionalização,
é fruto da sintonia “espontânea” e informal estabelecida entre líderes e
seguidores. Um líder comunitário, por exemplo, não ocupa posto algum,
e sua liderança depende exclusivamente do apoio reiterado que recebe de
seus liderados. A força do líder, portanto, depende de sua capacidade de
convencer seguidores e de catalisar seus anseios — resulta, pois, de sua
influência.
Eis por que não há como pensar em atribuir ou delegar liderança.
Esta só se sustenta se for conquistada de forma ininterrupta. E quais são
as razões que permitem ao líder conduzir outros? O fato de que ele se
identifica com os liderados, expressa interesses coletivos, propõe ações
consoantes com as expectativas dos representados. Na sua relação de
112 Poder, Cultura e Ética nas Organizações
A legitimidade
O conceito de legitimidade vincula-se ao de influência, embora ambos
mantenham clara especificidade. É legítimo o ato ou a situação política que
se conforma a determinadas crenças coletivas ou a dados interesses; legítimo
porque avaliado como correto e adequado pelos agentes sociais por ele afe-
tados. Trata-se, pois, de uma condição de validação, de reconhecimento, de
justificação e de aceitação por parte daqueles que estão sujeitos à situação ou
ao ato. Condição essa que torna a legitimidade uma probabilidade, não uma
certeza. Isso significa que os agentes envolvidos obedecem de bom grado
a orientações ou a ordens emanadas de quem de direito. Em decorrência,
a legitimidade associa-se claramente à moralidade pública37 e pressupõe
adesão voluntária, ainda que possa decorrer das injunções da necessidade
ou a despeito dos eventuais atos de fingimento e de oportunismo, pois, ao
fim e ao cabo, as práticas concretas se sobrepõem às intenções.
É lícito alertar que a legitimidade não se cinge à legalidade ou à confor-
midade a normas jurídicas, embora possa abrangê-las. Algo pode ser legal
e ilegítimo, como o foi o Ato Institucional 5, em 1968, que formalizou o
arbítrio ou a ditadura militar colegiada no Brasil. Pois o Ato normalizou um
conjunto de poderes discricionários, respaldou-se na capacidade de coagir
empunhada pela cúpula das Forças Armadas, mas não encontrou apoio
majoritário na população. Entretanto, o endosso ou a “autenticação revo-
lucionária” do AI-5 foi fornecido por poderosos setores minoritários.
Assim, dificilmente a legitimidade alcança a universalidade e recobre
todas as pregas do tecido social: não há legitimação unânime em dada
coletividade, mas legitimidade prevalecente. O que é legítimo para uns
pode não sê-lo para outros. Em tese, a opinião da maioria (vox populi)
forma a base da legitimidade pública. Mas, mesmo assim, não podem ser
4. O poder nas organizações 113
Os conflitos e as alianças
O que são os conflitos? São choques ou enfrentamentos que se dão
entre agentes sociais em virtude de variadas incompatibilidades: necessi-
dades, interesses, expectativas, valores ou personalidades. São processos
116 Poder, Cultura e Ética nas Organizações
Quem responde pela gestão luta pelo poder e abomina o vácuo. Por
isso, onde houver “margens de incerteza”, zonas cinzentas que separam
o permitido do proibido, regiões carentes de normalização, haverá en-
frentamentos para ocupá-las. O jogo de bastidores, sobretudo nas gran-
des organizações, representa um padrão de comportamento recorrente.
Compõe-se de conluios, conchavos e tramas; hostilidades nem sempre
declaradas, pressões ocultas, ciladas e manobras; contrainformações, ba-
lões de ensaio e mascaradas; arranjos de conveniência, traições e golpes
palacianos. Encerra muitas dissimulações e muitos comportamentos que
primam pela hipocrisia.
Tece-se assim uma complexa teia de conflitos nas organizações, alguns
visíveis outros subjacentes, em que se superpõem e imbricam interesses:
Notas
1. Vamos citar alguns, indicando a dimensão peculiar em que ocorrem: a) práticas econômicas são
semeaduras e colheitas agrícolas, fabricação de produtos, aquisição de insumos, intercâmbios
comerciais, remessa de matérias-primas, armazenamento de componentes, concessão de crédito,
serviços de manutenção e de limpeza, construção ou reforma de edifícios, transportes de carga,
4. O poder nas organizações 121
não inclui a liberdade de gritar ‘fogo’ num teatro lotado.” Ou, de forma mais lata, é preciso ser
intolerante com os intolerantes, coibir aqueles que atentam contra a liberdade dos outros. A
liberdade não pode equivaler a um poder pleno e incondicional, porque seu próprio exercício
supõe responsabilidade, sob risco de se transformar em arbítrio ou em negação de si mesmo.
8. Essa analogia não ratifica a visão contratualista, porque esta supõe que os homens viviam — de
início? — em estado de natureza, isolados e em permanente estado de guerra de todos contra
todos. Depois de um período, e para alcançar o bem comum, teria havido uma deliberação que
resultou num “contrato social”. Ora, tal visão não passa de um malabarismo heurístico. Do ponto
de vista empírico, não há evidências que validem essa crença. Ao contrário, o que se sabe, é que
a humanização só se alcança e forja em coletividade. Os homens são gregários por definição e
para todo o sempre. A vida em comum ou em sociedade não é apenas um pressuposto filosófico,
mas um resultado inconteste de todas as observações antropológicas já realizadas.
9. É interessante notar que as liberdades individuais germinam e florescem pari passu com o processo
de urbanização. Por exemplo, quando a densidade da população chega ao ponto em que o anoni-
mato se viabiliza e a atomização dos agentes individuais propicia comportamentos alternativos,
esses se dobram menos aos controles estreitos e rigorosos que as pequenas comunidades humanas
exercem. Mas é também interessante notar que, nas sociedades complexas, as tentativas de ins-
talar regimes totalitários exigem um gigantesco aparato repressivo e tamanho policiamento dos
costumes, que os custos para manter a dominação são altíssimos. Ademais, a eficácia da repressão
tende a desgastar-se com o tempo, exigindo doses cada vez maiores de coerção. Tudo indica que
o exercício do terror por prazo indeterminado, além de insano, o banaliza e, a um só tempo, o
esteriliza.
10. O exercício do mando pode tomar a forma totalitária, autoritária, liberal ou democrática. Para a
discussão sobre os tipos de poder e os modos de seu exercício, ver do autor Classes, Regimes...,
pp. 206-236, e o Anexo III da presente obra, “As formas de gestão”, hospedado no Web site da
Editora.
11. Quanto maior for o número de necessidades controladas pela organização, tanto maior será o poder
que ela exercerá sobre seus membros. A Igreja Católica, por exemplo, tem mais poder sobre seus
párocos do que sobre seus paroquianos: estes estão submetidos aos meios de controle simbólicos,
enquanto os párocos são controlados nos três planos: simbólico (comungam das mesmas crenças),
político (devem obediência à hierarquia) e econômico (são dependentes financeiramente).
12. O poder puro, ou nu, é a dominação. Contrapõe-se ao poder legítimo ou à autoridade política.
A autoridade exige muito menos esforços e mobiliza muito menos recursos, porque os agentes
reconhecem como legítimo o mando vigente, consentem em obedecer, aceitam como natural a
situação em que se encontram. Há, aqui, uma intersecção entre as duas dimensões — a simbólica
e a política —, pois a autoridade política depende de legitimação, do reconhecimento do direito
de mando.
13. Está claro, porém, que os escravos representam um investimento para os amos, razão pela qual
sua sobrevida interessa também a seus proprietários. Nos modos de produção classistas (exceto o
modo de produção capitalista), os agentes sociais destituídos de meios de produção não desfrutam
de liberdade formal ou não têm opção para obter meios de subsistência: a) no latifúndio escravista,
se conformam ao trabalho compulsório, a não ser que desprezem a morte; b) nas demais formas
de produção latifundiária (meia, terça, cambão, arrendamento, agregação), a produção dos meios
de subsistência depende da anuência da aristocracia fundiária em ceder terras ou em arrendá-las
aos trabalhadores; c) no modo de produção feudal, os servos estão jungidos aos feudos como se
fossem árvores, bestas ou arados, de sorte que qualquer desobediência significa insurgência ou
rebelião e pode, por conseguinte, ensejar brutais represálias; d) no modo de produção corporati-
vista (socialista estatal) quem não cumpre suas obrigações e não se submete às ordens superiores
pode ser punido com os rigores dos trabalhos forçados. Ou seja, no socialismo real, embora haja
uma ampla rede de segurança social que a todos ampare, e embora a economia centralmente
planificada seja uma economia de pleno emprego, quem não trabalha não come.
14. Os kapos eram detentos que colaboraram com os guardas nos campos de extermínio nazistas e
os serviram como feitores. Ver a esse respeito o extraordinário livro de Steiner, Jean François.
4. O poder nas organizações 123
Treblinka. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d, que retrata o heroísmo inaudito dos judeus que
se insurgiram contra a barbárie.
15. Um jornalista pode ter influência sobre seus leitores, nem por isso tem liderança sobre eles,
porque esta abrange muito mais do que a mera afinidade de opiniões ou o mero respeito à
competência.
16. Ver a distinção entre os vários saberes no próximo capítulo.
17. Ver, por exemplo, Amitai Etzioni (Análise Comparativa..., p. 32): “Poder é a habilidade de um
indivíduo de induzir ou influenciar outro a seguir suas diretrizes ou quaisquer outras normas
por ele apoiadas” (o grifo é nosso), que cita em apoio Parsons, Lasswell, Kaplan, Easton, Dahl e
Cartwright. Esvazia-se, assim, a especificidade da influência e confere-se ao conceito de poder tal
amplitude que seu vínculo com a violência física some, num curioso processo de pasteurização,
e fica escamoteado seu caráter exclusivamente político.
18. Cabe reconhecer, todavia, que tanto aqueles que persuadem quanto aqueles que manipulam
prometem benefícios e espantam malefícios. Por exemplo, publicitários acenam com sucesso,
beleza, status, felicidade; negociadores comprometem-se a satisfazer necessidades, estabelecida
a melhor equação possível para os interesses envolvidos; políticos projetam inúmeros programas
de interesse público e proclamam soluções para os problemas que atormentam a população;
religiosos oferecem o reino dos céus lá ou cá; psicólogos prenunciam o equilíbrio emocional; e
advogados declaram-se convencidos de que os litígios serão resolvidos satisfatoriamente para a
parte representada.
19. É só pensar na pregação fascista e nazista no período entre as duas guerras mundiais, assim como
no proselitismo marxista durante todo o século XX. Pensar também nos movimentos feminista,
negro e homossexual, dedicados à conquista de direitos civis nos Estados Unidos, e, por fim,
na emergência de uma consciência mundial ecológica após os esforços tenazes dos movimentos
ambientalistas.
20. “O mundo deixou de acreditar que Josué fez o Sol parar, porque a astronomia de Copérnico era
útil na navegação; abandonou a física de Aristóteles, porque a teoria de Galileu da queda dos
corpos possibilitou calcular a trajetória de uma bala de canhão; rejeitou a história do dilúvio,
porque a geologia é útil na mineração, e assim por diante.” Russel, Bertrand. O Poder. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1979, p. 86.
21. Conforme Bertrand Russell. Op. cit., pp. 83-98.
22. Não devemos incorrer no erro de acreditar que a influência ou a propaganda possuem virtudes
milagrosas: sem consonância ou sintonia com os interesses, as aspirações ou as convicções íntimas
dos agentes a quem se dirige, a capacidade de induzir opiniões se esvazia ou, pelo menos, se reduz
fortemente.
23. No entanto, persiste a indagação: em que medida há genuína persuasão e em que medida há
manipulação? Não estaria o devoto sendo vítima do círculo de ferro de suas próprias crenças?
Uma resposta genérica não faz sentido. É preciso analisar cada caso em sua especificidade histórica
para desenredar o problema.
24. A influência do médico repousa no fato de que o paciente o considera um especialista que possui
um conhecimento maior do que o dele. Teria ele melhor base de julgamento para receitar-lhe
remédio e terapia. Aliás, em virtude da incerteza e da contingência em que se encontra, nada
parece mais razoável ao paciente senão aceitar a orientação do médico.
25. Quanto menos esclarecidas forem as famílias, maior é o poder do especialista. E mesmo no caso
de famílias mais escolarizadas, a falta de conhecimentos médicos e a urgência podem levar a que
aceitem qualquer tratamento que venha a lhes ser proposto.
26. Curiosamente, não será o caso de guerrilheiros ou de sequestradores que consigam convencer seus
reféns quanto à validade de seus ideais ou de suas razões. Nem quando exercem algum fascínio
sobre suas vítimas, numa estranha relação sadomasoquista que foi batizada como “síndrome de
Estocolmo”.
27. Esses processos sociais são analisados no próximo capítulo.
28. Desde a Revolução Neolítica, a concepção que se tem da natureza transitou da ideia de mãe
provedora ou de aquário simbiôntico, ou seja, de uma relação de submissão à natureza, para a de
império colonizado pelas forças produtivas humanas, típicas da Revolução Industrial e no mais
124 Poder, Cultura e Ética nas Organizações
das vezes predatórias, ou seja, de uma relação de controle da natureza. Hoje, num paradigma
mais elaborado, a natureza está sendo encarada como um “planeta hospedeiro”, cujos recursos
são finitos e escassos. De maneira que, cada vez mais, defende-se a ideia de que o meio ambiente
merece ser preservado e restaurado acima de quaisquer outras considerações, ou seja, preconiza-
se uma relação de harmonia com a natureza. De fato, a Revolução Digital faculta a perspectiva
de uma produção “limpa” e de um ciclo de produto que abrange desde a preservação original do
ambiente natural, ou da recuperação dos efeitos de sua degradação, até a reciclagem dos materiais
utilizados na fabricação. Isso tudo impõe limites e restrições às ações humanas, a começar pelo fato
de que se implanta um “gerenciamento ambiental” que consiste em eliminar as fontes de poluição
e em ultrapassar a mera correção dos problemas causados pelas intervenções humanas.
29. As formas de gestão serão objetos de análise do Anexo III que se encontra no Web site da
Editora.
30. “Todo homem que faz política aspira ao poder — seja porque considere o poder como um meio a
serviço de outros fins, ideais ou egoístas, seja que o deseje ‘em si mesmo’ para gozar do sentimento
de prestígio que confere.” Weber, Max. Le Savant et le Politique. Paris: Librairie Plon, 1959, p.
101.
31. Ainda que não exibindo fardas, estandartes e equipamentos bélicos, os gestores das empresas
exercitam esse poder coercitivo ao dar ordens e vigiar seu cumprimento, ao demitir funcionários
e promover outros, ao dobrar vontades e governar pela intimidação e pelas ameaças.
32. Os escândalos de repercussão mundial em 2002 e em 2008, que afetaram dezenas de corporações
internacionais, devem-se em grande parte aos interesses dos altos gestores em encobrir gestões
medíocres e em se apropriar de bônus, gratificações e pacotes de desligamento em detrimento
dos acionistas.
33. O nível de resistência à autoridade política, obviamente, é menor do que se o poder fosse exercido
pelo mando puro e simples. Mas nem por isso deixa de existir resistência. Porque a legitimidade
é um complexo de justificações e nem sempre alcança a unanimidade dos subordinados. Por
exemplo, o herdeiro de uma empresa capitalista ampara-se na legitimidade tradicional da heran-
ça. Isso, porém, não lhe basta para assegurar a colaboração de todos aqueles que serviram a seu
pai fundador. Ele terá de conquistar a legitimidade racional que a competência técnica confere
para obter o respeito dos especialistas; ou terá de alcançar extraordinário sucesso em empreen-
dimentos realizados fora da empresa familiar se quiser cobrir-se com o manto da legitimidade
carismática.
34. Qualquer que seja o tipo de legitimidade que a autoridade política venha a desfrutar (racional,
tradicional ou carismática), ela sempre se move num espaço institucionalizado.
35. Segundo Gramsci, a hegemonia não equivale à ideologia dominante, mas remete à capacidade
estratégica de uma classe social para obter o consentimento ativo e passivo da maioria dos setores
sociais em torno de seu projeto histórico.
36. Fala-se em equipe que ocupa a liderança de um campeonato de futebol ou em piloto que lidera
a competição da Fórmula 1. Mas também se fala em líder de uma bancada de parlamentares, em
líder de um sindicato profissional ou de uma empresa, quando, na verdade, se trata dos respectivos
dirigentes ou presidentes.
37. Veremos a questão da moralidade no capítulo intitulado “A ética nas organizações”.
38. As estimativas chegam a alguns milhões de abortos anualmente. O aborto só é legal em casos de
estupro e risco de vida da mãe.
39. Weber, Max. Le Savant..., p. 102.
40. Favoritismo dos áulicos ou dos membros do círculo íntimo, laços de parentesco, vassalagem,
clientela, compadrio, amizade, vizinhança, coleguismo ou camaradagem.
41. Conforme Weber, Max. Economía y Sociedad. México: Fondo de Cultura Económica, 1969, pp.
170-176; e Max Weber: “Os fundamentos da organização burocrática: uma construção do tipo
ideal.” In Campos, Edmundo (org.). Sociologia da Burocracia. Rio de Janeiro: Zahar Editores,
1971.
42. São as mordomias ou vantagens usufruídas pelos gestores mais graduados: seguro de saúde
diferenciado, complemento de aposentadoria, cartão de crédito empresarial para despesas
pessoais, título de membro familiar de um clube recreativo, automóvel da empresa à disposição
4. O poder nas organizações 125
com despesas pagas, férias sabáticas, pagamento das mensalidades escolares dos filhos, utilização
do avião da companhia ou de passagens em primeira classe para os deslocamentos de negócio,
bônus anual, participação nos lucros ou nos resultados, direitos preferenciais na compra de ações
da empresa etc.
43. Símbolos que expressam a hierarquia e estabelecem as devidas distâncias e diferenciações, tais
como sala exclusiva e seu tamanho, título do cargo, pertença a listas de circulação, telefone com
linha direta, telefone celular, direito a uma vaga de estacionamento, banheiro reservado, cartão de
visita, secretária particular e qualificação da profissional, tipo de mobília e de tapete, decoração
do ambiente, acesso livre às diferentes áreas da empresa, atendimento especial no restaurante ou
no serviço de café, flexibilidade de horários e assim por diante.
44. Unidades de negócio, filiais, divisões, departamentos, setores, seções que se enfrentam para
obter recursos, pessoal, projetos, instalações, equipamentos, acesso a tecnologias, promoção
de seus quadros, melhores condições de trabalho, remuneração diferenciada, prestígio, reco-
nhecimento etc.
45. Os membros das organizações não são apenas motivados ou orientados por interesses particula-
res. Costumam agir e reagir, de um modo geral, como participantes de grupos informais (ver as
pesquisas clássicas da Escola de Relações Humanas nos chamados experimentos de Hawthorne,
de 1927 a 1932) e como membros de agentes coletivos em lutas sindicais, movimentos de consu-
midores, campanhas contra as discriminações de raças, etnias, gêneros e portadores de deficiências,
manifestações para a preservação do ambiente.
46. Panelas, igrejinhas, patotas ou cliques, conjuntos de amigos, vizinhos, colegas de escola ou de
empregos anteriores, parentes, conterrâneos, militantes políticos ou sindicais, fiéis de igrejas ou
de seitas, membros de clubes de serviço, de lojas maçônicas, de associações profissionais etc.
5
A cultura nas organizações
O universo simbólico
Basta entrar em qualquer grande organização para logo ser assalta-
do por uma presença informe. Paira no ar um mistério que faz as vezes
de esfinge e que sugere, no silêncio de sua carranca, a famosa frase:
“decifra-me ou te devoro”. A arquitetura do ambiente, os móveis e os
quadros embutem algo que os gestos desenham. As cores, os movimen-
tos do pessoal e os equipamentos evocam o que as palavras celebram.
E, de forma curiosa, os indivíduos, habitualmente tão diversos entre
si, assemelham-se nos ritmos e jeitos. O ar parece vibrar, impregnado
por sutis reverências e por conteúdos furtivos, por mil cumplicidades
que códigos e jargões disfarçam. Para não dar um mau passo, o recém-
chegado mantém-se alerta: desliza com prudência minuciosa; procura
captar significados nas entrelinhas; mede e compara silêncios e posturas;
pouco se atreve a dar notícia de si, para não destoar; sabe-se estranho,
forasteiro, outro; pisa em ovos tal qual um imigrante, cheio de dedos
e mesuras; move-se nos limites das boas maneiras; se escuda nas ideias
partilhadas do senso comum.
Em contrapartida, quem pertence à organização oficia como um ini-
ciado. Tudo lhe soa trivial: reconhece os suportes e as reticências de cada
ato; decodifica os antecedentes e as omissões de cada fala; celebra rito
após rito com segura intimidade; acompanha de cor os compassos das
atividades; divisa as saliências do terreno e os riscos de cada curva; pres-
sente as máscaras que se improvisam; e atina para as táticas ocultas.
128 Poder, Cultura e Ética nas Organizações
O saber ideológico
Esse saber se compõe de evidências doutrinárias, mensagens ou dis-
cursos especulativos que não formulam problemas, mas apenas enunciam
soluções ou respostas prontas. O saber ideológico faz alusão à realidade e,
ao mesmo tempo, se basta com a ilusão de suas “evidências”;3 reconhece
o mundo e, no mesmo ato, o desconhece. Em suma, impede a elaboração
de explicações demonstráveis.4 Se não, vejamos. Fazem parte dele:
tam na ânsia por certezas que acomete a todos aqueles que vivem
atormentados por angústias existenciais;
Resultam de uma adesão intuitiva, à semelhança da conversão re-
ligiosa.
O saber científico
O saber científico nos remete a um conjunto de conhecimentos sobre
as realidades natural, social e psicológica. Faz uso ou não das matemáticas
e da estatística, estabelece um sistema ordenado e coerente de proposições
que descrevem e explicam os fenômenos a partir de “leis”, vale dizer,
de relações necessárias que derivam da natureza recorrente das coisas.
Uma teoria é científica se cumprir dois postulados: o de sujeitar-se ao
critério do verdadeiro e do falso e o de prever a ocorrência dos fenô-
menos. Isso significa que ela deve ser demonstrada de algum modo por
meio de resultados experimentais ou laboratoriais, raciocínios lógicos
e matemáticos, ou ainda através de regularidades históricas criteriosa-
mente rastreadas.
De maneira que a produção científica obedece a protocolos ri-
gorosos:
O saber artístico
As criações da sensibilidade e as expressões estéticas constituem o saber
artístico, que é fruto da inspiração e da imaginação. Suas finalidades são a
contemplação, o devaneio e a ilusão. O artista busca o belo, ao passo que
o público emite juízos de gosto ou julga o valor de beleza. De sorte que
a obra de arte, por ser singular e incomparável, prescinde de quaisquer
demonstrações ou provas. Ela não procura enunciar verdades, mas se
empenha em gerar páthos, em tocar o coração dos outros. Seus propósitos
consistem em despertar emoções e revelar desejos, em inspirar sensações e
exprimir estados de espírito, em falar aos sentimentos e comover o público
com os novos sentidos que o mundo esconde.
O saber artístico corresponde, no essencial, às belas-artes — pintura,
escultura, arquitetura, poesia, música, teatro, dança —, embora abranja
também “indústrias criativas” como as artes audiovisuais (cinema, televisão,
vídeo, publicidade), o design (gráfico, de moda e nas páginas da Internet),
a fotografia e a edição de texto e de imagem. E suas obras são trabalhos
de expressão, transfigurações do visível, dos materiais, das formas, da
linguagem, do sonoro, do movimento e dos gestos.9 Mas como o artista
traduz o real com seu gênio criador e provoca as apreciações que o público
vivencia, estabelece-se na esfera estética uma forma original e intuitiva de
apropriar-se do mundo, cujas chaves de decifração encontram-se na sensi-
bilidade, na fantasia e no prazer da fruição simbólica. Em decorrência, o
saber artístico abrange também outras manifestações culturais de caráter
lúdico — os lazeres, os esportes e o entretenimento.
O saber artístico não se confunde com a técnica, tal como a linguagem
corrente propende a fazer quando fala de artes manuais, arte náutica, arte
134 Poder, Cultura e Ética nas Organizações
O saber técnico
Por sua vez, o saber técnico não se resume às destrezas que todo tra-
balhador acaba possuindo no exercício de algum trabalho, nem à “sabe-
doria prática” que muitos homens simples aprendem por ouvir dizer ou
por ver fazer. É um saber constituído por um conjunto de processos que
procuram adequar os meios disponíveis a fins desejados, por um corpo de
regras operatórias ou de procedimentos. Diz respeito a um “saber fazer
as coisas” (know-how) e aplica conhecimentos científicos para realizar
atividades e fabricar objetos.
Sendo instrumental, a técnica satisfaz demandas sociais específicas. E,
à medida que as ciências se aplicam cada vez mais à produção de bens e
de serviços, as relações entre técnica e ciência ganham nova dimensão e
a técnica se transforma em tecnologia. Nem por isso se confunde com a
ciência, ainda que mantenha com ela laços de mútua fecundação.
A cultura organizacional
Muitos antropologos tomam o conceito de cultura pelo todo da so-
ciedade, enquanto muitos sociólogos limitam o conceito de cultura a uma
das três dimensões do espaço social — a dimensão simbólica. Ficaremos
com a segunda acepção. O senso comum, por sua vez, confunde cultura
com erudição: diz que tal ou qual pessoa é culta e pretende designar assim
seu nível de escolaridade ou sua bagagem intelectual. Num sentido mais
lato, porém, a linguagem corrente sinonimiza cultura e arte. Expressões
estéticas como esculturas, obras literárias, pinturas, apresentações de
dança, peças teatrais, espetáculos de circo, concertos de música erudita,
coleções de peças arqueológicas, filmes de autor, shows de rock recebem o
rótulo de manifestações “culturais”, relegando todas as demais expressões
simbólicas a outro departamento.
Na verdade, não há razões do ponto de vista analítico para conferir
ao conceito de cultura a abrangência que alguns sustentam. Nem cabe
confiná-lo a uma única esfera simbólica como muitos pretendem. Mantidas
5. A cultura nas organizações 135
membros;
Traduz as tensões e os anseios do pessoal — o “moral da tropa”, o
ânimo presente;
Mapeia o ambiente interno que varia segundo a motivação dos
deixa de tê-lo;
Conferem sentidos às situações históricas dos agentes;
úteis;
Mobilizam e canalizam energias para a inovação, a contestação ou
do “lado de lá”;
Conformam-se como doutrinas, fazem as vezes de credo e modelam
Figura 3
esquerda direita
Reformistas
Radicais Conservadores
futuro passado
presente
Figura 4
A rosa-dos-ventos ideológica
Centro
social-democratas liberais
Esquerda Direita
socialistas conservadores
anarquistas tradicionalistas
Esquerda Direita
comunistas fascistas
Extrema
trução;
Prestígio ocupacional que hierarquiza os “grupos de status” em fun-
Figura 5
SD
socialistas conservadores
anarquistas tradicionalistas
comunistas fascistas
Pelo punho empunhando uma rosa, até hoje adotado pela Interna-
cional Socialista — embora a maior parte dos partidos políticos a
ele filiados professe de fato um ideário social-democrata e empregue
práticas do mesmo teor;
Pelo famoso “A” circulado dos anarquistas, destacado numa bandeira
Bem-Estar Social.
tos da sociedade civil por meio das leis, mas, principalmente, deve
empenhar-se em assegurar o pluralismo — a liberdade de consciência
154 Poder, Cultura e Ética nas Organizações
Clivagens elucidativas
A metáfora espacial sinaliza algumas ambiguidades que decorrem das
vizinhanças entre correntes ideológicas. Por exemplo, o que diferencia os
anarquistas dos comunistas, se ambos são ferrenhos anticapitalistas e revo-
lucionários de pura cepa? O que distingue conservadores e tradicionalistas,
se ambos cultivam as instituições sedimentadas ao longo do tempo? Como
demarcar o espaço próprio dos conservadores e dos liberais? O que faz
dos social-democratas o que são e dos socialistas o que vieram a ser? Não
seriam os tradicionalistas protofascistas? O que separa os comunistas e os
fascistas, tão semelhantes nesse totalitarismo que dissolve as individuali-
dades num todo único?
Veremos que, além da linha imaginária clássica que divide as esquerdas
e as direitas, há outras três possíveis linhas divisórias: duas diagonais e
uma horizontal que, de forma bastante esclarecedora, seccionam a lua em
metades ou em dicotomias. Vamos explorar esses recortes.
Figura 6
socialistas conservadores
Libertária
Autoritária
anarquistas tradicionalistas
comunistas fascistas
Na matriz autoritária:
Na matriz libertária:
ria”;41
Na direita tradicionalista e conservadora, e na extrema-direita fas-
Figura 7
As práticas políticas
social-democratas liberais
reformistas continuístas
revolucionários reacionários
comunistas fascistas
Figura 8
“MODERNOS”
privatistas
socialistas conservadores
comunistas fascistas
ou nos distritos;
Funciona de modo permanente, já que mantém atividades no inter-
no tempo;
Conecta cada reivindicação profissional, no âmbito da empresa, a
quadros;
Não inscreve simpatizantes no partido, senão nas “organizações de
massa”;
Visa a organizar uma competente vanguarda para fazer a revolução,
fortaleza que desfruta de apoio nas massas, uma organização rígida que
uma obediência cega anima e que uma vontade fanática inspira.
Figura 9
A concepção de partido
social-democratas liberais
(associações) (círculos)
pragmáticos
socialistas (comitês) conservadores
(seções) (clientelas)
ideológicos
anarquistas (núcleos) tradicionalistas
(coletivos) (ligas)
comunistas fascistas
(células) (milícias)
Figura 10
emulação
socialistas conservadores
cooperação competição
anarquistas tradicionalistas
antagonismo
comunistas fascistas
Os valores cruciais
Nessa mesma linha de raciocínio, é interessante destacar que alguns
valores cruciais iluminam as ideologias como verdadeiras chaves axioló-
gicas. A saber:
166 Poder, Cultura e Ética nas Organizações
Figura 11
As chaves axiológicas
social-democratas liberais
liberdade
socialistas conservadores
igualdade ordem
anarquistas tradicionalistas
comunistas fascistas
5. A cultura nas organizações 167
Figura 12
“Substituísmo” ideológico
social-democratas liberais
CIDADÃOS
(empresários
e gestores)
socialistas conservadores
SUBALTERNOS AUTÔNOMOS
(trabalhadores (empresários e
e autônomos) latifundiários)
anarquistas tradicionalistas
TRABALHADORES
(gestores)
comunistas fascistas
168 Poder, Cultura e Ética nas Organizações
Notas
1. Os símbolos são formados por três elementos: um significante ou algo que toma o lugar de outro
elemento (por exemplo, a estátua equestre do Duque de Caxias); um significado ou aquilo que
foi substituído (o próprio Duque de Caxias); a significação ou a relação entre o significante e
o significado (a figura histórica do Duque de Caxias como Patrono do Exército e comandante
5. A cultura nas organizações 169
vitorioso de muitas batalhas). Ernst Cassirer, aliás, definiu o homem como “animal simbólico”,
não só por representar as coisas por palavras e conceitos, mas também por ser capaz de manipular
a realidade de modo simbólico.
2. Saber não se confunde com ciência. Trata-se de um conjunto de aquisições intelectuais, de
evidências ou de informações mais ou menos sistematizadas e que podem ser transmitidas por
um processo pedagógico. Assim, em relação à ciência, o conceito de saber assume muito maior
abrangência e generalidade e não supõe necessariamente um discurso demonstrativo.
3. Eis alguns exemplos de evidências ideológicas, irrespondíveis porque enunciados como crenças
ou atos de fé: os olhos não mentem, o sol é um disco menor que a Terra e gira em torno dela; as
mulheres são naturalmente inferiores, porque os homens são mais fortes fisicamente e a Bíblia
consagra tal estatuto; os judeus são sovinas, porque está em seu sangue, todos sabem disso; os
negros são preguiçosos por natureza, basta olhar para eles; os caboclos são indolentes, porque
esta é a sina dos mestiços; duas coisas faltam aos brasileiros — educação e vergonha na cara.
4. Somente a ciência produz conhecimentos: os demais saberes são apreensões do mundo ou
cognições com outro teor, como será visto logo adiante. Quando se diz, por exemplo, “existem
oportunidades iguais para todos”, reconhece-se que no sistema capitalista os canais de ascensão
social estão abertos, de forma radicalmente diferente do que acontece nas sociedades de castas e
nas sociedades estamentais. Mas desconhece-se o fato de que os pontos de partida na “luta pela
vida” são desiguais: o filho de um favelado não tem as mesmas condições objetivas que os filhos de
empresários ou de gestores para aproveitar boa parte das oportunidades abertas. E por que isso?
Por causa do déficit educacional que ele acumula, pela pobreza de seu repertório simbólico, pela
carência de recursos econômicos e até pela falta de um competente “capital de relações sociais”.
Não incorporar explicações que tenham base empírica e que estejam abertas a críticas significa
validar o discurso ideológico. Outro exemplo: quando se acredita que o preço das mercadorias
resulta tão somente da relação entre oferta e procura no mercado, desconhece-se o processo de
produção e a participação do trabalho na formação do valor. Ou ainda, quando se olha um bastão
enfiado na água pela metade, ele parece quebrado: reconhece-se a evidência, mas desconhece-se
o fenômeno da refração do bastão sobre ele mesmo. Eis então a distância que separa a ilusão ide-
ológica do conhecimento científico: o conhecimento da realidade não é acessível imediatamente;
só pode ser estabelecido pelo raciocínio e pela investigação sistemática.
5. Tal paradigma é contestado pelo racionalismo-crítico de Karl Popper, que advoga o princípio
da falsificação e sentencia que as proposições devam ser testáveis. Para Popper “uma proposição
torna-se ‘falsificável’ desde o momento em que aparece um enunciado observacional capaz de
contradizê-la, isto é, a partir do momento em que podemos deduzir, desta proposição, a negação
de um enunciado observacional. Assim, a proposição universal ‘todos os cisnes são brancos’ não
é verificável, mas falsificável. Em contrapartida, a proposição existencial ‘há corvos brancos’ não
é falsificável, mas verificável” (Japiassu, Hilton. Introdução ao Pensamento Epistemológico. Rio
de Janeiro: F. Alves, 1977, p. 94).
6. Chauí, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Editora Ática, 1994, p. 251.
7. Muitas pessoas, porém, não sendo especialistas, tratam os conhecimentos científicos como caixas-
pretas, isto é, os endossam confiando na autoridade dos peritos ou dos cientistas. Quando muito,
e se a teoria se prestar a tanto, fazem alguns testes parciais para verificar se há concordância entre
a teoria e a experiência do dia a dia.
8. As espécies têm naturalmente um “campo perceptivo”, uma relação complexa entre elas mesmas e
os objetos percebidos: as aves de rapina, os olhos do sapo ou do gato percebem as coisas de forma
diversa. Entre os homens, a diferenciação não é só de ordem natural, mas é também cultural: os
caiçaras vêem cardumes no mar que nenhum citadino enxerga; os esquimós apreendem centenas
de matizes no branco da paisagem; a noção de tempo para os homens do campo, pautada pelas
estações e pelo ritmo das semeaduras e das colheitas, é radicalmente diversa da dos trabalhadores
industriais, pautados pelo relógio e pelas fichas do controle da produção. Quaisquer evidências
são, portanto, aprendidas: primeiro “reconhecemos” os eventos, depois os “conhecemos”. Sem
noções e conceitos prévios, não conseguimos distinguir os fenômenos e passamos batidos: olha-
mos, mas não vemos; ouvimos, mas não escutamos; respiramos, mas não cheiramos; provamos,
mas não degustamos; tocamos, mas não sentimos.
170 Poder, Cultura e Ética nas Organizações
9. Ver Chauí, Marilena. Op. cit., pp. 314-333. Diz a autora: “a arte é concebida como expressão,
transformando num fim aquilo que para as outras atividades humanas é um meio. É assim que
se diz que a arte faz ver a visão, faz falar a linguagem, faz ouvir a audição, faz sentir as mãos
e o corpo, faz emergir o natural da Natureza, o cultural da Cultura. Aqui, a arte é revelação e
manifestação da essência da realidade, amortecida e esquecida em nossa existência cotidiana,
reduzida a conceitos nas ciências e na Filosofia, transformada em instrumento na técnica e na
economia”.
10. É interessante distinguir cultura de civilização: enquanto a cultura está sempre associada a uma
coletividade identificável (sociedade, região, cidade, classe social, categoria social, organização)
e pode ser dividida em subculturas que discriminam componentes de uma dada formação social, a
civilização designa um conjunto mais vasto, abrange várias sociedades humanas e abarca inúmeras
culturas. É nesse preciso sentido, por exemplo, que se fala de civilização ocidental, composta pelas
culturas anglo-saxônicas, latino-americanas, alemã, latinas, escandinava etc.
11. Adaptação não significa conformismo passivo, mas também variâncias e inovações. A aceitação
dos padrões culturais vigentes não congela as possibilidades de modificá-los, em particular nas
sociedades contemporâneas.
12. Um bebê dos morros cariocas, adotado e educado na Itália ou na Suécia, se comporta como italiano
ou sueco em quaisquer circunstâncias e não apresenta qualquer resquício de sua origem. A tolice
de que o “gingado”, por exemplo, “está no sangue” pode ser facilmente refutada quando um
jovem desses é convidado a dançar samba — sua falta de “molejo” ou de jogo de cintura então
se torna patente e risível.
13. Eis padrões culturais que os brasileiros repudiam: a mutilação do clitóris das moças púberes
entre muçulmanos africanos e a poligamia islâmica; o infanticídio dos bebês femininos entre os
chineses ou a redução dos pés das mulheres chinesas para fins estéticos; a antropofagia entre os
tupinambás e a couvade indígena; a morte consentida dos velhos esquimós, devorados por ursos
brancos, quando se tornam bocas inúteis. Em contrapartida, padrões brasileiros deixam outros
povos inconformados: a corrupção endêmica e a “cultura da esperteza”; o descontrole inflacioná-
rio que perdurou durante décadas; a predominância das relações pessoais em relação às relações
contratuais; o vezo do bacharelismo burocrático; o cipoal inextricável de leis e regulamentações;
e o jeitinho para dar conta desses processos kafkianos.
14. O moral costuma ser baixo quando há frustração ou barreiras à satisfação de necessidades, e
costuma ser alto quando as necessidades são satisfeitas ou tendam a sê-lo. Por exemplo, depois
de um aumento salarial ou de uma distribuição de bônus, melhora significativamente o clima
organizacional. O contrário ocorre quando há demissões ou quando algumas atividades são
terceirizadas, com o consequente remanejamento de áreas e de posições.
15. Birnbaum, Norman. “L’étude sociologique de l’idéologie (1940-1960)”, in La Sociologie Con-
temporaine. Londres: Basil Blackwell, 1962, vol. IX.
16. Gurvitch, Georges. La Vocation Actuelle de la Sociologie. Paris: Presses Universitaires de France,
1963, vol. II, pp. 287-288. Raymond Boudon, em sua obra A Ideologia (São Paulo: Editora
Ática, 1989, p. 56), conclui com respeito à teoria da ideologia de Marx: “Concordaremos sem
dificuldades em classificar esta teoria geral como irracionalista: os homens adotam, à sua revelia,
ideias falsas porque são movidos por forças inconscientes que escapam a seu controle e que os
submetem, seja a seus interesses (no caso dos dominantes), seja aos interesses dos dominantes
(no caso dos dominados).”
17. Weltanschauungen para os alemães e outlooks para os anglo-saxões.
18. A natureza dos homens e da sociedade, as relações entre os agentes sociais, as relações entre
os homens e o meio ambiente, a interpretação da história, o sentido da vida e o critério da
verdade.
19. Cada qual vê a sociedade e vive nela em perspectiva, isto é, segundo a perspectiva particular que
tem dela, em decorrência do lugar que ocupa, das funções que desempenha e das vantagens de
que usufrui (Rocher, Guy. Op. cit., vol. 4, p. 268).
20. Não é à toa que os secretários ideológicos dos partidos comunistas foram chamados “agitpro”
(secretários de agitação e propaganda) e que os diferentes veículos da mídia chegam a expressar
diversas correntes de opinião.
5. A cultura nas organizações 171
21. O Partido Social Democrata alemão, no Congresso de Godesberg, em 1957, enunciou claramente
sua ruptura com o socialismo e abandonou o marxismo como base doutrinária.
22. A corrente formava um Clube que se reunia num antigo convento de dominicanos ou jacobinos;
daí a denominação.
23. É interessante lembrar que parte considerável dos militantes do Partido Comunista Alemão aderiu
ao Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (Nazista), após a subida ao poder de
Hitler. Movimento inverso ocorreu na Alemanha Oriental quando as tropas soviéticas acabaram
impondo o socialismo estatista. Depois do desmonte da União Soviética, em 1991, a Frente de
Salvação Nacional, articulada na Rússia contra os reformistas, arautos da economia de mercado,
reuniu comunistas, fascistas e czaristas (tradicionalistas), numa frente ampla de extremistas.
24. Ver o Capítulo 2 no tocante ao desenvolvimento do capitalismo social.
25. Essa concepção já se encontra em duas obras anteriores do autor: A Política dos Anos 70 no Brasil.
São Paulo: Econômica Editorial, 1982, pp. 60-61, e Classes, Regimes..., pp. 247-286.
26. Ver, por exemplo, a análise das votações ocorridas entre 1988 e 1994 na Câmara dos Deputados
brasileira, realizada pelos cientistas políticos Argelina Figueiredo e Fernando Limongi, pesquisa-
dores do Cebrap — Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Os resultados mostraram que
os partidos políticos daqueles anos críticos não eram peças de ficção, a filiação partidária dizia
muito a respeito do voto provável do parlamentar, as votações tendiam a dividir o plenário de
acordo com os padrões ideológicos clássicos e que estes eram claramente identificáveis (Folha
de São Paulo, 17 de julho de 1995). Contudo, na primeira década do século XXI, o populismo
bonapartista dos dois governos do presidente Lula amalgamou o velho clientelismo patrimonialista
com o sindicalismo corporativista. Em decorrência, os partidos políticos acabaram ideologica-
mente emasculados, dando momentaneamente razão aos detratores das ideologias (pelo menos
no Brasil).
27. Para os homens de esquerda, quem se diz de centro costuma camuflar opiniões de direita. No
Brasil, muitos dos políticos de direita rotulam a si próprios como centristas, espicaçados pela
influência que a intelligentsia das décadas de 1950 e 1960 legou, sendo ela então majoritariamente
de esquerda, o que tornou pejorativa a denominação “direita”. Em contrapartida, os direitistas
chegam a desconfiar do centro, considerando-o uma espécie de disfarce para os esquerdistas que
não se assumem.
28. O critério é clássico e foi avalizado por Norberto Bobbio que considera a direita e a esquerda
como termos antitéticos, além de excludentes (ninguém pode ser simultaneamente de direita e de
esquerda) e exaustivos, a saber, uma doutrina ou um movimento só pode ser ou de direita ou de
esquerda. (Direita e Esquerda: razões e significados de uma distinção política. São Paulo: Editora
da Universidade Estadual Paulista, 1995.)
29. As diferenças sociais não são desigualdades sociais. Confundir esses dois tipos de conceitos leva
a inúmeras aberrações e a pseudo-argumentos que são discriminatórios, porque a igualdade não
corresponde ao nivelamento ou à indistinção: ser igual não significa apenas ter direitos idênti-
cos ou alcançar amplo respeito às suas peculiaridades. Porque há desigualdade social quando o
acesso real aos meios de produção for franqueado a uns e vedado a outros, quando alguns têm
seus interesses defendidos pelo Estado em detrimento de outros. Isso produz a fratura em classes
sociais e um desfrute amplamente diferencial dos meios de subsistência. Por exemplo: deixar de
discriminar as mulheres no processo de seleção para um emprego, na promoção dentro da carreira
profissional ou na remuneração que auferem, não lhes confere por si só igualdade; é também
preciso assegurar-lhes a licença-maternidade e o acesso a uma creche para seus filhos pequenos.
De modo que a igualdade também passa pelo reconhecimento e pela validação das diferenças;
supõe a vigência prática de estatutos e de interesses diferenciais. A igualdade existe à medida
que “as diferenças não mais fazem diferença”. Para tanto, é indispensável que todos tenham os
mesmos pontos de partida e que as diferenças individuais ou sociais não se traduzam em acessos
distintos às condições de existência social. Ver mais adiante a nota 32.
30. Nem chegam a constituir o famoso “saco de batatas”, formado pelos camponeses franceses da
época de Napoleão III, na acepção historicista de Marx. Ou seja, não são um agrupamento que
padece de consciência de classe, embora possua condições objetivas para desenvolvê-la. Nem muito
172 Poder, Cultura e Ética nas Organizações
menos formam os “quase-grupos” de Ralf Dahrendorf, porque não dispõem de interesses latentes
que se transformariam em interesses manifestos. E quando isso ocorre? Se tomarem consciência
de sua especificidade e se fundarem um movimento com um programa explícito de ação. Ou seja,
os agregados estatísticos não possuem interesses objetivos que os contrapõem empiricamente a
outros agrupamentos.
31. É possível pensar num “sistema de apartheid social” em que os privilegiados criem espaços ex-
clusivos, deixando os espaços públicos para a população carente: a escola pública, a segurança
pública, a saúde pública, o transporte público, a previdência social. Ficam então os privilegiados
encastelados em seus condomínios fechados e policiados, trafegam em automóveis com portas
trancadas e janelas fechadas, ou em veículos blindados, negociam com organizações que dispõem
de segurança própria, estudam em escolas privadas, filiam-se a empresas de medicina de grupo ou
a companhias de seguros-saúde, e aderem aos planos de previdência privada. Como muito bem
diz Roberto Pompeu de Toledo: “Os ricos criam seus sistemas particulares. E o que é público fica
reservado aos pobres, como se fosse uma benemerência do Estado, uma obra de caridade, não
um serviço a retribuir pelos impostos pagos. O resultado não é apenas que os dois lados nunca
se cruzam, pois a um deles reservou-se um espaço exclusivo. É também que a escola pública, o
hospital ou o transporte público ficam condenados a serviços de segunda classe, privados que
foram das pressões de quem mais influência tem na sociedade. Se os ricos tivessem de usá-los, o
padrão de exigência sobre eles seria outro” (Revista Veja, 22 de maio de 1996). Aqui é preciso
entender que ricos e pobres, embora sejam denominações distributivas e fluidas, dão a impressão
que se convertem em estamentos, justamente em função das segregações estabelecidas entre eles.
Basta olhar para o cotidiano daqueles que padecem dos entraves e das carências, dos bloqueios
e das violências que alguns poucos não sofrem. Por exemplo, as esperas nas filas e os longos
tempos de percurso nos transportes coletivos, lentos e precários (e isso desde que possam pagar
o preço das passagens, pois, caso contrário, eles se locomovem a pé); a insegurança e o medo
incessantes nos cortiços ou nos barracos das favelas, em que reinam quadrilhas de valentões ou
de traficantes de drogas; a carência de água potável, de esgotos, de coleta de lixo, de sanitários,
de chuveiros e de privacidade; as horas de angústia e de dor nas salas de espera dos postos de
saúde superlotados e dos hospitais públicos, somadas aos atendimentos desleixados e muitas
vezes ineptos; a ausência de policiamento nos bairros periféricos e o estigma da pobreza que
transforma cada qual em suspeito de ofício aos olhos dos policiais; a falta de equipamentos de
lazer e de esportes, convertendo os bares em locais de entretenimento, de desavenças e de morte;
as escolas depredadas, com professores volantes, desmotivados e medíocres, seguindo currículos
esquizofrênicos. Em suma, essas são faces de marginalização e de horror, que lembram muito os
universos concentracionários que os regimes totalitários edificaram.
32. Reiterando: o respeito às diferenças naturais (de gênero, etnia, compleição, idade) e às diferenças
individuais (diversidade nas capacidades, nos fins almejados e no empenho para alcançá-los)
correspondem à conquista de direitos democráticos. Melhor ainda: correspondem a passos para
tornar plenas as liberdades, mas não esgotam necessariamente a problemática da igualdade social.
Pois esta significa acesso não diferenciado aos meios de subsistência, além de irrestrito exercício
dos direitos civis, políticos e sociais que a cidadania pressupõe.
33. Com exceção dos anarquistas, as esquerdas sempre consideraram o aparelho de Estado como o
grande instrumento para a promoção de transformações sociais ou, pelo menos, para a redistri-
buição de renda, de maneira que caberia às massas apoderar-se dele.
34. Os fascistas italianos portavam camisas negras e seu símbolo era o feixe de varas (fascio em italiano)
dos antigos lictores romanos, oficiais que acompanhavam os magistrados e andavam munidos de
uma machadinha para as execuções da justiça. Acontece que, pela preeminência do poderio alemão
e de suas conquistas territoriais, o símbolo nazista acabou representando a extrema-direita.
35. A Holanda, por meio de políticas de desregulamentação e de um pacto social, poderia servir
de modelo na Europa. Em vez de altos impostos e de enormes benefícios pagos pelo sistema de
seguridade social, promoveu ampla criação de empregos e baixa generalizada dos custos sociais;
tornou facílimo abrir uma empresa. Escreve Pepe Escobar, a partir de um estudo publicado pela
Economist Intelligence Unit (Gazeta Mercantil, 22 de maio de 1997): “O sucesso do modelo ho-
5. A cultura nas organizações 173
landês representa uma sintonia fina: uma certa liberalização da economia acoplada com algumas
modificações no ‘welfare state’. Criou-se assim uma espécie de terceira via — calvinista? — entre
o velho modelo europeu e o neoliberalismo norte-americano.”’
36. Bobbio, Norberto. Op. cit., pp. 115-116.
37. Embora os comunistas não defendam formalmente tal ideia, o assalto ao poder (o Partido Comunista,
seguindo os ensinamentos de Lênin, é uma vanguarda operária, uma elite de puros e duros formada
por profissionais da revolução), bem como as práticas vigentes no socialismo real desembocaram
nesse tipo de sociedade orgânica, com uma nomenklatura reinando soberana.
38. Isso significa que a ditadura, nas suas vertentes totalitárias e autoritárias, se contrapõe à democracia
quer representativa, quer participativa.
39. Ainda que no pensamento original do marxismo-leninismo a violência deva apenas resumir-se ao
período da ditadura do proletariado — após o quê o Estado deveria definhar em paralelo com a
extinção das classes sociais —, o socialismo real sempre manteve um pensamento autoritário.
40. Norberto Bobbio denominou de “utopia invertida” o fracasso do socialismo real. Escreveu a
esse respeito: “Ocorreu-me, não há muito tempo, de falar, a este propósito, de ‘utopia invertida’
após ter constatado que uma grandiosa utopia igualitária, a comunista, acalentada por séculos,
traduziu-se em seu contrário na primeira tentativa histórica de realizá-la” (Op. cit., p. 123).
41. Os liberais toleram as disparidades de renda, riqueza e escolaridade e até chegam a considerar a
desigualdade um “efeito colateral de uma economia produtiva” (S. Holmes, citado por Norberto
Bobbio. Idem, p. 127).
42. No capítulo intitulado “As ideologias econômicas”.
43. Duverger, Maurice. Os Partidos Políticos. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970, pp. 39-96.
44. Um bom exemplo da emulação é a da distribuição de conceitos nas salas de aula: não há lugar
para o primeiro colocado ou para o primeiro da classe à moda antiga, porque todos podem atin-
gir o melhor conceito; as posições prestigiadas ou vantajosas não ficam restritas a um número
determinado de agentes, porque há tantas posições quanto proponentes que possam alcançá-las.
Um autêntico jogo de soma positiva corresponde à convergência dos interesses gerais, grupais e
pessoais. Uma ilustração sugestiva é a da coleta de lixo nas cidades: ganham todos os munícipes
com a destinação final do lixo em aterros sanitários; lucra a empresa que presta o serviço para a
prefeitura; e toda e qualquer família se beneficia com a retirada do lixo defronte de sua casa.
45. Isso não quer dizer, é claro, que nenhuma das outras ideologias recuse a cooperação, mas que
não se trata de sua chave de decifração.
46. Os interesses públicos podem beneficiar apenas uma parcela da população: tanto na antiga Roma
republicana como no mundo capitalista sempre houve uma parte da população marginalizada.
Em contrapartida, os interesses comunitários são necessariamente universais, obrigatoriamente
extensíveis a cada um dos componentes de dada coletividade.
6
As ideologias políticas
Figura 13
As ideologias agrupadas
libertários
Centro
social-democratas liberais
pluralista
socialistas conservadores
anarquistas tradicionalistas
jacobina
comunistas fascistas
Extrema autoritários
6. As ideologias políticas 177
litários;
A direita clássica une os tradicionalistas e os conservadores e forma
A ideologia tradicionalista
Às vezes confundido com o fascismo do qual é um dos fortes prede-
cessores, o tradicionalismo costuma ser assimilado ao conservadorismo,
sem ter sua especificidade reconhecida. É bem verdade, no entanto, que
os próprios políticos tradicionalistas adotam o rótulo de conservadores.
Ora, basta lembrar as presenças marcantes dos integrismos ou dos fun-
damentalismos4 — multiformes nas suas roupagens religiosas, étnicas ou
nacionais — para compreender o profundo abismo que separa o tradicio-
nalismo das demais ideologias, em particular do conservadorismo. E mais:
basta observar o ativismo efervescente de seus adeptos, com seus ímpetos
radicais, para ter a percepção de um campo ideológico muito preciso que
reclama a própria identidade.
Os tradicionalistas postulam-se como homens íntegros e puros, paradig-
mas de virtude, herdeiros de um passado glorioso, verdadeiros intérpretes
da revelação original. Tendem a se considerar predestinados, cruzados de
uma missão terrena. Clamam contra a crise de autoridade que acomete
as sociedades modernas e denunciam o desrespeito a instituições sacras
como a Ordem, a Religião, a Propriedade, a Pátria, as Forças Armadas,
a Família, a Magistratura, o Magistério. Aspiram, por fim, a uma espécie
de retorno a uma Idade de Ouro em que cada qual ocuparia o lugar que
Deus lhe destinou. Posto isso, vamos alinhar as expressões mais marcantes
do tradicionalismo:5
178 Poder, Cultura e Ética nas Organizações
maioria;
Rejeição do mito da igualdade e reconhecimento da desigualdade
ideais patrióticos;
Repúdio ao liberalismo e aos seus postulados (voto universal, demo-
A ideologia conservadora
Na dinâmica das sociedades e das organizações, toda coalizão de forças
que institucionaliza seu poder tende a adotar uma ideologia conservadora.
Expressa então o establishment e assume a hegemonia no imaginário social.
Ocorre que o senso comum confunde erroneamente o conservadorismo
com imobilismo ou cega manutenção do statu quo. Ora, para preservar
propriedades, posições de prestígio, poderes, privilégios ou um modo pe-
culiar de vida, os conservadores disfarçam mudanças de equilíbrio com a
roupagem das mudanças estruturais, praticam o princípio de “mudar sem
mudar”, exercitam com maestria a adaptação às circunstâncias, antecipam-se
180 Poder, Cultura e Ética nas Organizações
com sabedoria aos novos ventos e resguardam o que mais prezam. Vejamos
então os caracteres distintivos da ideologia conservadora:7
Concepção de uma sociedade submetida às mesmas leis que regulam
os organismos vivos: cada qual desempenha uma função necessária e
indispensável e as partes componentes se ajustam funcionalmente;
Culto à manutenção da ordem social estabelecida, embora esteja
A ideologia liberal
O liberalismo político constitui historicamente uma linha de ruptura
com a matriz autoritária que informa as ideologias conservadora, tradi-
cionalista, fascista e comunista. No essencial, funda-se na afirmação dos
direitos individuais, que reclamam salvaguardas contra o arbítrio dos go-
vernantes e que postulam uma moral individualista, cujo caráter está longe
de ser egoísta, pois não promove os interesses pessoais à custa dos interes-
ses dos outros.10 Na sua origem durante a Idade Moderna, o liberalismo
ergueu-se contra o absolutismo monárquico, os monopólios corporativos,
o protecionismo econômico, os privilégios aristocráticos, a intolerância e a
perseguição religiosas. Combateu todas as formas de controle econômico e
de repressões políticas e simbólicas; posicionou-se na contramão dos mer-
cantilismos e do sectarismo dogmático das igrejas e expressou os interesses
das burguesias mercantil, manufatureira e industrial, em contraposição aos
interesses dos latifundiários e das corporações de ofício.
Hoje em dia, o liberalismo político representa a besta-fera dos tota-
litários que abominam a “democracia burguesa” ou representativa. Nas
últimas décadas, entretanto, ganhou preeminência nos países ocidentais,
pelo menos do ponto de vista retórico. Vejamos agora seus postulados e
traços principais:11
182 Poder, Cultura e Ética nas Organizações
mo: separação dos poderes para obter controle mútuo por meio
de freios e de contrapesos; previsão de garantias para os cidadãos
através de uma carta de direitos; controle do Parlamento por uma
opinião pública bem informada e pela possibilidade de não recon-
duzir os eleitos — curta duração dos mandatos e alternância no
poder;
Concepção de uma sociedade aberta e pluralista, com forte defesa
social, uma vez que direitos e deveres são igualmente essenciais para
que haja sociabilidade e consenso;
Percepção última de que a desigualdade econômica é incontornável,
limites da lei;
Funções do Estado que não se restrinjam à mera garantia do “mínimo
A ideologia social-democrata
A exemplo do liberalismo político, muitos invocam em vão o nome da
social-democracia, desconhecendo seus princípios doutrinários. Em muitos
aspectos, o socialismo democrático dos dias de hoje corresponde àquilo
que já foi a social-democracia em priscas eras. Em razão disso, várias con-
fusões se estabelecem, e alguns autores utilizam esses dois ideários como se
fossem intercambiáveis. Contribui muito nesse sentido o nome consagrado
da Internacional Socialista, essa associação supranacional de partidos de
trabalhadores cuja atuação é essencialmente social-democrata. Todavia,
depois da queda do Muro de Berlim e da conversão de muitos partidos
184 Poder, Cultura e Ética nas Organizações
A ideologia socialista
Desde logo, relembremos um fato à saciedade: embora o socialismo
tenha inspirado todas as esquerdas, a ideologia socialista de caráter
democrático não se confunde com cada uma delas. Hoje, comunis-
tas, anarquistas e social-democratas se diferenciam cabalmente dos
socialistas. Por exemplo, os comunistas continuam advogando uma
tomada violenta do poder e a destruição das instituições vigentes por
meio da instalação da ditadura do proletariado. Com qual propósito?
O de expropriar os expropriadores. Os anarquistas se opõem a qualquer
forma institucionalizada de autoridade política, hierarquia ou proprie-
dade que não seja coletiva18 e rejeitam tanto a mecânica eleitoral como
a parlamentar. Os social-democratas romperam com os ideais socialistas
da supressão das classes sociais (perspectiva estratégica) e com o Estado
dirigista e benfeitor (posição tática). Abandonaram também a pretensão
de estatizar os principais setores da economia e, ao revés, programam
sua desestatização numa clara negação do Estado produtor. Finalmen-
te, os socialistas de hoje são os social-democratas de ontem, porque os
social-democratas contemporâneos querem chegar à igualdade preser-
vando a liberdade, enquanto os socialistas não hesitariam em sacrificar
a liberdade em nome da igualdade. Vamos então listar alguns alicerces
do socialismo democrático:19
A ideologia anarquista
A exemplo das outras ideologias políticas, os anarquistas reivindicam
inúmeros precursores. Mas, desde logo, é preciso conceder-lhes um paren-
tesco com os movimentos religiosos utópicos e milenários que acredita-
vam em transformações súbitas da realidade social e formavam pequenas
comunidades conspirativas e quase clandestinas. À semelhança desses
movimentos, aliás, os anarquistas nunca fizeram revoluções duradouras.
Aliás, durante todo o século XX, por causa da rebeldia irrestrita contra
as autoridades estabelecidas e contra as variadas formas de repressão (a
anarquia equivale a ausência de governo), os anarquistas colecionaram
inimigos em todos os quadrantes. Acabaram sendo confundidos pelo
senso comum com pregadores da desordem, libertinos devassos e radicais
incorrigíveis.
Eles representam a ala mais extremada dos libertários e se chocam
de frente com os comunistas que, para demolir os alicerces da sociedade
capitalista, consideram indispensável uma fase em que haja a ditadura do
proletariado e a apoteose do Estado, algo absolutamente impensável para
os anarquistas. De outro lado, as ideologias de direita (com exceção dos
liberais políticos) veem os anarquistas como subversivos e imorais, sujeitos
6. As ideologias políticas 189
de um mundo sem policiais nem regras, sem patrões nem deveres, sem
sinais de “proibido” em lugar algum; comunidade em que os desejos
venham a ser saciados e a intuição venha a prover a verdade;
Virtudes apregoadas: ajuda mútua, companheirismo, cooperação,
A ideologia comunista
Karl Marx assestou a crítica mais contundente, porque melhor fun-
damentada, ao sistema capitalista. Preconizou a eliminação da extração
da mais-valia e o estabelecimento de uma sociedade comunista em que
prevaleceria o princípio distributivo “de cada um segundo suas capacida-
des, a cada um segundo suas necessidades”. Mas essa sociedade só poderia
constituir-se depois de vencida a etapa socialista, em que o salário ainda
corresponderia ao esforço de cada um ou seria proporcional à qualidade
e à quantidade de trabalho produzido.
A sociedade socialista, todavia, não coincide com a economia estatista
que se estabeleceu na União Soviética, porque nela a socialização dos meios
de produção — apropriação coletiva do sobretrabalho — não passou de
uma formalidade. Pois, de fato, encobriu a apropriação corporativa dos
excedentes por parte da nomenklatura, numa plena estatização dos meios
de produção. Além do mais, a “ditadura do proletariado”, que deveria ter
sido de curta duração, eternizou-se nas mãos da burocracia partidária.
Daí a pergunta: a fase da violência revolucionária corresponde ou não
à etapa socialista? Para os comunistas ortodoxos, a resposta é claramente
positiva; para outros, a ditadura do proletariado deveria ser um período
transitório que prepara o socialismo, ou seja, seria uma fase preliminar.
O que seria então a sociedade socialista para estes? Uma sociedade sem
classes e sem Estado que, por sua vez, precederia a etapa superior ou a
sociedade de abundância comunista — o salto do “reino da necessidade”
para o “reino da liberdade”.23 Vejamos então o que acabou formando
a ideologia comunista, depois dos mais variados aportes de teóricos e
revolucionários.
Para a etapa comunista:
A ideologia fascista
Há uma pluralidade de fascismos, assim como há comunismos,
anarquismos, socialismos, liberalismos, tradicionalismos. Por exemplo,
existem diferenças entre o racismo militante do nacional-socialismo e
o estatismo corporativista do fascismo italiano. Todos eles, porém, têm
denominadores comuns. O fascismo nasceu de dois ventres: o da extrema-
esquerda insurrecional e o do tradicionalismo mais exaltado. E, apesar das
origens mescladas e dos discursos desordenados, é possível reconhecer a
poderosa especificidade da ideologia fascista em seu caráter nacionalista
e integrador.
Filosofia da força, o fascismo prega o retorno ao gênio nacional e clama
pela solidariedade do sangue. Assume um expansionismo ultranacionalista
para resgatar o orgulho da nação à procura de seu “espaço vital” — ter-
ras para povoar, mercados para as indústrias, fontes de matérias-primas,
colônias que correspondam ao dinamismo demográfico. Considera-se a
única fortaleza possível contra males demoníacos como o comunismo
internacional, a plutocracia capitalista, a corrupção endêmica, o “divisio-
nismo” produzido pela democracia parlamentar e o parasitismo dos judeus
(“povo mundial” que aspira a dominar os povos que o acolheram).
O fascismo repousa em princípios aristocráticos: no privilégio da von-
tade e da energia de homens superiores; na repulsa ao sistema demagógico
da maioria e ao peso morto do número; na rejeição do racionalismo ilumi-
nista e da degeneração moral dos intelectuais. É nacionalista antes de tudo,
porque traduz a temporalidade eterna e a primazia absoluta da nação. É
socialista à sua maneira porque, ao extirpar de sua doutrina qualquer eco
marxista, protege a unidade do povo contra as ambições desenfreadas dos
indivíduos e se converte em meio político a serviço da comunidade contra
os plutocratas. Vejamos suas proposições mais características:24
6. As ideologias políticas 195
da ordem natural das coisas e abre caminho para a seleção dos mais
fortes (darwinismo social);
Construção de uma sociedade que ponha fim às lutas de classes
Republicanos ou monarquistas;
Populares ou elitistas;
Laicos ou místico-religiosos;
rialistas;
Centralizadores e unitaristas ou descentralizadores e regionalistas;
Democráticos ou antiparlamentares;
xenófobos.26
Notas
1. Sugerimos ao leitor conhecer seu próprio perfil ideológico antes de prosseguir, respondendo ao
exercício que se encontra no Web site da Editora (Anexo II). O resultado terá a valia de estabelecer
um ponto de referência para uma apreciação crítica das ideologias.
2. O Terceiro Setor é o setor voluntário, não lucrativo — em contraste com o primeiro setor estatal
e o segundo setor privado — e se compõe de organizações não governamentais, associações,
fundações, movimentos sociais, entidades beneficentes etc. que são criadas pela sociedade civil
com o objetivo de prestar serviços públicos. Por exemplo, nas áreas da saúde, educação, cultura,
proteção ao meio ambiente, defesa dos direitos do cidadão ou de apoio à criança e ao adolescente,
à terceira idade e aos portadores de deficiência. Suas receitas se originam de doações do setor
privado ou de orçamentos governamentais, além de eventual geração própria de renda.
3. Utilizaremos amplamente nosso livro Classes, Regimes, Ideologias..., pp. 262-286 e também nos
valeremos de Touchard, Jean. História das Ideias Políticas. Lisboa: Publicações Europa-América,
1970, além de outros livros que serão citados oportunamente.
4. Tanto o integrismo quanto o fundamentalismo se baseiam na interpretação literal dos textos
canônicos. Por exemplo, a guerrilha Taleban introduziu no Afeganistão um Ministério da Pro-
pagação da Virtude e de Combate ao Vício: baniu a televisão, a música, as casas noturnas, os
cinemas e as bebidas alcoólicas; fechou as escolas para meninas e proibiu as mulheres de trabalhar
fora de casa, forçando-as a sair à rua vestidas com a burka — o longo camisolão que as cobre
inteiramente, incluindo o rosto; adotou também a sharia, o código legal muçulmano, que prevê
a amputação de pés e mãos de ladrões, o açoite em praça pública dos consumidores de bebidas
alcoólicas e o apedrejamento até a morte de adúlteras e de traficantes de drogas.
5. Ver em particular a conferência de Umberto Eco, proferida na Columbia University dos Estados
Unidos, “A nebulosa fascista” (Folha de S. Paulo, 14 de maio de 1995), que lista alguns traços do
protofascismo que, de fato, correspondem ao tradicionalismo.
6. Sir Edward Coke, citado por Carl J. Friedrich (Tradição e Autoridade em Ciência Política. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1974, p. 30), escreve que “aquilo que foi requintado e aperfeiçoado por
todos os homens mais sábios na antiga sucessão de eras e provado e aprovado por experiência
contínua não pode, a não ser com grande risco, ser alterado e mudado”.
7. Ver entre outros Macridis, Roy C. Ideologias Políticas Contemporâneas. Brasília: Editora Univer-
sidade de Brasília, 1982, pp. 91-107.
8. Como dizia Walter Bagehot: “Uma das maiores dores da natureza humana é a dor de uma ideia
nova”.
9. Como já vimos, trata-se do repertório de opiniões consagradas, frases feitas, juízos sumários,
estereótipos, máximas, preconceitos, motes e clichês.
200 Poder, Cultura e Ética nas Organizações
10. Não devemos confundir individualismo com egocentrismo ou egoísmo, mas entendê-lo em seu
sentido filosófico: doutrina que aprecia o indivíduo como o valor mais elevado e que vê o bem
comum como imperativo para a realização dos interesses particulares.
11. Ver, entre outras obras clássicas, Sabine, George H. História das Ideias Políticas. Brasil: Editora
Fundo de Cultura, 1964, pp. 653-728; e Macridis, Roy C. Op. cit., pp. 33-90.
12. As liberdades políticas consistem em direito de voto e de ser eleito, em direito de participar da
vida política e de definir não só os governantes, mas também as políticas a serem adotadas. Na
visão liberal, essas liberdades estão intimamente associadas à democracia representativa.
13. Os direitos individuais integram as liberdades civis e consistem em liberdades de pensamento,
expressão, consciência, religião, circulação, reunião, associação, petição, além dos direitos a vida,
propriedade, dignidade, honra e reputação, inviolabilidade do lar e da correspondência, proteção
legal, julgamento justo, igualdade perante a lei, asilo político, nacionalidade, tratamento justo,
privacidade, direito de não ser submetido a trabalho compulsório e de não sofrer torturas. As
liberdades econômicas são, principalmente, liberdades de contrato que supõem adesão voluntária
e ausência de controles estatais, apesar de limitadas pelo respeito ao bem comum; direito de
herança e de acumular riquezas; liberdade dos indivíduos de produzir, comerciar e consumir;
liberdade de escolher livremente seu trabalho, dispor de sua própria propriedade e satisfazer às
suas necessidades num sistema de livre iniciativa.
14. No Congresso de Godesberg de 1957, o Partido Social Democrata alemão anunciou sua ruptura
com o socialismo e abandonou o marxismo como base doutrinária. Um importante estudioso
da social-democracia e do socialismo, Adam Przeworski, sentenciou: “Os social-democratas não
conduzirão as sociedades europeias ao socialismo” (Capitalismo e Social-Democracia. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989, p. 61).
15. Ver, por exemplo, David, Maurício Dias (org.). Social Democracia Hoje. Rio de Janeiro: Fundação
Teotônio Vilela, 1990.
16. Trata-se dos direitos a educação, trabalho, cultura, lazer, remuneração equitativa e satisfatória, salário
igual para trabalho igual, proteção contra o desemprego, a enfermidade, a invalidez, a viuvez e a
velhice, padrão de vida decente garantido pelo acesso à saúde e à habitação, ao saneamento básico
e ao transporte coletivo, à assistência especial para a maternidade e para a infância.
17. Reformas sociais tais como seguro-desemprego, previdência social, pensões aos velhos e aos
inválidos, auxílios à maternidade, proteções às crianças, seguros contra acidentes, redução das
horas de trabalho, serviços de saúde gratuitos, ensino público, transporte coletivo subsidiado,
direitos trabalhistas, programas de moradias populares etc.
18. Aceitam, portanto, a propriedade comunitária, comunal ou cooperativa.
19. Ver, por exemplo, Meyer, Thomas. Socialismo Democrático: uma introdução. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, Friedrich Ebert Stiftung, 1983; e Radice, Giles. Socialismo Democrático. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 1967.
20. Muitos homens de esquerda descreem que, num regime de alternância dos partidos no poder,
reformas irreversíveis e cumulativas sejam possíveis. Apoiam-se na dinâmica histórica recente
quando desnacionalizações e eliminações de programas sociais têm ocorrido em boa parte dos
países ocidentais, “invertendo o curso da história”.
21. Distribuição e tratamento de água, esgotamento sanitário, fornecimento de energia elétrica e de
gás, transporte ferroviário.
22. Ver, por exemplo, Joll, James. Anarquistas e Anarquismo. Lisboa: Publicações Dom Quixote,
1970; Proudhon. O que é a Propriedade? Lisboa: Editorial Estampa, 1975; e Bakunin, Miguel.
Obras Completas. Madrid: Las Ediciones de la Piqueta, 1977.
23. Ver, por exemplo, Srour, Robert Henry. Modos de Produção..., pp. 386-399; Christenson, Reo
M. et alii. Ideologias & Política Moderna. São Paulo: Ibrasa, 1974; Rocker, Rudolf. As Ideias
Absolutistas no Socialismo. São Paulo: Editora Semente, 1981; e Meyer, Thomas. Op. cit.
24. Ver, por exemplo, Buron, Thierry e Gauchon, Pascal. Os Fascismos. Rio de Janeiro: Zahar Edi-
tores, 1980; e Mosca, G. e Bouthoul, G. História das Doutrinas Políticas. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1962.
25. Diz-se: “É absurdo conceder o mesmo direito de voto ao imbecil e ao homem inteligente.”
6. As ideologias políticas 201
26. Ver, por exemplo, Touchard, Jean. Op. cit., volumes 6 e 7; e Macridis, Roy C. Op. cit., pp. 299-
312.
27. As encíclicas que dão corpo à doutrina social cristã (Rerum Novarum, 1891, do Papa Leão XIII;
Quadragesimo Anno, 1931, do Papa Pio XI; Mater et Magistra, 1961, do Papa João XXIII; Popu-
lorum Progressio, 1967, do Papa Paulo VI) não consideram a questão social como um problema
de ordem econômica, mas como um problema de ordem moral. Definem a propriedade privada
como um direito natural, uma vez que assegura condições dignas de vida a seus proprietários.
Contudo, detidos em grande volume, os bens só são considerados uma “propriedade justa” desde
que empregados em benefício da coletividade, ou seja, desde que cumpram sua finalidade social
e gerem harmonia entre as classes sociais. Cabe ao Estado reorientar as forças econômicas para o
bem-estar coletivo, promover a justiça social e conter o direito de propriedade em limites justos
e razoáveis. Assim, a distribuição de renda deve ser regida por princípios morais, e o trabalho
não pode ser comprado como mercadoria. Em consequência, o valor do salário deve remunerar
o que foi realizado e satisfazer às necessidades do trabalhador e de sua família; sem o quê, viola
a lei moral e pratica uma injustiça. Os trabalhadores devem participar da gestão e dos lucros das
empresas.
7
As ideologias econômicas
A ideologia neoliberal
Besta negra das esquerdas, o neoliberalismo faz as vezes de ideologia
hegemônica do processo de globalização e chega a ser assimilado, por ra-
zões táticas, ao próprio capitalismo.5 Não se confunde com o liberalismo
clássico do século XIX, arauto do laissez-faire, laissez-passer e do Estado-
vigia (“anarquia mais o delegado”).6 E por quê? Porque não resume as
funções estatais à proteção do regime de livre concorrência e à guarda da
ordem jurídica. Agrega outras ações à órbita pública: a administração da
justiça e a realização subsidiária de tudo aquilo que a iniciativa privada não
se interessa por financiar ou por cuidar — por exemplo, as obras públicas
e a educação básica.
O neoliberalismo nasceu na década de 1940 e foi uma reação teórica
contra o Estado intervencionista e de bem-estar social.7 Apoia-se numa
ideia central de Friedrich Hayek que sentenciava: qualquer limitação dos
mecanismos de mercado por parte do Estado detona um processo irre-
versível de supressão das liberdades individuais e leva à constituição de
um regime totalitário. Ou melhor, todo planejamento conduz à ditadura,
206 Poder, Cultura e Ética nas Organizações
coletiva das forças sociais, faz do lucro uma força motriz, cultua a
eficiência e as vantagens competitivas, permite o desabrochar das
ambições individuais, estabelece a harmonia universal a despeito e
além da consciência dos indivíduos;
O comunismo, o fascismo e o nazismo são variantes socialistas que,
Os porquês do planejamento
Todas as ideologias econômicas que questionam o automatismo do
mercado ou a “mão invisível” de Adam Smith, partem da crítica à capaci-
dade do mercado para se autorregular. Consideram necessário algum tipo
de interferência estatal na economia. Estão convencidas de que:
Figura 14
social-democratas liberais
Planejamento PRIVATISTAS
indicativo “modernos”
socialistas
conservadores
Planejamento Autorregulação
flexível “mão invisível”
anarquistas
tradicionalistas
Planejamento
ANTIPRIVATISTAS central
“arcaicos”
comunistas fascistas
212 Poder, Cultura e Ética nas Organizações
A ideologia social-liberal
Norberto Bobbio, o célebre filósofo político italiano, defende um
compromisso entre o liberalismo político e o socialismo econômico.
Propõe que os direitos individuais e a propriedade capitalista sejam res-
peitados, em concomitância com os direitos sociais e a participação dos
trabalhadores.20 Ergue-se contra as tendências estatistas do socialismo e
do comunismo, mas pretende uma intervenção moderada do Estado para
corrigir as falhas do mercado. Considera sinônimos o social-liberalismo
e a social-democracia atual.21 De maneira que um fosso separa as duas
variantes da matriz liberal: o social-liberalismo, de modo diverso do neo-
liberalismo, encampa o planejamento indicativo (programação econômica
ou intervenção branda do Estado) e pressupõe a universalização dos di-
reitos sociais através de políticas públicas compensatórias especificamente
voltadas para os desamparados.
Vale a pena insistir, no entanto, sobre o fato de que o social-liberalismo
é uma ideologia econômica, enquanto a social-democracia é uma ideolo-
gia política, razão pela qual os liberais políticos também comungam com
o ideário social-liberal. Vamos então alinhar os caracteres da ideologia
social-liberal que perpassam tanto o pensamento dos liberais políticos
contemporâneos, quanto o dos social-democratas:22
recursos, deve ser temperado pela ação indutora do Estado, pelo esfor-
ço permanente para dissolver privilégios e pela execução de políticas
públicas compensatórias que visem a alcançar o bem-estar social;
O Estado deve restringir-se a operar como indutor para alcançar o
com dignidade;23
Reforma e fortalecimento do Estado para resgatar a dívida social,
A ideologia estatista
Os defensores do estatismo consideram que, através de métodos admi-
nistrativos ou do planejamento central, a regulação da economia atingirá
píncaros de eficiência e de produtividade. Opõem-se diametralmente aos
defensores da supremacia da “mão invisível” ou do automatismo do mer-
cado, que vêem o interesse geral como síntese dos interesses particulares.
E têm na economia de comando da antiga União Soviética o exemplo mais
acabado de seu projeto.
É interessante lembrar que o culto do Estado, como entidade transcen-
dente, serviu de pano de fundo ao intervencionismo estatal. Suas fontes
encontram-se na celebração do Estado prussiano por muitos autores, bem
como na filosofia de Hegel. Paradoxalmente, ainda, tal postura reponta
bem viva nas obras de Marx, um dos expoentes do “deperecimento do
Estado”, e inspirou o jacobinismo leninista e a barbárie inaudita do tota-
litarismo soviético. Por sua vez, e por caminhos transversos, os fascistas
7. As ideologias econômicas 215
A ideologia nacional-desenvolvimentista
Parte do pressuposto de que as nações precisam passar do “polo tradi-
cional”, ou da sociedade agrária exportadora, para o “polo moderno”, ou
da sociedade industrial autônoma. Seriam assim reproduzidas as etapas do
desenvolvimento econômico da Europa Ocidental e dos Estados Unidos.
Ora, esse movimento só se viabiliza se o Estado intervier para acelerar a
ação dos fatores dinâmicos e para remover os obstáculos que se interpõem
à superação do subdesenvolvimento ou do atraso — baixo PIB, hábitos de
consumo inadequados, crescimento demográfico explosivo.
As razões do subdesenvolvimento são rastreadas nas relações entre
centro e periferia e no processo de “colonização de exploração” empreen-
dido pelos países que se empenharam na expansão marítima e comercial
da Idade Moderna. De maneira que a chave para transitar da sociedade
tradicional para a sociedade moderna repousa no processo de industriali-
zação rápida, promovido e protegido pelo Estado. E o modelo a implantar
é o da substituição das importações, que supõe mudanças induzidas “de
fora” nos padrões de consumo vigentes. Para atingir tal fim, impõe-se
uma ação racional e planejada que somente o Estado pode levar a cabo,
porque os problemas a serem enfrentados têm caráter estrutural: acumu-
lação insuficiente de capital; dependência do comércio externo; consumo
conspícuo dos segmentos de renda alta; ausência de um empresariado
empreendedor. No essencial, então, o protecionismo sobrepuja e afasta o
antigo livre-cambismo.
Vejamos alguns traços significativos da ideologia nacional-desenvol-
vimentista:28
Figura 15
mercado
socialista social-liberalismo
nacional-
desenvolvimentismo neoliberalismo
Dirigista
anarquistas
tradicionalistas
pacto entre
comunidades
estatismo
comunistas fascistas
“Sujeitos históricos”
Embora o Estado tenha um papel central no discurso nacional-desen-
volvimentista, há um mito mobilizador que quase o ofusca: a grandeza
nacional só será alcançada se as forças dormentes do país forem sacudidas
ou se as potencialidades latentes da Nação forem trazidas à tona. Pois o
destino reserva um lugar de destaque ao país que souber mobilizar suas
energias para superar o “atraso” e vencer os obstáculos que se interpõem
em seu caminho. Numa leitura historicista da realidade social, diríamos
que a nação se torna sujeito da história, categoria privilegiada de análise.
Para converter-se em nação, o País deve reeditar os centros desenvolvidos e
deve se alçar a um patamar em que haja soberania e autonomia nacionais,
prosperidade e paz social, progresso e bem-estar do povo.
Em contrapartida, nos totalitarismos fascista ou comunista ou na
ideologia econômica estatista, malgrado as repetidas menções à nação, a
categoria privilegiada acaba sendo a do Estado fusionado com o Partido
único: ente inclusivo, proprietário coletivo dos meios de produção, pla-
nejador onisciente, educador e protetor do povo.
Por sua vez, no neoliberalismo, o privilégio recai sobre a categoria de
indivíduo independente e livre, mestre de seu destino, usina de iniciativas e
da criatividade, supremo árbitro de seus riscos e de seus interesses, centro
responsável por seus atos e escolhas.
Por fim, no social-liberalismo, repontam a democracia das associações
voluntárias e a composição das divergências. Destaca-se o pluralismo dos
interesses articulados em entidades representativas e abre-se o espaço para
que a categoria privilegiada de análise seja a sociedade civil ou a cidadania
organizada.
Tipologia do Estado
Vamos agora resgatar a tipologia do Estado que se estabelece nas rela-
ções entre Estado e economia e que se encontra embutida nas quatro ideo-
7. As ideologias econômicas 223
Notas
1. Adam Smith concebia o mercado como um sistema de decisões totalmente descentralizadas,
baseadas no interesse individual, capaz de funcionar de maneira harmônica como se fosse guiado
por uma mão invisível. De um lado, a divisão do trabalho aumenta exponencialmente a produtivi-
dade; de outro lado, a oferta e a procura se equilibram, à medida que o lucro excedente (prêmio
esperado pelos produtores das mercadorias produzidas em quantidades inferiores à demanda)
atrai novos fatores de produção e provoca ipso facto o aumento da oferta e a baixa dos preços.
O inverso ocorre quando os bens produzidos o são em excesso (conforme Mário Henrique
Simonsen. “Prefácio: Economia de Mercado e Intervenção Estatal.” In: Rossetti, José Paschoal
et alii. Economia de Mercado: Fundamentos, Falácias e Valores. Ação, Comitê de Divulgação do
Mercado de Capitais, 1985).
2. A pluralidade das raízes do liberalismo econômico é paradigmática, como tantas outras ideologias.
Vai da apologia do mercado, numa espécie de darwinismo social, até correntes preocupadas com
os excessos do egoísmo e com o espaço a ser reservado ao bem comum.
3. Ver os “sistemas de regulação” no capítulo hospedado no Web site da Editora.
4. Os bens privados são de consumo divisível e são consumidos de modo voluntário; trazem satisfa-
ção apenas para quem os consome e são por isso mesmo bens rivais, pois implicam sacrifício de
consumo pelos demais agentes (ninguém pode usar a minha camisa ao mesmo tempo em que eu
o faço). Os bens públicos, em contrapartida, não são divisíveis, seu consumo é coletivo e seu uso
por parte de um indivíduo não prejudica as possibilidades de consumo por parte dos demais (o
fato de eu sintonizar uma estação de rádio não impede que um milhão de outras pessoas também
o faça). Exemplos de bens públicos: a segurança pública; a administração da Justiça; a iluminação
pública; o acesso às ruas, praças ou praias; a coleta e o tratamento de esgotos; a captação e a
distribuição de água tratada; os serviços de engenharia do tráfego; a emissão e a circulação da
moeda; as garantias legais para a vigência de contratos; a previdência social; a defesa do território
nacional; a emissão e a circulação de papel-moeda; as garantias legais para a vigência de contra-
tos; os direitos individuais. Os bens semipúblicos, por sua vez, combinam as qualidades dos bens
públicos e as dos bens privados: eles são divisíveis, mas como sua produção ou seu consumo têm
efeitos muito intensos sobre a sociedade como um todo, eles adquirem uma inegável relevância
coletiva. É o caso patente da educação escolar: o aluno é identificável, ocupa uma vaga, impede
que outros o façam e o custo do serviço prestado pode ser quantificado; porém, os amplos be-
nefícios da formação educacional dos agentes, que se irradia por toda a sociedade, superam de
longe os benefícios individuais. O Estado, então, provém os serviços educacionais, notadamente
os referentes à educação básica (vide, entre outros, Rossetti, José Paschoal et alii. Op. cit., pp.
120-122). Merecem citação também a medicina preventiva e as doenças infecto-contagiosas,
uma vez que esses serviços preenchem claramente os requisitos dos bens semipúblicos. Os demais
224 Poder, Cultura e Ética nas Organizações
tratamentos de saúde, no entanto, são bens privados. De modo que financiar sua gratuidade com
tributos decorre de uma decisão política e não de um parecer técnico. Ora, caso se universalize
a educação gratuita (do jardim de infância à universidade) e caso se ofereçam saúde e seguridade
social de forma integral e igualmente gratuita, os bens semipúblicos se converteriam em bens
públicos. Ampliando os exemplos, pode-se dizer que o Estado fica nos limites próprios dos bens
semipúblicos ao dar subsídios ao transporte coletivo e à construção de habitações populares que,
pelos seus caracteres, poderiam ser conceituados como bens privados.
5. Numa crítica socialista virulenta, Frei Betto escreve: “O mercado é global. Abarca os miliardários
de Boston e os zulus da África, os vinhos da mesa papal e as peles de ovelhas que agasalham
os monges do Tibete. Tudo se compra, tudo se vende: alfinetes e afetos; televisores e valores;
deputados e pastores. Parafraseando Marx, o mercado não cria apenas um objeto para o su-
jeito; hoje, cria um sujeito para o objeto. Para o mercado, honra é uma questão de preço.” E
mais: “O mercado é como Deus: invisível, onipotente, onisciente e, agora, com o fim do bloco
soviético, onipresente. Dele depende a nossa salvação. Damos mais ouvidos às pitonisas do
mercado — os indicadores financeiros — que à palavra das Escrituras” (O Estado de S. Paulo,
28 de agosto de 1996).
6. A expressão laissez-faire, laissez-passer, le monde va de lui-même, foi atribuída a Gournay, um
dos pensadores da fisiocracia francesa. Ela resume de forma soberba a crença na ordem natural
que conduziria automaticamente ao bem-estar social; seria autorreguladora e autoperpetuadora,
prosperando à margem de qualquer interferência da burocracia do Estado. Nesse preciso sentido,
o liberalismo econômico britânico difere do liberalismo econômico francês, pois admitia comedida
ingerência do Estado (não o aceitava, é claro, como agente empresarial nem como concorrente
da iniciativa privada).
7. Walter Lippmann, em sua obra (The Good Society. Boston, Mass: Little Brown & Co., 1943),
criou a expressão neoliberalismo, criticando a versão clássica do laissez-faire.
8. Ver Hayek, Friedrich A. O Caminho da Servidão. Porto Alegre: Editora Globo, 1977 e Merquior,
José Guilherme. Algumas Reflexões sobre os Liberalismos Contemporâneos. Rio de Janeiro: Insti-
tuto Liberal, 1991. Escreve Eduardo Giannetti da Fonseca (“Quem tem medo do neoliberalismo?
— 1”, Folha de S. Paulo, 24 de julho de 1994): “O neoliberalismo compreende uma enorme
variedade de correntes e posições. Sua ascensão mundial, a partir dos anos 1980, está associada
a um movimento intelectual para o qual convergiram pelo menos três escolas de pensamento:
1) a austríaca ou subjetivista (Popper, Hayek e Kirzner); 2) a monetarista de Chicago (Friedman,
Stigler e Becker) e 3) a escolha pública de Virginia (Downs, Buchanan e Tullock). Todas elas se
ergueram contra o alargamento das fronteiras econômicas do Estado, o paternalismo e o cer-
ceamento da liberdade individual. Todas defenderam o mercado regido pelo sistema de preços
contra o planejamento central, a economia mista e o ativismo macroeconômico.”
9. No regime da lei, o governo pauta suas ações por normas fixadas e anunciadas de antemão: isso
exclui a arbitrariedade e o poder discricionário. Escreve Hayek (Op. cit., pp. 69-70): “Dentro
das regras conhecidas do jogo, o indivíduo é livre de procurar realizar suas finalidades e desejos
pessoais, certo de que os poderes do governo não serão empregados no propósito deliberado de
fazer malograr os seus esforços.”
10. O primeiro-ministro tcheco, Vaclav Klaus, escreveu num artigo da revista The Economist: “O
sistema social da Europa ocidental está demasiadamente amarrado por regras e pelo controle
social excessivo. O Estado de bem-estar, com todas as suas transferências de pagamentos gene-
rosos desligados de critérios, esforços ou méritos, destrói a moralidade básica do trabalho e o
sentido de responsabilidade individual. Há excessiva proteção e burocracia. Deve-se dizer que a
revolução thatcheriana, ou seja, antikeynesiana ou liberal, parou — numa avaliação positiva — no
meio do caminho na Europa ocidental e é preciso completá-la”, citado por Perry Anderson (“Pós-
Neoliberalismo — as Políticas Sociais e o Estado Democrático”, O Estado de S. Paulo, 20 de maio
de 1995). Mas é interessante lembrar que Milton Friedman propôs a criação de um “Imposto de
Renda negativo” para os que ganham menos, no intuito de substituir o vasto arsenal de benefí-
cios fornecidos em espécie pelo Estado (programas de habitação, educação, saúde, alimentação,
7. As ideologias econômicas 225
jamais rompeu com o sistema de valores do pensamento liberal. Embora este último preconizasse
o papel dos gastos públicos como suplemento do dispêndio privado, jamais advogou um Estado
produtor de bens e de serviços que competisse com a iniciativa privada.
21. À semelhança, aliás, de Miguel Reale, o jurista e filósofo brasileiro (O Estado de S. Paulo, 28 de
janeiro de 1995).
22. Ver, por exemplo, Partido da Social Democracia Brasileira. Os Desafios do Brasil e o PSDB. Brasília:
s. ed., 1989; e Cardoso, Fernando Henrique. Mãos à Obra Brasil: Proposta de Governo. Brasília:
s. ed., 1994.
23. Cardoso, Fernando Henrique. A Nova Esquerda. São Paulo: Instituto de Formação Política do
Partido da Social Democracia Brasileira, 1995, pp. 29-31.
24. Cardoso, Fernando Henrique. “Reforma e Imaginação” (Folha de S. Paulo, 10 de julho de
1994).
25. Ver Bettelheim, Charles. Planificação e Crescimento Acelerado. Rio de Janeiro: Zahar Editores,
1968; Hoffmann, Helga. Op. cit. e Nove, Alec. Op. cit.
26. Pelo “método dos balanços” atinge-se a correspondência entre os recursos disponíveis e sua apli-
cação: matérias-primas, equipamentos, energia, recursos financeiros e força de trabalho visam
a metas físicas para um grande número de produtos considerados críticos (na União Soviética
foram entre 800 e 1.000 produtos).
27. A propriedade é apenas formalmente do povo; de fato, ela é corporativa, ou seja, condicional e
partilhada. Os gestores do Partido único, das empresas estatais, do aparelho de segurança e das
Forças Armadas formam uma nova classe social — a nomenklatura —, e apropriam-se em con-
junto do sobreproduto social. De que forma? Ao aceder a privilégios e mordomias, prerrogativas
vinculadas às posições hierárquicas que eles ocupam.
28. Ver, por exemplo, Pereira, L. C. Bresser. Desenvolvimento e Crise no Brasil. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 1968; Cardoso, Miriam Limoeiro. Ideologia do Desenvolvimento — Brasil:
JK-JQ. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977; Cardoso, Fernando Henrique. Empresário Industrial e
Desenvolvimento Econômico. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1964; Figueiredo, Vilma.
Desenvolvimento Dependente Brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978; Ianni, Octavio.
Estado e Planejamento Econômico no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971. Vale
lembrar que a Cepal da década de 1950 (organismo da ONU sediado em Santiago do Chile) teve
um relevante papel na formulação da ideologia nacional-desenvolvimentista.
29. Setores de esquerda postularam e postulam ainda um nacionalismo exaltado: recomendam a
estatização das empresas estrangeiras, a coibição da remessa de lucros e a proibição de qualquer
investimento vindo de fora. Consideram esses passos indispensáveis para a eliminação dos privi-
légios, a mudança da correlação de forças e a construção do socialismo.
30. Siderurgia, indústria petrolífera, transportes, telecomunicações, energia, serviços públicos, produ-
ção de cimento e de fertilizantes, química de base, mecânica pesada. Os investimentos diretos são
realizados pelo Estado não só pela falta de recursos por parte da iniciativa privada, mas porque
o planejamento econômico se tornaria impraticável se o Estado não dispusesse de controle sobre
esses setores.
31. Trata-se de uma pseudodemocracia, pois delegada, em que o líder carismático personifica o povo
e paira acima das contradições sociais ao estilo bonapartista. Em troca do apoio popular, refém
do culto da personalidade, o líder promete atender às aspirações dos deserdados, recém-chegados
à cidadania formal, e mobiliza as “bases populares”. Não há uma pedagogia democrática, pois se
estabelece uma comunicação direta entre o líder e as massas, numa clara relação personalista e
autoritária. O apelo à fusão da sociedade com o Estado é mistificador. Na América Latina, cabem
perfeitamente no figurino os casos do peronismo na Argentina, do varguismo e do janismo no
Brasil e do militarismo esquerdizante de Velasco Alvarado no Peru.
32. A própria Cepal abandonou o modelo de substituição de importações e, em seu lugar, passou a
defender o modelo de “transformação produtiva com equidade”. Trata-se de aposta na estabilidade
macroeconômica como condição necessária para o desenvolvimento, nas intervenções seletivas
da política pública e na inserção internacional das economias periféricas, ainda que mantido um
7. As ideologias econômicas 227
nível modesto de proteção contra as economias centrais (entrevista de Gert Rosenthal, secretário
executivo da Cepal, à revista Rumos do Desenvolvimento, julho de 1996).
33. As empresas estatais chinesas, além de despejar produtos medíocres na economia e não consegui-
rem pagar suas contas, não são apenas meras empregadoras, pois garantem moradia, transporte,
educação, saúde, recreação e aposentadorias aos trabalhadores e suas famílias. Ademais, não
pagam seus empréstimos bancários nem recolhem impostos (ver artigo da Forbes, publicado pela
revista Exame, 24 de maio de 1995).
34. De 1990 ao início do novo século, o crescimento do PIB atingiu a espantosa média de 8,5%
anuais. E a entrada da China na Organização Mundial do Comércio vem mudando a geografia
comercial do mundo em função de seu peso altamente significativo. Ver, por exemplo, Jayme
Martins. “Na China da era Deng, não importa a cor do gato”, O Estado de S.Paulo, 22 de maio
de 2004.
8
A ética nas organizações
sobre eles. Ademais — e já num outro plano –, o ato é ilegal, uma vez que
infringe leis que visam a preservar a integridade física das pessoas e viola
o instituto da propriedade privada (o veículo, que é um bem, poderia ser
danificado).
cretas;
Verifica se as opções estabelecidas se coadunam com os padrões
morais ou os transgridem;
Formula um conjunto de ferramentas de análise de aplicação uni-
versal;
Fica no mesmo plano ocupado pelas chamadas disciplinas sistemá-
coletividades.25
sável por uma receita mundial anual de US$9,3 bilhões em 2001 e que
empregava 85 mil pessoas espalhadas em dezenas de países. Havia sido
a auditora da Enron, sétima maior corporação dos Estados Unidos, por
mais de dez anos. A Enron foi à bancarrota em 2002 quando foi denun-
ciada por manipular balanços contábeis desde 1997. Muito perturbada
com o ocorrido e no afã de dificultar as acusações que pesavam contra
seu cliente, a Arthur Andersen prontificou-se a eliminar fisicamente e a
apagar eletronicamente inúmeros documentos comprometedores. Feito
o serviço, cobrou por ele, emitindo a competente nota fiscal. Tudo isso
foi desvendado durante as investigações e coincidiu com o escândalo da
WorldCom — a segunda maior operadora de telefonia de longa distância
dos Estados Unidos —, que também reconheceu uma fraude monumental
de vários bilhões de dólares. Ocorre que a WorldCom também tinha suas
contas auditadas pela Arthur Andersen. Resultado: a tradicional empre-
sa de auditoria acabou entrando em colapso. Causa? Foi simplesmente
boicotada pelos clientes que, sabiamente, não admitiram associar-se com
quem havia conspurcado a própria reputação.33 Apesar de continuar muito
competente do ponto de vista profissional, a Arthur Andersen havia dila-
pidado seu patrimônio moral, a respeitabilidade que era a base essencial
de seu negócio.
Para quem duvida que existam no Brasil represálias de igual porte,
basta lembrar o caso do ex-senador Luiz Estevão: foi o primeiro senador
cassado por falta de decoro parlamentar em função de seu envolvimento
num escândalo de superfaturamento (construção do Tribunal Regional do
Trabalho de São Paulo). Dono do Grupo OK, que congregava 18 empresas
com 4 mil empregados e que faturava R$250 milhões no ano 2000, ficou
reduzido em 2003 a uma receita de R$12 milhões e a 350 empregados,
além de ter todos os seus bens mantidos indisponíveis por ordem judi-
cial. Em depoimento confessou passar 99% de seu tempo respondendo a
processos criminais.34
O poder de fogo dos clientes é ainda mais visível no caso que envolveu
a Botica ao Veado D’Ouro, farmácia de manipulação centenária fundada
em 1858. A Botica foi acusada de ter falsificado um remédio convencional
indicado para o tratamento de câncer de próstata, pertencente à Sche-
ring do Brasil. Depois de batida policial, um milhão de comprimidos do
Androcur foi encontrado num laboratório de sua propriedade chamado
Veafarm. Ocorre que os comprimidos não continham o princípio ativo...
Dez pacientes que faleceram na época podem ter tido a morte acelerada
246 Poder, Cultura e Ética nas Organizações
credibilidade.
O particularismo e o universalismo
As morais expressam padrões culturais, razão pela qual existem e
existiram milhares delas no mundo. Esses padrões são socialmente con-
vencionados e espelham condições históricas bem determinadas; são di-
versos no espaço e dinâmicos no tempo. Não há, pois, pautas universais e
imutáveis como alguns se comprazem em acreditar, nem há moral eterna
como muitas fés religiosas anunciam. Os romanos já ensinavam que os
costumes mudam com os tempos (o tempora, o mores). Afinal, toda co-
letividade cultiva um sistema próprio de normas morais que define, a seu
modo, o bem e o mal, o certo e o errado, o justo e o injusto, o legítimo e
o ilegítimo, as virtudes e os vícios.
Uma ilustração do relativismo cultural pode ser vislumbrada nas visões
comparadas sobre a sexualidade. Os filmes norte-americanos de meados do
século passado costumavam ter um final feliz (o happy end) que consistia
no enlace entre os namorados — seu selo era um casto beijo na boca e,
logo, o casamento consagrava uma vida harmoniosa para todo o sempre.
Sabemos infelizmente que, apesar dos votos solenemente proclamados pe-
los noivos no altar — compromissos de fidelidade e de mútuo apoio tanto
na bonança quanto nas agruras da vida —, esse doce futuro nem sempre
se dá. Atualmente, os filmes norte-americanos fizeram o aggiornamento
do fecho otimista e substituíram o beijo pelo intercurso sexual. Ora, mais
uma vez a realidade é madrasta, a começar pela incompatibilidade das
peles ou pela ausência de “química” entre os parceiros. Contudo, entre
o beijo selinho e o erotismo de alcova, que muitos filmes exibem, o sexo
preservou seu lugar de honra na mitologia norte-americana: antes implí-
cito, agora quase explícito. Mudou apenas a forma de encará-lo, fruto da
liberalização dos costumes.
Bem diversa é a mensagem que passam os programas de auditório no
Brasil: mulheres em trajes sumários expõem traseiros diante de câmeras
248 Poder, Cultura e Ética nas Organizações
seus clientes. Este caso nos remete ao altruísmo restrito que corresponde
a práticas de apoio mútuo que beneficiam um grupo ou alguns grupos.
Tanto pode ser praticado pelo 2o Setor (o lucrativo), como pelo 1o Setor
(o público) e o 3o Setor (o voluntário). O benefício grupal não prejudica
os interesses alheios e reforça os laços de afinidade existentes entre os
membros do grupo ou dos grupos envolvidos. O bem gerado é restrito,
porque não abarca a sociedade como um todo, embora possa provocar
reflexos benéficos de amplo espectro.
De maneira que a realização do bem grupal pode ocorrer de duas
maneiras distintas. Uma consensual, uma vez que o grupo age de forma
benevolente sem prejudicar outros, e isso nos reporta ao altruísmo restri-
to. Outra abusiva, uma vez que o grupo age de forma danosa e prejudica
outros, e isso nos reporta ao parcialismo.
Ora, esses dois conceitos nos lembram de chofre os dois anteriores,
em função das simetrias conceituais que apresentam. De fato, um indiví-
duo realiza bem pessoal seja de maneira autointeressada, seja de maneira
egoísta; um grupo realiza bem grupal seja maneira altruísta restrita, seja de
maneira parcial. Assim, autointeresse e altruísmo restrito, bem como egoís-
mo e parcialismo obedecem à mesma lógica: consensuais e universalistas os
primeiros; abusivos e particularistas os segundos. Contudo — e vale a pena
insistir nisso —, não são conceitos equivalentes, pois realizam interesses
de agentes diversos: indivíduos os primeiros; grupos os segundos.
Exempliquemos. São práticas altruístas restritas uma empresa montar um
SAC (Serviço de Atendimento ao Cliente) ou financiar cursos de pós-gradu-
ação aos executivos (ganham os clientes e os colaboradores respectivamente,
assim como ganha a própria empresa com os efeitos positivos produzidos).
São práticas parciais uma empresa vender produtos usados como novos
ou cometer espionagem econômica (perdem os clientes e os concorrentes,
embora ganhe a empresa). São práticas autointeressadas um indivíduo gozar
férias remuneradas em período negociado com sua chefia ou aceitar uma
promoção (ninguém sai prejudicado, embora o agente se beneficie com isso).
São práticas egoístas um indivíduo maquiar as informações sobre a carreira
profissional ou espalhar fofocas maliciosas a respeito de colegas (o agente
se beneficia à custa da empresa, de um lado, e dos colegas, de outro).
Nessas circunstâncias, quais os efeitos das escolhas feitas pelos agentes?
Procuram sempre um bem para si, o que é absolutamente natural. Todavia,
conseguem obtê-lo cometendo mal aos outros por meio de atos egoístas
ou parciais, vale dizer, lançam mão de práticas abusivas e particularistas.
8. A ética nas organizações 253
Figura 16
Bem/Mal Bem/Bem
Mal/Mal Mal/Bem
mal maior, quer dizer, escolher entre o mal e o mal. Eis uma combinatória
que traduz a extraordinária riqueza das análises éticas.
Vamos dar exemplos de escolhas entre o bem e o bem. Pagar uma dívida
em dia ou ajudar um amigo necessitado? Denunciar à Receita Federal a
empresa na qual se trabalha por maquiar dados de balanço ou recusar-se
simplesmente a compactuar e arriscar ser demitido? Apoiar colega que é
vítima de assédio moral e perder uma promoção certa ou manter-se neutro
e obter a promoção que resolverá as pendências financeiras da própria
família? Cursar um MBA exigente ou dedicar o escasso tempo livre aos
filhos adolescentes?
Agora, para entender as questões candentes levantadas pela problemá-
tica do “mal necessário” e do “mal menor” é preciso remeter-se às teorias
éticas. De fato, à semelhança das demais ciências, não há uma única teoria
que ocupe todo o espaço da investigação ética. No campo da sociologia,
por exemplo, é possível identificar três grandes matrizes teóricas que são
clássicas — a funcionalista, a weberiana e a materialista histórica. Na
ciência da moral, de igual modo, duas teorias éticas científicas são reco-
nhecidas — a teoria ética da convicção e a teoria ética da responsabilidade.
Ambas configuram, em última análise, dois modos radicalmente distintos
de tomar decisão.48
As teorias éticas legitimam as decisões morais ao fundamentá-las e ao
mostrar seus efeitos universalistas. São científicas, porque a contrapelo da
filosofia, são um “pensar com provas”: constituem discursos de demons-
tração, explicitam os fundamentos sociológicos tanto estruturais quanto
históricos dos dilemas enfrentados e, por conseguinte, captam o porquê
da adoção de tais ou quais cursos de ação.
O caráter abstrato-formal de seus conceitos confere-lhe a universalidade
indispensável para que possam ser investidos no conhecimento das inúme-
ras situações concretas que emergem em quaisquer tempos e sob quaisquer
céus. Por exemplo, o saber da medicina alopática pode ser investido no
conhecimento de quaisquer espécimes de Homo sapiens. Afinal, a biologia
humana é uma só. Da mesma maneira, decisões éticas existem em quaisquer
sociedades humanas, assim como são universais os dois modos de tomar
decisão — o de aplicar convicções universalistas às polêmicas morais (teoria
da convicção) ou o de elaborar soluções universalistas para os problemas
morais com base na análise de riscos (teoria da responsabilidade).
Vamos agora distinguir as duas teorias que conferem consistência às
decisões e as abrigam sob o guarda-chuva da razão ética. A teoria ética da
8. A ética nas organizações 259
convicção obedece a uma mecânica específica. Ela ensina que, para serem
justificadas, as decisões e as ações devem estrita obediência a um proto-
colo previamente estipulado, isto é, exigem conformidade a prescrições
ou a virtudes de caráter universalista. Vale dizer: as ações condizem com
as obrigações? Trata-se então de cumprir deveres, daí o relativo conforto
que a tomada de decisão provoca, uma vez que ela se vale de soluções
consagradas.
Por sua vez, a teoria ética da responsabilidade está animada por outra
dinâmica. Considera justificadas as decisões e as ações que atingirem fins
universalistas, resultados que interessem a todos os seres humanos. A
questão que se coloca é: quais as consequências presumíveis das ações?
Assumem-se riscos calculados obedecendo ao seguinte compasso: as ações
cujos malefícios forem maiores do que os benefícios carecem de justifi-
cação ética. Em outras palavras, não basta pretender fins universalistas, é
preciso também ter êxito na empreitada; não basta uma análise apurada, é
indispensável que ocorram os efeitos presumíveis sobre os agentes. Trata-
-se então de realizar uma análise situacional e um cálculo racional, donde
certa vertigem na tomada de decisão, uma vez que as incertezas perduram
até na fase de implantação da decisão.
Ambas as teorias éticas adotam por pressuposto a realização do univer-
salismo consensual pelo exercício de práticas autointeressadas ou altruístas.
Por quê? Porque as práticas egoístas ou parciais, como já o vimos, interes-
sam exclusivamente a alguns em detrimento de muitos, sem que existam
razões fundadas para tanto — sejam elas situações extremas ou condições
de viabilidade prática —, daí a carência de legitimidade ética.
A teoria ética da responsabilidade sustenta essa tese, aliás, com um ra-
ciocínio límpido. Vejamos o caso de um navio que esteja afundando e que
não disponha de botes salva-vidas em quantidade suficiente para acolher
todos os passageiros e tripulantes.49 Não havendo possibilidades concre-
tas de salvar todos (condições de viabilidade prática), não seria legítimo
imaginar que coubesse salvar um número menor, porém objetivamente
possível? Faz-se o que é factível fazer nessas circunstâncias, de modo a
melhor atender o interesse coletivo. Não se trata, é claro, de privilegiar
alguns em detrimento de outros, para não desembocar no particularismo
abusivo. Adota-se então o mal necessário, a saber, comete-se um sacrifício
para alcançar um bem maior.
A teoria ética da convicção defende a tese de outra forma: o que é de
interesse geral, salvar alguns ou salvar todos? Obviamente, salvar todos.
260 Poder, Cultura e Ética nas Organizações
Como não se pode fazê-lo e não se pode barganhar com vidas humanas,
isto é, decidir quem viverá e quem morrerá, o destino de cada qual fica
nas mãos de Deus ou da sorte.50
Assim sendo, na teoria ética da convicção, as decisões e as ações con-
substanciam pressupostos socialmente definidos e compartilhados, desde
que universalistas. Elas aplicam princípios ou ideais sine ira et studio (sem
raiva ou parcialidade). Se o bem comum não for realizado, não vem ao
caso: desde que cumpra suas obrigações, o agente não pode ser responsa-
bilizado pelos resultados das ações. No cerne da teoria ética da convicção
opera uma lógica formal do tipo “faça o que deve ser feito e aconteça o
que tiver de acontecer”. Quais são então os fatores que entram em linha
de conta? A coerência entre a ação e a intenção, a pureza das intenções, a
estrita consistência entre o feito e o socialmente esperado. Por exemplo,
se uma menina grávida com quinze anos, depois de ter implorado sem
sucesso a ajuda da mãe católica para realizar um aborto (ideia rejeitada
como pecado abominável), vier a morrer no parto, alguém culpará a mãe?
De forma alguma. Nem a própria mãe se sentirá responsável. Por que será?
Porque cumpriu o seu dever, deu curso a crenças coletivas amplamente
partilhadas, cometeu uma ação virtuosa, levou adiante uma ação racional
em relação a um valor universalista (não sacrificar a vida do feto). Se a
menina morreu, era seu destino, Deus assim quis, havia chegado sua hora.
Não foi a proibição do aborto que causou sua morte, foi o parto.51
Na teoria ética da responsabilidade, diferentemente, os propósitos que
orientam as decisões e as ações, bem como os resultados presumidos, só se
justificam se gerarem os benefícios prometidos. Cabe ao agente analisar as
necessidades e as dificuldades emergentes, assumir riscos calculados e agir
com as devidas precauções — cometer, pois, uma ação racional em relação
a fins universalistas. Mas não só: precisa necessariamente chegar às metas
pretendidas, isto é, executar corretamente as providências cabíveis. No
cerne da teoria ética da responsabilidade opera uma lógica prática do tipo
“faça o que for necessário para que ocorram efeitos benéficos”. Entram
em linha de conta a presunção da certeza e a eficácia do resultado.52 Por
exemplo, suponhamos que a menina grávida não tivesse pedido ajuda à
mãe dela, pois sabia de antemão que a resposta seria negativa. E supo-
nhamos ainda que ela tivesse recorrido ao pai e este tivesse patrocinado o
aborto da criança não desejada. Como ficaria a situação se a menina viesse
a falecer no aborto? Não há dúvida: o pai seria considerado responsável
pelo falecimento. Ele responderia por todas as consequências negativas
8. A ética nas organizações 261
uma vez que os não escolhidos têm grandes chances de vir a falecer,
mas evita-se que muito mais soldados morram, caso um ou outro
paciente grave monopolizasse a atenção da equipa cirúrgica (mal
maior).
Demitir funcionários para aliviar custos em empresa que passa por
Apreciados esses exemplos, vê-se que grande parte das decisões es-
tratégicas, nos planos político e empresarial, se inspira na teoria ética da
responsabilidade. E queira-se ou não, implica o aceite de certa dose de
“mal”. Ora, isso remete diretamente a um agudo debate em torno do uso
dos meios: será que certos fins justificam o uso de meios condenáveis ou
“impuros”?
Duas concepções aqui se contrapõem: a pureza dos meios versus a
justeza dos fins. Na primeira concepção, somente a pureza dos meios
legitima as ações, ou seja, cabe “fazer certas as coisas” sem se preocupar
com as consequências.
Na segunda concepção, a justeza dos fins legitima os meios adotados,
ou seja, cabe “fazer as coisas certas” porque boas consequências são in-
dispensáveis.
Nessa toada, Albert Camus sentenciou de forma lapidar: “São os meios
que justificam os fins”. Em paralelo, e de forma contundente, Hannah
Arendt, profundamente inquieta com as atrocidades dos totalitarismos,
alertou: “Aqueles que escolhem o mal menor esquecem rapidamente que
escolheram o mal. O argumento do ‘mal menor’ é um dos mecanismos
embutidos na maquinaria do terror e da criminalidade”. Assim, e em tese,
a teoria ética da convicção recusa os meios que impliquem lançar mão do
mal. Em contrapartida, a teoria ética da responsabilidade aceita o mal que
realiza mais bem ou que evita mal maior.
270 Poder, Cultura e Ética nas Organizações
Figura 17
Problema Exame de
consciência Decisão
Figura 18
Problema Elaboração
de cenários Decisão
Consequências Escolha do
Análise de riscos prováveis e melhor cenário
salvaguardas universalista
274 Poder, Cultura e Ética nas Organizações
A teoria da derrogação
A rigidez maniqueísta da teoria ética da convicção, em tese, não dá
guarida a razões de Estado ou a real politik que, em situações extremas,
a teoria ética da responsabilidade justifica.65 Todavia, quando o rigor
deontológico é colocado em xeque, entra em jogo a chamada “teoria da
derrogação”. Esta capitula exceções; encontra-se presente nos tratados de
teologia moral para uso dos confessores; está consolidada nos sistemas
jurídicos (lex specialis derogat generali).66 Em outras palavras, ressalvas
às normas morais são autorizadas em circunstâncias excepcionais: matar
em legítima defesa; não falar a verdade para um doente incurável; um
revolucionário mentir a seus captores para acobertar companheiros e
não revelar seus esconderijos. No estado de necessidade, igualmente, a
violação da ordem moral se justificaria como nos casos do furto famélico,
276 Poder, Cultura e Ética nas Organizações
Notas
1. É preciso sublinhar que nem todos os fatos sociais se revestem de um caráter moral: há um sem-
número de fatos neutros, portanto amorais, tal como pentear os cabelos, andar na rua, almoçar,
ler um jornal, ir ao trabalho ou ao supermercado, tomar banho, rir de uma piada, fazer contas,
participar de um partida de futebol, assistir a um filme, telefonar para um amigo etc. Contudo, se
280 Poder, Cultura e Ética nas Organizações
esses eventos ou seus desdobramentos vierem a afetar outrem, se não observarem ou transgredirem
normas que regem o que é considerado socialmente bom ou mau, muda seu estatuto: passam a
ser fatos morais. Por exemplo, assistir a um filme pornográfico no computador da empresa, ao
lado de colegas do sexo feminino, não é amoral, é imoral. Por quê? Porque fere regras de caráter
moral, que são corporativa e socialmente estabelecidas. No tocante à empresa, trata-se de uso
inapropriado de equipamento; quanto às colegas, elas podem se sentir constrangidas, para não
dizer ofendidas e até mesmo assediadas moralmente.
2. Na própria literatura sociológica, costuma-se também entender por domínio moral a superestrutura
social ou, mais especificamente, a dimensão simbólica do espaço social. Fala-se então da esfera
moral da sociedade em contraste com sua base material ou econômica.
3. Essas asserções valem, mutatis mutandis, para as organizações.
4. A educação moral e cívica foi introduzida em 1969, em caráter obrigatório, como disciplina ou
prática educativa. Tinha por finalidade oficial “a preservação do espírito religioso, da dignidade
da pessoa humana, dos valores espirituais e éticos, do aprimoramento do caráter, da compreensão
dos deveres cívicos, com obediência à lei e às instituições nacionais”.
5. Embora emblemática entre os latinos, a pluralidade de morais encontra-se tanto entre os gregos
politeístas quanto entre os hindus, em função da rígida separação em castas (cada qual com seu
dharma). A duplicidade moral também existe entre os chineses contemporâneos, em função do re-
gime político totalitário: o que se diz ou pensa em público não é o que se faz e pensa à socapa.
6. Situação tão bem retratada pela famosa frase: “faça o que eu digo, não faça o que eu faço” e
que acaba com o dissabor de verificar que as pessoas que foram admoestadas, longe de seguir o
conselho, preferem mirar-se no exemplo e superar o mestre...
7. A Igreja Católica chegou a possuir um terço das terras aráveis na Idade Média. A ostentação de
sua riqueza contrastou com o voto de pobreza das ordens mendicantes como a dos Agostinhos,
Dominicanos, Franciscanos, Mínimos e das Carmelitas. Estas tinham por inspiração, entre outras,
uma passagem do Evangelho em que Cristo instruía seus apóstolos sobre o modo de ir pelo mundo,
“sem túnicas, sem bastão, sem sandálias, sem provisões, sem dinheiro no bolso ...”.
8. Também utilizado em toda a América Latina, nas Antilhas e no sul das colônias inglesas da Amé-
rica do Norte, em contraponto com o sistema de colonização de povoamento que prevaleceu no
norte das colônias norte-americanas e no sul do Brasil. O sistema de exploração se assentou na
grande propriedade rural (latifúndio ou plantation), na produção monocultora e padronizada
para exportação (economia extrovertida e complementar da europeia) e no trabalho compulsório
(escravidão ou outras formas de servidão). A sociedade resultante foi aristocrática e patriarcal, com
arraigadas bases oligárquicas e autoritárias, e se caracterizou por um declarado racismo e atitudes
generalizadamente discriminatórias. A configuração do sistema de povoamento, em contraste, é
de pequena propriedade familiar, policultura voltada para o consumo interno e trabalho livre. A
sociedade, neste caso, foi mais aberta e tolerante e nela floresceram organizações da sociedade
civil, com fortes propensões à cooperação coletiva.
9. Ver do autor Ética Empresarial (Rio de Janeiro: Editora Elsevier, 2008, 3ª edição revista e atua-
lizada, pp. 63-77).
10. Para uma análise pormenorizada das morais brasileiras, ver Idem, pp. 79-102.
11. Estes, como muitos políticos, fingem ser o que não são, impedem ser tomados pelo que são e dão
mostras que não são o que são.
12. As relações pessoais ou paroquiais, consubstanciadas em laços de parentesco, compadrio, afini-
dade, amizade, vizinhança, coleguismo ou camaradagem, sempre foram determinantes no Brasil
tradicional. O networking norte-americano é uma rede de contatos de caráter profissional que
não garante a seus membros algum trunfo em relação aos próprios méritos. Difere das relações
pessoais brasileiras que conformam uma rede de compadrio, isto é, que se articulam com base
na patronagem (o famoso “QI”, quem indica), patrocinadora de favoritismos, nepotismos, pri-
vilégios e abusos.
13. Afora os inúmeros casos de suborno, concussão e corrupção é interessante lembrar ilustrações
pinçadas ao acaso: milhões de pessoas compram regularmente no mercado informal aplicativos
piratas, relógios clonados, roupas de grife falsificadas, imitações de tênis; muitos médicos ou
dentistas não dão recibo ou nota fiscal pelos serviços prestados; espertalhões dão gorjetas ao
8. A ética nas organizações 281
maître para obter uma mesa, furando a fila; motoristas subornam guardas rodoviários para não
serem multados ou batem em outro carro no estacionamento, indo simplesmente embora sem
deixar recado; despachantes dão “caixinhas” a funcionários públicos para que cumpram suas
obrigações com celeridade (são as “taxas de urgência”) ou para que “quebrem galhos” (são as
“taxas de sucesso”); estudantes colam para passar de ano ou se valem do grupo de estudo ao
qual pertencem para assinar trabalhos dos quais não participaram; feirantes põem frutas vistosas
no topo da caixa, escondendo aquelas que estão batidas; compradores e vendedores de imóveis
não registram no cartório o verdadeiro valor da transação para burlar o fisco e desovar “di-
nheiro frio”; “fominhas” trafegam no acostamento de rodovias apinhadas na volta de feriados
prolongados; restaurantes majoram as notas fiscais como cortesia para que seus clientes levem
vantagem em sua prestação de contas; criadores de gado dão sal e água a seu rebanho antes
de chegar ao mercado, porque vendem as cabeças por peso; frigoríficos “turbinam” o peso de
frangos, injetando água no peito dos animais imediatamente antes de congelá-los; e assim por
diante. Por sua vez, aqueles que respeitam as normas da moral da integridade são tachados de
trouxas, otários, crédulos, bocós, caretas, panacas, poetas, babacas, inocentes, Caxias. Ou seja:
sujeitos que “marcam bobeira”.
14. É útil não confundir o oportunismo com o senso de oportunidade. O primeiro diz respeito a
tirar vantagens pessoais dos outros e a subordinar princípios ou compromissos sociais a interesses
menores ou mesquinhos, quando não escusos. O segundo significa habilidade em rastrear boas
ocasiões em negócios ou na vida, sem o propósito de lesar os outros.
15. A chave didática para diferenciar fatos morais íntegros de fatos morais oportunistas encontra-se
na difusão pública: aquilo que não se pode comentar abertamente (com exceção dos segredos
de Estado, de negócio e profissionais) ou que não se pode divulgar de forma transparente é
oportunista.
16. A Lei da Ficha Limpa, aprovada em 2010 e decorrente da mobilização de mais dois milhões de
brasileiros que assinaram o projeto de “iniciativa popular”, teve sua aplicação adiada pelo Supremo
Tribunal Federal para 2012 e deverá, em tese, sanar essa excrescência.
17. Weber, Max. Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro, Zahar, s/d., pp. 309-315, e Le Savant..., pp.
166-167.
18. Os comportamentos são socialmente sancionados: de forma positiva, quando estão em conso-
nância com as expectativas coletivas; de forma negativa, quando dissentem ou transgridem as
normas vigentes.
19. Um dos caminhos profícuos para conhecer a moral de uma organização — nem que seja do ponto
de vista retórico — é investigar as ideologias política e econômica que seus membros professam.
Com quais propósitos? Captar os parâmetros considerados ideais, descobrir o que opinam os
agentes, apanhar o fraseado prevalecente. Mas para aferir se tais pensamentos são de fato levados
a efeito é preciso observar as práticas reais, mapear com precisão aquilo que efetivamente vem
sendo feito na e pela organização. Cabe analisar, sobretudo, os modos de tomar decisão e os
interesses que eles beneficiam ou contrariam.
20. Além de serem padrões culturais, as morais acabam também expressando relações de força, uma
vez que os agentes coletivos procuram legitimar seu poder por meio delas.
21. Os agentes individuais são portadores de morais elaboradas, partilhadas e difundidas coletivamente,
embora as vivenciem “pessoalmente”. E isso lhes dá a falsa impressão de que a moral é só deles
ou fruto exclusivo das próprias reflexões.
22. Costuma-se também confundir amoralidade com imoralidade, uma vez que a ausência de quali-
ficação moral é interpretada como “ausência de moral” e não como neutralidade.
23. Nessa mesma linha, escreve Angèle Kremer-Marietti: “A moral está marcada com o selo da história
presente e passada, enquanto a ética é uma disciplina teórica, relativa ao pensamento” (Kremer-
Marietti, Angèle. A Ética. Campinas: Papirus, 1989, p. 7). Toda generalidade abstrata e formal
se expressa, assim, num plano anistórico.
24. Por exemplo, a Sociologia Geral, a Psicologia Geral, a Biologia Geral ou a Química Geral.
25. Para a análise e a distinção dos níveis de abstração conceitual, ver Srour, Robert Henry. Classes,
Regimes..., pp. 28-37. As morais constituem fenômenos de mais densa saturação histórica: tanto
é que se pode falar da moral da IBM do Brasil, da Petrobras, do Banco Itaú, da OAB, da CNBB,
282 Poder, Cultura e Ética nas Organizações
da CUT, do Pão de Açúcar, da Fundação Abrinq e assim por diante, em um período datado e
num lugar preciso.
26. Escreve Wilhem Dilthey sobre a ética filosófica: “Toda filosofia autêntica deve deduzir de seus
conhecimentos teóricos os princípios da conduta de vida do indivíduo e da orientação da socie-
dade” (Sistema da Ética. São Paulo: Ícone, 1994, p. 13).
27. Qualquer cobiça, a velhíssima auri sacra fames (a avidez sagrada pelo ouro) que a tantos povos
enfeitiçou, era assim abominada.
28. Os judeus, colocados à margem da sociedade medieval cristã, tinham uma situação jurídica pre-
cária e não podiam ser proprietários de terras ou desempenhar profissões legais. Sobreviviam nos
interstícios do sistema econômico, fato que os direcionou para a expansão do capital comercial
nas Idades Média e Moderna: fizeram empréstimos a pessoas modestas e financiaram grandes
Estados para que pudessem suprir suas necessidades, emitir moeda, levar a cabo suas guerras e
fundar colônias; desenvolveram o comércio de mercadorias através de pequenas lojas, do comércio
ambulante e do tráfico com produtos rurais; dedicaram-se ao comércio de valores por atacado,
ao câmbio de moedas, ao crédito e aos negócios bancários. Max Weber escreveu: “Como povo
pária, os judeus conservavam a dupla moral que toda comunidade aplica originariamente na
vida econômica. O que se rechaça veementemente ‘entre irmãos’ é permitido com os estranhos.”
Os estrangeiros eram vistos como “inimigos” e deles se podia cobrar juros (o que não se fazia
entre judeus), além de poder tirar proveito dos erros que cometessem (Weber, Max. Economía
y sociedad..., pp. 475-484).
29. Weber, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1967.
30. Constituem o capital intelectual as habilidades técnicas dos colaboradores, o nível de escolari-
dade formal do pessoal e seu grau de informação sobre o mercado, as competências gerenciais,
as patentes registradas, as inovações promovidas pela área de pesquisa e desenvolvimento — em
suma, a “inteligência organizacional”.
31. O capital de reputação é formado pela qualidade das relações mantidas com os públicos de inte-
resse (goodwill) e pelo valor das marcas da empresa (brand equity).
32. http://www.businesszone.co.uk/item/173378. É curioso saber que ele já vinha fazendo comentários
semelhantes em outros discursos há pelo menos cinco anos, porém em fóruns menos expressivos
e sem a presença da mídia nacional.
33. Frank, Robert e Pacelle, Mitchell. “Presidente da Andersen pede demissão. Firma tenta vender
ativos nos EUA”, The Wall Street Journal Americas, publicado pelo O Estado de S. Paulo, 27
de março de 2002, B14; Cohen, David. “Andersen, em consultas”, Revista EXAME, pp. 14-16;
Brown, Ken e Bryan-Low, Cassell. “Andersen é uma sombra de si mesma”, The Wall Street Jour-
nal Américas, publicado pelo OESP, 30 de abril de 2002, B16. Bloomberg. “Andersen eliminou
documentos da Enron”, Gazeta Mercantil, 11 de janeiro de 2002, p. A-8.
34. O superfaturamento atingiu pelo menos R$169 milhões. Uma semana depois de sua cassação, o
ex-senador ainda comentou, num rasgo de sinceridade: “Não sou santo. Nenhum quadro de santo
se sustenta na parede para uma pessoa que ganhou 1 bilhão de reais em quatro anos.” (Revista
Veja, 5 de julho de 2000).
35. Conte, Carla. “Juiz decreta prisão de sócio da Botica”, Folha de S. Paulo, 10 de novembro de 1998.
Berton, Patrícia. “Veado D’Ouro faz reestruturação”, Gazeta Mercantil, 29 de abril de 1999.
36. Ao largo de uma leitura antropocêntrica que confere aos seres humanos o monopólio da conside-
ração moral ou da dignidade dos “seres morais”, poderíamos dizer que os macacos antropóides,
os animais com sistema nervoso central e até ecossistemas ou todo o planeta também merecem
ter consideração moral. Isso nos levaria a substituir a expressão “seres humanos” por seres vivos.
Mas esta é uma polêmica ainda em curso.
37. Eis alguns exemplos entre milhares possíveis: estacionar em fila dupla é egoísta, portanto par-
ticularista, porque prejudica a fluidez do trânsito, mas estacionar em lugar permitido leva em
conta os interesses alheios, e é, portanto, universalista, interessa a todos, porque contribui para
que os demais motoristas possam deslocar-se para seus afazeres; colocar um vaso de plantas para
receber insolação na beirada de uma janela do décimo andar é particularista (egoísta), porque
não leva em conta o risco de cair e matar alguém, enquanto colocar o vaso na sacada, afastando
deliberadamente o perigo anterior é universalista (leva em conta os interesses alheios); jogar um
8. A ética nas organizações 283
maço vazio de cigarros na rua, ao invés de procurar uma lixeira, é particularista (egoísta), porque
a rua é de todos e a responsabilidade de não sujá-la também, mas guardar o maço no bolso e
colocá-lo conscientemente no lixo de casa ou do escritório é universalista; ocupar uma vaga no
estacionamento do supermercado e avançar na faixa amarela da vaga ao lado, impedindo que
outro veículo estacione, é particularista (egoísta), ao passo que estacionar respeitando as devidas
distâncias é universalista; buzinar em túneis lotados é egoísta; tocar músicas bem alto à noite ou
de madrugada num bairro adormecido é egoísta; deixar água estagnada em pratos sob os vasos
de plantas, sabendo do risco de proliferarem as larvas da dengue, é egoísta; segurar o elevador
num prédio para jogar conversa fora com uns amigos, em detrimento dos condôminos que
aguardam a vez de descer ou subir, é particularista; jogar entulhos em áreas públicas ajardinadas
é particularista.
38. “Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que podemos esperar nosso
jantar, mas da observância que eles têm do próprio interesse. Nós apelamos não à sua humani-
dade, mas a seu amor-próprio, e jamais falamos a eles de nossas necessidades, mas das vantagens
que eles terão.”
39. Não esqueçamos que Adam Smith era um filósofo moral. Escreveu A Teoria Ética dos Sentimentos
Morais que versa sobre a cooperação entre os homens.
40. É fundamental não confundir o egoísmo que remete às ações e aos interesses do indivíduo e o
parcialismo que remete às ações e aos interesses do grupo, embora ambos os conceitos digam
respeito a práticas exclusivistas e abusivas.
41. Em edições anteriores, utilizamos o conceito de “altruísmo parcial” que substituímos posterior-
mente por parcialismo (ver do autor Casos de Ética Empresarial (Rio de Janeiro: Elsevier, 2011),
por causa da confusão que a menção ao altruísmo gerava. O conceito anterior fazia sentido rigo-
rosamente quando se tem em mente a cumplicidade e a lei do silêncio que existem, por exemplo,
entre os membros de empresas que utilizam aplicativos piratas ou que têm caixa 2, ou ainda, entre
os membros de uma gangue mafiosa. O defeito manifesto do conceito, segundo leitores e alunos
que ficavam incomodados, era de que a menção ao altruísmo não era exclusivamente positiva:
tinha uma natureza contraditória ao valer tanto para o bem como para o mal... O que o autor
considerava virtude era visto como deficiência, daí a alteração.
42. Cabe anotar uma exceção à regra de “não prejudicar os outros”. O indivíduo que fere o bandido
que invadiu seu lar reage em autodefesa; uma empresa que denuncia o concorrente que pratica
dumping também reage em autodefesa. Nos dois casos, a reação (ou o revide) provoca danos aos
transgressores, porém não deixa de ser legítima. Afinal, quem violou os espaços alheios foram o
bandido com seus propósitos hostis, de um lado, e a empresa que pretende eliminar a concorrência
e dominar o mercado, de outro. Por terem assumido riscos, pagam o preço de sua agressão. No
primeiro caso, a reação é de autointeresse, portanto universalista, no segundo caso, a reação é
altruísta restrita, ou seja, igualmente universalista como veremos logo a seguir.
43. Valores universalistas no Brasil atual são, por exemplo: integridade, justiça, dignidade, liberdade,
idoneidade, competência, privacidade, solidariedade, equidade, pluralidade, isenção, confiança,
imparcialidade, reciprocidade, honestidade, impessoalidade, individualidade, veracidade, diligên-
cia, coerência, mérito, efetividade, prudência, transparência, credibilidade... É importante sublinhar
que os valores mudam historicamente, porém a lógica universalista permanece a mesma.
44. Valores particularistas no Brasil atual são, por exemplo: oportunismo, esperteza, manha, ganância,
malícia, caradurismo, mesquinharia, jeitinho, lábia, permissividade, desconfiança, malandragem,
egotismo, pessoalidade, leniência, favorecimento, hipocrisia, artimanha, matreirice para sonegar,
subornar, fraudar, contrabandear, falsificar... É importante assinalar que tais valores jamais são
assumidos em público, mas cultivados às escondidas porque se chocam com a moral pública.
45. É importante salientar que centenas de milhares de organizações não governamentais operam no
Brasil, envolvendo dezenas de milhões de voluntários que prestam serviços públicos da mais alta
relevância. O desvirtuamento eventual das finalidades das ONGs ocorrido nos últimos anos é um
capítulo lamentável da malversação dos recursos públicos operada por sujeitos inescrupulosos ou
por militantes que transformaram essas organizações em fontes de financiamento de atividades
partidárias. Aliás, é bom que se diga que, das 340 mil ONGs existentes no Brasil em 2010, 99,4%
284 Poder, Cultura e Ética nas Organizações
não recebiam dinheiro do governo federal (Laura Diniz. “Quem paga o pato são as boas.. ONGs.”
Revista VEJA, 9 de novembro de 2011).
46. O contraponto entre razão ética e racionalização antiética, ou entre universalismo consensual
e particularismo abusivo, tem caráter meramente classificatório e não constitui uma prescrição
valorativa entre o que é “bom” e o que é “mau” à moda dos juízos de valor. Isso é feito à se-
melhança dos conceitos de externalidades positivas ou negativas em economia, de eletricidade
positiva e negativa em física, de corpo saudável e doente em medicina, de aliados e inimigos em
ciência política, de comportamento social e antissocial em psicologia, de processos de cooperação
e de competição em sociologia, de ato lícito e ilícito em direito etc. São dicotomias que não são
dogmas, mandamentos ou preceitos, mas ferramentas conceituais para apreender a realidade.
47. Ver a nota 4 do Capítulo precedente sobre os bens públicos.
48. Max Weber, em sua obra seminal Le Savant et le Politique conceitua: “Toda atividade orientada
segunda a ética pode estar subordinada a duas máximas totalmente diferentes e irredutivelmente
opostas. Ela pode orientar-se segundo a ética da responsabilidade ou segundo a ética da convic-
ção. Isso não quer dizer que a ética da convicção esteja desprovida de responsabilidade e a ética
da responsabilidade de convicção. Não se trata disso. Contudo, há uma oposição abissal entre a
atitude de quem age segundo as máximas da ética da convicção — em linguagem religiosa diría-
mos: “O cristão faz seu dever e no que diz respeito ao resultado da ação remete-se a Deus” —, e
a atitude de quem age segundo a ética da responsabilidade que diz: “Havemos de prestar contas
das consequências previsíveis dos nossos atos” (p. 172). Mais adiante, Weber adverte mais uma
vez: “Não é possível conciliar a ética da convicção e a ética da responsabilidade...” (p. 175).
49. O Titanic, por exemplo, naufragou em 1912. Caso seus botes fossem utilizados em sua capacidade
máxima, eles poderiam abrigar 1.300 pessoas. Ocorre que havia 2.223 passageiros e tripulantes.
Era a primeira viagem, faltava experiência e o pânico atrapalhou as manobras. Ao fim e ao cabo,
foram salvas apenas 706 pessoas. O que seria sensato fazer: não utilizar os botes, já que nem
todos caberiam? Alguns dados, porém, lançam uma nódoa sobre a decisão adotada: dos 329
passageiros da 1ª classe salvaram-se 60,5%; dos 285 passageiros da 2ª classe salvaram-se 41,7%;
dos passageiros da 3ª classe salvaram-se 24,5%; e dos 899 tripulantes salvaram-se 23,8%... (http://
pt.wikipedia.org/wiki/RMS_Titanic#Conclus.C3.B5es_dos_relat.C3.B3rios_de_inqu.C3.A9rito)
De fato, o acesso aos botes não obedeceu a critérios igualitários, pois a escolha de quem iria morrer
ou de quem iria sobreviver foi determinada pela discriminação social. Vale dizer, a decisão acabou
assumindo caráter particularista.
50. A não ser que se apele para a teoria da derrogação (ver o tópico logo adiante), abrindo uma
exceção à regra. Só que essa medida deveria ser previamente pactuada e não poderia ser fruto de
casuísmo. É o caso do capitão que tem por obrigação mandar usar os botes salva-vidas.
51. Ou, como diz o ditado popular: “Deus escreve certo por linhas tortas”.
52. Ver Norberto Bobbio. Teoria ética geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos.
Rio de Janeiro, Campus, 2000, pp. 174-175 (livro organizado por Michelangelo Bovero).
53. Leisinger, Klaus M. e Schmitt, Karin. Ética Empresarial; responsabilidade global e gerenciamento
moderno. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 120.
54. Mesmo usando uma das exceções à regra que a teologia moral católica admite — matar em le-
gítima defesa na guerra —, ele não tinha onde se amparar, pois o que lhe foi proposto era levar
a cabo uma execução sumária.
55. O agente se dobra às injunções e usa expressões tais como “tenho que, devo, cumpre-me, cabeme,
preciso, sou obrigado a, não posso deixar de, obedeço a, impõe-se, exige-se, é imprescindível,
é indispensável, é praxe fazer, manda a tradição...”; o agente cumpre os deveres universalistas
que são expectativas coletivas, faz aquilo que todos esperam que ele faça e age em função do
dever pelo dever.
56. O agente raciocina e usa expressões tais como “faz sentido, vale a pena, almejo, pretendo conseguir,
objetivo, é sensato, sábio, inteligente, consequente, tecnicamente viável, consistente, responsá-
vel...”; o agente projeta metas de interesse coletivo, visa a realizar o bem comum, o bem grupal
ou o bem pessoal, sempre de caráter universalista, e assume a responsabilidade não só por aquilo
que faz, mas também pelo êxito do empreendimento.
8. A ética nas organizações 285
57. O Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, um conselho consultivo da Presidência da
República brasileira, aprovou resolução em favor do direito da mulher a abortar feto sem cére-
bro, contra o único voto contrário do procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, católico
fervoroso que defendeu a tese de que o direito à vida é atemporal. Disse: “Não importa o tempo
de vida que o feto anencefálico terá e sim que se trata de uma vida.” De outro lado, o jurista Luis
Roberto Barroso, autor da ação junto ao Supremo Tribunal Federal, comparou a obrigatoriedade
de manter a gravidez nessas condições a um ato de tortura da mãe. Afirmou: “As leis não podem
ser subordinadas aos dogmas religiosos ou à fé de quem quer que seja.” (Vannildo Mendes e
Mariângela Gallucci. “Conselho defende aborto de feto sem cérebro”, O Estado de S.Paulo, 20
de agosto de 2004) Sobre a liminar do STF que concedeu o direito ao aborto, a Confederação
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) afirmou em nota: “A vida é sempre um dom de Deus e
deve ser respeitada, desde o seu início até o seu fim natural. Não temos o direito de tirar a vida de
ninguém.” (Simone Iwasso. “Brasil é 4o no ranking de nascidos sem cérebro”, O Estado de S.Paulo,
18 de julho de 2004) Em contraposição, a médica geneticista Dafne Horovitz, vice-presidente da
Sociedade Brasileira de Genética Clínica, explicou: “O feto não tem cérebro, ou tem apenas uma
pequena parte dele. O restante do tecido fica exposto, sem proteção do crânio ou da pele. Cerca
de 50% morrem dentro do útero; os outros 50% morrem quase sempre minutos após o parto.
Raramente resistem até 12 horas. Em todos os casos é 100% fatal.” (Simone Iwasso. “Especialistas
rejeitam vincular anencefalia a aborto”, O Estado de S.Paulo, 8 de agosto de 2004).
58. Há uma corrente denominada “ética das virtudes”, abordagem dominante até o Iluminismo, que
tem sua origem em Aristóteles e que foi retomada nos anos 1950 (notadamente por Elisabeth
Anscombe). Essa corrente afirma que: a) a base das normas morais está nas virtudes ou nos tra-
ços de caráter julgados como moralmente valiosos; b) toda pessoa precisa dessas virtudes para
realizar-se como ser humano. Em vez de ser uma teoria da ação correta, essa corrente indaga:
quais os traços de caráter que definem uma pessoa moralmente boa ou uma pessoa admirável?
É um pensamento que pretende superar a corrente deontológica que sentencia que a justificação
moral da ação decorre de sua correção intrínseca. E também aspira a transcender a corrente tele-
ológica que confere justificação moral às ações que promovem resultados universalistas. Trata-se
de uma leitura estreitamente fundada na perspectiva do indivíduo, em oposição à perspectiva do
ato coletivamente esperado ou de suas consequências socialmente úteis. Em suma, é uma ética
do caráter, das intenções corretas. Os fatores relevantes são intra-individuais: traços de caráter,
motivações, desejos, emoções, disposições subjetivas. Ora, além de depender de pressupostos
filosóficos — ou seja, de ilações discutíveis —, essa corrente implica um controverso processo
das intenções, uma vez que os objetos da avaliação moral deixam de ser os atos externos obser-
váveis e passam a ser as motivações internas dos agentes. E mais: ela acaba abrindo o flanco para
uma leitura que autoriza a “falácia das maçãs boas e das maçãs podres”, como se os homens se
dividissem desde o nascimento em gente boa e em gente má, o que resvala num reducionismo
de senso comum (ver a esse respeito do autor, Ética Empresarial, pp. 1-5). Na nossa leitura, essa
corrente acaba tendo de se inscrever na agenda da ética da convicção, ainda que postule ser uma
terceira via, pois as virtudes pressupostas nada mais são senão valores operantes e socialmente
definidos (valores em ação), inculcados pelos agentes individuais ao longo de sua vida. Pois não
existem valores, ainda que universalistas, que sejam absolutamente universais: os próprios valores
que se subordinam à lógica universalista (daquilo que interessa a todos os seres humanos) mudam
com o tempo, são históricos.
59. Foram assim justificadas abominações como as limpezas étnicas, os pogroms, os paredóns, as de-
portações coletivas, as atrocidades contra as populações civis dos países invadidos, a discriminação
e a perseguição de minorias, a depuração dos “elementos contrarrevolucionários infiltrados” nos
Partidos Comunistas, a expropriação das terras dos kulaks, a caça aos espiões e aos traidores da
“quinta-coluna”, a repressão em massa dos “inimigos do povo”, o extermínio dos proprietários
fundiários, a escravização e o massacre de populações citadinas pelo Khmer Vermelho no Camboja,
a delação institucional nos regimes totalitários, o uso de reféns sociais, os campos de reeducação
moral na China maoísta. Todos esses atos e o terror do Estado (meio utilizado) atentam contra
os direitos humanos e, desse ponto de vista, tampouco seriam respaldados pela teoria ética da
responsabilidade.
286 Poder, Cultura e Ética nas Organizações
60. Essa discussão encontra-se desenvolvida no livro do autor Ética Empresarial, 3a edição, pp.
204-212.
61. Não é impertinente considerar que a teoria da convicção se adequa mais a decisões tomadas no
âmbito individual do que no âmbito coletivo, ao reverso da teoria da responsabilidade que se
presta mais a decisões de abrangência coletiva, sem que os dois universos sejam estanques. De
outro lado, as lógicas que inspiram ambas as teorias também divergem: o sistema da corporação
parece adequar-se melhor à teoria da convicção (lógica da proteção) e o sistema do mercado à
teoria da responsabilidade (lógica do risco).
62. É interessante lembrar que, na história dos Estados Unidos, houve outras manipulações ou mentiras
de Estado. Por exemplo, a destruição do encouraçado americano “Maine” na Baía de Havana
em 1898 foi o pretexto utilizado para a declaração de guerra dos Estados Unidos à Espanha. De
fato, o “Maine” afundou depois de uma violenta explosão, matando 260 homens. A imprensa
norte-americana da época acusou os espanhóis de terem colocado uma mina sob o casco do navio
e denunciou sua barbárie, tal como a existência de “campos de morte” e até mesmo a prática
da antropofagia... O desfecho da guerra redundou na posterior anexação de Cuba, Porto Rico,
Filipinas e Ilha de Guam. Em 1911, uma comissão que investigava a destruição do navio concluiu
que ocorreu uma explosão acidental na sala de máquinas. De forma simétrica, em 1964, dois
destróeires declararam ter sido atacados no Golfo de Tonquim por torpedos norte-vietnamitas.
Usando esses ataques como motivo, o presidente Lyndon B. Johnson ordenou bombardeios de
represália contra o Vietnã do Norte e exigiu do Congresso americano uma resolução que lhe
permitiu envolver o Exército americano no conflito. Foi assim que começou a Guerra do Vietnã.
Mais tarde, em 1975, membros da tripulação confessaram que o ataque aos destróieres fora pura
invenção... (Ignacio Ramonet. “A maior fraude de todos os tempos”, Le Monde Diplomatique,
reproduzido pelo jornal A Tarde, Salvador, 6 de julho de 2003).
63. Ataques de surpresa, suicídios em carros-bomba com dezenas de mortos e feridos, sequestros de
reféns, muitos civis, com a degola de alguns deles diante das câmeras de televisão.
64. Escreve Paul Krugman, professor da Universidade de Princeton: “Trinta anos depois do Vietnã,
soldados americanos estão morrendo outra vez numa guerra que foi vendida sob falsas premissas
e cria mais inimigos do que mata” (“Patriotismo ‘à la Rambo’”, The New York Times, publicado
por O Estado de S.Paulo, 25 de agosto de 2004).
65. Por exemplo, seria sensato que generais colocassem em risco suas tropas revelando seus planos?
Caberia que autoridades abrissem o flanco à especulação antecipando medidas econômicas de
impacto? Poderiam empresas tornar públicos seus segredos de negócio? Seria inteligente que
delegados de polícia anunciassem as pistas que vêm seguindo em investigações criminais? Não faz
sentido algum dirá a ética da responsabilidade, ainda que seja necessário lançar mão de omissões,
subterfúgios ou até de mentiras cívicas. Com qual justificativa? A de que qualquer uma dessas
revelações acarretaria imensos prejuízos públicos; respectivamente: massacre de tropas, ataques
especulativos às finanças do País, destruição de negócios, fuga dos suspeitos.
66. Norberto Bobbio, Op. cit., pp. 186-187.
67. Situações inevitáveis, não provocadas pelos agentes, como, por exemplo, as calamidades natu-
rais.
68. Norberto Bobbio, Op. cit, pp. 176-194.
69. Seu representante mais conspícuo é Jeremy Bentham.
70. Seu representante mais conspícuo é John Stuart Mill.
71. Trata-se da história dos dezesseis jovens uruguaios cujo avião caiu nos Andes em 1972. Esgotados
os víveres, optaram pelo canibalismo e saciaram sua fome com a carne congelada dos 29 passa-
geiros mortos. O fato vazou para a imprensa dois meses e meio depois, quando de seu resgate. A
repercussão provocou uma comoção mundial. Ao fim e ao cabo, entretanto, os jovens escaparam
do estigma do canibalismo, pois a opinião pública internacional aceitou a quebra do tabu como
um evento inelutável. Considerou que, em iguais circunstâncias, o grosso da humanidade con-
temporânea teria reagido da mesma forma.
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A título de conclusão