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PODER, CULTURA E ÉTICA

NAS ORGANIZAÇÕES
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Robert Henry Srour

PODER, CULTURA E ÉTICA


NAS ORGANIZAÇÕES
3ª Edição Revista
© 2012, Elsevier Editora Ltda.

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Copidesque: Singular Traduções e Serviços Editoriais

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ISBN 13: 978-85-352-5717-5

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CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte.
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

S766p Srour, Robert Henry


3.ed. Poder, cultura e ética nas organizações / Robert Henry Srour.
– 3.ed. – Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.

ISBN 978-85-352-5717-5

1. Desenvolvimento organizacional. 2. Cultura organizacional.


3. Ética empresarial. I. Título.

CDD: 658.406
12-0129 CDU: 005.332.3
Para Maria Helena Bresser,
companheira
e figura indispensável.
Nota do autor

E ste livro foi editado pela primeira vez em 1998, sob o impacto da
dissolução da União Soviética, da introdução acelerada da internet
e do primeiro governo Fernando Henrique Cardoso no Brasil, expoente
da social-democracia que jugulou a hiperinflação com o Plano Real e
modernizou o mastodôntico Estado brasileiro.
Como a obra enuncia conceitos e trata de realidades cuja validade não
perdeu atualidade, é lícito revisitá-la mais uma vez, como já o foi na 2a
edição de 2005. Ocorre que ela incluía então um capítulo que estudava os
“sistemas de regulação social” e propunha uma tipologia das economias à
luz da sociologia econômica. A 2a edição também incorporava um capítulo
intitulado “As formas de gestão”, voltado especificamente para a análise
das articulações possíveis entre relações de poder e de saber no seio das
organizações. Os dois capítulos encontram-se agora, na atual 3a edição, no
Web site da Editora.
Ademais, dois exercícios bastante úteis permanecem acessíveis no site:
um convida o leitor a conhecer sua própria ideologia política e econômica
e denomina-se “Qual é seu perfil ideológico?”; e o outro dá ao leitor a
oportunidade de descobrir a forma de gestão predominante na empresa
em que trabalha e tem por título “Conheça sua organização”.
O livro traz conhecimentos sociológicos e históricos indispensáveis ao
claro entendimento do mundo contemporâneo e, por isso, preserva seu
interesse intelectual.

ROBERT HENRY SROUR


Apresentação

E ste livro, alentado e complexo, coloca ao leitor um conjunto de inter-


rogações como que a convidá-lo a descartar as tarefas cotidianas e
pensar na sua própria vida e na vida de todos. Essas questões, na verdade,
podem ser a linha de perímetro que conforma a pretensão de Robert Srour.
São tão importantes que registrá-las, também aqui, quando me proponho
a apresentar o livro, me parece indispensável:
“... Continuaria ativa a lógica de um sistema capitalista de natureza
excludente? A superação dos Estados nacionais por empresas transnacionais
‘deslocalizadas’ e pela aplicação de suas estratégias globais já se esboçou?
Como entender o desmoronamento interno do totalitarismo soviético,
sem que fosse preciso a hecatombe de uma nova guerra mundial? Quais
os caracteres distintivos do novo Sistema Mundial? A liberalização nego-
ciada do comércio internacional e a globalização dos processos produtivo,
comercial e financeiro não estariam redesenhando o mapa do planeta? Ao
aceitar a ‘democracia formal’ como um fim em si mesmo e ao reconhecer
virtudes-chave ao mercado, boa parte da esquerda contemporânea não esta-
ria revigorando a utopia socialista da ‘radicalidade’ democrática, num claro
distanciamento em relação aos postulados do marxismo vulgar? As críticas
contundentes à ineficiência do Estado-produtor e ao despautério do Estado
assistencial hipertrofiado não estariam se legitimando em escala universal,
diante da crise do Estado? As aberrações dos privilégios corporativistas e
a entropia das nomenklaturas não estariam desmistificando as crenças nas
soluções estatistas que acometem ainda os ortodoxos da esquerda atual?”
Esse inventário de dúvidas ou de questões já é relevante no seu simples
enunciado e ainda mais quando se coloca para a reflexão dos interessados.
xii Poder, Cultura e Ética nas Organizações

E sempre será difícil examiná-lo com o desígnio de buscar um entendimento


compreensivo das Ciências Sociais dos nossos dias. Esse pode ser o escopo
perseguido pelo autor. Muito geral, muito diverso, muito plural, o que
torna difícil matricular seu trabalho em qualquer dos ramos das Ciências
Sociais. Com exceção do Direito e da Psicologia em que não caberia.
É certo que Robert Srour, além de ter passado pela vida acadêmica,
tem uma reconhecida tradição como consultor de empresas na área or-
ganizacional. Sua experiência acumulada nesse campo, aliás, exigiu dele
esforço especialmente devotado e agudo no tratar a questão ética na
organização do livro. Ali se constrói uma proposta generosa e confiante
no destino dos homens. E, no último capítulo, o autor retoma a ideia das
três grandes revoluções tecnológicas: aquela da passagem do Paleolítico ao
Neolítico, a outra da passagem da Revolução Mercantil para a Revolução
Industrial, e desta para a Revolução dos nossos tempos, isto é, nas suas
próprias palavras:
“A atual aceleração histórica que convulsiona o planeta — a Revolu-
ção Digital — tem claramente uma vantagem em relação às duas outras
revoluções tecnológicas. Aponta para caminhos democráticos e reúne
condições para que a maioria da população possa desfrutar de uma vida
digna. E, principalmente, tenha uma vida que mereça ser vivida. Todavia,
os habitantes das organizações sabem mais do que ninguém o quanto
a conquista da cidadania organizacional é mais árdua do que a própria
construção da democracia em âmbito nacional. Porque, na miudeza do
cotidiano, nas finas dobras das organizações, escondem-se os demônios
do autoritarismo. Esconjurá-los exige um empenho incessante, sem o quê
renascem das cinzas com vigor redobrado.”
Ao longo de seu inteligente texto, Robert Srour, a par de trabalhar
uma bibliografia bem selecionada, ainda que extensa, retoma hábitos de
professor. E, ao cabo de cada exposição, em que reúne ideias de autores
consagrados, contribuições atualíssimas buscadas na imprensa especializada
ao que se somam suas próprias ideias, ao fim propõe em bem engendrada
linguagem esquemática quadros de resumo de grande utilidade para o
leitor. Essas ilustrações revelam o domínio dos assuntos e um acentuado
poder de síntese.
Esse modo positivo de ver o destino da sociedade dos homens pode ser
uma petição de princípio que sustenta o progresso dos homens como algo
inexorável. Na verdade, como bem pensa o autor, a ideia do progresso
material e sua equivalência à felicidade parece ser um processo de apro-
Apresentação xiii

ximações sucessivas. A “revolução digital” é seguramente um método,


mas é também uma etapa que hoje assinala esse permanente processo.
No fundo, portanto, as instituições engendradas pelo homem demons-
tram uma admirável resistência que as fez perpassar métodos e etapas
anteriores. O entusiasmo com o método e a etapa que vivemos não deve
obscurecer que, subjacente a todas as lutas e revoluções, cruentas ou in-
cruentas, estão relações entre autoridade, liberdade e igualdade. O exame
dessas graves questões Robert Srour enfrenta com generosidade e amplo
conhecimento.
Não creio que o livro de Srour seja “leitura de fim de semana”. Tal
qual o do autor, o leitor precisa ter um grande interesse no examinar as
questões trazidas ao seu pensamento. Por eu conhecer cada vez melhor
Robert Srour, desde os tempos da EAESP/Fundação Getulio Vargas de São
Paulo, passando pela luta política na social-democracia e agora no mesmo
governo do Estado, estou certo de que a inquietação levada ao leitor é
seguramente o que ele desejava e deseja.

ANTONIO ANGARITA
Professor titular da EAESP/
Fundação Getulio Vargas — São Paulo, 1998
Poder, Cultura e Ética nas Organizações, 3a ed.

• Anexos do livro
Introdução

O prodígio das revoluções silenciosas


O mundo contemporâneo passa por uma transição radical. Mas o
reconhecimento dessa transformação, que permeia cada ato do cotidiano,
ainda não se universalizou. Os processos prolongam-se e são menos per-
ceptíveis que os eventos, de caráter pontual. A mídia e muitos best-sellers
vêm captando e veiculando um sem-número de evidências descritivas.
Porém, à falta de conceitos rigorosos, lançam mão de prefixos que fazem
alusão a diversas sucessões temporais.
Por exemplo, estudiosos e articulistas falam sem cessar em sociedade
pós-industrial ou pós-capitalista, em civilização pós-moderna e em sistema
neocapitalista. Prenunciam o “fim da história”, o ocaso das ideologias e a
apoteose do livre-mercado. E vinculam tais predições ao êxito relativo do
neoliberalismo e às surpresas convulsivas do mundo pós-Guerra Fria. Par
a par com os efeitos da queda do Muro de Berlim, inquietam-se com os
rescaldos da crise do socialismo real e com a curva crescente do desem-
prego tecnológico que rouba empregos e trabalho. Consideram que tais
fatores desembocam na reanimação de um marxismo pós-comunista e
na ascensão do neonazismo — quer ao largo do Leste europeu, quer nas
fímbrias do Ocidente. Mais ainda: vaticinam que os ataques terroristas
de 11 de setembro de 2001 ao World Trade Center, de Nova York, e ao
Pentágono celebram a tese apocalíptica do “choque das civilizações”, a
começar pela guerra santa entre os países islâmicos (jihad) e as nações
cristãs (cruzada). Ou anunciam o embate múltiplo entre o cosmopolitismo
2 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

laico de cunho liberal e os muitos fundamentalismos, sectários na intran-


sigente defesa de suas verdades absolutas e intolerantes com aqueles que
não comungam de sua fé.
De algum modo, os sintomas de uma guinada histórica atropelam os
observadores e os ofuscam como raios solares — daí as noções impressio-
nistas e esse teatro de sombras.1 Abstraída a difusa assombração terrorista,
tanto a mídia mais respeitável como a literatura científica invocam varia-
das transformações, sem conseguir livrar-se de certo deslumbramento.
Muitos autores:

„ Reconhecem as tecnologias da informação e as telecomunicações


como motores de uma nova civilização;
„ Exaltam os conhecimentos técnicos e científicos como fontes de

agregação de valor, a ponto de reificá-los;


„ Relacionam a globalização econômica com a supremacia definitiva do

sistema de mercado e descartam qualquer planejamento econômico;


„ Visualizam no liberalismo político a superação de todas as formas

concorrentes de exercer o poder e de pensar o mundo;


„ Predizem a reinvenção do Estado, em virtude das três crises que o

acometem: a fiscal, a do modelo burocrático de administração e a


da intervenção na economia;
„ Consideram as “organizações de aprendizagem” e a gestão

participativa como pontos de inflexão nas arquiteturas organi-


zacionais;
„ Proclamam as virtudes do marketing e da competitividade empre-

sarial;
„ Louvam e abominam, num contraponto de amor e ódio, o caráter

iconoclasta da reengenharia.2

Mais do que um turbilhão de constatações, arma-se uma ambiciosa


agenda, uma enorme variedade de processos que as forças sociais deverão
enfrentar. À primeira vista, a grandiloquência dos enunciados parece tudo
abarcar. Um momento só de reflexão revela a parcialidade dos enfoques,
as conjecturas, os wishful thinkings — à semelhança das apalpadelas de
mão cega. Sobram, sim, indagações. Quais os fios que costuram tantas
descontinuidades? Haverá algum espaço reservado para os atuais modos
de pensar e de fazer, de gerir e de se associar? Existe alguma síntese que
possa tornar inteligíveis transformações tão céleres?
Introdução 3

Em outros termos, mil inflexões históricas transfiguraram a agonia do


segundo milênio. Ora, o que confere sentido à crise da chamada sociedade
industrial?3 Qual é o arcabouço, a nervura, a chave de decifração? Seria:

„ O domínio do setor terciário que delineia uma nova sociedade de


serviços?4
„ Uma economia do conhecimento, comandada pelo setor quaternário

da informação?
„ O caráter volátil do capital especulativo, à procura de lucros fáceis

em qualquer quadrante do planeta, graças ao caráter instantâneo


das comunicações globais?5
„ A conversão da produção padronizada, destinada aos mercados de

massa, em produção flexível, voltada para mercados segmentados?


„ O vertiginoso declínio do operariado na população economicamente

ativa, a exemplo do campesinato em vias de extinção?6


„ A generalizada perda da importância relativa da força de trabalho

física para a força de trabalho mental?


„ A ampla absorção das mulheres no mercado de trabalho?

„ A passagem da remuneração calculada em horas trabalhadas para a

remuneração variável vinculada aos resultados alcançados?


„ A redução dos postos de trabalho em função da informatização, da

automação e da robotização dos processos produtivos?


„ O fornecimento global de insumos e de componentes, assegurando

a criação de produtos mundiais e transcendendo as fronteiras em


escala planetária?
„ As tendências ao desemprego e à “precarização” do trabalho, frutos
7

tanto das tecnologias avançadas e dos ganhos de produtividade como


da dissociação entre crescimento econômico e geração de emprego?
„ A entrada no mercado de consumo, em função da saída da pobreza e

da ascensão às camadas médias, de centenas de milhões de asiáticos,


notadamente chineses, e de dezenas de milhões de brasileiros?

Todos esses vetores estão presentes na situação contemporânea e


não exaurem a sua complexidade. Fazem com que inúmeras evidências
explicativas, que serviam de chaves para decifrar a realidade social e que
são confortáveis como velhas pantufas, rebentem em pedaços. Provocam
assim mais algumas dúvidas. Continuaria ativa a lógica de um sistema
capitalista de natureza excludente? A superação dos Estados nacionais
4 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

por empresas transnacionais “deslocalizadas” e pela aplicação de suas


estratégias globais já se esboçou? Como entender o desmoronamento
interno do totalitarismo soviético, sem que fosse preciso a hecatombe
de uma nova guerra mundial? Quais os caracteres distintivos do novo
Sistema Mundial? A liberalização negociada do comércio internacional e
a globalização dos processos produtivo, comercial e financeiro não esta-
riam redesenhando o mapa do planeta? Ao aceitar a “democracia formal”
como um fim em si mesmo e ao reconhecer virtudes-chave ao mercado,
boa parte da esquerda contemporânea não estaria revigorando a utopia
socialista da “radicalidade” democrática, num claro distanciamento em
relação aos postulados do marxismo vulgar? As críticas contundentes à
ineficiência do Estado-produtor e ao despautério do Estado assistencial
hipertrofiado não estariam se legitimando em escala universal, diante da
crise do Estado? As aberrações dos privilégios corporativistas e a entropia
das nomenklaturas não estariam desmistificando as crenças nas soluções
estatistas que acometem ainda os ortodoxos da esquerda atual?
Vamos conferir. Pelo menos no Primeiro Mundo e nos bolsões mais
avançados do Terceiro Mundo, a sociedade civil está pondo em xeque o
Estado dirigista e centralizador. Rejeita os regimes políticos de exceção e
verbera contra a inoperância do modelo burocrático de administração do
Estado. Acua os oligopólios e os cartéis que vicejam nas economias mistas
de mercado. Mobiliza amplos setores sociais, num corte diagonal, em
torno de questões que afetam o dia a dia do usuário de serviços públicos
e do consumidor em geral, e coloca as ideologias de cepa autoritária sob
fogo cerrado.
Uma nova consciência — semelhante à produzida pelo Renascimento
— implode um sem-número de dogmas e redefine as utopias. Um tipo sur-
preendente de sociedade parece plasmar-se no silêncio de uma infinidade de
ações moleculares. Algo que não corresponde ao Estado-Leviatã de Hobbes,
nem ao Grande Irmão de Orwell e muito menos ao Admirável Mundo
Novo de Aldous Huxley. Algo inesperado: um mosaico supranacional,
multirracial, poliglota e pluricultural, composto por megalópoles que redes
digitais interligam. Em vez de uma aldeia global e pasteurizada, forma-se um
deslumbrante arco-íris feito de particularismos, nacionalismos, etnicismos
e regionalismos, que um maremoto de informações instantâneas varre sem
cessar. Nesse contexto, novas relações de propriedade e de trabalho estão
ganhando músculos, a despeito das resistências das oligarquias organizacio-
nais e dos muitos interesses que se acham cristalizados.
Introdução 5

Em resumo, mais uma aceleração da história irrompeu na segunda


metade do século XX — avassaladora. Seu estatuto teórico corresponde
a um salto de dimensões cósmicas, à semelhança das duas revoluções tec-
nológicas anteriores (a Neolítica e a Industrial). Revoluções contagiosas,
universalistas, multifacetadas, que fizeram as humanidades transitarem
do tacape ao arado, do arado ao trem, e agora do trem ao computador.
A terceira revolução tecnológica está configurada e germinou, a exemplo
das outras duas, no solo de uma revolução econômica — trata-se de uma
segunda revolução capitalista.8 E seus desdobramentos se equiparam em
grandeza à revolução copernicana na astronomia (que trouxe o Sol para
o centro do mundo) e à teoria de Darwin (que reposicionou os homens
entre os animais). Não é pouco dizer.
Em suma, repontam em incessante movimento novas arquiteturas
sociais e novas carpintarias mentais, novos formatos empresariais e novas
estratégias de relacionamento. Basta um relance sobre as organizações,
edificadas com a argamassa das hierarquias piramidais e com os tijolos
da burocracia corporativa, para perceber que as formas de gestão orga-
nizacionais estão às voltas com uma crise estrutural. Daí a emergência de
várias propostas de reestruturação que postulam reinventá-las. E mais: a
sociedade atual parece assumir cada vez mais as feições de uma sociedade
“mediática”, com o Estado-espetáculo,9 o ensino à distância, as empresas
virtuais, o teletrabalho, as videoconferências, as redes de informação,
os bancos de dados compartilhados, a medicina não invasiva e a bio-
tecnologia.
Uma laboriosa conquista da cidadania lavra a céu aberto. A par de um
movimento centrífugo de descentralização, montam-se mecanismos cívicos
de controle sobre aparelhos estatais e empresas privadas. Ganha corpo
a cidadania organizacional. Relações sociais participativas, construídas
originalmente na Europa Ocidental, fundam nova base técnica para os
processos de produção de bens e de serviços. Por certo, a eletrônica redefi-
niu por inteiro o modo de vida da humanidade contemporânea e superou
as bases mecânica e eletromecânica da Revolução Industrial.10 Isso valida a
expressão explicativa e heurística “era da informação”, que serve de base
à Revolução Digital.11 Inaugura-se algo tão inédito quanto o foi a “era da
máquina”, nos dois séculos de Revolução Industrial, e quanto o foi a “era
agrícola”, nos oito ou dez mil anos de Revolução Neolítica.
Observa-se então uma sociedade escorada por relações sociais menos
assimétricas e, portanto, mais liberais ou mais democráticas: relações coo-
6 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

perativistas, autônomas, comunais, comunitárias e, sobretudo, capitalistas


sociais (“associativistas”). Um novo tipo de capitalismo, de caráter social,
ganha presença. Nele, parte substancial dos excedentes econômicos é
partilhada. Quais os mecanismos utilizados?

„ A concessão pelas empresas de salários indiretos (benefícios sociais,


fringe benefits, remuneração variável);
„ A participação nos lucros ou nos resultados aberta aos trabalhado-

res;
„ A inclusão de ações da empresa na remuneração dos funcionários

ou a venda de ações para eles (stock options);


„ Os investimentos em projetos comunitários, fortalecendo o Terceiro

Setor, ou sob a forma de parcerias entre setor público e privado;


„ A alocação de parte considerável dos tributos captados pelo Estado

para a infraestrutura social: educação e saúde públicas, previdência


e seguridade social, saneamento básico, moradia popular, transporte
coletivo;
„ As aposentadorias e os dividendos pagos a um crescente número de

pensionistas e poupadores, reunidos em torno de fundos de pensão


e de investimentos, que operam como forma conjunta ou “associa-
tivista” de propriedade capitalista.

Isso tudo redunda, ao fim e ao cabo, numa significativa melhoria da


qualidade de vida da população,12 uma vez que:

„ Amplia muito o contingente daqueles que têm acesso a suficientes


bens públicos e privados para desfrutar de uma vida digna;
„ Tende a superar o antigo capitalismo excludente que só beneficiou

uma minoria empreendedora ou herdeira, cujos elevadíssimos padrões


de vida sempre contrastaram com uma maioria de desamparados;
„ Supõe a transição para uma administração do Estado de caráter ge-

rencial, em que a responsabilidade fiscal, a estabilidade monetária, a


eficiência operacional, a vigilância ininterrupta contra a corrupção,
o trato dos cidadãos como “clientes” e a desburocratização chegam
a se transformar em postulados.

Nas empresas inseridas em mercados competitivos, as relações de tra-


balho passaram por radicais mudanças: os trabalhadores deixaram de ser
Introdução 7

descartáveis e desqualificados (meras engrenagens das linhas de produção),


para tornar-se trabalhadores qualificados e polivalentes (profissionais or-
ganizados em ilhas de trabalho). Ao operário clássico — colarinho azul,
indistinto em seu macacão sujo de graxa, peão que todos oprimiam e que
quase tudo discriminava — contrapôs-se uma nova espécie de operador,
profissional sem uniforme, escolarizado e capacitado, portador de qualifi-
cações técnicas sujeitas à permanente reciclagem. Ao uso físico (destreza)
que se fazia da força de trabalho do primeiro opôs-se a utilização das
faculdades mentais do segundo (proficiência).
Todas essas transformações, no entanto, não resultaram de alguma
epifania ou de algum voluntarismo altruísta. Decorreram das inúmeras
pressões que a cidadania organizada exerceu no cotidiano das empresas e
das ruas. E o processo de intervenção política da sociedade civil veio tes-
tando as suas forças e redefinindo as relações capitalistas desde o período
entre as duas guerras mundiais. O novo desenho:

„ Conjuga leis de mercado e planejamento indicativo do Estado;


„ Faculta parceria entre Estado e sociedade;

„ Amarra as ações das organizações a pautas morais de caráter inclusivo

ou universalista;
„ Facilita o acesso da população aos benefícios gerados pelas inovações

tecnológicas;
„ Distingue as organizações estatais das organizações públicas (vincu-

ladas à sociedade civil) no atendimento às necessidades de consumo


coletivo;
„ Amplia o espaço público, fazendo com que o interesse comum rea-

dquira sua natureza primordial de controle exercido pelos cidadãos


sobre a coisa pública (res publica).

No seio das organizações, o modelo taylorista-fordista de gestão dos


processos de trabalho, que tudo fragmenta em tarefas repetitivas e sim-
plificadas, perdeu o fôlego.13 De uma parte, pela ação do “toyotismo”,
que robotiza, automatiza e integra a gestão à produção e à administração.
E, de outra parte, pela constituição de equipes multifuncionais que põem
por terra a sistemática do parcelamento das tarefas e do trabalho desqua-
lificado. Com isso, deflagrou-se de forma irreversível a aposentadoria do
baixo clero dos gestores. Em sintonia com isso tudo, sob o influxo de uma
mídia plural, investigativa e cada vez menos dependente dos grandes inte-
8 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

resses graças principalmente à disseminação da internet, a liberalização dos


regimes políticos processou-se em dezenas de países e converteu-se num
anseio crescente das novas gerações. Celebra-se, assim, a matriz libertária
de pensamento — pelo menos no Primeiro Mundo e ao menos no plano
retórico. Um destaque especial cabe à teoria ética da responsabilidade,
que se funda na análise de risco com vistas à produção de resultados
coletivamente benéficos (racionalidade teleológica), em contraste com a
teoria ética da convicção, que faz da conformidade aos deveres sua regra
de ouro (rigor deontológico).
Esse círculo virtuoso, porém, não é inevitável. Trata-se de uma virtualida-
de em curso, pois permanece o risco de o mundo contemporâneo deparar-se
novamente com a barbárie dos totalitarismos corporativistas (fascistas ou
comunistas) travestidos com outros figurinos. Ou de travar uma guerra sem
rosto, em cada uma de suas esquinas, com os “mártires fundamentalistas”
das fés religiosas que convertem em mensagem messiânica cada homem-
bomba. Por fim, a contrapelo dos fanatismos ativistas, não se pode descartar
o perigo de uma democratização fraudada em que, à semelhança de um
mandarinato, uma nova aristocracia do intelecto continue a se distanciar da
massa de desqualificados que as novas tecnologias afastam do mundo do
trabalho e do consumo. Vale dizer, em vez de a sociedade civil pugnar pelo
alargamento da base social dos integrados, ou dos “incluídos”, seu ideá-
rio poderia descambar para o darwinismo social, que legitima e preserva
uma casta ciosa de seus privilégios. Boa parte da população ficaria então
confinada ao universo dos “excluídos”, porque, sendo funcionalmente
analfabeta e desprovida das competências indispensáveis para participar
do mercado formal de trabalho, estaria fadada a patinar em formas pre-
cárias de trabalho. Consolidaria assim sua posição marginal em relação
às conquistas da “sociedade da informação”14 e acabaria definitivamente
expulsa para além das muralhas do bem-estar.
Nas profundezas da ruptura que transfigura a contemporaneidade,
percebe-se um espaço de vertigens. Há certezas em ruínas e um novo olhar
sobre continentes intelectuais mal desbravados. E, apesar das cautelas que
se impõem, avista-se a possibilidade de conciliar o plano (ou o Estado) com
o mercado (ou a economia). Com efeito, ao captar a direção dos ventos,
a sensibilidade moderadora da sociedade civil parece que:

„ “Absolve” o lucro e legitima a livre iniciativa, motores essenciais da


dinâmica econômica;
Introdução 9

„ Enquadra o risco empresarial e a emulação entre os agentes sociais


nos limites do respeito aos interesses públicos;
„ Justifica a construção de um ambiente competitivo em que se com-

binam imaginação e ação, graças à competência técnica, à iniciativa


pessoal e ao talento inovador;
„ Põe definitivamente em xeque o modo de intervenção corporativo-

estatal em função da crise que desmontou o Estado comunista no


Segundo Mundo;
„ Varre do mapa o Estado clientelista e desenvolvimentista do Terceiro

Mundo;
„ Abala o modelo conhecido de Estado do Bem-Estar Social do Pri-

meiro Mundo.15

O propósito central deste livro consiste em abordar alguns aspectos


da transição para a sociedade da informação, aspectos esses que possam
elucidar um dos mapas possíveis dessa sociedade emergente. Adota por
objeto preferencial de análise as organizações apanhadas ao vivo num
processo de mutação.

Notas
1. Como sói acontecer com datas cujos números redondos parecem carregar prenúncios indecifráveis,
o fim do século ensejou uma crença em arremates. Fala-se em fim: dos empregos, da democracia,
dos militantes, da Ordem Militar, do comunismo, do capitalismo, da educação, do racismo, da
ciência, da evolução, da natureza, do mundo, do futuro, do Estado-Nação, das certezas. Fala-se
também em morte: da literatura, do teatro, da música, da pintura, da filosofia, da política, do
homem econômico, do dinheiro e da economia. Aposta-se, de algum modo, em profecias cata-
clísmicas como se estivéssemos à beira do Juízo Final, embora se aponte, de quando em vez, para
novos e indefiníveis começos.
2. O redesenho organizacional proposto com base em processos geradores de valor foi confundido
com demissões massivas.
3. O conceito de sociedade industrial tem base técnica, pois repousa nos efeitos da Revolução In-
dustrial sobre a organização da produção. Abrange, portanto, vários sistemas socioeconômicos
(modos de produção), como o capitalismo ou o socialismo real, que é um sistema estatista e
corporativista.
4. O que conta numa sociedade de serviços não é a força muscular ou a energia física, mas a infor-
mação e a qualificação dos profissionais que geram riqueza.
5. Um lance dado por investidores norte-americanos na bolsa eletrônica Nasdaq dá a volta do mun-
do em 2,5 segundos, enquanto a notícia da morte do presidente Abraham Lincoln, em 1865, só
chegou a Londres 12 dias depois do assassinato, pelos jornais norte-americanos transportados
pelo primeiro navio que deixou o porto de Baltimore em direção à Inglaterra (Ethevaldo Siqueira.
“A velocidade das notícias”. O Estado de S.Paulo, 8 de novembro de 2011).
6. As ideias de Marx de que o proletariado, ou o operariado manual, por ser a classe majoritária,
estaria destinado a converter-se em “sujeito universal” e teria por missão libertar a humanidade
10 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

das peias do trabalho assalariado e da exploração do homem pelo homem, estão perdendo base
empírica, uma vez que os operários de hoje são numericamente minoritários.
7. Trabalho informal, temporário, autônomo complementar ou eventual, e emprego em tempo
parcial.
8. A atual revolução econômica é também capitalista, ainda que seu caráter seja “associativista”,
o que vem temperar o privatismo egoísta do antigo capitalismo excludente com um privatismo
socialmente responsável.
9. Segundo a expressão de Bernard-Henri Lévy. No Estado-espetáculo, a forma prevalece sobre o con-
teúdo, a imagem sobre a palavra, a aparência sobre a ideia, a arte de se exibir sobre a arte de ser.
10. A eletrônica substituiu peças mecânicas movimentadas eletricamente por elétrons que se movimen-
tam a velocidades próximas à da luz, em válvulas, transistores ou circuitos integrados (chips).
11. Nos equipamentos digitais, as quantidades são representadas por números (dígitos), variam de
forma descontínua e realizam operações lógicas com dados discretos, diferentemente das máquinas
analógicas, cujos dispositivos físicos medem quantidades contínuas (régua que mede comprimento
em milímetros, relógio de ponteiros que indica minutos). A base técnica que permitiu a explosão
da “era da informação” é, sem dúvida, a eletrônica. A Revolução Digital ganhou evidência no
último quartel do século XX, graças à disseminação das novas tecnologias e de muitos de seus
aspectos: informática, Internet, cibernética, telecomunicações, inteligência artificial, engenharia
genética, ciberespaço, química fina, robótica, fábrica automática flexível, realidade virtual,
multimídia, materiais sintéticos em manufatura molecular, supercondutores, tecnologia do laser,
nanotecnologia.
12. Os Estados de Bem-Estar Social, ou welfare states, são apenas, em parte, exemplos de tal con-
figuração. Não só porque seu caráter assistencialista está sendo reformulado, mas porque, em
função da dinâmica econômica competitiva e das pressões políticas da sociedade civil, o setor
privado torna-se cada vez mais parceiro na formulação e na implantação de programas sociais,
valorizando assim a responsabilidade social do capital.
13. É clássica a remissão à fabricação de alfinetes feita por Adam Smith em A Riqueza das Nações:
enquanto um trabalhador fazia sozinho 20 alfinetes por dia, a introdução do parcelamento das
tarefas — 18 tarefas conferidas singularmente a operários especialmente treinados — elevou a
produção diária a 4.800 alfinetes por cabeça. A produção cresceu 240 vezes!
14. Etimologicamente, informação é o processo que organiza a ação. Os dados, ao provocarem al-
guma intervenção por parte dos receptores, convertem-se em informação. Para os economistas,
informação é redução ou remoção da incerteza, à medida que tornam mais seguras as decisões
públicas ou privadas. Para os administradores, a informação é um insumo do processo de tomada
de decisão, além de conferir às ações que dele se originam uma avaliação consciente. Em ambos
os casos, a informação constitui um recurso que agrega valor a processos e a produtos.
15. Num contexto de democracia representativa, o Estado de Bem-Estar Social associa políticas
sociais universalistas e políticas econômicas voltadas para o pleno emprego com a distribuição
da renda.
1
As revoluções tecnológicas

A multiplicidade de leituras
A Terceira Onda
Como um dos representantes da chamada corrente de autores pós-
industrialistas, é preciso creditar a Alvin Toffler a genial intuição de uma
Terceira Onda quando, ainda na década de 1960, boa parte dos pesquisa-
dores acadêmicos mal concebia o que acabou sendo denominado “Terceira
Revolução Industrial”. Toffler se distingue ao afirmar que a era da chaminé
(ou da máquina) foi superada. Não haveria mais razões para falar de civi-
lização industrial, mas de uma economia supersimbólica, que se baseia nos
computadores, na troca de dados, de informações e de conhecimento. Toffler
confere, assim, um mesmo estatuto teórico a três “ondas”:

„ Primeira, entendida como a revolução agrícola;


„ Segunda, identificada como a revolução industrial;
„ Terceira, correspondente a uma revolução da informação.1

De maneira que a atual revolução tecnológica equivale a uma nova e


terceira aceleração da história, e não a mais um desdobramento da Re-
volução Industrial. Importante percepção. Cabe alertar, no entanto, que
a visão de Toffler, como a de outros autores pós-industrialistas, incorre
num viés tecnicista,2 porque, ao eleger o fator técnico como motor da
história, não levam em consideração as contradições sociais que fecundam
12 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

e movem essa mesma história. Ora, há excelentes razões para crer que,
dissociadas das relações econômicas, as invenções técnicas não frutificam
ou não encontram aplicação.
De fato, alguns casos clássicos do século I merecem lembrança. O moinho
de água não teve uso geral na Roma antiga, nem a máquina de ceifar montada
sobre rodas foi adotada em larga escala. Por quê? Por causa dos interesses
em jogo nas relações escravistas: enquanto o suprimento da força de trabalho
escrava permaneceu abundante e viável, a necessidade de investimentos em
equipamentos, que viessem a poupar mão de obra, foi restringida.
De forma similar, as máquinas a vapor não foram adotadas na pro-
dução, ainda que tenham sido concebidas por Heron de Alexandria, no
século I a.C., por Leonardo da Vinci durante a Renascença e por vários
outros inventores nos primórdios da Idade Moderna. Quais as razões? As
restrições impostas pelas relações escravistas na Antiguidade e, nos períodos
posteriores, pelas relações feudais e latifundiárias. Aliás, mesmo quando al-
gumas dessas máquinas foram montadas, elas acabaram nas cozinhas régias
para girar espetos, ou foram parar nos palcos e nos templos para operar
“milagres teatrais”, perfazendo os efeitos especiais da época. Em vista da
abundância de força de trabalho, do uso extensivo da força animal e da
larga habilidade técnica dos trabalhadores, o maquinário tinha utilidade
absolutamente marginal. Então, para que se valer de fator substituto?
Abordaremos mais adiante, e de forma pormenorizada, a terceira
revolução tecnológica que Toffler tanto apregoou.

A revolução da qualidade
Outras interpretações, ao lado da de Toffler, pretendem dar conta das
transformações por que passa o mundo contemporâneo. Cada uma delas
destaca alguma faceta decisiva. É o caso da revolução da qualidade, que
projetou o Japão como um exemplo mundial a partir da década de 1980.
O país, aliás, foi responsável por um importante ponto de inflexão na
concepção dos processos produtivos. Trata-se da ruptura com o fordismo
— linha de montagem e produção em massa de produtos padronizados
— e sua substituição pelo toyotismo. Esse novo padrão abarca automa-
ção, informatização, robôs na produção e alta qualificação técnica dos
trabalhadores. Implica também a responsabilização da equipe executante
pelo controle de qualidade e um tipo de gestão que integra produção,
administração e engenharia de projetos.
1. As revoluções tecnológicas 13

As implicações da revolução da qualidade, porém, vão além:

„ Conferem absoluta prioridade à satisfação dos clientes, destinatários


finais de toda e qualquer produção;
„ Postergam ou diferem a obtenção do lucro, com base em uma es-

tratégia de longo prazo;


„ Inauguram a produção flexível e enxuta — produção por encomen-

da, taylor made, ou lotes personalizados de dimensões reduzidas;


„ Assentam-se na mobilização geral da organização ou no controle da

qualidade total;
„ Fazem com que a cúpula se engaje na implantação do processo de

qualidade, de modo que o treinamento se estenda ao conjunto das


funções;
„ Erguem como bandeira norteadora o aperfeiçoamento contínuo —

Kaisen;
„ Institucionalizam as opiniões e as sugestões vindas do chão da fábrica

nos círculos da qualidade;


„ Erigem o “defeito zero” como objetivo geral, o que faculta a identifi-

cação de problemas operacionais e permite solucioná-los in loco;


„ Asseguram aos trabalhadores a faculdade de corrigir seus próprios

erros, concedendo-lhes o direito de paralisar a linha, caso seja ne-


cessário;
„ Superam as técnicas de inspeção a posteriori, bem como o próprio

controle estatístico do processo, ao exigir, a cada passo da produção,


a obediência rigorosa aos requisitos técnicos e à conferência integral
das peças.

A gestão da qualidade total repousa na clara compreensão de que


cabe às empresas satisfazer plenamente as necessidades do consumidor e,
nessa esteira, “encantá-lo”, excedendo suas expectativas. Um subproduto
notável dessa revolução da qualidade conflui com outras correntes de
pensamento — notadamente a da contracultura e a do “conservacionis-
mo ecológico” — na crítica ao desperdício generalizado, ao consumismo
desenfreado e ao uso imprevidente de recursos naturais.
Essas práticas haviam prosperado no Ocidente e, em particular, na
sociedade americana dos anos 70. Lançavam-se produtos com obsoles-
cência programada, no intuito de forçar novas compras, e incentivava-se
a utilização de produtos descartáveis;3 não se reciclavam o lixo e os bens
14 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

inservíveis;4 não se estimulava a venda de produtos biodegradáveis; davam-


se as costas à utilização de matérias-primas e fontes de energia renováveis.
Contra isso insurgiram-se pensadores e militantes ambientalistas que
forjaram uma nova consciência ecológica com todas as suas relevantes
consequências. Em inúmeros países, aguçou-se o discernimento quanto à
finitude dos recursos fósseis e quanto à possibilidade de que grande parte
dos recursos naturais possa vir a esgotar-se. Desenvolveu-se a pesquisa de
matrizes energéticas alternativas e de produtos recicláveis e biodegradáveis.
Caminhou-se para a redução da quantidade de matéria-prima utilizada na
indústria e de sua substituição por produtos sintéticos. Advogou-se o res-
peito à vida dos animais utilizados como insumos industriais. Instituiu-se
no campo empresarial uma “engenharia da confiabilidade”, assegurando
aos consumidores, por um prazo razoável, produtos sem ocorrência de
defeitos. Adotou-se, em suma, o ponto de vista do cliente e praticou-se
uma “filosofia da qualidade”, que redefiniu por inteiro os padrões de
operação das empresas.

A revolução na gestão
Outra leitura, de origem europeia, diz respeito a uma revolução na
gestão ou nas relações de trabalho. Trata-se da revolução organizacional
promovida pela gestão participativa à moda sueca (grupos semiautônomos)
ou à moda alemã (sistema de cogestão). O essencial dessa ruptura com o
taylorismo nos remete: à democracia industrial, que projeta a colaboração
entre patronato e sindicatos; e à democracia no local de trabalho, que leva
gestores e trabalhadores a partilhar certa autoridade e responsabilidades
técnicas.5
Duas vertentes são constitutivas da gestão participativa: a vertente po-
lítica da participação nas decisões e a vertente econômica da participação
nos lucros ou nos resultados (mais difundida).

„ Participação nas decisões. Na vertente política, os trabalhadores


obtêm corresponsabilidade no processo técnico e opinam sobre as
suas condições de trabalho. Ao estabelecer uma ponte entre gestores
e trabalhadores, e ao institucionalizar a codecisão no seio das orga-
nizações, elimina-se a clara separação taylorista entre as atividades
de gestão e as de execução. A gestão participativa significa, neste
caso, gestão partilhada entre gestores e trabalhadores, transferência de
1. As revoluções tecnológicas 15

micropoderes — anteriormente em mãos gerenciais —, para equipes


de executantes polivalentes. Constitui uma conquista marcada por
um incessante vaivém. Seu rastreamento nos leva à década de 1920,
quando sindicatos e partidos social-democratas da Europa Ocidental
já se empenhavam em introduzir novas práticas na organização do
trabalho. Recentemente, os norte-americanos retomaram as clássicas
experiências europeias e as reconstituíram sob o rótulo bastante
sugestivo de empowerment ou de delegação de poderes.
„ Participação nos lucros ou nos resultados. A vertente econômica

realiza-se por meio de mecanismos bastante variados: a distribuição


de lucros ou de ações; a remuneração variável associada ao desem-
penho; os incentivos escalonados ao longo do tempo; o pagamento
pela qualificação; a concessão de bônus ou prêmios em salários; a
gratificação que se vincula tanto a ganhos de produtividade como à
redução de custos ou à superação de metas empresariais; a conces-
são de salários indiretos, sejam benefícios sociais aos trabalhadores,
sejam fringe benefits (ou mordomias) para os altos gestores.

A Terceira Revolução Industrial


Uma interpretação em voga no meio acadêmico faz da revolução tecno-
lógica em curso a terceira fase da Revolução Industrial e confere-lhe o nome
de batismo de Terceira Revolução Industrial. Privilegia, assim, a base técnica
da produção — a microeletrônica —, em contraste com as bases mecânica
e eletromecânica que qualificaram as duas primeiras fases da Revolução
Industrial. Frisa a importância da automação e da robotização. Seguindo
essa interpretação, algumas vozes chegaram a anunciar uma “revolução da
robótica” e prenunciaram uma economia de abundância, que viria a realizar
o sonho milenar de libertar os homens da obrigação de trabalhar e a tornar
o labor uma tarefa voluntária e prazerosa. Descontados esses excessos, o
enfoque em pauta dá conta do conteúdo crítico da mudança tecnológica.
Mas duas objeções merecem ser feitas a essa linha de raciocínio: ela não
capta a transformação das relações econômicas que antecede a vigência da
revolução tecnológica e lhe assegura o próprio êxito, sucumbindo assim
ao determinismo tecnicista; ela não resgata a importância estratégica que
a mudança nas relações de trabalho assumiu.6
Introduzida a eletrônica como nova base técnica para a produção, os
trabalhadores se transformaram em profissionais qualificados e passaram
16 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

a deter corresponsabilidade no processo de produção. Ocorre que tais


fatos contradizem a essência da Revolução Industrial e a transcendem de
modo radical. Os trabalhadores, responsáveis pela execução das atividades
produtivas, retomam em parte a “posse” de seus instrumentos de trabalho,
ou seja, recuperam a “apropriação real”, na linguagem de Marx.7 Não é
pouco dizer, pois a Revolução Industrial consagrou uma dupla separação
dos trabalhadores em relação aos meios de produção: à perda da proprie-
dade econômica se somou a desqualificação técnica.
Na Idade Moderna desenrolaram-se dois movimentos. De um lado,
os vilões deixaram de ser proprietários econômicos, em função do “fe-
chamento dos campos”, da grilagem e da usurpação dos bens comunais
por latifundiários. Foram então obrigados a vender seus serviços como
assalariados, o que caracteriza a separação entre a força de trabalho e
a propriedade (“apropriação formal”). De outro lado, os artesãos e os
jornaleiros deixaram de possuir habilidade técnica, não só em função
da divisão do trabalho de tipo manufatureiro — que já havia parcela-
do a produção em tarefas distintas —, mas, sobretudo, em virtude da
introdução da máquina-ferramenta que caracteriza a grande indústria.
A maquinofatura tornou inútil a qualificação e os longos períodos de
aprendizagem, e provocou uma clara separação entre a força de traba-
lho e a gestão do processo produtivo. Completou, portanto, a perda da
“apropriação real” por parte dos trabalhadores que eram executantes
das atividades.
Nos processos de produção industrial prevalece, no geral, o trabalho
braçal, repetitivo, fragmentado, alienante e desqualificado, tão bem re-
presentado pelas linhas de montagem. Em contrapartida, nos processos de
produção digitais, o tipo dominante de trabalho é mental e polivalente.8
Assim, os processos industriais tornam desnecessária a habilidade técnica
dos trabalhadores, e os convertem em agentes intercambiáveis, uma vez que
existe extrema facilidade para substituí-los e para treiná-los. Nos processos
de produção digital, em contraposição, exigem-se escolaridade prévia e
alta qualificação técnica dos trabalhadores, de modo que sua substituição
torna-se mais difícil.
Em consequência, o novo modo de produção que se configura (ca-
pitalista social ou “associativista”) resolve a antiga dissociação entre os
trabalhadores e a “posse” dos instrumentos de trabalho, ao restituir-
lhes algum controle sobre o processo técnico de trabalho. Apesar disso,
persiste outra dissociação: os trabalhadores permanecem destituídos
1. As revoluções tecnológicas 17

da propriedade econômica, ou seja, os resultados do trabalho, ou o


sobreproduto, são apropriados privadamente pelos donos dos meios
de produção.9 No entanto, em decorrência das pressões exercidas pela
sociedade civil, parte não desprezível dos excedentes econômicos tende
a ser redistribuída através de benefícios sociais e de salários indiretos.
Ficam assim minimizados, embora não eliminados, os efeitos da apro-
priação privada, e altera-se substantivamente o caráter excludente do
antigo capitalismo.
A Revolução Digital constitui uma espécie de Revolução Industrial ao
reverso, pois devolve aos trabalhadores algumas feições artesanais, em-
bora a qualificação técnica dos atuais trabalhadores não equivalha à dos
artesãos. Estes tinham capacidade de fabricar um produto por inteiro, e o
exemplo das carruagens é elucidativo. Sua fabricação supunha qualidades
profissionais polivalentes para que fosse possível a manipulação tanto da
madeira quanto do ferro, do couro como dos tecidos, e as várias operações
exigiam o uso de um autêntico arsenal de ferramentas especializadas. O
mestre-artesão detinha, assim, um cabedal técnico respeitável, formado
após longos e exaustivos anos de aprendizagem.
Existem semelhanças com os profissionais atuais, é claro, mas não
plena superposição. Afinal, em empresas altamente competitivas, ninguém
consegue um emprego sem escolaridade formal de primeiro ou segundo
grau — isso quando não for requerida formação de nível universitário.
Ninguém se mantém empregado, tampouco, sem se atualizar e se reciclar
incessantemente, através de uma educação continuada. Em contrapartida,
poucos são capazes de fabricar um produto por inteiro. Os profissionais
digitais organizam-se em equipes e dão conta de processos complexos ou
produzem bens e serviços completos, mas, em geral, não o fazem indivi-
dualmente como os trabalhadores artesanais.
Apesar dessas observações que convidam à cautela — e já que a tecnologia
de produção de base eletrônica está em plena efervescência —, o sentido dos
desdobramentos futuros é uma incógnita. Será que nas próximas décadas os
trabalhadores chegarão a assumir as feições de um novo tipo de artesão? É
difícil prever, mas a hipótese não deve ser desprezada. De qualquer maneira,
um fato notável reponta: a base eletrônica da produção alterou o paradigma
das relações de trabalho industriais. E daí deriva a constatação capital: não
se trata de uma terceira fase da Revolução Industrial. Trata-se, isso sim, de
uma autêntica superação dessa mesma revolução, apoiada numa “economia
do conhecimento” ou no setor quaternário.10
18 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

A revolução do marketing
Outra leitura relevante remete à revolução do marketing. Trata-se do
forte choque sofrido pelas empresas que cresceram como “umbigos do
mundo”, sob a égide de uma política de reservas de mercado; passaram a
ser obrigadas a focalizar os clientes e reorientar-se por inteiro para eles.
Anteriormente, as empresas:

„ Operavam em mercados confinados, nos quais pontificavam mono-


pólios, oligopólios e cartéis;
„ Funcionavam protegidas em casulos, graças a taxas alfandegárias, a

barreiras não tarifárias e a variados apoios governamentais (crédi-


tos subsidiados, isenções fiscais), tudo dentro do velho paradigma
nacional-desenvolvimentista;
„ Viviam exclusivamente preocupadas com os próprios produtos e

suas atenções centralizavam-se na dinâmica das disputas internas e


dos lobbies externos.

Em que consistiu a guinada? As empresas “voltadas para o mercado”


praticam estratégias sintonizadas com as expectativas dos clientes, adotam
produtos e processos que agregam valor, formulam projetos de investi-
mento, aplicam-se a desenvolver inovações técnicas, tudo em função da
plena satisfação daqueles que constituem a razão de ser de sua existên-
cia — os consumidores, os clientes, os compradores, os usuários. Isso
significa que o marketing conduziu as empresas a nutrir muito respeito
pelos destinatários finais, contribuiu para instaurar um senso agudo das
oportunidades de mercado e exigiu dos trabalhadores e dos gestores uma
produção de alta qualidade. A palavra de ordem passou a ser gerar valor
para os consumidores de maneira cada vez mais inovadora, tendo nisso
uma base diferencial em relação à concorrência. Sem o quê, as empresas
feneceriam e morreriam.
Muitos autores rastrearam um vasto processo de extroversão comer-
cial e de abertura à competição internacional, que visou ao atendimento
superior das necessidades dos clientes e à superação de todas as suas
expectativas. Isso estaria transcorrendo em sentido inverso ao das tendên-
cias anteriores: a introversão e o comando centralizado nas empresas; a
hegemonia dos chefes ou a pesada hierarquia; as ações que promoviam
a eliminação da concorrência através de incorporações hostis, dumping,
1. As revoluções tecnológicas 19

trustes, cartéis, monopólios ou cartórios empresariais. Muitas novas prá-


ticas decorreram desse processo:

„ Os serviços de assistência pós-venda e de atendimento ao consu-


midor;
„ Os ombudsmen ou as ouvidorias como canais de proteção ao

cliente;
„ A “engenharia da confiabilidade” para garantir o uso adequado dos

produtos por períodos de vários anos;


„ As pesquisas de mercado que dão voz ao cliente;

„ A parceria entre fornecedores e compradores;

„ Os pré-testes para aferir o grau de receptividade dos consumidores;

„ A mediação promovida pelas câmaras de arbitragem como forma

de solução extrajudicial dos eventuais conflitos;


„ As decisões empresariais que obedecem ao crivo da reflexão ética.

Em conclusão, as empresas orientadas para o mercado são empresas


competitivas que colocam o cliente no centro de suas atenções e têm por
foco suas necessidades. Empresas hábeis o bastante para coordenar todos
os esforços e para atingir os objetivos organizacionais. Empresas que pro-
duzem bens e serviços melhores, em escalas maiores e a custos menores,
compondo, assim, as diversas faces da competitividade.

A Revolução Digital
Um só momento de reflexão sobre essas várias “revoluções” em anda-
mento nos leva a constatar que elas não são excludentes. Bem ao contrário
complementam-se. Tanto é que elas podem desembocar em outra leitura,
de caráter mais inclusivo, e cujo conceito é o de Revolução Digital. Nessa
esteira, mais uma vez, é preciso evitar uma leitura tecnicista. Os cuidados
consistem em inscrever a revolução tecnológica na revolução econômica
que está em curso, subordinando o fator técnico às relações capitalistas
sociais (“associativistas”) que lhe dão substância e o precedem. Eis pro-
vavelmente uma das razões que mais impactou a União Soviética: suas
relações de propriedade corporativo-estatistas (base essencial de seu tota-
litarismo) não tinham condições de acolher nem de tolerar a liberalização
das relações de trabalho, fenômeno indispensável para levar à frente os
processos digitais de produção.
20 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

A presente leitura:

„ Reivindica o estatuto teórico de uma nova aceleração da história, as-


sim como o foram a Revolução Neolítica e a Revolução Industrial;
„ Reputa essencial o surgimento de uma base eletrônica da produção;

„ Inclui com proveito as estratégias japonesas de qualidade, a gestão

participativa europeia e a centralidade do cliente na acepção clari-


vidente do marketing;
„ Nega que se trate de uma terceira fase da Revolução Industrial, em

virtude da qualificação técnica dos trabalhadores que transfigurou


as relações de trabalho;
„ Destaca a ciência e a tecnologia como fontes de geração de valor e

como expressões da força de trabalho mental;


„ Salienta a ebulição histórica que comporta vetores de extrema rele-

vância: um novo sistema mundial de cunho competitivo, expresso


pelo processo de globalização econômica; um novo modo de pro-
dução capitalista social, que abriu espaço para a coparticipação dos
trabalhadores nos processos técnicos de produção e nos benefícios
do desenvolvimento econômico; um novo tipo de sociedade, de
caráter ao mesmo tempo terciário e quaternário.

Os azares do evolucionismo
Em geral, conceitos macro-históricos tendem ao determinismo linear
e acreditam que forças transcendentais impulsionam a história da huma-
nidade, como se existisse alguma lei natural do Progresso ou da Razão
Superior. Os ecos recentes do ideário evolucionista, que tanto marcou o
imaginário do século XIX, provêm da crença em “sucessões necessárias”
entre tipos de sociedade ou entre etapas do movimento histórico. Anun-
ciam a marcha ascendente da humanidade para um futuro melhor. Por
exemplo, é o caso de:

„ A evolução intelectual da humanidade, ou o progresso dos conhe-


cimentos humanos, na lei dos três estados de Augusto Comte —
teológico, metafísico, positivo;
„ Os estágios sucessivos por que passa a humanidade na concepção

de Lewis Morgan — estado selvagem, barbárie, civilização;


1. As revoluções tecnológicas 21

„ A lei geral da evolução de Herbert Spencer que determina a sucessão


cronológica das sociedades humanas — sociedades simples, com-
postas, duplamente compostas e triplamente compostas;
„ As famosas épocas progressivas da formação social, decorrentes do

desenvolvimento das forças produtivas, na visão do marxismo vul-


gar — comunismo primitivo, escravismo, feudalismo, capitalismo,
socialismo e comunismo, fase última da história.

Essas interpretações decorrem mais de uma postura profética do que


de previsão científica, porque resultam de postulados ideológicos e de
filosofias da história que pretendem captar a “lei da evolução social”. O
desenvolvimento da humanidade obedeceria, assim, a uma direção única,
retilínea e contínua: passaria de formas simples e grosseiras de organização
social para formas mais complexas e mais avançadas. O percurso seguiria
uma sequência obrigatória de estágios.11
Os conhecimentos antropológicos e sociológicos atuais, todavia, negam
qualquer fundamento empírico a tais profissões de fé. As sociedades hu-
manas não estão submetidas ao movimento de algum ciclo inelutável. Sua
evolução e seu declínio dependem do embate entre múltiplos interesses
sociais. Entre quem e quem exatamente? Entre os próprios agentes coleti-
vos que as habitam e que almejam alcançar objetivos de sua conveniência.
Não há sentido imanente algum que conduza as sociedades para um destino
imemorial. As forças sociais enveredam deliberadamente, ou não, entre
virtualidades ou “possíveis históricos” estruturalmente demarcados.12

A Revolução Neolítica
Afastadas essas filosofias da história, de caráter linear e teleológico —
que supõem um destino predeterminado e certo fatalismo — e deixando
de lado o longo período paleolítico que é pré-histórico, a primeira grande
aceleração da história ocorreu no sudoeste da Ásia e nas regiões ao redor do
mar Mediterrâneo, entre 8.000 e 5.000 anos antes da era cristã. A Revolu-
ção Neolítica, ou nova idade da pedra, contrasta com o período paleolítico,
ou antiga idade da pedra, em que armas e utensílios resultavam da fratura
e da separação de lascas. O método utilizado passou a ser o polimento
das pedras e seu desgaste. Os agrupamentos primitivos deixaram de viver
exclusivamente da caça, da pesca e da coleta de alimentos e passaram a
viver da agricultura, da domesticação dos animais e do artesanato. Como
22 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

produtores de alimentos, reuniram condições para se tornarem sedentários


e para crescerem em termos numéricos. Garantiram, com isso, o acesso
a víveres em todas as estações do ano. As chaves residiam nos seguintes
fatos: os azares da caça ou da pesca propiciavam apenas produtos pere-
cíveis que exigiam rápido consumo; a pecuária converteu rebanhos de
gado em fontes sempre renovadas de carne fresca, com rezes abatidas
conforme as necessidades; o cultivo da terra permitiu estocar grãos que
não apodreciam tão facilmente quanto os frutos silvestres.
Como todo processo histórico de envergadura, a Revolução Neolítica
desenvolveu-se em várias partes do mundo num movimento de longa ma-
turação. Foi precedida por transições bem ou malsucedidas, um vaivém
sem nenhuma ordenação rígida: a protocriação de animais que viviam em
manadas e eram canalizados num vale, sob o olho vigilante de homens e de
cães de guarda; a protoagricultura, ou a coleta sazonal de grãos selvagens,
que complementavam os produtos da caça.
A descoberta da roda pelos sumérios, por volta de 3.500 a.C., equivaleu
a um verdadeiro combustível para a multiplicação dos resultados: com ela,
conseguiu-se ganhar tempo e economizar energia. De forma simétrica, o
uso do vento como energia propulsora de barcos e moinhos constituiu
fonte inesgotável a dinamizar as forças humanas. Com isso, a Revolução
Neolítica se espraiou pelo mundo. Barcos e jangadas permitiram transpor
os confins da Ásia, da África e da Europa. Desenvolveram-se as artes de
fiar e de tecer pano, de fabricar cerâmica e de trabalhar os metais. Num
só movimento, a prática do intercâmbio contribuiu para que uma divisão
do trabalho se estabelecesse entre as comunidades que se tornaram eco-
nomicamente complementares.
As inovações técnicas, porém, não surgiram de algum fiat divino, ex-
pressões de gênios individuais que viviam isolados das grandes correntes
coletivas. Elas foram estimuladas por um peculiar mecanismo de apropria-
ção do produto — a redistribuição complexa —, que mais tarde serviu de
base às coletividades gentílicas. Quer dizer, novas relações de propriedade
precederam o salto tecnológico e lhe conferiram consistência. A nova
forma de redistribuição dos produtos implicou a cooperação complexa
entre agrupamentos vizinhos, a exemplo da caça aos grandes animais: as
armadilhas demandavam um esforço maior que a capacidade singular de
um bando primitivo; os territórios de caça deviam ser unificados para
assegurar uma perseguição bem-sucedida; o consumo de animais de grande
porte estava acima das possibilidades de ingestão dos próprios caçadores,
1. As revoluções tecnológicas 23

convidando-os para formar um centro de redistribuição dos alimentos; a


partilha que daí decorria estreitou os laços de reciprocidade entre bandos
vizinhos e propiciou a base para que interesses comuns, superiores a cada
agrupamento em particular, se consolidassem.
A “apropriação formal” ou a propriedade econômica gentílica, com
seu mecanismo de redistribuição complexa, serviu então de fundamento à
Revolução Neolítica. Ao invés de as comunidades se apropriarem apenas
daquilo que a natureza lhes provinha de modo espontâneo, passaram a
intervir de forma deliberada sobre ela, graças às técnicas do cultivo das
plantas, do pastoreio e da transformação artesanal dos materiais. As ativi-
dades produtivas deixaram de ser intermitentes para se tornarem contínuas.
Em consequência, a Revolução Neolítica introduziu as condições para que
surgisse um mecanismo de incentivo sistemático à produção de excedentes,
fonte primordial para o surgimento das classes sociais e do Estado, que
detém o monopólio da violência enquanto aparelho responsável pela
regulação das relações coletivas.13

A Revolução Industrial
A Revolução Industrial foi, acima de tudo, uma revolução capitalista.
Não foram as inovações técnicas que criaram o capitalismo, mas o capital
investido nas manufaturas da Idade Moderna que levou à introdução da
máquina-ferramenta, além de desenvolver o sistema fabril e aplicar força
motriz não animal à produção.
A Revolução Industrial, ou a grande indústria maquinofatureira,
não resultou da simples existência do capital comercial — este existiu
nos séculos precedentes ao século XVIII, em inúmeras sociedades cujos
intercâmbios distantes exigiam a existência de algum tipo de moeda. Ela
dependeu essencialmente do capital produtivo investido na manufatura e
só foi possível mediante a chamada “acumulação primitiva” que ocorreu
durante o período moderno e mercantilista, entre os séculos XVI e XVIII.
A aquisição e a concentração dessa importante riqueza decorreram de
vários processos: a espoliação das riquezas coloniais, o tráfico negreiro,
o confisco dos bens da Igreja Católica, a expropriação dos camponeses
independentes, a usurpação das terras comunais e a transformação da
propriedade partilhada feudal em propriedade patrimonial latifundiária.
De fato, a conversão do capital comercial em capital produtivo fez
com que a Revolução Industrial fosse filha dos interesses conjugados das
24 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

burguesias mercantil e manufatureira. Eis a razão por que as relações de


produção na manufatura não eram inteiramente capitalistas. Embora
as relações de propriedade já fossem capitalistas — os burgueses manu-
fatureiros eram donos privados dos meios de produção —, as relações de
trabalho que completam o binômio das relações de produção ainda não
eram capitalistas. Por quê? Porque, destituídos dos meios de produção,
os trabalhadores alugavam sua força de trabalho e produziam um sobre-
produto apropriado privadamente pelos patrões manufatureiros. Toda-
via — e isso é significativo —, detinham ainda algum controle sobre o
processo técnico, em função da qualificação adquirida em longa e intensa
aprendizagem. Ou seja: a propriedade econômica era capitalista, mas a
gestão do processo de trabalho não o era.
Assim, embora os jornaleiros assalariados estivessem concentrados num
único local e as tarefas já fossem parcelares, os trabalhadores dispunham
de habilidade técnica e, por conseguinte, exerciam algum controle sobre
o processo de trabalho. É bem verdade que era um controle menor de
que o existente no antigo sistema doméstico de produção (putting out).14
O que faltava então ao capital manufatureiro? Pleno domínio sobre a
mão de obra. Essa situação só foi transfigurada pela grande indústria que
dispensou a qualificação técnica dos jornaleiros. Como os mercados das
metrópoles coloniais exigiam volumes crescentes de mercadorias, era
vital para os burgueses manufatureiros acelerar o ritmo da produção.
Mas como fazê-lo se a posse do saber técnico facultava aos jornaleiros
certo poder de barganha salarial? O parcelamento das tarefas não fora o
bastante para livrar o capital das pressões trabalhistas. Foi preciso que a
invenção da máquina-ferramenta ocorresse para que o poder de fogo
dos trabalhadores fosse anulado e para que a produção fosse aumentada
de maneira exponencial.
A busca de respostas, em termos de organização do trabalho, estimulou
as invenções responsáveis pela revolução técnica da Inglaterra oitocentista.
Em particular, num setor importante como o da manufatura de tecidos
de algodão. Pois, à medida que os lucros dependiam da produção inten-
siva, urgia encontrar meios para obter um maior volume de fio — algo
que jamais se poderia conseguir com as rodas de fiar disponíveis naquele
momento. A força dos interesses criou então as condições para que a
máquina de fiar fosse inventada em 1767 (ou, pelo menos, aproveitada),
assim como o bastidor hidráulico em 1769. A spinning jenny era capaz de
produzir oito fios ao mesmo tempo, mas não era suficiente. Em pouco mais
1. As revoluções tecnológicas 25

de trinta anos, novos aperfeiçoamentos técnicos da mule, que combinava


as duas máquinas anteriores, permitiram a produção simultânea de 400
fios da melhor qualidade.
Contudo, e de forma dialética, a invenção das máquinas de fiar que
havia suprido aquela falta anterior de fio gerou escassez de tecelões. Os
profissionais exigiam altos salários em razão de sua qualificação. Tornou-
se logo evidente que o único remédio, do ponto de vista dos patrões
manufatureiros, seria a substituição dessa força de trabalho por algum
mecanismo que tomasse o lugar do tear manual e, num só lance, tornasse
inútil a qualificação dos tecelões. Assim, a solução do “problema da fiação”
criou o “problema da tecelagem”. Embora os burgueses manufatureiros
não dependessem mais dos artesãos da fiação, faltava-lhes desembaraçar-se
dos tecelões que, por sua vez, detinham habilidade técnica. Caso pudessem
dispor de máquinas de fácil operação, máquinas que exigissem apenas
movimentos repetitivos e de rápida aprendizagem, o poder de barganha
dos tecelões seria neutralizado. Foi o que aconteceu com a invenção do
tear mecânico em 1785.
O bastidor hidráulico, a spinning mule e o tear mecânico eram máquinas
enormes, que exigiam força motriz para serem acionadas. Como as rodas
hidráulicas eram vagarosas e nem sempre se dispunha de cursos d’água
com força suficiente para movê-las, o aperfeiçoamento da máquina a vapor
tornou-se uma necessidade inadiável. Em 1782, já se tinha uma máquina,
cujo êmbolo operava em movimento circular, capacitando o motor a mover
a maquinaria das fábricas. A batalha capitalista começava a ser ganha.
Muitas inovações mecânicas antecederam a eclosão da Revolução In-
dustrial, cujo berço foi a Inglaterra da segunda metade do século XVIII.
De fato, é possível registrar nos dois séculos anteriores algumas invenções
significativas: o relógio de pêndulo, o termômetro, a bomba aspirante, a
roda de fiar e o tear para tecer meias e fitas. E observar a ocorrência de
melhoramentos técnicos na fundição de minérios e na obtenção do bronze,
além de importantes avanços na vidraria, na relojoaria e na construção
naval. A era da máquina não surgiu, assim, de súbito. A viabilização das
inovações técnicas resultou da eficácia dos capitalistas em ampliar sua
margem de controle sobre o trabalho e sobre a lucratividade do negócio.
A difusão da maquinofatura foi lenta. Somente no transcurso do século
XIX é que os países europeus continentais fizeram sua própria Revolução
Industrial, alguns deles saltando diretamente para a segunda fase do que
se convencionou chamar de Segunda Revolução Industrial.
26 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

Na sua primeira fase, a Revolução Industrial privilegiou o carvão, o


ferro e a máquina a vapor; na segunda fase, o aço substituiu o ferro como
material industrial básico, e a eletricidade e os produtos do petróleo su-
peraram o vapor como principais fontes de força motriz. O gás natural
constituiu também fonte de energia complementar e, até hoje, encontra-se
em ascensão. Alguns traços relevantes da Segunda Revolução Industrial
merecem destaque:15

„ O desenvolvimento da maquinaria automática para a produção em


massa;
„ Um altíssimo grau de especialização do trabalho, em virtude das

correias transportadoras e das linhas de montagem;


„ O uso de ligas do ferro (manganês, cromo, tungstênio, vanádio,

molibdeno), de metais leves (alumínio, magnésio) e dos produ-


tos da química industrial (corantes, matérias plásticas, borracha
artificial);
„ A invenção do motor a combustão interna que revolucionou os

transportes, não só em função do automóvel movido à gasolina,


mas principalmente em função dos motores a diesel instalados em
locomotivas, navios e caminhões;
„ O extraordinário desenvolvimento da aviação;

„ A invenção do dínamo, que converte a energia mecânica em energia

elétrica;
„ A revolução nas comunicações com o telefone, o telégrafo sem fio

e o rádio;
„ A invenção da luz elétrica com a universalização da lâmpada de fila-

mento incandescente, que trouxe enorme bem-estar às populações;


„ A invenção da linotipo, acelerando a composição de textos e reper-

cutindo diretamente sobre a edição de jornais e livros;


„ O aperfeiçoamento da refrigeração artificial;

„ A invenção da máquina de escrever;

„ O desenvolvimento da fotografia cinematográfica.

Enquanto a base técnica da primeira fase da Revolução Industrial foi


a mecânica, a base técnica da segunda fase foi a eletromecânica. Agora, a
Revolução Digital da segunda metade do século XX, fundada na eletrônica,
conduz a uma nova transmutação.
1. As revoluções tecnológicas 27

A Revolução Digital
O totalitarismo soviético e seu sistema de relações corporativo-esta-
tistas ruíram em boa parte por causa de sua rigidez burocrática e de sua
intolerância ideológica. Preso aos paradigmas do planejamento central e
do messianismo do partido único, não conseguiu responder às exigências
de flexibilidade, inovação contínua e competitividade que vincam o fim
do século XX. Não conseguiu dar o salto qualitativo em direção a uma
sociedade da informação, ainda que sua indústria bélica demonstrasse
certa capacidade para absorver avanços tecnológicos, ao contrário do resto
da indústria civil. O “socialismo real” morreu nos braços da Revolução
Industrial sem ser capaz de realizar a Revolução Digital: não conseguiu
converter a ciência e a tecnologia em novas fontes de produção de valor,
sufocado pelas restrições inerentes ao caráter policial do Estado. Não
concedeu aos trabalhadores coparticipação no comando do processo téc-
nico de produção e não logrou liberalizar as relações de produção, uma
vez que foi uma revolução de gestores. Não se empenhou em apagar a
antiga separação taylorista entre gestores e executantes e não partilhou os
frutos do sobreproduto social, embora fosse ideologicamente igualitário.
Generalizou tão somente a saúde básica e a educação fundamental, e sub-
sidiou a moradia popular e a alimentação. Afundou de vez quando foram
desperdiçados enormes recursos numa corrida armamentista suicida com
os Estados Unidos, nos apoios ou nas intervenções militares empreen-
didas (Coreia, Hungria, Tchecoslováquia, Vietnã, Angola, Afeganistão)
e nos privilégios exclusivos da nomenklatura partidária — efetiva classe
dominante e detentora corporativa dos meios de produção.
Em contraposição, as relações capitalistas sociais foram geradas por
décadas de lutas políticas e sindicais no seio do capitalismo excludente.
Embora mantivessem a propriedade privada, elas alargaram fortemente
a base social da apropriação dos excedentes, permitindo com que amplas
parcelas da população se beneficiassem de uma maior qualidade de vida.
As ações militantes da sociedade civil forçaram as empresas a efetuar
pesados investimentos para preservar o meio ambiente e para garantir
a qualidade de seus produtos e serviços.16 A necessidade de contar com
profissionais qualificados, que pudessem processar enormes quantidades
de bens e serviços personalizados e que soubessem operar equipamentos
sofisticados, demandou intensa capacitação prévia de quem produz. Muitos
trabalhadores obtiveram assim corresponsabilidade no processo técnico
28 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

de produção e conseguiram ter acesso à parte dos lucros ou dos resulta-


dos produzidos. Um ambiente liberal-democrático tolerou e incentivou
a crítica, as divergências, a pesquisa científica, o pensamento pluralista e
a criatividade. Por fim, as relações econômicas favoreceram as invenções
técnicas e seu competente aproveitamento.
A revolução tecnológica que superou os marcos da Revolução Industrial
fincou nesses terrenos profundas raízes. E o contraste entre essas duas re-
voluções pode ser vislumbrado se compararmos a edição e a distribuição
de um livro impresso com o livro digital. Enquanto o primeiro exige uma
logística complexa, o segundo se resume aos bits que o formam e pode
ser distribuído a dezenas de milhões de pessoas pela Internet, de forma
instantânea, com custo mínimo de composição e difusão. Mas para melhor
distinguir essa ruptura, vejamos os limites à automatização na Revolução
Industrial e na Revolução Digital. Para tanto, vamos dividir o trabalho
humano em duas categorias: o trabalho manual e o trabalho intelectual.
Na Revolução Industrial, o trabalho manual é principalmente tra-
balho desqualificado ou semiqualificado (gênero A), haja vista o tipo de
divisão técnica do trabalho (tarefas parcelares e linhas de montagem). Os
limites à automatização decorrem então da resistência física da força de
trabalho, porque há um ponto a partir do qual pouco adianta acelerar
a correia transportadora, uma vez que os trabalhadores não conseguem
acompanhá-la, seja por exaustão, seja pela incapacidade de cumprir no
tempo previsto a tarefa fixada.
Em paralelo ao trabalho desqualificado, funciona uma parcela menor
de trabalho manual, cujo caráter é qualificado (gênero B) — exemplo dos
operadores das máquinas-ferramentas universais ou dos ferramenteiros de
bancada. Os limites à automatização aqui são outros: esbarram na habili-
dade técnica dos trabalhadores ou em seu saber profissional.
O trabalho intelectual, por sua vez, realiza-se como trabalho de execu-
ção de rotinas padronizadas — exemplo da contabilidade (gênero C). Os
limites à automatização derivam dos sistemas de controle e de processa-
mento de dados. Não se pode ir além de certo ponto de equilíbrio entre
o ritmo de operação das máquinas elétricas (de escrever ou calcular) e a
capacidade de acioná-las. Os operadores então continuam indispensáveis
para lançar os dados e para organizar as informações.
Mas o trabalho intelectual também ocorre como trabalho de concepção
criativa — exemplo dos projetos arquitetônicos (gênero D). Os limites
esbarram aqui no saber profissional dos técnicos, dos especialistas, dos
1. As revoluções tecnológicas 29

peritos e dos cientistas, detentores de conhecimentos cuja absorção de-


manda longo tempo de aprendizagem.
A automatização na Revolução Industrial é, portanto, uma automa-
tização de substituição do trabalho e esbarra nos limites físicos e mentais
dos trabalhadores. A automatização na Revolução Digital integra a produ-
ção à administração e aos escritórios de projeto e permite superar muitos
limites anteriores graças à microeletrônica. Vejamos então as mudanças
operadas pela Revolução Digital nesses precisos aspectos:17

„ No trabalho manual repetitivo e insalubre (gênero A), os limites à


automatização são rompidos pela presença de robôs e autômatos
programáveis, que garantem flexibilidade no uso dos equipamen-
tos e permitem que se ultrapasse a barreira da resistência física dos
trabalhadores; asseguram também a conformidade aos padrões de
qualidade.
„ No trabalho manual profissional e qualificado (gênero B), os limites

do saber dos trabalhadores se expandem pelo fato de as máquinas-


ferramentas com controle numérico embutirem softwares. Em
decorrência, dispensam-se em grande medida os trabalhadores cha-
mados “oficiais” à moda antiga e passam a ser utilizados operadores
polivalentes, detentores de escolarização formal e de treinamento
adequados para o manejo desses novos equipamentos.
„ No trabalho intelectual de execução de rotinas padronizadas (gênero

C), o uso de microcomputadores, de terminais digitais de venda, de


calculadoras eletrônicas de bolso, de relógios de ponto digitais etc.
simplificam as operações de tal modo que o processamento de dados
e a padronização das informações se universalizam nos escritórios,
lojas, bancos, hospitais, escolas, fábricas e fazendas.
„ No trabalho intelectual de concepção criativa (gênero D), os equi-

pamentos CAD/CAM (projetos de manufatura auxiliados por com-


putador), as mesas de edição, as estações de trabalho científicas ou
de editoração liberam os técnicos e cientistas de um sem-número de
tarefas de caráter redundante. E lhes facultam o tempo necessário
para que possam se dedicar à concepção de produtos e processos
produtivos. Afinal, dotados de aplicativos, os equipamentos permi-
tem realizar inúmeros cálculos, desenhos, edições, simulações, pagi-
nações e operações dos mais variados tipos, com extrema facilidade
e rapidez. Cada vez mais os softwares se tornam amigáveis e o saber
30 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

técnico, ao ser compartilhado por usuários mais generalistas, deixa


de ser o monopólio de alguns.

A qualificação do trabalho deixou de ser o apanágio dos trabalhadores


intelectuais e dos operadores de máquinas-ferramentas universais ao se
generalizar e ao atingir todos os trabalhadores empenhados em processos
informatizados. Isso deflagrou uma mutação na forma de as empresas
remunerarem o trabalho: em vez de pagarem pela quantidade de tempo
de trabalho despendido (input), preferiram remunerar os resultados pro-
duzidos (output). Um exemplo paradigmático é o do teletrabalho, em que
as atividades produtivas se realizam fora do local de emprego, mediante
uma conexão com a sede feita por telecomunicação. Não interessa mais
saber onde e quando algo foi produzido, mas se o produto corresponde
às necessidades da empresa, se o prazo e as especificações técnicas foram
respeitados e se o esforço adiciona o valor desejado.
As empresas competitivas, produtoras de alto valor e amplamente
informatizadas, reformulam por inteiro a organização do trabalho. As ativi-
dades, outrora fragmentadas em tarefas simples, rotineiras e estereotipadas,
passam a ser agregadas em processos que transferem valor para o cliente.
Os trabalhadores reunidos em equipes multifuncionais se responsabilizam
por processos inteiros ou por segmentos de processos, assumindo desde
logo algumas funções gerenciais. Sua capacitação demanda anos de estu-
do e de habilitação técnica, ao contrário do curto tempo de treinamento
anterior a que os trabalhadores industriais estavam sujeitos. O controle do
processo de trabalho deixa de ser responsabilidade exclusiva de um staff
de especialistas e de uma gerência centralizadora. Intensifica-se e amplia-
se o uso da tecnologia da informação, num contexto em que o acesso
aos dados é compartilhado. Substituem-se os treinamentos esporádicos
por uma educação permanente. Em vez de departamentos funcionais,
com estruturas hierárquicas de supervisores e gerentes, têm-se equipes de
processo, com estruturação mais nivelada e cuja coordenação fica a cargo
de líderes, ou de gestores que desfrutam de liderança e que operam como
mentores, orientadores, instrutores ou treinadores.18 No mais, usam-se
“gerentes de projetos”, ou de empreendimentos, em estruturas matriciais,
voltadas para atender a contratos ou produtos específicos.
Ocorre que a conversão do layout produtivo nas organizações não é
um assunto meramente técnico, pois supõe uma drástica alteração das
relações de poder. De fato, constroem-se relações liberais em substituição
1. As revoluções tecnológicas 31

às relações autoritárias de poder, cujo corte é assimétrico e têm seu lastro


no temor das sanções — quando os subordinados vivem reduzidos à con-
dição passiva de súditos e executores de ordens. No novo formato:

„ Os escalões hierárquicos são contraídos e o desenho organizacional


assume a forma de trapézio;
„ O comando se baseia no respeito à competência técnica;

„ Os trabalhadores alcançam corresponsabilidade técnica na geração

de produtos e de serviços;
„ A cidadania organizacional prevalece assentada em direitos e deveres,

à semelhança do que ocorre na sociedade inclusiva.


„ A “posse” ou a “apropriação real” dos instrumentos de trabalho por

parte dos trabalhadores desemboca na partilha das decisões técnicas


com os gestores, configurando uma gestão participativa.

De maneira que, a partir da Revolução Digital, o poder deixa de ser a


grande força que disciplina os agentes organizacionais para dar lugar ao
saber como fonte de coesão, orientação e legitimação. Cresce a produti-
vidade com o aumento da informatização e com a redução dos escalões
hierárquicos. E como as empresas exigem força de trabalho qualificada,
a aprendizagem contínua torna-se parte integrante do trabalho. Daí a
substituição da velha “organização-quartel” pela “organização-escola”,
ou pela “organização de aprendizagem” que qualifica incansavelmente
seus quadros e os capacita a aprender mais e melhor do que outrem. Para
acompanhar os avanços tecnológicos e se adaptar às circunstâncias, as
empresas tendem a se converter em laboratórios de ideias e de métodos.
Ora, como fazer isso sem interlocução aberta, fluidez de propostas críticas,
tolerância das diferenças de opinião, viabilização de incessantes negocia-
ções? O socialismo real que o diga...
Cada vez mais, atividades como produzir e consumir implicam que os
agentes estejam informados, pesquisem opções e resolvam problemas. A
qualificação intelectual acaba sendo indispensável para a própria vida em
sociedade. Os produtos tornam-se “inteligentes”, a exemplo dos prédios
que, por meio de equipamentos centralizados, monitoram a temperatura
ambiente, as instalações elétricas, as comunicações, a violação da seguran-
ça, o uso dos elevadores, o controle de incêndios e a incidência de raios
solares nos escritórios. Ou ainda, a exemplo de pneus que informam a
pressão do ar; roupas que alteram a temperatura do corpo de acordo com
32 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

o ambiente; equipamentos eletrônicos que controlam o gasto de energia de


suas baterias; carros com piloto automático, guiados por mapas eletrônicos
e satélites que informam os roteiros mais adequados e os pontos de con-
gestionamento; cartões inteligentes com memória e funções programáveis
que, entre outras atribuições, substituem a moeda circulante; sistemas
antirruído que recolhem sons do ambiente e os cancelam pela criação de
sons opostos; terminais digitais de venda que revelam as preferências dos
clientes — artigos, marcas, tamanhos, embalagens —, traçam a curva dos
dias e horários de compras, captam a assiduidade da clientela e orientam
a quantidade de produtos a repor.
O trabalho mental agrega valor e, portanto, é capaz de produzir exce-
dentes econômicos. Ao comprar papel e ao imprimir notícias e comentá-
rios, sob a forma de jornal ou revista, um valor é adicionado aos insumos
materiais e os leitores estão dispostos a pagar por ele. Ao organizar dados
em tabelas e gráficos de modo a suportar uma análise, ou uma demons-
tração, elementos não lapidados são transformados em informações va-
liosas para decidir e agir. Ao lançar um produto com um design atraente
aos olhos dos consumidores, obtém-se maior visibilidade mercadológica
e o produto “se vende sozinho” ou a um preço superior. Reconhecer a
capacidade de o trabalho simbólico gerar valor não significa converter a
ciência e a tecnologia em fetiches. O fato de a força física perder cada vez
mais importância em relação à força intelectual apenas fortalece o cará-
ter estratégico do trabalho humano. O proletariado — entendido na sua
acepção clássica de operariado ou de “classe operária” —, formado por
trabalhadores manuais assalariados, vai sendo substituído por profissionais
polivalentes e qualificados, igualmente assalariados, que têm acesso aos
resultados ou aos lucros. As relações de trabalho que os articulam perdem a
rigidez anterior e passam cada vez mais a depender de seu preparo técnico,
nível de produtividade e capacidade de agregar valor.
A exemplo da força física do trabalho, a força mental do trabalho
produz igualmente valor. E o faz de forma exponencial, ao se valer de
equipamentos informatizados e de tecnologias em constante evolução.
Quem pensa o contrário está reificando o pensamento científico e técnico,
ou imaginando uma sociedade por inteiro robotizada que funcionaria em
moto-contínuo sem presença humana. Enquanto a mecanização consti-
tui o marco técnico das duas fases da Revolução Industrial — com seu
parcelamento do processo produtivo, seguido pela “seriação” das partes
1. As revoluções tecnológicas 33

segmentadas —, o salto tecnológico da Revolução Digital corresponde à


automação, com um processo de produção integrado e simultâneo, ao
invés de fragmentado e em sequência.
Tomemos como ilustração o caso de uma caixa registradora na área
comercial. Na primeira fase da Revolução Industrial, o equipamento resu-
mia-se a uma máquina de somar de tipo mecânico, acoplada a uma gaveta
acionada por uma manivela. Na segunda fase da Revolução Industrial, a
caixa imprimia um cupom e seu funcionamento passou a ser elétrico. Logo,
tal configuração difere radicalmente do terminal digital de venda da atual
revolução tecnológica: um terminal de computador com gaveta, que faz
as vezes de caixa registradora, inclui um monitor colorido, um scanner
vertical para leitura de código de barras, uma impressora de três estágios
capaz de emitir cheques e cupons, além de um teclado que traz embutido
uma leitora de cartões para transferência eletrônica de fundos.
Em outros termos, a caixa registradora anterior era tão somente uma
máquina de somar, que imprimia cupons e operava como gaveta para
guardar dinheiro. Não podia armazenar dados, nem realizar o balanço
das operações ou sua própria contabilidade. Em contrapartida, o terminal
digital de venda funciona como central de informações: “lê” os produtos
e evita que o operador digite códigos ou preços; manipula valores escri-
turais; preenche cheques; emite cupons fiscais; soma e discrimina todas as
operações do dia; coleta dados para a gestão dos estoques e para a análise
do perfil das vendas e dos consumidores; adquire o caráter de cérebro de
toda a operação de autosserviço.
Mais avançada ainda é a etiqueta inteligente ou smart tag, a sucessora
do código de barras. Trata-se de uma etiqueta equipada com um minúscu-
lo chip que possibilita a leitura de dados por radiofrequência. Enquanto
o código de barras indica apenas dados genéricos e é lido manualmente
por scanners, essa é uma ferramenta de automação que contém todas as
informações dos produtos, permite sua identificação por meio de sensores
e possibilita rastrear sua movimentação com grande economia de tempo.
Assegura também a introdução de novos dados em cada uma das etapas da
cadeia de suprimentos e constitui, por isso mesmo, um ponto de inflexão
radical tanto na fabricação, no controle e na logística, como nas compras,
na distribuição e nas vendas. Por exemplo, num supermercado, os produtos
colocados no carrinho do consumidor são lidos de forma automática e
instantânea. Isso elimina filas, garante conforto a quem compra e segu-
rança a quem vende. Em indústrias, a movimentação nos depósitos ganha
rapidez, minimiza os erros e também pode evitar furtos.
34 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

Outro exemplo diz respeito à televisão, que deixou de ser tirânica com
seu punhado de redes nacionais de sinal aberto impondo a programação.
Embarcou num processo de interatividade, cujo espectro mal se esboçou,
graças ao canal por assinatura, cujo sinal é diretamente captado de um
satélite por uma pequena antena parabólica. Suas vantagens são patentes
em relação à televisão a cabo ou à televisão com sinais codificados em
microondas. Pois, enquanto esses dois últimos sistemas restringem o aces-
so às residências localizadas em bairros “cabeados” ou às que recebem
retransmissão local, a antena parabólica capta o sinal em qualquer ponto
do território e com qualidade digital. De modo que centenas de canais de
imagem e de áudio têm sua difusão assegurada, e um serviço de pagamento
(pay-per-view) permite aos assinantes selecionar eventos esportivos ou
culturais de transmissão fechada, ou filmes inéditos que serão transmiti-
dos nos mais diversos horários do dia ou da noite. Com isso, o acesso à
informação e ao entretenimento torna-se uma vertiginosa escolha.
É importante destacar ainda o papel da robotização em todas as ativi-
dades produtivas e de serviços, pois a utilização de robôs não se resume
apenas a funções que envolvam riscos, exijam precisão, sejam repetitivas
ou exercidas em ambientes insalubres. Em virtude de sua rapidez e fle-
xibilidade, os robôs ultrapassam o âmbito da indústria automotiva, da
produção de bebidas, alimentos, componentes, remédios, cosméticos etc.
para avançar no terreno do manuseio de cargas, no acondicionamento de
hambúrgueres e na colocação de garrafas e latas em embalagens. Seu uso
tende a generalizar-se, desde as indústrias em grande escala até a produção
de poucas unidades de aviões e navios. Isso faz com que a presença dos
robôs se torne indispensável na paisagem de uma economia globalizada.
Resta dizer que, no capitalismo excludente da Revolução Industrial,
algumas tendências sobressaem:

„ O desenvolvimento de estratégias de dominação pela própria lógica


da reprodução ampliada do capital, assim como pela concepção
taylorista do processo produtivo;
„ O estímulo das grandes empresas para destruir ou absorver as pe-

quenas;
„ A universalização das imposições autoritárias na frente interna das

empresas, ao passo que, na frente externa, se configuram economias


comandadas por oligopólios e cartéis em que o poder dos fornece-
dores tudo rege;
1. As revoluções tecnológicas 35

„ A concentração dos trabalhadores industriais em larga escala nos


mesmos locais de trabalho, o que os leva a unir-se em sindicatos
poderosos para fazer face às inúmeras exclusões;
„ O surgimento dos magnatas do sistema que foram os barões do car-

vão, do aço, das ferrovias, do automóvel e das construções civis;


„ A enorme visibilidade física das organizações, que passam a ocupar

edifícios gigantescos e tendem a confundir-se com eles.

Em contraposição, no “associativismo” ou no capitalismo social da


Revolução Digital desenham-se outras tendências:

„ O desenvolvimento de estratégias relacionais ou associativas, em que


reponta o poder dos clientes ou dos consumidores (quem compra
vota com a carteira);
„ A importância decisiva dos destinatários finais, em virtude do forta-

lecimento do papel da sociedade civil como “poder compensatório”,


em relação às empresas e às demais organizações;
„ O estímulo para que se constituam joint ventures, alianças estraté-

gicas e parcerias, acima das próprias competições que o mercado


introduz;
„ A excepcional competência de organizações velozes na aprendiza-

gem e na inovação que superam com desenvoltura as organizações


lerdas e burocratizadas da Revolução Industrial;
„ Um novo tipo de capitalismo que carrega um extraordinário dínamo

— um sistema de confrontações que se equilibram, ou de pressões


e de contrapressões, de freios e de contrapesos, de controles e de
contracontroles que só a democracia liberal consegue estabelecer
em sua plenitude;
„ O poder de negociação dos trabalhadores profissionais que se

torna mais individualizado e incrementado, embora eles estejam


mais dispersos, com o consequente enfraquecimento dos sindicatos
tradicionais;
„ A emergência de novos magnatas que são os cérebros dos softwares,

das redes sociais, das telecomunicações, das consultorias, do entre-


tenimento, do lazer e do turismo.

Por meio das tecnologias do teleprocessamento e das teleconferências,


as organizações tendem a se tornar virtuais, porque é mais fácil e mais
36 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

barato transportar a informação do que as pessoas. Escolas dão cursos à


distância e suporte on-line para ensinar disciplinas a seus alunos e para
reciclar professores localizados em remotas cidades do interior. Bibliote-
cas são consultadas em qualquer parte do mundo, via Internet, e jornais
eletrônicos que dispensam papel, transporte e correio tornam acessíveis
informações instantâneas. Faculdades de medicina e organizações não
governamentais dão consultas gratuitas também via rede. Intervenções
cirúrgicas são levadas a efeito à distância, colocando centros médicos
em conexão e permitindo que especialistas forneçam orientação a outros
médicos ou até operem através de monitores, por meio da manipulação
de bisturis eletrônicos.
As organizações também tendem a deixar de ocupar um lugar deter-
minado ou um prédio específico e passam a funcionar como atividade
— tornam-se virtuais. Tudo à semelhança de uma biblioteca que tivesse o
conteúdo de todos os seus livros registrados em bits: seu antigo imóvel,
agora vazio, seria apenas assombrado pela memória das multidões que ali
acorriam e se transformaria em edifício tombado. Num passe de mágica,
ninguém mais precisaria ir até lá para consultar o que quer que fosse, pois
tudo estaria ao alcance das telas de computador. É, de forma simétrica,
o caso das universidades abertas em que os estudantes se espalham pelo
planeta, valendo-se de sistemas de ensino multimídia e do acesso a redes de
bancos de dados; é a chamada escola em casa (home school), na qual o aluno
faz de seu quarto a escola e escolhe seu próprio horário de estudo. Ou é o
caso de profissionais empenhados num projeto, cada qual trabalhando em
sua casa (teletrabalho). Ou de bancos em domicílio (home banking), cujos
clientes obtêm saldos e extratos bancários através de consultas eletrônicas,
fazem resgates e investimentos, pagam contas e sacam dinheiro através de
cartões inteligentes. Ou ainda de repórteres empenhados em entrevistas,
reportagens ou pesquisas de campo, e de vendedores disseminados num
mercado mundial, munidos de equipamentos eletrônicos diretamente co-
nectados a servidores. Esses exemplos constituem uns tantos conjuntos de
agentes que se vinculam a um eixo administrativo através de computadores
portáteis ou não, de telefones celulares, de salas de teleconferências. For-
mam assim organizações virtuais, “coletividades sem um lugar”, entidades
em que a administração das pessoas se faz sem contato físico.
Tal mudança apenas magnifica outra já em curso há algum bom tempo:
a substituição dos suportes materiais — ou dos objetos físicos necessários
para a divulgação dos bens simbólicos — por textos, sons e imagens
1. As revoluções tecnológicas 37

digitalizados e veiculados por fibras ópticas e satélites. Ou, para usar a


expressão consagrada por Nicholas Negroponte, os bits substituem os
átomos. Isso faz com que não mais se precise comprar CDs para ter acesso
a músicas, nem que se adquiram jornais, revistas ou livros em papel para
poder ler ou estudar; que não se precise tampouco de vídeos ou DVDs
para assistir a filmes, documentários, entrevistas ou shows, porque todos
esses e outros elementos simbólicos podem ser armazenados na “nuvem”
(cloud computing) como bits de informação em servidores que gerenciam
uma rede de computadores. Basta dispor de um equipamento digital e o
milagre da conexão sem fio se opera — galáxias de informação estão à
disposição num piscar de olhos. Aliás, bem antes de findar o século, Bill
Gates, o fundador da Microsoft, profetizou que a infovia transformaria
nossa cultura tão radicalmente quanto a prensa e o tipo móvel de Gu-
tenberg o fizeram no fim da Idade Média.
De outra parte, está em andamento a substituição dos combustíveis
fósseis, ricos em carbono e altamente poluentes — o carvão e o petró-
leo — por fontes energéticas renováveis e limpas, tais como a energia do
sol, dos ventos, das marés, das quedas d’água, da biomassa ou do calor
do centro da Terra. De fato, as células fotovoltaicas convertem a luz so-
lar em eletricidade e as turbinas eólicas comparam-se aos de uma usina
elétrica à base de carvão. Com a diferença que tanto o sol como o vento
ajudam a economizar combustível, não emitem dióxido de carbono ou
qualquer poluente. Além do mais, o uso das energias solar e eólica permite
produzir gás de hidrogênio, uma substância de combustão limpa e fácil
de transportar. E mais: ao lado da energia hidrelétrica e geotérmica há a
energia da biomassa. Esta inclui o esterco e demais resíduos acumulados
em fazendas, além de certas plantas cultivadas por seu alto teor energéti-
co. Todos esses recursos são fontes naturais de energia e não se esgotam,
por serem renováveis. Aliás, prenuncia-se uma revolução genômica com a
possibilidade de criação de microrganismos sintéticos que operariam como
softwares vivos e produziriam biocombustíveis, sementes, água potável,
vacinas e biofertilizantes.
A Revolução Digital faculta, por fim, outra transformação de enver-
gadura: contribui para mudar o modo cartesiano de refletir e de ordenar
o mundo, fazendo com que se passe para um pensamento holístico, que
consiste em apanhar a complexa teia de interdependências dos fenôme-
nos, concebidos como sistemas abertos de relações. E, quando se trata de
expor o pensamento, o movimento vai da linearidade e da obediência à
38 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

cronologia para a montagem vertiginosa de imagens trazida pela videoarte


e pela computação gráfica. Trata-se de um movimento que deságua numa
conexão criativa, e em tempo real, entre emissores e receptores.
De fato, o pensamento cartesiano remete a um mundo dominado
por narrativas em sequência, com começo, meio e fim; está povoado por
expressões verbais e por ideias abstratas; e, na infinita repetição de seus
movimentos, à semelhança da metáfora do relógio mecânico, sua aborda-
gem é analítica e estática. A nova forma de pensamento apreende o mundo
em fluxo ou em ação, um mundo conjugado no gerúndio, uma espécie
de hipertexto que relaciona funções ou estruturas, embora pertencentes
a totalidades diversas.
Ao universo literário e gutenberguiano sucede um universo em que
prevalece o visual inter-relacionado com outras linguagens — a radiofônica,
a televisiva, a cinematográfica, a videográfica. À medida que os veículos
condicionam a feição da mensagem, o próprio significado das ações re-
tratadas acaba dependendo do modo específico como se constrói cada um
dos códigos. São escrituras não sequenciais, mídias que possibilitam o uso
sinérgico do som, do texto e da imagem, e cuja difusão processa-se em
tempo real. Trata-se, por conseguinte, de um modo de exposição moldado
tanto pela intensa interatividade entre os agentes como pela multiplicidade
dos meios de comunicação e pela simultaneidade das mensagens — verda-
deira dança de contextos conceituais que aparentemente nada ordena.
Como isso se tornou possível? Ao longo da história das sociedades hu-
manas, o espaço, o tempo e a massa sempre foram relativamente estanques.
Os transportes sempre foram lentos e difíceis e, por via de consequência,
a transposição das distâncias sempre exigiu um tempo extenso. A massa,
em se tratando de recursos materiais é naturalmente tangível e mantém
sua natureza independente. Hoje, porém, o que ocorre? A velocidade
dos transportes encurta o espaço, a conectividade das telecomunicações
transpõe esse mesmo espaço de forma instantânea e a intangibilidade dos
recursos simbólicos supera a importância da massa sob a forma de energia
e de informação. Ou seja, a existência humana no planeta deixou de ser
a mesma, e os agentes sociais começam a sofrer uma mutação insensível
em seu modo de perceber o real e em seu modo de retratá-lo.

Notas
1. A ciência da informação nasceu na década de 1960, e o entendimento da informação como conceito
unificador, subjacente ao funcionamento dos sistemas organizados, ganhou corpo na década de
1. As revoluções tecnológicas 39

1970 — momento preciso da história da cultura em que a produção científica e tecnológica foi
tida como fator de produção e fonte de riqueza. Clara coincidência com a mudança que se operava
na base técnica dos processos produtivos, passando da eletromecânica para a eletrônica.
2. Toffler, Alvin. Powerschift: As Mudanças do Poder. Rio de Janeiro: Editora Record, s/d. E, do
mesmo autor: A Terceira Onda (da mesma editora), além da obra seminal: O Choque do Futuro.
Rio de Janeiro: Editora Artenova, 1973.
3. Tais como talheres, copos e pratos de plástico, vestidos ou roupas íntimas feitas em papel, reci-
pientes sem retorno, móveis e eletrodomésticos com tempo de uso deliberadamente curto.
4. Hoje em dia, a reciclagem é uma indústria. Recicla-se de tudo: papéis, plásticos, metais, vidro,
madeira, asfalto e até concreto.
5. Esta discussão encontra-se mais desenvolvida no Anexo III, disponível no Web site da Editora,
sob o título de “As formas de gestão”.
6. O próprio autor, em sua tese de doutorado (Srour, Robert Henry. Modos de Produção: Elemen-
tos da Problemática. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978, pp. 264-265), escrita em 1976-77,
caracterizou a base técnica eletrônica como “revolução cibernética”. Mas falhou ao considerar
que essa revolução desdobraria a Revolução Industrial, sem perceber que as relações de trabalho
seriam redesenhadas no seio das próprias relações capitalistas de propriedade.
7. A natureza dessa profunda transformação nos remete à possibilidade da distribuição universal
da informação e, portanto, à questão da posse democrática da informação que faculta maior
participação decisória e potencializa a produtividade dos agentes sociais.
8. Há vários tipos de polivalência. Os mais simples, de caráter multifuncional, envolvem tarefas
parceladas e máquinas semelhantes, seguindo a lógica de “vários homens/várias tarefas/várias má-
quinas”: de forma vertical, eles integram tarefas indiretas de manutenção preventiva, controle de
qualidade e supervisão às atividades produtivas, além de realizar a rotação por diferentes postos de
trabalho. O mais elaborado tipo de polivalência tem caráter multiqualificante: envolve atividades
complexas e máquinas diferentes; opera também a rotação por diferentes postos de trabalho,
com a importante diferença de levar à formação de grupos semiautônomos que fabricam um
produto completo ou uma parte significativa dele. Nesses grupos, o repertório de conhecimentos
dos trabalhadores é ampliado e a supervisão de processos produtivos altamente automatizados
e complexos é assumida por eles. Conforme Salerno, Mário S. Flexibilidade, organização e tra-
balho operatório: elementos para análise da produção na indústria. Tese de Doutorado. POLI/
USP, São Paulo, 1991, apud Noela Invernizzi: “Qualificação e novas formas de controle da força
de trabalho no processo de reestruturação da indústria brasileira: tendências dos últimos vinte
anos”, ANPED 2000.
9. O fato de que os fundos de pensão e os fundos de investimento tenham adquirido boa parte dos
haveres financeiros de muitos países capitalistas não elimina o caráter privado da apropriação
dos lucros. Os fundos apenas respondem “em conjunto”, e profissionalmente, aos detentores de
cotas que podem se desfazer delas no mercado quando bem lhes aprouver, sendo, por isso mesmo,
proprietários privados.
10. O economista norte-americano Marc Uri Porat retirou dos famosos setores econômicos de
Colin Clark (primário/agrícola, secundário/industrial, terciário/de serviços) todas as atividades
de informação, e compôs o conceito de setor quaternário ou de informações. Pressupôs que a
atividade de informação devesse incluir todos os recursos envolvidos na produção, processamento
e distribuição de mercadorias, bem como os dos serviços de informação.
11. Houve estudiosos que apreenderam a evolução social como movimento cíclico. É o caso de So-
rokin, que identificava três estágios de civilização — um bom, um mau e um transitório — que
se sucediam numa espécie de eterno recomeço, assim como Oswald Spengler, que descreveu a
história das civilizações como o da vida humana — nascimento, maturidade, declínio e morte.
Ver Rocher, Guy. Sociologia Geral. Lisboa: Editorial Presença, 1971, pp. 101-102.
12. Em Modos de Produção..., o autor estuda exaustivamente esta questão e mostra as virtualidades
estruturais das rupturas socioeconômicas e das passagens de uma sociedade para outra.
13. Ver Srour, Robert Henry. Classes, Regimes, Ideologias. São Paulo: Editora Ática, 1987, pp. 119-
129, ou, de forma bem mais desenvolvida, Modos de Produção..., pp. 313-347.
40 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

14. Esse sistema baseava-se na produção realizada por artífices, em suas casas, com instrumentos de
trabalho próprios ou não, mas com matéria-prima fornecida pelos mercadores que patrocinavam
a operação. O pagamento era feito por empreitada.
15. Burns, Edward M. História da Civilização Ocidental. Porto Alegre: Editora Globo, 1959, pp.
674-684.
16. É interessante lembrar que os chamados produtos verdes ou ecoprodutos supõem: reduzido
consumo de matérias-primas e elevado índice de conteúdo reciclável; produção não poluidora
e materiais não tóxicos; não realização de testes desnecessários com animais e cobaias; não
produção de impacto negativo ou de danos a espécies em extinção; baixo consumo de energia
durante a produção, a distribuição, o uso e a disposição dos resíduos; embalagem mínima ou
nula; possibilidade de reutilização ou reabastecimento; período longo de uso, permitindo atua-
lizações; possibilidade de coleta ou desmontagem após o uso; possibilidade de “remanufatura”
ou reutilização (Gazeta Mercantil. Gestão Ambiental, fascículo 8, 8 de maio de 1996).
17. Valemo-nos aqui da elucidativa contribuição de Tauille, José Ricardo. “Aspectos sociais da auto-
mação no Brasil.” In: Lúcia Bruno e Cleusa Saccardo (coordenadoras). Organização, Trabalho e
Tecnologia. São Paulo: Atlas, 1986, pp. 19-26.
18. É preciso diferenciar claramente os conceitos de gestor e de líder. O primeiro haure sua força
do cargo ocupado e do mando que exerce (sua legitimidade deriva da confiança que desfruta
junto a seus superiores), o segundo da ascendência sobre outrem e da influência que irradia (sua
legitimidade deriva da confiança que desfruta junto a seus liderados). Ver o Capítulo 4 sobre “O
poder nas organizações”.
2
Sistemas mundiais
e capitalismo social

Os sistemas mundiais
A partir da Revolução Neolítica, formaram-se sistemas mundiais ou
mundos constituídos por sociedades desiguais entre si.1 A forma de orga-
nização desses sistemas lembra o figurino dos círculos concêntricos. No
núcleo, localizam-se um ou mais Estados centrais e reitores; na periferia,
gravitam regiões ou Estados dependentes. Os níveis de subordinação dos
espaços periféricos diferem entre si, assim como diferem as articulações
internacionais que vinculam essas sociedades.
As articulações são: o comércio distante, o tributo, a renda fundiária,
os pactos coloniais, as religiões e, mais recentemente, os blocos militares, a
mídia e os blocos econômicos. Em outros termos, estabeleceram-se várias
divisões internacionais do trabalho no seio de “espaços mundiais” em que
se combinam mecanismos econômicos, políticos e simbólicos.

„ O primeiro sistema conhecido foi o Sistema Mundial Tributário, di-


fundido na Antiguidade e na Idade Média. Em torno de um Império
do Meio, espécie de “centro do mundo”, alguns Estados vassalos se
agregavam e populações nômades flutuavam em suas margens. Os
exemplos mais significativos foram os impérios da Mesopotâmia
(em que se sucederam sumérios, babilônios e assírios); o Egito, a
China e a Índia antigos; a Pérsia, Roma, Bizâncio e a Mongólia. Suas
articulações foram: a) o tributo, garantido mediante a submissão
dos povos pela força das armas; e b) a renda fundiária, traço de
42 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

união entre os Estados dominantes e as classes proprietárias das


regiões vassalas.
„ O sistema mundial tributário conviveu com outro, baseado no comér-

cio distante: trata-se do Sistema Mundial Mercantil, que se assentou


no capital comercial ou na troca de bens realizada mediante a adição
de um excedente econômico. Acontece que a natureza maleável do
sistema o condenou a uma posição secundária e acessória, ainda
que tenha florescido em diferentes épocas e regiões, graças à ação
de inúmeros povos comerciantes. Podem ser citados os fenícios, os
cartagineses, os gregos, os genoveses, os venezianos, os holandeses,
os hanseatas, os malaios e os árabes.
„ Quando os impérios coloniais da Idade Moderna se consolidaram,

o sistema mundial mercantil ganhou caracteres mais permanentes


e transformou-se em Sistema Mundial Mercantilista, cujas articula-
ções internacionais foram: a) os pactos coloniais que asseguravam
às metrópoles o monopólio do comércio e da navegação; b) o tri-
buto cobrado sobre quaisquer atividades realizadas nas possessões
coloniais; e c) as missões religiosas responsáveis pela evangelização
do gentio. Diversos centros metropolitanos operaram então como
núcleos imperiais entre os séculos XVI e XVIII — Espanha, Portugal,
Inglaterra, Holanda e França. A coexistência entre esses Estados
nacionais (em geral monarquias absolutistas) nunca foi pacífica,
bem ao contrário: ela foi conturbada por conflitos armados e por
um precário “equilíbrio europeu”.
„ No século XIX, de início sob o influxo do capital industrial e da

Revolução Industrial, depois sob a batuta do capital financeiro, o


sistema mundial mercantilista foi superado pelo Sistema Mundial
Colonialista. A nova configuração apontou para uma partilha do
mundo entre Inglaterra, França, Holanda, Bélgica, Alemanha e Itália.
Permaneceram ativos, porém, os impérios coloniais mercantilistas
da Espanha e de Portugal, sobretudo nos continentes africano e
asiático. Esses impérios, aliás, já haviam sofrido uma amputação
— a das colônias hispano e luso-americanas que, à semelhança das
colônias norte-americanas, obtiveram a independência política. As
nações europeias então se enfrentaram dos mais diversos modos
para completar a conquista dos territórios africanos e asiáticos que
restavam. As articulações internacionais estabelecidas foram: a) o
colonialismo, entendido como domínio territorial e econômico; b)
2. Sistemas mundiais e capitalismo social 43

o comércio distante, movido pelo lucro mercantil; e c) as religiões,


que aspiravam à regência das consciências.
„ Com a Primeira Guerra Mundial e a Revolução de Outubro na

Rússia, construiu-se o Sistema Mundial Imperialista que marcou a


primeira metade do século XX. As democracias liberais se confron-
taram com o totalitarismo fascista, visceralmente expansionista, e
com o totalitarismo comunista que, a despeito da bandeira do “so-
cialismo num só país”, abarcava dezenas de repúblicas e províncias
sob a égide da União Soviética. Em paralelo, emergiram os Estados
Unidos como potência econômica e depois militar. Lutas anticolo-
nialistas começaram a despontar. Duas articulações internacionais
permaneceram em vigor — o colonialismo e o comércio distante —,
enquanto a terceira articulação se apossava do imaginário coletivo: a
mídia (literatura, jornais, rádio, cinema) superou as missões religiosas
ou as religiões na conquista das mentes.
„ No terceiro quartel do século XX, após a Segunda Guerra Mundial,

formou-se o Sistema Mundial Neoimperialista, caracterizado pela


bipolaridade entre as superpotências (Guerra Fria entre Estados
Unidos e União Soviética) e pela constituição de um bloco orien-
tal, formado por países vinculados ao “socialismo real”. O êxito da
descolonização na África e na Ásia, bem como o protecionismo no
comércio internacional também deram o tom ao neoimperialismo.
Suas articulações internacionais foram: a) os blocos militares (OTAN,
Pacto de Varsóvia); b) os blocos econômicos (Comunidade Econômi-
ca Europeia, Comecon); e c) a mídia, que funcionou como eficiente
agência de difusão ideológica, em particular através do rádio e da
televisão.
„ No último quartel do século XX, formou-se um novo Sistema

Mundial Competitivo, cujos fundamentos são a multipolaridade


das potências militares e econômicas (ainda que os Estados Unidos
fossem a única superpotência militar), a globalização econômica
(internacionalização do processo produtivo, do mercado de trocas
e dos circuitos financeiros) e o comércio administrado (Organiza-
ção Mundial do Comércio) com suas medidas de liberalização e de
desregulamentação comerciais.2 Esse sistema está sendo articulado:
a) pela mídia, cada vez mais constituída em redes globais que as te-
lecomunicações e a internet viabilizam; e b) por blocos econômicos
com dinâmica acelerada e redesenho frequente.3
44 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

Isso posto, não parece que a globalização econômica esteja levando


a uma homogeneização universal, de natureza cultural e política. Pois o
Sistema Mundial Competitivo confronta civilizações tão díspares como a
islâmica, a confuciana (chinesa), a japonesa, a hindu, a eslavo-ortodoxa e
a ocidental — cujas porções anglo-saxônica, europeia e latino-americana,
aliás, abrigam enorme riqueza cultural, étnica e religiosa. E o processo em
andamento opera de forma dialética: ao mesmo tempo em que uniformiza,
diversifica; ao mesmo tempo em que unifica, particulariza. De outra parte,
o regime político liberal — com democracia representativa, alternância no
poder, respeito às liberdades democráticas e cidadania ativa —, ainda não
foi adotado na maior parte dos países contemporâneos. Neles persistem
muitos regimes políticos de exceção, com ambas as vertentes — a totalitá-
ria e a autoritária. Segundo a ONG norte-americana Freedom House que
investigou 194 países em 2010, 87 (ou 45%) poderiam ser considerados
livres, enquanto 47 (ou 24%) não seriam livres e 60 (ou 31%) seriam
parcialmente livres.
O Sistema Mundial Competitivo configura nova divisão internacional
do trabalho e mantém forte assimetria. De forma esquemática, o Primeiro
Mundo opera uma economia de serviços e de alta tecnologia, uma economia
do conhecimento com empresas “limpas” (não poluidoras) e produtos de
alto valor. No polo oposto, a economia do Terceiro Mundo abriga setores
poluidores e especializa-se em produtos agroindustriais, matérias-primas e
manufaturados de tecnologia intermediária. Contrapõem-se, assim, uma
economia do conhecimento (knowledge-ware) — cujo combustível é a
“matéria cinzenta”, o engenho e o intelecto (brainpower) — e economias
agroindustriais, produtoras de hardware, movidas pela força física e pelo
labor penoso em condições bastante precárias. O Primeiro Mundo pare-
ce empenhado em edificar uma sociedade terciária e, simultaneamente,
quaternária, sintonizado com a avalanche das inovações geradas pela Re-
volução Digital. Por sua vez, o Terceiro Mundo ainda arrasta as carroças
e os vagões das sociedades agrícola (primária) e industrial (secundária), e
atua como força de reserva, a reboque do destino alheio.
Em síntese, os vários sistemas mundiais não devem ser concebidos
como etapas sucessivas no tempo, mesmo que sua descrição sinalize algu-
ma periodização, porque a análise histórica indica que tais sistemas não
se excluem. Bem ao contrário: eles funcionam de maneira coexistente no
tempo e coextensiva no espaço. Tome-se o caso de Portugal. Centro de
um império colonial de características mercantilistas até a Revolução dos
2. Sistemas mundiais e capitalismo social 45

Cravos em 1974, o país foi sucessivamente periferia dos sistemas colonia-


lista, imperialista e neo-imperialista. Da segunda metade do século XVII
em diante, ficou sob o domínio da Inglaterra; no século XX, passou para o
domínio norte-americano; em 1986, integrou-se à União Europeia, bloco
econômico que disputa a supremacia do sistema mundial competitivo com
o Acordo de Livre-Comércio Norte-Americano (Nafta) e a Apec. Assim,
embora fosse um “país central” em relação a algumas regiões periféricas,
Portugal não detinha uma posição hegemônica nos sistemas mundiais
aos quais pertenceu. E por que isso? Porque funcionava como “periferia
próxima” dos núcleos reais daqueles sistemas mundiais. Isso significa que
o formato clássico, que opõe países centrais a países periféricos em âmbito
planetário, se reproduz no seio dos blocos econômicos.

Figura 1

Os sistemas mundiais

Sistema Caracteres Articulações internacionais


Mundial

tributário Império do Meio tributo, renda


e Estados vassalos
mercantil povos comerciantes comércio distante

mercantilista impérios coloniais pactos coloniais, tributo,


missões religiosas
colonialista partilha do mundo colonialismo,
comércio, religiões
imperialista democracias versus totalitarismos, colonialismo,
lutas anticolonialistas comércio, mídia
neoimperialista bipolaridade EUA/URSS, mídia, blocos
descolonização, protecionismo militares e econômicos
competitivo multipolaridade e mídia e blocos econômicos
globalização econômica

A globalização econômica
A internacionalização dos processos produtivos, bem como a dos mer-
cados financeiro e comercial, transcende as fronteiras nacionais. De que
forma? Pela migração dos fatores de produção e pela intensificação dos
fluxos mundiais do comércio e dos ativos monetários. O processo tende a
ocupar todo o espaço planetário e a formar um mercado e uma economia
46 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

universais. Tais fatos o diferenciam em ampla medida de uma simples inter-


nacionalização. Mas não só: ganham em importância o fornecimento global
(global sourcing), os produtos mundiais e o trabalho globalizado.4 Ora, quais
são os fatores-chave da transformação? As telecomunicações em tempo real,
instantâneas e de âmbito mundial; os transportes rápidos e seu barateamento;
a redução dos custos de mobilidade dos fatores de produção.
Como efeitos de peso, podem ser alinhados: o crescimento exponencial
do comércio intrafirmas; a necessidade de obter ganhos de escala para
alcançar preços competitivos; as estratégias globais das empresas transna-
cionais; a revolução dos processos produtivos que redefine as vantagens
comparativas entre as nações;5 as ações governamentais voltadas para a
implantação de condições que propiciem a competição em escala global;
a difusão avassaladora de uma economia do saber, em que a qualidade da
força de trabalho, a ciência e a tecnologia aplicadas à produção estabelecem
novos patamares de competitividade internacional.
O centro nervoso da globalização econômica encontra-se no sistema
de comunicações, em particular nas telecomunicações. E por quê? Porque
a economia globalizada não corresponde à soma de todas as atividades
econômicas que se processam no mundo, mas à parte que funciona em
tempo real e em âmbito planetário. Ainda que fosse pequena, seu peso
específico a torna determinante, a ponto de afetar seriamente as econo-
mias nacionais. Basta dizer que informações sobre elevação de juros ou
sobre descontrole do déficit público veiculadas num contexto nacional
repercutem de imediato junto aos agentes financeiros internacionais e são
capazes de provocar comoções nos países envolvidos. Em contrapartida,
políticas de austeridade fiscal, combate à corrupção, privatização dos ativos
estatais ou desregulamentação econômica podem gerar efeitos virtuosos,
tais como o aumento dos investimentos produtivos e a dinamização do
intercâmbio comercial.
Nem por isso, todavia, o processo de globalização6 pode ser confun-
dido com a instituição de uma civilização planetária ou de uma aldeia
global, a não ser como metáfora. A conectividade das redes mundiais de
computadores, as telecomunicações e as diferentes mídias não asseguram
monopólio algum sobre as representações mentais, como se todos os po-
vos fossem submetidos a uma espécie de pasteurização do pensamento.
Desenvolve-se em paralelo um processo de regionalização em que blocos
econômicos institucionalizam o protecionismo negociado, diversificam e
segmentam os mercados em inúmeros nichos mercadológicos e acabam
2. Sistemas mundiais e capitalismo social 47

desenhando um caprichoso mosaico. Os particularismos políticos, por sua


vez, permanecem extremamente vivos, bem como as diversidades culturais
e étnicas. Aliás, quantas resistências irredentistas se ergueram em oposição
frontal ao modo de vida e às ideias ocidentais? Em toda parte, há tradições
arraigadas, dogmatismos ferozes e um ativismo integrista; rejeitam-se o
individualismo e a economia de mercado, o constitucionalismo e o respeito
aos direitos humanos; questionam-se a liberdade e a igualdade entre os
agentes sociais no tocante às origens, aos gêneros, às etnias ou aos credos;
abominam-se a democracia representativa, o governo pela lei e a separação
entre a Igreja e o Estado.
A tese que retoma o velho refrão hegeliano do fim da história — anun-
ciando desta vez o triunfo definitivo da democracia liberal, da liberdade
individual e da soberania popular — não passou de um wishful thinking até
o início do século XXI. E a razão é simples: a maior parte dos países não
poderia ser classificada como praticante da democracia liberal. Até mesmo
as velhas democracias representativas se viram fustigadas dentro e fora de
suas fronteiras pela ascensão do neofascismo, pelas ações terroristas do
radicalismo islâmico, pela multiplicação das máfias de toda ordem, pelo
crime organizado dos traficantes de drogas e pela explosão incontrolável
dos chauvinismos, dos etnicismos e dos fundamentalismos religiosos.7
Alguns extremismos chegam a combinar a defesa apaixonada de
padrões culturais particularistas com algum nacionalismo de coloração
étnica e religiosa e acabam desembocando na violência cega. Os exemplos
são muitos: a implosão da ex-União Soviética com seu rastro de conflitos
intestinos (caso notório da Chechênia); o esfacelamento da ex-Iugoslávia
e o processo de “limpeza étnica” levado a cabo pelos sérvios contra os
muçulmanos da Bósnia-Herzegovina e de Kosovo; as guerras civis no
Líbano, na Somália e em Ruanda, com suas práticas de genocídio; a letal
histeria de integristas islâmicos (palestinos, afegãos, sauditas, iraquianos,
iranianos, algerianos, egípcios), que se aplicam a demolir instituições laicas
e valores ocidentais, e a assassinar turistas, judeus e compatriotas tachados
de colaboracionistas.8
Não obstante esse quadro, o mundo pós-Guerra Fria assistiu à substitui-
ção da segurança militar, visível nos blocos militares e na polarização ideo-
lógica entre Leste e Oeste, pela competição econômica em escala mundial.
O processo transcorreu de forma contraditória, pois, juntamente com as
ameaças e as guerras regionais e localizadas, repontaram entendimentos e
acordos. Vale citar o desarmamento progressivo empreendido pelas então
48 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

duas superpotências norte-americana e soviética, na década de 1980; a


“paz dos bravos” assinada entre Israel e a Organização para a Libertação
da Palestina (Tratado de Oslo de 1993), posteriormente adiada sine die
com o assassinato do primeiro-ministro israelense Yitzhak Rabin; o acordo
histórico entre brancos e negros sul-africanos pondo fim ao apartheid e
facultando a eleição de um presidente negro;9 o amplo reconhecimento
das interdependências entre nações e os esforços esparsos para equacionar
as chamadas comunalidades.10
Nos primeiros anos do século XXI, todavia, esses esforços foram
obscurecidos pelos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 nos
Estados Unidos, que redundaram nas invasões do Afeganistão e do Iraque,
e que se desdobraram nos atentados de 2004 em Madri e de 2005 em
Londres.11 Em outros termos, o terrorismo internacional recolocou na
ordem do dia a questão da segurança internacional. Embora o eixo das
inquietações econômicas não tenha sido inteiramente deslocado, seus
contornos ganharam cores mais dramáticas com a proliferação de ameaças
intempestivas às potências ocidentais.
A expansão universal do capital e a crescente interdependência dos
negócios desafiam a autoridade do Estado-nação e põem em risco sua
capacidade de controlar decisões básicas das quais dependem seu futuro
e, em última análise, o próprio futuro da coexistência entre os homens.12
Por exemplo, os governos nacionais não têm como controlar taxas de
câmbio ou proteger suas moedas. Especuladores podem produzir oscila-
ções no valor de uma moeda de tal forma que o governo simplesmente
não consiga contra-atacar, ainda que gaste bilhões na tentativa de segurar
a taxa de câmbio.13 A “mão invisível” do mercado dispõe de um alcance
sem fronteiras: move recursos, informações, pessoas e bens para onde as
oportunidades e as taxas de retorno são mais convidativas.14 A competição
em escala global converte-se então na dinâmica principal da economia
mundial, pois aceleram-se as inovações tecnológicas e o ciclo de vida dos
produtos, cresce a oferta não solvível de bens e serviços, incrementam-se
ao extremo as exigências de mais valor e de mais variedade por parte dos
clientes. E, no flanco mais sombrio, acirra-se a pirataria da propriedade
intelectual, em virtude de facilidade de acesso aos bens simbólicos e ao
seu consumo imaginário.15
Para fazer frente ao novo patamar da competitividade internacional,
desenvolvem-se, de forma aparentemente paradoxal, estratégias relacionais
2. Sistemas mundiais e capitalismo social 49

ou associativas entre as empresas: clientes, fornecedores, concorrentes,


competidores potenciais. Apesar de os velhos colonialismos políticos e
econômicos terem sido arquivados, oligopólios, cartéis e dumpings per-
sistem, mas também se multiplicam negociações, acordos e parcerias. Por
exemplo, as empresas nacionais — que estabelecem laços com o mundo,
via capital, tecnologia ou mercado — tornam-se empresas “conectadas”,
desfrutam de uma contínua atualização tecnológica e têm acesso a finan-
ciamentos internacionais e a mercados relativamente seguros no exterior.
Em contrapartida, as empresas que não estão conectadas ficam muito
vulneráveis à competição.
Num plano mais abrangente, o processo de globalização implica de-
safios maiúsculos: o crescimento explosivo das populações do Terceiro
Mundo; a degradação das condições de existência em muitos países peri-
féricos, uma das fontes das migrações internacionais dos desesperançados;
as brechas abissais que se abrem entre Norte e Sul, países ricos e países
pobres, países “rápidos” e países “lentos”; a forte limitação à capacidade
dos Estados para escolher estratégias alternativas de desenvolvimento ou
para saldar suas dívidas astronômicas; o crescimento da desigualdade social
e o agravamento do desemprego.
Esses fatores todos mostram que o contexto histórico do Sistema
Mundial Competitivo abriga dilaceramentos e choques, embora inclua
tentativas de cooperação internacional e, quem sabe, consiga disseminar
uma solidariedade mundial cada vez mais indispensável.16
Por fim, um comentário especulativo. Parece que o evento traumático
do “11 de setembro de 2001” delineia duas agendas internacionais para
os países reitores do Sistema Mundial Competitivo.
Uma primeira agenda poderia ser denominada “agenda da esperança”.
Ela consiste em construir uma cidadania planetária, por meio de um esforço
solidário para erradicar a miséria, assegurar a toda a população mundial
condições básicas de existência e, por extensão, combater a exclusão social
e conquistar as mentes e os corações. Trata-se de uma agenda que exigiria
a criação de agências multilaterais dotadas de recursos e de instrumen-
tos efetivos de ação, o estabelecimento de um comércio aberto que não
discriminasse os países emergentes ou em desenvolvimento, além de uma
nova arquitetura financeira que tivesse a prodigiosa capacidade de deter
a especulação internacional contra as moedas. Seria uma agenda positiva
destinada a minar o terreno em que vicejam os fanatismos de toda sorte.
50 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

Uma segunda agenda poderia ser denominada “agenda da seguran-


ça”. Seu mote seria a obsessão com a defesa e sua essência repousaria
na perpetuação dos privilégios darwinistas das nações mais ricas. Em
sua vertente regionalista, ela implicaria a obstinação em conservar
protegidos os mercados domésticos, por meio de subsídios agrícolas,
cotas e sobretaxas sobre as importações; algumas medidas que visassem
conter a migração de empregos para o exterior; e o fortalecimento de
blocos econômicos exclusivistas. Em sua vertente global, a agenda seria
sustentada pelo unilateralismo imperial dos Estados Unidos ou por uma
coalizão liderada por eles.
Entre esses dois extremos, é provável que após inúmeros percalços,
se elabore uma terceira “agenda de compromisso”, menos generosa do
que a primeira, porém menos catastrófica do que a segunda. Seria como
alcançar o horizonte do possível.

Os tipos de capitalismo
Estamos vivendo uma nova revolução capitalista, em particular no
Primeiro Mundo. Essa revolução rompe a lógica da exclusão e instala, do
ponto de vista estrutural, o imperativo da inclusão, porque:

„ Integra crescentes contingentes da população ao mercado de con-


sumo e completa o processo de construção da cidadania, com a
vigência de direitos sociais;
„ Faculta às entidades da sociedade civil a conquista de novas dimen-

sões de autonomia, mediante uma ação obstinada e cotidiana;


„ Torna habituais eleições periódicas e amplia o espectro do eleitorado

ao suprimir as muitas restrições ao sufrágio universal;


„ Garante o respeito ao pluralismo ideológico e à vontade popular

pela alternância de partidos no poder;


„ Acolhe mecanismos de democracia semidireta e direta, tais como

o referendo, o plebiscito e o recall que alargam as fronteiras da


representação e apontam para uma democracia participativa;
„ Legitima e consolida padrões culturais de caráter liberal, a exemplo

da tolerância pelo diverso, do uso da mediação, da deferência pelo


compromisso, do espírito de transigência, da razão científica, da
autoridade secular e da plenitude dos direitos individuais;
2. Sistemas mundiais e capitalismo social 51

„ Estabelece condições propícias para que os direitos civis e políticos


superem seu aspecto meramente formal e passem a demarcar espaços
públicos de liberdade e de participação popular;
„ Acolhe a vigência de direitos sociais que propicia dignidade para

todos, à medida que as condições básicas de vida vêm sendo asse-


guradas com recursos públicos;
„ Permite a remoção paulatina dos obstáculos que tornam menos iguais

homens e mulheres, etnias e raças,17 proprietários e não proprietários


de meios de produção, gerações e religiões.

Na transição do segundo para o terceiro milênio, o capitalismo exclu-


dente, que moldou os séculos XIX e XX, acelerou sua transfiguração em capi-
talismo social (“associativismo”). Mas as presenças significativas dos ideários
do neoliberalismo e do darwinismo social, ambas correntes ideológicas bem
representadas pela ala tradicionalista ou ultraconservadora dos republicanos
nos Estados Unidos, assinalam que o acirramento da competição pode levar
ao egotismo e à falta de solidariedade social. Há claras tendências, porém,
que apontam para a melhoria da qualidade de vida oferecida aos habitantes
das sociedades avançadas. Eis alguns indicadores:

„ A existência de uma renda mínima e universal que garanta os meios


básicos de subsistência;
„ A redução da jornada de trabalho e a semana de cinco ou quatro

dias;
„ As condições de segurança no trabalho, e a gradativa eliminação

das tarefas insalubres ou perigosas, paulatinamente destinadas aos


robôs;
„ O abandono da tese da luta de classes e a aceitação da economia de

mercado por parte de sindicatos de larga tradição anticapitalista;18


„ O desfrute pelos consumidores de produtos mais duradouros e

diversificados;
„ A universalização dos sistemas de educação, saúde e seguridade

social;
„ O amplo acesso às redes de energia elétrica, de água tratada e de

esgotos;
„ O transporte coletivo subsidiado;

„ A possibilidade de fruição do tempo livre, do usufruto do lazer ou

do ócio.
52 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

O capitalismo como sistema


O sistema capitalista como modo de produção, baseado no capital
produtivo industrial — e não como modo de circulação baseado no capi-
tal mercantil —, constituiu-se originariamente na Inglaterra da segunda
metade do século XVIII. Repousa sobre alguns pilares:

„ A propriedade privada, individual e plena sobre os meios de pro-


dução, a exemplo da propriedade latifundiária;19
„ A existência de trabalhadores desprovidos de meios de produção,

livres para garantir a própria subsistência mediante a venda de sua


força de trabalho e disponíveis para o estabelecimento de uma re-
lação contratual de salariado;20
„ A presença de uma massa monetária em mãos de empreendedores

dispostos a investir para produzir bens cuja demanda tenha sido


identificada pelo comércio distante;21
„ A liberdade de contratar força de trabalho e de assalariá-la com vistas

à apropriação privada de um valor adicionado durante o “tempo de


trabalho excedente”;22
„ A existência de um “mínimo legal” assegurado pelo Estado: di-
23

reitos de propriedade e de liberdade de empreender, garantias para


a execução de contratos, observância de uma legislação criminal e
prevenção regrada de práticas anticompetitivas.

No sistema capitalista, os trabalhadores produzem mercadorias (valores


de troca) e seu sobretrabalho incorpora-se nelas. Não há uma separação
clara, no espaço e no tempo, entre o trabalho necessário para gerar meios
de subsistência e o trabalho excedente para gerar sobreproduto.24 Tal sepa-
ração evidencia-se, por exemplo, no sistema latifundiário: trabalhadores
dependentes como os escravos brasileiros plantavam seus alimentos aos
domingos (trabalho necessário), além de trabalhar a semana toda para
seus amos (trabalho excedente). O mesmo ocorria com os colonos do
sistema de parceria brasileiro na segunda metade do século XIX: era-lhes
facultado o plantio de víveres indispensáveis ao próprio sustento entre as
filas de café, enquanto as plantas eram novas; quando isso não era mais
possível, os colonos podiam plantar em locais indicados pelos fazendeiros
(trabalho necessário). A cada família, no entanto, atribuía-se uma porção
de cafeeiros proporcional à sua capacidade de cultivar, de colher e de be-
2. Sistemas mundiais e capitalismo social 53

neficiar — tempo em que o sobretrabalho (trabalho excedente) era gerado


para compensar os fazendeiros.
No sistema feudal europeu, essa separação ficava igualmente visível: os
servos labutavam sem contrapartida nas terras do senhor feudal (corveia)
e, para sobreviver, investiam mais trabalho em seus lotes de subsistência
(trabalho necessário). Similar é o caso do colonato romano do século III,
quando o trabalho escravo acabou metamorfoseado em uma espécie de
adscrição ao solo. Os proprietários fundiários, diante do colapso do su-
primento de mão de obra servil, transformaram seus escravos em colonos
e os fixaram em pequenos lotes; cessaram de prover a seu sustento e rece-
beram deles, a título de renda, uma quota anual em espécie ou em dinheiro
(sobretrabalho), como forma de compensar o lote que havia sido concedido
para a produção dos próprios alimentos (trabalho necessário).
O sistema capitalista pressupõe que empreendedores assumam riscos,
pois o capital investido em instrumentos de trabalho, em matérias-primas
e em salários pode ser perdido, caso não haja venda das mercadorias
produzidas. Como o sobretrabalho está corporificado em mercadorias,
somente uma operação bem-sucedida de mercado pode permitir sua ex-
tração. Ou seja: somente a existência de compradores dispostos a pagar
o preço desses bens lhes dá solvibilidade e assegura aos empreendedores
a realização do lucro.
Outros sistemas socioeconômicos — o feudal e o latifundiário, por
exemplo — não operam dessa maneira, já que conseguem extrair sobre-
trabalho diretamente no ato de produção. Afinal, o tempo de trabalho
excedente está claramente separado do tempo de trabalho necessário. A
lógica do sistema capitalista, assim como de todos os demais sistemas em
que existiram classes sociais, consiste em garantir aos donos dos meios de
produção a apropriação de sobretrabalho. No caso capitalista, entretanto,
todos os valores produzidos convertem-se em mercadorias. Isso difere
dos outros sistemas em que a produção de valores de uso é modal e a de
valores de troca supletiva — caso do sistema latifundiário brasileiro ou
do sistema escravista de Roma. Assim, por causa da “generalização da
mercadoria”, diz-se que o sistema capitalista encontra sua razão de ser na
apropriação de lucros (benefícios monetários); todos os demais sistemas
socioeconômicos apropriam-se basicamente de excedentes econômicos
que se encontram sob a forma de valores de uso.
No capitalismo, trata-se de maximizar os lucros dos acionistas ou
cotistas (shareholders). E por quê? Para reduzir a exposição ao risco no
54 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

menor prazo possível, pois, quanto maior o retorno, menos exposto à


perda ficará o capital investido. Dessa forma, se assegura a apropriação
privada de todo o sobretrabalho possível e a propriedade assume função
estritamente econômica. Três argumentos centrais justificam então a apro-
priação dos excedentes, entendida como compensação de:

„ Propensão em assumir os riscos embutidos na aplicação do capital


(disposição investidora);
„ Sensibilidade para captar as necessidades dos clientes e para atendê-

las por meio de um empreendimento capaz de gerar produtos que


satisfaçam à demanda (visão empreendedora);
„ Capacidade gestora para mobilizar e conjugar os vários fatores in-

dispensáveis para a produção, associada à disposição para o trabalho


(competência empresarial).

O capitalismo excludente
A organização do trabalho no sistema capitalista excludente assumiu
o caráter de linha de produção ao estilo taylorista-fordista, lídima ex-
pressão da Revolução Industrial. Foram claramente separadas a função
de gerir (conceber e controlar), conferida aos gestores pelos empresários
ou exercida por eles mesmos, e a função de executar tarefas parceladas,
exclusiva dos trabalhadores.25
Tal processo de produção requer trabalhadores desqualificados ou
semiqualificados, de quem se extrai principalmente força física. Esses tra-
balhadores são descartáveis, porque são substituíveis por outros igualmente
despojados de habilidade técnica. Afinal de contas, seu preparo se resume
a um curto período de treinamento ou a uma aprendizagem com base no
“ver fazer” — o que precisam saber é bastante sumário. Em contrapartida,
o monopólio do saber técnico é detido pelos gestores e pelo staff de espe-
cialistas, e isso provoca a cristalização de relações autoritárias de poder.
Por que conceder cidadania organizacional a trabalhadores destituídos
de capacidade de barganhar, a não ser em situações extremas de greve
ou em conjunturas em que a economia está muito aquecida? Não estão
eles ansiosos por manter o emprego, uma vez que não possuem meios de
produção e não têm como prover a subsistência da família?
Em vista disso, o capitalismo excludente assenta-se em algumas âncoras
políticas e simbólicas:
2. Sistemas mundiais e capitalismo social 55

„ Defesa de sociedades elitistas com o mote da sobrevivência do mais


apto;
„ Concepção orgânica da sociedade, em que cada qual desempenha

uma função natural;


„ Prevalência da hierarquia, da disciplina e do cumprimento dos

deveres;
„ Matriz autoritária de pensamento;

„ Intolerância para com os subalternos e discriminação de todos

aqueles considerados “diferentes” ou “diversos”;


„ Preferência por regimes políticos de exceção, em que o poder se

concentra em cúpulas detentoras de arbítrio;


„ Culto aos grandes homens ou aos heróis salvadores.

O sistema capitalista dos dois últimos séculos moveu-se a partir de uma


lógica da exclusão, em que prevalece a maximização dos lucros. A sociedade
tendeu a se cindir em vencedores, bem-sucedidos e aptos (os “eleitos” do
protestantismo ou aqueles que souberam capitalizar oportunidades) e em
perdedores, malsucedidos e ineptos (os “condenados” do protestantismo
ou aqueles que não lograram ascender socialmente). Somente os empresá-
rios que conseguem sobreviver à concorrência, os gestores cooptados, os
técnicos especialistas, os autônomos cuja competência lhes garante bons
rendimentos têm tido acesso às benesses de um sistema capaz de projetar
a produtividade a píncaros jamais vistos nos demais sistemas.26Em con-
trapartida, os trabalhadores não qualificados ou de baixa qualificação,
ainda que usufruam de padrões de vida bem superiores a seus antepassa-
dos, ficam submetidos a um processo de “pauperização relativa”. Afinal,
o crescimento econômico e a geração de necessidades socialmente criadas
são sempre maiores que o seu poder de compra. Tende também o sistema a
conservar um exército de reserva para pressionar os salários, convertendo
muitos trabalhadores em desempregados crônicos ou ocasionais,27 ou em
assíduos frequentadores da economia informal. Além do mais, sensíveis
decréscimos dos haveres e do consumo ocorrem em situações de crise ou
de calamidade, prejudicando preferencialmente os menos aquinhoados.
Essa lógica da exclusão industrial permanece vigorosa no planeta e
assume feições impiedosas como no chamado “modelo Wal-Mart”, cujo
tripé consiste em:

„ Remunerar mal os trabalhadores (em nível próximo à linha da po-


breza) para baratear a manutenção das lojas;
56 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

„ Impor condições duríssimas aos fornecedores para obter preços


menores nos produtos que comercializa graças ao enorme poder
de barganha da rede compradora;
„ Utilizar tecnologia de ponta para vender em larga escala e atingir

assim uma população com renda cada vez mais baixa.28

O capitalismo social (“associativismo”)


Em face do desafio lançado pelos totalitarismos fascista e comunista —
planejamento central, economia de comando e ideário de fins absolutos,
que promete sociedades opulentas e de pleno emprego —, o capitalismo
viveu sob fogo cruzado no século XX. Foram decisivos para a redefinição
do sistema alguns fenômenos históricos, tais como:

„ O fortalecimento de uma sociedade civil,29 ativa e articulada, que


rejeitou a acomodação à pobreza sem apelar para soluções de for-
ça, e que aos poucos penetrou no aparelho de Estado, tornando-o
“poroso”;30
„ O fato de, numa economia aberta e cada vez mais policiada pela

mídia, os investimentos passarem a dar bons resultados econômicos


apenas quando os produtos oferecessem mais valor aos consumidores
(incorporação de expectativas ou de ativos intangíveis);
„ O desenvolvimento de alianças estratégicas entre empresários que,

embora concorrentes entre si, estabelecem diversas formas de coope-


ração (joint ventures, clusters, parcerias, consórcios) para dinamizar
seus negócios e alcançar maior competitividade;31
„ A conjugação dos esforços de agentes sociais em fundos de inves-

timento e em fundos de pensão, numa associação em que o capital


assume “caráter conjunto” ou “associativista”;32
„ A pulverização do capital aplicado numa variedade enorme de em-

preendimentos, sem mudar sua essência privada e individual;


„ A emergência de empreendedores que controlam alguma forma de

conhecimento, ou de saber inovador, em detrimento dos antigos


detentores de capital monetário, dando corpo ao conceito de “capital
intelectual”;
„ O fortalecimento da figura dos gestores profissionais, possuidores

de capacidades gerenciais centradas na perseguição da qualidade,


2. Sistemas mundiais e capitalismo social 57

da produtividade crescente, da competência na gestão das pessoas


e da competitividade internacional;
„ A conquista de espaços democráticos no seio das empresas, mediante

a gestão participativa.

Além da participação acionária eventual que possam ter nas empresas


em que trabalham, os trabalhadores mantêm vínculos cruciais com os fun-
dos de pensão e de investimentos, porque dependem deles para assegurar
uma aposentadoria confortável e porque investiram neles parte substancial
de suas poupanças. Isso significa que seus interesses estão comprometidos
com os resultados desses fundos. Ora, estes só terão boas taxas de retorno
se a economia nacional e, por extensão, a economia internacional tiverem
lucratividade adequada; caso contrário, o retorno dos recursos investidos
para a aposentadoria será menor. Moral da história: embora no essencial os
trabalhadores continuem vivendo de seus salários e não se tenham conver-
tido em capitalistas (uma vez que não vivem dos rendimentos do capital),
acabaram se tornando sócios menores do capitalismo. Ao fim e ao cabo,
seu futuro ficou dependente do sucesso da economia capitalista, ainda que
seus interesses como trabalhadores se sobreponham a seus interesses como
investidores. Isso obscurece a contradição que os opõe aos empresários:
faz com que qualquer ação histórica no seio da sociedade capitalista se
torne moderada, refletida, reformista, quando não adesista.
A partir da segunda metade do século XX, e graças ao funcionamento
da democracia representativa, esses fatores todos desembocaram num
novo sistema socioeconômico, de caráter capitalista, e esculpiram nele
uma dupla lógica — a do lucro e a da responsabilidade social. Ou melhor:
a responsabilidade social tempera a lógica do lucro, faz com que parte
do valor adicionado se converta em “ganhos sociais” apropriados pelos
stakeholders ou públicos de interesse das empresas; e quem procura ob-
ter lucros a qualquer custo corre o risco de tornar a operação inviável,
perdendo sua “licença social para operar” ao contrariar as expectativas
dos clientes No capitalismo social, a maximização dos lucros dá lugar
à sua otimização ou à produção de excedentes em limites socialmente
compatíveis. O que isso significa? Que foi incorporado um novo termo
à equação capitalista, uma nova chave-mestra: as empresas capitalistas
deixam de fixar-se apenas na função econômica (ainda que esta se man-
tenha determinante) e passam a orientar-se, de modo indissociável, pela
função ética da responsabilidade social.33
58 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

Em outras palavras, o mecanismo de apropriação dos excedentes eco-


nômicos, embutido nas relações de propriedade, não mais beneficia de
maneira exclusiva os shareholders (acionistas ou cotistas). Tem agora seu
alcance estendido aos stakeholders — às partes interessadas no negócio,
aos públicos de interesse da empresa ou a todos aqueles que mantêm vín-
culos com ela e que, de alguma forma, têm interesse na sua preservação.
Partilha-se pequena parcela dos lucros. Na frente interna, equacionam-se
os investimentos dos proprietários e as necessidades dos gestores e dos
trabalhadores. Na frente externa, levam-se em consideração as expectativas
dos clientes, fornecedores, prestadores de serviços, fontes de financiamen-
tos (bancos, credores), comunidades locais, sindicatos de trabalhadores,
órgãos governamentais, mídia, associações voluntárias e demais entidades
da sociedade civil.
Isso equivale a dizer que o conceito de responsabilidade social confere,
desde logo, um caráter essencialmente “associativista” ao capitalismo social
e reveste-o de uma segunda natureza. Remete essencialmente à intervenção
virtuosa das empresas na melhoria da qualidade de vida de seus públicos
de interesse. Vale dizer:
„ Implica parceria efetiva com clientes e fornecedores, gerando pro-
dutos de qualidade e assegurando durabilidade, confiabilidade e
preços competitivos;
„ Supõe contribuições para o desenvolvimento da comunidade, via

projetos que aumentem o seu bem-estar;


„ Provoca investimentos em pesquisa tecnológica para inovar processos

e produtos e para melhor satisfazer os clientes ou usuários;


„ Exige respeito ao meio ambiente e neutralização da pegada ecológica

através de intervenções não predatórias (consciência da vulnerabi-


lidade das condições de habitabilidade do planeta) e por meio de
medidas que certifiquem a origem dos insumos, utilizem energias
renováveis e evitem externalidades negativas;34
„ Requer capacitação profissional dos trabalhadores e participação deles

em decisões técnicas, assim como requer inversões em segurança do tra-


balho, em melhores condições de trabalho e em benefícios sociais;35
„ Prescreve a não discriminação e o tratamento equânime dos trabalha-

dores, além de procurar beneficiar os demais públicos de interesse.36

O capital não se cinge mais a obter retorno econômico, mas incorpora


também o que se poderia denominar “ganho social”. Os Estados de orienta-
2. Sistemas mundiais e capitalismo social 59

ção social-democrata, ao incorporar a dimensão da responsabilidade social,


aplicam políticas públicas compensatórias: asseguram a distribuição de par-
cela expressiva dos excedentes gerados para a população que tem carências;
fornecem serviços públicos eficientes e acessíveis; alocam assim salários
indiretos; e incentivam a participação dos trabalhadores nos resultados
das empresas. Todavia, correm os riscos de descarrilar no paternalismo
e no assistencialismo — esses fantasmas que atormentam todo Estado de
bem-estar social (welfare state) —, assim como arriscam desencorajar os
investimentos privados, quando não os de asfixiar novos empreendimentos
e de enveredar pelos caminhos clássicos do fiscalismo.
Nessas experiências históricas, o interesse pelo trabalho decaiu à
medida que as necessidades básicas dos agentes iam sendo cobertas por
programas sociais de amparo. E a chamada “ética do trabalho” de origem
protestante foi em boa parte substituída pela “cultura da dependência”. A
eficiência e a competitividade da economia ficaram comprometidas com
o encarecimento dos encargos sociais e com a rigidez das relações de tra-
balho. De resto, a amplitude e a diversidade das funções assumidas pelos
“Estados benfeitores” foram tamanhas, e os desperdícios de tal monta, que
uma grave crise fiscal colocou na ordem do dia a necessidade de serem
reduzidas as obrigações.37
Em resumo, dependendo de seu volume, o custeio dos programas
sociais pode frear o crescimento econômico e estimular a formação de
um expressivo contingente de desempregados, politicamente voláteis.
Por fim, o modelo de gestão burocrático acabou sendo posto em xeque,
com propostas que procuram imprimir feições gerenciais e empresariais
à gestão pública.38
Esses ranços de “redistributivismo” populista assombram o sistema
capitalista social e exigem um incessante policiamento, sob pena de vir
a inviabilizá-lo. O envelhecimento da população, além do mais, eleva
dramaticamente o custo das aposentadorias e a cobertura dos déficits da
Previdência Social, via aumento da carga tributária, resulta em transferência
de empregos do Primeiro Mundo para o exterior e em ampla sonegação
de impostos. O Estado do bem-estar social periga destruir, assim, os
próprios alicerces econômicos — a não ser que seja redesenhado. Afinal,
redes de proteção social não podem significar acomodação e abusos, mas
implicam condições mínimas e dignas de vida para quem se capacita e para
quem assume os riscos do empreendedor. Mais do que fazer ou executar
diretamente, cabe ao Estado governar. Para tanto, necessita delegar as
60 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

funções de produção de bens e serviços à iniciativa privada. Todavia, a


despeito dessas distorções todas, os excluídos e os deserdados não podem
ser coletivamente abandonados. Em síntese, a responsabilidade social
remete à cidadania organizacional nas empresas e aos direitos sociais no
âmbito nacional.
Longe de ser fruto de bom-mocismo, a responsabilidade social das em-
presas capitalistas resulta de um processo político de pressões, exercido por
cidadãos organizados. Mas também, e dialeticamente, as empresas adotam
políticas que aparentemente se confundem com estratégias de marketing
e acabam dando, senão retorno financeiro, claro incremento de imagem
corporativa, ao arrefecer os ânimos das entidades da sociedade civil com
projetos comunitários, ao investir em pesquisa e desenvolvimento de
produtos e ao capacitar seus funcionários.39
A nova revolução capitalista, de caráter digital e social, diferentemente
da revolução capitalista dos séculos XVIII e XIX, de caráter industrial e
excludente, faculta a apropriação real ou “posse” dos instrumentos de
trabalho por parte dos trabalhadores. E, à medida que a produção se torna
intensiva em conhecimento (knowledge intensive), a tecnologia deixa de ser
patrimônio exclusivo do capital. Em vez de valerem apenas a força física
e algumas aptidões gerais, vale agora o trabalho mental com crescente
qualificação técnica. O saber torna-se então um fator de diferenciação do
próprio trabalho e permite que se devolva aos trabalhadores a correspon-
sabilidade nos processos técnicos.40 Isso constitui um ponto de inflexão
da maior importância em relação à situação dos trabalhadores industriais,
porque os trabalhadores digitais:

„ Deixam de ser descartáveis e assumem o estatuto de colaboradores


profissionais de difícil substituição;
„ Tornam-se membros de equipes multifuncionais e passam a exercer

micropoderes, em detrimento do baixo clero dos gestores que tende


a desaparecer (downsizing);
„ Não ocupam mais um único ofício durante a sua vida profissional —

o que acarreta perda de “fidelidade” à profissão — e preocupam-se


com uma reciclagem contínua para desempenhar funções incessan-
temente novas;
„ Atuam crescentemente no setor de serviços e no setor quaterná-

rio de “informações”, com ampla flexibilidade nas relações de


trabalho;41
2. Sistemas mundiais e capitalismo social 61

„ Tendem a identificar-se com os funcionários de “colarinho bran-


co”: prestigiam o consumo e a carreira individual (“carreira solo”);
cultivam anseios de ascensão social e de integração na sociedade
constituída; rejeitam as estratégias de confronto com o empresaria-
do e com os gestores das empresas; e propendem a adotar variadas
formas de colaboração entre as classes sociais.

Outro paralelo merece ser apontado. Os detentores da propriedade


privada “pura” do capitalismo excludente, à semelhança dos detentores da
propriedade estatal do socialismo real, determinam com ampla margem
de arbítrio não só o volume de investimentos a serem realizados, como
os setores em que ocorrerão as aplicações e as próprias condições de tra-
balho que serão proporcionadas aos trabalhadores. Mais ainda: balizam
o poder de compra dos consumidores e definem os preços, dado o baixo
nível de concorrência entre fornecedores (no capitalismo monopolista e
excludente) ou em função da possibilidade de administrar politicamente
os preços (no estatismo).42
Em contrapartida, o “poder compensatório” dos usuários e consumi-
dores se fortalece no capitalismo social; eles:

„ Transformam-se em cidadãos ativos e resgatam sua capacidade de


negociar;
„ Criam associações e usam a mídia e as demais entidades da sociedade

civil para fazer ecoar e valer suas demandas;


„ Recorrem aos serviços públicos de defesa dos consumidores e sen-

sibilizam os parlamentares através de variadas formas de pressão;


„ Pesquisam e questionam os preços dos bens e serviços e habilitam-se

a influenciar as decisões sobre investimentos.

De forma similar e concomitante, os trabalhadores contribuem para a


definição das condições de trabalho nas organizações. Instala-se, assim, um
complexo sistema de pressões e de contrapressões que amplia as fronteiras
da democracia liberal, uma vez que integra à representação parlamentar
formas participativas de cidadania.43
Diante de tão extraordinários eventos, porém, ergue-se uma grave
questão. Ela ronda e compromete as sociedades em que se desenvolve o
62 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

capitalismo social ou “associativista”. Trata-se dos efeitos devastadores


do desemprego tecnológico.44 Enquanto a revolução industrial esvaziou
os campos ao mecanizar as lavouras, garantindo postos de trabalho a
boa parte da força de trabalho que sobrara, a revolução digital esvazia as
fábricas ao robotizar e automatizar os processos produtivos. Os serviços,
é claro, absorvem parte considerável da mão de obra excedente. Mas isso
só não basta. A produtividade cresce em termos geométricos e ceifa aos
milhões os antigos postos de trabalho. As novas tecnologias poupam força
de trabalho e tornam continuamente obsoletos os trabalhadores dos setores
secundário e terciário. O desemprego acaba mantendo relação direta com
o incremento da competitividade das economias e traz consequências
avassaladoras: o crescimento econômico dissocia-se da geração de em-
pregos e cria um dos mais agudos desafios do mundo contemporâneo.45
A crença otimista que o pensamento econômico nutria até recentemente,
vinculando crescimento e emprego, caiu por terra e deixou de ser um
seguro indicador para a solução dos problemas sociais. Daí a ideia de
que somente políticas públicas compensatórias, aliadas a algum tipo de
incentivo para empreendimentos intensivos em mão de obra, poderão
amenizar a dramaticidade do quadro.46
Outra contradição de peso põe em xeque as tendências à equidade
que o capitalismo social encerra. Trata-se do processo de globalização
que pode empurrar países “lentos” (notadamente os do Terceiro Mun-
do) a uma zona de exclusão, ficando à margem da revolução econômica
em curso. A vocação expansionista do capitalismo pode culminar com
a unificação planetária do espaço econômico e levar a competitividade
inerente ao novo sistema mundial a converter-se em jogo de soma zero.
Aos vencedores, as batatas; aos perdedores, as urtigas. Quem ingressar
na Revolução Digital com competência irá maximizar seus ganhos;
quem não puder fazê-lo ficará emparedado em guetos tecnológicos.
Pois a competição econômica não é uma pista de alta velocidade, com
impecável sinalização, mas um terreno acidentado, recheado de minas e
de armadilhas. Ao flagelo do desemprego, soma-se o espectro da margi-
nalização. Sem um foro internacional que assuma tais “comunalidades”,
os países que ficarem no caminho constituirão periferias monstruosas.
Serão reeditados os antigos sistemas mundiais em que centros reitores e
opulentos exploravam colônias miseráveis, e o pesadelo tomará as feições
de megalópoles escatológicas.47
2. Sistemas mundiais e capitalismo social 63

Notas
1. O conceito, seus desdobramentos e suas aplicações, com a exceção do Sistema Mundial Compe-
titivo, foram concebidos e desenvolvidos por Fossaert, Robert. A Sociedade. Uma Teoria Geral.
Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979, pp. 98-109.
2. Desde 1947, o processo envolveu dezenas de países e consistiu em tentar liberalizar o comércio
internacional e definir regras sistêmicas. A negociação desdobrou-se em oito rodadas no chamado
Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (Gatt) que, em 1995, se transformou na Organização
Mundial do Comércio. A OMC é o exemplo clássico do multilateralismo, cujos acordos supõem
complexas urdiduras, feitas de paciência e diplomacia, para acomodar os interesses variados de
muitas dezenas de partícipes. As outras duas opções de inserção internacional, não necessaria-
mente excludentes, eram: o bilateralismo que visa a acordos entre duas nações; e o regionalismo
dos blocos econômicos, associações de países de uma mesma região geográfica que estabelecem
relações comerciais privilegiadas entre si e atuam de forma conjunta no mercado internacional.
3. União Europeia, Nafta (Tratado de Livre Comércio da América do Norte), Apec (Cooperação
Econômica Ásia-Pacífico), Mercosul (Mercado Comum do Sul), Pacto Andino, CEI (Comunida-
de de Estados Independentes, na ex-URSS), SADC (Comunidade da África Meridional para o
Desenvolvimento), Asean (Associação das Nações do Sudeste Asiático), Caricom (Comunidade
do Caribe), MCCA (Mercado Comum Centro-Americano) e Alca (Área de Livre Comércio das
Américas).
4. Os países do Terceiro Mundo transformaram-se em polos de atração para atividades industriais
de baixa qualificação (confecções, calçados, bolsas, produtos de madeira, palha e vime) e para
atividades de serviços de média qualificação (processamento de documentos, reservas de passa-
gens, atendimento em call centers). Mas trabalhos qualificados, que exigem educação refinada e
experiência comprovada, também estão migrando dos Estados Unidos, Japão e União Europeia.
Alguns exemplos são a pesquisa de medicamentos, a interpretação de tomografias e de ressonân-
cias magnéticas, as cirurgias, a engenharia de software e os serviços de contabilidade, radiologia
e consultoria.
5. A mão de obra abundante e pouco qualificada assim como as matérias-primas baratas constituem,
cada vez mais, vantagens comparativas menores, à medida que representam parcelas declinantes
do valor agregado. Em contrapartida: “O trabalho qualificado e criativo, de alto nível, tornou-se
fator ‘escasso’, em comparação com a relativa abundância de capital que circula pelo mundo.”
E, “na terminologia de Marx, o capital variável cresce em importância com relação ao capital
constante, à medida que o processo produtivo vai ficando mais ‘intensivo em conhecimento’”
(Fernando Henrique Cardoso. “O impacto da globalização nos países em desenvolvimento: riscos
e oportunidades.” O Estado de S.Paulo, 21 de fevereiro de 1996).
6. Do ponto de vista histórico, a globalização lança suas raízes no processo de internacionalização
iniciado cinco séculos atrás com as grandes navegações ibéricas. Estas abriram as rotas marítimas
do Oriente e das Américas e, já no século XVI, estava em curso um processo de internacionaliza-
ção do comércio distante. A globalização atual, porém, não se resume ao comércio, mas alcança
a própria produção e as finanças mundiais.
7. Isso para não falar da “cidadania fictícia” vigente em países liberais e que acomete boa parte das
camadas subalternas: elas se veem discriminadas social e racialmente, marginalizadas em relação
ao mercado de trabalho e de consumo, e patinam no analfabetismo funcional.
8. Um documento emblemático do Grupo Islâmico Armado (GIA) — organização argelina integrista
empenhada na derrubada do governo laico —, pregado à porta de algumas mesquitas, sentenciou:
“à exceção dos que estão conosco, todos os outros são apóstatas e merecem a morte” (O Estado
de S.Paulo, 23 de janeiro de 1997).
9. Nelson Mandela, antigo líder da oposição, que purgou 28 anos de prisão.
10. O tráfico internacional de drogas, a Aids, as radiações nucleares, a poluição ambiental, o buraco
na camada de ozônio, o efeito-estufa, o lixo radioativo, o mercado negro de material fóssil, a
alteração dos ritmos das estações, a erosão do solo, o desemprego tecnológico, a defesa dos di-
reitos humanos, a redução dos arsenais nucleares e a contenção de sua proliferação, assim como
o terrorismo internacional.
64 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

11. Na Espanha, o governo do premiê José María Aznar do Partido Popular apoiou a invasão do
Iraque e mandou tropas para assegurar a ocupação, a despeito da rejeição da maioria do povo
espanhol. Preocupado em não deixar transparecer que o atentado poderia ser uma represália
islâmica — o que de fato foi — Aznar culpou o grupo separatista basco ETA. Três dias depois,
seu partido perdeu as eleições gerais para a oposição socialista. Em sua posse, o novo primeiro-
-ministro Zapatero anunciou e cumpriu a retirada das tropas espanholas do Iraque.
12. Além da cooperação internacional necessária para enfrentar as “comunalidades”, outras ques-
tões candentes como a miséria, a fome, o analfabetismo e o combate às endemias exigem amplo
desprendimento por parte dos países centrais.
13. Esta preocupação foi enunciada pelo então secretário-geral da ONU, Boutros Boutros-Ghali,
no Fórum Econômico Mundial, em Davos, Suíça (Folha de S. Paulo, 5 de fevereiro de 1995) e
delineou, como proposta, a formação de uma “Comissão pelo Governo Global” que apreciaria
três cenários: uma liderança global e democrática, por meio do aperfeiçoamento da ONU e de
outros sistemas de cooperação internacional; a concessão a uma ou duas superpotências para que
decidam pelo resto do mundo; o lento deslizamento rumo à anarquia.
14. Nos anos 90 foram os casos da libra inglesa, do franco francês, da coroa sueca, do peso mexicano,
do rublo russo, do real brasileiro e de várias moedas asiáticas.
15. Os bens simbólicos são conhecimentos, técnicas, softwares, invenções, patentes, fórmulas, músicas,
projetos, estudos, designs, pesquisas, obras de arte, vídeos, gravações, livros, marcas, códigos
morais, valores culturais, fotos etc. Sua divulgação permite fácil assimilação e plágio por parte dos
receptores, devido à sua captação mental e em função da possibilidade ilimitada de reprodução
a custos ínfimos ou até sem custo. Por exemplo, um pensamento, uma poesia, uma descoberta
científica, uma melodia, códigos de computador, fórmulas de biotecnologia, processos secretos
de manufatura podem ser repetidos e difundidos ao infinito, desde que se tenha acesso a eles.
Tal não é o caso dos bens econômicos e dos bens políticos, cuja “inelasticidade” é patente. Assim,
por ser material, o bem econômico tem uma apropriação rival, portanto excludente. E o bem
político, por sua vez, não se multiplica por mera difusão, pois o exercício do poder pressupõe que
os agentes disponham de um “cacife político” para a defesa dos próprios interesses — apoio de
outros agentes, alguma forma de organização e instrumentos de pressão, para não dizer armas.
Isso não significa que, por meio da chamada engenharia reversa e no tocante aos bens econômi-
cos, não se possa replicar equipamentos como os microcomputadores da IBM, falsificar relógios
Bulgari, bolsas Louis Vuitton, canetas Mont Blanc ou perfumes Chanel. O que se copia no caso
é a ideia, a marca, a grife. Afinal, prevalece aqui o velho adágio de que as ideias não têm dono.
16. Kenichi Ohmae, Revista Exame, 24 de maio de 1995, escreve: “Por terem sido criadas para
satisfazer às necessidades de um período histórico muito mais antigo, as nações-Estados não têm
o objetivo, o incentivo, a credibilidade, as ferramentas ou a base política para desempenhar um
papel efetivo na economia sem fronteiras de hoje. Por tradição, as nações-Estado são tolerantes
com a mão invisível do mercado somente quando podem controlá-la ou regulá-la. Suas decisões
são tomadas de acordo com as consequências políticas, não econômicas. Pela lógica eleitoral
ou pela expectativa popular, as nações-Estado precisam sempre sacrificar benefícios indiretos,
gerais e de longo prazo, em favor de decisões tangíveis e imediatas. Elas são reféns voluntárias
do passado porque o futuro é um eleitorado que não rende votos. Elas se tornaram artificiais —
até disfuncionais — como protagonistas de uma economia globalizada porque são incapazes de
colocar a lógica global em primeiro lugar ao tomar decisões.”
17. Não existem raças do ponto de vista científico, pois somos todos homo sapiens sapiens: as “raças”
são construções sociais, elaborações histórico-culturais.
18. Os dirigentes da confederação sindical alemã (DGB), que reunia nove milhões de filiados, aban-
donaram qualquer referência retórica à luta de classes e reconheceram os aspectos positivos de
uma economia de mercado — desde que social e ecologicamente condicionada — num congresso
extraordinário mantido em Dresden, em novembro de 1996. O presidente da DGB, Dieter Schulte,
afirmou que “o Estado social não é uma cornucópia” e que, embora a questão do financiamento
da proteção social seja prioritária, não se pode permitir que seus custos aumentem ainda mais. O
movimento sindical alemão propôs, assim, uma alternativa ao “espírito neoliberal” e à “sociedade
2. Sistemas mundiais e capitalismo social 65

do lucro a qualquer preço”, tentando pôr um contrapeso às forças descontroladas do mercado


(Lucas Delattre do jornal parisiense Libération, publicado pela Folha de S. Paulo, 24 de novembro
de 1996).
19. Sobre este tipo de propriedade não pairam restrições de ordem comunal, corporativa, senhorial
ou mesmo coletiva: a propriedade é alodial, ou seja, está livre de foros, vínculos, pensões e ônus;
cada detentor de bens pode fazer deles o que bem lhe aprouver, desde a venda até a doação.
20. Trabalhadores dependentes, como o são os escravos, os servos, os vilões, os meeiros, os parceiros
ou os colonos romanos, não desfrutam de tal condição.
21. Essa excepcional possibilidade histórica permitiu a conversão do capital mercantil em capital
manufatureiro e, depois, em capital industrial.
22. O incremento ou valor a mais, valor agregado, ocorre depois de deduzidos todos os custos da
produção, inclusive o próprio salário pago ao trabalhador, que é compensado durante o “tempo
de trabalho necessário”.
23. O Estado é um aparelho detentor do monopólio da violência, organizado para regular as atividades
gerais e para administrar a Justiça.
24. Geração de um valor a mais em relação às necessidades de reprodução da força de trabalho e dos
insumos necessários para a produção.
25. O socialismo real, ou corporativismo estatista, também adotou tal separação entre gestão e exe-
cução, e também se alicerçou na Revolução Industrial.
26. Há abundantes estatísticas sobre os desníveis na distribuição de renda, quer nos Estados Unidos
quer no Brasil. Apenas escapam, e mesmo assim parcialmente, os países social-democratas euro-
peus, em função de uma abrangente rede de proteção social.
27. Vivem então da ajuda mútua praticada por famílias pobres (solidariedade parental ou conterrânea),
das doações feitas por agentes sociais mais aquinhoados (solidariedade apadrinhada), dos serviços
assistenciais de igrejas ou de organizações comunitárias (solidariedade missionária), de trabalhos
temporários, de expedientes informais ou do seguro-desemprego quando a instituição existe.
28. Gilberto Dupas. “Pobreza global e o modelo Wal-Mart”, O Estado de S.Paulo, 1o de maio de
2004.
29. Movimentos sociais, organizações não governamentais, associações, sindicatos, centrais sindicais,
partidos políticos, clubes de serviços, igrejas, mídias, entidades beneficentes e filantrópicas, e até
empresas; em suma, a “cidadania organizada”.
30. Numa expressão consagrada de Antonio Gramsci, um dos fundadores do Partido Comunista
Italiano e um dos ideólogos consagrados da leitura historicista de Marx.
31. Na região de Emilia Romagna, na Itália, há três décadas, surgiu um modelo de cooperação entre
pequenas empresas que lhes conferiu grande capacidade de competir internacionalmente e lhes
facultou aumentos substantivos de produtividade. Por meio de investimentos compartilhados em
equipamentos e serviços, assim como na fabricação de artigos complementares e nas compras de
matérias-primas realizadas em conjunto, as empresas obtiveram uma economia de escala. No mun-
do, hoje, há três formas de cooperação interempresariais que se podem destacar: 1) a cooperação
horizontal em que empresas do mesmo ramo e região, que competem pelo mesmo consumidor,
resolvem fazer projetos em comum: criam uma central de compras, por exemplo, ou podem se
unir em rede de produção ou para exportação, ou, às vezes, produzem artigos para combinar
seu uso; 2) a cooperação vertical entre diferentes elos de uma cadeia produtiva: por exemplo,
entre pecuarista e frigorífico, ou entre indústria de calçados, distribuidor e loja; 3) a cooperação
diagonal que ocorre entre as empresas que não produzem para o mesmo mercado, mas usam os
mesmos insumos e equipamentos (conforme trabalho de Frank Pay e Werner Sengenberger, do
Instituto Internacional para Estudos de Trabalho, da Organização Internacional do Trabalho. O
Estado de S. Paulo, 19 de maio de 1996). Nessas redes de cooperação entre concorrentes (também
chamadas de clusters), uma força de trabalho especializada é atraída e capacitada, financiamentos
a taxas melhores graças à negociação em grupo são obtidos e realizam-se eventos para divulgar
produtos identificados com um selo de procedência.
32. Os fundos de pensão dos Estados Unidos, por exemplo, dominam a demanda mundial por ativos
e constituem o principal ator da economia globalizada. No final de 1994, acumulavam $4,8 tri-
66 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

lhões, o maior “pool” de dinheiro de todos os tempos, enquanto, no início da década de 1990,
cobriam mais de 45% da força de trabalho norte-americana. Não deixa de ser curioso que a maior
acumulação de capital da história da humanidade esteja basicamente ligada aos trabalhadores e não
aos capitalistas! “Estes últimos, porém, através de bancos, seguradoras, empresas de consultoria
e de fundos de investimentos estão mergulhados até o pescoço nos lucros e negócios gerados por
aquela soma fabulosa” (conforme Relatório da Gazeta Mercantil, 5 de dezembro de 1995). Por
fim, vale lembrar que os fundos de pensão gozam de várias isenções fiscais e seus investimentos
estão isentos de imposto de renda, pelo menos nos Estados Unidos.
33. Não se trata aqui, é claro, de confundir a responsabilidade social com a concepção neoliberal de
Milton Friedman, bastante conhecida, que consiste em maximizar de forma exclusiva os lucros
dos acionistas e em descartar toda solidariedade social.
34. É o caso de um agricultor que cuida mal de seus campos e deixa proliferarem ervas daninhas que
invadem as plantações de seus vizinhos; de um pecuarista que deixa vagarem seus animais sem
cercas, pondo em risco os pastos dos outros; de uma fábrica mal cheirosa que incomoda todo um
bairro; da poluição sonora e atmosférica causada pelos automóveis; da perda de produção agrícola
provocada por uma indústria de cimento. Ou, ainda, de uma fábrica que gera efluentes industriais
lançados diretamente no rio: os efluentes contaminam as águas e a poluição força os municípios
a jusante a construir estações de tratamento. Ora, quem assumirá o incremento dos custos? Os
municípios atingidos ou a empresa poluidora? Se não houver pressão política sobre a empresa por
parte dos habitantes da região afetada, os empresários não costumam se dispor a adotar medidas
antipoluentes, dado o tamanho do investimento a ser feito. Mas, caso os cidadãos se organizem,
caso a mídia disponha de margem de manobra para veicular seus reclamos e o debate possa ser
traduzido em votos, os governos acabam intervindo e exigindo da empresa poluidora que arque
com as despesas indispensáveis para prevenir e sanar os efeitos da contaminação ambiental.
35. Além dos benefícios sociais tradicionais outras práticas são adotadas nas empresas mais compe-
titivas tais como planos de saúde extensivos aos familiares; tíquetes-refeição; transporte fretado;
liberdade dos empregados para desenhar seus próprios horários e até, quando possível, para
trabalhar em casa; períodos sabáticos; empréstimos sem burocracia em situações emergenciais;
instalação no próprio local de trabalho de creche, escola, restaurante e academia de ginástica;
fornecimento de serviços que facilitem a vida dos empregados (lavanderia, locadora de filmes,
cabeleireiro, consertos de roupas, loja de conveniência, especialistas para pequenos consertos em
casa, serviço de assistência psicológica e serviço de orientação para encontrar escolas ou casas de
repouso para parentes). Não se trata de bom-mocismo, filantropia ou assistencialismo empresarial,
mas de uma política de recursos humanos que visa a equilibrar trabalho e família para tornar mais
produtiva a vida profissional dos funcionários.
36. O Prêmio Nobel da Paz de 2006, professor Muhammad Yunus, o famoso “banqueiro dos pobres”
que difundiu o microcrédito para as camadas mais carentes da população com sua bem-sucedida
experiência do Grameen Bank, é o criador da chamada “empresa social”. Trata-se de um empreen-
dimento que substitui a maximização do lucro pelos benefícios sociais que gera. Por exemplo,
produtos alimentícios nutritivos e de boa qualidade a preços baixos para crianças subalimentadas;
seguro-saúde a preço acessível para os pobres; sistemas de energia renovável a preços razoáveis
para comunidades rurais; reciclagem de lixo, tratamento de esgoto e outros dejetos que poluem
bairros pobres. Embora não pague dividendos a seus acionistas, os investidores podem receber de
volta a quantia que desembolsaram após dado período e continuar proprietários. A empresa tem
que ser sustentável e todo o lucro obtido se destina a financiar a expansão, criar novos produtos
ou serviços e fazer o bem ao mundo. Ver Muhammad Yunus Um mundo sem pobreza: a empresa
social e o futuro do capitalismo. São Paulo: Ática, 2008.
37. Em meados dos anos 1990, os gastos do governo na Suécia alcançaram 67% do PIB, enquanto
a França chegava a 54% e a Alemanha a 50%. Somente nos Estados Unidos, país menos assis-
tencialista, tais gastos atingiram 34% do PIB. Ficou cada vez mais claro para a opinião pública
internacional que há gastos demais e eficiência de menos (o custo burocrático de cada dólar
“social”, nos Estados Unidos, atingiu cinquenta centavos). Afinal, aquilo que o governo gasta é o
2. Sistemas mundiais e capitalismo social 67

contribuinte quem paga (Roberto Campos: “O nó da questão”, Folha de S. Paulo, 4 de fevereiro


de 1996).
38. Aqui não se trata da burocracia no sentido weberiano que, curiosamente, corresponderia ao tipo
mais “adequado” de organização capitalista ou empresarial: organização racional e profissional,
hierarquizada, normalizada, qualificada, eficiente, disciplinada e estável, em que os funcionários
são nomeados e distribuídos em claras esferas de competência. Tal sentido prevaleceu no início do
século XX e remetia a uma organização que pretendia substituir o exercício arbitrário do poder.
Correspondia à mesma lógica taylorista dos processos industriais, com sua autoridade hierárquica
e sua especialização funcional. Hoje, o sentido é outro, em função da dinâmica perversa das pró-
prias burocracias e das conotações negativas que a denominação acabou assumindo. Entende-se
por burocracia uma hierarquia de funcionários que obedecem a regulamentos rígidos e a uma
rotina inflexível, orientados pela estreiteza de horizontes e pela falta de iniciativa, inclinados à
acomodação que a estabilidade promove e dissociados da missão da organização.
39. Discute-se aqui o que se chama também de função social da empresa. Uma abordagem instrumental
da questão baseia-se no argumento de que os mercados competitivos exigem que as empresas levem
em consideração os interesses dos stakeholders não como um fim em si mesmo, mas porque tal
postura traz lucros no longo prazo. Vale dizer, a função social não passaria de um meio, uma vez
que decorreria do temor de vir a prejudicar a lucratividade da empresa. Sem dúvida, é complicado
instaurar um processo de intenções. Do ponto de vista da moral da integridade brasileira, fazer
da função social um “instrumento” não é o mesmo que assumi-la como orientação geral, inde-
pendente dos resultados econômicos que o investimento social venha a gerar ou deixe de gerar
para a empresa. Para ser “moral”, seria preciso considerar a função social da empresa como um
dever. Todavia, é também interessante verificar que, se um empresário adotar tal função social
porque se convenceu que seria contrário aos interesses da empresa agir de forma diversa, deixaria
ele de ser socialmente responsável? Nessa última leitura, importam bem mais as práticas efetivas
e os resultados obtidos, se coletivamente benéficos, do que as motivações. Marketing social bem
feito não deixa de ser nobre por ter se originado de pressões sociais, desde que consequente ao
longo do tempo.
40. Inscreve-se aqui o conceito de “empregabilidade” que nos remete à capacidade de se manter em-
pregado e à condição do trabalhador ou do gestor que, apesar das mudanças velozes no mundo
do trabalho, continuar apto a permanecer nele. Vale dizer, sem uma educação continuada, não
há “empregabilidade”; sem alta qualificação, não há capacidade de adicionar valor às atividades
realizadas e, portanto, há pouca chance de competir no mercado de trabalho.
41. Um dos efeitos mais notáveis é o fato de que os antigos sindicatos, que representam massas de
trabalhadores fortemente concentrados em determinados locais de trabalho, sofrem uma queda
acentuada do índice de sindicalização e um gradual esvaziamento de sua capacidade de mobilização
e de seu poder de fogo, em função da atomização de sua base social.
42. Vale a pena observar que a propriedade estatal contrapõe-se à propriedade pública: a primeira
pertence corporativamente aos gestores, ao passo que a segunda é controlada diretamente pela
sociedade civil e necessariamente beneficia os interesses gerais. A propriedade pública pode as-
sumir variadas feições, mas exige a pulverização das ações em mãos do público e a representação
de interesses contraditórios no Conselho de Administração, em particular de usuários ou de
consumidores.
43. Ver Meyer, Thomas. Socialismo Democrático: uma introdução. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
Friedrich Ebert Stiftung, 1983.
44. A experiência histórica demonstra que o sistema de preços, além de não garantir o pleno emprego,
tende a privilegiar o desenvolvimento tecnológico que exige volumes crescentes de recursos, am-
plos mercados e uma gestão complexa das empresas, tudo para alcançar preços competitivos.
45. Maioria significativa da população trabalhadora teme perder o emprego nos mais diversos países.
O que mais impressiona, todavia, são os impactos da instabilidade econômica na saúde dos agen-
tes sociais. Análises feitas nas universidades de Michigan e Johns Hopkins, importantes centros
de estudos sobre a saúde pública, mostram que o aumento do desemprego é acompanhado por
suicídios, ataques do coração e internações em hospitais para tratamentos psiquiátricos. O desem-
pregado corre o risco de sofrer depressão, ansiedade, agressividade, insônia, perda da autoestima
68 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

e problemas conjugais (conforme Gilberto Dimenstein: “Desemprego também é doença”, Folha


de S. Paulo, 14 de janeiro de 1996).
46. Enquanto os países avançados ou ricos garantem ao pessoal demitido mecanismos de proteção
social, como seguro-desemprego e novo treinamento para trabalho substituto, os países pobres
que quiserem competir em setores modernos sofrem um impacto negativo em seu mercado de
trabalho, com a agravante de que não dispõem de mecanismos eficazes para amparar os desem-
pregados.
47. Nas duas primeiras edições da obra constava um capítulo intitulado “Sistemas de regulação e
economias” que se encontra agora no site da Editora Elsevier como ANEXO I. Aborda os três
sistemas de regulação – do mercado, da corporação e do imaginário – e estabelece uma tipologia
entre as economias: de subsistência, frugais, autárquicas, de comando, concorrenciais de mercado,
mistas de mercado, sociais de mercado e de abundância.
3
O lugar da organização

O que são as organizações


Vamos demarcar o terreno da investigação. O estudo das organizações
resulta de empenhos interdisciplinares: Sociologia, Ciência Política, An-
tropologia, Administração, Economia Política, Direito e Psicologia Social
convergem e contribuem para o conhecimento desse tipo particular de co-
letividades. Como as organizações se empenham em atividades socialmente
valorizadas, tornam-se um dos objetos de estudo preferenciais das Ciências
Sociais.1 As organizações podem ser definidas como coletividades especia-
lizadas na produção de um determinado bem ou serviço. Elas combinam
agentes sociais e recursos, de forma a economizar esforços e tornar seu
uso eficiente. Potenciam a força numérica desses agentes e convertem-se
em terreno preferencial das ações cooperativas e coordenadas.
Na linguagem corrente, as organizações têm sido confundidas com as
instituições. De fato, é comum qualificar as universidades, os hospitais,
as igrejas, os bancos, os estabelecimentos de ensino ou as entidades be-
neficentes como instituições, conferindo-lhes uma nobreza a que muitas
dessas organizações não fazem jus. Usa-se também o termo instituição
como equivalente ao processo de instauração ou de criação de um fato
socialmente significativo como, por exemplo, o dia da árvore ou uma
nova jornada de trabalho.
As Ciências Sociais também contribuem para agravar a imprecisão
terminológica e prejudicam a apreensão dos fenômenos de que preten-
dem dar conta. Numa primeira acepção, o termo instituição aplica-se às
organizações ou aos agrupamentos sociais dotados de certa estabilidade
70 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

estrutural. É o caso da Escola ou do conjunto das escolas componentes


de uma rede de ensino; ou é o caso do Estado e de seus múltiplos órgãos.
Nessa situação, o conceito se confunde com o de organização ou com o
de aparelho (sistema de organizações).
Numa segunda acepção, além da estabilidade estrutural e da remissão a
agentes coletivos, acresce-se nova exigência. O rótulo se aplica às unidades
sociais que adquiriram prestígio e tradição ao longo dos anos — a Cruz
Vermelha, a Igreja Católica, a Organização das Nações Unidas, a Anistia
Internacional, o Itamaraty, os Médicos sem Fronteiras, o Hospital Albert
Einstein ou a Universidade de São Paulo, por exemplo. A categoria então
recobre organizações que obtiveram “respeitabilidade social” e se consa-
graram como referências simbólicas.
Numa terceira acepção, o conceito de instituição deixa de abarcar as
organizações e remete a um complexo consagrado de normas, estribado
em valores duradouros. Esse sistema de normas assegura o funcionamen-
to e a perpetuidade da sociedade, uma vez que contribui para fortalecer
sua identidade. Exemplos são os institutos do casamento, da herança, da
propriedade privada, do usucapião, do habeas corpus ou da negociação
coletiva. Nesse preciso sentido, o conceito demarca espaço próprio, toma
distância em relação às duas acepções anteriores e deixa de se confundir
com as organizações. E, ao definir as instituições como sistemas de normas
sociais, geralmente de caráter jurídico e que gozam de reconhecimento
social, alcançam-se as competentes univocidade e clareza conceitual.
Esclarecida a confusão linguística, o que são as organizações?

„ Coletividades concebidas e planejadas para realizar um determinado


objetivo;2
„ Agentes coletivos à semelhança das classes sociais, das categorias

sociais e dos públicos, mas diferentes desses todos pelo caráter de-
liberado de sua criação;
„ Unidades de ação e de decisão, portadoras de necessidades e de

interesses corporativos;
„ Agrupamentos que desenvolvem vida própria, apesar de serem

“meios”, à medida que sua dinâmica interna tende a perpetuá-los e


a transformá-los em “fins” em si mesmos.

De fato, em sua ânsia de reprodução, muitas organizações desviam


recursos destinados a realizar os objetivos originais para os quais foram
3. O lugar da organização 71

estabelecidas e os investem em propósitos de interesse de sua própria


burocracia. Mais ainda, debatem-se num recorrente dilema existencial:
como sobreviver quando se esgota a antiga razão de ser? Alguns casos são
bastante ilustrativos:

„ Fundações de pesquisa se indagam com crescente angústia e, de


forma a mais dissimulada possível, se vale a pena descobrir a cura
da doença que motivou sua criação caso isso venha a extingui-las.
E, caso não seja mais possível adiar o desfecho, porque os resultados
acumulados já se tornaram públicos, lançam-se à sôfrega procura de
outro flagelo que possa justificar a captação de recursos e impedir
a descontinuidade organizacional;
„ Empresas privadas, que chegaram à maturidade em um mercado

relativamente estável e cujo corpo gestor foi profissionalizado,


propendem a perder a capacidade de inovar e de empreender.
Nessas circunstâncias, preferem contentar-se com lucros discretos,
mas confortáveis o bastante para assegurar a sobrevida do grupo
dirigente;
„ Agências de inteligência que, com o fim da Guerra Fria foram quase

desativadas, se reinventam para não serem extintas e assumem nova


missão como a espionagem industrial;
„ Partidos políticos, sindicatos e associações voluntárias adotam

estratégias para perpetuar seus gestores, à medida que seu corpo


dirigente desenvolve e cristaliza interesses próprios à margem ou
descolados da retórica programática. Acabam então rompendo com
seus princípios originários e agem muitas vezes em detrimento dos
setores representados, como se fossem ectoplasmas.

Isso tudo nos conduz à famosa “lei de ferro” de Robert Michels.3 De um


lado, a complexidade das atividades contemporâneas exige conhecimentos
políticos, administrativos e jurídicos, domínio de técnicas e de especialida-
des que somente quadros universitários e peritos detêm. Em decorrência,
forma-se um corpo permanente de funcionários e profissionalizam-se os
dirigentes. Surge daí a inclinação para a conversão em oligarquia, uma
vez que a dinâmica burocrática:

„ Cria uma hierarquia de posições, amparada pela divisão técnica do


trabalho;
72 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

„ Concentra as decisões executivas;


„ Leva os dirigentes a deixar de consultar as bases representadas e a
se distanciar delas para defender interesses específicos;
„ Induz à adoção de políticas moderadas ou “conservadoras” para

não colocar em risco a reprodução da organização e os privilégios


desfrutados por seu corpo funcional.4

A análise organizacional, todavia, não apresenta apenas um quadro


sombrio. Há vetores positivos que merecem destaque. Com efeito, as
organizações:

„ Alicerçam-se no princípio da sinergia que a capacidade de atuar de


forma unitária lhes confere;
„ Incrementam seu poder de fogo quando conjugam e mobilizam os

mais diferentes concursos;


„ Atualizam o velho clichê do todo maior de que as partes ou dão

curso ao chavão surrado — mas nem por isso impertinente — que


celebra a união de esforços como fonte de força;
„ Sobrevivem à maior parte de seus habitantes e só não antecedem

seus fundadores;
„ Representam fenômenos de ordem coletiva, entidades com vida

própria e dinâmica peculiar e inscrevem-se no domínio da sociedade


ou da história.

Relações sociais e agentes sociais


As relações que estruturam as organizações são relações coletivas que
abrangem e conectam coletividades. Operam no plano público e impessoal,
focalizam as atenções das Ciências Sociais, se distinguem pela formalidade
de seu caráter e não se confundem com as relações interpessoais por duas
razões principais — são relações “associativas” e estão mediadas por meios
de produção.5 As organizações formam assim um espaço em que agentes
sociais, munidos de instrumentos de trabalho, processam matérias-primas
e as transformam em produtos finais. Por constituírem fenômenos socio-
lógicos, as organizações são singularidades históricas e se inscrevem num
plano institucional.
A título de esclarecimento, e para estabelecer o indispensável contra-
ponto, as relações interpessoais são relações interindividuais:
3. O lugar da organização 73

„ Mobilizam e conectam indivíduos e não agentes coletivos;


„ Envolvem as subjetividades dos agentes individuais;
„ Interessam cientificamente à Psicologia Social, charneira que une a

Psicologia e a Sociologia;
„ Assumem no mais das vezes um caráter informal por serem relações

“comunitárias” do tipo face a face, que dispensam a mediação dos


meios de produção;
„ Remetem às relações que parentes tecem juntos, maridos e esposas

comungam, amigos e colegas de trabalho compartilham, amantes,


familiares, vizinhos ou compadres cultivam.

Portanto, ficam a léguas de distância das relações coletivas, ainda que


coabitem com elas.

Relações de trabalho e relações de propriedade


Para ilustrar as relações coletivas, tomemos o exemplo da relação
estabelecida no processo de trabalho entre trabalhadores e gestores. Os
primeiros executam as atividades, e os segundos, como dirigentes que
são, coordenam as operações produtivas. Os trabalhadores recebem
ordens para realizar funções que consistem em manejar instrumentos
de trabalho e em processar matérias-primas.6 Os gestores, por sua vez,
concebem e controlam o processo técnico, planejam e organizam ativi-
dades, definem cronogramas e têm operadores, necessariamente, sob seu
comando.7 Diversos produtos resultam desse processamento, dependendo
do plano em que se dão as ações: plano da produção e da circulação de
bens materiais e de serviços econômicos; plano da tomada de decisões
e da implementação política; plano da geração de mensagens cognitivas
e da difusão simbólica.
As relações de trabalho definem, então, o modo como os agentes
se relacionam entre si em decorrência de sua atuação no processo de
trabalho. Cingem-se assim ao aspecto operacional ou operativo do pro-
cesso de produção8 e situam os agentes vis-à-vis da gestão e da execução.
De fato:

„ Articulam quem comanda e quem opera, quem concebe e quem


executa;
74 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

„ Conformam-se à qualificação técnica dos trabalhadores — quanto


mais hábeis forem, mais controle poderiam ter sobre o processo de
trabalho;
„ Obedecem ao figurino da heteronomia (gestão hierárquica) ou ao

figurino da autonomia (cogestão ou autogestão).

As relações de propriedade, por sua vez, definem o modo como os


agentes se relacionam em função da capacidade que uns têm de apropriar-
-se dos excedentes econômicos que o trabalho gera:

„ Assentam-se na propriedade econômica dos meios de produção e


abrangem o aspecto patrimonial do processo de produção;9
„ Determinam as posições ocupadas pelos agentes no processo de

apropriação (quem é proprietário e quem não é) e demarcam, em


última instância, as classes sociais em jogo;
„ Subordinam as relações de trabalho e formam com elas um par

indissociável — as relações de produção ou as relações de haver —,


porque o valor gerado como sobreproduto, fruto do trabalho físico
e do trabalho intelectual, é sempre apropriado pelos detentores da
propriedade econômica.

Assim, no sistema capitalista, o empresário é, a um só tempo, pro-


prietário de meios de produção (na relação de propriedade) e gestor even-
tual (na relação de trabalho).10 Por sua vez, o trabalhador é não proprietá-
rio dos meios de produção (na relação de propriedade) e executante (na
relação de trabalho). Quanto ao gestor assalariado, ele é não proprietário
dos meios de produção e dirigente do processo de trabalho: ao vender sua
energia produtiva no mercado, obtém recursos para subsistir.
De forma contrastante, na pequena propriedade mercantil, um traba-
lhador é proprietário dos meios de produção e, obviamente, executante do
trabalho. E, caso utilize membros da família, pode também assumir a posição
de gestor, fechando o circuito por inteiro — torna-se, simultaneamente,
trabalhador, gestor e proprietário. O mesmo se dá nas formas cooperati-
vistas de produção: o trabalhador é executante e coproprietário dos meios
de produção, podendo ou não desempenhar a função de gestor.
Ou seja, dependendo das relações de produção em jogo, os agentes
ocupam, de forma isolada ou de forma conjugada, as três posições de
proprietário, gestor e trabalhador.
3. O lugar da organização 75

Agentes coletivos e agentes individuais


As relações coletivas não se limitam às relações de produção, embora
estas sejam determinantes para o conhecimento daquelas. Incluem também
relações de poder e relações de saber, de maneira que as organizações
põem em jogo uma teia complexa de relações, tais como as formadas entre
patrões e empregados (produção), chefes e subordinados (poder) e peritos
e práticos (saber). Inúmeras clivagens estruturam assim as sociedades e
as organizações, de maneira que não há uma única grande fratura que
funciona como centro de gravidade de todas as explicações sociológicas
— a exemplo da famosa dicotomia entre as classes sociais que perpassa as
sociedades históricas.11 Bem ao contrário. O motor das transformações
sociais e organizacionais repousa em boa parte no conflito de interesses
entre os variados tipos de coletividade, numa espécie de macro e de
microdialética do cotidiano.12
De outra parte, em função das relações de consumo que implicam
transferência de produtos acabados, as organizações vinculam-se a públicos,
formando o primeiro termo de tantas e tantas parelhas: fornecedores e
clientes; prestadores de serviços e usuários; jornais e leitores; empresas de
ônibus e passageiros; bancos e correntistas; órgãos públicos e cidadãos ou
contribuintes; escolas e alunos; hospitais e pacientes; lojas e compradores;
restaurantes e consumidores; rádios e ouvintes; cinemas e espectadores;
estações de televisão e telespectadores; igrejas e fiéis; hotéis e hóspedes;
casas lotéricas e apostadores; bibliotecas e consulentes; institutos de pes-
quisa e respondentes; tribunais e litigantes; presídios e detentos; museus
e visitantes; e assim por diante.
Por conseguinte, as relações coletivas travejam os processos de produ-
ção assim como os processos de consumo de bens ou de serviços. Feita a
síntese, dois tipos de relações coletivas se estabelecem:

„ As relações estruturais, internas às organizações, articulam classes


sociais e categorias sociais, e dizem respeito aos processos de pro-
dução econômica, política e simbólica;
„ As relações de consumo, externas às organizações, ligam estas a seus

públicos, e remetem aos processos de transferência de produtos e


serviços para os consumidores finais.

Assim, embora não sejam tangíveis, as organizações ou as coletivida-


des em geral são tão reais quanto o são objetos físicos. Há como duvidar
76 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

da existência e da capacidade de ação da Igreja Católica? Ou do governo


federal? Ou do Banco Central? Ou da Petrobras? Ou da Rede Globo? Ou
da ONU, no plano internacional? A intangibilidade, ou a não materialidade,
caracteriza tanto os bens simbólicos quanto os bens políticos, e distingue
também os serviços.13 Nem por isso esses bens e serviços deixam de ser
fenômenos reais, pois produzem efeitos objetivos na realidade social em
que se inscrevem e são, por isso mesmo, observáveis e manejáveis.
Para entender a substância empírica das coletividades, todavia, devemos
lembrar que os habitantes das organizações personificam agentes coletivos.
Ou seja, além de representar suas próprias organizações, os membros delas
são portadores de vários estatutos. Eles pertencem a:

„ Classes sociais (no sistema capitalista, por exemplo, classe dos


empresários — a burguesia —, classe dos gestores e classe dos tra-
balhadores);
„ Categorias sociais (gêneros, raças, etnias, gerações, religiões, regiões

de origem, ocupações, preferências sexuais, estados civis etc.);


„ Públicos (clientes, contribuintes, consumidores, correntistas,

usuários, passageiros, cidadãos, detentos, litigantes, eleitores,


sindicalizados, moradores de um bairro, devotos, leitores, alunos,
espectadores, ouvintes, visitantes, filiados a clubes ou associações,
militantes políticos, torcedores, turistas, pacientes, discípulos, fãs,
hóspedes, recrutas etc.).

Em consequência, um agente individual pode ser ao mesmo tempo


trabalhador assalariado, homem, branco, de origem italiana, jovem
adulto, católico praticante, paulista, advogado, heterossexual, sujeito
economicamente ativo, além de deficiente físico. Pertence, portanto, a
uma classe social (é um trabalhador) e a várias categorias sociais. Mas é
também telespectador, amante de ópera, contribuinte, fiel da igreja do
bairro, torcedor de um clube de futebol, motorista amador, correntista de
um banco, cliente de supermercado, simpatizante de um partido político
entre tantas outras situações. Faz parte então de muitos públicos.
Todo agente individual porta assim um conjunto preciso de relações
coletivas: corporifica uma classe social como seu suporte vivo, personifica
algumas categorias sociais e participa de determinados públicos. Embora
seja um indivíduo singular, no dia a dia das práticas sociais encarna ou
3. O lugar da organização 77

dá vida a vários agentes coletivos. Em princípio, reúne as condições para


defender os interesses objetivos desses agentes.14 Eis uma ilustração: o
fato de um homem ser politicamente liberal, crítico do machismo ou do
patriarcalismo, tornando-o parceiro de sua esposa ou companheiro dela,
não anula as diferenças existentes entre ele e ela. Porque os gêneros, dadas
as suas especificidades, têm objetivamente interesses díspares.15
Qual é então a valia dos conceitos de relações sociais e de agentes
coletivos?

„ Servem de ferramentas indispensáveis para desvendar as articulações


e as clivagens que perpassam o espaço social;
„ Fornecem elementos cruciais para entender os conflitos intra e in-

terorganizacionais, ao captar a diversidade dos interesses em jogo;


„ Contribuem para a percepção da enorme complexidade da realidade

social e para resgatar sua autonomia frente às Ciências Naturais e à


Psicologia;
„ Ajudam a não confundir interesses individuais e interesses coletivos,

embora os próprios agentes individuais suportem e atualizem os


interesses das coletividades.

Domínios da realidade
Em virtude da complexidade da realidade social, certas confusões
repontam e campos científicos acabam superpostos de forma inadequada.
A saber:

„ Não se tentou “naturalizar” as leis da história, estabelecendo a suces-


são obrigatória quer entre estágios, quer entre modos de produção
ou quer entre tipos de sociedade?
„ Não se tomou emprestado o darwinismo da biologia, convertendo-o

numa seleção “social” dos mais aptos (os vencedores ou os fortes)


e numa espécie de vontade de potência à moda de Nietszche?
„ Não se apelou para as “leis naturais do mercado” como mecanismos

espontâneos de coordenação da economia e também das atividades


sociais?
„ Não se procurou dar explicações “psicanalíticas” a fenômenos so-

ciológicos como o nazismo totalitário?


78 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

„ Não se vinculou um padrão de personalidade ao autoritarismo po-


lítico, numa espécie de genealogia determinista?
„ Não se confundiram pura e simplesmente os fenômenos simbólicos

(padrões culturais) com sentimentos psicológicos?


„ Não se quiseram entender as transformações históricas como frutos

do gênio de grandes homens?16


„ Não se chegou a justificar o “atraso do Brasil” pelo suposto caráter

indolente, dispersivo e indisciplinado de seu povo?


„ Não se confundiu o estudo das organizações com o estudo de orga-

nismos biológicos ou com o domínio da Psicologia?

Ora, no universo empírico, a Psicologia observa as singularidades bio-


gráficas e as condutas de agentes individuais. Seu objeto de estudo são os
fenômenos psíquicos, intra-individuais, de caráter objetivo e subjetivo.
Fenômenos como emoções, percepções, sentimentos, atitudes, motivações,
aspirações, frustrações, desejos, ansiedades, pulsões, cognições, aptidões e
capacidades aprendidas. Para apanhar recorrências e estabelecer padrões
explicativos, os processos empíricos sobre os quais a Psicologia se debruça
são os estados psicológicos dos indivíduos, não os processos sociais que
engajam as coletividades.
Em outra vertente, o estudo das organizações tampouco pode ser assi-
milado ao domínio das Ciências Naturais. Estas têm por objeto de análise
os fenômenos físicos, químicos e biológicos. Os processos empíricos ob-
servados consistem em eventos naturais, cuja ocorrência não depende de
ações humanas e cujas leis motoras são necessárias e universais. Os eventos
naturais processam-se de forma recorrente em toda parte e em todos os
tempos — são anistóricos. A lei da gravitação universal de Isaac Newton,
por exemplo, é necessária, porque nenhum corpo do universo deixa de
lhe ser submetido; e é universal, porque transcende épocas e continentes,
aplica-se em qualquer tempo e lugar. O mesmo pode ser dito da lei de
Proust, na química, em que a composição de dado material, como o óxido
de mercúrio, tem sempre os mesmos elementos — oxigênio e mercúrio —
distribuídos na mesma proporção, em quaisquer lugares e em quaisquer
situações históricas.
Não é o caso das Ciências Sociais. Suas leis, ou suas regularidades
explicativas, têm validade restrita a tipos específicos de sociedade ou a
determinados modos de produção. O desemprego, por exemplo, traduz um
fenômeno específico das sociedades capitalistas e não pode ser generalizado
3. O lugar da organização 79

para as sociedades latifundiárias, feudais ou para as sociedades socialistas


estatais. De forma similar, a lei da oferta e da procura tem sua validade
circunscrita às economias de mercado e não se estende às economias de
comando, nem às autárquicas ou às de subsistência. Em outras palavras, as
leis sociais, diferentemente das naturais, são leis contingentes e históricas.
Por serem determinações condicionadas por sistemas sociais, elas têm sua
eficácia reduzida a tipos específicos de estruturas socioeconômicas e só
valem em tempos e espaços muito definidos.17
Para completar o circuito, diremos: as leis psicológicas, embora neces-
sárias em termos do aparelho psíquico (somos seres naturais), são também
históricas (somos seres sociais). Por exemplo, a percepção é um processo
psicológico que a estrutura biológica de todos os seres humanos conforma
(âmbito da necessidade), mas o que percebemos está socialmente condicio-
nado (âmbito da historicidade), porque a percepção do agente observador
depende do patrimônio cultural que ele acumulou na sua história de vida
como partícipe de determinada coletividade. Uma criança, um deficiente
mental, um analfabeto funcional deixam de apreender, ou apreendem
menos fenômenos do que outros membros de sua própria comunidade.
Por qual razão? Porque sua pobreza conceitual e sua escassez vocabular
fazem com que “olhem”, mas não ”vejam”, não possam discernir no real
a ocorrência desses ou daqueles fatos.
Vamos ilustrar mais, a partir de situações em que um ou mais domínios
da realidade não estejam operando. No limite, há o caso de pessoas em
estado vegetativo, atingidas por doenças ou acidentes, que sobrevivem em
função da tecnologia de prolongamento da vida. Embora vivas do ponto
de vista biológico, não se pode dizer o mesmo no plano psicológico e no
social. Um único domínio da realidade mantém-se aqui ativo: o natural.
De forma simétrica, os autistas são seres biológicos e psicológicos, embora
não agentes sociais em termos práticos, dada sua extrema dificuldade (ou
incapacidade) para estabelecer relações com outrem. Nesse caso, apenas
dois domínios da realidade estão presentes: o natural e o psicológico.
Para fechar o raciocínio pela negativa, inexistem empiricamente pessoas
ativas, no plano psicológico e no plano social, que não estejam vivas em
termos biológicos. Afinal, a Natureza é por isso mesmo a base essencial
e originária.
Em consequência dessas observações, fica evidente que as organizações
se inscrevem no domínio social e seu estudo compete às Ciências Sociais. O
“reducionismo psicologista” ou o “imperialismo naturalista” confundem as
80 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

abordagens e redundam em meras extrapolações ideológicas, porque não


cabe explicar fenômenos sociais atendo-se apenas a motivações psíquicas
ou a necessidades fisiológicas. O inverso também procede: as estruturas
sociais não podem converter-se em base explicativa dos fenômenos psico-
lógicos ou naturais, ainda que todos esses campos se permeiem e interajam
uns com os outros.
Por fim, vale a pena lembrar que os corpos físicos dos agentes indivi-
duais, ou os organismos neurofisiológicos que habitam uma organização,
são objetos de estudo das Ciências Naturais. Mas o que dizer de suas
personalidades e de suas relações econômicas ou políticas? Todo indiví-
duo é, nas suas três dimensões empíricas: um ser biológico, submetido à
contingência de leis naturais; um ser psicológico, submetido à moldagem
de padrões psíquicos; e um ser social, submetido à injunção das regula-
ridades sociais.
E isso tudo convalida um fato inegável: o estudo das organizações
consiste em analisar processos sociais e relações coletivas, porque trata
de coletividades em ação. Isso não quer dizer que deixe de lado as inte-
rações entre os agentes individuais (relações interpessoais), mas isso não
constitui seu foco principal, seu escopo essencial. Ao realizar uma análise
das organizações, todo observador irá se deparar, em consequência, com
diferentes tipos de relações:

„ Relações coletivas que articulam classes sociais e categorias sociais


(relações estruturais);
„ Relações coletivas que vinculam organizações e seus públicos (rela-

ções de consumo);
„ Relações interindividuais que conectam agentes individuais entre si

(relações interpessoais).

A análise sociológica, todavia, privilegia as relações coletivas, enquanto


a análise psicossocial enfoca as relações interindividuais.

As dimensões da organização
O espaço social não é povoado por indivíduos, mas por relações so-
ciais: os agentes individuais são apenas os portadores dessas relações. Toda
organização constitui um microcosmo social, não importa sua textura ou
seu arcabouço (seja uma associação voluntária ou uma empresa lucrativa,
3. O lugar da organização 81

seja um órgão público ou um coletivo comunitário). O caráter precípuo


das organizações pode ser definido a partir das três dimensões analíticas
que demarcam todo espaço social e que, de fato, se interpenetram ou
imbricam. Existem organizações predominantemente:

„ Econômicas, produtoras de bens ou serviços econômicos, que uti-


lizam ou dependem em especial das contribuições materiais como
meios de controle;18
„ Políticas, produtoras de bens ou serviços políticos, que utilizam ou

dependem em especial das coações físicas como meios de contro-


le;19
„ Simbólicas, produtoras de bens ou serviços simbólicos, que utilizam

ou dependem em especial das representações mentais como meios


de controle.20

É possível ainda dizer que toda organização possui:

„ Uma infraestrutura material (instalações e equipamentos), que ope-


ra segundo uma determinada divisão do trabalho e dispõe de um
mecanismo de substituição do pessoal;
„ Um sistema de poder, que se traduz em mecanismos específicos por

meio dos quais o mando se exerce;


„ Um universo simbólico, composto pelos saberes (patrimônio intelec-

tual) e por padrões culturais que são inculcados e praticados pelos


agentes sociais.

Toda organização importa do ambiente externo objetos naturais e


objetos sociais para poder realizar suas atividades — vivemos, afinal, num
mundo material. E, por ser uma coletividade, qualquer organização re-
gula interesses internos e externos, ao produzir decisões imperativas para
disciplinar seus membros e organizar suas relações com o ambiente.21 Por
fim, qualquer organização expressa e pratica representações mentais, gera
e padroniza mensagens cognitivas, sem o que não teria a coesão necessária
para funcionar e se transformaria em uma torre de Babel.
As três dimensões analíticas — a econômica, a política e a simbólica
— servem para apreender e distinguir todo espaço social e, por extensão,
quaisquer organizações. É possível entender os mecanismos de regulação
vigentes em função da dominância de uma das dimensões, mas é também
82 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

possível demarcar variados espaços internos. Assim, toda organização se


conforma ao mesmo tempo como unidade produtiva, entidade política e
agência cultural. De maneira que, em termos:

„ Econômicos, as relações de haver (ou de produção) demarcam uma


espécie de praça em que se produzem e intercambiam bens e serviços
para satisfazer necessidades;
„ Políticos, as relações de poder demarcam uma espécie de arena

em que se defrontam diferentes forças sociais para satisfazer inte-


resses;
„ Simbólicos, as relações de saber demarcam uma espécie de palco em

que se elaboram e difundem representações imaginárias (discursos


ou mensagens) para satisfazer expectativas.

Do ponto de vista da análise teórica, as relações de produção sobredeter-


minam as demais relações, porque tanto a transformação da natureza como
a produção das condições de subsistência servem de fundamento a qualquer
tipo de sociedade.22 Isso significa que as relações de produção demarcam o
terreno das “variações possíveis” das relações de poder e das relações de
saber. Vejamos um exemplo. A economia feudal, que se baseia em relações
de servidão ou de dependência,23 não comporta relações de poder liberais,
uma vez que a cidadania é inconcebível e disfuncional nos domínios se-
nhoriais. Em contraposição, tal economia demarca relações “possíveis” de
poder, todas elas variantes de uma matriz de poder de exceção (ausência de
cidadania e submissão dos agentes a um poder discricionário). Ou melhor,
as relações de produção feudais exigem para funcionar alguma forma de
poder totalitário ou autoritário. Por quê? Porque suas relações de poder
usam arbitrariamente a coação física e, com isso, extraem sobretrabalho
servil e viabilizam a reprodução do sistema.
Para sermos mais precisos ainda, diremos que as relações de proprieda-
de operam como chaves de decifração da estrutura social. Ao descobrirmos
quem se apropria dos excedentes gerados na produção, identificamos os
proprietários econômicos e entendemos os interesses contraditórios que
se confrontam. Assim:

„ Na forma escravista das relações latifundiárias, antagonizam-se amos,


feitores e escravos;
„ Nas outras formas de produção latifundiárias, enfrentam-se latifun-

diários, capatazes e peões, parceiros ou colonos;


3. O lugar da organização 83

„ Nas relações feudais, defrontam-se senhores feudais, prepostos e


servos;
„ Nas relações capitalistas, confrontam-se empresários, gestores e

trabalhadores;
„ Nas relações corporativistas ou socialistas estatais, medem forças

gestores estatais e trabalhadores;


„ Nas relações patrimoniais da Roma Antiga, digladiam-se patrícios

e plebeus.

Em consequência, não se pode abordar as organizações, ou intervir


nelas, de modo indiscriminado. Elas se diferenciam estruturalmente em
função das relações de produção que as alicerçam. Não se pode confundir,
por isso mesmo, organizações corporativas (um sindicato, uma fundação,
uma igreja, um clube de serviço ou uma associação profissional) e empre-
sas multinacionais de capital privado. Analogamente, não cabe assimilar
pequenas empresas familiares, cuja propriedade é autônoma, às coopera-
tivas de produção, às empresas capitalistas familiares ou às empresas de
economia mista. Nivelar todas as organizações a seus aspectos formais,
sem distinguir seu tipo de propriedade, leva-nos a incorrer em um erro
teórico imperdoável, com gravíssimos efeitos práticos.24
A miopia resulta de uma postura empirista, que só enxerga gatos pardos
no lusco-fusco de seu olhar ingênuo.25 O tipo de propriedade é sempre
determinante, além de ser fonte de diferenciação. Não são a mesma coisa
a propriedade capitalista ou a latifundiária, ambas de caráter individual e
pleno, e a propriedade feudal ou a corporativista, ambas de caráter parti-
lhado e condicional. A propriedade corporativa não constitui patrimônio
pessoal do agente, mas é patrimônio da corporação, isto é, depende da
relação acordada entre suserano e vassalo (propriedade feudal) ou das re-
gras vigentes no seio da própria nomenklatura (propriedade corporativa e
estatista). Trata-se de uma propriedade partilhada. Ninguém pode alienar
uma concessão recebida, nem desfrutar com exclusividade de seus resul-
tados. Todavia, o membro da corporação pode usufruir de alguns benefí-
cios previamente definidos, nos estreitos limites do cumprimento de seus
deveres para com a corporação, detentora “coletiva” da propriedade. O
mesmo cuidado em resgatar lógicas específicas deve ser aplicado à pequena
produção familiar, de caráter parcelar; à propriedade cooperativista, de
caráter cooperativo e público; ou ainda à propriedade primitiva, gentílica
ou anarquista, todas de caráter comunitário.26
84 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

Falar de propriedade econômica significa falar de apropriação ou de


distribuição dos excedentes. Ora, isso não esgota a disputa por “recursos
escassos”. Dizer que a propriedade econômica é determinante para a aná-
lise das organizações, assim como o é para as sociedades humanas, não
equivale a dizer que todas as explicações sejam “econômicas”. Cair-se-ia
num economicismo tolo. Existem outras chaves de decifração, algumas de
natureza política (por exemplo, a questão da liberdade e da distribuição
do mando), e mais outras de natureza simbólica (por exemplo, a questão
da identidade e da inculca de evidências). Afinal, como permanecer pro-
prietário econômico e apropriar-se do sobreproduto gerado sem deter
ou exercer, de algum modo, o poder e o saber na organização? Deter não
significa exercer. Os acionistas, por exemplo, detêm ou se apropriam dos
benefícios gerados por uma pesquisa tecnológica produzida no seio da em-
presa, embora não possuam o saber necessário para tanto. Quem exerce tal
saber são os pesquisadores, expertos ou especialistas, que são empregados
da empresa. Mais ainda: os acionistas detêm o poder de contratar, demi-
tir, promover, transferir e avaliar o desempenho do pessoal da empresa,
apesar de delegar muitas vezes seu exercício a gestores assalariados que
lhes prestam serviços e lhes devem lealdade por dever de ofício.
Todo espaço social constitui, assim, um terreno de contradições em que
agentes coletivos se defrontam, com base em interesses divergentes e em
credos ou ethos dissonantes. A colaboração dos agentes com os objetivos
organizacionais depende de processos de negociação, de cooptação ou
de submissão, em função do medo que eles têm de perder vantagens ou
posições. Mas está também condicionada por mecanismos de persuasão
ou de mistificação.

A interdependência organizacional
As organizações são sistemas abertos e campos de forças: competem para
absorver mais energia ou valor do ambiente externo; processam insumos e
geram produtos; administram pressões e apoios; dependem da credibilidade
pública que vão construindo, quer dizer, da reputação de que desfrutam.
Mas também se inscrevem num espaço hostil e belicoso, cujo caráter é
político: convivem de maneira permanente com outras tantas coletividades
com interesses contraditórios. Por isso é que o ambiente externo exige delas
enorme capacidade de adaptação e grande flexibilidade — qualidades que
costumam decorrer de uma competente análise estratégica.
3. O lugar da organização 85

Quais são então no sistema capitalista, além de obviamente os pro-


prietários (acionistas ou cotistas), os demais stakeholders ou públicos de
interesse da organização?

„ Os clientes que formulam requisitos indispensáveis para que pro-


dutos ou serviços sejam aceitos e adquiridos;
„ Os trabalhadores que expressam pleitos sobre condições de trabalho,

remuneração, carreiras, participação nas decisões, nos resultados ou


nos lucros;
„ Os bancos que fazem exigências para financiar recursos e prestar

serviços;
„ Os fornecedores ou os prestadores de serviços que estabelecem

condições mínimas para operar (prazos, preços, garantias, especifi-


cações técnicas do produto, tipos de relacionamento);
„ Os agentes governamentais que intervêm através de leis, planos,

programas de investimento, regulamentos, impostos, medidas res-


tritivas ou de estímulo;
„ As comunidades locais que influenciam as decisões por suas crenças

e suas práticas, por suas expectativas e pela imagem que cultivam


em relação à organização;
„ A mídia e os sindicatos que pressionam, lançando mão de diversos

tipos de manifestações;
„ As associações ambientalistas que formulam demandas e restringem

ou balizam os processos produtivos;


„ Os concorrentes que rivalizam e os competidores potenciais que se

transformam em ameaças pela capacidade que têm de absorver parte


do mercado ou de desbancar a empresa.

As organizações navegam assim em mar tempestuoso e, mesmo sem


sabê-lo, administram uma complexa equação de interesses. Se não con-
seguirem dar conta do desafio, bem como se não lograrem preservar
suas finalidades ou sua razão de ser, tendem a definhar e até mesmo a
soçobrar.

Notas
1. As Ciências Sociais abrangem todas as ciências que estudam fenômenos sociais. Afora a Psicologia
Social, que forma uma charneira entre a Sociologia e a Psicologia, todas as demais ciências citadas
86 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

são Ciências Sociais gerais — de caráter sistemático e inclusivo — ou ciências aplicadas ao estudo
de fenômenos específicos.
2. Na esteira de Talcott Parsons (Structure and Process in Modern Societies. Glencoe, Ill: The Free
Press, 1960, p. 17), Amitai Etzioni as definiu como unidades sociais devotadas primacialmente
à consecução de metas específicas (Análise Comparativa de Organizações Complexas. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1974. p. 11) ou que procuram atingir finalidades ou objetivos especí-
ficos (Organizações Modernas. São Paulo: Pioneira, 1976). Nesse caso, importam os objetivos
reais das organizações, e não apenas os objetivos declarados ou intencionais de seus dirigentes
e membros. A observação das práticas efetivas da organização, notadamente do montante dos
recursos alocados e de seu destino, fornece o verdadeiro termômetro dos fins que estão sendo
perseguidos. Assim, ao conhecer os efetivos esforços que estão sendo desenvolvidos, capta-se o
rumo e as prioridades adotados pela organização, em vez de apenas confiar na subjetividade dos
agentes.
3. Michels, Robert. Os Partidos Políticos. São Paulo: Editora Senzala, s/d. Michels escreve, sinteti-
zando seu pensamento a este respeito: “Uma representação permanente equivalerá sempre a uma
hegemonia dos representantes sobre os representados” (p. 20).
4. Muitos órgãos públicos e empresas estatais perdem de vista a satisfação dos interesses públicos
e defendem zelosamente a permanência de programas cujas necessidades sociais já caducaram.
Passam a considerar as vantagens alcançadas por suas burocracias como “direitos adquiridos”.
E teimam em conservar o monopólio de determinadas atividades, apesar de não apresentar — e
talvez por isso mesmo — um desempenho adequado às expectativas coletivas.
5. O conceito de meios de produção integra as matérias-primas e os instrumentos de trabalho
necessários para o processamento de produtos. Em nossa concepção, recobre tanto a produção
material dos bens econômicos como a produção imaterial de serviços, de bens políticos e de bens
simbólicos.
6. Sejam elas objetos da natureza ou objetos sociais (dimensão econômica), sejam elas interesses
sociais (dimensão política) sejam elas signos ou representações mentais (dimensão simbólica).
7. Não cabe descaracterizar o conceito de gestor como se faz correntemente, nomeando funções
que não implicam gestão de pessoal com o título de gerente. Por exemplo: gerente de conta ou
gerente de produto.
8. O processo de produção abarca não só o processo de trabalho, mas também o processo de apro-
priação do sobreproduto ou a propriedade econômica propriamente dita.
9. É preciso distinguir propriedade econômica e propriedade jurídica: ao passo que a primeira
remete especificamente à apropriação do sobreproduto (excedentes econômicos em relação às
necessidades de reposição da força de trabalho e dos demais insumos), a segunda se refere a uma
relação politicamente definida — o direito de dispor dos meios de produção e dos produtos do
trabalho. Geralmente, os dois tipos de propriedade coincidem, mas nem sempre. Posseiros, por
exemplo, não detêm a propriedade jurídica da terra, mas dispõem dos frutos de seu labor, até
serem eventualmente expulsos dela. Os arrendatários também se encontram na mesma situação:
não são proprietários da terra, mas se apropriam de parte dos excedentes, após o pagamento do
arrendamento.
10. Dependendo do tamanho da empresa, o empresário delega as funções gestoras a um estado-maior
de sua confiança.
11. Patrícios versus plebeus, amos versus escravos, senhores feudais versus servos, latifundiários versus
peões, burgueses versus operários. Tal leitura é da vulgata marxista, baseada numa frase célebre
do Manifesto Comunista (“a História é a história da luta de classes”). Essa vulgata não leva em
consideração um fato notável: a referência à História não pode excluir a Pré-História, em que
comunidades humanas desconheciam a divisão da sociedade em classes sociais. E mais: não capta
o peso altamente significativo das categorias sociais e de suas lutas, tais como os gêneros, as etnias,
as confissões religiosas, as gerações ou as raças.
12. Civilizações, nações, blocos econômicos, regiões, classes sociais, categorias sociais, cidades, tribos,
fratrias e clãs, bairros, organizações de variados gêneros, públicos, subunidades organizacionais,
equipes diretivas, redes informais de poder.
3. O lugar da organização 87

13. Bens simbólicos são, por exemplo, novelas televisivas, notícias radiofônicas, conhecimentos
científicos, músicas populares ou eruditas, filmes publicitários ou de arte, projetos básicos ou
executivos para a construção de um imóvel, livros, sermões, receitas médicas. Bens políticos são,
por exemplo, ordens militares, decisões administrativas, sentenças judiciais, leis ou regulamen-
tações processuais. Serviços são, por exemplo, serviços educacionais, meteorológicos, turísticos,
artísticos, de assistência médica, de consultoria, de entretenimento, de hotelaria, de turismo, de
segurança, de trânsito, de transporte, de advocacia, de coleta de lixo etc.
14. Em regra geral, as circunstâncias fazem o homem. Isso não quer dizer que não possam existir
empresários socialistas ou trabalhadores conservadores, como qualquer observação empírica
comprova.
15. As mulheres, por exemplo, pugnam nas empresas por ter creches, licenças maternidade e me-
canismos de controle contra o assédio sexual, demandas que não são de interesse direto dos
homens.
16. Isso não significa que certas lideranças não possam “dar o tom” a certos processos históricos. Mas
daí a considerá-los “autores” ou “criadores” ad hoc desses processos, há uma grande distância:
a distância que falta percorrer entre a superficialidade do senso comum e a análise sociológica.
17. Isso não quer dizer que as Ciências Sociais não possam desenvolver conceitos gerais, válidos para
quaisquer épocas e lugares, tais como os conceitos de sociedade, divisão do trabalho, relações
sociais, agentes coletivo e individual, organização, instituição, valor cultural, norma social, co-
operação social etc. Só que tais conceitos, de caráter abstrato-formal, são corpos exangues que
nada explicam em si mesmos, a não ser quando investidos na historicidade dos fenômenos sociais.
Somente então, corporificados em conceitos específicos e conceitos singulares ganham sentidos
explicativos (ver do autor a este respeito Classes, Regimes..., pp. 28-37, e Modos de Produção...,
pp. 31-62.
18. Tais como o são as indústrias, as fazendas, as empresas de mineração, as construtoras, as lojas
comerciais, os bancos, as empresas de transporte, de limpeza e de manutenção.
19. Tais como o são as corporações policiais ou militares, as prisões, as empresas de vigilância, os
reformatórios, as penitenciárias, os campos de trabalho forçado, as administradoras de bens, as
repartições públicas, os tribunais, os escritórios de advocacia, os parlamentos.
20. Tais como o são as igrejas, as ordens religiosas, os conventos, os meios de comunicação, as esco-
las, as universidades, os centros de pesquisa, os museus, os teatros, as agências de publicidade,
os escritórios de arquitetura, as clínicas médicas, os hospitais, as empresas de consultoria ou de
software, as produtoras de filmes.
21. A regulação processa-se, é claro, através de normas jurídicas ou administrativas, cuja desobediência
implica sanções negativas. Uma delas — e das mais fortes — é a exclusão do transgressor dos
quadros da organização, para não citar punições como a reclusão dos recalcitrantes ou a morte
dos traidores em algumas organizações totalitárias (grupos terroristas, campos de concentração,
sociedades secretas, gangues mafiosas, seitas apocalípticas).
22. As razões para tanto são óbvias: não há sociedade que não viva de pão, ainda que não se viva
apenas de pão. O inverso, entretanto, não é verdadeiro: ninguém vive de espiritualidade ou de
domínio sobre os outros, sem antes e para tanto assegurar os próprios meios de subsistência.
23. Os servos são partes integrantes do feudo, ao mesmo título que a terra e as árvores.
24. Uma das razões dos fracassos de muitas consultorias organizacionais reside justamente na aplicação
de uma mesma receita a entidades estruturalmente diversas.
25. Leitura imediata da essência na aparência ou crença no reflexo objetivo.
26. Existem dezenas de tipos de propriedade, radicalmente diversos entre si. Para uma análise por-
menorizada dos tipos de propriedade, ver Srour, Robert Henry. Modos de Produção..., 2a Parte.
4
O poder nas organizações

As práticas sociais
Vamos abordar um conceito-chave para o conhecimento das organi-
zações — o de práticas sociais. Antes, porém, relembremos: as relações
sociais que articulam os agentes coletivos constituem o objeto de estu-
do das Ciências Sociais. São elas as relações de haver (de produção), de
poder e de saber. A combinação desses três gêneros de relações define a
arquitetura do espaço social. Por quê? Porque as relações coletivas arti-
culam agentes empenhados em intervenções sobre as realidades material
e imaterial, tangível e intangível. Demarcam, portanto, processos de
transformação da natureza e da sociedade, atividades padronizadas que
constituem as práticas sociais. Milhares de exemplos podem ser pinçados
no cotidiano.1
As práticas sociais envolvem dispêndios de energia e movimentação
de bens e de agentes. No mais:

„ Celebram a convivência social, pois a despeito das turbulências ou


dos efeitos que produzem, ocorrem de forma ordenada;
„ Obedecem a figurinos previamente estabelecidos e respeitam for-

malidades, à semelhança dos rituais, cerimônias e ritos;


„ Mobilizam disciplinas miúdas e exigem o cumprimento de deveres,

a exemplo dos afazeres profissionais ou da circulação de veículos e


de pessoas nas ruas;
„ Pautam-se por normas e se inspiram em valores, de forma que são

socialmente aceitas e controladas;


90 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

„ Desenvolvem-se de maneira estruturada ao obedecer a padrões


recorrentes;
„ São conjuntos planejados de atividades, ou empreendimentos em

sentido lato, destinados a intervir na realidade;


„ Expressam o funcionamento da vida social quando reproduzem o

modus operandi das relações vigentes em dada coletividade;


„ Representam uma das chaves da dinâmica social quando incorporam

insensíveis e infindáveis mudanças.

O trabalho como geração de valor econômico


Mas o que transforma efetivamente a natureza? O trabalho humano,
a capacidade de intervir sobre a realidade natural e de moldá-la segundo
um projeto previamente concebido. O trabalho é uma faculdade quase
exclusivamente humana. Por que “quase”? Porque estudos etológicos e
laboratoriais indicam que alguns mamíferos superiores possuem a aptidão
de utilizar ferramentas e de resolver problemas.2 De fato, a descoberta
da inteligência animal, cada vez mais observada e analisada, questiona a
arrogância intelectual das posturas antropocentristas.
Para garantir a sobrevivência da espécie humana, nada há de mais
precioso que a energia investida na transformação de objetos naturais em
objetos sociais. O trabalho converte-se, assim, em prática social básica da
humanidade. Ninguém se humaniza nem vive fora de coletividades huma-
nas. Tanto é que o mito de Robinson Crusoé, como os relatos de eremitas
citados na literatura, não deixa de pressupor uma prévia socialização dos
agentes ou a preliminar assimilação de padrões culturais. Os raros casos de
homo ferus,3 referidos em estudos científicos, comprovam os imperativos
da sociabilidade e da aprendizagem simbólica. Na ausência desses dois
processos, a “humanização” não se dá. Quando muito, desenvolvem-se
organismos biológicos mentalmente débeis e com escassa capacidade de
intercâmbio social.
O trabalho é a chave da produção econômica. Sem ele, não há geração
de valor e a vida em sociedade se inviabiliza, porquanto os agentes sociais
precisam produzir os próprios meios de subsistência. O paraíso terrestre
— com seu milagre de abundância natural e suas dádivas inesgotáveis —
não passa de cândida elucubração. Quaisquer bens da natureza dependem
de esforço humano para serem transformados em bens socialmente úteis.
Mesmo caçar, ou pescar, ou coletar raízes e frutos silvestres são trabalhos.
4. O poder nas organizações 91

Quer dizer, consistem em processos de transformação de matérias brutas


em produtos acabados, em valores de uso, em utilidades sociais, em bens
portadores de um valor socialmente definido.
Todavia, não se deve confundir trabalho com emprego. Este consiste
em prestar serviços a um empregador, sob a dependência dele e mediante
alguma forma de remuneração; caracteriza-se por certa permanência no
tempo ou pela não eventualidade. A natureza do trabalho é mais genérica:
corresponde a um processo de transformação do mundo, a uma interven-
ção operada por um trabalhador, ou por vários deles, sobre uma matéria
(bruta ou prima) com o auxílio de uma ferramenta. O que resulta disso? O
produto. Trabalho então significa esforço, dispêndio de energia para criar
riquezas materiais ou imateriais. Embora geralmente se utilize o trabalho
para designar o processo técnico de produção material, é possível conferir
maior abrangência ao conceito e transcender a produção econômica que
converte objetos naturais em objetos sociais. Trata-se de abarcar tanto a
produção política — a regulação de interesses para atingir fins coletivos —
como a produção simbólica — o processamento de signos para elaborar e
emitir discursos, formular e expor representações imaginárias.
Todo trabalho possui uma capacidade ímpar: a de produzir mais do
que seu agente consome para repor as energias gastas. Vale dizer, todo
trabalho pode gerar excedentes econômicos. Para simplificar, vamos usar
uma analogia: um boi que gira uma moenda de cana-de-açúcar precisa de
uma ração diária para sobreviver e repetir seus giros; a ração ingerida custa
menos que o valor agregado à calda por seu esforço (se não, a operação
daria prejuízo). Eis então onde reside o segredo do processo de trabalho
humano: na capacidade de acrescentar um valor a mais, um sobreproduto,
uma riqueza maior do que a necessária para reproduzir a própria energia
despendida.
Agora, com quem fica o sobreproduto? Se for um autônomo — um
trabalhador por conta própria, inserido na pequena produção mercantil e,
portanto, dono de seus próprios meios de produção — o excedente será
apropriado por ele mesmo. Mas se for o empregado de alguém, como no
sistema capitalista, o excedente será apropriado pelo detentor dos meios
de produção e o trabalhador receberá uma retribuição pelo empenho ou
pelo tempo que dedicou. Sua remuneração corresponde então ao “tem-
po de trabalho necessário” para adquirir os bens de subsistência que lhe
permitem recompor as energias gastas no processo. O “tempo de trabalho
excedente”, ou o sobretrabalho, assim chamado porque ultrapassa o valor
92 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

dos meios de subsistência, não lhe pertence — cabe a quem o empregou.


E por quê? Porque o trabalhador carece de propriedade econômica, ou
melhor, não dispõe dos instrumentos de trabalho e das matérias-primas
indispensáveis para produzir o necessário para sustentar-se. No sistema
socioeconômico latifundiário, se o trabalhador for um meeiro, metade
de sua produção irá para o dono da terra (tempo de trabalho excedente)
e metade para manter a si mesmo e à própria família (tempo de trabalho
necessário).
Assim, em quaisquer modos de produção, o trabalho pode gerar exce-
dentes econômicos. A apropriação desses excedentes, todavia, reveste-se
dos mais variados formatos e demarca os diferentes tipos de propriedade
econômica.4

O mando como agregação de forças


Entretanto, não basta transformar a natureza para assegurar a convi-
vência coletiva. Para tanto, são indispensáveis instrumentos de coesão e de
integração (dimensão simbólica do espaço social), bem como mecanismos
de controle e de repressão (dimensão política). Sem que haja uma disci-
plina mínima, nenhuma coletividade humana funciona. Além de meios
de subsistência para poder reproduzir-se (dimensão econômica), as cole-
tividades necessitam de padrões culturais para que seus membros sigam
pautas comuns. Mas não só: as coletividades também requerem normas
jurídicas e suas respectivas sanções a fim de que as ações repressivas —
ou a simples ameaça de que serão acionadas se necessário — espantem e
dissuadam os recalcitrantes. Somente assim haverá capacidade de intervir
sobre as relações sociais, sobre a vontade política dos agentes. Isso nos
leva a estudar a questão do mando.
Toda coletividade abriga diferenças sociais e exige algumas mediações
para manter a convivência. Afinal, como deixar de organizar os interes-
ses coletivos e as atividades gerais?5 Como deixar de reconhecer que o
funcionamento de quaisquer agrupamentos gera necessidades específicas
de gestão ou de funções diretivas? Ou, mais precisamente, pressupõe pro-
cessos de controle, de articulação, de arbitragem e de deliberação? E por
quê? Porque é indispensável garantir e satisfazer os interesses gerais dos
múltiplos agentes componentes das coletividades. Sem o quê, sua coesão
fica em xeque e elas se inviabilizam como unidades de convívio. Em suma,
4. O poder nas organizações 93

tudo isso nos remete à política. Sem regras comuns, freios ou coibições,
a vida social torna-se impossível. Com a vigência delas:

„ Garante-se a produção de bens públicos que, do ponto de vista


individual, representam um ônus;6
„ Ampliam-se as fronteiras e o alcance das ações coletivas, graças à

soma de variados concursos;


„ Explora-se de forma mais eficaz o meio natural, em função da

especialização dos agentes e da utilização de equipamentos mais


potentes;
„ Minimizam-se os choques intermináveis entre os múltiplos interesses

em jogo.

E mais: não existe liberdade individual sem um mínimo de organiza-


ção do espaço habitado. Como assegurar garantias de vida aos agentes e
deslocamento seguro dos bens sem policiamento e sem controles? Poderia
haver liberdade sem segurança pessoal ou sem algum constrangimento
sobre aqueles que a ameaçam?7 Moral da história: não há como escapar de
restrições à autonomia dos agentes sociais, sejam elas consentidas ou não.
Com a licença da analogia, é como se algum pacto fosse assinado — um
acordo em que as partes abdicassem de uma parcela de sua liberdade de
escolha em benefício de uma convivência protegida no seio da coletivida-
de.8 A liberdade corresponde, assim, à autonomia que os agentes exercem
nos estritos limites da sua responsabilização social. Qualquer excesso por
parte de uns pode vir a provocar retaliações correspondentes por parte
dos outros.9
O mesmo acontece na dimensão simbólica. Sem codificação dos signos
e das linguagens não há comunicação possível. Ou, diante de formas de ex-
pressão arbitrárias, a comunicação não se realiza a contento, pois complica
sobremaneira os “ruídos”, as interferências, os filtros e as decodificações
distorcidas — efeitos já presentes em qualquer processo de comunicação. Por
quê? Porque, à falta de um repertório que emissores e receptores partilhem,
o intercâmbio simbólico simplesmente se inviabiliza. Eis, portanto, mais um
marco indispensável para que a convivência coletiva possa se processar.
Isso nos leva a comentar o processo de cooperação. A cooperação
entre vários agentes sociais oculta extraordinárias virtudes: fornece as
condições para que haja uma utilização ótima dos recursos mobilizados;
permite traçar fins que somente uma coletividade poderia almejar; mul-
94 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

tiplica as energias ao gerar uma “força em comum” incomparavelmente


superior à soma das capacidades individuais. Vale dizer, a ação coordenada
e simultânea de vários agentes produz sinergia. Imaginemos várias pessoas
empurrando um caminhão preso num atoleiro: o empuxe combinado é
bem maior do que a adição de cada uma das forças singulares, porque
todas elas se orientam para um fim comum e todas elas obedecem a uma
direção única. Lembremos a temível potência da falange macedônica de
Alexandre, o Grande — organizada de forma compacta e obedecendo a
um só comando —, ou rememoremos a coesão e a força concentrada das
legiões romanas. Eram todas elas formações praticamente invencíveis,
porque poucos conseguiam romper suas fileiras ou resistir a seus assaltos.
Qual era o segredo? A unidade de ação e de direção. Assim, se a obtenção
de sinergia exige o exercício do mando, este, de forma circular, permite
que muitas forças sejam mobilizadas e disciplinadas.
Posto isso, analisemos a capacidade de intervir sobre a vontade dos
agentes sociais ou sobre seus interesses. Analisemos o poder. À semelhança
da propriedade, o poder é uma relação social, não uma posse unilateral,
pois articula agentes com interesses diferenciados, no mais das vezes con-
flitantes. Sua fonte originária encontra-se na capacidade de coagir ou de
estabelecer domínio sobre outros agentes. Isso significa produzir “efeitos
desejados” ou controlar as ações alheias. Assim, as relações de poder são
formadas por duas articulações: a da dominação e sujeição (a exemplo da
relação de propriedade e de não propriedade) e a do mando e obediência
(a exemplo da relação de trabalho que põe em jogo as funções de gestão
e de execução).
O processo de mando assemelha-se assim ao processo de trabalho,
esteio da dimensão econômica e essência dela. Representa um trabalho
político e remete à agregação de forças, à capacidade de tomar decisões e
de fazer com que sejam cumpridas com base em sanções. Os resultados do
mando, todavia, não são necessariamente apropriados por quem o exerce.
Em geral, os resultados beneficiam o detentor do poder ou dos “meios de
produção política” — meios de violência, armas, mecanismos de mobili-
zação de concursos e de pressão. E as diferentes maneiras de apropriar-se
dos “efeitos desejados” ou dos “resultados pretendidos” constituem as
diferentes formas de poder — coercitivo, administrativo, jurídico-judiciário
e deliberativo.10 Em outras palavras, o mando é a face operacional do
poder, é um poder atribuído pelos seus detentores aos agentes que irão
aplicar decisões imperativas, ou seja, o mando corresponde ao direito de
4. O poder nas organizações 95

dar ordens e de zelar pelo seu cumprimento em benefício de quem detém


a dominação política.
Isso nos convida a compreender o meio específico do mando e, por
extensão, do poder. Para submeter compulsoriamente a vontade de outros
agentes sociais, é preciso lançar mão da força física, recorrer à violência nua
— nem que seja em última instância. Afinal, as sanções políticas remetem
à intervenção sobre o corpo dos agentes que se deseja compelir: castigos
físicos, segregações, detenções, deportações, suplícios, torturas, execuções.
Ou ainda, além das restrições à liberdade, variados tipos de privações ou
de controles sobre o acesso aos meios de satisfazer necessidades básicas
— alimentos, sono, sexo, abrigo, cura das doenças.11 Alcança-se então a
obediência ou a sujeição dos agentes pela intimidação, pelo medo ou pela
dor. Entendamos: não há mando sem possibilidade efetiva de sancionar
outrem, pois as sanções repressivas conferem império sobre os outros.
O mando repousa na ameaça ou no próprio uso da coerção física e tem
na violência sua ultima ratio. Quem não dispuser de meios de produção
política não consegue dobrar a vontade dos demais agentes ou, em contra-
partida, não consegue resistir às investidas deles. O mando faculta então
a alguns agentes sociais a possibilidade de se fazer obedecer, sem precisar
da concordância ou do consentimento dos outros. Vale dizer, confere a
alguns a possibilidade de converter os demais em meios para alcançar fins
pretendidos. Daí a inegável especificidade da dimensão política em relação
às dimensões econômica e simbólica. Trata-se do lugar privilegiado da
administração das diferenças sociais, lugar em que a coação, a compulsão
e a submissão se desdobram em embates, rebeliões e resistências.
Os agentes coletivos possuem interesses objetivos díspares ou contra-
ditórios entre si. Por isso é que o conflito, a disputa e o confronto repre-
sentam fatores inerentes às relações políticas. E é também por isso que
alguns agentes obedecem a outros pois, à medida que são vulneráveis ou
podem sofrer danos, ficam à mercê do “poder puro”.12 Um chefe obtém o
cumprimento das ordens que emite porque seus subordinados procuram
escapar de situações intoleráveis ou de condições desagradáveis que a
desobediência poderia acarretar. Como receiam receber uma advertência
ou uma suspensão, como temem uma transferência de setor ou abominam
a ideia de comprometer uma promoção, evitam a qualquer custo assumir
riscos que possam trazer-lhes desgastes ou prejuízos, e — quiçá — oca-
sionar sua demissão. Em última análise, nessas precisas condições, o
96 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

medo impera e a vontade do chefe prevalece, ainda que os subordinados


represem tensões ou possam oferecer resistências subterrâneas, a exemplo
das sabotagens.
Mas, por que tantos receios e tantas inquietações por parte dos traba-
lhadores? Nas sociedades capitalistas, a causa reside na impossibilidade
de produzirem sua subsistência de forma autônoma, já que se acham
desprovidos de meios de produção. Como os desempregados ficam à
míngua, todos procuram empregar-se e se sujeitam a cumprir atividades
durante uma jornada. A base última de sua vulnerabilidade é econômica.
Em outros tipos de sociedade, a base é outra. Por exemplo, a vulnerabi-
lidade dos escravos tem natureza política: inteiramente submetidos ao
arbítrio dos amos — objetos ou “gado falante” que são —, carecem de
direitos e dependem da liberalidade de seus donos para garantir a própria
subsistência.13 Sua obediência decorre de um esforço diuturno para não
dar motivos que possam ensejar padecimentos ou castigos físicos. Mesmo
assim, eles não ficam ao abrigo de violências gratuitas e vivem sujeitos a
um clima de terror.
Nem por isso o poder corresponde a um patrimônio unilateral ou a um
bem que algum agente possua univocamente. Ao contrário, consiste numa
relação social, assim como o são todos os demais fenômenos sociais. Falar
de poder é falar de uma relação de forças, ainda que assimétrica. Nenhum
agente está totalmente destituído de alguma parcela de poder. Mesmo aque-
les que ocupam uma posição subalterna nunca deixam de dispor de algum
contrapoder: isso significa dizer que podem resistir e produzir efeitos sobre
seus superiores e sobre seus pares. E isso ocorre até na situação-limite dos
campos de concentração. Resta sempre ao recluso a possibilidade de optar
entre colaborar ou submeter-se; cumprir rigorosamente as regras ou atacar
um guarda e ser punido, eventualmente morto; servir como kapo14 para
delatar e disciplinar companheiros de infortúnio ou, às vezes, questionar
o caráter abjeto desta mísera existência e refugiar-se no suicídio. Decisões
extremas, sim, mas sem dúvida escolhas.
O mando e, por extensão, o poder consiste em ter a capacidade de
decidir e de obter a docilidade de outrem, de ditar ordens e de vê-las
cumpridas. Mas é também a faculdade de resistir e de sabotar. Retrata o
confronto entre forças sociais, cada qual brandindo o seu cacife e exibindo
seus músculos. Inclui a dialética da obediência e da resistência, os polos
do domínio e da contestação, a potência para sujeitar e o potencial para
rebelar-se.
4. O poder nas organizações 97

A influência como ascendência sobre outrem


De forma similar às duas dimensões anteriores — a econômica e a
política —, a dimensão simbólica abriga uma capacidade específica de in-
tervir sobre a realidade social. Esta capacidade consiste em induzir outrem
a fazer o que nos convém ou nos parece correto que se faça, sem que haja
uso da força. Trata-se da influência, uma capacidade que se assemelha ao
mando e ao trabalho, mas que não se confunde com eles. A influência
pode ser definida como autoridade moral: seu caráter é simbólico, não
político, como é o caso da autoridade política ou do mando legitimado.
Como opera a influência? Pela condução das opiniões alheias ou pela
ascendência sobre outras consciências:

„ Exige que se disponha de certa superioridade mental, de algum


conhecimento ou de algum saber especial para convencer os outros
ou para persuadi-los a alterar suas concepções e convicções;
„ Corresponde à capacidade de inculcar ideias, transmitir propósitos,

incutir aspirações, inspirar valores, induzir opiniões, aliciar expecta-


tivas, instigar, insuflar e incitar outros a realizar determinadas ações
de forma consentida;
„ Consiste em obter a adesão ativa dos outros;

„ Representa a virtude primeira da liderança, mas não a única.


15

A apropriação dos resultados da influência, no entanto, a exemplo da


propriedade econômica ou do poder político, é feita pelos detentores dos
“meios de produção simbólica” — meios de difusão, mídias, mecanismos
de instrução e de expressão. E segue os moldes dos diferentes tipos de
saber — o ideológico, o científico, o estético e o técnico.16
Estamos, pois, em plena dimensão simbólica, a léguas da concepção
difundida na literatura sociológica norte-americana que confunde influên-
cia com poder.17 A influência é uma relação de ascendência ou de influxo
sobre mentes alheias, e não um processo de disciplina dos corpos e das
vontades. Assim, as relações de saber correspondem a uma dupla relação:
relação de hegemonia e de conformidade a determinados padrões culturais
(a exemplo da relação de propriedade e de não propriedade); e relação
de influência e de adesão (a exemplo da relação de trabalho que põe em
jogo as funções de gestão e de execução).
Em tese, o terreno da influência não é o do irracional e da fé — ações
emocionais, tradicionais, axiológicas —, mas o terreno preferencial da
98 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

razão, dos raciocínios elaborados e da persuasão fundamentada. Nem por


isso a influência deixa de lançar mão daqueles expedientes, mas sempre
de forma acessória. Agora, para que a fala e o discurso não verbal tenham
eficácia, é preciso dispor de “meios de produção simbólica”. Assim, en-
quanto a prática política prima pela compulsão, a influência leva os agentes
sociais a conformar-se a determinadas ideias de modo voluntário — pelo
menos por princípio. Eles dão ou recusam seu consentimento, se dispõem
ou não a comungar com certas concepções, aceitam ou rejeitam os pontos
de vista formulados (orientações, sugestões, opiniões, observações, críticas,
recomendações), defendem com afinco os pensamentos que adotam.
É preciso ponderar, porém, que a demagogia, a superstição, a propa-
ganda enganosa e a difusão de informações viciadas escancaram as portas
para a mistificação das consciências e a deturpação da “adesão espontânea”.
Por definição, e em sentido contrário, a influência se contrapõe à violência
simbólica e se localiza no extremo oposto da manipulação que se vale da
astúcia, do engodo, da burla, da esperteza ou do logro. Para superar tais
armadilhas, ela desenvolve um pensamento sistemático e argumentativo,
que se sujeita à comprovação e à crítica.
De fato, o processo de manipulação é uma das formas espúrias da
violência simbólica: abusa da credulidade alheia por meio de ardis, men-
tiras, trapaças, falácias ou sofismas; empenha-se em doutrinar as mentes,
incutindo crenças por meio da catequese (ensino de caráter acrítico), o que
resulta em autêntica lavagem cerebral; viola a autonomia dos destinatários
ao viciar seu processo de escolha e de adesão; lança mão dos desejos ou
dos anseios dos destinatários para motivá-los a fazer algo que não fariam
voluntariamente — e que beneficia o manipulador —, nem que seja através
do suborno, da sedução ou da chantagem financeira ou emocional. A
manipulação resulta em mistificação ou em alienação dos agentes.
O processo de persuasão, em contrapartida, convence o destinatário a
fazer ou a acreditar em algo que não colida com seus interesses efetivos;
incita-o a aceitar determinados cursos de ação com base em informações
factuais e em argumentos lógicos, ou ainda com base em apelos emocio-
nais, porém vinculados às suas necessidades reais; predispõe o destina-
tário a realizar escolhas com conhecimento de causa e a aderir de forma
voluntária a determinados cursos de ação. A persuasão é essencialmente
convencimento.18
A importância da influência pode ser visualizada em variadas situações
históricas. Na mobilização de energias e na definição de destinos coletivos
4. O poder nas organizações 99

por partidos políticos ideológicos e movimentos sociais.19 Na construção


de catedrais e na efervescência das cruzadas morais empreendidas por
igrejas e seitas. Na impotência das leis que não são respeitadas porque não
conquistaram as mentes, provocando a necessidade de mais sanções e de
mais repressão. Na inutilidade de exércitos cujos soldados descreem da
causa pela qual lutam (caso da “guerra suja” no Vietnã, quando o moral
das tropas norte-americanas atingiu o fundo de poço). No papel decisivo
da propaganda em países totalitários. Na força da razão científica contra
os preconceitos e as crenças.20
Isso nos leva a contrastar mais uma vez influência e mando. Enquanto
o mando, em última instância, opera com meios físicos para obter apoios
e obediências e acena sempre com o espantalho da imposição, a influência
opera com meios cognitivos para obter adesões e concordância, e corres-
ponde à persuasão e ao convencimento. Só que, após a conversão de uma
minoria da população, a influência pode encontrar respaldo na força
política para aumentar o quadro de prosélitos. É o caso, por exemplo, da
Igreja Católica: depois de dedicar-se à persuasão e à conquista de adeptos
nos primeiros três séculos da era cristã, a Igreja capturou o Estado no
tempo de Constantino e garantiu politicamente a exposição do restante
da sociedade à propaganda. Em consequência, a maioria da população
adotou a nova crença e tornou desnecessário o uso da força.21
Assim, a influência depende sempre do consentimento informado dos
outros, mesmo quando se apoia no mando, que desobstrui o caminho do
convencimento.22 Vejamos um exemplo: ao pregar um sermão, o padre
sabe que a receptividade de suas exortações depende da credibilidade
que tem junto aos devotos e fiéis. A credibilidade — ou a confiança que
ele inspira pelo histórico de suas condutas — baliza o raio de ação da
influência do pregador. Entretanto, quando um católico praticante se
confessa e quando o sacerdote lhe prescreve penitências, aí irrompe o
mando, porque a remissão do pecado fica condicionada à obediência
das prescrições pelo fiel. Não obedecer significa carregar na consciência
uma dupla culpa — a de ter pecado e a de ter desobedecido ao emissário
de Deus. Significa assumir o risco de ser discriminado na paróquia e de
comprometer a salvação da própria alma. O fiel, então, para não perder
as credenciais que lhe asseguram a vida eterna, submete-se à vontade do
padre e cumpre as penitências. No geral, entretanto, quaisquer ameaças
são desnecessárias, porque a fé do devoto é o bastante para que acate espon-
taneamente a orientação recebida.23
100 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

Outra ilustração pode ser a de um professor que profere uma palestra


numa faculdade. Se for apenas convidado para um ciclo de conferências ou
para uma mesa-redonda, sua influência dependerá da impressão que causar
sobre a audiência e de sua capacidade de convencimento. Em contrapartida,
se todos os ouvintes forem seus alunos de pós-graduação e se ele vier a
exigir para o dia seguinte uma análise crítica da palestra, neste instante
manifesta-se o mando. Para os estudantes, não cumprir o exigido significa
correr o risco de receber notas baixas ou conceitos desabonadores que
comprometeriam seu desempenho na disciplina cursada.
De modo simétrico, ao receitar um remédio ou um tratamento para
um paciente, um médico não tem como forçá-lo a seguir a prescrição
dada, a despeito da credibilidade de que desfruta.24 Todavia, se o doente
estiver em estado grave, ou se for internado num hospital em situação de
emergência, o médico passará a ter poder. Porque, em situação normal,
dispõe apenas da própria influência para induzir o paciente; em situação
de urgência, pode exercer o mando como médico responsável. Aplica en-
tão a terapêutica que julgar adequada, mesmo se esta for uma intervenção
cirúrgica que envolva algum risco de vida.25
Finalmente, um bandido armado, ao invadir a nossa casa, exerce tanto
poder sobre nós que pode forçar-nos a cometer atos inteiramente alheios à
nossa vontade ou diametralmente opostos a nossos comportamentos nor-
mais. O bandido dobra o nosso querer a seu bel prazer. Por quê? Porque
dispõe de arma ou de força física, pode ferir-nos e, com isso, nos ame-
dronta e quebra nossas resistências. Isso tudo vale, é claro, desde que não
consigamos nos livrar da ameaça que ele representa, comprando sua boa
vontade ou neutralizando-o por uma bem-sucedida manobra. Em nenhum
instante, porém, podemos qualificar nossa obediência como resultante da
influência que o bandido exerce sobre nós. Afinal, o marginal não dispõe
de ascendência alguma sobre nossas mentes, não desfruta de nossa adesão
voluntária, mas conta, isso sim, com o terror que nos inspira.26

Os diferentes meios de controle


O mando e a influência constituem capacidades de interferir no curso
dos acontecimentos sociais, de agir sobre as relações sociais, de atuar so-
bre os interesses e as consciências dos agentes sociais. Enquanto a energia
específica da dimensão econômica é o trabalho, o mando move a dimen-
são política e a influência anima a dimensão simbólica. Mas como obter
4. O poder nas organizações 101

a obediência dos agentes do ponto de vista estritamente econômico, sem


lançar mão do mando político nem da influência simbólica? Através do
apelo ao cálculo racional, seja para saciar pequenos interesses individuais,
seja para atender a demandas coletivas.
O trabalho propicia determinados bens e serviços, cuja utilidade
satisfaz necessidades. Ao dispor do controle sobre as utilidades, ou
sobre os valores de uso, ipso facto pode-se satisfazer alguma necessi-
dade alheia, de maneira que os agentes beneficiados venham a cumprir
uma ordem. A rigor, espera-se que a concessão de um benefício acarrete
obediência. Ocorre que as satisfações fornecidas por remunerações,
prêmios, recompensas, retribuições, gratificações ou melhores condições
de trabalho têm um caráter pontual e material. Sofrem, portanto, os
efeitos da usura do tempo, à semelhança da fome, da sede, do sono ou
do sexo, cuja saciedade é apenas pontual e cujos apetites obedecem a
certa periodicidade. Ou seja, em função da natureza utilitária dos meios
de controle econômicos, as ofertas precisam ser renovadas. Isso significa
que as sanções materiais positivas tendem a se esgotar pelo seu próprio
uso e exigem reposição.
A necessidade de repetir as ofertas é menos requerida pelos incen-
tivos culturais ou pelas sanções políticas, porque seus efeitos perduram
por mais tempo, quando não pela vida toda. Na dimensão simbólica, a
instrução ou a assimilação faz com que as representações mentais sejam
introjetadas pelos agentes sociais, a ponto tal que estes as aceitam como
se fossem convicções próprias. Na dimensão política, meras exibições de
força intimidam, inibem as veleidades de resistência e submetem a vontade
dos agentes sem que os dispositivos repressivos tenham de ser obrigatoria-
mente acionados. As sanções econômicas, em contraposição, se exaurem
com o tempo e exigem seguidas reedições, algumas com incrementos de
valor para garantir sua eficácia.
Toda sanção tem um duplo caráter: positivo e negativo. No caso das
sanções materiais negativas, há as multas, as indenizações, as reduções nos
rendimentos, os boicotes a empresas, as tributações, a cobrança de ágios, as
taxações, as desapropriações, as suspensões de bolsas de estudo etc. Ou há
ainda a simples decisão de não mais satisfazer necessidades anteriormente
atendidas. Assim, ao mesmo tempo em que os agentes requerem a reitera-
ção das sanções positivas, eles temem a perspectiva de sofrer sua suspensão.
Estabelece-se aí uma clara conexão, para não dizer superposição, entre as
sanções negativas econômicas e os cerceamentos políticos.
102 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

Portanto, os meios de controle políticos ou coercitivos remetem-nos,


na sua face negativa, às ameaças contra a integridade física dos agentes,
apesar de assegurarem também o desfrute de direitos e de inúmeros siste-
mas de regulação das atividades sociais, na sua face positiva. Por sua vez,
os incentivos culturais, que são meios de controle simbólicos ou mentais,
remetem-nos ao prestígio, ao reconhecimento ou à estima sociais, aos ri-
tuais de identificação e de integração sociais. E, se invertermos a equação,
as reprovações morais corporificam-se em desprestígio, desconsideração,
desapreço, rejeição, afastamento ou estigma que funcionam como sanções
sociais negativas.
Em resumo, as organizações conseguem atingir suas finalidades e
manter a disciplina e a coesão internas através de controles variados e
concomitantes — as contribuições materiais, as coerções físicas e as san-
ções simbólicas.

A relação de forças
Nos exemplos enunciados anteriormente, ficou evidente que trabalho,
mando e influência são relações sociais, esforços concertados entre agen-
tes sociais, processos de cooperação, de emulação, de competição ou de
antagonismo.27 Todavia, entre essas três capacidades humanas, o trabalho
desfruta de uma peculiaridade determinante. Ao intervir sobre a natureza,
ele a integra ao domínio social como espaço humanizado e permite trans-
mutar os produtos obtidos em propriedade econômica.28
Mesmo assim, na dinâmica da vida cotidiana, toda relação social confi-
gura uma polarização de interesses e de disposições, uma relação de forças.
Implica, pois, uma leitura dominantemente política, embora não se reduza
a essa única dimensão. Cada polo da relação entre agentes coletivos ou
individuais dispõe de um cacife complexo: recursos (haveres ou riquezas);
concursos (poderes ou apoios); e discursos (saberes ou conhecimentos).
E, por isso mesmo, cada polo da relação pode sofrer o impacto da
usura do tempo ou o peso do cacife do outro. Como isso se processa? Os
recursos econômicos sofrem desgastes e perdas pelo seu mero uso, como
se fosse uma questão de “fadiga dos materiais”. A agregação de forças
ou os concursos políticos sofrem pressões e oposições provocadas pelas
resistências alheias, em virtude das diferenças de interesses. Os discursos
dos agentes ou os conhecimentos de que dispõem sofrem restrições e re-
jeições, em função dos ideários divergentes e do avanço dos saberes. Por
4. O poder nas organizações 103

fim, do histórico das relações mantidas pelos agentes, do bom ou do mau


uso que fizeram de seu cacife, resulta um bem intangível de inestimável
valor que é sua reputação ou sua credibilidade que está sob o incessante
crivo dos outros agentes.
Em resumo, o terreno político é um campo de confrontos onde se
medem forças e se digladiam interesses. Imaginemos um chefe dando uma
ordem a um subordinado. O que ele almeja obter ao mandar cumprir uma
decisão? Não só o máximo de empenho por parte do subordinado, mas,
sobretudo, 100% de resultados. Espera, assim, que seu subordinado gere
“efeitos plenos” ao implementar a ordem. Ora, tal expectativa deriva de
uma análise imperfeita. Parte de pressupostos discutíveis, tais como a ideia
de que o subordinado está destituído de interesses próprios e de que não
nutre discordâncias, má vontade ou capacidade de sabotar a atividade.
Ocorre que não é possível abstrair dois fatos patentes: o subordinado,
como todo agente social, tem interesses específicos que não coincidem
com os de seu chefe e está dotado de contrapoder; pode então oferecer
resistências maiores ou menores dependendo da legitimidade da ordem
recebida. Por exemplo, se um chefe convoca uma equipe de mecânicos de
manutenção para reparar uma máquina no domingo em que será decidido
o campeonato de futebol nacional, sua decisão poderá ser contestada de
forma aberta ou velada. Embora legal, uma vez que se enquadra nas atri-
buições da chefia e está consoante com as leis trabalhistas (desde que sejam
pagas as devidas horas extraordinárias), a ordem não é necessariamente
legítima aos olhos dos mecânicos, uma vez que ela os impede de assistir
ao jogo. Em razão disso, os resultados pretendidos pelo chefe podem vir
a sofrer uma subtração — o das resistências ou das represálias que podem
vir a ser deflagradas, tais como atrasos, quebras, desperdícios, serviços
mal feitos. Assim, os resultados dificilmente corresponderão aos 100%
inicialmente pretendidos. Em decorrência, a relação de mando pode ser
concebida como um processo contábil: as expectativas do gestor equiva-
lem a um máximo desejado de 100%, como se fossem “ganhos brutos”,
mas as possíveis resistências dos subordinados tendem a provocar um
“desconto” nesses ganhos esperados, fazendo com que os resultados finais
correspondam a “efeitos líquidos”.
No mais das vezes, aliás, as resistências se processam de forma mas-
carada ou subterrânea, dado o temor de retaliações por parte da chefia.
Como os “efeitos líquidos” são menores do que as expectativas do gestor,
as organizações perdem valor econômico de forma insensível. Afinal,
104 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

os custos fixos já foram desembolsados, e os custos variáveis acabam


crescendo. Pode-se então dizer que, quanto menor a legitimidade da
ordem, menores os resultados obtidos. Numa estimativa impressionista,
calcula-se que nas empresas capitalistas excludentes, de corte autoritário, o
rendimento dos trabalhadores corresponda a 60% ou 70% de sua efetiva
capacidade de trabalho.
Em contraposição, quanto maior for a legitimidade da ordem, maiores
serão os efeitos obtidos. Nas empresas em que o mando é exercido de
forma liberal, o rendimento dos trabalhadores pode chegar praticamente
à plenitude. Por quê? Porque os gestores deixam de ser “xerifes” e conver-
tem-se em “mentores” ou “líderes”. A legitimidade de suas ordens deixa
de repousar apenas na legalidade do cargo ocupado e passa a alimentar-se
de duas coisas: da competência técnica reconhecida pelos subordinados e
da sólida capacidade de trabalhar em equipe, o que contribui muito para
uma boa gestão do pessoal. Cuidar da questão da legitimidade interna nas
organizações, portanto, significa estancar uma sangria invisível: perdas
de valor, resultados pífios, capacidades potenciais não realizadas, ganhos
menores, conflitos latentes, pernicioso ambiente de trabalho. Mas significa
também viabilizar objetivos organizacionais. Só isso justifica a adoção de
formas de gestão liberais que, no essencial, respeitam a cidadania organi-
zacional dos subalternos.29
Por último, caso o gestor pretenda a obediência de subalternos através
de meios de controle utilitários, isto é, prometa recompensas por servi-
ços prestados e outorgue uma base pecuniária à legitimidade, os efeitos
gerados podem até ser plenos. Mas, o procedimento terá de ser repetido
sem cessar, porque os estímulos materiais sofrem dos males congênitos do
uso dos recursos: são consumidos, têm suas virtudes muito rapidamente
assimiladas ou se banalizam. E isso força um ciclo incremental: quanto
mais frequentes forem os estímulos materiais, menores serão seus efeitos
e maior deverá ser o volume dos incentivos para assegurar igual empenho
no futuro. Um exemplo interessante é o da injeção de morfina: o orga-
nismo precisa de dosagens cada vez maiores para atingir o mesmo estado
anterior. Em resumo, no jogo do poder:

„ A agregação de valor econômico depende da satisfação de necessi-


dades;
„ A agregação de forças políticas depende da satisfação de interesses;
4. O poder nas organizações 105

„ A agregação de conteúdo simbólico ou a legitimação das ordens


depende da satisfação das mútuas expectativas dos emissores e dos
receptores.

O processo político
À semelhança do que acontece na competição econômica, quando
empresários se empenham em conquistar consumidores e em desenvolver
novas oportunidades de negócio, a disputa política se processa numa arena,
em que diversas forças se digladiam. Isso ocorre quando, por exemplo, no
intuito de enfrentar coligações adversárias, os gestores se lançam à conquista
de apoios entre seus pares, superiores, subordinados ou outros stakeholders
(públicos de interesse). Para terem sucesso, eles levam em conta os interesses
em jogo, negociam vantagens e prerrogativas, tecem alianças ou mobilizam
concursos. À medida que visam a se manter nos cargos ou a ampliar seus
espaços de poder, propõem uma plataforma para atrair certa soma de
apoios, como se fossem angariar votos para concorrer a eleições.30
Todo processo político representa uma disputa de interesses, opera
como um fogo cruzado de pressões. Com qual propósito? O de satisfazer
alguns interesses em detrimento de outros, fazendo com que algumas deci-
sões sejam tomadas e se tornem imperativas. Ou seja, todo processo político
corresponde a uma produção, à semelhança da produção econômica que
processa matérias-primas materiais. Na entrada, em vez de insumos físicos,
irrompem demandas e pleitos, exigências e reivindicações; entram na liça
interesses sociais que funcionam como objetos de trabalho, ainda que in-
tangíveis. Na saída, em vez de produtos físicos, fluem decisões que afetam
diretamente os interesses envolvidos: vão ao encontro de uns quando os
satisfazem e vão de encontro a outros quando os contrariam. O processo
todo se subordina a duas forças opostas: apoios que legitimam a tomada
de decisões e resistências que visam a modular ou a impedir certas ações.
Assim, os agentes medem forças nas organizações:

„ Proprietários e alguns gestores formam uma coalizão dominante,


que visa a evitar o risco da “redoma de vidro” quando a cúpula ma-
neja alavancas que nada comandam. Essa coalizão integra algumas
lideranças informais, oriundas dos trabalhadores, numa articulação
que viabiliza a implantação de decisões estratégicas, de mudanças e
até de gestão eficiente dos recursos disponíveis;
106 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

„ Gestores fazem parte da equipe diretiva como pessoas de confiança


da direção executiva e têm por função administrar o dia a dia;
„ Trabalhadores, organizados ou não, opõem resistências surdas, em

decorrência dos interesses que os opõem aos proprietários e aos


gestores, a não ser que participem das decisões ou partilhem resul-
tados e lucros;
„ Clientes, fornecedores, investidores, agentes governamentais, sindi-

catos, mídia, comunidades locais e associações diversas funcionam


como lobbies (grupos de pressão) ou como sustentáculos da coalizão
dominante e da equipe diretiva;
„ Redes informais de poder, formadas em geral por laços interpes-

soais, manobram seus mil tentáculos para obter as mais variadas


vantagens.

De maneira que todo processo decisório consiste em escolher um


caminho entre vários cursos de ação. Por isso é que as decisões não são
gratuitas, casuais ou neutras, mesmo quando tecnicamente bem elaboradas
ou bem fundamentadas. Toda e qualquer decisão se estriba em interesses
observáveis, sejam eles individuais, grupais ou gerais, e obedece à lógica
das pressões e das contrapressões.

Figura 2

O processo político: disputa de interesses

redes
informais pressões
de poder (resistências) lobbies

interesses
demandas
(pleitos) Tomada de decisões (satisfeitos/
contrariados)

coalizão apoios equipe


dominante (legitimação) diretiva
4. O poder nas organizações 107

As formas do poder
Embora o poder tenha sempre a força a respaldá-lo, existem formas
diversas de exercício do poder. A forma mais nua ou mais bruta é aquela
que repousa sobre o uso da violência ou sobre as armas. Trata-se da capa-
cidade de coagir, capacidade essa que, obviamente, prescinde da prévia
aquiescência do agente coagido e serve de fundamento à relação de do-
minação. Embora as sociedades modernas não a consagrem formalmen-
te, uma vez que elas costumam adotar a famosa tripartição dos poderes
de Montesquieu, tal forma de poder nem sempre se queda oculta. Para
apreender o poder nu, basta olhar para as variantes militares dos Estados
autoritários ou para todas as formas de regime totalitário, sobretudo em
seu período de afirmação. É também suficiente lembrar o poder ilimi-
tado que exerceram as coroas absolutistas sobre súditos indefesos, os
feitores sobre a escravaria submetida a toda sorte de trabalhos exaustivos,
lacerações, amputações e outras mil perversidades, a Inquisição sobre os
heréticos sujeitos a torturas atrozes, os piratas sobre os habitantes de
portos tomados de assalto com suas pilhagens, crueldades, devastações e
estupros. Basta ainda ver o arbítrio contemporâneo das polícias políticas
sobre dissidentes ou guerrilheiros encarcerados, dos exércitos invasores
sobre populações subjugadas ou dos guardas sobre presidiários.
Entretanto, é importante assinalar que o poder nu não perdura como
força bruta por um longo período de tempo. Logo após a “submissão dos
corpos”, os detentores do poder tendem a garantir a lealdade dos súditos
pela “domesticação das mentes”. Procuram estabelecer sua hegemonia
simbólica porque a violência física aliena, e há necessidade de que a nova
ordem instituída seja aceita ou, pelo menos, tolerada. Aí entra o processo
de manipulação, quando se infunde nos submetidos a esperança de que
algumas de suas aspirações serão satisfeitas, com vistas a obter o mínimo
indispensável de colaboração.
Nos Estados em que prevalece um regime político de direito, contu-
do, o poder coercitivo acompanha de modo quase sub-reptício a função
de administrar. Esta é outra forma que o poder assume. Ela consiste em
realizar objetivos em nome da racionalidade pública. De fato, o planeja-
mento das ações, a organização das atividades ou a direção dos esforços
coletivos requerem que regulamentos e disciplinas sejam estabelecidos.
Afinal, qualquer empreendimento coletivo implica a definição de dire-
trizes e a emissão de ordens. Implica, sobretudo, que os agentes levem
as decisões a cabo.
108 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

Por exemplo, quem determina o cronograma das atividades de execução


e os recursos a serem alocados para construir um conjunto habitacional?
Quem define o traçado de uma ferrovia ou os horários de circulação dos
trens? Quem decide a oportunidade e a abrangência de uma vacinação em
massa? São necessários gestores para tanto. Não só gestores para respon-
der pelo todo, “gerentes de empreendimento”, mas gestores capazes de
implementar cada uma das etapas. Uma penca de habilidades então se faz
necessária: a visão do conjunto, a coordenação dos esforços, a redução dos
tempos mortos e dos desperdícios, o uso ótimo dos recursos disponíveis, a
alocação das pessoas nas atividades, o controle dos prazos e dos resultados
a serem alcançados, a obediência ao orçamento proposto, a conformidade
às especificações técnicas do produto final. Os gestores tanto podem ser
indivíduos, como podem fazer parte de um colegiado, ou até podem ser
a própria coletividade mobilizada para realizar uma tarefa de interesse
comum. As experiências comunitárias ensinam que a função gestora não
é exclusividade de agentes individuais, haja vista os mutirões.
No dia a dia, os gestores não se cingem apenas a administrar pessoas
e atividades: agregam outras responsabilidades como julgar e deliberar —
arbitram disputas e emitem juízos, escolhem rumos e definem políticas.
Em resumo, no âmbito macrossocial, as formas de poder correspondem
aos seguintes aparelhos:

„ Segurança ou poder fardado com suas corporações armadas na esfera


da coerção;31
„ Administrativo ou Poder Executivo com suas repartições públicas

na esfera da administração;
„ Jurídico-judiciário ou Poder Judiciário com seus tribunais na esfera

da justiça;
„ Parlamentar ou Poder Legislativo com seus parlamentos na esfera

da deliberação.

No âmbito microssocial, todas essas formas de exercício do poder ca-


bem aos gestores, sejam eles organizados ou não em comissões, comitês ou
conselhos. A gestão, em outras palavras, constitui-se como uma complexa
teia de formas de poder.
No tocante às empresas capitalistas é importante frisar que o poder
supremo é detido pelos proprietários (acionistas ou cotistas), porque a
propriedade é do tipo pleno, individual e alodial. Os proprietários dispõem
4. O poder nas organizações 109

de seus bens e de seu negócio da forma que bem lhes aprouver, a não ser
que sejam judicialmente interditados. A propriedade é fonte de benefícios
econômicos, mas é também a base legal do poder nas empresas. Afinal, por
que os donos abdicariam do controle de que dispõem sobre a produção de
excedentes que representa o cerne de seu negócio? Para tanto, designam e
cooptam os gestores, em função da confiança que esses lhes inspiram.
Os gestores, por sua vez, não só prestam contas aos proprietários, como
lhes devem lealdade por dever de ofício, à medida que exercem um poder
atribuído — o mando. E comprometem-se a defender os interesses patro-
nais sejam quais forem as circunstâncias. De maneira que a detenção do
poder — privilégio dos proprietários — pode se dissociar do exercício do
poder, que é concedido aos gestores assalariados. Isso implica reconhecer
que os gestores nutrem interesses diferenciados e, eventualmente, chegam
a contrapor-se aos proprietários. Com efeito, valendo-se das posições que
ocupam, podem agir e manobrar em seu próprio proveito.32

A autoridade política, moral e profissional


A autoridade política é também exercício de poder, mas diferencia-se
do mando por duas razões: imbui-se de legitimidade e está institucio-
nalizada. Diz respeito ao direito de tomar decisões e de fazê-las cumprir.
Inclui, portanto, a capacidade de sancionar aqueles que recebem as ordens
em dada estrutura hierárquica. Com uma significativa ressalva: requer
o consentimento dos subordinados. Vale dizer, além de ser normaliza-
da, a autoridade é também reconhecida e legitimada pelos subalternos.
Equivale a um poder institucional. E se conforma como uma via de mão
dupla: os gestores ficam investidos de mando pelos proprietários que
lhes delegam as prerrogativas dos cargos e, a um só tempo, recebem
o aval de seus subordinados. Nessas precisas condições desfrutam de
autoridade política.33
De uma forma geral, a autoridade política corresponde ao conjunto
de atribuições e responsabilidades que incumbem aos gestores. Constitui
a arma dos chefes para que possam organizar e vigiar, controlar e punir
seus subordinados. Mas se houver um descompasso entre autoridade e
responsabilidade, a função gestora derrapa e se converte em ficção. Um
gestor destituído da necessária autoridade para cumprir suas responsa-
bilidades dirigentes torna-se um fantoche. Em seu desamparo vê negado
seu estatuto de gestor.
110 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

Ora, por ser um poder institucional, a autoridade política dissocia-se


conceitualmente da influência. Esta prescinde de institucionalização, à
medida que é autoridade moral, capacidade simbólica de induzir outrem
a aceitar determinados cursos de ação. De fato, a influência tanto pode
florescer em relações informais como eventualmente pode se desenvolver
num marco institucional. Também pode repousar na credibilidade que as
lideranças forjam penosamente. Nesse caso, funda-se na afinidade que
líderes e seguidores estabelecem entre si. Nunca se escora, pois, na violên-
cia física, nem depende do aval dos detentores do poder. Guia os outros
pela persuasão e pela confiança que infunde e se vincula estreitamente aos
processos de liderança e de legitimação.
Em contrapartida, a autoridade política apoia-se nas normas demarca-
das pelo marco institucional.34 Estriba-se em última instância na coerção
e depende de uma delegação de atribuições que os detentores do poder
concedem. Repousa, ademais, na crença dos subordinados de que tal tipo
de mando é legítimo e, para tanto, necessita respaldar-se na razão, na
tradição ou no carisma. Assim sendo, não há autoridade alguma — seja
ela política ou moral — que não goze de legitimidade, vale dizer, que não
envolva juízos de valor ou justificação de sua validade.
O mesmo raciocínio se aplica a um outro tipo de autoridade, a
profissional, que decorre da proficiência. Sua legitimidade repousa no
reconhecimento da validade das credenciais de seu portador. Enquanto
a autoridade política se consubstancia necessariamente num cargo, daí
o fato de “ser autoridade”, a autoridade moral se expressa através da
liderança que exige o empenho diuturno de “conquistar autoridade”.
Por sua vez, a autoridade profissional deriva da titulação que confere ao
agente a prerrogativa de “ter autoridade”. E como é obtido o diploma
profissional? Depois de cumpridos os requisitos formais exigidos por uma
entidade reconhecidamente competente para expedir o credenciamento.
É o caso dos médicos, advogados, contadores, engenheiros, psicólogos,
economistas, professores e demais especialistas.
Em certa medida, esses profissionais todos também desfrutam de in-
fluência, apesar de não fruir da autoridade moral dos líderes. E por que
isso? Porque sua influência emana de sua competência técnica. Agora,
em simetria com a liderança que precisa se esforçar para manter a chama
acesa de seus seguidores (o líder que perde a sintonia com seus liderados
sofre imediato descrédito e pode ser descartado), a autoridade profissional
não pode deixar de se reafirmar incessantemente pela sua qualificação,
4. O poder nas organizações 111

pela demonstração de sua proficiência ou pela eficácia de seu saber. Pois


corre o risco de perder a credibilidade pública e, ipso facto, de minar os
fundamentos de sua legitimidade social. Em outras palavras, os agentes que
se relacionam com autoridades políticas obedecem a ordens hierárquicas
consideradas válidas, os que se relacionam com autoridades morais seguem
orientações em função das afinidades existentes entre as partes, e os que
se relacionam com autoridades profissionais aceitam recomendações em
função das credenciais exibidas pelos especialistas.
Em suma, podemos dizer que a dominação é poder puro, o mando é
poder atribuído e a autoridade política é poder institucional — normali-
zado e legítimo. Esses conceitos todos se inscrevem na dimensão política.
Por sua vez, inscrevem-se na dimensão simbólica os conceitos de hegemo-
nia — saber inculcado, resultante da instrução ou da mistificação —,35 de
influência — saber acatado, resultante da persuasão e do convencimento
— e de legitimidade — saber validado, resultante do reconhecimento de
suas justificações.

A liderança
Isso nos leva a comparar a figura do gestor e a do líder, no intuito de
resgatar conceitos que o senso comum e boa parte da literatura da admi-
nistração norte-americana confundem. De fato, a liderança (leadership),
em sua acepção vulgar, acaba equivalendo a “estar em primeiro lugar” ou
em “ocupar o posto principal”.36 É também costume batizar os ocupantes
de altos cargos com a denominação de líderes. Isso nem sempre é verda-
deiro. Gestores não são necessariamente líderes e vice-versa. A liderança
transcende cargos ou posições formais, não carece de institucionalização,
é fruto da sintonia “espontânea” e informal estabelecida entre líderes e
seguidores. Um líder comunitário, por exemplo, não ocupa posto algum,
e sua liderança depende exclusivamente do apoio reiterado que recebe de
seus liderados. A força do líder, portanto, depende de sua capacidade de
convencer seguidores e de catalisar seus anseios — resulta, pois, de sua
influência.
Eis por que não há como pensar em atribuir ou delegar liderança.
Esta só se sustenta se for conquistada de forma ininterrupta. E quais são
as razões que permitem ao líder conduzir outros? O fato de que ele se
identifica com os liderados, expressa interesses coletivos, propõe ações
consoantes com as expectativas dos representados. Na sua relação de
112 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

comando, não logra obediência de modo compulsório, mas consentido,


pois não lança mão do poder, nem dispõe originariamente dele, ainda
que em certas situações possa apropriar-se de instrumentos de coação. A
sua força decorre da credibilidade de que desfruta junto a seus seguidores
em função da identidade de propósitos. De maneira que o líder funciona
como mentor que semeia orientações e não como chefe que dá ordens.
Não impinge sua vontade nem controla os outros com base na “disciplina
do corpo”, mas na “adesão da mente”. Ou seja, em toda a sua riqueza,
transcende a figura do chefe ou do gestor.

A legitimidade
O conceito de legitimidade vincula-se ao de influência, embora ambos
mantenham clara especificidade. É legítimo o ato ou a situação política que
se conforma a determinadas crenças coletivas ou a dados interesses; legítimo
porque avaliado como correto e adequado pelos agentes sociais por ele afe-
tados. Trata-se, pois, de uma condição de validação, de reconhecimento, de
justificação e de aceitação por parte daqueles que estão sujeitos à situação ou
ao ato. Condição essa que torna a legitimidade uma probabilidade, não uma
certeza. Isso significa que os agentes envolvidos obedecem de bom grado
a orientações ou a ordens emanadas de quem de direito. Em decorrência,
a legitimidade associa-se claramente à moralidade pública37 e pressupõe
adesão voluntária, ainda que possa decorrer das injunções da necessidade
ou a despeito dos eventuais atos de fingimento e de oportunismo, pois, ao
fim e ao cabo, as práticas concretas se sobrepõem às intenções.
É lícito alertar que a legitimidade não se cinge à legalidade ou à confor-
midade a normas jurídicas, embora possa abrangê-las. Algo pode ser legal
e ilegítimo, como o foi o Ato Institucional 5, em 1968, que formalizou o
arbítrio ou a ditadura militar colegiada no Brasil. Pois o Ato normalizou um
conjunto de poderes discricionários, respaldou-se na capacidade de coagir
empunhada pela cúpula das Forças Armadas, mas não encontrou apoio
majoritário na população. Entretanto, o endosso ou a “autenticação revo-
lucionária” do AI-5 foi fornecido por poderosos setores minoritários.
Assim, dificilmente a legitimidade alcança a universalidade e recobre
todas as pregas do tecido social: não há legitimação unânime em dada
coletividade, mas legitimidade prevalecente. O que é legítimo para uns
pode não sê-lo para outros. Em tese, a opinião da maioria (vox populi)
forma a base da legitimidade pública. Mas, mesmo assim, não podem ser
4. O poder nas organizações 113

desprezados os anseios das minorias, sob risco de estabelecer uma ditadura


da maioria. Dito em outros termos, essas asserções valem para os regimes
políticos de direito. Nos regimes políticos de exceção (ditaduras ou tira-
nias), a coalizão dominante costuma manipular e mistificar a consciência
dos súditos para obter deles alguma legitimidade: mascara fatos e omite
outros, propaga meias verdades ou veicula mentiras. Isso significa dizer que
o AI-5 foi considerado legítimo pelo condomínio no poder –empresários
nacionais e internacionais, latifundiários e gestores estatais —, por ser
um escudo contra a ameaça do comunismo internacional. E foi difundido
como tal pela mídia, assombrando a todos com o “perigo vermelho”. De
maneira que nos primeiros anos da década de 1970, no auge da repressão
política e do “milagre econômico”, o regime militar logrou substancial
legitimidade para seu projeto de “Brasil Grande”, embora estivesse em
plena vigência o AI-5.
Outro exemplo é ainda mais esclarecedor: nos Estados Unidos, o
aborto é reconhecido como legal e legítimo (ou moral) por amplos setores,
porém, ainda que legal, é ilegítimo (ou imoral) para outros tantos. Em
contraposição, embora ilegal no Brasil de hoje, o aborto é praticado em
larga escala, sendo crescentemente legitimado pelos costumes.38
Isso nos leva a entender que eventos podem ser legais e legítimos
(produzir detergentes biodegradáveis, por exemplo), legais e ilegítimos
(produzir e usar certos pesticidas altamente nocivos), ilegais e legítimos
(apostar no jogo do bicho) ou ilegais e ilegítimos (a prostituição infantil),
numa perfeita combinatória. E mais: se tivesse havido eleições livres em
1980, na União Soviética, muito provavelmente o Partido Comunista de
Brejnev teria vencido o pleito com ampla margem, pois a legitimidade
soviética ainda não estava sendo questionada pela consciência popular.
Não foi o que ocorreu dez anos depois, após a glasnost e a perestroika de
Gorbatchev, quando uma consciência crítica já havia se formado no seio
da população.
Um caso interessante para a análise da dinâmica histórica da legalidade
e da legitimidade é o da bomba de napalm, durante a guerra do Vietnã.
Nos últimos anos da década de 1960, o governo norte-americano enco-
mendava e lançava essas bombas incendiárias, escudado na legalidade e
na aparente legitimidade de seus atos. Os resultados pavorosos de tais
bombardeios sobre a população civil vietnamita, veiculados pela mídia
televisiva norte-americana, acabaram provocando a ira da oposição, no-
tadamente dos movimentos hippies e de contracultura. Aos poucos, não
114 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

obstante seu caráter legal, a bomba de napalm perdeu a legitimidade junto


à opinião pública norte-americana. Primeiro round. Na década de 1970,
sob a pressão da sociedade civil e após a sensibilização do Congresso,
os Estados Unidos ratificaram em 1974 o velho protocolo da Liga das
Nações contra a guerra química e biológica, que já datava de 1925. O
uso do artefato passou a ser ilegal e ilegítimo, pelo menos contra os não
combatentes. Segundo e último round.
A legitimidade nos remete assim à autoridade moral ou simbólica.
Pode repousar em três bases fundamentais, segundo a clássica tipologia
de Max Weber:39a tradição; a conjunção da legalidade e da racionalidade;
e o carisma.
A legitimidade tradicional se funda na crença da santificação dos
costumes e das convenções que regeram “desde sempre” as condutas, no
respeito consuetudinário ao “ontem eterno”, na justificação das ordens
ou das decisões tomadas por agentes designados para tal. Assenta-se em
relações particularistas (pessoais, de parentesco, de compadrio, de con-
fiança ou de patronagem)40 e obedece à lógica da propriedade clânica ou
patrimonialista. As fontes do mando, por isso mesmo, são a herança, a
concessão régia ou a cooptação.
A legitimidade racional-legal se alicerça na validade dos estatutos legais,
das formalidades, dos procedimentos técnicos, das competências deriva-
das de regras instituídas racionalmente. Há crença, pois, na validade das
relações profissionais e contratuais. Para o desempenho de determinadas
ocupações, requerem-se formas de conhecimento e habilidades que só
podem ser adquiridas mediante instrução e treinamento. São conferidos
títulos a quem seguir os rituais de admissão e de capacitação, porquanto
a competência técnica precisa ser comprovada no trabalho e fora dele.
Cultivam-se, assim, critérios de objetividade, de impessoalidade e de uni-
versalidade, e oferecem-se a todos os agentes sociais iguais oportunidades
de acesso aos postos de trabalho. A legitimidade repousa então na profi-
ciência. Mas não só nela, pois o êxito pessoal, a eleição ou os concursos
públicos constituem também canais válidos para o reconhecimento do
status e da capacidade para desempenhar funções de interesse geral.
Esse tipo de legitimidade traveja, em especial, as empresas capitalistas
sociais — profissionais e competitivas — e as organizações meritocráticas.
Encontra-se, também, nas organizações formais burocráticas no sentido
weberiano, cujos traços são: a nomeação por contrato de funcionários
pessoalmente livres; a qualificação profissional certificada por provas e
4. O poder nas organizações 115

títulos; a hierarquia rigorosa dos cargos; as esferas específicas de com-


petência com divisão sistemática do trabalho; a remuneração salarial,
graduada em função do cargo e da responsabilidade correspondente, bem
como aliada ao direito à aposentadoria; o exercício do cargo pelos fun-
cionários como única ou principal profissão; a promoção na carreira; as
normas extensivas para toda a organização; os funcionários despojados
da propriedade tanto dos meios de produção como dos meios de admi-
nistração; a documentação de todos os atos; o controle e a avaliação de
desempenho; a prestação de contas.41
Por fim, a legitimidade carismática se fixa na crença de que um agente e
suas ordenações têm caráter providencial, heroico e exemplar. Caracteriza-
-se pela devoção dos seguidores à causa de um líder incomparável, pela
veneração de sua pessoa, imensa confiança depositada nele e reverência
às suas qualidades prodigiosas. Ou melhor, contempla a crença de que o
líder foi distinguido pelo dom da graça, de forma pessoal e extraordinária;
foi predestinado por Deus ou por uma entidade extranatural para cumprir
uma missão; acha-se movido por uma iluminação que lhe guia os passos
e o predispõe a feitos excepcionais; é dotado de virtù ou de grandeza e é
capaz de infundir sua virtude a todos aqueles que quiserem segui-lo para
remodelar a ordem constituída. Estabelecem-se então relações místicas entre
as lideranças carismáticas e seus adeptos. Estes se dispõem a sacrifícios ex-
tremos para a glória de sua fé ou de seus ideais, num fervor quase religioso.
As fontes do mando decorrem, então, quer da magia de uma revelação,
quer da “vocação” ou do saber ímpar exibido pelo guia espiritual.
Alguns efeitos da lógica organizacional carismática são as ortodoxias, os
fanatismos e os voluntarismos — traços característicos das seitas milenaris-
tas ou salvacionistas —, bem como são os dogmatismos ou os fundamen-
talismos doutrinários — traços específicos das organizações missionárias.
Curiosamente, tais disposições não se cingem apenas às igrejas ou aos
partidos de ideologia totalitária, atingem também organizações voluntárias,
seduzem Forças Armadas em situações de emergência nacional e contami-
nam empresas cujos fundadores criaram impérios econômicos.

Os conflitos e as alianças
O que são os conflitos? São choques ou enfrentamentos que se dão
entre agentes sociais em virtude de variadas incompatibilidades: necessi-
dades, interesses, expectativas, valores ou personalidades. São processos
116 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

de ruptura na convivência, que provocam desequilíbrios ou desestabilizam


o ambiente social ou organizacional. Tais desentendimentos ou oposições
têm suas raízes na competição por “recursos escassos”, na exígua disponi-
bilidade das posições de mando e na distribuição limitada de privilégios e
de outras vantagens. A expressão dos conflitos, por conseguinte, pode ser
velada — intrigas, conspirações, ciladas, trapaças —, ou pode ser declarada
— ameaças, escaramuças, manobras ofensivas ou defensivas, embates.
Geralmente, e de um ponto de vista autoritário, os conflitos são
abordados de forma estereotipada e maniqueísta, uma vez que são vistos
como eventos indesejáveis ou anormalidades disfuncionais, e redundam
em mais discórdia e mais confrontos. Outro caminho, de caráter liberal,
consiste em administrá-los, uma vez que são vistos como eventos normais
ou oportunidades, e desembocam na tolerância do diverso e no manejo
das diferenças ao costurar acordos e construir um espírito de concórdia.
Por via de consequência, os efeitos dos conflitos podem ser contraditórios:
negativos quando se traduzem em hostilidades, desordens, desgastes e pre-
juízos; e positivos quando provocam mobilização de energias, clarificação
de objetivos, busca de alternativas e motores de mudança.
As organizações formam um espaço privilegiado de poder, uma arena
em que se digladiam forças interessadas em apropriar-se de bens social-
mente escassos. No seio das empresas capitalistas, por exemplo, os gestores
constituem o centro de gravidade de variadas disputas: entram em conflito
com os proprietários, entre si ou com os assessores (staff), uma vez que
são portadores de interesses específicos; e se confrontam com os trabalha-
dores em função das posições de mando que ocupam. As disputas chegam
a enfocar salários e fringe benefits,42 cargos e atribuições, autonomia de
ação, recursos destinados às subunidades organizacionais, participação em
comitês que dispõem de competências decisórias, “território” ou abran-
gência de sua jurisdição, “galera” ou quantidade de subordinados, acesso
a informações, símbolos de posição e de poder.43
Boa parte do tempo útil e da energia produtiva dos gestores acaba
sendo gasta em disputas políticas. E, no mais das vezes, em vez de dedicar
o melhor de si aos objetivos da organização que comandam, consagram-se
a um embate surdo:

„ Tentam escalar a pirâmide hierárquica, ao participar tanto da equipe


diretiva quanto da coalizão dominante, enquanto esta detiver as
rédeas de comando;
4. O poder nas organizações 117

„ Esforçam-se em consolidar as posições já adquiridas;


„ Aplicam-se a ampliar o próprio raio de ação, ao somar novas
atribuições, ocupar espaços vazios e capitanear projetos estraté-
gicos;
„ Procuram derrubar competidores com zelo incontido e fina astúcia;

„ Valem-se de sua posição de controle para apropriar-se de parte

dos excedentes econômicos gerados pela organização por meio


de gratificações, privilégios, mordomias e outros expedientes;
„ Empenham-se em enriquecer seu currículo profissional para ganhar

maior envergadura e alcançar maior “empregabilidade”;


„ Visam a projetar-se no mercado de trabalho ao forjar uma imagem

de sucesso junto a seus pares de outras organizações, tecendo uma


rede útil de relações pessoais;
„ Defendem a realização de metas que impulsionem a própria carreira;

„ Consagram-se a manter o controle da gestão, sacrificando opor-

tunidades de negócio se necessário.

Mais ainda: os gestores das empresas profissionais, ou daquelas que


deixaram de ter a figura do dono como centro de gravidade, disputam
com os proprietários não só o controle efetivo da gestão, mas também
a propriedade. De que forma? À medida que os proprietários se reco-
lhem ao papel de acionistas, sobretudo no conselho de administração,
abrem-se vias régias para que os gestores tentem expropriá-los. O mais
curioso é que, para atingir tal propósito, os gestores lançam mão dos
próprios recursos organizacionais que estão à sua disposição, bem como
da margem de discricionariedade que lhes foi conferida. Desembocam
então numa “revolução de gestores” que consiste em duas providências:
usurpar a detenção do poder por meio da expropriação dos meios de
produção política; converter a propriedade privada em propriedade
corporativa por meio da expropriação dos meios de produção econô-
mica. Porém, em vez de o processo ocorrer em nível macrossocial pela
via da revolução fascista ou comunista, desenrola-se no seio de grandes
corporações burocráticas. Reedita-se assim, mutatis mutandis, a fábu-
la em que contracenam a formiga e a cigarra, a luta travada na Idade
Moderna entre burgueses mercantis e manufatureiros contra a nobreza
cortesã. De um lado, agentes operosos e produtivos, de outro, rentistas
parasitários.
118 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

Quem responde pela gestão luta pelo poder e abomina o vácuo. Por
isso, onde houver “margens de incerteza”, zonas cinzentas que separam
o permitido do proibido, regiões carentes de normalização, haverá en-
frentamentos para ocupá-las. O jogo de bastidores, sobretudo nas gran-
des organizações, representa um padrão de comportamento recorrente.
Compõe-se de conluios, conchavos e tramas; hostilidades nem sempre
declaradas, pressões ocultas, ciladas e manobras; contrainformações, ba-
lões de ensaio e mascaradas; arranjos de conveniência, traições e golpes
palacianos. Encerra muitas dissimulações e muitos comportamentos que
primam pela hipocrisia.
Tece-se assim uma complexa teia de conflitos nas organizações, alguns
visíveis outros subjacentes, em que se superpõem e imbricam interesses:

„ Pessoais, que se traduzem em conflitos interpessoais decorrentes das


rivalidades entre agentes individuais;
„ Grupais, que se expressam em conflitos intraorganizacionais entre

subunidades em função de suas diferentes atividades;44


„ Gerais, que deságuam em conflitos coletivos entre classes, categorias

sociais, organizações e públicos, em função das situações diferenciais


de cada qual.

É o caso, por exemplo, de “jovens turcos” (a geração nova) pugnando


por espaços contra os “veteranos” (a geração mais antiga). Ou das lutas nos
Estados Unidos contra as discriminações sofridas por negros, mulheres,
homossexuais, portadores de deficiências e hispânicos.45 São também os
casos clássicos da área de vendas em conflito com a área da produção, do
marketing e da gestão de pessoas com finanças, ou de todas as áreas com
o jurídico ou com a informática que prestam assessorias vitais.
Os conflitos também supõem alianças, sem o quê a organização não
sobrevive. Formam-se coalizões, à revelia ou a despeito da estrutura formal,
principalmente entre proprietários e gestores. Essas coalizões recortam as
organizações em linha transversal e operam de forma ofensiva e defensiva.
A chave do mando, naturalmente, repousa nas mãos da coalizão interna
dominante, embora nas entidades públicas seja preciso considerar a coa-
lizão externa e o peso específico de seus componentes. E por que isso?
Porque os dirigentes das entidades públicas são geralmente nomeados
pelas autoridades políticas e, uma vez empossados, procuram montar uma
articulação interna com boa capacidade de manobra.
4. O poder nas organizações 119

Um outro recorte importante nas forças em presença é o das equipes


diretivas, agrupamentos que gravitam em torno de uma liderança que
tenha ocupado postos de comando ou demonstre potencial para galgar
escalões superiores.
Ambas essas articulações podem ser observadas empiricamente. As
equipes diretivas ocupam cargos formais e são fáceis de mapear, ao passo
que as coalizões dominantes exigem maior acuidade para serem descober-
tas. Uma das pistas para detectá-las passa pela análise dos interesses que
foram de fato aquinhoados.
Sobra ainda uma última articulação, a das redes informais de poder,
que desempenham um papel não menos importante no processo de to-
mada de decisões46 e que se formam com vistas à obtenção de pequenas
vantagens pessoais, ainda que não se restrinjam a elas. Assentam-se nos
laços interpessoais e de confiança, de maneira mais acentuada do que nas
equipes diretivas, e formam complexos arabescos que perpassam diagonal
e lateralmente as organizações.
A tomada de decisões, portanto, resulta de um amplo leque de interes-
ses em jogo, quase sempre não explícitos, mas cuja presença se evidencia
nas múltiplas fontes de pressão. Não obstante, algumas composições
políticas podem ser agrupadas segundo duas arquiteturas básicas. De um
lado, uma arquitetura de confronto, autoritária e excludente, que enfatiza
o conflito, o jogo de soma zero e contribui para a composição de forças
com dois formatos:

„ A Corte florentina ou a Federação de Sátrapas funciona com base


no vaivém alucinante de conspirações e ciladas palacianas, tréguas
suspeitas e armistícios assinados às pressas para recobrar forças.
Desenha um espaço formado por feudatários, áulicos e membros
do círculo íntimo, em que todos se comprazem em armar um fino
equilíbrio de terror, como se fossem pequenos potentados. Lembra
uma coreografia fúnebre em que venenos e adagas eliminam os
oponentes e permite identificar leões disfarçados em cavalheiros;
„ A Congregação ou o Colégio de Cardeais assemelha-se a um baile

de máscaras com troca de mesuras entre dignitários, gestores e


assessores — atores que se movem como enguias em águas turvas.
Esses hierarcas escorregadios dedicam-se à arte sutil de morder e
assoprar; arquitetam e encenam intrigas, conluios, trapaças, concha-
vos, adulações, estratagemas, tramoias; e deleitam-se em administrar
120 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

um equilíbrio instável, num balé de rivais em que as mil ambições


ocultam seus rostos de raposas à espreita de butim.

De outro lado, temos uma arquitetura de colaboração, de caráter liberal,


que enfatiza a transigência, quando não o jogo de soma positiva, e abriga
também dois formatos:

„ O Colegiado ou o Comitê de Delegados alinha forças representati-


vas claramente identificadas e se empenha em lastrear as tomadas
de decisão no voto da maioria. Formado por pares, colaboradores
ou parceiros, deriva sua legitimidade da escolha feita pela área de
origem. Estabelece acordos pontuais e alianças que se imbricam
em meio a rusgas e entendimentos, num delicado trabalho de ou-
rivesaria. Seus membros lembram touros soberbos em sua relativa
independência;
„ A Força-tarefa ou o Pacto de Peritos procura construir o consenso

entre membros que combinam seus concursos para elaborar um


programa comum ou uma solução de interesse amplo. Os termos
do acordo são cuidadosamente definidos, e seu exato cumprimento
torna-se ponto de honra. Os participantes desfrutam então da legi-
timidade decorrente da própria competência técnica, manobrando
como se fossem delfins dedicados a mil proezas cooperativas.

A impressão que as análises precedentes podem dar é que o jogo das


forças políticas é quase sempre nefasto. Sejamos cautelosos. A dimensão
política responde pela regulação das atividades coletivas, coordenação
de esforços conjugados, administração dos litígios e articulação de apoios
às tomadas de decisão. Não é pouco dizer e, de um ponto de vista valo-
rativo, essas funções todas são eminentemente positivas. Nem por isso o
lado sombrio da violência física e do exercício abusivo do poder pode ser
esquecido. Como tampouco cabe minimizar o caráter essencial das lides
políticas que visam a assegurar a convivência social.

Notas
1. Vamos citar alguns, indicando a dimensão peculiar em que ocorrem: a) práticas econômicas são
semeaduras e colheitas agrícolas, fabricação de produtos, aquisição de insumos, intercâmbios
comerciais, remessa de matérias-primas, armazenamento de componentes, concessão de crédito,
serviços de manutenção e de limpeza, construção ou reforma de edifícios, transportes de carga,
4. O poder nas organizações 121

exportações e importações, geração de energia elétrica, prospecção de poços de petróleo, seguro


de bens ou de pessoas, leilões, pagamento de faturas, distribuição de dividendos; b) práticas po-
líticas são deliberações de Conselhos de Administração ou de diretorias, vigilância patrimonial,
aplicação de normas regulamentares, coordenação de atividades, gestão de empreendimentos,
reuniões de trabalho, reestruturações organizacionais, negociações coletivas, greves, locautes,
boicotes e arbitragens, investigações policiais, detenções de suspeitos, repressão a manifestações
de rua, julgamentos em tribunais, ações judiciais, passeatas, projetos de lei, votações parlamen-
tares, convenções partidárias, eleições, plebiscitos e referendos, assembleias sindicais, paradas
militares, guerras, armistícios, guerrilhas, tratados internacionais e negociações diplomáticas; c)
práticas simbólicas são pesquisas científicas e tecnológicas, publicidade na mídia, campanhas de
marketing, elaboração de projetos, processos de seleção, integração de novatos nas empresas,
sessões de treinamento, diagnósticos organizacionais, seminários gerenciais, avaliações de desem-
penho, encontros para premiações, festas de confraternização, convenções anuais de empresas,
publicações de balanço, produção e leitura de jornais, concertos, viagens marítimas de recreio,
aulas, carnavais de rua, lições de casa, passeios ciclísticos, exposições de quadros, campeonatos
de atletismo, partidas de futebol, enterros, procissões religiosas, conferências científicas, festas
de casamento, sessões de terapia, missas, projeções de filmes, espetáculos teatrais. Às vezes,
certas práticas recortam fortemente as três dimensões, como é o caso da escrituração de livros
contábeis que remete tanto à prática político-administrativa, quanto à prática simbólico-técnica,
bem como à prática dos serviços econômicos. De maneira que a definição de uma prática não
deve ser considerada uma camisa-de-força, mas tão somente uma fonte de luz, uma chave para
decifrar e ordenar o real.
2. Entre dezenas de experiências e de observações em campo é conhecido o caso de um bando de
babuínos que desenterravam tubérculos. Um deles aprendeu a molhar o vegetal em águas salgadas.
O sabor do tubérculo limpo atraiu a atenção de todos os membros do bando que passaram a adotar
a lavagem dos tubérculos como padrão. Há documentários filmados de etólogos, observando
bandos de chimpanzés, que mostram inúmeras cenas de ensino-aprendizagem como, por exemplo,
a de uma mãe ensinando a seu filhote de cinco anos como posicionar nozes entre galhos e como
utilizar um “martelo” de madeira para quebrá-las.
3. Seres que viveram em extremo isolamento, longe dos contatos sociais ou com contatos esporádicos
e escassos.
4. Sem trabalho e, portanto, sem produção de excedentes econômicos, não há possibilidade de haver
propriedade econômica, entendida como apropriação de sobreproduto. A apropriação pode ser
comunal, corporativa, privada, cooperativa, parcelar ou familiar, coletiva, estatal, pública etc.
Está claro, porém, que os bens da natureza (terras, águas) podem ser apropriados mediante o uso
da violência, vale dizer, mediante “trabalho político”.
5. Basta imaginar o trânsito nas avenidas de uma metrópole sem semáforos, sem placas indicativas
e sem sinalização horizontal; ou basta tentar simular o tráfego aéreo num aeroporto internacio-
nal sem torre de controle. Obviamente, os resultados não poderiam deixar de ser caóticos e os
riscos de graves acidentes seriam enormes. Isso torna evidente um fato que não deixa de ser um
truísmo: tais atividades não conseguem funcionar sem regulação coletiva. Aliás, seria possível
ver uma partida de futebol num estádio se todos se mantivessem de pé o tempo todo? Seria pos-
sível locomover-se desarmado numa cidade dividida em guetos e recortada por “territórios” que
variadas gangues dominam? Na ausência de disciplina política, ou de mecanismos que garantam
a segurança da vida e dos bens, a convivência coletiva se tornaria inviável.
6. Por exemplo, se alguém puder circular numa rodovia e se furtar a pagar o pedágio, desviando seu
trajeto por vias secundárias, por que iria ele desembolsar um centavo? Se alguém puder desfrutar
de iluminação pública, serviços de segurança ou de trânsito, coleta de lixo ou de esgoto, água
encanada, praias limpas, sem jamais pagar tributos ou taxas, assumindo a cômoda situação de
“free rider”, por que iria ele se amofinar pondo a mão no bolso? Esse oportunismo, de caráter
egoísta, satisfaz interesses pessoais em detrimento dos interesses gerais, isto é, leva vantagem à
custa dos outros.
7. Os limites à liberdade de expressão, por exemplo, são ilustrados por uma frase célebre do juiz
Oliver Wendell Holmes do Supremo Tribunal dos Estados Unidos: “A liberdade de expressão
122 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

não inclui a liberdade de gritar ‘fogo’ num teatro lotado.” Ou, de forma mais lata, é preciso ser
intolerante com os intolerantes, coibir aqueles que atentam contra a liberdade dos outros. A
liberdade não pode equivaler a um poder pleno e incondicional, porque seu próprio exercício
supõe responsabilidade, sob risco de se transformar em arbítrio ou em negação de si mesmo.
8. Essa analogia não ratifica a visão contratualista, porque esta supõe que os homens viviam — de
início? — em estado de natureza, isolados e em permanente estado de guerra de todos contra
todos. Depois de um período, e para alcançar o bem comum, teria havido uma deliberação que
resultou num “contrato social”. Ora, tal visão não passa de um malabarismo heurístico. Do ponto
de vista empírico, não há evidências que validem essa crença. Ao contrário, o que se sabe, é que
a humanização só se alcança e forja em coletividade. Os homens são gregários por definição e
para todo o sempre. A vida em comum ou em sociedade não é apenas um pressuposto filosófico,
mas um resultado inconteste de todas as observações antropológicas já realizadas.
9. É interessante notar que as liberdades individuais germinam e florescem pari passu com o processo
de urbanização. Por exemplo, quando a densidade da população chega ao ponto em que o anoni-
mato se viabiliza e a atomização dos agentes individuais propicia comportamentos alternativos,
esses se dobram menos aos controles estreitos e rigorosos que as pequenas comunidades humanas
exercem. Mas é também interessante notar que, nas sociedades complexas, as tentativas de ins-
talar regimes totalitários exigem um gigantesco aparato repressivo e tamanho policiamento dos
costumes, que os custos para manter a dominação são altíssimos. Ademais, a eficácia da repressão
tende a desgastar-se com o tempo, exigindo doses cada vez maiores de coerção. Tudo indica que
o exercício do terror por prazo indeterminado, além de insano, o banaliza e, a um só tempo, o
esteriliza.
10. O exercício do mando pode tomar a forma totalitária, autoritária, liberal ou democrática. Para a
discussão sobre os tipos de poder e os modos de seu exercício, ver do autor Classes, Regimes...,
pp. 206-236, e o Anexo III da presente obra, “As formas de gestão”, hospedado no Web site da
Editora.
11. Quanto maior for o número de necessidades controladas pela organização, tanto maior será o poder
que ela exercerá sobre seus membros. A Igreja Católica, por exemplo, tem mais poder sobre seus
párocos do que sobre seus paroquianos: estes estão submetidos aos meios de controle simbólicos,
enquanto os párocos são controlados nos três planos: simbólico (comungam das mesmas crenças),
político (devem obediência à hierarquia) e econômico (são dependentes financeiramente).
12. O poder puro, ou nu, é a dominação. Contrapõe-se ao poder legítimo ou à autoridade política.
A autoridade exige muito menos esforços e mobiliza muito menos recursos, porque os agentes
reconhecem como legítimo o mando vigente, consentem em obedecer, aceitam como natural a
situação em que se encontram. Há, aqui, uma intersecção entre as duas dimensões — a simbólica
e a política —, pois a autoridade política depende de legitimação, do reconhecimento do direito
de mando.
13. Está claro, porém, que os escravos representam um investimento para os amos, razão pela qual
sua sobrevida interessa também a seus proprietários. Nos modos de produção classistas (exceto o
modo de produção capitalista), os agentes sociais destituídos de meios de produção não desfrutam
de liberdade formal ou não têm opção para obter meios de subsistência: a) no latifúndio escravista,
se conformam ao trabalho compulsório, a não ser que desprezem a morte; b) nas demais formas
de produção latifundiária (meia, terça, cambão, arrendamento, agregação), a produção dos meios
de subsistência depende da anuência da aristocracia fundiária em ceder terras ou em arrendá-las
aos trabalhadores; c) no modo de produção feudal, os servos estão jungidos aos feudos como se
fossem árvores, bestas ou arados, de sorte que qualquer desobediência significa insurgência ou
rebelião e pode, por conseguinte, ensejar brutais represálias; d) no modo de produção corporati-
vista (socialista estatal) quem não cumpre suas obrigações e não se submete às ordens superiores
pode ser punido com os rigores dos trabalhos forçados. Ou seja, no socialismo real, embora haja
uma ampla rede de segurança social que a todos ampare, e embora a economia centralmente
planificada seja uma economia de pleno emprego, quem não trabalha não come.
14. Os kapos eram detentos que colaboraram com os guardas nos campos de extermínio nazistas e
os serviram como feitores. Ver a esse respeito o extraordinário livro de Steiner, Jean François.
4. O poder nas organizações 123

Treblinka. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d, que retrata o heroísmo inaudito dos judeus que
se insurgiram contra a barbárie.
15. Um jornalista pode ter influência sobre seus leitores, nem por isso tem liderança sobre eles,
porque esta abrange muito mais do que a mera afinidade de opiniões ou o mero respeito à
competência.
16. Ver a distinção entre os vários saberes no próximo capítulo.
17. Ver, por exemplo, Amitai Etzioni (Análise Comparativa..., p. 32): “Poder é a habilidade de um
indivíduo de induzir ou influenciar outro a seguir suas diretrizes ou quaisquer outras normas
por ele apoiadas” (o grifo é nosso), que cita em apoio Parsons, Lasswell, Kaplan, Easton, Dahl e
Cartwright. Esvazia-se, assim, a especificidade da influência e confere-se ao conceito de poder tal
amplitude que seu vínculo com a violência física some, num curioso processo de pasteurização,
e fica escamoteado seu caráter exclusivamente político.
18. Cabe reconhecer, todavia, que tanto aqueles que persuadem quanto aqueles que manipulam
prometem benefícios e espantam malefícios. Por exemplo, publicitários acenam com sucesso,
beleza, status, felicidade; negociadores comprometem-se a satisfazer necessidades, estabelecida
a melhor equação possível para os interesses envolvidos; políticos projetam inúmeros programas
de interesse público e proclamam soluções para os problemas que atormentam a população;
religiosos oferecem o reino dos céus lá ou cá; psicólogos prenunciam o equilíbrio emocional; e
advogados declaram-se convencidos de que os litígios serão resolvidos satisfatoriamente para a
parte representada.
19. É só pensar na pregação fascista e nazista no período entre as duas guerras mundiais, assim como
no proselitismo marxista durante todo o século XX. Pensar também nos movimentos feminista,
negro e homossexual, dedicados à conquista de direitos civis nos Estados Unidos, e, por fim,
na emergência de uma consciência mundial ecológica após os esforços tenazes dos movimentos
ambientalistas.
20. “O mundo deixou de acreditar que Josué fez o Sol parar, porque a astronomia de Copérnico era
útil na navegação; abandonou a física de Aristóteles, porque a teoria de Galileu da queda dos
corpos possibilitou calcular a trajetória de uma bala de canhão; rejeitou a história do dilúvio,
porque a geologia é útil na mineração, e assim por diante.” Russel, Bertrand. O Poder. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1979, p. 86.
21. Conforme Bertrand Russell. Op. cit., pp. 83-98.
22. Não devemos incorrer no erro de acreditar que a influência ou a propaganda possuem virtudes
milagrosas: sem consonância ou sintonia com os interesses, as aspirações ou as convicções íntimas
dos agentes a quem se dirige, a capacidade de induzir opiniões se esvazia ou, pelo menos, se reduz
fortemente.
23. No entanto, persiste a indagação: em que medida há genuína persuasão e em que medida há
manipulação? Não estaria o devoto sendo vítima do círculo de ferro de suas próprias crenças?
Uma resposta genérica não faz sentido. É preciso analisar cada caso em sua especificidade histórica
para desenredar o problema.
24. A influência do médico repousa no fato de que o paciente o considera um especialista que possui
um conhecimento maior do que o dele. Teria ele melhor base de julgamento para receitar-lhe
remédio e terapia. Aliás, em virtude da incerteza e da contingência em que se encontra, nada
parece mais razoável ao paciente senão aceitar a orientação do médico.
25. Quanto menos esclarecidas forem as famílias, maior é o poder do especialista. E mesmo no caso
de famílias mais escolarizadas, a falta de conhecimentos médicos e a urgência podem levar a que
aceitem qualquer tratamento que venha a lhes ser proposto.
26. Curiosamente, não será o caso de guerrilheiros ou de sequestradores que consigam convencer seus
reféns quanto à validade de seus ideais ou de suas razões. Nem quando exercem algum fascínio
sobre suas vítimas, numa estranha relação sadomasoquista que foi batizada como “síndrome de
Estocolmo”.
27. Esses processos sociais são analisados no próximo capítulo.
28. Desde a Revolução Neolítica, a concepção que se tem da natureza transitou da ideia de mãe
provedora ou de aquário simbiôntico, ou seja, de uma relação de submissão à natureza, para a de
império colonizado pelas forças produtivas humanas, típicas da Revolução Industrial e no mais
124 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

das vezes predatórias, ou seja, de uma relação de controle da natureza. Hoje, num paradigma
mais elaborado, a natureza está sendo encarada como um “planeta hospedeiro”, cujos recursos
são finitos e escassos. De maneira que, cada vez mais, defende-se a ideia de que o meio ambiente
merece ser preservado e restaurado acima de quaisquer outras considerações, ou seja, preconiza-
se uma relação de harmonia com a natureza. De fato, a Revolução Digital faculta a perspectiva
de uma produção “limpa” e de um ciclo de produto que abrange desde a preservação original do
ambiente natural, ou da recuperação dos efeitos de sua degradação, até a reciclagem dos materiais
utilizados na fabricação. Isso tudo impõe limites e restrições às ações humanas, a começar pelo fato
de que se implanta um “gerenciamento ambiental” que consiste em eliminar as fontes de poluição
e em ultrapassar a mera correção dos problemas causados pelas intervenções humanas.
29. As formas de gestão serão objetos de análise do Anexo III que se encontra no Web site da
Editora.
30. “Todo homem que faz política aspira ao poder — seja porque considere o poder como um meio a
serviço de outros fins, ideais ou egoístas, seja que o deseje ‘em si mesmo’ para gozar do sentimento
de prestígio que confere.” Weber, Max. Le Savant et le Politique. Paris: Librairie Plon, 1959, p.
101.
31. Ainda que não exibindo fardas, estandartes e equipamentos bélicos, os gestores das empresas
exercitam esse poder coercitivo ao dar ordens e vigiar seu cumprimento, ao demitir funcionários
e promover outros, ao dobrar vontades e governar pela intimidação e pelas ameaças.
32. Os escândalos de repercussão mundial em 2002 e em 2008, que afetaram dezenas de corporações
internacionais, devem-se em grande parte aos interesses dos altos gestores em encobrir gestões
medíocres e em se apropriar de bônus, gratificações e pacotes de desligamento em detrimento
dos acionistas.
33. O nível de resistência à autoridade política, obviamente, é menor do que se o poder fosse exercido
pelo mando puro e simples. Mas nem por isso deixa de existir resistência. Porque a legitimidade
é um complexo de justificações e nem sempre alcança a unanimidade dos subordinados. Por
exemplo, o herdeiro de uma empresa capitalista ampara-se na legitimidade tradicional da heran-
ça. Isso, porém, não lhe basta para assegurar a colaboração de todos aqueles que serviram a seu
pai fundador. Ele terá de conquistar a legitimidade racional que a competência técnica confere
para obter o respeito dos especialistas; ou terá de alcançar extraordinário sucesso em empreen-
dimentos realizados fora da empresa familiar se quiser cobrir-se com o manto da legitimidade
carismática.
34. Qualquer que seja o tipo de legitimidade que a autoridade política venha a desfrutar (racional,
tradicional ou carismática), ela sempre se move num espaço institucionalizado.
35. Segundo Gramsci, a hegemonia não equivale à ideologia dominante, mas remete à capacidade
estratégica de uma classe social para obter o consentimento ativo e passivo da maioria dos setores
sociais em torno de seu projeto histórico.
36. Fala-se em equipe que ocupa a liderança de um campeonato de futebol ou em piloto que lidera
a competição da Fórmula 1. Mas também se fala em líder de uma bancada de parlamentares, em
líder de um sindicato profissional ou de uma empresa, quando, na verdade, se trata dos respectivos
dirigentes ou presidentes.
37. Veremos a questão da moralidade no capítulo intitulado “A ética nas organizações”.
38. As estimativas chegam a alguns milhões de abortos anualmente. O aborto só é legal em casos de
estupro e risco de vida da mãe.
39. Weber, Max. Le Savant..., p. 102.
40. Favoritismo dos áulicos ou dos membros do círculo íntimo, laços de parentesco, vassalagem,
clientela, compadrio, amizade, vizinhança, coleguismo ou camaradagem.
41. Conforme Weber, Max. Economía y Sociedad. México: Fondo de Cultura Económica, 1969, pp.
170-176; e Max Weber: “Os fundamentos da organização burocrática: uma construção do tipo
ideal.” In Campos, Edmundo (org.). Sociologia da Burocracia. Rio de Janeiro: Zahar Editores,
1971.
42. São as mordomias ou vantagens usufruídas pelos gestores mais graduados: seguro de saúde
diferenciado, complemento de aposentadoria, cartão de crédito empresarial para despesas
pessoais, título de membro familiar de um clube recreativo, automóvel da empresa à disposição
4. O poder nas organizações 125

com despesas pagas, férias sabáticas, pagamento das mensalidades escolares dos filhos, utilização
do avião da companhia ou de passagens em primeira classe para os deslocamentos de negócio,
bônus anual, participação nos lucros ou nos resultados, direitos preferenciais na compra de ações
da empresa etc.
43. Símbolos que expressam a hierarquia e estabelecem as devidas distâncias e diferenciações, tais
como sala exclusiva e seu tamanho, título do cargo, pertença a listas de circulação, telefone com
linha direta, telefone celular, direito a uma vaga de estacionamento, banheiro reservado, cartão de
visita, secretária particular e qualificação da profissional, tipo de mobília e de tapete, decoração
do ambiente, acesso livre às diferentes áreas da empresa, atendimento especial no restaurante ou
no serviço de café, flexibilidade de horários e assim por diante.
44. Unidades de negócio, filiais, divisões, departamentos, setores, seções que se enfrentam para
obter recursos, pessoal, projetos, instalações, equipamentos, acesso a tecnologias, promoção
de seus quadros, melhores condições de trabalho, remuneração diferenciada, prestígio, reco-
nhecimento etc.
45. Os membros das organizações não são apenas motivados ou orientados por interesses particula-
res. Costumam agir e reagir, de um modo geral, como participantes de grupos informais (ver as
pesquisas clássicas da Escola de Relações Humanas nos chamados experimentos de Hawthorne,
de 1927 a 1932) e como membros de agentes coletivos em lutas sindicais, movimentos de consu-
midores, campanhas contra as discriminações de raças, etnias, gêneros e portadores de deficiências,
manifestações para a preservação do ambiente.
46. Panelas, igrejinhas, patotas ou cliques, conjuntos de amigos, vizinhos, colegas de escola ou de
empregos anteriores, parentes, conterrâneos, militantes políticos ou sindicais, fiéis de igrejas ou
de seitas, membros de clubes de serviço, de lojas maçônicas, de associações profissionais etc.
5
A cultura nas organizações

O universo simbólico
Basta entrar em qualquer grande organização para logo ser assalta-
do por uma presença informe. Paira no ar um mistério que faz as vezes
de esfinge e que sugere, no silêncio de sua carranca, a famosa frase:
“decifra-me ou te devoro”. A arquitetura do ambiente, os móveis e os
quadros embutem algo que os gestos desenham. As cores, os movimen-
tos do pessoal e os equipamentos evocam o que as palavras celebram.
E, de forma curiosa, os indivíduos, habitualmente tão diversos entre
si, assemelham-se nos ritmos e jeitos. O ar parece vibrar, impregnado
por sutis reverências e por conteúdos furtivos, por mil cumplicidades
que códigos e jargões disfarçam. Para não dar um mau passo, o recém-
chegado mantém-se alerta: desliza com prudência minuciosa; procura
captar significados nas entrelinhas; mede e compara silêncios e posturas;
pouco se atreve a dar notícia de si, para não destoar; sabe-se estranho,
forasteiro, outro; pisa em ovos tal qual um imigrante, cheio de dedos
e mesuras; move-se nos limites das boas maneiras; se escuda nas ideias
partilhadas do senso comum.
Em contrapartida, quem pertence à organização oficia como um ini-
ciado. Tudo lhe soa trivial: reconhece os suportes e as reticências de cada
ato; decodifica os antecedentes e as omissões de cada fala; celebra rito
após rito com segura intimidade; acompanha de cor os compassos das
atividades; divisa as saliências do terreno e os riscos de cada curva; pres-
sente as máscaras que se improvisam; e atina para as táticas ocultas.
128 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

Em princípio, o recém-chegado não deveria sofrer embaraço algum.


Afinal, mora no país, domina a língua, partilha os costumes, não nasceu
ontem. Mas o temor do desconhecido instala-se nele, sorrateiro, e logo se
torna avassalador. Chega a desconfiar que esteja diante de algo intangível,
de uma presença suprema que flui como seiva nos desvãos da organiza-
ção. De tão onipresente, aliás, essa presença imaterial não costuma reter
a atenção do pessoal da casa, natural que é como o ar que se respira. Para
quem vem de fora, porém, o todo parece uma câmara de compressão. Às
vezes sufoca.
Em síntese, o recém-chegado encontra padrões com os quais deve se
conformar. Embarca numa viagem simbólica, cujo penoso percurso é às
vezes extenuante. Caso não saiba navegar, corre o risco de parecer excên-
trico, desviante ou contestador. Pode acabar em quarentena, vigiado por
olhos que proliferam a cada passo. Mas por que se erguem tantas reservas e
inquietações? Porque, enquanto for “diferente”, constituirá uma incógnita
que se desdobra em ameaça — substância estranha que provoca anticor-
pos, figura marginal que é preciso manter nas bordas da organização.
Todavia, após adquirir “comportamentos adequados”, será submetido
à prova de batismo. Seu coração baterá uníssono com outros tantos, e
seu modo de ser diluirá seus contornos na uniformidade das cadências.
Somente então passará a ser aceito pelos outros.
As representações imaginárias que uma organização cultiva identi-
ficam quem é quem, demarcam praxes nem sempre explícitas, impõem
precedências e formalidades compulsórias, regulam expectativas e pautas
de comportamentos, exigem cautela e aprendizagem por parte de todos
os membros. Como não são frutos de um ensino sistemático, acabam
em boa parte adivinhadas e compõem uma espécie de mapa ou kit de
sobrevivência. Ora, que força misteriosa é essa? A cultura organizacio-
nal. Ela escorre por todos os poros, multiplica seus rostos, vinca toda e
qualquer atividade, se reproduz sob o crivo de uma série de controles
sociais. Não se resume à somatória das opiniões individuais dos agentes
que a partilham, pois tem vida própria e constitui uma das dimensões
da organização.
Enquanto a dimensão política traça o espaço da “arena” em que se
articulam as relações de poder e a dimensão econômica demarca o espa-
ço da “praça” em que se imbricam as relações de produção, a dimensão
simbólica representa o espaço do “palco” em que se tecem as relações de
saber. Eis o marco e também o diapasão.
5. A cultura nas organizações 129

Cada cultura organizacional forma um objeto decifrável. Ainda que


moldada com a argila das representações imaginárias e dos símbolos,1
das imagens e das ideias, configura relações de saber que se conjugam
e, a um só tempo, articulam agentes coletivos: relações de hegemonia e
conformidade, no plano da moldagem e da apropriação das consciências;
e relações de influência e adesão, no plano da transformação dos signos
em mensagens cognitivas. No mais, as expressões mentais encontram-
se tão entranhadas nas práticas cotidianas, em formas de agir, sentir e
pensar, que somente uma observação acurada consegue revelá-las. Suas
manifestações assumem as formas mais variadas: princípios, valores e
normas morais; conhecimentos, técnicas e expressões estéticas; tabus,
crenças e pré-noções; estilos, juízos, memórias, códigos verbais ou não
verbais; tradições, usos e costumes; convenções sociais, protocolos e
regras de etiqueta; estereótipos, clichês e motes; preconceitos, dogmas
e axiomas; imagens, mitos e lendas; dogmas, superstições e fetiches. Em
suma, as representações mentais refletem não só linguagens, mas con-
vicções sociais ou saberes.2 Quais? O cinzel da análise permite recortar
as culturas organizacionais em quatro esferas ou “campos de saber”,
domínios específicos do universo simbólico: a ideologia, a ciência, a arte
e a técnica. Cada esfera, por sua vez, abriga certos bens simbólicos, cuja
apreensão merece particular atenção.

O saber ideológico
Esse saber se compõe de evidências doutrinárias, mensagens ou dis-
cursos especulativos que não formulam problemas, mas apenas enunciam
soluções ou respostas prontas. O saber ideológico faz alusão à realidade e,
ao mesmo tempo, se basta com a ilusão de suas “evidências”;3 reconhece
o mundo e, no mesmo ato, o desconhece. Em suma, impede a elaboração
de explicações demonstráveis.4 Se não, vejamos. Fazem parte dele:

„ O discurso social comum, que forma o repertório do cotidiano, a


soma dos lugares-comuns, dos truísmos e das evidências triviais,
verdadeiro denominador comum do universo simbólico de uma
coletividade;
„ O discurso ideológico, estrito senso, que abrange as ideologias po-

líticas, econômicas e religiosas, e consiste em ideários cognitivos e


130 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

ativistas, em instrumentos de ação histórica que convocam e im-


pulsionam agentes coletivos para agir em defesa de seus interesses
objetivos;
„ O discurso filosófico, que corresponde a um saber racional e meto-

dicamente adquirido, a uma reflexão crítica sobre os fundamentos


dos conhecimentos e das práticas, a um posicionamento diante do
mundo e das questões existenciais, mas constitui um “discurso sem
provas”;
„ O discurso teológico, que designa um saber metafísico, místico,

crente ou mágico, cujo cerne supõe revelações extraempíricas, crê


em relações de causalidade que fogem ao domínio da realidade
natural, porque supostamente a transcende, e cuja função precípua
consiste em organizar e sedimentar os credos religiosos.

Esses quatro tipos de discursos expressam convicções de princípio,


inspiram profissões de fé, ideais que mobilizam energias ou conjuntos de
abstrações a priori. Afinal, não se pode provar ou refutar a existência de
Deus, da alma, do inferno, da reencarnação ou dos fantasmas. Nem há
como demonstrar a santidade dos profetas, o direito divino dos reis, a
doutrina do pecado original, o carma como fundamento da metempsicose.
Nem há, ainda, como observar o inconsciente coletivo de Jung, a lei dos
três estados de Comte, a lei geral da evolução de Herbert Spencer, a von-
tade de potência de Nietzsche, a bondade natural de Rousseau, a guerra
de todos contra todos de Hobbes, o sujeito transcendental ou o sujeito
histórico de tantos e tantos filósofos e assim por diante. Quando muito,
são hipóteses heurísticas.
Quem acredita nessas evidências retóricas avaliza algumas especulações
destituídas de fundamentação empírica. E, mesmo quando o sujeito da
reflexão evoca eventuais julgamentos de fato ou se conforta com alguma
argumentação científica, ancora-se em juízos de valor, axiomas e enuncia-
dos morais. No essencial, rende-se ao caráter normativo das proposições
ideológicas e, muitas vezes, ao dogmatismo de suas prescrições. Assume
construções do intelecto que:

„ Não visam à investigação de eventos empíricos — observáveis,


mensuráveis, controláveis;
„ Não formulam juízos de realidade, nem se propõem a conhecer o

que são as coisas, como são e por que são;


5. A cultura nas organizações 131

„ Não se dobram à disciplina da prova para validar seus conteúdos


doutrinários, nem se preocupam em refutar cabalmente explicações
científicas;
„ Proclamam tão somente “verdades” que a tudo respondem e apos-

tam na ânsia por certezas que acomete a todos aqueles que vivem
atormentados por angústias existenciais;
„ Resultam de uma adesão intuitiva, à semelhança da conversão re-

ligiosa.

No domínio da ciência, em contraposição, há um paradigma empiris-


ta que repousa no princípio da verificação e que só vem a reconhecer as
evidências fundadas na observação e na análise dos fenômenos. Estabe-
lece as regularidades explicativas e as leis correspondentes pelo método
indutivo.5

O saber científico
O saber científico nos remete a um conjunto de conhecimentos sobre
as realidades natural, social e psicológica. Faz uso ou não das matemáticas
e da estatística, estabelece um sistema ordenado e coerente de proposições
que descrevem e explicam os fenômenos a partir de “leis”, vale dizer,
de relações necessárias que derivam da natureza recorrente das coisas.
Uma teoria é científica se cumprir dois postulados: o de sujeitar-se ao
critério do verdadeiro e do falso e o de prever a ocorrência dos fenô-
menos. Isso significa que ela deve ser demonstrada de algum modo por
meio de resultados experimentais ou laboratoriais, raciocínios lógicos
e matemáticos, ou ainda através de regularidades históricas criteriosa-
mente rastreadas.
De maneira que a produção científica obedece a protocolos ri-
gorosos:

„ Delimita ou define os fatos a investigar, separando-os de outros


semelhantes ou diferentes;
„ Estabelece os procedimentos metodológicos indispensáveis para

observar, experimentar e comprovar os fatos;


„ Constrói instrumentos técnicos e condições de laboratório específi-

cas para a pesquisa, assim como controla e guia o andamento dessa


mesma pesquisa;
132 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

„ Elabora um conjunto sistemático de conceitos que forma a teoria geral


dos fenômenos estudados e amplia esse conjunto com novas investi-
gações, procurando prever fatos novos a partir dos já conhecidos.6

A tradição iluminista já contrastava os “métodos da razão”, também


chamados de métodos científicos, e os “métodos da autoridade”. Estes
baseiam-se na revelação, ou na crença irracional, e tornam sinônimas a
verdade e a fé: em vez de produzir uma verdade argumentada e provada,
conferem à verdade um caráter senão sagrado, pelo menos revelado e
acreditado. O discurso científico, ao contrário, pretende tornar o mun-
do inteligível (know why), através de evidências demonstráveis,7 ainda
que suas observações não correspondam a simples constatações. Pois os
cientistas não são tábulas rasas cujo olhar paira sobre o real e o desvenda.
Queira-se ou não, as observações são interpretações, porque o real não é
transparente e dele não se faz uma leitura imediata; os fatos não falam por
si mesmos, mas são elaborações que já decorrem de um reconhecimento
simbólico; o olhar do observador carrega os conceitos que adquiriu nas
suas diversas aprendizagens, partes indissociáveis de uma matriz de deci-
fração dos fenômenos.
A percepção da realidade é uma experiência dotada de significação:
depende de um repertório de identificação e funciona como um filtro que
demarca o que se vê e o que não se vê. Portanto, toda cognição é seletiva e
estruturada.8 Como a percepção sensível é incompleta, fragmentária, uni-
lateral e superficial, ela não consegue refletir a essência das coisas e sofre
uma elaboração mental, uma construção que o trabalho de investigação
científica realiza. À medida que o processo cognitivo não funciona como
mero espelho, duplicação ou decalque da realidade, senão como processo
de produção mental, as práticas simbólicas não utilizam os fenômenos reais
como matérias-primas, mas transformam as representações imaginárias
desses mesmos fenômenos. Os processos de trabalho mentais usam signos,
imagens, dados e informações. Daí, um cuidado essencial na explicitação
de suas fontes: toda prática científica é tributária de pressupostos teóricos
e metodológicos e tem por ponto de partida uma abordagem filosófica.
Ou, dito de forma metafórica, não existem conceitos inocentes. Resta
saber, e com toda a precisão e transparência, quais são suas vinculações
axiológicas e qual é a origem de suas pressuposições.
Isso tudo, no entanto, não elimina a especificidade do saber cientí-
fico e a relevância de suas aquisições, porque a ciência corresponde a
5. A cultura nas organizações 133

um saber aberto, cujas proposições ficam sempre submetidas à crítica,


à revisão ou à refutação. Suas descrições e análises visam a explicar e a
prever a ocorrência dos fenômenos observados, num teste recorrente de
realidade. Seus enunciados — teorias ou leis gerais de funcionamento dos
fenômenos — permanecem sempre provisórios, ainda que sejam eficazes
na apreensão do real. Os conhecimentos científicos não são “verdades
finais”, mas evidências aproximadas da “verdade”: o que é verdadeiro
hoje pode não sê-lo amanhã. Os resultados das pesquisas científicas, então,
nunca assumem um caráter definitivo ou absoluto. Se assim fosse, eles se
tornariam dogmas, ou seja, saber ideológico.

O saber artístico
As criações da sensibilidade e as expressões estéticas constituem o saber
artístico, que é fruto da inspiração e da imaginação. Suas finalidades são a
contemplação, o devaneio e a ilusão. O artista busca o belo, ao passo que
o público emite juízos de gosto ou julga o valor de beleza. De sorte que
a obra de arte, por ser singular e incomparável, prescinde de quaisquer
demonstrações ou provas. Ela não procura enunciar verdades, mas se
empenha em gerar páthos, em tocar o coração dos outros. Seus propósitos
consistem em despertar emoções e revelar desejos, em inspirar sensações e
exprimir estados de espírito, em falar aos sentimentos e comover o público
com os novos sentidos que o mundo esconde.
O saber artístico corresponde, no essencial, às belas-artes — pintura,
escultura, arquitetura, poesia, música, teatro, dança —, embora abranja
também “indústrias criativas” como as artes audiovisuais (cinema, televisão,
vídeo, publicidade), o design (gráfico, de moda e nas páginas da Internet),
a fotografia e a edição de texto e de imagem. E suas obras são trabalhos
de expressão, transfigurações do visível, dos materiais, das formas, da
linguagem, do sonoro, do movimento e dos gestos.9 Mas como o artista
traduz o real com seu gênio criador e provoca as apreciações que o público
vivencia, estabelece-se na esfera estética uma forma original e intuitiva de
apropriar-se do mundo, cujas chaves de decifração encontram-se na sensi-
bilidade, na fantasia e no prazer da fruição simbólica. Em decorrência, o
saber artístico abrange também outras manifestações culturais de caráter
lúdico — os lazeres, os esportes e o entretenimento.
O saber artístico não se confunde com a técnica, tal como a linguagem
corrente propende a fazer quando fala de artes manuais, arte náutica, arte
134 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

da caça, arte culinária, arte bélica, arte de comunicar-se ou “obras de arte”


para pontes e viadutos, pois não visa a produzir o que é útil e operante.
Ao transcender a realidade imediata, a obra de arte torna-se única, una
e duradoura.

O saber técnico
Por sua vez, o saber técnico não se resume às destrezas que todo tra-
balhador acaba possuindo no exercício de algum trabalho, nem à “sabe-
doria prática” que muitos homens simples aprendem por ouvir dizer ou
por ver fazer. É um saber constituído por um conjunto de processos que
procuram adequar os meios disponíveis a fins desejados, por um corpo de
regras operatórias ou de procedimentos. Diz respeito a um “saber fazer
as coisas” (know-how) e aplica conhecimentos científicos para realizar
atividades e fabricar objetos.
Sendo instrumental, a técnica satisfaz demandas sociais específicas. E,
à medida que as ciências se aplicam cada vez mais à produção de bens e
de serviços, as relações entre técnica e ciência ganham nova dimensão e
a técnica se transforma em tecnologia. Nem por isso se confunde com a
ciência, ainda que mantenha com ela laços de mútua fecundação.

A cultura organizacional
Muitos antropologos tomam o conceito de cultura pelo todo da so-
ciedade, enquanto muitos sociólogos limitam o conceito de cultura a uma
das três dimensões do espaço social — a dimensão simbólica. Ficaremos
com a segunda acepção. O senso comum, por sua vez, confunde cultura
com erudição: diz que tal ou qual pessoa é culta e pretende designar assim
seu nível de escolaridade ou sua bagagem intelectual. Num sentido mais
lato, porém, a linguagem corrente sinonimiza cultura e arte. Expressões
estéticas como esculturas, obras literárias, pinturas, apresentações de
dança, peças teatrais, espetáculos de circo, concertos de música erudita,
coleções de peças arqueológicas, filmes de autor, shows de rock recebem o
rótulo de manifestações “culturais”, relegando todas as demais expressões
simbólicas a outro departamento.
Na verdade, não há razões do ponto de vista analítico para conferir
ao conceito de cultura a abrangência que alguns sustentam. Nem cabe
confiná-lo a uma única esfera simbólica como muitos pretendem. Mantidas
5. A cultura nas organizações 135

a especificidade e a autonomia relativa das dimensões econômica e política,


podemos entender a cultura como equivalente à dimensão simbólica das
coletividades, porque as representações imaginárias formam seu substrato.
Isso significa que ela:

„ Comporta um conjunto de padrões que permitem a adaptação dos


agentes sociais à natureza e à sociedade em que vivem;
„ Faculta o controle sobre o meio ambiente;

„ Dirige-se a toda atividade humana cognitiva, afetiva, motora, sen-

sorial, uma vez que todo comportamento humano é simbólico;


„ Não se circunscreve ao mundo abstrato das ideias porque, embora

pensadas, as ideias são, sobretudo, vividas e praticadas.10

A cultura é aprendida, transmitida e partilhada. Não decorre de uma


herança biológica ou genética, mas resulta de uma aprendizagem social-
mente condicionada. É disso que se trata quando se fala de socialização ou
de endoculturação: os agentes sociais adquirem os códigos coletivos e os
internalizam, se tornam produtos do meio sociocultural em que crescem;
se conformam aos padrões culturais vigentes e, com isso, se submetem a
um processo de integração ou de adaptação social.11 De modo insensível,
tudo aquilo que lhes foi inculcado é reconhecido por eles como fatos
naturais e normais. A partir daí, quaisquer outras maneiras de ser lhes
parecem exóticas, quando não aberrantes. Eis por que indivíduos prove-
nientes de diferentes sociedades, ou oriundos de diferentes meios sociais,
são facilmente identificáveis pelas suas formas peculiares de agir, sentir
e pensar.12
Toda coletividade tende a considerar o próprio modo de vida como
o mais sensato e o mais correto. Isso leva ao etnocentrismo, à leitura
ensimesmada que se faz do mundo, à óptica exclusivista de uma cultura,
à qualificação de todas as demais coletividades como “bárbaras” — infe-
riores, atrasadas e inumanas. Ora, a diversidade dos costumes ensina o
relativismo cultural e exige humildade intelectual. Por exemplo, inúmeros
são os padrões culturais que horrorizam os brasileiros de hoje e, de forma
simétrica, o que os brasileiros fazem espanta muitos outros povos.13
Nas organizações, a cultura impregna todas as práticas e constitui um
conjunto preciso de representações mentais, um complexo muito definido
de saberes. Forma um sistema coerente de significações e funciona como
um cimento que procura unir todos os membros em torno dos mesmos
136 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

objetivos. Isso os torna semelhantes nos modos de agir e, muitas vezes,


de pensar. Sem referências próprias, as organizações ficariam à mercê das
idiossincrasias individuais, principalmente diante de situações novas. E a
disparidade das orientações adotadas certamente poderia provocar-lhes
prejuízos.
A cultura organizacional é o conjunto das representações mentais, o
universo simbólico, o modo de ser próprio dos habitantes de uma organi-
zação que determinados padrões de comportamento expressam. Confere
sentido aos discursos e às práticas. Especifica a identidade da organização
construída ao longo do tempo. Serve de chave para distingui-la de outras
organizações. Aliás, quando ocorrem fusões, aquisições ou incorporações
de empresas, sob o fogo cruzado da multiplicidade das maneiras de ser, as
culturas organizacionais gritam de tão diversas que são. Reagem também
quando, sob o aguilhão da concorrência, irrompe a necessidade inadiável
de inovar a tecnologia, de alterar a forma de gerir, de adotar nova postura
moral, de mudar o processo produtivo. Nessa hora, um “choque cultural”
acontece. Seu refluxo desorienta os agentes, coloca as atividades do dia a
dia em compasso de espera, chega a deflagrar agudas resistências, como
se fossem fraturas expostas, pondo a nu os padrões culturais que os anos
cristalizaram.

O clima versus a cultura organizacional


É importante ressaltar que os conceitos de cultura e de clima or-
ganizacionais não são intercambiáveis. O clima não apanha os modos
institucionalizados de agir e de pensar. Seu eixo consiste em capturar a
“temperatura social” que prevalece na organização num instante bem
preciso:

„ Corresponde a um corte sincrônico ou a um instantâneo foto-


gráfico;
„ Condensa a somatória de opiniões e de percepções conscientes dos

membros;
„ Traduz as tensões e os anseios do pessoal — o “moral da tropa”, o

ânimo presente;
„ Mapeia o ambiente interno que varia segundo a motivação dos

agentes e apreende suas reações imediatas, suas satisfações e suas


insatisfações pessoais;14
5. A cultura nas organizações 137

„ Desenha um retrato dos problemas que a situação econômica, as


condições de trabalho, a identificação com a organização e a pers-
pectiva de carreira eventualmente provocam;
„ Expressa a distribuição estatística das atitudes coletivas ou da

atmosfera social existente como manifestação de um momento


determinado.

Dependendo do estado de ânimo que predomina em cada subunidade


de uma organização, vários microclimas podem coexistir. Não se pode
então confundir uma descrição instantânea dos mal-estares ou do nível de
satisfação dos indivíduos com os padrões culturais da organização, com
suas práticas recorrentes ao longo do tempo. Por ser subjetivo, o clima não
representa as regularidades simbólicas da coletividade, indica apenas uma
“pulsação” da cultura organizacional, um flash de sua conjuntura.
Em contraposição, as culturas organizacionais constituem sistemas de
referências simbólicas e moldam as ações de seus membros. Ao servir de
elo entre passado e presente, contribuem para a permanência e a coesão
da organização. E, diante das exigências que o ambiente externo provoca,
diante das necessidades de integração interna que se renovam de maneira
incansável, formam um conjunto de soluções relativas à sobrevivência, à
manutenção e ao crescimento da organização. Por exemplo, ao surgirem
situações não previstas pelas normas existentes, a cultura organizacional
aparece como um recurso vital, pois os valores conferem orientação e
consistência às decisões e às ações dos agentes. Nem por isso, entretan-
to, todas as organizações possuem uma cultura singular. A maior parte
delas, de porte pequeno ou médio, simplesmente reproduz os padrões
culturais vigentes no país e na região. Formam assim o palco do “discurso
social comum”, em que se reafirmam ideias recebidas, gestos, histórias,
mitos e ritos em vigor, sem que sejam significativamente rearranjadas
para uso próprio.
Todavia, há organizações que desenvolvem alguns padrões peculia-
res, variações em torno do grande tema que é a cultura da sociedade
inclusiva. Neste caso, tornam-se centros produtores de sociabilidade, à
semelhança das famílias e dos círculos de amigos, das igrejas e dos mo-
vimentos sociais, da mídia e das escolas, dos sindicatos e dos partidos
políticos. São elas em especial as grandes empresas, as universidades, o
Estado e as organizações não governamentais, que elaboram e difundem
padrões culturais.
138 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

As culturas organizacionais e as ideologias


Vamos agora examinar uma questão vital que tem atormentado teó-
ricos, divulgadores e estudiosos. Como delimitar e comparar as culturas
organizacionais? Sem fundamentação sociológica competente, as descrições
ou as definições possíveis naufragam num registro impressionista. Ora,
é essencial dispor de base histórica e empírica para alçar um voo teórico
qualquer. No núcleo das culturas organizacionais há uma ideologia hege-
mônica que lhes serve de gramática. Vale dizer, as manifestações simbólicas
e as práticas sociais das organizações encontram a chave que lhes confere
articulação e coerência numa ideologia determinada. E encontram também
o meio para obter dos agentes seu consentimento ativo ou passivo.
Assim, num primeiro momento, vamos nos empenhar em distinguir
as ideologias e estabelecer seus limites e laços comparativos. Por quê?
Porque uma dada cultura organizacional só será conhecida se soubermos
reconhecer a ideologia hegemônica que a anima e lhe confere sua lógica.
Porque teremos condições de situar as culturas organizacionais umas em
relação às outras e, sobretudo, poderemos captar sua eventual dinâmica.
Como já foi visto, nossa definição de ideologia — restrita aos discursos
doutrinários — conflita com a noção marxista de ideologia que superpõe
ideologia e cultura. Para os marxistas, a “superestrutura” da sociedade é
formada pelas instâncias ideológica e política e estabelece um contrapon-
to clássico com a infraestrutura econômica. Esse sentido lato abrange a
ciência e o faz de forma equívoca. Porque a ideologia se reveste de uma
conotação pejorativa nos textos de Marx ao remeter à consciência e à
representação que a classe dominante tem da realidade. Torna-se então
falsa consciência para as classes subalternas, à medida que decorre de uma
percepção viciada da realidade (é a visão dos dominantes), se transforma
em instrumento de defesa do statu quo (confunde os trabalhadores) e
sustenta uma concepção errônea da história (escamoteia a luta de classes).
Conclusão: para a teoria marxista, a ideologia aliena e mistifica tal qual
um “ópio do povo”.15
Georges Gurvitch chegou a identificar treze sentidos diferentes atribu-
ídos ao termo ideologia pelo próprio Marx.16 De modo que, em oposição
à ideologia, muitos marxistas brandem a consciência de classe como tábua
de salvação. Essa “consciência clara” desvendaria as contradições sociais
e revelaria aspirações obscuras e esperanças insuspeitas. Emerge, porém,
uma dúvida pertinente: tal tomada de consciência não seria também ideo-
5. A cultura nas organizações 139

lógica? Não tenderia a formar uma contraideologia dos dominados, já que


derivaria de uma percepção com parti pris?
Evitemos polemizar. Saiamos da areia movediça. As ideologias não
são ciências, não abarcam todas as representações imaginárias como su-
perestrutura social, nem representam unicamente “falsas consciências de
classes”. Elas atuam como núcleos que estruturam o universo simbólico e
podem ser definidas como ideários cognitivos e ativistas:

„ São conjuntos articulados de convicções que correspondem a siste-


mas de princípios, valores e crenças;
„ Expressam e justificam os interesses de agentes coletivos, e também

orientam suas ações no confronto com outros agentes;


„ Equivalem a visões de mundo tão explícitas que respondem às
17

questões fundamentais da vida. 18

As ideologias sustentam, assim, os ideários de muitos tipos de agentes


coletivos. Podem:

„ Exprimir as aspirações de uma sociedade inclusiva ou de várias delas,


tal como o fazem o nacionalismo ou a xenofobia, o patriotismo, o
regionalismo, o separatismo, o federalismo, o desenvolvimentismo
e o terceiro-mundismo;
„ Refletir os anseios de uma classe social em dado momento histó-

rico, à semelhança do internacionalismo ou do socialismo para os


trabalhadores, do fascismo para os gestores ou os pequenos pro-
prietários autônomos, do liberalismo para as burguesias mercantil
e industrial;
„ Traduzir as reivindicações ou os posicionamentos de categorias

sociais, a exemplo do feminismo e do machismo que polarizam os


gêneros; dos racismos ariano, caucasiano, amarelo ou negro que
dividem as raças; do etnicismo sérvio, croata, basco, curdo e de
inúmeras etnias africanas que se contrapõem e promovem espanto-
sos massacres de seus vizinhos; do antissemitismo cristão ou árabe
e do sionismo de judeus que antagonizam categorias religiosas; da
homofobia discriminadora ou do homossexualismo dos gays e das
lésbicas, que confrontam categorias de preferências sexuais.
„ Expressar as demandas de uma organização, como ocorre em vários

tipos de sindicalismo; na Teologia da Libertação esposada pela ala


140 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

esquerda da Igreja Católica; e nos inúmeros credos de empresas, de


seitas ou de clubes de serviços.

De fato, as ideologias operam como efeitos das situações sociais ocu-


padas pelos agentes coletivos:

„ Incitam a uma ação urgente;


„ Dizem a todos quem é quem e contribuem para definir uma identi-
dade coletiva;
„ Unificam os semelhantes e excluem os diferentes;

„ Delimitam objetivos comuns e enunciam o que tem valor e o que

deixa de tê-lo;
„ Conferem sentidos às situações históricas dos agentes;

„ Traduzem eventos e fenômenos através de fórmulas sumárias, cor-

tantes e quase caricaturais;


„ Proferem verdadeiros veredictos sobre a maior parte dos assuntos;

„ Falam às emoções ao mexer fundo nas raízes de cada um;

„ Requerem uma adesão completa de quem as subscreve;

„ Racionalizam os interesses, mascarando-os com um verniz lógico;

„ Funcionam não só como lentes deformadoras, mas como crenças

úteis;
„ Mobilizam e canalizam energias para a inovação, a contestação ou

a manutenção da ordem vigente;


„ Tecem laços de solidariedade entre aqueles que possuem situações

estruturais idênticas e, ao evocar o “nós” que celebra a união entre


“iguais”, forjam uma consciência coletiva de nação, de classe, de
categoria social, de espírito de corpo.

Nenhum indivíduo escapa do cerco ideológico, porque não há indi-


víduo que não ocupe posições sociais e, em consequência, não defenda
interesses — os dele próprio e os grupais ou gerais das coletividades às
quais pertence. Afinal de contas, todo agente faz irremediavelmente parte
de uma dada classe social (exceto os lúmpens), além de diversas categorias
sociais, organizações e públicos. De maneira que, para os agentes indivi-
duais, as ideologias:

„ São alavancas para intervenções voluntaristas;


„ Funcionam como ideários ativistas;
5. A cultura nas organizações 141

„ Fornecem fins e meios e os impelem a cometer ações históricas —


ações capazes de provocar ou de impedir que uma dada coletividade
mude;
„ Constituem sistemas de referências para pensar o mundo, a partir

da posição social que cada agente ocupa;19


„ Representam um conjunto coerente de percepções e de representa-

ções mentais que simplifica a apreensão do real;


„ Lançam gritos de guerra para agregar os que “estão conosco” e os

do “lado de lá”;
„ Conformam-se como doutrinas, fazem as vezes de credo e modelam

comportamentos, aspirações, expectativas e opiniões;


„ Exigem que cada agente se dedique ao proselitismo, ainda que exis-

tam “intelectuais orgânicos”, arautos ou difusores ideológicos.20

Posto isso tudo, afirmamos que as culturas organizacionais exprimem a


identidade das organizações. Ora, quais são os instrumentos adequados para
classificá-las, analisá-las e prever transições possíveis entre elas? Como apanhar
o conteúdo próprio que distingue uma organização da outra? Como dar conta
desses sistemas de referências construídos ao longo do tempo? Repetimos:
o caminho nos é dado pelas ideologias, conjuntos coerentes de percepções
e de representações da realidade. Em particular, as ideologias políticas e as
ideologias econômicas nos oferecem a trama que justifica as decisões que
se tomam e as ações que se executam nas organizações.
É essencial reter, então, que as ideologias políticas constituem apenas
uma parte do núcleo que estrutura as culturas organizacionais. Captá-las
significa resgatar as convicções cruciais que ordenam o universo simbó-
lico das organizações. Por isso é que se pode falar, por exemplo, de uma
organização conservadora, liberal, social-democrata ou tradicionalista; ou
de uma organização anarquista, comunista, fascista ou socialista. Embora
tal definição se restrinja à ideologia política e não esgote todas as nuanças
existentes — uma vez que lhe faltam os posicionamentos econômicos —,
ela já demarca o espaço de suas expressões centrais.

O hemiciclo das ideologias


Em última análise, o que orienta as relações entre o poder público e os
agentes sociais, entre o Estado e a sociedade civil? As ideologias políticas.
Aqui, um cuidado se impõe: não se deve confundir, como é costume, ideo-
142 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

logias políticas e ideologias econômicas. Porque o enfoque destas últimas


é outro: elas põem em jogo as relações entre o Estado e a economia, ou
entre o Plano e o mercado. Basta lembrar para tanto a clássica distinção
entre liberalismo político e liberalismo econômico para verificar que não
há simples coincidência ou superposição entre os dois ideários. Falando
claro: é possível ser liberal do ponto de vista econômico, ao mesmo
tempo em que se é politicamente conservador. Por exemplo, hoje em
dia, a direita clássica na França é favorável à globalização e à abertura do
mercado para o risco (liberal sob o enfoque econômico), embora parte
importante dela rejeite os imigrantes com franca xenofobia (conservadora
sob o enfoque político). Em contraposição, a esquerda ortodoxa é hostil
à globalização e defende o protecionismo (é nacionalista e dirigista sob o
prisma econômico), mas se insurge contra a perseguição aos imigrantes
(é politicamente progressista).
As ideologias políticas operam como alavancas de conservação da
sociedade ou, ao contrário, fornecem os conteúdos dos programas refor-
mistas e dos projetos revolucionários. Ora, de que forma elas influenciam
os acontecimentos sociais? Da mesma maneira que muitas ideias o fazem:
guiando e incitando os agentes a agir em determinado sentido. Mas cui-
dado, as ideologias políticas não designam conteúdos fixados para todo
o sempre, porque esses se movem ao longo do tempo e sofrem inume-
ráveis redefinições. É o caso patente, por exemplo, da social-democracia
contemporânea. Evoluiu de um ideário revolucionário, no final do século
XIX, para proposições reformistas já nas primeiras décadas do século XX.
Encetou sua ruptura com o marxismo em meados dos anos 50 e passou
a adotar um ideário moderado de democratização do capitalismo, num
processo que a aproxima cada vez mais do liberalismo político.21 No início
do século XXI, liberada do estatismo e dos exageros assistencialistas do
welfare state, a social-democracia converteu-se em estuário das tendências
mais avançadas do capitalismo social.
Vamos insistir: o conteúdo preciso das culturas organizacionais não
é fornecido apenas pelas ideologias políticas, mas pela imbricação entre
as ideologias políticas e as econômicas. Afinal, todas elas impregnam as
organizações, mesmo aquelas que só partilham o “discurso social comum”
— este repositório de ideias prontas, frases feitas, juízos sumários, chavões
e clichês. Todavia, quando há escolhas a fazer e quando os rumos da exis-
tência coletiva estão em jogo, os interesses falam mais alto. As ideologias
então se tornam onipresentes na mente dos agentes e despertam neles
5. A cultura nas organizações 143

paixões incontroláveis. Às vezes, deflagram delírios homicidas como o


foram o racismo nazista com suas limpezas étnicas, o terrorismo de Esta-
do stalinista, o fundamentalismo islâmico com seus suicidas e as “guerras
preventivas”, quase messiânicas, desencadeadas pelo neoconservadores
americanos contra o Afeganistão e o Iraque.

As raízes francesas da metáfora espacial


Na França de 1789, data inicial da revolução burguesa, a reunião dos
“Estados Gerais” correspondeu à representação dos três estamentos ou
“estados” — o clero, a nobreza e o Terceiro Estado que, sozinho, repre-
sentava 98% do país. Ao se instalarem, os Estados Gerais converteram-se
em Assembleia Nacional. Foi quando começou o hábito dos deputados se
agruparem por correntes de opinião: à direita do presidente, à esquerda
dele e no centro do plenário. Em 1791, com a Assembleia Legislativa e, em
1792, com a Convenção Nacional, essa distribuição espacial se consolidou
e ganhou notoriedade nos jornais e nos estudos políticos, transformando-
se numa espécie de paradigma.
O modelo mais em voga, porém, é aquele representado pelo agrupa-
mento das correntes que tomaram assento na Convenção, numa distri-
buição em forma de leque. À direita sentavam os girondinos, deputados
oriundos especialmente da região de Gironde e dispostos a dar um freio
à Revolução. À esquerda sentavam os jacobinos22 — aliados exaltados dos
sans-culottes, a arraia-miúda citadina —, defensores incondicionais dos
princípios revolucionários. No centro abrigavam-se várias correntes sob
o rótulo pejorativo de Marais (pântano) ou de planície, representantes
sensíveis à pressão das ruas e aos humores da opinião pública, geralmente
inclinados para os girondinos, embora capazes de eventuais excessos.
A importância da metáfora espacial para a história das ideias é seu
legado. Permaneceu no tempo a definição da direita como defensora de
ideais conservadores ou “regressistas”, quando não reacionários, como
berço de ideários passadistas, nutridos por uma visão pessimista do pro-
cesso histórico. Sua concepção pugna pela conservação das tradições,
sublinha a continuidade das instituições vigentes ou do statu quo, ainda
que alimente o sonho de reconstituir a sociedade estamental com suas
distinções e prerrogativas, numa franca distopia da desigualdade.
Em contrapartida, a esquerda passou a ser vista como defensora de
ideais radicais ou progressistas, quando não revolucionários, berço de ideá-
144 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

rios imantados pelo futuro e portadora de uma visão otimista do processo


histórico. Sua concepção rompe com o sistema socioeconômico vigente,
almeja melhorar de forma incessante as condições de vida da população
e visa a construir uma sociedade solidária, que esteja livre das peias das
necessidades, numa clara utopia da igualdade.
Finalmente, o centro — malgrado suas oscilações ora para a direita
ora para a esquerda, ou justamente por ser um espaço de convergência
entre posições ideológicas contraditórias — postula ideais de inovação,
abriga caracteres reformistas e evolucionários e diz enfocar o presente
histórico de forma realista. Equilibra-se então entre a cautela e a crítica à
ordem vigente, reputa inevitáveis algumas transformações que traduzam
as demandas sociais e as necessidades emergentes, mas ressalva que tudo
deva ocorrer a passos medidos e à luz de uma estratégia de transigência.
Em suma, resgata no passado o que ele tem de melhor sem dar as costas
aos ventos novos que sopram.

Figura 3

O leque ideológico: as raízes francesas

PROGRESSO centro REGRESSO

esquerda direita
Reformistas

Radicais Conservadores

jacobinos “planície” girondinos

futuro passado
presente

Essa topografia política sofreu inúmeras críticas. De Daniel Bell


(década de 1960) à Fukuyama (década de 1990) sentenciou-se o “fim
das ideologias”, num veredicto que escamoteia a efervescência dos
discursos ideológicos contemporâneos. E para desqualificar os extremos,
5. A cultura nas organizações 145

muitos autores e políticos denunciaram suas similitudes congênitas — a


busca de fins últimos e absolutos, a estratégia de ruptura radical com
a ordem existente, a montagem de Estados totalitários, a imposição de
uma ideologia de partido único — e concluíram que os extremismos
comunista e fascista se tocam.23 Mais ainda: muitos estudiosos alertaram
que a globalização econômica e as “comunalidades” baralham os prin-
cípios ideológicos e apagam suas linhas divisórias.24 Afirmaram que a
díade esquerda e direita foi ultrapassada pela queda do Muro de Berlim
e pelo enfraquecimento de seus “sujeitos históricos” — o proletariado
e a burguesia industrial. Explicaram que se ainda existissem esquerdas e
direitas, aquelas seriam estatistas e antilibertárias, e estas seriam privatis-
tas e a favor das liberdades democráticas. E arremataram dizendo que a
discussão hoje em dia se trava entre “modernos”, que seriam favoráveis
à privatização das atividades estatais, à desregulamentação da economia
e à liberalização das trocas comerciais internacionais, e “arcaicos”, que
seriam defensores do Estado produtor e intervencionista, bem como do
protecionismo econômico.
Cada uma dessas proposições merece reflexão. Assim, para resolver
o problema dos pontos de encontro entre as ideologias, propomos outra
metáfora espacial, cuja representação gráfica desenha um círculo pleno,
uma lua cheia ou uma rosa-dos-ventos.25 Quanto à ausência de marcos para
poder diferenciar esquerda e direita, mostraremos que não só a dicotomia
se sustenta, mas existem linhas demarcatórias bem precisas. No tocante à
substituição dos critérios-chave indispensáveis para distinguir as ideologias,
basta apenas dizer que está havendo confusão entre ideologias políticas e
ideologias econômicas. Daremos conta dessa distinção nos próximos ca-
pítulos, com todos os esclarecimentos que se impõem. Ademais, conferir
o rótulo de “estatistas” a todas as esquerdas não se sustenta. Por exemplo,
os anarquistas sempre foram antiautoritários e são visceralmente contra
qualquer forma de Estado. Por sua vez, os social-democratas deixaram de
ser estatistas no terceiro quartel do século XX. Nunca é demais lembrar,
também, que o estatismo está no âmago do fascismo, posicionado na
extrema-direita.
Finalmente, no coração da disputa política contemporânea, as ideo-
logias continuam sendo evocadas nos jornais, nos programas partidários,
nos debates legislativos, no modo de classificar políticos. Persistem em seu
papel de guias para compreender e ordenar a realidade, como alguns estu-
dos sobre votações partidárias o atestam.26 De modo que, ultrapassando o
146 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

anfiteatro histórico da Convenção Nacional francesa, vemos as ideologias


políticas contemporâneas divididas por uma linha imaginária:
„ Quatro ideologias à esquerda e quatro ideologias à direita, com cada

conjunto dispondo de princípios e valores em comum;


„ A esquerda democrática e a direita clássica localizadas nos lados

oeste e leste do círculo;


„ O centro-esquerda e o centro-direita fincados ao norte, enquanto a

extrema-esquerda e a extrema-direita estão postadas ao sul.

Figura 4

A rosa-dos-ventos ideológica

Centro
social-democratas liberais

Esquerda Direita

socialistas conservadores

Esquerda democrática clássica Direita

anarquistas tradicionalistas

Esquerda Direita

comunistas fascistas
Extrema

Não existe assim um puro centro, indistinto e não adjetivado,27 nem


há uma pura posição extrema. As duas ideologias de centro, ainda que
comunguem alguns pressupostos, apresentam importantes distinções.
E o mesmo vale para as duas ideologias extremistas. Isso faz com que
nem sempre exista uma contraposição unívoca entre direita e esquerda
em seus encontros no centro e na extrema. Porque muitas vezes nuanças
complexas e convergências de opinião se entrelaçam. Nesses dois últimos
séculos, aliás, repontam oito ideologias políticas que abrigam elas próprias
correntes e variantes. Basta lembrar que, entre os comunistas da segunda
5. A cultura nas organizações 147

metade do século XX, era possível divisar marxistas-leninistas, trotskistas


de vários jaezes, maoístas, guevaristas, stalinistas, eurocomunistas, titoís-
tas, neocomunistas, todos eles se digladiando como irmãos-inimigos. A
metáfora que propomos então suporta várias linhas demarcatórias, que
serão exploradas mais adiante.

A clivagem entre as direitas e as esquerdas


Vários critérios poderiam ser alinhados para estabelecer distinções.
Há, porém, um princípio ordenador ou fundador, que resistiu à usura
do tempo e que confronta as direitas e as esquerdas. Trata-se da crença
na desigualdade natural entre os homens (direitas), em contraste com a
crença oposta na sua igualdade natural (esquerdas).28
De fato, as esquerdas reconhecem que existem desigualdades reais
apenas nas sociedades de classes. E não confundem diferenças distributi-
vas com desigualdades sociais, porque as diferenças distributivas dizem
respeito a desníveis quantitativos de:

„ Bens que diferenciam de forma muito pouco precisa ricos e pobres,


em função da multiplicidade de escalões;
„ Rendimentos que graduam estatisticamente os agentes em termos

de estratos baixos, médios e altos;


„ Escolaridade que classifica os agentes individuais por níveis de ins-

trução;
„ Prestígio ocupacional que hierarquiza os “grupos de status” em fun-

ção da dinâmica do mercado de trabalho e das opiniões correntes;


„ Capacidades, perícias e esforços pessoais dos agentes.
29

Todas essas diferenças não apagam a humanidade comum que iguala


os homens. A diversidade entre os homens, e não a desigualdade entre
eles, remete a diferentes agregados estatísticos escalonados ao longo de
um gradiente. Esses agregados não são recortados de forma discreta no
espaço social, pois, se assim fosse, formariam o que denominamos agentes
coletivos. À medida que formam estratos, não são portadores de contra-
dições, porque não comportam antagonismos nem apresentam oposições
entre interesses objetivos. Razão pela qual não têm como mobilizar-se para
intervir politicamente.30 Alguém já viu um embate confrontando as faixas
de renda entre 1 e 3 salários mínimos e as faixas de renda entre 20 e 30
148 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

salários mínimos? Obviamente não, pelo simples fato de que as diferenças


distributivas são convenções metodológicas sem efetiva repercussão sobre
a realidade social.
Todavia, e fazendo o contraponto, as desigualdades sociais pressupõem
relações assimétricas, cuja natureza é discriminadora e excludente. Essas
relações se estabelecem entre classes sociais ou entre categorias sociais, de
maneira combinada ou, às vezes, de forma isolada:

„ Relações de produção, ou de propriedade e de não propriedade


dos meios de produção, tais como as que articulam empresários e
trabalhadores, senhores feudais e servos, latifundiários e meeiros;
„ Relações de poder, ou de dominação e de sujeição, tais como as

relações que vinculam governantes e súditos, feitores e escravos,


guardas e detentos, homens e mulheres em sociedades patriarcais;
„ Relações de saber, ou de hegemonia e de conformidade, tais como

as instituídas entre pastores e fiéis, peritos e práticos, mestres de


pensamento e discípulos, médicos e pacientes.

Os efeitos conjuntos desses três tipos de relações podem gerar relações


de privilégio e de discriminação, tais como as que dividem a nobreza e o
Terceiro Estado, os patrícios e os plebeus, as pessoas normais e as pessoas
portadoras de deficiências, os brancos e os negros numa sociedade fratu-
rada pelo apartheid.31
E o caráter qualitativo das barreiras fica, por isso mesmo, bastante
claro: não se trata mais de gradações quantitativas, mas de desigualdades
sociais. Alguns dispõem do acesso a posições de poder e de prestígio e
podem usufruir com exclusividade prerrogativas, serviços, vantagens e
direitos. Isso lhes faculta a possibilidade de realizar plenamente suas facul-
dades individuais em virtude, sobretudo, de condições diferenciadas de vida.
Muitos outros, em contrapartida, sofrem interditos, estigmas, segregações e
privações insuperáveis. De maneira que o critério estamental da posição se
impõe, de forma acabada, ao critério igualitário da necessidade.
As direitas dizem que a desigualdade é um fato natural entre os agentes,
o que explica suas diferenças sociais: a hierarquia das capacidades justifica
a depreciação dos homens comuns e o privilégio dos homens de elite.
Ademais, como as desigualdades são intrínsecas à condição humana, não
há como eliminá-las, além de embutir uma virtude preciosa, a de retribuir
com justeza os feitos dos mais capazes.
5. A cultura nas organizações 149

As esquerdas, por sua vez, dizem que as desigualdades sociais são


históricas, resultados específicos de determinadas condições estruturais.
Em consequência, serão superadas nas futuras sociedades comunitárias.
A igualdade é intrínseca à condição humana, e as barreiras que as desi-
gualdades hoje erguem podem ser vencidas. Isso não equivale a dizer que
todos devam ser iguais em tudo, pois é possível ser igualitário sem ser
“igualitarista”. Afinal de contas, certas hierarquias existem em sociedades
comunitárias que, por definição, são igualitárias.32
Decorre daí que as direitas consideram o indivíduo responsável pelo
seu próprio destino, enquanto as esquerdas afirmam que a sociedade deve
se responsabilizar pelos mais fracos e, portanto, deve prover a satisfação
das suas necessidades básicas. Confrontam-se assim valores de direita, que
enaltecem a individualidade e a realização pessoal, e conferem às elites o
papel de protagonistas da história, e valores de esquerda, que enaltecem
a coletividade e a solidariedade social, e conferem às massas o papel de
protagonistas da história.33 Contra a crença numa ordem social fundada
na sobrevida dos mais fortes que as direitas propugnam, as esquerdas
consideram imperioso que pontos de partida idênticos sejam assegurados
a todos e que a remoção dos obstáculos responsáveis pela desigualdade
entre os homens seja uma preocupação primordial da sociedade.
Por fim, na sua visão de mundo, as direitas enfatizam a defesa da or-
dem e o cumprimento dos deveres. Valorizam, pois, o controle social. As
esquerdas enfatizam a conquista da justiça social e o desfrute dos direitos.
Pensam que cabe ao Estado assegurar a inclusão social da população ou
anular as disjunções entre os agentes sociais. Contrapõem-se, de um lado,
o saudosismo do passado e a crença na natureza corrompida dos homens
(direitas) e, de outro, a mística do progresso e a crença na perfectibilidade
infinita dos homens (esquerdas).
Em suma, as direitas estão convencidas de que o indivíduo deve assu-
mir as rédeas de sua própria existência e não depender dos outros para
sobreviver e vencer na vida; as esquerdas cultivam uma generosidade sem
fronteiras e crêem que a coletividade deve se obrigar a prover uma vida
digna a todos, sustentar e amparar os desvalidos.
Finalmente, uma observação de método: todas as ideologias, de es-
querda ou de direita, se situam em relação umas às outras, e nenhuma
delas pode afirmar a própria existência sem referir-se às demais, num claro
sistema de interdependências. E por quê? Porque expressam justamente
150 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

interesses de agentes coletivos inextricavelmente contrapostos, como se


verá a seguir.

Algumas ideias-chave sobre ideologias


Em primeiro lugar, é preciso desembaraçar-se do senso comum porque
este costuma:

„ Estigmatizar os anarquistas como cabeças-de-vento irrecuperáveis ou


como incendiários insanos: isso amesquinha seus ideais libertários
e não corresponde à definição acadêmica;
„ Confundir os socialistas, de índole democrática, com os comunistas

de orientação totalitária: os homens de esquerda não são necessa-


riamente “vermelhos”, bolcheviques ou carbonários;
„ Imaginar, como se faz nos Estados Unidos, que os “liberais” sejam

esquerdistas por definição, o que se choca com uma antiga e con-


sagrada tradição europeia;
„ Deixar de distinguir os conservadores dos ultraconservadores que

são os tradicionalistas, em um amálgama bem pouco esclarecedor;


„ Embaralhar os tradicionalistas e os fascistas como se, por exemplo,

os franquistas espanhóis ou os salazaristas portugueses fossem tota-


litários — tomando a liturgia militar, o folclore teatral e a retórica
de origem fascista como expressões do regime político, e não como
epifenômenos.

Em segundo lugar, é preciso entender que a rosa-dos-ventos aqui pro-


posta remete ao sistema capitalista. Vale dizer, se a mesma representação
gráfica fosse mantida, os comunistas ocupariam o lugar dos conservadores
na antiga União Soviética, já que a economia era de comando e os meios
de produção, estatais. De forma simétrica, os social-democratas ficariam
na extrema-esquerda como inimigos perigosos do sistema totalitário. E os
defensores reformistas, favoráveis a uma economia de mercado socialista,
substituiriam os socialistas democráticos na metáfora espacial anterior. De
maneira que o conteúdo efetivo ou os caracteres da topografia não são
fixos, mas devem ser adaptados aos diversos sistemas socioeconômicos.
Em terceiro lugar, eis os símbolos consagrados que identificam as ideo-
logias políticas contemporâneas.
5. A cultura nas organizações 151

Figura 5

Os símbolos das ideologias políticas


social-democratas liberais

SD

socialistas conservadores

anarquistas tradicionalistas

comunistas fascistas

Curiosamente, os símbolos mais conhecidos se limitam às ideologias


que advogam a derrubada do sistema capitalista — o socialismo, o anarquis-
mo, o comunismo e o fascismo — e são respectivamente representados:

„ Pelo punho empunhando uma rosa, até hoje adotado pela Interna-
cional Socialista — embora a maior parte dos partidos políticos a
ele filiados professe de fato um ideário social-democrata e empregue
práticas do mesmo teor;
„ Pelo famoso “A” circulado dos anarquistas, destacado numa bandeira

negra, emblema de revolta, uma espécie de anticor que nega todas


as bandeiras, ao mesmo tempo em que nega a sociedade atual;
„ Pela foice e pelo martelo, que celebra a aliança estratégica entre

camponeses e operários e coroa a bandeira vermelha, rubra como


o sangue derramado dos oprimidos;
„ Pela suástica, ou cruz gamada em fundo branco — símbolo de feli-

cidade, saudação e salvação entre brâmanes e budistas —, lançada


numa bandeira vermelha que remete às origens socialistas do partido
nacional-socialista dos trabalhadores alemães.34

As demais ideologias não possuem símbolos universalmente reconheci-


dos, talvez porque nenhuma delas tivesse se dedicado a mobilizar as ruas ou
porque nenhuma conseguisse levantar bandeiras que incendiassem as mentes
152 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

e arrebatassem os corações. Quiçá porque duas delas sejam situacionistas


e defensoras da ordem (os tradicionalistas e os conservadores) e as duas
outras sejam tão moderadas que passam ao largo dos grandes entusiasmos
populares (liberais e social-democratas). Diante disso, imaginamos figuras
que expressem suas linhas-mestras, como se fosse um exercício didático:

„ O dragão, animal de fábula, simboliza a aliança do poder e da fé e


pode representar convenientemente os tradicionalistas;
„ A árvore finca raízes no solo nativo e traduz a continuidade, a

linhagem ou a genealogia, todos esses valores cultivados pelos con-


servadores;
„ A estátua da liberdade, com sua tocha de luz, domina a paisagem

na entrada do porto de Nova York e consagra os ideais cívicos dos


liberais políticos;
„ A sigla “SD” é a da social-democracia europeia, berço do Estado de

Bem-Estar Social.

Em quarto lugar, e a título meramente introdutório, faremos um pri-


meiro esforço de clarificação das ideologias políticas e anotaremos a sua
mística nuclear:

„ Os social-democratas centram sua atenção na conquista da justiça


social, da mesma forma que os socialistas. Distinguem-se destes,
porém, pelo projeto de um welfare state, reformulado e desemba-
raçado de seu caráter burocrático e assistencialista, que no marco
capitalista venha a estabelecer uma rede eficaz de proteção social e a
assegurar a plena vigência dos direitos sociais. Sua mística, portanto,
é a do bem-estar social;35
„ Os socialistas, por sua vez, consideram que a democracia econômica

somente será alcançada através da transformação radical do sistema


capitalista, quando serão extirpados os malefícios que o acometem,
sobretudo a exploração do homem pelo homem. Concebem o Estado
como a chave para construir uma sociedade fraterna e cultivam a
mística da equidade social, em que todos desfrutem igualmente do
sobreproduto social;
„ Os anarquistas, libertários extremados, agem como defensores

intransigentes das minorias políticas (mulheres, idosos, crianças,


negros, índios, portadores de deficiências, homossexuais, desempre-
5. A cultura nas organizações 153

gados) e sonham com pequenas sociedades comunitárias e frugais,


internamente homogêneas e indivisas. Creem na espontaneidade
social, no caráter voluntário das ações e na vontade livre dos agen-
tes como meios de rejeição do autoritarismo. Têm por mística a
fraternidade universal;
„ Os comunistas veem-se como os “cientistas da revolução”, detentores

do saber que ilumina a dinâmica da história através do conhecimen-


to da luta de classes. Consagram o melhor de seu pensamento à
crítica do capitalismo e à sua superação pela via revolucionária, no
intuito de livrar a humanidade das peias da exploração econômica,
da opressão política e da alienação simbólica. Sustentam a mística
da sociedade da abundância em que todos os agentes teriam suas
necessidades satisfeitas e viveriam na igualdade e na fartura;
„ Os fascistas, com sua poesia da violência e da morte, seu culto da

força física, postulam-se como os grandes “higienizadores” da so-


ciedade, como os homens de aço capazes de limpar as estrebarias
de Augias ou de erradicar as taras sociais. Formam uma elite de
senhores ou de “super-homens” que devem submeter a seu império
todos os seres inferiores, inspirados tão somente por seus instintos
vitais. A vontade de potência serve-lhes de mística;
„ Os tradicionalistas também partilham a ideia de uma moral aristo-

crática, ou de elite, mas orientam-se, sobretudo, pelo dever, pela


ciosa obediência às tradições e aos princípios religiosos. Pretendem
moldar a política segundo as verdades reveladas pelos profetas ou
rastreadas pelos exegetas das santas escrituras. Sofrem de certo mi-
soneísmo ou de aversão a tudo quanto é novo, porque isso põe em
xeque o que está estabelecido. Sua mística pode ser resumida pela
restauração moral, intransigente e pura;
„ Os conservadores fazem da prudência, da sensatez, do equilíbrio e

da moderação suas armas principais. Não rejeitam mudanças, desde


que contribuam para atualizar incessantemente o sistema, permi-
tam adaptações às contingências e às novas demandas, estabilizem
e lubrifiquem o funcionamento da vida social e, sobretudo, não
questionem as estruturas vigentes. Sua mística pode ser expressa
pela ideia de continuidade histórica;
„ Os liberais, por fim, acreditam que o Estado deve arbitrar os confli-

tos da sociedade civil por meio das leis, mas, principalmente, deve
empenhar-se em assegurar o pluralismo — a liberdade de consciência
154 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

e a diversidade de interesses. Fazem dos direitos civis e dos direitos


políticos seu apanágio; celebram a tolerância das diferenças, a li-
berdade de pensamento, o zeloso respeito às diferenças de opinião.
Sua mística pode ser resumida pelos direitos individuais — direito
à liberdade, dignidade, vida e procura da felicidade.

Clivagens elucidativas
A metáfora espacial sinaliza algumas ambiguidades que decorrem das
vizinhanças entre correntes ideológicas. Por exemplo, o que diferencia os
anarquistas dos comunistas, se ambos são ferrenhos anticapitalistas e revo-
lucionários de pura cepa? O que distingue conservadores e tradicionalistas,
se ambos cultivam as instituições sedimentadas ao longo do tempo? Como
demarcar o espaço próprio dos conservadores e dos liberais? O que faz
dos social-democratas o que são e dos socialistas o que vieram a ser? Não
seriam os tradicionalistas protofascistas? O que separa os comunistas e os
fascistas, tão semelhantes nesse totalitarismo que dissolve as individuali-
dades num todo único?
Veremos que, além da linha imaginária clássica que divide as esquerdas
e as direitas, há outras três possíveis linhas divisórias: duas diagonais e
uma horizontal que, de forma bastante esclarecedora, seccionam a lua em
metades ou em dicotomias. Vamos explorar esses recortes.

Autoritários versus libertários


De forma simétrica àquela cisão entre as ideologias de direita e de esquerda
— operada sob a égide da igualdade — temos outra de igual importância, po-
rém de escassa divulgação. Trata-se da clivagem entre autoritários e libertários,
que não coincide absolutamente com a anterior. Com efeito, nem todas as
ideologias de direita são autoritárias — os liberais não o são — e nem todas
as esquerdas são libertárias — os comunistas não o são. Ademais, uma cau-
tela se impõe: não devemos confundir autoritarismo e autoridade política.
Enquanto o primeiro conceito se refere às formas de mando ditatoriais ou
despóticas, a autoridade política supõe o consentimento dos subordinados
e se define como poder institucional (legal e legítimo).
Ao reverso — e isso nos obriga a levar em conta a sutileza da lin-
guagem —, o “princípio da autoridade” aqui coincide com o “método de
autoridade”, impositivo e inquestionável e, nesse preciso sentido, serve de
5. A cultura nas organizações 155

eixo aos autoritarismos. Bem diferente é o “princípio da liberdade” que


se refere à consciência que os agentes têm das circunstâncias existentes e
das possibilidades que dispõem para mudá-las. Por esse princípio, somente
por meio de escolhas feitas deliberadamente e da capacidade de agir será
possível superar os problemas que o mundo real enseja.
É interessante observar que a liberdade é necessariamente um bem indi-
vidual, além de social, diferentemente da igualdade, que é sempre e exclusi-
vamente um bem social. Como nos ensina Norberto Bobbio, a liberdade é
um status da pessoa (dizer que fulano é livre faz sentido), mas a igualdade
indica uma relação entre dois ou mais agentes (dizer que fulano é igual nada
significa, mas dizer que é igual a alguém faz sentido).36 Afinal, no despotismo
apenas um é livre, os demais são servos, como escreveu Hegel.

Figura 6

As matrizes do pensamento político


social-democratas liberais

socialistas conservadores
Libertária

Autoritária
anarquistas tradicionalistas

comunistas fascistas

Duas matrizes de pensamento se estabelecem em torno dos princípios


da autoridade e da liberdade. Vejamos suas marcas registradas ou suas
ideias motoras.

Na matriz autoritária:

„ Prevalece a hierarquia das capacidades e a exaltação dos chefes


naturais;
156 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

„ Defende-se a constituição de uma sociedade elitista e orgânica, em


que cada qual desempenha “naturalmente” uma função necessária
e ocupa uma posição correspondente; no limite, temos as castas
indianas;37
„ Adota-se clara preferência por regimes políticos “de exceção”, em

que súditos são submetidos a um poder forte;38


„ Há uma busca permanente por eficácia e eficiência: a centralização

das decisões e a unidade de comando são consideradas indispen-


sáveis para a precisa execução das ordens e para o uso ótimo dos
recursos;
„ Rejeitam-se os dissidentes, inconformados, desviantes, heréticos, “in-

trusos” — sejam eles imigrantes ou refugiados, sejam eles de outras


religiões, raças e etnias —, num processo que leva, de maneira mais
genérica, à contenção política das minorias, todas tachadas como
riscos para o sistema;
„ Alimentam-se outras ideias-força como o culto da personalidade, o

poder concentrado e verticalizado, o “cupulismo” político, a defesa


da lei e da ordem, a conformidade social, a justificação da existência
de privilégios e a abordagem dos conflitos por processos impositivos
como o confronto, a vontade hierárquica, o julgamento, a arbitragem
e a cooptação.

Na matriz libertária:

„ Prevalece a autonomia de ação dos agentes e o imperativo da legi-


timidade — toda liderança deve ser periodicamente confirmada;
„ Defende-se a construção de uma sociedade aberta e pluralista, em

que cada qual possa desempenhar quaisquer funções possíveis e


possa desfrutar da dignidade de se autodirigir;
„ Adota-se clara preferência por regimes políticos “de direito”, em

que cidadãos organizados exercitam o poder, geralmente por repre-


sentação, e vigiam o respeito às liberdades democráticas;
„ Há uma busca incessante do comprometimento dos agentes e há o

empenho para que se forje algum consenso entre eles;


„ Toleram-se opositores, divergentes, contestadores, “intrusos”, o que

resulta numa proteção dos variados direitos das minorias, conside-


rados indispensáveis à dinâmica social;
5. A cultura nas organizações 157

„ Alimentam-se outras ideias-força como o culto da maioria, o poder


distribuído e descentralizado, a participação das bases, a defesa do
pluralismo, o direito de resistir à opressão, a anulação das distinções
pela universalização dos direitos e a administração dos conflitos
pela interlocução persuasiva (negociação, conciliação, mediação,
discussão interdisciplinar, consulta pública).

Com essa clivagem entre as matrizes de pensamento, traçamos uma


importantíssima linha divisória que separa anarquistas de comunistas, de
uma parte, e liberais de conservadores, de outra parte. Assim, os anarquistas
formam a ala mais radical dos libertários e os liberais sua ala mais moderada.
Por sua vez, os conservadores formam a ala mais moderada dos autoritários,
enquanto os comunistas formam sua ala mais extremada.39
Dessa sorte, se fizermos o cruzamento entre as matrizes de pensamento
e as posições ideológico-políticas, teremos simultaneamente:

„ Na extrema-esquerda comunista, uma ideologia autoritária e igua-


litária;40
„ Na esquerda anarquista e socialista, bem como no centro-esquerda

social-democrata, ideologias libertárias e igualitárias;


„ No centro-direita liberal, uma ideologia libertária e “inigualitá-

ria”;41
„ Na direita tradicionalista e conservadora, e na extrema-direita fas-

cista, ideologias autoritárias e “inigualitárias”.

Radicais versus moderados


Podemos agora resgatar outra linha divisória que cinde o hemiciclo
de oeste a leste, horizontalmente. Diz ela respeito aos meios de ação,
conjugados com as perspectivas históricas e as estratégias adotadas. Vale
dizer, remete às práticas políticas empregadas para alcançar o poder e para
mantê-lo, em consonância com o tipo de transformação que se almeja. A
oposição aqui enunciada coloca frente a frente os radicais que valorizam
a ousadia, a coragem e as virtudes guerreiras (falcões) e os moderados
que enaltecem o comedimento, a temperança e as virtudes negociadoras
(pombas).
Assim, temos os que querem mudar estrutural e inflexivelmente o
sistema atual: de um lado, os revolucionários que sonham com o futuro
158 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

igualitário; e, de outro, os reacionários que se miram num passado “ini-


gualitário”. Uns e outros utilizam meios de ação coercitivos e adotam uma
perspectiva histórica catastrófica — a história procederia por saltos quali-
tativos. Em outra vertente, temos os que querem mudar gradualmente o
sistema atual: de um lado, os reformistas que propõem realizar mudanças
de estrutura de forma aluvial, pacífica e democrática; e, de outro, os con-
tinuístas que propugnam mudanças de equilíbrio para conseguir sintonia
fina no sistema vigente. Uns e outros utilizam meios de ação persuasivos
e fincam pé numa perspectiva evolucionária da história.

Figura 7

As práticas políticas
social-democratas liberais

reformistas continuístas

socialistas Moderados conservadores

anarquistas Radicais tradicionalistas

revolucionários reacionários

comunistas fascistas

É interessante lembrar que, durante a guerra civil espanhola (1936-


1939), os radicais se engalfinharam até a morte, numa autêntica carni-
ficina: tradicionalistas e fascistas rebelaram o Exército, com apoio da
Igreja Católica, contra o governo republicano da Frente Popular, cons-
tituído por socialistas, anarquistas e comunistas. Mas a revolução social
nas ruas, promovida por anarquistas e comunistas, derrapou numa luta
fratricida entre os próprios radicais de esquerda. Por sua vez, os fascistas
acabaram alijados do poder pelos tradicionalistas, que triunfaram contra
5. A cultura nas organizações 159

todos. Criou-se um ambiente de terror com atentados indiscriminados e


perseguições sistemáticas de todos os lados, que culminaram no genocí-
dio de um milhão de pessoas: justiçamentos em massa dos “inimigos do
povo” foram levados a cabo pelos comunistas e anarquistas, vitimando
burgueses, latifundiários e padres; fuzilamentos sumários dos “inimigos
da pátria” foram perpetrados pelos tradicionalistas e fascistas, dizimando
milicianos populares e militantes das Brigadas Internacionais; a inter-
venção nazista alemã e fascista italiana testou a guerra total contra as
populações civis, arrasando aglomerações urbanas como Guernica no
“país basco”.

Arcaicos versus modernos


Uma linha divisória diagonal, agrupando de um lado os contestado-
res da ordem social capitalista, e, de outro lado, os mantenedores dessa
ordem, assumiu recentemente rótulos bastante simplificadores, opondo
“modernos” neoliberais (defensores do mercado livre) e “arcaicos” in-
tervencionistas (defensores do dirigismo na economia). Os “arcaicos”
seriam no essencial antiprivatistas, e os “modernos” seriam basicamente
privatistas. A bem da verdade, mais do que nunca, faltam modulações nessa
polarização, e seu teor nos remete às ideologias econômicas.
Os social-democratas, por exemplo, embora “modernos”, não são
neoliberais, nem convictos privatistas, nem claros defensores do capita-
lismo, embora pleiteiem a desmobilização do Estado produtor, defen-
dam a disciplina fiscal, a estabilidade de preços e taxas compatíveis de
investimento para assegurar um crescimento sustentável. Identicamente,
os anarquistas, ainda que definitivamente antiprivatistas e, portanto,
“arcaicos”, não são estatistas nem intervencionistas: quando muito ima-
ginam a regulação da economia através de um pacto entre comunidades
federadas. Por fim, os tradicionalistas não sonham exatamente com um
sistema capitalista permissivo e preferem uma sociedade regulada por
rígidos princípios morais. Todavia, diante do perigo de o sistema ser
derrubado por “radicais socialistas”, os tradicionalistas cerram fileiras e
se aliam pragmaticamente àqueles que resistem à invasão dos bárbaros. A
análise das ideologias econômicas42 esclarecerá melhor os indispensáveis
matizes que hoje dão corpo aos contestadores versus mantenedores do
sistema capitalista.
160 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

Figura 8

Contestadores versus Mantenedores


social-democratas liberais

“MODERNOS”
privatistas

socialistas conservadores

anarquistas “ARCAICOS” tradicionalistas


antiprivatistas

comunistas fascistas

Partidos pragmáticos versus partidos ideológicos


Iremos agora nos permitir algumas licenças que trarão benefícios
pedagógicos para o entendimento das relações e das demarcações entre
as ideologias. São licenças porque, em função da riqueza que toda histori-
cidade embute, resgatam tão somente tendências ou ênfases. Assim, vista a
clivagem precedente sob o prisma dos partidos políticos, verificamos que
os contestadores do sistema capitalista constituem geralmente partidos
ideológicos. Isto é, partidos programáticos e portadores de um projeto de
sociedade. Por sua vez, os mantenedores do sistema tendem a constituir
partidos pragmáticos. Ou seja, partidos movidos pelo jogo do poder e pela
vontade de sustentar ou de aperfeiçoar a sociedade atual.
Os partidos pragmáticos costumam ter por base partidária um ele-
mento estrutural que Maurice Duverger caracterizou como “comitê” em
obra clássica, e que os anglo-saxões designam como caucus.43 Trata-se de
um agrupamento restrito e seletivo de notáveis, escolhidos em razão de
sua influência. O recrutamento dessas figuras representativas, ou dessas
pessoas gradas, se faz por indicação ou por cooptação. O comitê opera
numa base geográfica geralmente ampla e não se dedica ao proselitismo
(propaganda e pedagogia política). Assume caráter semipermanente, dada a
intermitência de sua atividade. Isso significa que esse tipo de partido entra
em ebulição nos períodos eleitorais, com febres ativistas e cai em letargia
5. A cultura nas organizações 161

ou hiberna na entressafra. Antes de tudo, consiste numa máquina eleitoral


sazonal e bastante descentralizada, formando uma espécie de federação
partidária. Assim, sob a égide do “comitê”:
„ Os conservadores costumam agregar clientelas que gravitam em
torno de personalidades políticas e que a elas ficam vinculadas por
relações de favor;
„ Os tradicionalistas formam ligas e configuram relações de tutela, em

que as lideranças subordinam política e simbolicamente séquitos,


igrejas e seitas;
„ Os liberais mantêm como bases de apoio círculos (centros de pen-

samento, clubes de serviços, ligas de comerciantes, sociedades bene-


ficentes, associações culturais, academias filosóficas) e estabelecem
com eles relações de cooptação;
„ Os social-democratas fazem o mesmo com associações da sociedade

civil (associações profissionais ou comunitárias, movimentos sociais,


sindicatos, cooperativas, fundações, organizações não governamen-
tais, entidades de serviços sociais, de ajuda mútua, comunidades
religiosas, comissões de defesa dos direitos do cidadão ou dos con-
sumidores, institutos acadêmicos ou de pesquisa) e mantêm com
elas relações de representação.
Nisso tudo, é importante saber que a representatividade dos notáveis
decorre de uma delegação, seja como elites tradicionais definidas pelo
nascimento ou pela posição alcançada, seja como elites institucionais
estabelecidas pela confiança de agrupamentos de base.
Os partidos ideológicos, por sua vez, oferecem uma configuração que
batizaremos genericamente de “núcleo”. Dependendo do tipo de ideologia,
o núcleo ganha contornos e maneiras diversas de operar. Ele é formado por
militantes ou por delegados de entidades populares. Funciona em termos
permanentes e se dedica com afinco ao proselitismo. Parte do pressuposto
que a transformação da sociedade requer uma capacidade organizacional
e administrativa que os trabalhadores, ou as classes subalternas, deverão
adquirir. Isso legitima o “substituísmo” praticado pelas cúpulas formadas
por intelectuais, técnicos ou burocratas e se coaduna com uma visão
“vanguardeira” — somente os quadros partidários poderão realizar os
objetivos históricos dos agentes representados. Entre os anarquistas e os
socialistas, cabe observar, o “substituísmo” tem menos peso, num claro
contraste com os comunistas e os fascistas.
162 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

Os socialistas, por exemplo, inventaram a “seção”. Diferentemente


do comitê, ela:

„ Faz necessariamente parte de um todo centralizado e sua existência


isolada não é concebível;
„ Mantém as portas abertas para o ingresso de novos militantes, donde

seu caráter amplo e aberto;


„ Dedica-se ao recrutamento para engrossar suas fileiras, sem estabe-

lecer rigorosas exigências para tanto;


„ Ocupa uma base geográfica mais estreita que o comitê, nos bairros

ou nos distritos;
„ Funciona de modo permanente, já que mantém atividades no inter-

valo das eleições, sobretudo voltadas para a educação política;


„ Dispõe de uma hierarquia que opera como órgão executivo;

„ Assume seu papel de representante das massas, em vez de expres-

sar politicamente as classes proprietárias — empresariado ou lati-


fundiários.

Os comunistas, por sua vez, inventaram a “célula”. Essa forma orga-


nizacional:

„ Repousa mais sobre uma base profissional (células de empresas) do


que sobre uma base local (células de bairro ou de município, por
exemplo);
„ Desenvolve atividades quase diárias, donde a acentuada permanência

no tempo;
„ Conecta cada reivindicação profissional, no âmbito da empresa, a

um princípio geral de natureza doutrinária, proporcionando sólida


formação ideológica a seus quadros;
„ Reúne um grupo de membros bem menor do que a seção e acaba

tecendo forte solidariedade partidária e até interpessoal;


„ Recruta os novos adeptos fazendo-os passar por um crivo, pois forma

quadros;
„ Não inscreve simpatizantes no partido, senão nas “organizações de

massa”;
„ Visa a organizar uma competente vanguarda para fazer a revolução,

em boa parte profissional — revolucionários puros como cristal e


duros como aço;
5. A cultura nas organizações 163

„ Acomoda-se perfeitamente à ação clandestina, dado o projeto re-


volucionário do partido, que não se molda à ação parlamentar e
eleitoral;
„ Estabelece a obrigatoriedade do comparecimento às reuniões, a

cotização compulsória para sustentar os funcionários do partido e


a rígida fidelidade ao programa e às decisões partidárias;
„ Converte-se numa poderosa ferramenta de agitação, de propaganda

e de ação revolucionária, pois o partido é o braço da classe traba-


lhadora, que tem um destino histórico traçado e grandioso.

Os fascistas inventaram a “milícia” que:

„ Submete seus membros a uma disciplina e a uma frequência de


exercícios e de treinamentos tipicamente militares, formando assim
um partido paramilitar;
„ Uniformiza seus milicianos e obriga-os a portar insígnias, a desfilar

em marcha cadenciada e a carregar estandartes, a saudar-se com


um gesto característico (geralmente o braço estendido em forma de
juramento), a formar pelotões de combate ainda que os membros
permaneçam civis e a marchar ao som de músicas e de dobrados,
com pompa e ritual;
„ Verticaliza a estrutura ao assentá-la numa vasta quantidade de pe-

quenas unidades que, agrupadas, formam uma pirâmide;


„ Organiza lideranças atuantes e lhes fornece os meios para agir com

violência e dominar as ruas, com vistas a tomar de assalto o poder


e conservá-lo de forma brutal;
„ Constitui-se como uma ordem de combatentes e de crentes, uma

fortaleza que desfruta de apoio nas massas, uma organização rígida que
uma obediência cega anima e que uma vontade fanática inspira.

A milícia foi também adotada por partidos comunistas, da mesma forma


que os partidos fascistas adotaram as células. Assim sendo, nenhum deles se
compôs exclusivamente de milícias ou de células. Além do mais, na fase da
conquista do poder, os fascistas lançaram mão das eleições e do trabalho
parlamentar para acumular forças, como também o fizeram os comunistas.
Todavia, o objetivo não consistia em atuar no quadro da democracia repre-
sentativa, mas em usá-la para melhor destruí-la.
164 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

Figura 9

A concepção de partido
social-democratas liberais
(associações) (círculos)

pragmáticos
socialistas (comitês) conservadores
(seções) (clientelas)

ideológicos
anarquistas (núcleos) tradicionalistas
(coletivos) (ligas)

comunistas fascistas
(células) (milícias)

Por último, os anarquistas:

„ Não demonstram interesse por estruturas partidárias e preferem dar


as costas ao jogo político;
„ Formam conselhos para realizar a revolução socialista, aqui e agora;

„ Agrupam-se em “coletivos”, pequenas comunidades autogeridas que

se reúnem em assembleias e exercitam a democracia direta;


„ Consideram-se uma vanguarda sem chefes, descentralizada, auto-

determinada, assentada no apoio mútuo e fruto da ação espontânea


das massas;
„ Fazem da luta contra o autoritarismo sua pedra de toque, donde a

ausência de hierarquia e de burocracia interna;


„ Almejam construir, desde já, uma sociedade autogestionária.

Um processo social explicativo


Vamos capturar agora um processo social explicativo que permeia as
ideologias políticas ao mesmo tempo em que as diferencia:

„ Comunistas e fascistas enfatizam o antagonismo entre classes, raças


ou nações, propugnam um jogo de soma zero que muitas vezes resulta
5. A cultura nas organizações 165

num jogo de soma negativa, quando os oponentes se digladiam até


a exaustão;
„ Tradicionalistas e conservadores sublinham a luta pela vida e a

competição entre os homens, distinguem os melhores ou os mais


fortes — à maneira darwinista social —, justificam a obtenção de
privilégios e patrocinam também um jogo de soma zero;
„ Liberais e social-democratas sustentam a ideia da emulação, que não

restringe o número de “ganhadores” e não estabelece hierarquia en-


tre eles; preconizam um processo em que cada qual procura superar
a si mesmo, tendo os outros como quadro de referência, num jogo
de soma positiva;44
„ Socialistas e anarquistas assinalam a cooperação como o processo

social que deveria estruturar todas as relações sociais e deveria res-


gatar a harmonia comunitária destruída pela sociedade de classes,
num jogo que é também de soma positiva, quando não, pelo menos,
de soma igual ou da busca do empate.45

Figura 10

Um processo social explicativo


social-democratas liberais

emulação

socialistas conservadores

cooperação competição

anarquistas tradicionalistas

antagonismo

comunistas fascistas

Os valores cruciais
Nessa mesma linha de raciocínio, é interessante destacar que alguns
valores cruciais iluminam as ideologias como verdadeiras chaves axioló-
gicas. A saber:
166 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

„ Conservadores, tradicionalistas e fascistas consideram vital manter


a ordem, sob a batuta de homens superiores (personalides de escol
ou líderes naturais);
„ Socialistas, anarquistas e comunistas anseiam por igualdade entre

os homens, conquista que as massas efetivam com sua mobilização


permanente;
„ Liberais e social-democratas conferem à liberdade o estatuto de bem

supremo, a ser cultivado e defendido incessantemente pelos cidadãos


organizados (sociedade civil).

No entanto, embora haja ênfases diversas entre as ideologias, tentativas


de tornar compatíveis a liberdade e a igualdade foram feitas. Medidas iguali-
tárias foram introduzidas em vários países da Europa Ocidental para limitar
a liberdade pessoal. Por exemplo, a escola primária e secundária única visou
a igualar os pontos de partida. O serviço militar obrigatório se converteu em
cadinho em que todas as classes sociais foram lançadas e irmanadas. Assim
como a obrigação de, nos primeiros anos de sua adolescência, todos os jovens
usarem transporte público ou realizarem trabalhos manuais. E, pela força
da moda, o uso de roupas idênticas para todos. Sem dúvida, essas medidas
limitadoras acabaram negando liberdade de escolha aos bem nascidos. Mas
foram apresentadas como um meio de assegurar a mesma liberdade a todos,
uma vez que pretendiam igualar o usufruto de direitos.

Figura 11

As chaves axiológicas
social-democratas liberais

liberdade

socialistas conservadores

igualdade ordem

anarquistas tradicionalistas

comunistas fascistas
5. A cultura nas organizações 167

No extremo oposto, aqueles que se consideram superiores por natureza


ou por mérito procuram acentuar suas diferenças e rejeitam sumariamente
quaisquer medidas que limitem o livre desabrochar da desigualdade que repu-
tam natural. Para tanto, sua estrela polar é a ideia do gueto e da exclusão.

Retóricas versus práticas


Há ainda outra curiosidade notável. Por trás da retórica doutrinária,
as práticas políticas percorrem caminhos paradoxais que levam ao “subs-
tituísmo”. Quer dizer, as ideologias falam “em nome” de determinados
agentes coletivos. Porém, uma vez alcançado o poder, os beneficiários
acabam não sendo os agentes cujos interesses serviram de bandeira ou de
lastro original, numa espécie de reprodução ampliada da “lei de ferro”
de Robert Michels. Assim:

„ Comunistas e fascistas falam em nome dos trabalhadores (a denomi-


nação “partido nazista” corresponde ao partido nacional-socialista
dos trabalhadores alemães) e implantam efetivamente uma revolução
de gestores;
„ Tradicionalistas e conservadores afagam os pequenos proprietários

nos livros didáticos e na hagiografia cívica — autônomos que labutam

Figura 12

“Substituísmo” ideológico
social-democratas liberais

CIDADÃOS
(empresários
e gestores)
socialistas conservadores

SUBALTERNOS AUTÔNOMOS
(trabalhadores (empresários e
e autônomos) latifundiários)

anarquistas tradicionalistas
TRABALHADORES
(gestores)

comunistas fascistas
168 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

de sol a sol, coadjuvados por seus familiares —, louvam sua obsti-


nação para poupar e para produzir riquezas, mas alçam realmente
ao pódio os interesses dos empresários e dos latifundiários;
„ Liberais e social-democratas posicionam-se como os grandes arautos

da cidadania, colocam os interesses públicos acima de tudo, só que,


uma vez no comando, acabam beneficiando empresários, gestores
“modernos” e trabalhadores altamente qualificados;
„ Socialistas e anarquistas digladiam-se em nome dos subalternos,

à procura de uma vasta frente democrático-popular que reuniria


todos os oprimidos e deserdados, mas, a despeito de sua pregação,
privilegiam especialmente os trabalhadores e os autônomos.

Interesses reais versus proclamados


Em consonância com essa última clivagem — e novamente sem conferir
crédito em demasia às proclamações ideológicas —, devemos rastrear as
ambivalências quanto aos interesses que acabam prevalecendo efetiva-
mente:
„ Comunistas e fascistas, embora digam que pugnam pelos interesses

gerais da humanidade, da nação ou da raça, colocam os interesses


corporativos dos membros do Partido Único acima de quaisquer
outros;
„ Tradicionalistas e conservadores, embora afirmem que só visam a

satisfazer aos interesses nacionais, projetam os interesses privados


acima dos demais;
„ Liberais e social-democratas estipulam que os interesses públicos

devam sempre prevalecer, mas acabam favorecendo interesses se-


toriais, sejam eles privados, sejam eles corporativos;
„ Socialistas e anarquistas exaltam a necessidade de viver numa so-

ciedade que tenha forte coesão e consenso espontâneo, donde a


defesa dos interesses comunitários, mas conferem prevalência aos
interesses dos pequenos proprietários e dos trabalhadores.46

Notas
1. Os símbolos são formados por três elementos: um significante ou algo que toma o lugar de outro
elemento (por exemplo, a estátua equestre do Duque de Caxias); um significado ou aquilo que
foi substituído (o próprio Duque de Caxias); a significação ou a relação entre o significante e
o significado (a figura histórica do Duque de Caxias como Patrono do Exército e comandante
5. A cultura nas organizações 169

vitorioso de muitas batalhas). Ernst Cassirer, aliás, definiu o homem como “animal simbólico”,
não só por representar as coisas por palavras e conceitos, mas também por ser capaz de manipular
a realidade de modo simbólico.
2. Saber não se confunde com ciência. Trata-se de um conjunto de aquisições intelectuais, de
evidências ou de informações mais ou menos sistematizadas e que podem ser transmitidas por
um processo pedagógico. Assim, em relação à ciência, o conceito de saber assume muito maior
abrangência e generalidade e não supõe necessariamente um discurso demonstrativo.
3. Eis alguns exemplos de evidências ideológicas, irrespondíveis porque enunciados como crenças
ou atos de fé: os olhos não mentem, o sol é um disco menor que a Terra e gira em torno dela; as
mulheres são naturalmente inferiores, porque os homens são mais fortes fisicamente e a Bíblia
consagra tal estatuto; os judeus são sovinas, porque está em seu sangue, todos sabem disso; os
negros são preguiçosos por natureza, basta olhar para eles; os caboclos são indolentes, porque
esta é a sina dos mestiços; duas coisas faltam aos brasileiros — educação e vergonha na cara.
4. Somente a ciência produz conhecimentos: os demais saberes são apreensões do mundo ou
cognições com outro teor, como será visto logo adiante. Quando se diz, por exemplo, “existem
oportunidades iguais para todos”, reconhece-se que no sistema capitalista os canais de ascensão
social estão abertos, de forma radicalmente diferente do que acontece nas sociedades de castas e
nas sociedades estamentais. Mas desconhece-se o fato de que os pontos de partida na “luta pela
vida” são desiguais: o filho de um favelado não tem as mesmas condições objetivas que os filhos de
empresários ou de gestores para aproveitar boa parte das oportunidades abertas. E por que isso?
Por causa do déficit educacional que ele acumula, pela pobreza de seu repertório simbólico, pela
carência de recursos econômicos e até pela falta de um competente “capital de relações sociais”.
Não incorporar explicações que tenham base empírica e que estejam abertas a críticas significa
validar o discurso ideológico. Outro exemplo: quando se acredita que o preço das mercadorias
resulta tão somente da relação entre oferta e procura no mercado, desconhece-se o processo de
produção e a participação do trabalho na formação do valor. Ou ainda, quando se olha um bastão
enfiado na água pela metade, ele parece quebrado: reconhece-se a evidência, mas desconhece-se
o fenômeno da refração do bastão sobre ele mesmo. Eis então a distância que separa a ilusão ide-
ológica do conhecimento científico: o conhecimento da realidade não é acessível imediatamente;
só pode ser estabelecido pelo raciocínio e pela investigação sistemática.
5. Tal paradigma é contestado pelo racionalismo-crítico de Karl Popper, que advoga o princípio
da falsificação e sentencia que as proposições devam ser testáveis. Para Popper “uma proposição
torna-se ‘falsificável’ desde o momento em que aparece um enunciado observacional capaz de
contradizê-la, isto é, a partir do momento em que podemos deduzir, desta proposição, a negação
de um enunciado observacional. Assim, a proposição universal ‘todos os cisnes são brancos’ não
é verificável, mas falsificável. Em contrapartida, a proposição existencial ‘há corvos brancos’ não
é falsificável, mas verificável” (Japiassu, Hilton. Introdução ao Pensamento Epistemológico. Rio
de Janeiro: F. Alves, 1977, p. 94).
6. Chauí, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Editora Ática, 1994, p. 251.
7. Muitas pessoas, porém, não sendo especialistas, tratam os conhecimentos científicos como caixas-
pretas, isto é, os endossam confiando na autoridade dos peritos ou dos cientistas. Quando muito,
e se a teoria se prestar a tanto, fazem alguns testes parciais para verificar se há concordância entre
a teoria e a experiência do dia a dia.
8. As espécies têm naturalmente um “campo perceptivo”, uma relação complexa entre elas mesmas e
os objetos percebidos: as aves de rapina, os olhos do sapo ou do gato percebem as coisas de forma
diversa. Entre os homens, a diferenciação não é só de ordem natural, mas é também cultural: os
caiçaras vêem cardumes no mar que nenhum citadino enxerga; os esquimós apreendem centenas
de matizes no branco da paisagem; a noção de tempo para os homens do campo, pautada pelas
estações e pelo ritmo das semeaduras e das colheitas, é radicalmente diversa da dos trabalhadores
industriais, pautados pelo relógio e pelas fichas do controle da produção. Quaisquer evidências
são, portanto, aprendidas: primeiro “reconhecemos” os eventos, depois os “conhecemos”. Sem
noções e conceitos prévios, não conseguimos distinguir os fenômenos e passamos batidos: olha-
mos, mas não vemos; ouvimos, mas não escutamos; respiramos, mas não cheiramos; provamos,
mas não degustamos; tocamos, mas não sentimos.
170 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

9. Ver Chauí, Marilena. Op. cit., pp. 314-333. Diz a autora: “a arte é concebida como expressão,
transformando num fim aquilo que para as outras atividades humanas é um meio. É assim que
se diz que a arte faz ver a visão, faz falar a linguagem, faz ouvir a audição, faz sentir as mãos
e o corpo, faz emergir o natural da Natureza, o cultural da Cultura. Aqui, a arte é revelação e
manifestação da essência da realidade, amortecida e esquecida em nossa existência cotidiana,
reduzida a conceitos nas ciências e na Filosofia, transformada em instrumento na técnica e na
economia”.
10. É interessante distinguir cultura de civilização: enquanto a cultura está sempre associada a uma
coletividade identificável (sociedade, região, cidade, classe social, categoria social, organização)
e pode ser dividida em subculturas que discriminam componentes de uma dada formação social, a
civilização designa um conjunto mais vasto, abrange várias sociedades humanas e abarca inúmeras
culturas. É nesse preciso sentido, por exemplo, que se fala de civilização ocidental, composta pelas
culturas anglo-saxônicas, latino-americanas, alemã, latinas, escandinava etc.
11. Adaptação não significa conformismo passivo, mas também variâncias e inovações. A aceitação
dos padrões culturais vigentes não congela as possibilidades de modificá-los, em particular nas
sociedades contemporâneas.
12. Um bebê dos morros cariocas, adotado e educado na Itália ou na Suécia, se comporta como italiano
ou sueco em quaisquer circunstâncias e não apresenta qualquer resquício de sua origem. A tolice
de que o “gingado”, por exemplo, “está no sangue” pode ser facilmente refutada quando um
jovem desses é convidado a dançar samba — sua falta de “molejo” ou de jogo de cintura então
se torna patente e risível.
13. Eis padrões culturais que os brasileiros repudiam: a mutilação do clitóris das moças púberes
entre muçulmanos africanos e a poligamia islâmica; o infanticídio dos bebês femininos entre os
chineses ou a redução dos pés das mulheres chinesas para fins estéticos; a antropofagia entre os
tupinambás e a couvade indígena; a morte consentida dos velhos esquimós, devorados por ursos
brancos, quando se tornam bocas inúteis. Em contrapartida, padrões brasileiros deixam outros
povos inconformados: a corrupção endêmica e a “cultura da esperteza”; o descontrole inflacioná-
rio que perdurou durante décadas; a predominância das relações pessoais em relação às relações
contratuais; o vezo do bacharelismo burocrático; o cipoal inextricável de leis e regulamentações;
e o jeitinho para dar conta desses processos kafkianos.
14. O moral costuma ser baixo quando há frustração ou barreiras à satisfação de necessidades, e
costuma ser alto quando as necessidades são satisfeitas ou tendam a sê-lo. Por exemplo, depois
de um aumento salarial ou de uma distribuição de bônus, melhora significativamente o clima
organizacional. O contrário ocorre quando há demissões ou quando algumas atividades são
terceirizadas, com o consequente remanejamento de áreas e de posições.
15. Birnbaum, Norman. “L’étude sociologique de l’idéologie (1940-1960)”, in La Sociologie Con-
temporaine. Londres: Basil Blackwell, 1962, vol. IX.
16. Gurvitch, Georges. La Vocation Actuelle de la Sociologie. Paris: Presses Universitaires de France,
1963, vol. II, pp. 287-288. Raymond Boudon, em sua obra A Ideologia (São Paulo: Editora
Ática, 1989, p. 56), conclui com respeito à teoria da ideologia de Marx: “Concordaremos sem
dificuldades em classificar esta teoria geral como irracionalista: os homens adotam, à sua revelia,
ideias falsas porque são movidos por forças inconscientes que escapam a seu controle e que os
submetem, seja a seus interesses (no caso dos dominantes), seja aos interesses dos dominantes
(no caso dos dominados).”
17. Weltanschauungen para os alemães e outlooks para os anglo-saxões.
18. A natureza dos homens e da sociedade, as relações entre os agentes sociais, as relações entre
os homens e o meio ambiente, a interpretação da história, o sentido da vida e o critério da
verdade.
19. Cada qual vê a sociedade e vive nela em perspectiva, isto é, segundo a perspectiva particular que
tem dela, em decorrência do lugar que ocupa, das funções que desempenha e das vantagens de
que usufrui (Rocher, Guy. Op. cit., vol. 4, p. 268).
20. Não é à toa que os secretários ideológicos dos partidos comunistas foram chamados “agitpro”
(secretários de agitação e propaganda) e que os diferentes veículos da mídia chegam a expressar
diversas correntes de opinião.
5. A cultura nas organizações 171

21. O Partido Social Democrata alemão, no Congresso de Godesberg, em 1957, enunciou claramente
sua ruptura com o socialismo e abandonou o marxismo como base doutrinária.
22. A corrente formava um Clube que se reunia num antigo convento de dominicanos ou jacobinos;
daí a denominação.
23. É interessante lembrar que parte considerável dos militantes do Partido Comunista Alemão aderiu
ao Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (Nazista), após a subida ao poder de
Hitler. Movimento inverso ocorreu na Alemanha Oriental quando as tropas soviéticas acabaram
impondo o socialismo estatista. Depois do desmonte da União Soviética, em 1991, a Frente de
Salvação Nacional, articulada na Rússia contra os reformistas, arautos da economia de mercado,
reuniu comunistas, fascistas e czaristas (tradicionalistas), numa frente ampla de extremistas.
24. Ver o Capítulo 2 no tocante ao desenvolvimento do capitalismo social.
25. Essa concepção já se encontra em duas obras anteriores do autor: A Política dos Anos 70 no Brasil.
São Paulo: Econômica Editorial, 1982, pp. 60-61, e Classes, Regimes..., pp. 247-286.
26. Ver, por exemplo, a análise das votações ocorridas entre 1988 e 1994 na Câmara dos Deputados
brasileira, realizada pelos cientistas políticos Argelina Figueiredo e Fernando Limongi, pesquisa-
dores do Cebrap — Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Os resultados mostraram que
os partidos políticos daqueles anos críticos não eram peças de ficção, a filiação partidária dizia
muito a respeito do voto provável do parlamentar, as votações tendiam a dividir o plenário de
acordo com os padrões ideológicos clássicos e que estes eram claramente identificáveis (Folha
de São Paulo, 17 de julho de 1995). Contudo, na primeira década do século XXI, o populismo
bonapartista dos dois governos do presidente Lula amalgamou o velho clientelismo patrimonialista
com o sindicalismo corporativista. Em decorrência, os partidos políticos acabaram ideologica-
mente emasculados, dando momentaneamente razão aos detratores das ideologias (pelo menos
no Brasil).
27. Para os homens de esquerda, quem se diz de centro costuma camuflar opiniões de direita. No
Brasil, muitos dos políticos de direita rotulam a si próprios como centristas, espicaçados pela
influência que a intelligentsia das décadas de 1950 e 1960 legou, sendo ela então majoritariamente
de esquerda, o que tornou pejorativa a denominação “direita”. Em contrapartida, os direitistas
chegam a desconfiar do centro, considerando-o uma espécie de disfarce para os esquerdistas que
não se assumem.
28. O critério é clássico e foi avalizado por Norberto Bobbio que considera a direita e a esquerda
como termos antitéticos, além de excludentes (ninguém pode ser simultaneamente de direita e de
esquerda) e exaustivos, a saber, uma doutrina ou um movimento só pode ser ou de direita ou de
esquerda. (Direita e Esquerda: razões e significados de uma distinção política. São Paulo: Editora
da Universidade Estadual Paulista, 1995.)
29. As diferenças sociais não são desigualdades sociais. Confundir esses dois tipos de conceitos leva
a inúmeras aberrações e a pseudo-argumentos que são discriminatórios, porque a igualdade não
corresponde ao nivelamento ou à indistinção: ser igual não significa apenas ter direitos idênti-
cos ou alcançar amplo respeito às suas peculiaridades. Porque há desigualdade social quando o
acesso real aos meios de produção for franqueado a uns e vedado a outros, quando alguns têm
seus interesses defendidos pelo Estado em detrimento de outros. Isso produz a fratura em classes
sociais e um desfrute amplamente diferencial dos meios de subsistência. Por exemplo: deixar de
discriminar as mulheres no processo de seleção para um emprego, na promoção dentro da carreira
profissional ou na remuneração que auferem, não lhes confere por si só igualdade; é também
preciso assegurar-lhes a licença-maternidade e o acesso a uma creche para seus filhos pequenos.
De modo que a igualdade também passa pelo reconhecimento e pela validação das diferenças;
supõe a vigência prática de estatutos e de interesses diferenciais. A igualdade existe à medida
que “as diferenças não mais fazem diferença”. Para tanto, é indispensável que todos tenham os
mesmos pontos de partida e que as diferenças individuais ou sociais não se traduzam em acessos
distintos às condições de existência social. Ver mais adiante a nota 32.
30. Nem chegam a constituir o famoso “saco de batatas”, formado pelos camponeses franceses da
época de Napoleão III, na acepção historicista de Marx. Ou seja, não são um agrupamento que
padece de consciência de classe, embora possua condições objetivas para desenvolvê-la. Nem muito
172 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

menos formam os “quase-grupos” de Ralf Dahrendorf, porque não dispõem de interesses latentes
que se transformariam em interesses manifestos. E quando isso ocorre? Se tomarem consciência
de sua especificidade e se fundarem um movimento com um programa explícito de ação. Ou seja,
os agregados estatísticos não possuem interesses objetivos que os contrapõem empiricamente a
outros agrupamentos.
31. É possível pensar num “sistema de apartheid social” em que os privilegiados criem espaços ex-
clusivos, deixando os espaços públicos para a população carente: a escola pública, a segurança
pública, a saúde pública, o transporte público, a previdência social. Ficam então os privilegiados
encastelados em seus condomínios fechados e policiados, trafegam em automóveis com portas
trancadas e janelas fechadas, ou em veículos blindados, negociam com organizações que dispõem
de segurança própria, estudam em escolas privadas, filiam-se a empresas de medicina de grupo ou
a companhias de seguros-saúde, e aderem aos planos de previdência privada. Como muito bem
diz Roberto Pompeu de Toledo: “Os ricos criam seus sistemas particulares. E o que é público fica
reservado aos pobres, como se fosse uma benemerência do Estado, uma obra de caridade, não
um serviço a retribuir pelos impostos pagos. O resultado não é apenas que os dois lados nunca
se cruzam, pois a um deles reservou-se um espaço exclusivo. É também que a escola pública, o
hospital ou o transporte público ficam condenados a serviços de segunda classe, privados que
foram das pressões de quem mais influência tem na sociedade. Se os ricos tivessem de usá-los, o
padrão de exigência sobre eles seria outro” (Revista Veja, 22 de maio de 1996). Aqui é preciso
entender que ricos e pobres, embora sejam denominações distributivas e fluidas, dão a impressão
que se convertem em estamentos, justamente em função das segregações estabelecidas entre eles.
Basta olhar para o cotidiano daqueles que padecem dos entraves e das carências, dos bloqueios
e das violências que alguns poucos não sofrem. Por exemplo, as esperas nas filas e os longos
tempos de percurso nos transportes coletivos, lentos e precários (e isso desde que possam pagar
o preço das passagens, pois, caso contrário, eles se locomovem a pé); a insegurança e o medo
incessantes nos cortiços ou nos barracos das favelas, em que reinam quadrilhas de valentões ou
de traficantes de drogas; a carência de água potável, de esgotos, de coleta de lixo, de sanitários,
de chuveiros e de privacidade; as horas de angústia e de dor nas salas de espera dos postos de
saúde superlotados e dos hospitais públicos, somadas aos atendimentos desleixados e muitas
vezes ineptos; a ausência de policiamento nos bairros periféricos e o estigma da pobreza que
transforma cada qual em suspeito de ofício aos olhos dos policiais; a falta de equipamentos de
lazer e de esportes, convertendo os bares em locais de entretenimento, de desavenças e de morte;
as escolas depredadas, com professores volantes, desmotivados e medíocres, seguindo currículos
esquizofrênicos. Em suma, essas são faces de marginalização e de horror, que lembram muito os
universos concentracionários que os regimes totalitários edificaram.
32. Reiterando: o respeito às diferenças naturais (de gênero, etnia, compleição, idade) e às diferenças
individuais (diversidade nas capacidades, nos fins almejados e no empenho para alcançá-los)
correspondem à conquista de direitos democráticos. Melhor ainda: correspondem a passos para
tornar plenas as liberdades, mas não esgotam necessariamente a problemática da igualdade social.
Pois esta significa acesso não diferenciado aos meios de subsistência, além de irrestrito exercício
dos direitos civis, políticos e sociais que a cidadania pressupõe.
33. Com exceção dos anarquistas, as esquerdas sempre consideraram o aparelho de Estado como o
grande instrumento para a promoção de transformações sociais ou, pelo menos, para a redistri-
buição de renda, de maneira que caberia às massas apoderar-se dele.
34. Os fascistas italianos portavam camisas negras e seu símbolo era o feixe de varas (fascio em italiano)
dos antigos lictores romanos, oficiais que acompanhavam os magistrados e andavam munidos de
uma machadinha para as execuções da justiça. Acontece que, pela preeminência do poderio alemão
e de suas conquistas territoriais, o símbolo nazista acabou representando a extrema-direita.
35. A Holanda, por meio de políticas de desregulamentação e de um pacto social, poderia servir
de modelo na Europa. Em vez de altos impostos e de enormes benefícios pagos pelo sistema de
seguridade social, promoveu ampla criação de empregos e baixa generalizada dos custos sociais;
tornou facílimo abrir uma empresa. Escreve Pepe Escobar, a partir de um estudo publicado pela
Economist Intelligence Unit (Gazeta Mercantil, 22 de maio de 1997): “O sucesso do modelo ho-
5. A cultura nas organizações 173

landês representa uma sintonia fina: uma certa liberalização da economia acoplada com algumas
modificações no ‘welfare state’. Criou-se assim uma espécie de terceira via — calvinista? — entre
o velho modelo europeu e o neoliberalismo norte-americano.”’
36. Bobbio, Norberto. Op. cit., pp. 115-116.
37. Embora os comunistas não defendam formalmente tal ideia, o assalto ao poder (o Partido Comunista,
seguindo os ensinamentos de Lênin, é uma vanguarda operária, uma elite de puros e duros formada
por profissionais da revolução), bem como as práticas vigentes no socialismo real desembocaram
nesse tipo de sociedade orgânica, com uma nomenklatura reinando soberana.
38. Isso significa que a ditadura, nas suas vertentes totalitárias e autoritárias, se contrapõe à democracia
quer representativa, quer participativa.
39. Ainda que no pensamento original do marxismo-leninismo a violência deva apenas resumir-se ao
período da ditadura do proletariado — após o quê o Estado deveria definhar em paralelo com a
extinção das classes sociais —, o socialismo real sempre manteve um pensamento autoritário.
40. Norberto Bobbio denominou de “utopia invertida” o fracasso do socialismo real. Escreveu a
esse respeito: “Ocorreu-me, não há muito tempo, de falar, a este propósito, de ‘utopia invertida’
após ter constatado que uma grandiosa utopia igualitária, a comunista, acalentada por séculos,
traduziu-se em seu contrário na primeira tentativa histórica de realizá-la” (Op. cit., p. 123).
41. Os liberais toleram as disparidades de renda, riqueza e escolaridade e até chegam a considerar a
desigualdade um “efeito colateral de uma economia produtiva” (S. Holmes, citado por Norberto
Bobbio. Idem, p. 127).
42. No capítulo intitulado “As ideologias econômicas”.
43. Duverger, Maurice. Os Partidos Políticos. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970, pp. 39-96.
44. Um bom exemplo da emulação é a da distribuição de conceitos nas salas de aula: não há lugar
para o primeiro colocado ou para o primeiro da classe à moda antiga, porque todos podem atin-
gir o melhor conceito; as posições prestigiadas ou vantajosas não ficam restritas a um número
determinado de agentes, porque há tantas posições quanto proponentes que possam alcançá-las.
Um autêntico jogo de soma positiva corresponde à convergência dos interesses gerais, grupais e
pessoais. Uma ilustração sugestiva é a da coleta de lixo nas cidades: ganham todos os munícipes
com a destinação final do lixo em aterros sanitários; lucra a empresa que presta o serviço para a
prefeitura; e toda e qualquer família se beneficia com a retirada do lixo defronte de sua casa.
45. Isso não quer dizer, é claro, que nenhuma das outras ideologias recuse a cooperação, mas que
não se trata de sua chave de decifração.
46. Os interesses públicos podem beneficiar apenas uma parcela da população: tanto na antiga Roma
republicana como no mundo capitalista sempre houve uma parte da população marginalizada.
Em contrapartida, os interesses comunitários são necessariamente universais, obrigatoriamente
extensíveis a cada um dos componentes de dada coletividade.
6
As ideologias políticas

As ideologias políticas contemporâneas


No capítulo anterior, traçamos linhas divisórias que clarificaram algu-
mas distinções entre as ideologias políticas contemporâneas.1 Pretendemos
agora captar de forma mais extensa o conteúdo delas.
Vale relembrar que esses grandes ideários incorporam variadas tendên-
cias internas, muitas vezes ambíguas ou contraditórias. Quando abordamos
a rosa-dos-ventos ideológica, por exemplo, citamos as diferentes correntes
que dividem os comunistas e que vão desde o mais alucinado jacobinismo
a um “tecnocratismo” autossuficiente. Os anarquistas não escapam da
mesma sina: alguns defendem com ardor a não violência, enquanto outros
praticam o terrorismo. Os socialistas oscilam entre o estatismo redentor
e a vertigem inovadora do Terceiro Setor,2 mas também perdem de vista
seu postulado anticapitalista e acorrem para a social-democracia toda
vez que partilham funções governamentais. Os social-democratas resvalam
vez por outra nas suas origens marxistas quando verberam o “capitalismo
selvagem” e preconizam maior ativismo governamental, ou se deixam
seduzir sem reservas pelas virtudes do mercado. Os liberais ficam aflitos
com o dever de socorrer os mais fracos e derivam para o assistencialismo
caridoso que tanto criticam ou, ao contrário, descambam para uma indi-
ferença social que cheira a farisaísmo. Os conservadores arriscam perder
o eixo de seu pensamento ao sabor das conjunturas eleitorais quando se
deixam confundir com os liberais ou com os tradicionalistas e, às vezes,
se encantam com as ortodoxias religiosas. Os tradicionalistas tendem a
praticar o culto da “ação pela ação”, em repentes salvacionistas, e a sus-
176 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

peitar das manifestações da inteligência à semelhança dos fascistas ou, ao


contrário, pendem para um paternalismo fora de lugar, porque ao gosto
dos conservadores. Os fascistas — perplexos diante das inúmeras fontes
teóricas que os informam, a cavaleiro de seu sincretismo ambíguo — ba-
lançam entre o racismo e a xenofobia, ou entre o delírio passadista e o
fascínio pela modernidade.
Essas flutuações indicam que nem sempre as fronteiras são muito preci-
sas entre ideologias “vizinhas”. Qual seria a razão? A essência das ideologias
políticas consiste em definir um programa de ação, mais do que fazer o
mapa cognitivo da realidade social. De maneira que estratégias alternativas
lavram em seu seio, numa guerra surda, ainda que haja convergências em
torno de alguns princípios ou projetos de sociedade. Eis por que diversas
vertentes se movem dentro do mesmo campo de pensamento. Todavia, é
importante não deixar que as mútuas contaminações nos façam perder de
vista a específica identidade de cada um desses campos. Assim, cabe rever
graficamente a rosa-dos-ventos e agrupar as oito ideologias políticas por
seus caracteres significativos:

„ O centro pluralista hospeda os liberais políticos e os social-demo-


cratas;

Figura 13

As ideologias agrupadas
libertários
Centro

social-democratas liberais

pluralista

socialistas conservadores

Esquerda democrática clássica Direita

anarquistas tradicionalistas

jacobina

comunistas fascistas
Extrema autoritários
6. As ideologias políticas 177

„ A esquerda democrática abriga os socialistas e os anarquistas e forma


com o centro a matriz libertária de pensamento;
„ A extrema jacobina reúne os comunistas e os fascistas, ambos tota-

litários;
„ A direita clássica une os tradicionalistas e os conservadores e forma

com a extrema a matriz autoritária de pensamento.

De início, vamos estudar o tradicionalismo que, ainda que detenha


uma inegável presença no imaginário internacional contemporâneo, não
desfruta de clara identificação. Apreenderemos seus caracteres princi-
pais — como o das demais ideologias —, sem a pretensão de sermos
exaustivos e, muito menos, definitivos. Afinal, as ideologias sofrem um
processo de transformação histórica e convém ficar atento a essa signi-
ficativa dinâmica.3

A ideologia tradicionalista
Às vezes confundido com o fascismo do qual é um dos fortes prede-
cessores, o tradicionalismo costuma ser assimilado ao conservadorismo,
sem ter sua especificidade reconhecida. É bem verdade, no entanto, que
os próprios políticos tradicionalistas adotam o rótulo de conservadores.
Ora, basta lembrar as presenças marcantes dos integrismos ou dos fun-
damentalismos4 — multiformes nas suas roupagens religiosas, étnicas ou
nacionais — para compreender o profundo abismo que separa o tradicio-
nalismo das demais ideologias, em particular do conservadorismo. E mais:
basta observar o ativismo efervescente de seus adeptos, com seus ímpetos
radicais, para ter a percepção de um campo ideológico muito preciso que
reclama a própria identidade.
Os tradicionalistas postulam-se como homens íntegros e puros, paradig-
mas de virtude, herdeiros de um passado glorioso, verdadeiros intérpretes
da revelação original. Tendem a se considerar predestinados, cruzados de
uma missão terrena. Clamam contra a crise de autoridade que acomete
as sociedades modernas e denunciam o desrespeito a instituições sacras
como a Ordem, a Religião, a Propriedade, a Pátria, as Forças Armadas,
a Família, a Magistratura, o Magistério. Aspiram, por fim, a uma espécie
de retorno a uma Idade de Ouro em que cada qual ocuparia o lugar que
Deus lhe destinou. Posto isso, vamos alinhar as expressões mais marcantes
do tradicionalismo:5
178 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

„ Prevalência absoluta do princípio da autoridade e intransigente


defesa da lei e da ordem;
„ Denúncia da decadência intelectual e moral causada pela democracia

e pela secularização da vida social;


„ Reverência à estabilidade das instituições e consagração da verdade

primeva, pronunciada uma vez por todas;


„ Comunhão com instituições imorredouras como a Família, a Pátria,

a Propriedade, as Forças Armadas e a Igreja;


„ Veneração das tradições de origem imemorial, das heranças espiri-

tuais cujo valor normativo as torna merecedoras de fervor religioso


e cuja violação constitui um sacrilégio;
„ Oposição ao prestígio do número, esse desprezível princípio da

maioria;
„ Rejeição do mito da igualdade e reconhecimento da desigualdade

como natural e socialmente benéfica;


„ Substituição da declaração de direitos, abstratos e igualitários, por

um código de deveres que reponha em seu lugar a hierarquia, a


disciplina e o respeito às normas morais e jurídicas;
„ Educação moral e cívica e associação dos homens de boa vontade

para lutar contra a hipertrofia do Estado;


„ Misoneísmo (aversão a mudanças), enaltecimento da permanência

e da estabilidade, recusa da modernidade que repele os clássicos


valores espirituais;6
„ Restauração dos costumes antigos, depravados pelas perversões e

a licenciosidade generalizada, pelos pecados e o menosprezo dos


velhos;
„ Subordinação da política à moral e à religião, como forma única

de afastar os malefícios da sociedade tecnológica, de combater as


vicissitudes modernas e de reprimir os vícios de comportamento;
„ Unidade do poder e da fé em Deus, vinculação do Estado à Igreja para

garantir a coesão do corpo social em torno dos valores espirituais;


„ Medo natural dos “diferentes”, notadamente dos imigrantes e das ou-

tras raças ou etnias, no intuito de resguardar a identidade nacional;


„ Alerta contra as conspirações internacionais e contra as traições aos

ideais patrióticos;
„ Repúdio ao liberalismo e aos seus postulados (voto universal, demo-

cracia representativa, jogo parlamentar), bem como ao comunismo e


6. As ideologias políticas 179

aos seus pressupostos (luta de classes, materialismo ateu, igualdade


entre os homens);
„ Denúncia das patologias sociais como o uso de drogas, a gravidez

de adolescentes, o aborto criminoso, o desrespeito às autoridades


e às leis, a perda dos valores religiosos, a criminalidade impune, a
corrupção insidiosa, o enfraquecimento dos laços familiares;
„ Necessidade de confiar o governo dos homens e a administração

das coisas a uma elite natural, imune à corrupção e possuidora de


virtudes cívicas, de disciplina pessoal e de capacidade dirigente;
„ Enaltecimento das sociedades aristocráticas e estamentais, cujo poder

forte e cujo respeito à hierarquia permitem tutelar os mais fracos e


harmonizar os desiguais;
„ Celebração das virtudes que atualizam valores ancestrais tais como

o senso do dever, a virtude da honra, o puritanismo moral, a pre-


servação da comunidade familiar, o fervor patriótico, o rigor no
cumprimento da missão terrena, a comunhão com a terra, a unidade
de destino nacional, a lealdade aos superiores;
„ Mentalidade de guerra santa contra as forças do mal: proibição do

aborto, oração nas escolas, hino à bandeira, punições exemplares


contra os criminosos, combate sem quartel contra as drogas, ideais
evangelizadores, respeito dogmático à verdade revelada, intransigência
no cumprimento dos deveres, intolerância diante das fraquezas;
„ Temas em destaque: culto do herói ou do homem providencial; exal-

tação da morte desde que recompense uma vida valorosa; reencontro


das mulheres com seus papéis naturais de mães, esposas e donas de
casa; condenação da pornografia e do homossexualismo.

A ideologia conservadora
Na dinâmica das sociedades e das organizações, toda coalizão de forças
que institucionaliza seu poder tende a adotar uma ideologia conservadora.
Expressa então o establishment e assume a hegemonia no imaginário social.
Ocorre que o senso comum confunde erroneamente o conservadorismo
com imobilismo ou cega manutenção do statu quo. Ora, para preservar
propriedades, posições de prestígio, poderes, privilégios ou um modo pe-
culiar de vida, os conservadores disfarçam mudanças de equilíbrio com a
roupagem das mudanças estruturais, praticam o princípio de “mudar sem
mudar”, exercitam com maestria a adaptação às circunstâncias, antecipam-se
180 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

com sabedoria aos novos ventos e resguardam o que mais prezam. Vejamos
então os caracteres distintivos da ideologia conservadora:7
„ Concepção de uma sociedade submetida às mesmas leis que regulam
os organismos vivos: cada qual desempenha uma função necessária e
indispensável e as partes componentes se ajustam funcionalmente;
„ Culto à manutenção da ordem social estabelecida, embora esteja

sujeita a ajustes de equilíbrio;


„ Reconhecimento das instituições vigentes como consagradas pelos

costumes e pelas tradições, razão pela qual merecem o respeito de


todos;
„ Cautela diante das inovações em função do receio de que mudan-

ças rápidas possam provocar mais malefícios do que benefícios,


embora adaptações lentas e graduais ante novas necessidades sejam
aceitáveis;8
„ Condenação dos radicalismos — já que as instituições se aprimoram

naturalmente e o passado vale mais do que o presente — e elogio


da sobriedade, da medida, do meio termo, do “nada em excesso”,
do equilíbrio entre tendências opostas;
„ Reconhecimento de que alguns homens desempenham funções mais

importantes do que outros em virtude de sua diligência ímpar, daí


a consagração da superioridade dos líderes naturais cujo talento,
berço, educação ou propriedade os distinguem;
„ Transformação da desigualdade natural em distância social e em

hierarquia uma vez que, no desempenho de funções complexas, a


autoridade acaba em geral confiada aos mais bem preparados;
„ Necessidade de implantar um governo das leis e dos melhores em

que a “representação virtual” dos homens de qualidade se imponha


à representação eleitoral que hoje se assenta no sufrágio universal
e na soberania popular;
„ Expectativa de que as prerrogativas e os direitos sejam proporcio-

nais à importância das funções desempenhadas e não decorram de


arranjos legais ou de conveniência;
„ Exigência de que as recompensas materiais e intangíveis corres-

pondam às diferentes qualificações e aos esforços despendidos, sem


o quê não permaneceriam harmoniosas e justas as relações entre os
homens;
„ Ceticismo quanto às possibilidades de aprimoramento dos homens

comuns, cujas limitações não devem ser esquecidas;


6. As ideologias políticas 181

„ Desconfiança em relação à democracia liberal, tachada de permissiva


com seu excesso de liberdade pessoal;
„ Certeza de que a religião, a tradição, o direito consuetudinário, o

respeito à autoridade, a segurança dos bens e das pessoas, as ideias


herdadas proporcionam estabilidade social e continuidade histórica
e conferem abrigo e conforto aos indivíduos;
„ Temas em destaque: sentido de realidade; bom senso nas decisões;

equilíbrio e comedimento emocionais; cautela e austeridade no


trato dos assuntos públicos; ponderação diante das adversidades;
prudência nos empreendimentos; moderação nas concessões aos
subalternos; harmonia social.

O discurso social comum9 resulta das influências recíprocas entre a


ideologia hegemônica e as ideologias subalternas. Através dele, a ideologia
conservadora ocupa o epicentro das manifestações simbólicas e faz com que
seus postulados sejam geralmente subscritos pelo grosso da população.

A ideologia liberal
O liberalismo político constitui historicamente uma linha de ruptura
com a matriz autoritária que informa as ideologias conservadora, tradi-
cionalista, fascista e comunista. No essencial, funda-se na afirmação dos
direitos individuais, que reclamam salvaguardas contra o arbítrio dos go-
vernantes e que postulam uma moral individualista, cujo caráter está longe
de ser egoísta, pois não promove os interesses pessoais à custa dos interes-
ses dos outros.10 Na sua origem durante a Idade Moderna, o liberalismo
ergueu-se contra o absolutismo monárquico, os monopólios corporativos,
o protecionismo econômico, os privilégios aristocráticos, a intolerância e a
perseguição religiosas. Combateu todas as formas de controle econômico e
de repressões políticas e simbólicas; posicionou-se na contramão dos mer-
cantilismos e do sectarismo dogmático das igrejas e expressou os interesses
das burguesias mercantil, manufatureira e industrial, em contraposição aos
interesses dos latifundiários e das corporações de ofício.
Hoje em dia, o liberalismo político representa a besta-fera dos tota-
litários que abominam a “democracia burguesa” ou representativa. Nas
últimas décadas, entretanto, ganhou preeminência nos países ocidentais,
pelo menos do ponto de vista retórico. Vejamos agora seus postulados e
traços principais:11
182 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

„ Todos os homens nascem com direitos naturais e uma das funções


fundamentais do Estado é a salvaguarda desses direitos;
„ O objetivo primário do Estado consiste em assegurar a vigência do

princípio da liberdade, que versa primacialmente sobre as liberdades


civis e políticas e tem por destaque o “mercado livre de ideias”;12
„ Governo eleito por “um homem, um voto”, com poderes insti-

tucionalmente limitados, porque o eixo institucional do governo


deve ser a proteção das minorias, ainda que sua direção obedeça à
vontade da maioria;
„ Policiamento da ação dos governantes através do constitucionalis-

mo: separação dos poderes para obter controle mútuo por meio
de freios e de contrapesos; previsão de garantias para os cidadãos
através de uma carta de direitos; controle do Parlamento por uma
opinião pública bem informada e pela possibilidade de não recon-
duzir os eleitos — curta duração dos mandatos e alternância no
poder;
„ Concepção de uma sociedade aberta e pluralista, com forte defesa

dos direitos individuais — em particular da liberdade pessoal, da


dignidade e da vida —, além das liberdades econômicas e da pro-
priedade privada;13
„ Crença no progresso social como decorrência da autorrealização dos

indivíduos e confiança na mobilidade social — processo que resulta


das oportunidades igualmente asseguradas a todos, em função da
remoção das discriminações e da introdução de mudanças graduais
e flexíveis;
„ A soberania política cabe ao povo, à cidadania, que a exercita por

meio do sufrágio universal e nos limites do respeito às minorias;


„ Projeto de conciliação entre a liberdade do indivíduo e a ordem

social, uma vez que direitos e deveres são igualmente essenciais para
que haja sociabilidade e consenso;
„ Percepção última de que a desigualdade econômica é incontornável,

uma vez que o sucesso individual, a busca de uma vida independen-


te e o desenvolvimento das potencialidades de cada um conferem
vitalidade ao sistema e provocam diferenciações qualitativas entre
os cidadãos;
„ Ênfase sobre a individualidade acoplada a uma visão humanista, que

visa eliminar as injustiças sociais e estimular a formação de associações


voluntárias;
6. As ideologias políticas 183

„ Reconhecimento de que a pluralidade de interesses sociais exige


respeito às diferenças e às divergências, por meio de mecanismos
que contenham a propensão das maiorias a querer impor opiniões
e padrões de comportamento;
„ Certeza de que todos os homens têm potencial para alcançar a

excelência por meio de um esforço permanente de aprimoramento


pessoal e de um exercício continuado de formação intelectual, ainda
que nem todos a consigam;
„ Incentivo aos processos de interlocução, negociação e transigência

como chaves para a solução dos conflitos de interesse;


„ Legitimidade da ação dos grupos de pressão (lobbies) que atuam nos

limites da lei;
„ Funções do Estado que não se restrinjam à mera garantia do “mínimo

legal” para o funcionamento da economia, mas que se apliquem à


correção das injustiças sociais e à assistência aos desempregados;
„ Firme crença na livre iniciativa, competição econômica, licitude do

lucro e lógica da empresa privada como princípios indispensáveis


para o progresso social;
„ Convicção de que a ordem natural das coisas é inerentemente

simples, harmoniosa e benévola e de que o pensamento racional e


sistemático pode aperfeiçoar a sociedade;
„ Temas em destaque: relevância do juízo privado; fé na educação para

formar um eleitorado esclarecido; razão combinada com o ideal de


competência profissional; liberdade de escolha individual; direito
à manifestação crítica e até à rebelião contra a opressão; estrito
respeito à legalidade; resguardo do direito de herança.

A ideologia social-democrata
A exemplo do liberalismo político, muitos invocam em vão o nome da
social-democracia, desconhecendo seus princípios doutrinários. Em muitos
aspectos, o socialismo democrático dos dias de hoje corresponde àquilo
que já foi a social-democracia em priscas eras. Em razão disso, várias con-
fusões se estabelecem, e alguns autores utilizam esses dois ideários como se
fossem intercambiáveis. Contribui muito nesse sentido o nome consagrado
da Internacional Socialista, essa associação supranacional de partidos de
trabalhadores cuja atuação é essencialmente social-democrata. Todavia,
depois da queda do Muro de Berlim e da conversão de muitos partidos
184 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

comunistas ao socialismo democrático, ficaram nítidas as diferenças entre


social-democratas e socialistas.
Os social-democratas deixaram de ser revolucionários quando desistiram
de advogar a socialização dos meios de produção.14 Nessa esteira, abandona-
ram os pendores estatistas e passaram a pugnar pela desestatização do setor
produtivo estatal e de toda a infraestrutura econômica que eventualmente
estivesse em mãos do Estado. Em outras palavras, redescobriram o sistema
do mercado como mecanismo de regulação e elaboraram planejamentos
indicativos que se resumem a projetar metas desejáveis de investimentos
sob a coordenação do Estado. Em contraposição, os socialistas mantêm-
-se fiéis às posições revolucionárias, mesmo quando adotam estratégias
pacíficas de tomada do poder; persistem em seu projeto anticapitalista
e preconizam um intervencionismo estatizante. Vejamos agora os focos
centrais da social-democracia contemporânea:15

„ Democracia como fim em si mesmo e perfeita compatibilidade das


liberdades individuais com o princípio da justiça social e com a
responsabilidade social da propriedade;
„ Justiça social entendida como distribuição equitativa da renda, atra-

vés de salários dignos e através do acesso geral a serviços públicos


eficientes e, quando possível, gratuitos;
„ Provisão das necessidades básicas da população pelo Estado, sem que

este produza necessariamente tais bens ou serviços, e implantação


de políticas públicas compensatórias para combater as desigualdades
sociais e reduzir os desníveis regionais;
„ Redução das desigualdades sociais dentro de limites que não inibam

a vontade individual de prosperar e de empreender, pois igualdade


social não significa condições materiais idênticas;
„ Reformulação do papel do Estado, com a entrega da execução

de boa parte dos serviços públicos ao setor privado e ao Terceiro


Setor, para que a máquina estatal possa se concentrar em ativida-
des de formulação de políticas, de fiscalização e de indução do
mercado;
„ Compromisso com o resgate da dívida social por meio da erradicação

da miséria e da eliminação progressiva da pobreza, do banimento


da ignorância e do fim do analfabetismo, da generalização do bem-
-estar social e da universalização dos direitos sociais;
6. As ideologias políticas 185

„ Crença na importância do indivíduo e reconhecimento de que seus


direitos e oportunidades somente poderão ser protegidos e incre-
mentados se houver participação coletiva;
„ Controle do Executivo pelo Parlamento, em consonância com a

sociedade civil a quem cabe policiar a máquina pública;


„ Conquista do poder através do sistema eleitoral para reformar o

Estado e capacitá-lo a desenvolver políticas sociais que assegurem


melhor distribuição das riquezas, além de criar uma rede de prote-
ção social e de ampliar os limites da cidadania até que esta alcance
a plenitude;
„ Concepção da cidadania como exercício dos direitos civis, políticos

e, de forma indissociável, dos direitos sociais:16 compromisso de


satisfazer as necessidades materiais da população e de garantir o
acesso aos benefícios sociais;
„ Introdução de reformas sociais realizadas de forma evolucionária,

gradual e pacífica, a fim de que todos obtenham as condições indis-


pensáveis para desenvolver seu potencial e possam viver segundo as
próprias inclinações, ou seja, que disponham de razoáveis condições
para poder aproveitar as oportunidades oferecidas;17
„ Rejeição da violência como parteira da história e oposição ao van-

guardismo voluntarista, não importa quão nobres e missionárias


sejam as intenções;
„ Democratização do capitalismo pela participação dos empregados na

gestão e nos resultados das empresas (parceria social), pelas formas


plurais de propriedade e pelos controles públicos sobre as forças do
mercado (economia social de mercado);
„ Projeto de criação de um Estado regulador que compense as distor-

ções do mercado, defenda o consumidor, proteja o meio ambiente,


utilize a política fiscal ou a tributação das rendas para realizar a
equidade social, garanta iguais oportunidades para todos através
de investimentos em serviços públicos de qualidade;
„ Propósito de estabelecer uma aliança de classes sociais (trabalhado-

res, gestores, empresários “modernos”, pequenos proprietários) e


de superar a velha dicotomia entre o capitalismo (excludente) e o
socialismo (real) pelo projeto de uma nova sociedade baseada no
capitalismo social;
„ Rejeição do dirigismo econômico, do darwinismo social, do corpo-

rativismo sindical, do populismo autocrata, das relações de clientela,


186 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

do fisiologismo político, da “instrumentalização” da democracia


representativa ou do uso tático da democracia formal para tomar o
poder, do “assembleísmo democratista”;
„ Temas em destaque: ênfase nas associações voluntárias; realce dos

interesses públicos; teoria ética da responsabilidade; legitimidade


do conflito de interesses; oposição às práticas políticas extremistas,
ao emprego da violência e à luta de classes; institucionalização da
livre negociação, da mediação e da arbitragem consentidas.

A ideologia socialista
Desde logo, relembremos um fato à saciedade: embora o socialismo
tenha inspirado todas as esquerdas, a ideologia socialista de caráter
democrático não se confunde com cada uma delas. Hoje, comunis-
tas, anarquistas e social-democratas se diferenciam cabalmente dos
socialistas. Por exemplo, os comunistas continuam advogando uma
tomada violenta do poder e a destruição das instituições vigentes por
meio da instalação da ditadura do proletariado. Com qual propósito?
O de expropriar os expropriadores. Os anarquistas se opõem a qualquer
forma institucionalizada de autoridade política, hierarquia ou proprie-
dade que não seja coletiva18 e rejeitam tanto a mecânica eleitoral como
a parlamentar. Os social-democratas romperam com os ideais socialistas
da supressão das classes sociais (perspectiva estratégica) e com o Estado
dirigista e benfeitor (posição tática). Abandonaram também a pretensão
de estatizar os principais setores da economia e, ao revés, programam
sua desestatização numa clara negação do Estado produtor. Finalmen-
te, os socialistas de hoje são os social-democratas de ontem, porque os
social-democratas contemporâneos querem chegar à igualdade preser-
vando a liberdade, enquanto os socialistas não hesitariam em sacrificar
a liberdade em nome da igualdade. Vamos então listar alguns alicerces
do socialismo democrático:19

„ Conjugação da igualdade e da liberdade: sem democracia econô-


mica, a liberdade real não existe; todos os homens devem usufruir
igualmente de condições dignas de vida;
„ Imperativo da solidariedade social: só haverá igualdade e liberdade

quando cada agente for de fato responsável pelas condições de vida


dos outros;
6. As ideologias políticas 187

„ Construção de uma sociedade justa e igualitária, sem classes sociais,


isto é, liberta da exploração do homem pelo homem, da alienação
dos trabalhadores em relação a seus produtos, da dominação de uns
sobre outros e da mistificação ideológica;
„ Autodeterminação dos homens sobre todos os aspectos de suas vidas

e cogestão nas organizações, na política e na vida cultural;


„ Esforço teórico para reinventar o socialismo ou para criar uma nova

utopia social, em função das exigências da revolução digital e da


falência do socialismo real;
„ Ideais a alcançar: eliminação da escassez, do trabalho penoso e de

todas as formas de repressão; liberação de todos os homens das suas


necessidades materiais e conquista do “tempo livre” para a realização
do potencial de cada um;
„ Implantação pacífica do socialismo, aceitação dos processos eleitorais

e das atividades políticas no âmbito da legalidade burguesa e opção


pela economia mista de mercado;
„ Prevalência das formas coletivas de propriedade (pública, coopera-

tivista, comunal e comunitária) em relação às formas privadas de


propriedade (capitalista, autônoma, latifundiária);
„ Introdução de reformas sociais, pela via parlamentar, para conquis-

tar direitos e proteções aos trabalhadores, melhorar suas condições


imediatas de vida e alcançar o máximo de igualdade possível pela
superação dos limites impostos pelo sistema capitalista;
„ Adoção de uma estratégia gradualista, baseada no fortalecimento da

participação política das massas, na ampliação do leque das forças


democrático-populares, na introdução de reformas “irreversíveis”
e de “caráter cumulativo” e na construção de uma democracia par-
ticipativa;20
„ Conquista de bastiões dentro do aparelho de Estado visando ao

enfraquecimento progressivo do poder de repressão e à transfor-


mação do caráter do Estado pela formação de um espaço público
não estatal que acolha formas alternativas de ação;
„ Propriedade pública dos serviços e dos equipamentos sociais, sub-

metida ao controle dos usuários e da sociedade civil;


„ Propriedade estatal ou pública das indústrias básicas e dos mono-

pólios naturais;21 tendência para monopolizar o crédito e as divisas;


responsabilidade do Estado pela infraestrutura econômica, via esta-
tizações;
188 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

„ Tributação dos lucros e das heranças para financiar os programas


sociais e as cooperativas de trabalhadores, através da taxação direta
progressiva e distributiva;
„ Dirigismo econômico: cooperação deliberada em matéria de produ-

ção e de distribuição (economia mista de mercado); planejamento


flexível ou diretivo, uma vez que o mercado deixado a si só impõe
a lógica lucrativa das empresas, reduz o espaço público e alarga o
espaço privado, suprime direitos e amplia privilégios, aniquila a
cidadania e incrementa as carências das classes subalternas;
„ Política econômica de pleno emprego, com reforma agrária, estímulo

aos setores intensivos em força de trabalho e absorção de mão de


obra em amplos programas de obras públicas;
„ Temas em destaque: cooperação mútua e camaradagem entre os

trabalhadores; superação do trabalho alienado; otimismo quanto


ao futuro; crença na força da razão; pedagogia política indispen-
sável; pluralismo partidário; respeito às garantias constitucionais;
participação de todos nas decisões; descentralização do poder.

A ideologia anarquista
A exemplo das outras ideologias políticas, os anarquistas reivindicam
inúmeros precursores. Mas, desde logo, é preciso conceder-lhes um paren-
tesco com os movimentos religiosos utópicos e milenários que acredita-
vam em transformações súbitas da realidade social e formavam pequenas
comunidades conspirativas e quase clandestinas. À semelhança desses
movimentos, aliás, os anarquistas nunca fizeram revoluções duradouras.
Aliás, durante todo o século XX, por causa da rebeldia irrestrita contra
as autoridades estabelecidas e contra as variadas formas de repressão (a
anarquia equivale a ausência de governo), os anarquistas colecionaram
inimigos em todos os quadrantes. Acabaram sendo confundidos pelo
senso comum com pregadores da desordem, libertinos devassos e radicais
incorrigíveis.
Eles representam a ala mais extremada dos libertários e se chocam
de frente com os comunistas que, para demolir os alicerces da sociedade
capitalista, consideram indispensável uma fase em que haja a ditadura do
proletariado e a apoteose do Estado, algo absolutamente impensável para
os anarquistas. De outro lado, as ideologias de direita (com exceção dos
liberais políticos) veem os anarquistas como subversivos e imorais, sujeitos
6. As ideologias políticas 189

irresponsáveis e perigosos. A social-democracia e o socialismo democrático


os avaliam como empedernidos românticos, presos a uma visão idílica do
futuro. Os traços mais significativos do anarquismo são:22

„ Supressão de toda autoridade temporal ou espiritual, extirpando


em suas raízes o princípio da autoridade;
„ Reivindicação de completa liberdade para atuar de acordo com uma

“luz interior”, o que corresponde ao princípio da espontaneidade;


„ Credo absoluto na máxima do “tudo ou nada”, em uma completa

ruptura com o passado e o presente: mitologia da revolução social


ou da transformação radical da sociedade existente, promovida pe-
las massas trabalhadoras e encabeçada por um punhado de líderes
obstinadamente devotados à causa revolucionária;
„ Abolição imediata do Estado e de todo tipo de dominação (as re-

formas políticas nada resolvem) e criação de uma nova sociedade


em que haja solidariedade na igualdade;
„ Ambivalência estratégica: uma vertente preconiza a não violência,

a persuasão racional, a desobediência civil, a doutrina da ação di-


reta dos sindicatos independentes (exemplo da greve geral); outra
vertente assume a insurreição violenta, as técnicas terroristas, a pro-
paganda pela ação (atos individuais de autoimolação ou assassinato
de personalidades que simbolizam a ordem social);
„ Mobilização do fervor espontâneo dos oprimidos que nada têm a

perder e formação de conselhos autônomos nas comunas e nos locais


de trabalho para eliminar as hierarquias e realizar uma revolução
que apague todas as discriminações e todas as injustiças sociais;
„ Crenças na bondade e na liberdade naturais dos homens, no “estado

de natureza” em que todos viveram em plena cooperação mútua


até que as instituições e a propriedade surgissem e corrompessem a
comunidade;
„ Confronto de duas escolas de pensamento num estuário de influên-

cias: a) confiança na racionalidade dos homens e na sua capacidade


infinita de aperfeiçoar-se intelectual e moralmente (ecos da razão e
do progresso inscritos na visão iluminista do centro-esquerda e dos
liberais políticos); b) oposição ao racionalismo, ao intelectualismo,
à ciência e à tecnologia e defesa da intuição e da espiritualidade
(ecos do irracionalismo na linha passadista dos fascistas e dos
tradicionalistas);
190 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

„ Desafio contundente à moral estabelecida e aos efeitos deletérios


do conformismo e da alienação;
„ Proposta de fundação de uma nova ordem de coisas, aqui e agora,

em que a força se tornará desnecessária e em que o bem de cada


qual será a felicidade de todos;
„ Abolição do direito de herança e da propriedade privada dos meios

de produção vista como causa primeira da exploração econômica e


obstáculo a ser transposto para satisfazer as necessidades humanas;
„ Defesa apaixonada dos direitos de todas as minorias políticas: ne-

gros e índios (em sociedades de brancos), mulheres, idosos, órfãos,


aposentados, viúvas, enfermos carentes, inválidos, homossexuais,
portadores de deficiências, imigrantes, asilados políticos, desempre-
gados, dependentes de drogas, crianças de rua, flagelados, portadores
de Aids, pessoas sem-terra ou sem-teto;
„ Rejeição intransigente do sistema capitalista e do mundo industrial e

impessoal; da sociedade tecnocrática e de suas práticas repressivas; da


organização “produtivista” do trabalho com sua busca da eficácia e
sua disciplina militar; do consumismo perdulário; do gigantismo e do
despotismo das organizações; do desperdício dos recursos naturais
e da destruição do meio ambiente; do militarismo assassino e do
colonialismo espoliador; da urbanização descontrolada e da matança
dos animais; da sociedade de massa, conformista e alienante, e da
“desumanização” do indivíduo, incapaz de sentir prazer e alegria;
„ Projeto de uma sociedade regulada pelo acordo mútuo entre seus

membros, baseada na igualdade, na autogestão e no trabalho de


todos; livre federação de comunas independentes; princípio da
mutualidade (cooperação voluntária, consentimento espontâneo,
reciprocidade e ajuda mútua); exercício da democracia direta ou
semidireta; propriedade cooperativa ou comunitária dos meios de
produção, com escambo voluntário dos produtos e abolição do
dinheiro;
„ Revolução da imaginação (“seja realista, pense o impossível”): visão

de um mundo sem policiais nem regras, sem patrões nem deveres, sem
sinais de “proibido” em lugar algum; comunidade em que os desejos
venham a ser saciados e a intuição venha a prover a verdade;
„ Virtudes apregoadas: ajuda mútua, companheirismo, cooperação,

dignidade do trabalho, solidariedade social, sentido de justiça, fé na


reciprocidade, qualidade de vida, autodomínio, criatividade, prazer e
6. As ideologias políticas 191

alegria, frugalidade, simplicidade, autoaperfeiçoamento, autonomia


individual, ambiente limpo, volta à natureza.

A ideologia comunista
Karl Marx assestou a crítica mais contundente, porque melhor fun-
damentada, ao sistema capitalista. Preconizou a eliminação da extração
da mais-valia e o estabelecimento de uma sociedade comunista em que
prevaleceria o princípio distributivo “de cada um segundo suas capacida-
des, a cada um segundo suas necessidades”. Mas essa sociedade só poderia
constituir-se depois de vencida a etapa socialista, em que o salário ainda
corresponderia ao esforço de cada um ou seria proporcional à qualidade
e à quantidade de trabalho produzido.
A sociedade socialista, todavia, não coincide com a economia estatista
que se estabeleceu na União Soviética, porque nela a socialização dos meios
de produção — apropriação coletiva do sobretrabalho — não passou de
uma formalidade. Pois, de fato, encobriu a apropriação corporativa dos
excedentes por parte da nomenklatura, numa plena estatização dos meios
de produção. Além do mais, a “ditadura do proletariado”, que deveria ter
sido de curta duração, eternizou-se nas mãos da burocracia partidária.
Daí a pergunta: a fase da violência revolucionária corresponde ou não
à etapa socialista? Para os comunistas ortodoxos, a resposta é claramente
positiva; para outros, a ditadura do proletariado deveria ser um período
transitório que prepara o socialismo, ou seja, seria uma fase preliminar.
O que seria então a sociedade socialista para estes? Uma sociedade sem
classes e sem Estado que, por sua vez, precederia a etapa superior ou a
sociedade de abundância comunista — o salto do “reino da necessidade”
para o “reino da liberdade”.23 Vejamos então o que acabou formando
a ideologia comunista, depois dos mais variados aportes de teóricos e
revolucionários.
Para a etapa comunista:

„ Utopia de uma economia de abundância em que todos os agentes


teriam suas necessidades plenamente satisfeitas de forma gratuita
(bem-estar geral); qualquer agente social, além de definir o que
precisa, retiraria de “armazéns comuns” tudo o que necessitasse; a
fartura seria assegurada e a oferta se equilibraria com a demanda a
preço zero;
192 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

„ Remoção de quaisquer obstáculos que pudessem comprometer uma


perfeita igualdade social: propriedade social dos meios de produção
e sociedade sem classes sociais; “administração das coisas e direção
do processo de produção” operando sem uso da coerção dada a
inexistência do Estado; ordem pública assegurada pela persuasão e
pelo consentimento;
„ Ultrapassagem da divisão do trabalho, graças à qualificação, à

polivalência profissional e à produtividade dos equipamentos au-


tomatizados — os agentes sociais estariam habilitados a tudo fazer
e escolheriam suas ocupações segundo seus gostos e capacidades;
„ Eliminação da alienação do produtor, ou da separação do trabalha-

dor em relação a seu próprio produto, porque, além da apropriação


coletiva dos excedentes, a variedade das oportunidades disponíveis
permitiria a cada qual realizar-se segundo suas próprias preferên-
cias;
„ Abolição das distinções entre cidade e campo, trabalho manual e

trabalho intelectual e conversão do trabalho humano em trabalho


voluntário, livre e criativo;
„ Instalação do “reino da liberdade”: libertação da necessidade com

os meios de subsistência à disposição de todos; nova moral funda-


mentada na cooperação e na solidariedade; tempo livre dedicado
às artes e às ciências, com acesso universal ao saber;
„ Desabrochar de todas as faculdades do homem, sob o efeito exclusivo

de estímulos simbólicos, em virtude de uma elaborada consciência


social.

Para a etapa socialista (leitura soviética):

„ A revolução social é missão histórica da classe operária: a instalação


temporária da ditadura do proletariado abole a propriedade privada
dos meios de produção, suprime as classes inimigas dos trabalha-
dores, estabelece a comunhão de ideias (metas, ideologia, moral) e
prepara o “deperecimento” do Estado (instrumento de dominação
de classe);
„ A estratégia revolucionária da tomada do poder deve associar a luta

clandestina à ação política legal e à ação sindical;


„ A revolução social é obra de uma vanguarda operária que se orga-

niza em partido de revolucionários profissionais, disciplinados e


6. As ideologias políticas 193

submetidos ao “centralismo democrático”. As decisões partidárias


são obrigatórias e supõem a submissão das minorias à vontade da
maioria; a proibição das facções é indispensável; os funcionários do
partido são eleitos de forma indireta;
„ O fim da ditadura do proletariado não tem prazo definido: o Estado

deve concentrar todos os poderes para poder resistir ao cerco impe-


rialista, dispor de todos os meios a seu alcance e perseguir espiões
e “sabotadores”;
„ A socialização dos meios de produção é de interesse da humanida-

de, pois isso favorece o planejamento central e unitário, elimina os


privilégios sociais e permite que a situação de cada um dependa das
qualidades e das capacidades individuais, dos conhecimentos e do
amor ao trabalho;
„ O planejamento central e a subordinação da economia às necessi-

dades políticas significam que os bens e serviços são alocados pelo


Estado e os preços são definidos administrativamente — eis os ins-
trumentos mais convenientes e racionais de direção da economia;
„ A substituição dos direitos políticos formais pelos direitos econômi-

cos substantivos (pleno emprego, moradia subsidiada, educação e


saúde gratuitas) se impõe e assegura a emulação socialista para que
cada um possa melhor revelar e desenvolver suas capacidades;
„ O culto da personalidade é uma necessidade e faz do secretário-

geral do partido o pai do povo, o professor das massas, a fonte da


verdade ideológica, o mais fiel intérprete dos interesses estratégicos
da classe operária;
„ As práticas revolucionárias a serem implantadas são: monopólio

estatal dos meios de produção; órgãos centrais de controle social


(partido único e polícia política secreta); Forças Armadas supervisio-
nadas por comissários do partido; Estado proletário como educador,
guia do povo e protetor dos interesses dos trabalhadores; marxismo-
leninismo como ideologia oficial; eliminação das oposições e das
dissidências como imperativo histórico;
„ O socialismo é uma etapa inelutável da história, porque é fruto

das contradições internas do sistema capitalista: a apropriação


privada versus a produção social; a não correspondência entre o
desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção;
a pauperização crescente da massa trabalhadora e a proletarização
dos pequenos e médios produtores versus a concentração da riqueza
194 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

em mãos de uma burguesia monopolista; a lei da taxa decrescente


de lucro; as crises sucessivas de subconsumo; o alongamento das
jornadas de trabalho e a superexploração da força de trabalho;
„ Os temas em destaque são: progresso histórico; desenvolvimento

contínuo da tecnologia; industrialização acelerada; fim da explo-


ração do homem pelo homem; diminuição sistemática do tempo
gasto na produção material; supressão do dinheiro e das relações
comerciais e monetárias.

A ideologia fascista
Há uma pluralidade de fascismos, assim como há comunismos,
anarquismos, socialismos, liberalismos, tradicionalismos. Por exemplo,
existem diferenças entre o racismo militante do nacional-socialismo e
o estatismo corporativista do fascismo italiano. Todos eles, porém, têm
denominadores comuns. O fascismo nasceu de dois ventres: o da extrema-
esquerda insurrecional e o do tradicionalismo mais exaltado. E, apesar das
origens mescladas e dos discursos desordenados, é possível reconhecer a
poderosa especificidade da ideologia fascista em seu caráter nacionalista
e integrador.
Filosofia da força, o fascismo prega o retorno ao gênio nacional e clama
pela solidariedade do sangue. Assume um expansionismo ultranacionalista
para resgatar o orgulho da nação à procura de seu “espaço vital” — ter-
ras para povoar, mercados para as indústrias, fontes de matérias-primas,
colônias que correspondam ao dinamismo demográfico. Considera-se a
única fortaleza possível contra males demoníacos como o comunismo
internacional, a plutocracia capitalista, a corrupção endêmica, o “divisio-
nismo” produzido pela democracia parlamentar e o parasitismo dos judeus
(“povo mundial” que aspira a dominar os povos que o acolheram).
O fascismo repousa em princípios aristocráticos: no privilégio da von-
tade e da energia de homens superiores; na repulsa ao sistema demagógico
da maioria e ao peso morto do número; na rejeição do racionalismo ilumi-
nista e da degeneração moral dos intelectuais. É nacionalista antes de tudo,
porque traduz a temporalidade eterna e a primazia absoluta da nação. É
socialista à sua maneira porque, ao extirpar de sua doutrina qualquer eco
marxista, protege a unidade do povo contra as ambições desenfreadas dos
indivíduos e se converte em meio político a serviço da comunidade contra
os plutocratas. Vejamos suas proposições mais características:24
6. As ideologias políticas 195

„ Exaltação do Estado corporativo orgânico, de caráter totalitário, e do


nacionalismo: Estado e Nação formam um todo indissolúvel — “tudo
para o Estado, nada contra o Estado, ninguém fora do Estado”;
„ Necessidade de criar um Estado total para fazer frente às complexas

tarefas internas e externas, um aparelho que tenha autoridade para


dirigir a vida nacional em todos os seus aspectos e integre em seu
seio todas as organizações econômicas, políticas e espirituais, sob o
comando de um partido único;
„ Aspiração para ser uma nação moderna e poderosa, que encarne a

especificidade do povo e da raça, exalte as virtudes nacionais, supere


os particularismos e os regionalismos, recupere a ligação estreita
entre o povo (natureza, biologia) e a civilização (cultura, espírito)
para alcançar seu espaço vital;
„ Reconhecimento de que a luta entre elites, raças e povos faz parte

da ordem natural das coisas e abre caminho para a seleção dos mais
fortes (darwinismo social);
„ Construção de uma sociedade que ponha fim às lutas de classes

pela organização corporativa: as corporações agrupam patrões e


trabalhadores por ramos de produção, aderem ao partido único na
qualidade de sindicatos, se convertem em órgãos do Estado, prote-
gem os trabalhadores por uma legislação social e controlam todas
as atividades produtivas;
„ Formação de um homem novo, heroico e que viva perigosamente;

um moderno bárbaro, herdeiro de velha civilização, mas por inteiro


voltado para o futuro graças às suas antenas espirituais; um homem
livre dos preconceitos e das vilanias que corrompem o caráter;
„ Combate sem quartel contra as tentativas de desagregação que visam

a colocar o cosmopolitismo no lugar da adesão ao Estado e à raça;


a luta de classes que não se coaduna com a unidade nacional e é
incompatível com os valores comunitários; a escravidão do mun-
do financeiro internacional; a politicagem dos sindicatos obreiros
que exprimem interesses sectários; a democracia que embrutece as
massas; o governo parlamentar que leva à fragmentação do corpo
político e que negligencia o interesse nacional em proveito dos
interesses particulares;
„ Decisão de conquistar as ruas pela força e pela exibição de coesão

que impressionam as massas;


196 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

„ Preparação de um putsch para a tomada do poder e para a realização


de uma revolução corporativista ou racial;
„ Nova categoria de senhores está destinada a governar, infensa à

moral da piedade e pertencente a uma raça superior ou a uma elite


heroica;
„ Táticas do partido único: apoderar-se do Estado e governar com

disciplina militar; repudiar o princípio eletivo que pretende encar-


nar a vontade nacional;25 deter o monopólio da representação pela
dissolução dos demais partidos políticos; controlar todos os meios
de comunicação e a educação da juventude; impor a ideologia úni-
ca; não tolerar facciosismos; agir diretamente contra os oponentes;
depurar incessantemente as próprias fileiras partidárias; personificar
o Estado, criador do direito e da moral;
„ Princípio do chefe (Führersprinzip): o chefe carismático, condutor

supremo, chefe do Estado e do Partido, é o intermediário entre a


nação e o seu destino histórico; é o elo que estabelece comunicação
íntima com o povo, catalisa a energia nacional e encarna a alma
coletiva;
„ Adoção da estética do homem forte e do laconismo militar que

eliminam as discussões ociosas;


„ Rejeição do liberalismo, do individualismo, do capitalismo, da demo-

cracia parlamentar, do sindicalismo independente, do comunismo,


da maçonaria, dos estrangeiros e dos imigrantes;
„ Antissemitismo e racismo: os judeus são responsáveis pelos malefícios

do capitalismo e do comunismo e tramam a conquista do mundo; são


biologicamente inferiores e impuros, assim como o são os ciganos,
os negros, os eslavos, os turcos e os amarelos, o que põe em risco a
pureza da raça superior;
„ Primado do irracional: interessa apenas “acreditar, obedecer, com-

bater” e somente a intuição traz um conhecimento absoluto pela


comunicação mística entre o sujeito e o objeto;
„ Promoção da ação do povo pelos mitos que apelam para as emo-

ções; formação do caráter como meta principal da educação, vi-


sando ao desenvolvimento do poder da vontade e da capacidade
de decisão;
„ Recuperação da velha regra alemã dos “três K”: Kirche, Küche und

Kinder, ou Igreja, cozinha e criança, para devolver às mulheres seu


6. As ideologias políticas 197

papel natural e para incentivar as famílias a procriar, de modo a


ocupar terras novas e a submeter os povos inferiores;
„ Valores cultivados: ordem e integridade nacional; culto do Estado e

do Chefe supremo; obediência e coragem; pureza étnica e comuni-


dade enraizada no solo; combatividade e hierarquia; violência como
expressão criativa; grandeza nacional e fé na missão a cumprir; edu-
cação do corpo e ideal racial da vida e da beleza; poesia do perigo e
da guerra; ativismo voluntarista e autossacrifício; disciplina férrea e
supremacia dos interesses nacionais sobre as demandas individuais;
„ Temas em destaque: organização dirigista da economia; eliminação

da competição econômica; assimilação do lucro à ganância e à espe-


culação; hagiografia da pequena propriedade autônoma; controle
político dos preços, juros, salários, tarifas, aluguéis, lucros e do pro-
cesso produtivo; propriedade corporativa dos meios de produção.

As múltiplas faces do nacionalismo e da democracia-cristã


Antes de passarmos à análise das ideologias econômicas, alguns co-
mentários se impõem. Por que não fizemos menção ao nacionalismo, se
também se trata de uma ideologia política? Por que não abrimos espaço
para a democracia-cristã, se ela ocupou lugar de destaque no imaginário
político do século XX? As razões são simples. Nenhuma dessas ideologias
conseguiu alcançar estatuto próprio ou alçar voo de forma autônoma;
nenhuma demarcou um terreno exclusivo. Mas, curiosamente, ambas
transformaram-se em chaves universais, prestando-se a usos múltiplos.
O nacionalismo é uma ideologia que afirma o direito natural de uma
dada nacionalidade formar um Estado. Repousa em uma identidade étnica
e cultural, na comunhão da língua e da religião, na consciência de uma
história comum e na partilha de tradições. Pleiteia a integração territo-
rial, a unidade linguística e cultural, um ideal de patriotismo que una e
mobilize o povo. Postula o reconhecimento de sua singularidade e de sua
exclusividade representativa. Tende a uma abrangência totalitária, ao tentar
absorver o cidadão nos propósitos e na vida do Estado-nação.
Ora, ainda que suas ênfases sejam diversas, o nacionalismo perpassa
boa parte das ideologias contemporâneas. Confunde-se com o resguardo
da identidade nacional em algumas vertentes do tradicionalismo. No
fascismo, constitui um de seus mais preciosos pilares. No comunismo, e
a despeito da retórica internacionalista e dos anseios por uma revolução
198 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

socialista universal, ocupou posição de relevo no ideário de boa parte


dos partidos comunistas. Basta citar a tese stalinista do “socialismo num
só país” e as proclamações patrióticas que foram difundidas durante a
Segunda Guerra Mundial em solo soviético. Ou basta ainda rastrear o
nacionalismo nos documentos da Terceira Internacional, publicados na
década de 1920, quando esta ideologia foi taticamente acoplada ao leni-
nismo para galvanizar os povos coloniais na luta pela independência de
seus países. Por fim, ecos nacionalistas também se fizeram ouvir tanto no
socialismo democrático como no conservadorismo.
Portanto, a exemplo do camaleão, o nacionalismo muda de cor de
acordo com o contexto em que se inscreve e segundo os desafios históricos
que as coletividades enfrentam. Quem se debruça para estudá-lo verifica
a impossibilidade de agrupar suas inúmeras variantes num único modelo.
Acaba desaguando num mosaico de contrapontos bastante significativos.
Assim, existiram nacionalismos:

„ Republicanos ou monarquistas;
„ Populares ou elitistas;
„ Laicos ou místico-religiosos;

„ De libertação nacional e anticolonialistas ou expansionistas e impe-

rialistas;
„ Centralizadores e unitaristas ou descentralizadores e regionalistas;

„ Humanitários e neutralistas ou militaristas e belicistas;

„ Revolucionários ou cultores da ordem;

„ Populistas e demagógicos ou programáticos e moralistas;

„ Democráticos ou antiparlamentares;

„ Estatistas, protecionistas e antiimperialistas ou étnicos, raciais e

xenófobos.26

A heterogeneidade dos princípios e valores é, portanto, patente. Mas,


de um modo geral, alguns denominadores comuns podem ser resgatados:
o patriotismo exaltado; certa predestinação metafísica (compete à nação
uma missão espiritual que só ela pode cumprir); os apelos à vontade de
viver em conjunto e à rica herança de recordações. Em resumo, muitas
ideologias políticas se valem do nacionalismo em circunstâncias históricas
determinadas e isso faz com que ele não comporte um espaço simbólico
independente dos demais discursos.
6. As ideologias políticas 199

De outra parte, mas igualmente com boa dose de incerteza teórica, a


democracia-cristã confunde-se, no mais das vezes, com o tradicionalismo
e o conservadorismo. Mas não só. Houve e há correntes católicas entre
os socialistas (a Teologia da Libertação, por exemplo), entre guerrilhei-
ros de extrema-esquerda e entre um ou outro fascismo de franca origem
tradicionalista. Ou seja, não existe uma “política cristã” que se distinga
como projeto absolutamente autônomo de sociedade, embora haja críti-
cas ao capitalismo, de um lado, e condenações ao socialismo, de outro.27
A democracia-cristã, mesmo quando constituída como partido político,
apenas informou-se de ideologias políticas já existentes, embora muito
tenha contribuído para o fortalecimento de algumas delas.

Notas
1. Sugerimos ao leitor conhecer seu próprio perfil ideológico antes de prosseguir, respondendo ao
exercício que se encontra no Web site da Editora (Anexo II). O resultado terá a valia de estabelecer
um ponto de referência para uma apreciação crítica das ideologias.
2. O Terceiro Setor é o setor voluntário, não lucrativo — em contraste com o primeiro setor estatal
e o segundo setor privado — e se compõe de organizações não governamentais, associações,
fundações, movimentos sociais, entidades beneficentes etc. que são criadas pela sociedade civil
com o objetivo de prestar serviços públicos. Por exemplo, nas áreas da saúde, educação, cultura,
proteção ao meio ambiente, defesa dos direitos do cidadão ou de apoio à criança e ao adolescente,
à terceira idade e aos portadores de deficiência. Suas receitas se originam de doações do setor
privado ou de orçamentos governamentais, além de eventual geração própria de renda.
3. Utilizaremos amplamente nosso livro Classes, Regimes, Ideologias..., pp. 262-286 e também nos
valeremos de Touchard, Jean. História das Ideias Políticas. Lisboa: Publicações Europa-América,
1970, além de outros livros que serão citados oportunamente.
4. Tanto o integrismo quanto o fundamentalismo se baseiam na interpretação literal dos textos
canônicos. Por exemplo, a guerrilha Taleban introduziu no Afeganistão um Ministério da Pro-
pagação da Virtude e de Combate ao Vício: baniu a televisão, a música, as casas noturnas, os
cinemas e as bebidas alcoólicas; fechou as escolas para meninas e proibiu as mulheres de trabalhar
fora de casa, forçando-as a sair à rua vestidas com a burka — o longo camisolão que as cobre
inteiramente, incluindo o rosto; adotou também a sharia, o código legal muçulmano, que prevê
a amputação de pés e mãos de ladrões, o açoite em praça pública dos consumidores de bebidas
alcoólicas e o apedrejamento até a morte de adúlteras e de traficantes de drogas.
5. Ver em particular a conferência de Umberto Eco, proferida na Columbia University dos Estados
Unidos, “A nebulosa fascista” (Folha de S. Paulo, 14 de maio de 1995), que lista alguns traços do
protofascismo que, de fato, correspondem ao tradicionalismo.
6. Sir Edward Coke, citado por Carl J. Friedrich (Tradição e Autoridade em Ciência Política. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1974, p. 30), escreve que “aquilo que foi requintado e aperfeiçoado por
todos os homens mais sábios na antiga sucessão de eras e provado e aprovado por experiência
contínua não pode, a não ser com grande risco, ser alterado e mudado”.
7. Ver entre outros Macridis, Roy C. Ideologias Políticas Contemporâneas. Brasília: Editora Univer-
sidade de Brasília, 1982, pp. 91-107.
8. Como dizia Walter Bagehot: “Uma das maiores dores da natureza humana é a dor de uma ideia
nova”.
9. Como já vimos, trata-se do repertório de opiniões consagradas, frases feitas, juízos sumários,
estereótipos, máximas, preconceitos, motes e clichês.
200 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

10. Não devemos confundir individualismo com egocentrismo ou egoísmo, mas entendê-lo em seu
sentido filosófico: doutrina que aprecia o indivíduo como o valor mais elevado e que vê o bem
comum como imperativo para a realização dos interesses particulares.
11. Ver, entre outras obras clássicas, Sabine, George H. História das Ideias Políticas. Brasil: Editora
Fundo de Cultura, 1964, pp. 653-728; e Macridis, Roy C. Op. cit., pp. 33-90.
12. As liberdades políticas consistem em direito de voto e de ser eleito, em direito de participar da
vida política e de definir não só os governantes, mas também as políticas a serem adotadas. Na
visão liberal, essas liberdades estão intimamente associadas à democracia representativa.
13. Os direitos individuais integram as liberdades civis e consistem em liberdades de pensamento,
expressão, consciência, religião, circulação, reunião, associação, petição, além dos direitos a vida,
propriedade, dignidade, honra e reputação, inviolabilidade do lar e da correspondência, proteção
legal, julgamento justo, igualdade perante a lei, asilo político, nacionalidade, tratamento justo,
privacidade, direito de não ser submetido a trabalho compulsório e de não sofrer torturas. As
liberdades econômicas são, principalmente, liberdades de contrato que supõem adesão voluntária
e ausência de controles estatais, apesar de limitadas pelo respeito ao bem comum; direito de
herança e de acumular riquezas; liberdade dos indivíduos de produzir, comerciar e consumir;
liberdade de escolher livremente seu trabalho, dispor de sua própria propriedade e satisfazer às
suas necessidades num sistema de livre iniciativa.
14. No Congresso de Godesberg de 1957, o Partido Social Democrata alemão anunciou sua ruptura
com o socialismo e abandonou o marxismo como base doutrinária. Um importante estudioso
da social-democracia e do socialismo, Adam Przeworski, sentenciou: “Os social-democratas não
conduzirão as sociedades europeias ao socialismo” (Capitalismo e Social-Democracia. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989, p. 61).
15. Ver, por exemplo, David, Maurício Dias (org.). Social Democracia Hoje. Rio de Janeiro: Fundação
Teotônio Vilela, 1990.
16. Trata-se dos direitos a educação, trabalho, cultura, lazer, remuneração equitativa e satisfatória, salário
igual para trabalho igual, proteção contra o desemprego, a enfermidade, a invalidez, a viuvez e a
velhice, padrão de vida decente garantido pelo acesso à saúde e à habitação, ao saneamento básico
e ao transporte coletivo, à assistência especial para a maternidade e para a infância.
17. Reformas sociais tais como seguro-desemprego, previdência social, pensões aos velhos e aos
inválidos, auxílios à maternidade, proteções às crianças, seguros contra acidentes, redução das
horas de trabalho, serviços de saúde gratuitos, ensino público, transporte coletivo subsidiado,
direitos trabalhistas, programas de moradias populares etc.
18. Aceitam, portanto, a propriedade comunitária, comunal ou cooperativa.
19. Ver, por exemplo, Meyer, Thomas. Socialismo Democrático: uma introdução. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, Friedrich Ebert Stiftung, 1983; e Radice, Giles. Socialismo Democrático. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 1967.
20. Muitos homens de esquerda descreem que, num regime de alternância dos partidos no poder,
reformas irreversíveis e cumulativas sejam possíveis. Apoiam-se na dinâmica histórica recente
quando desnacionalizações e eliminações de programas sociais têm ocorrido em boa parte dos
países ocidentais, “invertendo o curso da história”.
21. Distribuição e tratamento de água, esgotamento sanitário, fornecimento de energia elétrica e de
gás, transporte ferroviário.
22. Ver, por exemplo, Joll, James. Anarquistas e Anarquismo. Lisboa: Publicações Dom Quixote,
1970; Proudhon. O que é a Propriedade? Lisboa: Editorial Estampa, 1975; e Bakunin, Miguel.
Obras Completas. Madrid: Las Ediciones de la Piqueta, 1977.
23. Ver, por exemplo, Srour, Robert Henry. Modos de Produção..., pp. 386-399; Christenson, Reo
M. et alii. Ideologias & Política Moderna. São Paulo: Ibrasa, 1974; Rocker, Rudolf. As Ideias
Absolutistas no Socialismo. São Paulo: Editora Semente, 1981; e Meyer, Thomas. Op. cit.
24. Ver, por exemplo, Buron, Thierry e Gauchon, Pascal. Os Fascismos. Rio de Janeiro: Zahar Edi-
tores, 1980; e Mosca, G. e Bouthoul, G. História das Doutrinas Políticas. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1962.
25. Diz-se: “É absurdo conceder o mesmo direito de voto ao imbecil e ao homem inteligente.”
6. As ideologias políticas 201

26. Ver, por exemplo, Touchard, Jean. Op. cit., volumes 6 e 7; e Macridis, Roy C. Op. cit., pp. 299-
312.
27. As encíclicas que dão corpo à doutrina social cristã (Rerum Novarum, 1891, do Papa Leão XIII;
Quadragesimo Anno, 1931, do Papa Pio XI; Mater et Magistra, 1961, do Papa João XXIII; Popu-
lorum Progressio, 1967, do Papa Paulo VI) não consideram a questão social como um problema
de ordem econômica, mas como um problema de ordem moral. Definem a propriedade privada
como um direito natural, uma vez que assegura condições dignas de vida a seus proprietários.
Contudo, detidos em grande volume, os bens só são considerados uma “propriedade justa” desde
que empregados em benefício da coletividade, ou seja, desde que cumpram sua finalidade social
e gerem harmonia entre as classes sociais. Cabe ao Estado reorientar as forças econômicas para o
bem-estar coletivo, promover a justiça social e conter o direito de propriedade em limites justos
e razoáveis. Assim, a distribuição de renda deve ser regida por princípios morais, e o trabalho
não pode ser comprado como mercadoria. Em consequência, o valor do salário deve remunerar
o que foi realizado e satisfazer às necessidades do trabalhador e de sua família; sem o quê, viola
a lei moral e pratica uma injustiça. Os trabalhadores devem participar da gestão e dos lucros das
empresas.
7
As ideologias econômicas

As principais ideologias econômicas


À semelhança das ideologias políticas, as ideologias econômicas
também propõem programas de ação. Visam, porém, às relações entre
o Plano e o mercado, entre o Estado e a economia. O cerne da questão
resume-se em saber: haverá ou não planejamento econômico, haverá ou
não intervenção do Estado na economia? Se a resposta for afirmativa,
quais os limites do planejamento e da intervenção?
De forma mais detalhada, isso significa perguntar-se: a coordenação
das atividades econômicas será confiada a um órgão central que estabele-
cerá uma “direção consciente” e alocará diretamente os recursos, ou essa
coordenação será operada pelo sistema de preços, ou seja, pelo mercado?
Mais ainda, no meio do caminho: qual será a dosagem entre a centralização
e a descentralização das decisões econômicas? Por fim, surgem indagações
que são variantes do mesmo tema: deveria o Estado concentrar a proprie-
dade de todos os meios de produção ou nada deveria possuir em termos
de aparelho produtivo e de infraestrutura dos serviços públicos? Poderia
o Estado deter algumas funções produtivas e responder pela execução
dos serviços públicos ou deveria o Estado tão somente prover os serviços
públicos sem nada executar? Essas questões todas embutem uma tomada
de posição em relação às funções que cabem ao Estado desempenhar.
Delas emergem duas concepções conflitantes: uma matriz dirigista e uma
matriz liberal.
204 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

A matriz dirigista abriga o intervencionismo do Estado e vai desde


a radical eliminação do mercado (economia de comando centralmente
planejada) à convivência entre mercado e planejamento estatal (economia
mista de mercado ou “mercado controlado”):

„ Na primeira vertente, o sistema da corporação reina soberano através


do aparelho do Estado e de seu Plano inclusivo;
„ Na segunda vertente, o sistema da corporação permeia o sistema

do mercado e estabelece reservas de mercado; lembra vagamente o


velho mercantilismo que o absolutismo régio orquestrava.

Aliás, é contra esse estado de coisas que se ergueu o “liberismo” ou o


liberalismo econômico do século XVIII, ao exigir uma economia livre dos
controles e dos comandos exercidos pelo poder central.1 Em qualquer uma
daquelas situações, a matriz dirigista converte o Estado em demiurgo.
Por sua vez, a matriz liberal reduz a presença do Estado na economia
e abomina intervencionismos que violentem o sistema de preços ou nor-
malizem o mercado em excesso. Vale dizer, o Estado se abstém de planejar
a economia. Em consequência:

„ Numa primeira variante, temos um mercado livre ou a plena des-


centralização da livre concorrência;
„ Numa segunda variante, temos um liberalismo temperado, em que o

Estado apenas catalisa e estimula o mercado através de políticas eco-


nômicas; constrói-se então uma economia social de mercado ou um
“mercado induzido”;2 e o Estado deixa de ser produtor, investidor,
protetor e condutor da economia, embora combine certas regras de
interferência estatal com a coordenação operada pelo mercado.

Em outras palavras, no extremo da matriz dirigista, o Estado é tudo; no


extremo da matriz liberal, o mercado é tudo. Em posições intermediárias,
despontam soluções mistas que enfatizam ora o Estado ora o mercado.
De maneira que permanecem ativos os dois sistemas de regulação — o da
corporação e o do mercado.3
Vamos agora relacionar as concepções de economia, os tipos de Es-
tado e o fornecimento dos bens privados, públicos e semipúblicos.4 Da
comparação, resulta o seguinte esquema:
7. As ideologias econômicas 205

„ Na economia de comando, o mercado é simplesmente eliminado e


todos os bens e serviços são produzidos pelo Estado ou por coope-
rativas sob controle de um Estado máximo; não há praticamente
distinção entre bens privados e bens públicos;
„ Na economia de livre mercado, o Estado reduz sua presença ao mí-

nimo indispensável e provê tão somente os bens públicos; a produção


dos bens privados e dos bens públicos fica exclusivamente em mãos
do mercado, e a própria provisão dos bens semipúblicos tende a ser
privatizada;
„ Na economia social de mercado, predomina o sistema de preços e

um Estado ótimo induz as forças econômicas a investir e a inovar;


o mercado se encarrega dos bens privados, ao passo que os bens
públicos e os bens semipúblicos são providos pelo Estado, mas não
necessariamente produzidos por ele;
„ Na economia mista de mercado, o Estado dá as cartas via planejamen-

to diretivo ou flexível, e torna-se produtor de alguns bens privados,


assim como dos bens públicos e dos semipúblicos; funciona como
um Estado benfeitor.

A ideologia neoliberal
Besta negra das esquerdas, o neoliberalismo faz as vezes de ideologia
hegemônica do processo de globalização e chega a ser assimilado, por ra-
zões táticas, ao próprio capitalismo.5 Não se confunde com o liberalismo
clássico do século XIX, arauto do laissez-faire, laissez-passer e do Estado-
vigia (“anarquia mais o delegado”).6 E por quê? Porque não resume as
funções estatais à proteção do regime de livre concorrência e à guarda da
ordem jurídica. Agrega outras ações à órbita pública: a administração da
justiça e a realização subsidiária de tudo aquilo que a iniciativa privada não
se interessa por financiar ou por cuidar — por exemplo, as obras públicas
e a educação básica.
O neoliberalismo nasceu na década de 1940 e foi uma reação teórica
contra o Estado intervencionista e de bem-estar social.7 Apoia-se numa
ideia central de Friedrich Hayek que sentenciava: qualquer limitação dos
mecanismos de mercado por parte do Estado detona um processo irre-
versível de supressão das liberdades individuais e leva à constituição de
um regime totalitário. Ou melhor, todo planejamento conduz à ditadura,
206 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

todo dirigismo econômico arrasta a economia para o estatismo. Sua crítica


torna-se aguda quando diz que, em seu afã de construir racionalmente a
sociedade, os “engenheiros” do bem-estar social (os social-democratas do
pós-Segunda Guerra Mundial favoráveis às “nacionalizações”), assim como
os socialistas, os comunistas e os fascistas impõem um plano arbitrário,
concebido de forma apriorística. Em consequência, transformam o Estado
em principal proprietário dos meios de produção, senão em único. Os
princípios-guia do neoliberalismo são:8

„ O máximo de bem-estar e o emprego ótimo dos fatores de produção


obtêm-se pelo funcionamento de um mercado livre, regulado pelos
incentivos criados pelo sistema de preços;
„ Todos os agentes devem ser livres de produzir, vender e comprar

qualquer produto no mercado, ao preço que um interessado se


dispuser a desembolsar na transação;
„ Os produtores maximizam seu lucro, em função da tecnologia dis-

ponível, e os consumidores maximizam a utilidade, dadas as suas


preferências e renda;
„ Qualquer intervenção na economia é nociva porque rompe a com-

petição e o equilíbrio espontâneo do mercado; todo planejamento


subordina desejos e preferências individuais às exigências do Esta-
do, priva o consumidor da liberdade de escolha e impede a livre
competição entre os produtores; o planejamento e a concorrência
constituem princípios opostos;
„ Cabe recorrer o menos possível à coerção e confiar nas forças im-

pessoais do mercado, pois a liberdade econômica, através da coo-


peração espontânea e das trocas voluntárias, realiza o bem público
e harmoniza os interesses individuais;
„ O interesse geral opera como síntese dos interesses particulares, à

medida que a iniciativa individual serve de base à vida econômica;


„ O desenho do Estado deve ser minimalista: regras formais precisam

limitar estritamente seu poder e cabe-lhe desempenhar três funções


precípuas — o policiamento, a administração da justiça e a defesa
nacional;
„ O Estado pode assumir algumas responsabilidades subsidiárias:

assegurar a estrutura legal conveniente que permita e estimule a


liberdade econômica; fornecer os serviços sociais não lucrativos;
criar as condições para que a competição seja tão eficiente quanto
7. As ideologias econômicas 207

possível e completar a ação da concorrência quando esta não puder


funcionar a contento;
„ A competição é o método mais eficiente que se conhece, o único

que harmoniza os interesses individuais sem recorrer à intervenção


coerciva ou arbitrária da autoridade pública; a concorrência dispensa
o “controle social consciente” e fornece aos indivíduos oportunida-
de para decidir se dada atividade pode ou não compensar os riscos
envolvidos;
„ O socialismo equivale à economia planejada, extingue a iniciativa

individual e a propriedade privada, substitui o empreendedor que


visa ao lucro por um órgão central de planejamento;
„ O mecanismo anônimo e impessoal do mercado erradica a direção

coletiva das forças sociais, faz do lucro uma força motriz, cultua a
eficiência e as vantagens competitivas, permite o desabrochar das
ambições individuais, estabelece a harmonia universal a despeito e
além da consciência dos indivíduos;
„ O comunismo, o fascismo e o nazismo são variantes socialistas que,

ao introduzirem o planejamento econômico, levam ao crescimento


da coerção e do arbítrio administrativos, à progressiva destruição do
regime da lei,9 ao despotismo exercido pela burocracia planejadora,
ao coletivismo que elimina o indivíduo como juiz supremo de seus
próprios objetivos;
„ O Estado não pode sobrecarregar-se com programas sociais, pois

os pobres são responsáveis pela própria condição e o mercado ga-


rante a seleção dos mais aptos, de maneira que é preciso combater
a “cultura da dependência”;
„ O Estado deve limitar-se a estabelecer regras que se apliquem às

situações gerais e mais frequentes, deixando os indivíduos livres


para serem árbitros de suas ações e de seus próprios interesses;
„ Políticas públicas em destaque: disciplina orçamentária; enxuga-

mento da máquina pública; corte dos gastos sociais ou das trans-


ferências de renda extramercado;10 abolição dos controles sobre
os fluxos financeiros; ajustamento fiscal e redução de impostos;
enfrentamento do poder predatório dos sindicatos; privatização
das indústrias básicas em mãos do Estado; liberalização comercial
e desregulamentação da vida econômica;
„ Alguns pressupostos: um mundo em que os ricos são poderosos é

ainda preferível àquele em que só os poderosos podem adquirir


208 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

riquezas; é improvável que um homem dê o melhor de si durante


muito tempo, a não ser que seus interesses estejam diretamente
envolvidos nisso; na economia baseada na competição, a escolha
e o risco recaem sobre o indivíduo e este passa a nutrir um ideal
de independência e de liberdade; numa economia planejada, ao
contrário, a plena segurança econômica restringe a liberdade e
submete o indivíduo a uma ordem hierárquica de tipo militar, em
que o ideal se torna a “organização” de todos os aspectos da vida
social;11
„ As virtudes de uma sociedade individualista são o direito inalienável

à propriedade, a responsabilidade do indivíduo por seu destino, a


confiança em si mesmo, a iniciativa individual, a disposição para
assumir riscos, a tolerância para com os “diferentes” e pelas opiniões
alheias, a presteza em defender as convicções pessoais, o respeito
pela vida privada, a fé nas boas intenções dos outros, a suspicácia
ante o poder e a autoridade, a não interferência nos assuntos dos
vizinhos, o estímulo à atividade voluntária.

Os porquês do planejamento
Todas as ideologias econômicas que questionam o automatismo do
mercado ou a “mão invisível” de Adam Smith, partem da crítica à capaci-
dade do mercado para se autorregular. Consideram necessário algum tipo
de interferência estatal na economia. Estão convencidas de que:

„ O mercado por si só não cuida dos bens públicos e a economia de


mercado versa sobre um jogo não cooperativo. Os agentes tendem a
deixar a cargo dos outros o financiamento dos bens públicos numa
postura de free riders, usufruindo os benefícios à custa dos outros.
Daí a necessidade de o governo recolher os recursos indispensáveis
para prover os bens coletivos através da tributação;
„ O teorema da alocação de recursos Pareto-eficiente é omisso quanto à
12

distribuição de renda: para cada perfil distributivo existe um equilíbrio


competitivo eficiente no sentido de Pareto; isso abre uma cunha para a
intervenção governamental que, por meio de impostos e transferências,
pode alterar a distribuição de renda na sociedade;
„ Para que houvesse concorrência perfeita, seria preciso que os mo-

nopólios naturais13 fossem regulamentados e que as manobras oli-


7. As ideologias econômicas 209

gopolistas de restrição da oferta, por meio do aumento de preços,


fossem coibidas;
„ As externalidades na produção e no consumo, tais como a poluição

do ar ou das águas, exigem correções que o sistema de preços não


contempla; assim, mediante impostos, subsídios e regulamentos, os
efeitos externos decorrentes do uso de bens de propriedade comum
acabam sendo corrigidos pelo Estado;14
„ A concorrência perfeita supõe igualdade de informações quanto aos

riscos; como isso não ocorre, dada a “miopia do consumidor”, a


interferência estatal se impõe para compensar eventuais assimetrias
de informação, desde a fiscalização bancária até a proibição do
tráfico de drogas.

Tais asserções põem em dúvida a capacidade que o mercado teria para,


de um lado, regular automaticamente a produção através dos mecanismos
da concorrência, da oferta e da procura e, de outro, para ajustar a produção
às necessidades do consumo, numa espécie de “equilíbrio espontâneo”.
A intervenção do Estado se justificaria então para enfrentar as crises do
sistema capitalista e o desemprego tecnológico. Aliás, ao reconhecer como
inerentes ao sistema capitalista a instabilidade e a subutilização crônica
dos recursos, Lorde Keynes ensinou que o Estado deveria assumir o papel
de regulador da vida econômica. Deveria também eliminar o desemprego
e promover o equilíbrio necessário, suplementando a insuficiência da
demanda agregada no setor privado.15
O planejamento econômico data da década de 1920,16 mas a União
Soviética só adotou seu primeiro plano quinquenal em 1929. Nos países
capitalistas, o planejamento sempre visou a elaborar modelos racionais
de política econômica para canalizar as forças econômicas em direção
à alocação ótima dos recursos. Nunca pretendeu substituir o sistema de
preços, mas tão somente lhe corrigir as distorções e melhorar sua eficiên-
cia dinâmica. Ou seja, almejou promover o desenvolvimento econômico
diretamente através de investimentos públicos, ou indiretamente através
da alteração dos preços relativos — via incentivos fiscais, impostos indi-
retos ou política seletiva de crédito. O intuito consiste, pois, em orientar
os investimentos privados na direção desejada. Dito de outra forma, o
planejamento capitalista aspira a dar coerência a objetivos socialmente
definidos como, por exemplo, a taxa de crescimento, o nível de emprego
e a redistribuição de renda. Ambiciona também assegurar o crescimento
210 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

da produção em níveis compatíveis com a demanda. Para tanto, lança mão


de dois instrumentos: a melhora da eficiência dos recursos disponíveis e
o aumento da oferta dos fatores de produção.17
Muitos autores, entre os quais Karl Mannheim, qualificaram o plane-
jamento econômico como inevitável e consideraram viável que o processo
fosse democrático e não sacrificasse as liberdades individuais.18 Não en-
dossaram, portanto, os temores do pensamento neoliberal. Argumentaram
que, dado o nível de complexidade das sociedades contemporâneas, não
havia como deixar ao acaso processos sociais, sob risco de derrapar no
caos e de favorecer as tentações totalitárias. O propósito consistiria em
combinar as liberdades individuais com a eficiência necessária à vida co-
letiva, através de um “controle social racional” ou de um “planejamento
para a liberdade”. O planejamento visaria então à harmonia orquestral,
pois tanto poderia produzir monotonia e uniformidade, quanto poderia
gerar polifonia e heterogeneidade.
Afinal, as empresas contemporâneas não utilizam de forma regular o
planejamento como ferramenta de gestão? Isso não demonstra que não
há contradição necessária entre planificação e liberdades democráticas?
Mais ainda: sem alguma forma de planejamento ou sem a elaboração de
um projeto, as sociedades humanas lograriam construir ou produzir o que
quer que fosse?
Podemos distinguir três formas de planejamento econômico:
„ Um planejamento central ou imperativo através do qual todas as
decisões econômicas são centralizadas. Neste contexto, o Estado
torna-se o principal detentor dos meios de produção, quando não
o único. O órgão central de planejamento fixa os preços dos fatores
e substitui o mercado;
„ Um planejamento flexível ou diretivo por meio do qual o Estado

conduz a atividade econômica, apesar de não ser o proprietário da


maior parte dos meios de produção, mas daqueles considerados
“estratégicos”. Neste contexto, o Estado atua como empresário, fixa
metas e meios para a economia através de um plano, intervém dire-
tamente nos preços do setor privado — a ponto de tabelá-los ou até
de congelá-los. E mais: ao controlar salários e benefícios sociais, visa
satisfazer de forma crescente os interesses das classes subalternas;
„ Um planejamento indicativo ou indutor que não implica a existência

de um plano econômico explícito e detalhado, mas que assegura a


ação indireta do Estado através das políticas tributária, monetária,
7. As ideologias econômicas 211

salarial, cambial e de estimulação econômica.19 Neste contexto, o


Estado também preserva e reajusta os mecanismos de mercado, além
de oferecer compensações aos segmentos sociais dotados de menor
poder de barganha.

Vamos agora estabelecer nexos entre as ideologias políticas e as concep-


ções de economia. As conexões correspondem a afinidades eletivas, isto é,
a congruências ou a confluências de princípios e valores. Não estabelecem,
portanto, vinculações automáticas, cujo caráter só poderia ser mecânico
e, portanto, pouco realista.
Uma importante ressalva, contudo, se faz necessária. O discurso anar-
quista não preconiza um plano que regule os intercâmbios entre comu-
nidades livres e federadas. Tampouco postula a presença de um aparelho
de Estado. Sua concepção pressupõe trocas espontâneas, assemelhadas
ao escambo, sem órgão central de planificação e sem sistema regulador
de preços. No entanto, uma vez que os anarquistas não assumiram o
poder em canto algum do planeta (a não ser em pequenas comunidades
alternativas), vale o conhecimento antropológico que se tem de “unidades
superiores”. Estas foram constituídas para organizar comunidades em torno
de atividades de interesse comum. Foi o caso, por exemplo, das chamadas
formas asiáticas do modo de produção latifundiário. Ora, o que se sabe

Figura 14

A concepção de economia: afinidades eletivas

social-democratas liberais

Planejamento PRIVATISTAS
indicativo “modernos”
socialistas
conservadores

Planejamento Autorregulação
flexível “mão invisível”

anarquistas
tradicionalistas
Planejamento
ANTIPRIVATISTAS central
“arcaicos”

comunistas fascistas
212 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

a respeito? Que algum tipo de planejamento flexível ocorreu. De fato, a


“federação de comunidades”, criada por um esforço conjunto para reali-
zar objetivos inclusivos, acaba desenvolvendo uma lógica organizacional
própria e meios de ação particulares. Eis por que, à revelia do discurso
anarquista, o planejamento parece ficar implícito em seu espaço ideoló-
gico, ao contrário dos fascistas, dos comunistas e dos socialistas entre os
quais ele reina soberano.
Por serem anticapitalistas, os adeptos dos planejamentos central e fle-
xível são antiprivatistas e receberam, de forma merecida ou não, a alcunha
de “arcaicos” por advogarem um amplo ativismo do Estado, enquanto os
demais são privatistas e “modernos” por defenderam um Estado menos
ativista e que se desengaje das atividades produtivas.

A ideologia social-liberal
Norberto Bobbio, o célebre filósofo político italiano, defende um
compromisso entre o liberalismo político e o socialismo econômico.
Propõe que os direitos individuais e a propriedade capitalista sejam res-
peitados, em concomitância com os direitos sociais e a participação dos
trabalhadores.20 Ergue-se contra as tendências estatistas do socialismo e
do comunismo, mas pretende uma intervenção moderada do Estado para
corrigir as falhas do mercado. Considera sinônimos o social-liberalismo
e a social-democracia atual.21 De maneira que um fosso separa as duas
variantes da matriz liberal: o social-liberalismo, de modo diverso do neo-
liberalismo, encampa o planejamento indicativo (programação econômica
ou intervenção branda do Estado) e pressupõe a universalização dos di-
reitos sociais através de políticas públicas compensatórias especificamente
voltadas para os desamparados.
Vale a pena insistir, no entanto, sobre o fato de que o social-liberalismo
é uma ideologia econômica, enquanto a social-democracia é uma ideolo-
gia política, razão pela qual os liberais políticos também comungam com
o ideário social-liberal. Vamos então alinhar os caracteres da ideologia
social-liberal que perpassam tanto o pensamento dos liberais políticos
contemporâneos, quanto o dos social-democratas:22

„ A defesa do Estado ótimo ou socialmente necessário: Estado forte e


enxuto, que realiza suas funções com o menor custo possível, provém
7. As ideologias econômicas 213

bens públicos e bens semipúblicos, corrige as distorções do merca-


do pelo combate aos abusos dos cartéis, monopólios, oligopólios e
cartórios empresariais e garante efetiva igualdade de oportunidades
para todos;
„ A fórmula-chave consiste em combinar eficiência e equidade social,

no seio de uma economia social de mercado;


„ O Estado assegura direta ou indiretamente a provisão das necessi-

dades sociais básicas da população, notadamente nos países pobres


cujo problema central não é o controle da demanda agregada, mas
a expansão da oferta de bens e serviços;
„ O mercado, embora seja o principal responsável pela alocação dos

recursos, deve ser temperado pela ação indutora do Estado, pelo esfor-
ço permanente para dissolver privilégios e pela execução de políticas
públicas compensatórias que visem a alcançar o bem-estar social;
„ O Estado deve restringir-se a operar como indutor para alcançar o

desenvolvimento econômico, através do planejamento indicativo


e do investimento em infraestrutura, e só deve assumir funções
produtivas em última instância, quando os recursos da iniciativa
privada forem insuficientes;
„ A solidariedade social é vital, pois o destino de um agente indivi-

dual depende de suas condições de existência durante a infância e a


adolescência; e, uma vez que os filhos não devem carregar a culpa
dos pais, incumbe à coletividade a responsabilidade de assistir os
desamparados;
„ O sistema do mercado não pode prescindir de um embasamento

ético (a teoria ética da responsabilidade tem justificado inúmeras


decisões de extrema relevância social), nem pode funcionar sem ins-
tituições políticas que refreiem a cobiça ou a ganância dos interesses
individuais;
„ Pensamentos de base: tornar compatível o interesse coletivo com as

liberdades individuais; universalizar os direitos civis, políticos e sociais;


garantir condições mínimas de existência à população pela ação do
Estado, assim como assegurar o acesso ao emprego e o desfrute do
tempo livre para que se alcance a maior igualdade social possível;
„ Políticas em destaque: estabilização econômica; desestatização do

setor produtivo do Estado; concessão onerosa, terceirização ou pri-


vatização da infraestrutura dos serviços de utilidade pública; estímulo
às atividades intensivas em força de trabalho para perseguir o pleno
214 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

emprego; liberalização e desregulamentação comercial pela abertura


de mercados; ajustamento fiscal e incentivo à poupança pública;
apoio à capacitação tecnológica para desenvolver a competitividade
das empresas;
„ Os empreendedores têm um papel inovador a desempenhar no

desenvolvimento econômico, e não há incompatibilidade entre a


economia de mercado e o esforço concentrado para a atenuação
das desigualdades sociais;
„ Defesa da pluralidade das formas de propriedade: capitalista (tan-

to social como excludente), cooperativista, comunal, pública (não


estatal), comunitária e pequena propriedade autônoma;
„ Crítica à tentação populista que encampa qualquer reivindicação

dos subalternos sem providenciar a fonte de financiamento, nem


analisar suas implicações no longo prazo;
„ Ideia central de justiça social, entendida como direito efetivo à vida

com dignidade;23
„ Reforma e fortalecimento do Estado para resgatar a dívida social,

a inserção do país no sistema produtivo internacional com vistas a


servir os interesses nacionais e populares, bem como o enfrentamento
dos interesses corporativos para criar nova articulação entre o país
e a ordem mundial.24

A ideologia estatista
Os defensores do estatismo consideram que, através de métodos admi-
nistrativos ou do planejamento central, a regulação da economia atingirá
píncaros de eficiência e de produtividade. Opõem-se diametralmente aos
defensores da supremacia da “mão invisível” ou do automatismo do mer-
cado, que vêem o interesse geral como síntese dos interesses particulares.
E têm na economia de comando da antiga União Soviética o exemplo mais
acabado de seu projeto.
É interessante lembrar que o culto do Estado, como entidade transcen-
dente, serviu de pano de fundo ao intervencionismo estatal. Suas fontes
encontram-se na celebração do Estado prussiano por muitos autores, bem
como na filosofia de Hegel. Paradoxalmente, ainda, tal postura reponta
bem viva nas obras de Marx, um dos expoentes do “deperecimento do
Estado”, e inspirou o jacobinismo leninista e a barbárie inaudita do tota-
litarismo soviético. Por sua vez, e por caminhos transversos, os fascistas
7. As ideologias econômicas 215

sempre fizeram a apologia do estatismo burocrático e consagraram uma


nova classe de senhores — os gestores do Partido único, das empresas
estatais e do aparelho de segurança. O estatismo advoga assim:25

„ O planejamento imperativo ou central, em que a alocação direta


dos recursos às empresas se faz em termos quantitativos pelo órgão
central de planejamento;26
„ A economia planificada tem por objetivos últimos a satisfação das

necessidades sempre crescentes da população e a elevação do padrão


de vida do povo, que será cuidado do “berço ao túmulo”;
„ Os objetivos intermediários dependem das situações históricas: in-

dustrialização intensiva, consolidação da independência nacional,


criação das bases para a reprodução ampliada da economia, diversi-
ficação dos produtos agrícolas, fortalecimento do comércio exterior,
transformações das condições técnicas de produção, conquista de
territórios vitais para a nação etc.;
„ Com o planejamento central, pretende-se que as crises de superpro-

dução deixem de ocorrer, pois se planeja a oferta e assegura-se de


forma consciente a devida proporção entre os diferentes setores da
produção, da distribuição, da circulação e do consumo;
„ Os planejadores pressupõem qual a real utilidade dos bens e dos

serviços produzidos e fixam administrativamente os preços, cuja


função é contábil: os preços visam a avaliar a eficiência das empresas
e a comparar as mudanças na produção;
„ O Estado é o único ou o principal proprietário dos meios de produ-

ção, daí a ideia de um Estado maximalista que funciona em nome


do povo ou da nação;27
„ Há pleno emprego da força de trabalho, porquanto todos os agentes

sociais são funcionários do governo ou recebem proventos oficiais:


o Estado é praticamente o único empregador;
„ Substituição do comércio interno pela alocação administrativa de

recursos, embora, na falta de critérios objetivos de caráter estatista,


o comércio externo obedeça aos “preços de mercado capitalistas”;
„ As empresas estatais não podem falir ou ser declaradas insolventes

e nelas prevalece a lógica corporativo-burocrática;


„ Os planejadores baseiam suas instruções no desempenho passado,

uma vez que as tabelas de insumo-produto e os balanços de maté-


rias-primas refletem coeficientes técnicos passados;
216 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

• Os órgãos centrais de planejamento devem tudo prever e tudo


ordenar: alocar recursos e força de trabalho para tarefas predeter-
minadas; mandar que se fabriquem os produtos correspondentes às
necessidades que forem identificadas; fixar centenas de milhares de
preços; proceder a revisões gerais periódicas que ajustem os custos
aos preços que se vão praticar.

A ideologia nacional-desenvolvimentista
Parte do pressuposto de que as nações precisam passar do “polo tradi-
cional”, ou da sociedade agrária exportadora, para o “polo moderno”, ou
da sociedade industrial autônoma. Seriam assim reproduzidas as etapas do
desenvolvimento econômico da Europa Ocidental e dos Estados Unidos.
Ora, esse movimento só se viabiliza se o Estado intervier para acelerar a
ação dos fatores dinâmicos e para remover os obstáculos que se interpõem
à superação do subdesenvolvimento ou do atraso — baixo PIB, hábitos de
consumo inadequados, crescimento demográfico explosivo.
As razões do subdesenvolvimento são rastreadas nas relações entre
centro e periferia e no processo de “colonização de exploração” empreen-
dido pelos países que se empenharam na expansão marítima e comercial
da Idade Moderna. De maneira que a chave para transitar da sociedade
tradicional para a sociedade moderna repousa no processo de industriali-
zação rápida, promovido e protegido pelo Estado. E o modelo a implantar
é o da substituição das importações, que supõe mudanças induzidas “de
fora” nos padrões de consumo vigentes. Para atingir tal fim, impõe-se
uma ação racional e planejada que somente o Estado pode levar a cabo,
porque os problemas a serem enfrentados têm caráter estrutural: acumu-
lação insuficiente de capital; dependência do comércio externo; consumo
conspícuo dos segmentos de renda alta; ausência de um empresariado
empreendedor. No essencial, então, o protecionismo sobrepuja e afasta o
antigo livre-cambismo.
Vejamos alguns traços significativos da ideologia nacional-desenvol-
vimentista:28

„ O processo de industrialização conduz ao desenvolvimento econô-


mico e corresponde à libertação, ao progresso e ao bem-estar de
todos; traz também a eliminação da pobreza e a prosperidade na-
7. As ideologias econômicas 217

cional em benefício da sociedade inteira, e não apenas de segmentos


particulares;
„ O Estado promove a industrialização, ao planejar e executar ações

com base no planejamento flexível ou diretivo e com a constituição


de uma economia do setor público;
„ Confere-se caráter republicano ao Estado quando este integra à

defesa da soberania nacional simultaneamente a inclusão social e a


democracia política;
„ O país cumpre o seu destino de grande nação quando supera o atraso

pelo uso de técnicas modernas e pelo esforço destinado a transpor


as barreiras existentes;
„ A formação de um mercado interno privilegia a introversão do

país, em contraposição à exclusiva extroversão anterior, de caráter


colonial;
„ A perseguição de um ideal de integração latino-americano visa a

estabelecer um poder de barganha específico contra as potências


centrais;
„ A reforma agrária e a distribuição de renda são requisitos para

transformar a economia com equidade;


„ A concepção de uma passagem do modelo exportador de produtos

primários e importador de manufaturados para o modelo substitu-


tivo de importações visa a privilegiar a produção interna de manu-
faturados de consumo; trata-se também de não mais produzir para
exportar, mas produzir para consumir;
„ O grande desafio do país consiste em deixar de ser uma sociedade

tradicional ou atrasada (latifundiária, agrária, rural e oligárquica)


para ser uma sociedade moderna e desenvolvida (capitalista, indus-
trial, urbana e democrática);
„ O setor industrial é eleito como vetor dinâmico do desenvolvimento

econômico e, em especial, a indústria pesada de bens de produção;


a redistribuição de renda em favor da indústria se faz pelo confisco
cambial que incide sobre as exportações agrícolas;
„ A industrialização é concebida como forma de transferir os centros

de decisão de fora para dentro e de desenvolver uma cultura nacio-


nal; o nacionalismo constitui a força propulsora para tornar o país
independente e para conferir-lhe o estatuto de verdadeira nação;29
„ O desenvolvimento deverá ser realizado pela aliança entre o Estado

produtor e a burguesia nacional e não pelo investimento estrangeiro;


218 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

„ O projeto de um capitalismo nacional autônomo, com propensão


autárquica, se fará pela emancipação econômica do país via indus-
trialização intensiva e intervenção de um Estado promotor;
„ O Estado deve servir de escudo às empresas nacionais através do

protecionismo: altas taxas alfandegárias, política cambial, proibição


de importações, reserva de mercado para os produtores nacionais
de bens de consumo, facilidades para importação de equipamentos,
controle do comércio exterior;
„ O Estado conduz o desenvolvimento e torna-se seu principal agente

executor: participa do produto e do investimento nacionais; inter-


vém na economia para promover o crescimento econômico; investe
recursos diretamente nos setores básicos30 e cria condições favoráveis
à iniciativa privada; estatiza a infraestrutura dos serviços de utilidade
pública; canaliza a poupança coletiva para setores estratégicos que
não apresentem rentabilidade satisfatória para o capital privado;
estabelece prêmios de ordem fiscal tais como subsídios, isenções e
subvenções; aumenta o consumo dos bens públicos; controla e ofe-
rece créditos aos investimentos privados; aumenta a carga tributária
para fazer face às suas novas responsabilidades; controla os preços,
os salários, os aluguéis e os juros;
„ O Estado é exaltado como benfeitor dos deserdados e redistribui-

dor da renda, como ente responsável pela eliminação da pobreza


(assistencialismo público); em torno dele e de seus compromissos
políticos devem convergir as elites, as camadas médias e os setores
populares (nacional-populismo e Estado mediador).31

Três temas comparativos


Liberalismo versus dirigismo
Mantida a abordagem das afinidades eletivas, é possível relacionar as
ideologias políticas, as ideologias econômicas e as matrizes de pensamento
econômico. De um lado, destaca-se a matriz dirigista com o intervencio-
nismo declarado do tipo:

„ Imperativo, com regulação total operada pelo Estado e com eventual


eliminação do mercado numa economia de comando;
„ Diretivo, com forte regulação da economia, mas preservados alguns

mecanismos de mercado numa economia mista de mercado.


7. As ideologias econômicas 219

De outro lado, tem-se a matriz liberal do pensamento econômico


com:

„ A presunção de uma economia de livre mercado, imune à ingerência


do Estado e animada pelo seu equilíbrio espontâneo;
„ A construção de uma economia social de mercado, em que a ação do

Estado se resume a formular políticas, catalisar o mercado e prover


serviços sociais.

A visão anarquista, porém, propõe a criação de uma economia de trocas


espontâneas, viabilizada por um pacto entre comunidades federadas e livres,
e recusa qualquer intervencionismo na economia. Ora, tal pressuposição
não condiz com o modo de operar das “unidades superiores” conhecidas
historicamente e que se encarregavam de assuntos comuns a várias co-
munidades (caso já citado das formas “asiáticas” de produção). Ou seja,
queiram ou não, os anarquistas acabarão pagando um tributo a alguma
forma de planejamento se tiverem êxito em seu projeto de sociedade.
Ao estabelecer correspondências entre ideologias econômicas e ideolo-
gias políticas, notamos de forma tendencial que o neoliberalismo seduz os
conservadores e os tradicionalistas, enquanto o social-liberalismo empolga
os liberais e os social-democratas. Isto é, essas quatro ideologias políticas
encontram afinidades na matriz liberal do pensamento econômico. Por sua
vez, na matriz dirigista encaixam-se o estatismo — claramente esposado
pelos comunistas e pelos fascistas — e o nacional-desenvolvimentismo.
Este reúne os protecionistas renitentes e os interesses contrariados pela
globalização capitalista;32 reúne também os comunistas e os socialistas que,
malgrado as variantes, continuam fazendo do nacional-desenvolvimentis-
mo uma peça de resistência.
É bom lembrar que, a partir da recente experiência chinesa, alguns co-
munistas e muitos socialistas também passaram a advogar uma economia de
mercado socialista. Isso equivale a dizer forte presença das empresas estatais
nos setores de infraestrutura de transporte, comunicações, bancos e serviços
de utilidade pública; propriedade estatal do solo, do subsolo e dos recursos
naturais; planejamento central ou flexível; mas também multiplicidade de
encraves ou zonas econômicas especiais, onde a liberdade econômica pre-
valece sem peias e em que o setor privado alcança índices portentosos de
crescimento econômico. O tipo de capitalismo que está se introduzindo,
todavia, é excludente e muitas vezes “selvagem”. Apesar de o Partido Co-
220 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

munista Chinês insistir que a economia planificada continua sendo o vetor


principal e que a função reguladora do mercado seja tão somente auxiliar.
De fato, esse tipo de economia mista — submetida a um sistema político
totalitário — questiona alguns dos pressupostos básicos do socialismo. Por
exemplo, a ineficiência das empresas estatais exige elevados subsídios, sem
o quê elas se tornam insolventes.33 Muitas delas foram então desativadas,
gerando uma verdadeira avalanche de desempregados e descartando o
pleno emprego socialista. Paralelamente às reformas econômicas de 1978,
dezenas de milhares de leis foram reescritas para simplificar os trâmites
burocráticos e conferir-lhes rapidez, a fim de permitir o florescimento
do “empreendedorismo” capitalista ou da livre-iniciativa. Ademais, para
infundir confiança aos investidores estrangeiros, responsáveis pelo inves-
timento de centenas de bilhões de dólares, os contratos foram garantidos
institucionalmente, e o direito à propriedade privada acabou inscrito na
Constituição chinesa. Até uma Lei de Falência foi promulgada. Ficou
também estabelecido que o governo não iria intervir diretamente nas
atividades econômicas, mas permitiria que as empresas aplicassem seus
próprios princípios, decidissem a respeito de seus métodos de gestão e
assumissem seus riscos. Em 2001, foram admitidos nas fileiras do Partido
Comunista — numa excepcional quebra de tabu — proprietários priva-
dos dos meios de produção. A consagrada metáfora de Deng Xiaoping,
o idealizador da “economia de mercado socialista”, ganhou corpo: não
importa a cor do gato, mas sua capacidade de caçar ratos. De maneira que
mais um postulado deixou de valer: não há mais a prevalência absoluta
do coletivismo. Entretanto, a regulamentação macroeconômica do Estado
não deixou de operar de forma soberana, ainda que coubesse ao mercado
um papel fundamental na distribuição dos recursos.34
A economia de mercado socialista constitui uma inovação conceitual
para a teoria marxista, uma vez que os dirigentes comunistas chineses a
consideram como uma etapa preliminar da construção de uma sociedade
socialista. Ou seja, para transitar para uma sociedade comunista, não se
teria mais uma única transição (o socialismo), mas duas:
„ Uma preliminar para construir o socialismo ou uma economia de
mercado socialista, em que dois modos de produção convivem — o
corporativista e o capitalista;
„ Uma economia de caráter coletivista, que seria a base de uma so-

ciedade propriamente socialista em que todos os meios de produção


seriam coletivos e as classes sociais desapareceriam.
7. As ideologias econômicas 221

Vale dizer, somente a segunda etapa derruba o sistema capitalista. Ora,


a revolução comunista chinesa já tinha proposto acabar com o capitalismo
e, realmente, o fez. O que está em curso agora? Sua reinstalação e sob a
regência do Estado! O que pensar? Que os dirigentes chineses reconhecem,
de forma implícita, que a revolução comunista “saltou” uma etapa e que
a tarefa atual consiste em desenvolver as forças produtivas e em acumular
forças para uma efetiva e próxima transição para o socialismo. O comunismo,
por via de consequência, fica para um futuro indefinido. E obtém-se, ipso
facto, uma elaborada justificação para a manutenção do partido único e do
totalitarismo, uma vez que estes constituem os instrumentos indispensáveis
para fazer, mais adiante, a revolução dentro da revolução...

Figura 15

As matrizes do pensamento econômico


social-democratas liberais

mercado
socialista social-liberalismo

socialistas Liberal conservadores

nacional-
desenvolvimentismo neoliberalismo

Dirigista
anarquistas
tradicionalistas

pacto entre
comunidades
estatismo
comunistas fascistas

Uma curiosidade histórica merece ainda ser lembrada, no tocante à ado-


ção das ideologias econômicas no Brasil. O nacional-desenvolvimentismo,
embora apanágio das esquerdas, converteu-se em ideologia hegemônica
entre os anos 1950 e 1980. Foi formalmente celebrado pelo empresariado
industrial e por seus “intelectuais orgânicos”, assim como por boa parte do
corpo de oficiais das Forças Armadas e por muitos profissionais liberais.
De algum modo, os setores mais diversos da sociedade brasileira procu-
raram refugiar-se atrás do escudo do Estado, estabelecendo uma espécie
de “sistema da cornucópia”, baseado na ordenha da máquina estatal.
222 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

Com efeito, a distribuição clientelista de favores, o fisiologismo político,


a apropriação privada e corporativa de recursos públicos resvalaram num
patrimonialismo despudorado e num “cartorialismo” empresarial que
contribuiu grandemente para a falência financeira do Estado brasileiro
no final dos anos 1980.

“Sujeitos históricos”
Embora o Estado tenha um papel central no discurso nacional-desen-
volvimentista, há um mito mobilizador que quase o ofusca: a grandeza
nacional só será alcançada se as forças dormentes do país forem sacudidas
ou se as potencialidades latentes da Nação forem trazidas à tona. Pois o
destino reserva um lugar de destaque ao país que souber mobilizar suas
energias para superar o “atraso” e vencer os obstáculos que se interpõem
em seu caminho. Numa leitura historicista da realidade social, diríamos
que a nação se torna sujeito da história, categoria privilegiada de análise.
Para converter-se em nação, o País deve reeditar os centros desenvolvidos e
deve se alçar a um patamar em que haja soberania e autonomia nacionais,
prosperidade e paz social, progresso e bem-estar do povo.
Em contrapartida, nos totalitarismos fascista ou comunista ou na
ideologia econômica estatista, malgrado as repetidas menções à nação, a
categoria privilegiada acaba sendo a do Estado fusionado com o Partido
único: ente inclusivo, proprietário coletivo dos meios de produção, pla-
nejador onisciente, educador e protetor do povo.
Por sua vez, no neoliberalismo, o privilégio recai sobre a categoria de
indivíduo independente e livre, mestre de seu destino, usina de iniciativas e
da criatividade, supremo árbitro de seus riscos e de seus interesses, centro
responsável por seus atos e escolhas.
Por fim, no social-liberalismo, repontam a democracia das associações
voluntárias e a composição das divergências. Destaca-se o pluralismo dos
interesses articulados em entidades representativas e abre-se o espaço para
que a categoria privilegiada de análise seja a sociedade civil ou a cidadania
organizada.

Tipologia do Estado
Vamos agora resgatar a tipologia do Estado que se estabelece nas rela-
ções entre Estado e economia e que se encontra embutida nas quatro ideo-
7. As ideologias econômicas 223

logias econômicas estudadas. A não ser entre os anarquistas que rejeitam o


Estado por princípio e introduzem um pacto federativo entre comunidades
livres, o pensamento econômico reserva um lugar de destaque ao aparelho
estatal: Estado mínimo no neoliberalismo; Estado máximo no estatismo;
Estado benfeitor (protecionista, produtor, assistencialista, paternalista) no
nacional-desenvolvimentismo; Estado ótimo no social-liberalismo.
Vamos agora fechar o circuito do universo simbólico ao refletir criti-
camente sobre a moralidade, cerne das ideologias e das culturas organi-
zacionais.

Notas
1. Adam Smith concebia o mercado como um sistema de decisões totalmente descentralizadas,
baseadas no interesse individual, capaz de funcionar de maneira harmônica como se fosse guiado
por uma mão invisível. De um lado, a divisão do trabalho aumenta exponencialmente a produtivi-
dade; de outro lado, a oferta e a procura se equilibram, à medida que o lucro excedente (prêmio
esperado pelos produtores das mercadorias produzidas em quantidades inferiores à demanda)
atrai novos fatores de produção e provoca ipso facto o aumento da oferta e a baixa dos preços.
O inverso ocorre quando os bens produzidos o são em excesso (conforme Mário Henrique
Simonsen. “Prefácio: Economia de Mercado e Intervenção Estatal.” In: Rossetti, José Paschoal
et alii. Economia de Mercado: Fundamentos, Falácias e Valores. Ação, Comitê de Divulgação do
Mercado de Capitais, 1985).
2. A pluralidade das raízes do liberalismo econômico é paradigmática, como tantas outras ideologias.
Vai da apologia do mercado, numa espécie de darwinismo social, até correntes preocupadas com
os excessos do egoísmo e com o espaço a ser reservado ao bem comum.
3. Ver os “sistemas de regulação” no capítulo hospedado no Web site da Editora.
4. Os bens privados são de consumo divisível e são consumidos de modo voluntário; trazem satisfa-
ção apenas para quem os consome e são por isso mesmo bens rivais, pois implicam sacrifício de
consumo pelos demais agentes (ninguém pode usar a minha camisa ao mesmo tempo em que eu
o faço). Os bens públicos, em contrapartida, não são divisíveis, seu consumo é coletivo e seu uso
por parte de um indivíduo não prejudica as possibilidades de consumo por parte dos demais (o
fato de eu sintonizar uma estação de rádio não impede que um milhão de outras pessoas também
o faça). Exemplos de bens públicos: a segurança pública; a administração da Justiça; a iluminação
pública; o acesso às ruas, praças ou praias; a coleta e o tratamento de esgotos; a captação e a
distribuição de água tratada; os serviços de engenharia do tráfego; a emissão e a circulação da
moeda; as garantias legais para a vigência de contratos; a previdência social; a defesa do território
nacional; a emissão e a circulação de papel-moeda; as garantias legais para a vigência de contra-
tos; os direitos individuais. Os bens semipúblicos, por sua vez, combinam as qualidades dos bens
públicos e as dos bens privados: eles são divisíveis, mas como sua produção ou seu consumo têm
efeitos muito intensos sobre a sociedade como um todo, eles adquirem uma inegável relevância
coletiva. É o caso patente da educação escolar: o aluno é identificável, ocupa uma vaga, impede
que outros o façam e o custo do serviço prestado pode ser quantificado; porém, os amplos be-
nefícios da formação educacional dos agentes, que se irradia por toda a sociedade, superam de
longe os benefícios individuais. O Estado, então, provém os serviços educacionais, notadamente
os referentes à educação básica (vide, entre outros, Rossetti, José Paschoal et alii. Op. cit., pp.
120-122). Merecem citação também a medicina preventiva e as doenças infecto-contagiosas,
uma vez que esses serviços preenchem claramente os requisitos dos bens semipúblicos. Os demais
224 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

tratamentos de saúde, no entanto, são bens privados. De modo que financiar sua gratuidade com
tributos decorre de uma decisão política e não de um parecer técnico. Ora, caso se universalize
a educação gratuita (do jardim de infância à universidade) e caso se ofereçam saúde e seguridade
social de forma integral e igualmente gratuita, os bens semipúblicos se converteriam em bens
públicos. Ampliando os exemplos, pode-se dizer que o Estado fica nos limites próprios dos bens
semipúblicos ao dar subsídios ao transporte coletivo e à construção de habitações populares que,
pelos seus caracteres, poderiam ser conceituados como bens privados.
5. Numa crítica socialista virulenta, Frei Betto escreve: “O mercado é global. Abarca os miliardários
de Boston e os zulus da África, os vinhos da mesa papal e as peles de ovelhas que agasalham
os monges do Tibete. Tudo se compra, tudo se vende: alfinetes e afetos; televisores e valores;
deputados e pastores. Parafraseando Marx, o mercado não cria apenas um objeto para o su-
jeito; hoje, cria um sujeito para o objeto. Para o mercado, honra é uma questão de preço.” E
mais: “O mercado é como Deus: invisível, onipotente, onisciente e, agora, com o fim do bloco
soviético, onipresente. Dele depende a nossa salvação. Damos mais ouvidos às pitonisas do
mercado — os indicadores financeiros — que à palavra das Escrituras” (O Estado de S. Paulo,
28 de agosto de 1996).
6. A expressão laissez-faire, laissez-passer, le monde va de lui-même, foi atribuída a Gournay, um
dos pensadores da fisiocracia francesa. Ela resume de forma soberba a crença na ordem natural
que conduziria automaticamente ao bem-estar social; seria autorreguladora e autoperpetuadora,
prosperando à margem de qualquer interferência da burocracia do Estado. Nesse preciso sentido,
o liberalismo econômico britânico difere do liberalismo econômico francês, pois admitia comedida
ingerência do Estado (não o aceitava, é claro, como agente empresarial nem como concorrente
da iniciativa privada).
7. Walter Lippmann, em sua obra (The Good Society. Boston, Mass: Little Brown & Co., 1943),
criou a expressão neoliberalismo, criticando a versão clássica do laissez-faire.
8. Ver Hayek, Friedrich A. O Caminho da Servidão. Porto Alegre: Editora Globo, 1977 e Merquior,
José Guilherme. Algumas Reflexões sobre os Liberalismos Contemporâneos. Rio de Janeiro: Insti-
tuto Liberal, 1991. Escreve Eduardo Giannetti da Fonseca (“Quem tem medo do neoliberalismo?
— 1”, Folha de S. Paulo, 24 de julho de 1994): “O neoliberalismo compreende uma enorme
variedade de correntes e posições. Sua ascensão mundial, a partir dos anos 1980, está associada
a um movimento intelectual para o qual convergiram pelo menos três escolas de pensamento:
1) a austríaca ou subjetivista (Popper, Hayek e Kirzner); 2) a monetarista de Chicago (Friedman,
Stigler e Becker) e 3) a escolha pública de Virginia (Downs, Buchanan e Tullock). Todas elas se
ergueram contra o alargamento das fronteiras econômicas do Estado, o paternalismo e o cer-
ceamento da liberdade individual. Todas defenderam o mercado regido pelo sistema de preços
contra o planejamento central, a economia mista e o ativismo macroeconômico.”
9. No regime da lei, o governo pauta suas ações por normas fixadas e anunciadas de antemão: isso
exclui a arbitrariedade e o poder discricionário. Escreve Hayek (Op. cit., pp. 69-70): “Dentro
das regras conhecidas do jogo, o indivíduo é livre de procurar realizar suas finalidades e desejos
pessoais, certo de que os poderes do governo não serão empregados no propósito deliberado de
fazer malograr os seus esforços.”
10. O primeiro-ministro tcheco, Vaclav Klaus, escreveu num artigo da revista The Economist: “O
sistema social da Europa ocidental está demasiadamente amarrado por regras e pelo controle
social excessivo. O Estado de bem-estar, com todas as suas transferências de pagamentos gene-
rosos desligados de critérios, esforços ou méritos, destrói a moralidade básica do trabalho e o
sentido de responsabilidade individual. Há excessiva proteção e burocracia. Deve-se dizer que a
revolução thatcheriana, ou seja, antikeynesiana ou liberal, parou — numa avaliação positiva — no
meio do caminho na Europa ocidental e é preciso completá-la”, citado por Perry Anderson (“Pós-
Neoliberalismo — as Políticas Sociais e o Estado Democrático”, O Estado de S. Paulo, 20 de maio
de 1995). Mas é interessante lembrar que Milton Friedman propôs a criação de um “Imposto de
Renda negativo” para os que ganham menos, no intuito de substituir o vasto arsenal de benefí-
cios fornecidos em espécie pelo Estado (programas de habitação, educação, saúde, alimentação,
7. As ideologias econômicas 225

seguro-desemprego etc.) por pagamentos diretos, em dinheiro (Eduardo Giannetti da Fonseca.


“Quem tem medo do neoliberalismo? — 2”, Folha de S. Paulo, 31 de julho de 1996).
11. Roberto Campos escreve: “Só tolos falam em ‘objetivos sociais da empresa’ ou ‘da propriedade’.
O objetivo da empresa é produzir, o da propriedade é servir à produção. Os objetivos sociais
têm de ser da sociedade, cobertos mediante a arrecadação de tributos que atrapalhem o menos
possível o processo produtivo e que sejam previsíveis e estáveis”. (“Chega de bestialógico!...”, O
Estado de S. Paulo, 10 de abril de 1994).
12. “Uma alocação de recursos diz-se eficiente no sentido de Pareto quando se torna impossível me-
lhorar a posição de algum indivíduo sem piorar a de algum outro. Não se trata de um conceito
de justiça social, pois a sociedade pode ter interesse em melhorar alguns à custa de outros. Mas
da caracterização da ausência de desperdícios.” Mário Henrique Simonsen, em Op. cit., p. 11,
do qual também nos valemos para elencar as falhas do mercado.
13. Os monopólios naturais são constituídos por setores sujeitos a custos decrescentes ou a economias
de escala, que não podem funcionar em mercado competitivo, porque uma única empresa teria
custos unitários menores. É o caso dos serviços de utilidade pública, tal como o fornecimento
de água ou de gás, o saneamento básico, o transporte metroviário, a telefonia a cabo, a trans-
missão de energia elétrica, o combate à violência, a emissão da moeda. Assim, sem intervenção
do governo, haveria sobrelucros monopolistas e possibilidade de produção aquém do ótimo, ou,
ao invés, prejuízos podem ocorrer se a operação for a um preço igual ao custo marginal. Para
minimizar esses problemas, o Estado fornece esses serviços ou regulamenta o setor, fixando o
preço do insumo (ver Longo, Carlos Alberto e Troster, Roberto Luis. Economia do Setor Público.
São Paulo: Editora Atlas, 1993, p. 34).
14. São bens comunais as águas, os bosques, o ar, os animais silvestres (que a caça indiscriminada
liquida) ou os peixes (que a pesca predatória pode extinguir). Isso para não falar das externalida-
des positivas como o são em geral os investimentos em infraestrutura. Estes não estão ao alcance
dos investidores privados sem algum tipo de ajuda governamental: construção de estradas que
escoem a produção de uma região, hidrelétricas, estradas de ferro, sistemas de esgotamento
sanitário, linhas metroviárias, corredores de ônibus urbanos ou interurbanos, usinas nucleares
para a produção de energia elétrica etc.
15. A política do New Deal, nos Estados Unidos, uma das respostas à Grande Depressão que prostrou
as economias capitalistas na década de 1930, é um exemplo notável nesse sentido. Sob o comando
do Presidente Roosevelt, o governo norte-americano promoveu a construção de obras públicas
para atenuar o desemprego; concedeu créditos governamentais a municipalidades, bancos, es-
tradas de ferro, empresas em dificuldade; desvalorizou a moeda; regulamentou a concorrência
predatória e limitou a ação dos monopólios; instituiu um regime de cotas para várias culturas
agrícolas; criou, em 1933, a famosa Autarquia do Vale do Tennessee, que controlou as enchentes
por meio de barragens, além de construir hidrelétricas e desenvolver uma região paupérrima,
vítima de inundações periódicas (ver Hoffmann, Helga. Como Planejar nosso Desenvolvimento?
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963, pp. 11-13).
16. “O planejamento nada mais é do que um modelo teórico para a ação. Propõe-se a organizar
racionalmente o sistema econômico a partir de certas hipóteses sobre a realidade.” Lafer, Betty
Mindlin. Planejamento no Brasil. São Paulo: Editora Perspectiva, 1970, p. 7.
17. “A técnica do planejamento, em suas linhas gerais, consiste em assegurar o equilíbrio entre os
níveis de produção e a demanda de bens, dada a oferta de fatores de produção, de forma a atingir
certos objetivos básicos.” Lafer, Betty Mindlin. Op. cit. p. 17.
18. Mannheim, Karl. O Homem e a Sociedade. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1962.
19. No caso, trata-se mais de programação econômica do que efetivamente de planejamento. E os
estímulos são isenções fiscais, empréstimos, subvenções, incentivos (ver Pereira, Luiz. Op. cit.,
pp. 11-51).
20. Segundo uma entrevista concedida a Luiz Carlos Bresser Pereira (Folha de S. Paulo, 5 de dezembro
de 1993). Vale a pena lembrar que a filosofia utilitarista de Jeremy Bentham e de John Stuart
Mill também está por trás do social-liberalismo, assim como o pensamento de Lorde Keynes, que
226 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

jamais rompeu com o sistema de valores do pensamento liberal. Embora este último preconizasse
o papel dos gastos públicos como suplemento do dispêndio privado, jamais advogou um Estado
produtor de bens e de serviços que competisse com a iniciativa privada.
21. À semelhança, aliás, de Miguel Reale, o jurista e filósofo brasileiro (O Estado de S. Paulo, 28 de
janeiro de 1995).
22. Ver, por exemplo, Partido da Social Democracia Brasileira. Os Desafios do Brasil e o PSDB. Brasília:
s. ed., 1989; e Cardoso, Fernando Henrique. Mãos à Obra Brasil: Proposta de Governo. Brasília:
s. ed., 1994.
23. Cardoso, Fernando Henrique. A Nova Esquerda. São Paulo: Instituto de Formação Política do
Partido da Social Democracia Brasileira, 1995, pp. 29-31.
24. Cardoso, Fernando Henrique. “Reforma e Imaginação” (Folha de S. Paulo, 10 de julho de
1994).
25. Ver Bettelheim, Charles. Planificação e Crescimento Acelerado. Rio de Janeiro: Zahar Editores,
1968; Hoffmann, Helga. Op. cit. e Nove, Alec. Op. cit.
26. Pelo “método dos balanços” atinge-se a correspondência entre os recursos disponíveis e sua apli-
cação: matérias-primas, equipamentos, energia, recursos financeiros e força de trabalho visam
a metas físicas para um grande número de produtos considerados críticos (na União Soviética
foram entre 800 e 1.000 produtos).
27. A propriedade é apenas formalmente do povo; de fato, ela é corporativa, ou seja, condicional e
partilhada. Os gestores do Partido único, das empresas estatais, do aparelho de segurança e das
Forças Armadas formam uma nova classe social — a nomenklatura —, e apropriam-se em con-
junto do sobreproduto social. De que forma? Ao aceder a privilégios e mordomias, prerrogativas
vinculadas às posições hierárquicas que eles ocupam.
28. Ver, por exemplo, Pereira, L. C. Bresser. Desenvolvimento e Crise no Brasil. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 1968; Cardoso, Miriam Limoeiro. Ideologia do Desenvolvimento — Brasil:
JK-JQ. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977; Cardoso, Fernando Henrique. Empresário Industrial e
Desenvolvimento Econômico. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1964; Figueiredo, Vilma.
Desenvolvimento Dependente Brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978; Ianni, Octavio.
Estado e Planejamento Econômico no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971. Vale
lembrar que a Cepal da década de 1950 (organismo da ONU sediado em Santiago do Chile) teve
um relevante papel na formulação da ideologia nacional-desenvolvimentista.
29. Setores de esquerda postularam e postulam ainda um nacionalismo exaltado: recomendam a
estatização das empresas estrangeiras, a coibição da remessa de lucros e a proibição de qualquer
investimento vindo de fora. Consideram esses passos indispensáveis para a eliminação dos privi-
légios, a mudança da correlação de forças e a construção do socialismo.
30. Siderurgia, indústria petrolífera, transportes, telecomunicações, energia, serviços públicos, produ-
ção de cimento e de fertilizantes, química de base, mecânica pesada. Os investimentos diretos são
realizados pelo Estado não só pela falta de recursos por parte da iniciativa privada, mas porque
o planejamento econômico se tornaria impraticável se o Estado não dispusesse de controle sobre
esses setores.
31. Trata-se de uma pseudodemocracia, pois delegada, em que o líder carismático personifica o povo
e paira acima das contradições sociais ao estilo bonapartista. Em troca do apoio popular, refém
do culto da personalidade, o líder promete atender às aspirações dos deserdados, recém-chegados
à cidadania formal, e mobiliza as “bases populares”. Não há uma pedagogia democrática, pois se
estabelece uma comunicação direta entre o líder e as massas, numa clara relação personalista e
autoritária. O apelo à fusão da sociedade com o Estado é mistificador. Na América Latina, cabem
perfeitamente no figurino os casos do peronismo na Argentina, do varguismo e do janismo no
Brasil e do militarismo esquerdizante de Velasco Alvarado no Peru.
32. A própria Cepal abandonou o modelo de substituição de importações e, em seu lugar, passou a
defender o modelo de “transformação produtiva com equidade”. Trata-se de aposta na estabilidade
macroeconômica como condição necessária para o desenvolvimento, nas intervenções seletivas
da política pública e na inserção internacional das economias periféricas, ainda que mantido um
7. As ideologias econômicas 227

nível modesto de proteção contra as economias centrais (entrevista de Gert Rosenthal, secretário
executivo da Cepal, à revista Rumos do Desenvolvimento, julho de 1996).
33. As empresas estatais chinesas, além de despejar produtos medíocres na economia e não consegui-
rem pagar suas contas, não são apenas meras empregadoras, pois garantem moradia, transporte,
educação, saúde, recreação e aposentadorias aos trabalhadores e suas famílias. Ademais, não
pagam seus empréstimos bancários nem recolhem impostos (ver artigo da Forbes, publicado pela
revista Exame, 24 de maio de 1995).
34. De 1990 ao início do novo século, o crescimento do PIB atingiu a espantosa média de 8,5%
anuais. E a entrada da China na Organização Mundial do Comércio vem mudando a geografia
comercial do mundo em função de seu peso altamente significativo. Ver, por exemplo, Jayme
Martins. “Na China da era Deng, não importa a cor do gato”, O Estado de S.Paulo, 22 de maio
de 2004.
8
A ética nas organizações

A ética e a moral: caracteres distintivos


A ética é uma disciplina teórica, um corpo de conhecimentos, a exemplo
das disciplinas como a biologia, a medicina, a economia, a engenharia, a
sociologia, o direito, a psicologia ou a astronomia. Trata-se de uma investi-
gação sistemática de abrangência enciclopédica, de uma ciência social que
torna inteligíveis os eventos sociais que implicam escolhas entre o bem e
o mal. Vale dizer: é conhecimento dos fatos morais.
Nessas condições, qual é a chave de decifração da Ética? Ela diz respeito
ao impacto que agentes sociais provocam uns sobre os outros em função de
suas decisões e ações. Expliquemos: ao decidir e ao agir, o agente respeita
os interesses dos outros ou os desrespeita, os beneficia ou os prejudica?
Eis o foco de interesse dos estudos éticos.
Evidências nesse sentido podem ser conferidas no cotidiano sem dar
margem à subjetividade. Por exemplo: segurar o elevador para papear,
enquanto vizinhos aguardam a vez, leva em conta os interesses deles ou,
ao contrário, os afeta negativamente? A resposta é óbvia. A Ética estuda
fatos que afetam objetivamente os outros para o bem (efeitos positivos,
benefícios) ou para o mal (efeitos negativos, prejuízos).
O que são então os fatos morais? Fatos sociais que têm certa especifi-
cidade. Qual? A peculiaridade de espelhar posicionamentos que as cole-
tividades adotam diante de dados eventos, ou melhor, a particularidade
de expressar juízos de valor. Ora, em virtude das múltiplas dinâmicas
históricas por que passam as coletividades, as posições assumidas podem
convergir ou divergir entre si. Assim, o que é certo para algumas (por
230 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

exemplo, conferir a homens e mulheres os mesmos direitos) pode ser er-


rado para outras (por exemplo, definir as mulheres como seres inferiores
cujo destino inelutável é servir os homens).
De maneira que os fatos morais são relativos no tempo e no espaço.
Afinal, são fenômenos histórico-reais, a saber, empíricos e singulares.
Não é esse absolutamente o caso dos conceitos científicos que expressam
juízos de realidade, são universais e unívocos, traduzem recorrências entre
os fenômenos porque resgatam padrões ou conjuntos de regularidades,
dizem respeito a generalidades abstrato-formais, são testáveis e, mais,
permitem fazer previsões com relativo grau de acurácia. Em decorrên-
cia — e fazendo referência ao exemplo acima —, o conceito de gênero
feminino não muda em função das épocas ou dos lugares, pois enfeixa
propriedades comuns a todas as mulheres, uma das duas subdivisões da
espécie Homo sapiens.
Ocorre que não é esse o entendimento do senso comum. No dia a dia,
o termo ética assume variadas acepções que provocam mal-entendidos e
tornam o conceito opaco e invertebrado.
A confusão maior diz respeito à identificação da ética com seu objeto
de estudo. E qual é este? A moralidade, os fenômenos morais, os fatos
sociais regulados por normas morais ou submetidos a avaliações morais.1
Naturalmente, tanto as regras de comportamento como os juízos sobre o
bem e o mal, o certo e o errado, o legítimo e o ilegítimo, são socialmente
convencionados e partilhados. Esses padrões morais correspondem a fenô-
menos históricos que distinguem, prima facie, os bons dos maus costumes.
São, pois, padrões culturais.
Quando se alega aos quatro ventos que tal ou qual decisão não se coa-
duna com “minha ética” ou com a “ética de minha empresa”, a referência é
clara: o agente está dizendo que a decisão não encontra respaldo no sistema
de normas morais que pauta o seu comportamento ou o da empresa à qual
pertence. Isso equivale a dizer: a moral adotada pelo agente, ou o código
de conduta que norteia os modos de agir e de pensar praticados. Aliás, não
se fala comumente da “ética dos médicos” ou da “ética dos advogados”
referindo-se ao código de conduta profissional desses especialistas? Ou
seja: confunde-se Ética (corpo de conhecimentos) com códigos de deveres,
sistemas de normas morais ou morais determinadas.
Equivale a confundir os conhecimentos da medicina com as doenças
que ela estuda, reduzir a ciência médica à tuberculose ou ao câncer que ela
trata. Ou ainda: equivale a tomar a psicologia pelos sofrimentos psíquicos
8. A ética nas organizações 231

que ela observa e sobre os quais procura intervir; ou igualar o direito às


leis que examina ou ajuda a elaborar; a engenharia às obras que projeta e
executa; a economia aos fenômenos da produção, das transações comerciais
ou das operações financeiras que investiga; a ciência política às relações
de poder que analisa. Ao tornar equivalentes a ética (conhecimento dos
fatos morais) e os sistemas normativos históricos (morais), o senso comum
procede a uma lesa-majestade conceitual e a um desperdício vocabular.2 E
pior ainda: inviabiliza a constituição de uma ciência da moral.
É possível rastrear na etimologia razões atenuantes para esse baralha-
mento que a força do uso consagra. Ética vem do grego — ethos — que
significa caráter distintivo, disposição, modo de ser adquirido; enquanto
moral vem do latim — mos ou mores — costumes, maneiras de agir, nor-
mas adquiridas por hábito. Ambas as categorias referem-se ao conjunto
de costumes tradicionais de uma sociedade, a obrigações sociais e, por
conseguinte, a fenômenos de natureza histórica; não ao resultado de
reflexões ou investigações sistemáticas. Eis aí, portanto, um terreno fértil
para que os dois termos sejam tratados como sinônimos.
A falta de distinção, todavia, vai além da equivalência estabelecida
entre a ética e a moral: costuma-se também dizer que tal ou qual sujeito
é “ético”, tal ou qual organização é “ética”. A acepção do conceito, aqui,
remete à “boa conduta” ou a um valor cultural específico que orienta as
pessoas corretas — significa integridade, seriedade ou probidade. Mas o
que é ser íntegro? É ser um sujeito de bem, de caráter, decente e confiável.
É ser alguém que se conduz com honestidade, lealdade, idoneidade, vera-
cidade e que, além de obedecer às leis, respeita o próximo. Nesta segunda
acepção de senso comum, a Ética se converte em adjetivo, uma vez que
a integridade qualifica o agente social que pratica os “bons costumes”,
semeia confiança ao seu redor e angaria credibilidade pessoal.3 De modo
que a pecha de “falta de ética” significa falta de escrúpulos, quebra de
confiança ou lesão ao bem comum. Cabe lembrar, então, que a integridade
pessoal contrasta com o oportunismo interesseiro, da mesma forma que
a integridade pública se contrapõe à corrupção ou à apropriação de bens
organizacionais em proveito próprio.
Afora a etimologia, vale perguntar: por que ocorrem tais confusões
semânticas? Muitas razões poderiam ser alinhadas. No contexto brasileiro,
encontramos um denominador comum: o termo moral foi em boa parte
desmoralizado ou seu uso tornou-se rançoso. Um motivo curioso, de some-
nos importância e quase folclórico, poderia ser citado. Durante o regime
232 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

autoritário-militar, cursos de educação moral e cívica foram introduzidos,


visando a formar o caráter das crianças e dos jovens.4 Os ensinamentos,
embora edificantes, foram considerados em geral enfadonhos, ufanistas e
pouco eficazes. Quando consultados a respeito da matéria, os alunos que
se pretendia moldar exibiam um misto de desinteresse e de galhofa. Em
poucos anos, a disciplina deixou de ser levada a sério, tornando-se motivo
de pilhéria, o que desvirtuou os objetivos de sua instituição.
Outra razão pela qual se evita o termo moral tem raízes multicente-
nárias: os países latinos expõem aos olhos mais avisados uma duplicidade
moral à semelhança da dupla face de Janus — um sistema de normas mo-
rais para uso público, de caráter oficial, e um sistema para uso privado,
de caráter oficioso.5 Um dos efeitos mais diretos dessa hibridez é o falso
moralismo ou o moralismo hipócrita. Enquanto as manifestações públicas
dos agentes sociais são enfaticamente escrupulosas, num claro tributo ao
rigorismo, as observações tecidas no círculo íntimo são laxistas e entoam
hinos à leniência moral e a um cinismo rasteiro que incentiva a adoção de
condutas transgressoras.6 Vive-se, assim, na mais absoluta ambiguidade —
roupa limpa por fora, roupa suja por baixo.

A ambivalência moral brasileira


O mapa dessa ambivalência engloba indiscriminadamente da França
à Península Ibérica, da Itália à América Latina, e suas causas históricas
podem ser resumidas, apesar de algumas serem específicas dos países do
Novo Mundo:

„ A disjunção entre a doutrina católica — hostil à acumulação de


riqueza e enaltecedora da pobreza — e algumas práticas clericais,
excessivamente pragmáticas, contribuiu para a praga da moralidade
casuística, da permissividade nos costumes e daquilo que se pode-
ria denominar de “esquizonomia” (dissociação entre o dizer e o
fazer);7
„ O sistema de colonização de exploração e o transoceanismo (cabeça
8

e coração voltados para a metrópole) promoveram um vale-tudo


predatório, movido pela ânsia de enriquecimento rápido e fácil. Isso
se deu em consonância com padrões de conduta patrimonialistas
que confundiam os interesses públicos com os interesses privados
e constituíram uma dualidade social que segmentou a população
8. A ética nas organizações 233

em “gente distinta”, portadora de privilégios e em “gente simples”,


destituída de direitos;
„ A união entre Igreja e Estado, vigente até a primeira Constituição

republicana, levou a uma falta de distinção entre a Fé e o Império,


entre o sagrado e o profano, e isso confundiu as lealdades dos fiéis
e dos súditos, mesclou clero e funcionalismo público numa intricada
rede;
„ O sincretismo religioso e cultural, em consonância com o autori-

tarismo vigente, submeteu a população a relações de dependência,


ao adotar o mecanismo da invocação a entidades mediadoras entre
os mundos sobrenatural e natural, as esferas pública e privada. A
intermediação — apenas os iniciados poderiam fazer a travessia —
converteu-se então em paradigma institucional e cabia a padres e
coronéis do Brasil rural, santos e padrinhos, anjos e despachantes,
orixás e cabos eleitorais, espíritos e médiuns, “nossas senhoras” e
“cavalos”;
„ A Justiça morosa, seu funcionamento pouco transparente e a impu-

nidade proverbial levaram águas ao moinho da desconexão clássica


entre o país formal e o país real;
„ A voracidade tributária e as regulamentações sufocantes de um

Estado burocrático e cartorial provocaram contrapartidas de deso-


bediência civil — a sonegação fiscal generalizada, o contrabando
endêmico e o recorrente desrespeito à lei, além de motivar rebeliões
coloniais.9

Essa situação bifronte, cujas âncoras estão lançadas no período colo-


nial, resulta e se sedimenta em dois códigos de conduta, de maneira que
as duas morais brasileiras abrangem toda a população, daí seu caráter
macrossocial. Elas formam vasos que não se comunicam, porque guardam
matérias qualitativamente distintas, francamente discrepantes, para não
dizer opostas:

„ A moral da integridade, oficial e pública, celebra a inteireza, confor-


ma um código de natureza altruísta e universalista (que interessa a
todos) e orienta as pessoas a terem “caráter” ou “vergonha na cara”,
a serem decentes e dignas. Como primeira moral, ela é ensinada nas
escolas e nas igrejas, é difundida nos tribunais e na mídia mais res-
ponsável e faz a apologia da virtude (“seja uma pessoa de bem!”);
234 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

„ A moral do oportunismo, oficiosa e clandestina, celebra a malícia,


trama um código de natureza egoísta e particularista (que prejudica
outros) e orienta as pessoas a tirar proveito, lhes ensina a serem
manhosas e a cuidarem exclusivamente de si sem se importar com
as consequências sobre os outros. Como segunda moral, é difundida
à boca pequena pelos íntimos e pelos sabichões, e faz a apologia
da esperteza (“leve vantagem em tudo!”). Ao promover o triunfo
da conveniência interesseira, justifica os muitos jeitinhos, as ações
entre amigos, os arranjos paralegais e as práticas dissimuladas.10

Essa dupla mensagem tem efeitos dramáticos sobre o imaginário


coletivo: gera grave imbróglio moral; desorganiza os mapas cognitivos;
bloqueia a reflexão; esteriliza a capacidade de explicar ou tornar inteligível
a contradição entre condutas; dissemina uma hipocrisia renitente que se
traduz por um perverso jogo de faz de conta. Aliás, quem de nós não repara
no esforço geral em camuflar o que se urde e se faz à socapa? Quem de
nós não percebe o empenho em disfarçar a evidente incongruência entre
as falas emitidas em público e os atos praticados sorrateiramente? Apenas
os ingênuos escapam a esse tormento.
Onde reside então o drama? No disfarce que se aceita com naturalidade
e na cumplicidade jamais confessada, que resultam no deboche do velho
adágio: “me engana que eu gosto”. Há, é claro, um risco de descolamento
da realidade, pois, de tanto fazer de conta, de tanto fingir, a simulação e a
dissimulação podem vir a prevalecer, deixando de valer as ações efetivas
dos atores.11 Pior ainda: pode levar a crer que, como ninguém presta, a
probidade poderia ser desprezada. O que sobraria então? A necessidade de
fazer as coisas “custe o que custar”, o segredo do chavão surrado daqueles
políticos matreiros do “rouba, mas faz”, gente que não se incomoda em
confessar que não é “santa”.
Essa hibridez moral carrega em si um alto custo social. De um lado,
contribui para reforçar a generalizada desconfiança em relação aos “estra-
nhos”, agrava o risco moral que suspeita da boa-fé das contrapartes nos
negócios. Para compensar o desgaste, cria-se então uma zona de refúgio,
e as relações pessoais se convertem em porto seguro.12 Isso ocorre em
detrimento da isenção e da impessoalidade das relações entre cidadãos,
prejudica a competitividade das empresas ao tornar mais caros os custos de
transação (aumentam os juros e os prêmios das apólices de seguros), relega
a segundo plano as relações profissionais e a meritocracia. De outra parte,
8. A ética nas organizações 235

a ambivalência moral consolida a tradição de uma cultura cívica pouco


desenvolvida — fruto da fragilidade institucional e da tímida cooperação
coletiva — e, na ausência de vigilância cidadã, facilita a proliferação de
práticas malandras, reforça o velho patrimonialismo com sua apropriação
privada dos recursos públicos.
Posto isso, cabe insistir: quando é que um fato social assume caráter
moral, isto é, torna-se objeto de estudo da Ética? Quando impacta os
outros de forma positiva ou negativa. Agora, e embora o senso comum
identifique moral e bons costumes, a existência de normas oportunistas
de conduta nos países latinos fazem com que “maus costumes” também
sejam morais! Reconhecer isso é essencial para entender a problemática
dessa duplicidade moral, gelatinosa e perturbadora. Pois, dramaticamente,
o oportunismo não é mero desvio das normas morais oficiais, mas conjunto
articulado de justificações para os malfeitos. Afinal, os costumes tipificados
como “imorais” pelos cânones públicos da integridade são considerados
socialmente aceitáveis do ponto de vista privado, ainda que, por pudor
ou por manha, não saiam das sombras da intimidade ou da órbita dos
“pequenos comitês”. Basta citar os muitos usos e costumes sociais, cuja in-
tensidade, recorrência e banalidade são de todos conhecidos.13 Os padrões
culturais oportunistas fazem parte do cotidiano e se inspiram pela máxima
“defenda o seu e deixe de ser bobo”.14 Todavia, eles não eliminam de vez
os padrões íntegros. E como sabemos disso? Porque, se o oportunismo
fosse generalizado e ocorresse o tempo todo, ninguém levaria vantagem:
as espertezas se neutralizariam mutuamente.
Convivem às turras, portanto, uma moral “idealista” (a da integri-
dade) e uma moral “funcional” (a do oportunismo), ambas amplamente
difundidas e ambas contraditórias. Decorre daí uma venenosa confusão
das mentes.15 E, não obstante um clamor por “ética” ecoe em toda parte,
há tamanha plasticidade das condutas e há tanto gosto pelos mais variados
casuísmos, que todos ficam o tempo todo em alerta, com medo de alguém
“lhes passar a perna”.
Nas mais comezinhas atividades do dia a dia, os brasileiros ficam à
mercê de dilemas a serem resolvidos: afinal, como agir? A quem se deve
lealdade? Quais interesses devem ser respeitados: os interesses pessoais,
grupais e gerais, de caráter universalista (que não lesam ninguém), ou os
interesses pessoais e grupais, de caráter particularista (que, embora nos
beneficiem, prejudicam outros)? O que vale: ter senso de interdependên-
cia ou olhar exclusivamente para o próprio umbigo? Esses conflitos de
236 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

valores traduzem conflitos de interesses e revelam ao comum dos mortais


a relatividade das normas morais.
Por fim, é importante não confundir as normas jurídicas ou as dis-
posições legais com as normas morais. É bem verdade que ambos os
tipos de normas regulamentam as relações sociais, postulam condutas
obrigatórias, assumem a forma de imperativos e visam a garantir a coe-
são social. Entretanto, enquanto as normas morais exigem uma adesão
imaginária que se transforma em coação interna aos agentes, as normas
jurídicas são cumpridas haja ou não adesão. E por quê? Porque funcio-
nam, sobretudo, com base na coerção externa. As primeiras tiram seu
substrato do princípio da legitimidade; as segundas tiram seu substrato
do princípio da legalidade.
Em resumo, as normas morais dizem respeito à dimensão simbólicocul-
tural da realidade social e animam as relações de saber. As normas jurídicas,
por sua vez, dizem respeito à dimensão político-jurídica da realidade social
e expressam as relações de poder. A diferença essencial fica clara ao compa-
rar o código de conduta da Alta Administração Federal, de natureza ética e
simbólica, com o código de trânsito, de natureza jurídica e política.
Estabelecer com precisão essa distinção não constitui preciosismo aca-
dêmico, pois permite desmistificar uma tendência corrente que tem tornado
sinônimos a moralidade e a legalidade. Ora, nem tudo que é legal é ipso
facto moral e vice-versa. Aliás, uma simples combinatória pode elucidar a
questão a contento. Tomemos por parâmetros as leis brasileiras atuais e a
moral brasileira pública (não a oficiosa). Assim, fatos sociais podem ser:

„ Legais e morais, tal como o treinamento de funcionários patrocinado


por uma empresa ou a cerimônia de um casamento religioso;
„ Legais e imorais, tal como a falta de correção pelo governo da

tabela do Imposto de Renda por anos a fio, sob a alegação de que


atualizá-la seria reintroduzir o instituto da correção monetária, ou a
validação da candidatura de políticos a cargos eleitorais, processados
por improbidade administrativa;16
„ Ilegais e morais, tal como o desrespeito ao sinal vermelho de ma-

drugada nas grandes cidades, pelo receio que os motoristas têm de


serem assaltados, ou o fato de alguém apostar no jogo do bicho,
mesmo sendo uma contravenção — esses fatos, embora ilegais, po-
dem ser comentados em público sem que isso denigra a reputação
das pessoas;
8. A ética nas organizações 237

„ Ilegais e imorais, tal como o tráfico de drogas ou as fraudes em


licitações públicas.

Infere-se disso tudo que os códigos jurídicos categorizam as condutas


em termos do que é permitido (autorizado) e do que é proibido (vedado),
enquanto os códigos morais categorizam as condutas em termos do que
é certo (esperado) e do que é errado (inaceitável). Ademais, a legalidade
sanciona os agentes por coação (punição), enquanto a moralidade os san-
ciona por censura (constrangimento moral).
Diferentes, ainda, são os códigos de boas maneiras — a etiqueta so-
cial da boa educação —, já que estabelecem as condutas convenientes e
as inconvenientes, as apropriadas e as inapropriadas, as oportunas e as
inoportunas. Ou seja: não cabe tampouco confundir moral e deferências,
moral e protocolos adotados em ocasiões formais.
Feita essa limpeza de terreno, voltemos ao objeto de estudo da ética:
o que vêm a ser as morais que conferem moralidade a determinados fatos
sociais? São:

„ Códigos que padronizam e normalizam os costumes sociais;


„ Pautas de conduta que validam algumas decisões e ações e estigma-

tizam outras, fruto de convenções socialmente constituídas;


„ Sistemas de normas simbólicas, discursos de justificação que
17

residem no coração das ideologias e, portanto, das culturas orga-


nizacionais;
„ Ferramentas de reprodução social que asseguram a previsibilidade dos

comportamentos, ao ensinar aos agentes a melhor forma de agir;


„ Mecanismos de controle social que zelam pelo cumprimento das

expectativas sociais e operam por meio de sanções;18


„ Discursos com abrangências diversas: macrossociais ou gerais quando

recobrem sociedades inclusivas (uma civilização ou um país deter-


minado); mesossociais ou setoriais quando são professadas por uma
classe social, uma categoria social ou um setor social específico; e
microssociais ou organizacionais quando dizem respeito a uma
organização particular.19

Por pulsarem como núcleos vivos das ideologias, as morais expressam


interesses coletivos. Por isso é que cada coletividade se empenha em tornar
hegemônica sua moral peculiar.20 Na sociedade feudal, por exemplo, havia
238 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

uma moral da nobreza cavalheiresca, de cunho aristocrático e estamen-


tal; outra do clero secular e das ordens monásticas, de cunho religioso e
também estamental; outra das corporações de ofício, e outra ainda das
universidades, ambas de cunho corporativo. Isso para não falar das morais
dos guetos — por exemplo, da moral judaica ou da moral cigana. Trocado
em miúdos: para cada estamento, etnia ou corporação existia um código
moral. Mas isso não significa que não existisse uma moral católica que
permeava e se sobrepunha a todas as outras. Como moral geral, ela dava
o tom às demais morais (setoriais e organizacionais) que teciam variações
em torno do tema maior.
Dito de outra forma, toda coletividade tende a desenvolver uma moral
própria, um código de conduta próprio, um sistema de normas simbólicas
que serve de eixo e orienta seus membros. E isso a despeito das morais
específicas às quais eles aderem e que espelham suas diferentes pertenças
de classe, de categorias sociais ou de organizações. Toda moral é assim
coletiva: traduz padrões culturais socialmente construídos e definidos;
regula as relações de convivência social; preside as decisões e as ações que
os agentes adotam; pauta condutas que identificam seus agentes e que são
também esperadas pelos demais membros da coletividade. Por isso é que
não faz sentido falar de moral pessoal, como se os sistemas normativos
fossem produtos de uma cozinha idiossincrática,21 nem cabe especular
quanto à possibilidade de existir uma sociedade exclusivamente constituída
por egoístas empedernidos. Por quê? Por ser uma impossibilidade prática:
tal situação nega os laços de sociabilidade indispensáveis para a existência
humana, implica a ausência de uma rede mínima de relações de confiança,
reduz toda “sociedade” a um aglomerado informe e desconjuntado de
unidades singulares. Em suma, supõe um despropósito não só teórico,
mas empírico.
Para fechar o raciocínio e entender de vez o que vem a ser a moralida-
de, vamos rever os fatos sociais destituídos de conteúdo moral. Deslocar
uma pedra no caminho com o pé, por brincadeira, não tem valor moral,
pois é um fato que não está sujeito à incidência ou ao policiamento de
alguma norma ou avaliação moral, porque não afeta os outros para o
bem ou para o mal. Nesse sentido, é um fato neutro, um fato amoral.22
Agora, arremessar uma pedra sobre pedestres ou sobre um veículo que
esteja de passagem é uma ação imoral. Por quê? Porque põe em risco a
vida dos pedestres ou dos ocupantes do veículo, provoca efeitos negativos
8. A ética nas organizações 239

sobre eles. Ademais — e já num outro plano –, o ato é ilegal, uma vez que
infringe leis que visam a preservar a integridade física das pessoas e viola
o instituto da propriedade privada (o veículo, que é um bem, poderia ser
danificado).

A ética como ciência social


Recapitulando, a ética não se confunde com a moral como induzem
erroneamente as expressões consagradas ética católica, protestante, li-
beral, socialista, ou ainda, ética dos negócios. A razão é simples: a ética
é um corpo universal de conhecimentos, enquanto a moral é relativa no
tempo e no espaço. Não há “ética” cristã, comunista ou seja lá o que for
o adjetivo, à medida que esses fenômenos situam-se em dado lugar e têm
natureza histórica; ao passo que o estatuto da ética é teórico e corresponde
a generalidades abstratas e formais.23 A ética:

„ É uma investigação sistemática sobre a moralidade, um corpo de


conhecimentos;
„ Tem por propósito tornar inteligíveis os fenômenos morais, os siste-

mas normativos ou os códigos morais que as coletividades elaboram


e divulgam;
„ Estuda a diversidade moral e seus fundamentos históricos;

„ Contextualiza as escolhas que os agentes fazem em situações con-

cretas;
„ Verifica se as opções estabelecidas se coadunam com os padrões

morais ou os transgridem;
„ Formula um conjunto de ferramentas de análise de aplicação uni-

versal;
„ Fica no mesmo plano ocupado pelas chamadas disciplinas sistemá-

ticas e produz conceitos do mais alto nível de abstração (conceitos


gerais);24
„ Distingue-se, por isso mesmo, das morais históricas que imbuem às

coletividades.25

Ao ser aplicado às morais, o conhecimento ético capta os fundamen-


tos das tomadas de decisão, não importa o âmbito em que se processem
— geral, setorial, organizacional ou interpessoal. De maneira que seria
240 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

mais apropriado falar de ética aplicada ao catolicismo, protestantismo,


liberalismo, socialismo, ou aplicada aos negócios.
Nesta altura da exposição, é importante saber que, na sua origem
entre os gregos antigos, a ética fazia parte da filosofia. Sempre refletiu
sobre a melhor maneira de viver, sobre “o dever ser” ou os ideais morais.
Este viés prescritivo converteu a ética filosófica em fonte inestimável de
sermões religiosos, à medida que ela avalia os costumes, convalida-os ou
reprova-os, diz quais ações sociais são moralmente válidas e quais não o
são. De fato, a ética filosófica corresponde a um discurso racional de base
especulativa e consiste em produzir evidências doutrinárias, quer dizer,
retóricas, que prescindem de provas empíricas.26 Pois tende a estabelecer
princípios constantes e universalmente válidos de condução da vida.
No final do século XIX, porém, e como desdobramento da sociolo-
gia, desenvolveu-se novo enfoque: a ética científica. Esta estuda “o que
é”, a moralidade como fenômeno objetivo. Assim, de forma diametral-
mente oposta à abordagem filosófica que ainda mantém sua hegemonia
intelectual, produz uma bateria de conceitos científicos — universais,
abstrato-formais, testáveis — capazes de dar conta da realidade específica
dos fenômenos morais. Porque aborda os fatos morais e as normas morais
que as coletividades consideram válidas, sem prejulgar ou sequer julgar,
mas com o propósito de contextualizá-las e de explicar sua razão de ser.
Articula, sobretudo, um discurso demonstrativo de base empírica.
Configuram-se, assim, dois enfoques:

„ A filosofia da moral, prescritiva e normativa, que se esforça em


apreender pressupostos morais universais, atemporais e transcen-
dentes. Trata-se de uma elaborada reflexão cujos produtos são juízos
de valor, avaliações ou apreciações destinadas a inspirar os homens,
malgrado as contingências de lugar e de tempo;
„ A ciência da moral, descritiva e explicativa, que centra sua atenção no

conhecimento sociológico dos fatos sociais que afetam objetivamente


os agentes para o bem ou para o mal. Trata-se de uma investigação
metódica que observa, descreve e explica a ocorrência dos fatos
morais, capta suas regularidades, demonstra seus fundamentos e
produz juízos de realidade.

Vejamos um exemplo de análise, a partir de um enfoque científico. Na


Europa medieval, antes da Reforma Protestante, toda aquisição de riquezas
8. A ética nas organizações 241

acima do estritamente necessário para atender às próprias necessidades era


considerada um excesso que pertencia à sociedade. O excedente econômico
devia ser entregue à Igreja Católica, pois a ela cabia distribuir benefícios e
fornecer serviços aos necessitados por meio de suas obras pias, já que res-
pondia pelo ensino, assim como pela saúde da população e pela assistência
social. Nenhum homem tinha direito a uma recompensa econômica, a não
ser que se empenhasse num trabalho socialmente útil. O fim da atividade
produtiva consistia em oferecer bens e serviços à comunidade e em capa-
citar cada pessoa a viver com conforto e segurança. O processo econômico
não podia facultar a quem quer que fosse a oportunidade de enriquecer às
custas dos outros. Todas as atividades deviam ter por propósito a maior
glória de Deus (ad majoram Dei gloriam). Todo negócio que visava ao
lucro era essencialmente imoral, e o valor de um bem devia ser igual a
seu preço de produção, donde o princípio do “preço justo”. Artesãos e
comerciantes deviam cobrar tão só o necessário para se ressarcirem dos
próprios custos, e a especulação era considerada indigna, porque nada
produzia. Rotulava-se o empréstimo a juros como sendo usura e quem o
praticava incorria em pecado grave, porque significava receber proventos
sem investir trabalho, num claro abuso cometido contra os tomadores dos
empréstimos. De maneira que as economias feudal, mercantil e artesanal
da Idade Média subordinavam-se à ideologia religiosa católica e, logo,
à moral cristã medieval. Por quais razões? Duas: a posição estratégica
ocupada pelo aparelho clerical e o empenho deste em estabelecer um
monopólio ideológico sobre os agentes econômicos.
Em outros termos, concebia-se a aquisição de riqueza como um jogo
de soma zero, resultado de atos moralmente suspeitos e condenáveis. Todo
lucro tendia a ser visto como exploração, ganância e extorsão, e não como
justa troca, daí a adjetivação como turpe lucrum.27 Nessas condições, a
economia mercantil não podia prosperar e seus agentes resumiam-se aos
párias do sistema — árabes e judeus.28 A legitimação do lucro capitalista
só veio a ser feita pelo protestantismo, com especial destaque para o calvi-
nismo, que justificou a acumulação de dinheiro e santificou o lucro como
agradáveis a Deus e como sinais presumidos de salvação. Mas somente o
advento do capitalismo como sistema socioeconômico — a partir da Re-
volução Industrial — mostrou a utilidade das funções do capital e permitiu
postular o lucro como justa recompensa pelos serviços prestados.29
Ora, qual questão-chave está subjacente a essas observações? A acumu-
lação de riqueza e a obtenção do lucro foram legitimadas por uma moral
242 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

particular (a protestante) e não por aquela que manteve a hegemonia


durante séculos (a moral católica). Isso indica que entre as morais travam-
-se embates, da mesma maneira que ocorre entre as ideologias políticas
e econômicas. Ou melhor: há contendas entre os agentes coletivos cujos
interesses objetivos são traduzidos por esses ideários. De um lado, o clero
católico que se apropriava de excedentes para se manter e para financiar
atividades de assistência social, e que legitimava o fato com a vontade de
Deus; de outro lado, a burguesia mercantil e a burguesia manufatureira,
ansiosas para se livrar das peias ideológicas que impediam a acumulação
do capital, e cujas práticas o protestantismo iria legitimar.

A relevância dos ativos intangíveis


Reponta para os olhares prevenidos a importância estratégica que os
ativos imateriais adquiriram na sociedade da informação e na economia
do conhecimento. De fato, não se define mais o valor das empresas apenas
e tão somente pelo peso de seus ativos materiais — capital físico e capital
financeiro. Mas computam-se também os ativos intangíveis: o capital in-
telectual30 bem como o capital de reputação.31 Em muitos casos, os ativos
intangíveis chegam a valer mais do que os ativos tangíveis, notadamente
no setor de serviços. Daí o imenso cuidado que se tem — ou que se deveria
ter — com a preservação, ampliação e consolidação dos bens imateriais.
A experiência, aliás, demonstra que um deslize significativo no âmbito
moral basta para pôr em risco esse patrimônio, sobretudo da parte mais
sensível que é a reputação.
O que é a reputação? O conceito que uma coletividade atribui a uma
organização ou um indivíduo, a percepção pública construída ao longo
do tempo, um componente-chave da autoridade moral que se conquista
a duras penas. Em termos correntes, corresponde ao prestígio, à fama,
ao renome, à consideração ou ao respeito de que se desfruta. É possível
estabelecer uma analogia entre um filme e a reputação, ao apanhar o
movimento e a dinâmica que aquele implica. Em contrapartida, a ima-
gem de uma empresa lembra uma fotografia, o lado estático ou o corte
instantâneo. Numa remissão à gestalt, a imagem faz as vezes de figura, ao
passo que a reputação constitui o fundo sobre o qual se projeta a imagem.
Valor intangível, a reputação se incorpora aos produtos e serviços como
relação de confiança sedimentada no decurso dos anos ou como credibi-
lidade pública. Cabedal moral, a reputação estabelece uma relação direta
8. A ética nas organizações 243

com o valor patrimonial da organização, da mesma forma que o capital


intelectual: quanto maior for esse cabedal, maior será o valor patrimonial
e quanto menor for, menor será o valor patrimonial.
Numa economia capitalista, qual é o objetivo dos negócios? Gerar valor
econômico e agregá-lo aos ativos. Para tanto, os empreendedores devem
desenvolver produtos ou serviços que atendam a necessidades de mercado e
sejam solvíveis. Somente assim haverá realização de lucros. Caso os artigos
ou serviços sejam excelentes, porém caros demais, os clientes potenciais
tenderão a se afastar; ao revés, caso os artigos ou serviços sejam inadequa-
dos, ainda que tenham preços acessíveis, os clientes também tenderão a não
adquiri-los. Nessas circunstâncias, o capital investido — capital de risco —
será perdido. De outra parte, não basta que os empreendedores desenvolvam
valores de troca atraentes e economicamente viáveis. Precisam atentar para
outro fato crucial: os clientes não compram apenas bens ou serviços pelos
seus atributos, qualidades ou preços; compram ao mesmo tempo as promes-
sas de benefício que eles embutem ou as expectativas que os acompanham.
Dito de outra forma, os produtos ou serviços não são adquiridos apenas
pelas necessidades materiais que preenchem, mas também pelas associações
imaginárias que satisfazem — emoções despertadas, estilos de vida propa-
lados, sonhos provocados, valores culturais expressos, prestígio almejado.
Não são comprados em estado bruto, senão conjugados com elaborações
mentais, fabulações que seus consumidores se aprazem em cultivar.
Vamos exemplificar: quem vai comer um Big Mac no McDonald’s
não escolhe essa rede internacional de lanchonetes exclusivamente pela
qualidade de seus produtos. Procura igualmente rapidez no atendimento
(os sanduíches estão prontos para o consumo), exige higiene (sabe por
experiência, ou por ouvir dizer, que a manipulação dos alimentos respeita
padrões internacionais) e, sobretudo, requer padronização dos produtos
(em qualquer uma das dezenas de milhares de lanchonetes espalhadas
pelo mundo, o hambúrguer segue a mesmíssima receita). Se uma dessas
expectativas deixar de ser satisfeita de forma recorrente, o negócio po-
deria se descaracterizar, perder fôlego e até ir à falência. Se houver filas e
tempo de espera no atendimento, o cliente poderá preferir a lanchonete
da esquina; se houver falta de higiene, o cliente poderá dirigir-se ao car-
rinho de cachorro-quente plantado na calçada; se houver hambúrgueres
com sabores variados, em função da desigual habilidade do “chapeiro”, o
cliente poderá eleger o trailer de lanches estacionado na praça, lugar em
que informará as suas preferências diretamente ao dono.
244 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

De forma simétrica, quem compra um veículo Volkswagen conta com


o baixo custo de manutenção, a robustez do carro e um bom valor de re-
venda. Quem compra uma motocicleta Harley-Davidson sabe muito bem
que paga caro por algo que o diferencia do comum dos mortais: ele não o
faz porque deseja apenas possuir um veículo de alto rendimento (existem
motocicletas japonesas que são admiráveis concorrentes); sonha desfrutar
a vida no comando de um ícone atemporal da cultura norte-americana;
quer participar do maior clube de fidelidade de motos do planeta, uma
verdadeira confraria. Em conclusão: seria insensato pôr esses intangíveis
a perder, para não dizer fatal, tanto para a Volkswagen quanto para a
Harley-Davidson.
O estreito vínculo entre os fatores intangíveis e a análise ética pode-
ria ser ilustrado com dois casos emblemáticos. Em 1984, Gerald Ratner
tornou-se presidente da empresa da família — uma rede de joalherias de
130 lojas — e empenhou-se em reinventar o negócio. Decidiu vender
joias baratas de baixo padrão e adotou vários recursos de marketing: fez
promoções, facilitou pagamentos, converteu seu negócio numa espécie
de supermercado. Em oito anos, Ratner construiu um império de 2.500
joalherias no Reino Unido e nos Estados Unidos, com receita anual de £1,2
bilhão e 25 mil funcionários. Embora fosse incensado pela mídia, atraiu
sobre si a ira de seus pares que não o consideravam um autêntico joalhei-
ro. Indiferente aos alaridos, expandiu-se comprando seus concorrentes,
enquanto jogava duro com seus fornecedores. Em 1991, foi convidado a
pronunciar um discurso de 30 minutos a 4 mil executivos no Royal Albert
Hall. Foi quando ele perpetrou uma piada para tornar mais palatáveis suas
reflexões: disse que os brincos que vendia custavam menos do que um
sanduíche de camarão... E, como que revelando o segredo do negócio,
arrematou com uma frase de efeito: qualificou as joias que sua companhia
comercializava como completa porcaria (total crap)! Como não podia
deixar de ser, a repercussão foi devastadora. E por quê? Porque Ratner
matou o sonho, destruiu a ilusão do luxo que ele mesmo fomentou. Em
decorrência, os clientes afluíram em peso às lojas para devolver os produ-
tos; ninguém o socorreu na crise em função da má reputação angariada
junto a seus pares e fornecedores; e seu nome tornou-se sinônimo de gafe
empresarial. Ele renunciou à presidência da empresa; a rede se desfez,
amargando a perda de £500 milhões.32
O segundo caso é do conhecimento geral: trata-se da Arthur Andersen,
uma das cinco maiores empresas de auditoria externa do mundo, respon-
8. A ética nas organizações 245

sável por uma receita mundial anual de US$9,3 bilhões em 2001 e que
empregava 85 mil pessoas espalhadas em dezenas de países. Havia sido
a auditora da Enron, sétima maior corporação dos Estados Unidos, por
mais de dez anos. A Enron foi à bancarrota em 2002 quando foi denun-
ciada por manipular balanços contábeis desde 1997. Muito perturbada
com o ocorrido e no afã de dificultar as acusações que pesavam contra
seu cliente, a Arthur Andersen prontificou-se a eliminar fisicamente e a
apagar eletronicamente inúmeros documentos comprometedores. Feito
o serviço, cobrou por ele, emitindo a competente nota fiscal. Tudo isso
foi desvendado durante as investigações e coincidiu com o escândalo da
WorldCom — a segunda maior operadora de telefonia de longa distância
dos Estados Unidos —, que também reconheceu uma fraude monumental
de vários bilhões de dólares. Ocorre que a WorldCom também tinha suas
contas auditadas pela Arthur Andersen. Resultado: a tradicional empre-
sa de auditoria acabou entrando em colapso. Causa? Foi simplesmente
boicotada pelos clientes que, sabiamente, não admitiram associar-se com
quem havia conspurcado a própria reputação.33 Apesar de continuar muito
competente do ponto de vista profissional, a Arthur Andersen havia dila-
pidado seu patrimônio moral, a respeitabilidade que era a base essencial
de seu negócio.
Para quem duvida que existam no Brasil represálias de igual porte,
basta lembrar o caso do ex-senador Luiz Estevão: foi o primeiro senador
cassado por falta de decoro parlamentar em função de seu envolvimento
num escândalo de superfaturamento (construção do Tribunal Regional do
Trabalho de São Paulo). Dono do Grupo OK, que congregava 18 empresas
com 4 mil empregados e que faturava R$250 milhões no ano 2000, ficou
reduzido em 2003 a uma receita de R$12 milhões e a 350 empregados,
além de ter todos os seus bens mantidos indisponíveis por ordem judi-
cial. Em depoimento confessou passar 99% de seu tempo respondendo a
processos criminais.34
O poder de fogo dos clientes é ainda mais visível no caso que envolveu
a Botica ao Veado D’Ouro, farmácia de manipulação centenária fundada
em 1858. A Botica foi acusada de ter falsificado um remédio convencional
indicado para o tratamento de câncer de próstata, pertencente à Sche-
ring do Brasil. Depois de batida policial, um milhão de comprimidos do
Androcur foi encontrado num laboratório de sua propriedade chamado
Veafarm. Ocorre que os comprimidos não continham o princípio ativo...
Dez pacientes que faleceram na época podem ter tido a morte acelerada
246 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

em função do placebo. Revelado o fato, a acusação foi repercutida pela


mídia e teve efeitos arrasadores sobre a empresa. A clientela não perdoou
o descaso, nem a fraude, nem a irresponsabilidade praticamente homici-
da: puniu a Botica ao Veado D’Ouro com um eficaz boicote e a empresa
entrou em colapso.35
No contexto contemporâneo, três fatores essenciais se conjugam e
conferem à sociedade civil uma invejável capacidade de retaliar empresas
julgadas socialmente irresponsáveis:

„ A competição econômica faculta aos clientes a possibilidade concreta


de debandar para o concorrente (voto com a carteira);
„ Os regimes políticos liberais asseguram aos cidadãos o direito efetivo

de recorrer à Justiça e às agências de defesa do consumidor;


„ A mídia plural e investigativa, apoiada nas telecomunicações em

tempo real, reúne condições para questionar fatos lesivos à popu-


lação e pode conspurcar ou destruir reputações.

Isso equivale a dizer que os ativos intangíveis encontram-se na depen-


dência de inúmeros riscos e pressões. É preciso ressaltar, no entanto, que
existem setores que se encontram sob intenso fogo cruzado e se equilibram
mais do que outros no fio da navalha — setores para os quais a confiança
constitui uma espécie de alicerce. Por exemplo:

„ As organizações não governamentais vivem de doações e não podem


pôr em xeque a confiança pública nelas depositada;
„ As empresas de auditoria independente vendem respeitabilidade

como fonte de legitimação de seus pareceres;


„ Os bancos de investimento dependem de confiabilidade para captar

e operar recursos financeiros;


„ Os centros de pesquisa se perpetuam graças à fidedignidade dos

dados que apresentam e dos conhecimentos que geram;


„ Os laboratórios de medicina diagnóstica supõem necessariamente a

acurácia de seus laudos;


„ Os profissionais liberais oferecem serviços cujo aval repousa em sua

credibilidade.

Em função disso, a preservação dos ativos intangíveis exige uma com-


petente investigação ética. Principalmente quando se sabe que deslizes
8. A ética nas organizações 247

morais têm o condão de provocar imensos prejuízos ou até a ruína do


empreendimento. Pior ainda quando se sabe que os pendores oportunistas
não são apenas tentações entranhadas no cotidiano, mas constituem tra-
dições que encontram complacência e cumplicidade nos círculos íntimos.
Tais incentivos acabam multiplicando os desvios, ao invés de coibi-los. Em
consequência, toda indefinição sobre questões sensíveis ou moralmente
polêmicas por parte das organizações arrisca pagar amargo preço.

O particularismo e o universalismo
As morais expressam padrões culturais, razão pela qual existem e
existiram milhares delas no mundo. Esses padrões são socialmente con-
vencionados e espelham condições históricas bem determinadas; são di-
versos no espaço e dinâmicos no tempo. Não há, pois, pautas universais e
imutáveis como alguns se comprazem em acreditar, nem há moral eterna
como muitas fés religiosas anunciam. Os romanos já ensinavam que os
costumes mudam com os tempos (o tempora, o mores). Afinal, toda co-
letividade cultiva um sistema próprio de normas morais que define, a seu
modo, o bem e o mal, o certo e o errado, o justo e o injusto, o legítimo e
o ilegítimo, as virtudes e os vícios.
Uma ilustração do relativismo cultural pode ser vislumbrada nas visões
comparadas sobre a sexualidade. Os filmes norte-americanos de meados do
século passado costumavam ter um final feliz (o happy end) que consistia
no enlace entre os namorados — seu selo era um casto beijo na boca e,
logo, o casamento consagrava uma vida harmoniosa para todo o sempre.
Sabemos infelizmente que, apesar dos votos solenemente proclamados pe-
los noivos no altar — compromissos de fidelidade e de mútuo apoio tanto
na bonança quanto nas agruras da vida —, esse doce futuro nem sempre
se dá. Atualmente, os filmes norte-americanos fizeram o aggiornamento
do fecho otimista e substituíram o beijo pelo intercurso sexual. Ora, mais
uma vez a realidade é madrasta, a começar pela incompatibilidade das
peles ou pela ausência de “química” entre os parceiros. Contudo, entre
o beijo selinho e o erotismo de alcova, que muitos filmes exibem, o sexo
preservou seu lugar de honra na mitologia norte-americana: antes implí-
cito, agora quase explícito. Mudou apenas a forma de encará-lo, fruto da
liberalização dos costumes.
Bem diversa é a mensagem que passam os programas de auditório no
Brasil: mulheres em trajes sumários expõem traseiros diante de câmeras
248 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

libertinas e requebram sem pudor. Os movimentos sinuosos e lascivos


afastam toda magia e rebaixam a sexualidade a uma sensualidade vulgar.
Não à toa muitas religiões cultivam reservas, restrições ou até franca
hostilidade com relação ao sexo, apenas abençoado no seio do matrimônio
e somente para perpetuar a espécie. O que se diria então dos esquimós que
entendiam o sexo como uma função natural e orgânica? Ou dos índios bra-
sileiros que, originária e singelamente, o viam como atividade lúdica?
Assim sendo, como ordenar o aparente caos dos padrões morais? Dis-
pondo de instrumentos rigorosos de análise. A começar pela separação das
águas em duas grandes categorias: ações morais podem ser universalistas,
quer dizer, consensuais porque o bem gerado interessa a todos os seres
humanos, ou podem ser particularistas, quer dizer, abusivas porque o bem
gerado prejudica outros seres humanos.36
Comecemos pelas ações cometidas por agentes individuais. Muitos
confundem egoísmo com a defesa dos interesses pessoais. Trata-se de uma
simplificação enganosa. A satisfação do interesse pessoal nem sempre é
egoísta. Ser egoísta é ter um amor exclusivo ou excessivo de si. Supõe
comportamentos exclusivistas, egocêntricos, prejudiciais aos interesses
alheios. Ora, nada há de errado em defender interesses pessoais. Proble-
mático é quando os interesses dos outros são afetados para nos beneficiar.
Em resumo, há egoísmo quando a satisfação dos interesses pessoais se dá
em detrimento dos interesses alheios.37
O egoísmo torna-se sociopático se levado às últimas consequências.
Porque a realização do interesse pessoal necessita de regras que o limitem:
sem moralidade que distinga o certo do errado não existiriam normas
de convivência social e deixariam de existir sociedades humanas. É ver-
dade que o egoísmo pode brotar ocasional e pontualmente. Mas a tese
do egoísmo generalizado é um contrassenso, à medida que o interesse
pessoal ensimesmado, soberano e inconteste não consegue ocupar todos
os espaços. Ninguém é plenamente autossuficiente. Ninguém satisfaz as
próprias necessidades sem passar pela mediação dos outros. Ninguém vive
só, apartado de seus semelhantes. Ninguém pode deixar de levar em conta
os interesses de outrem em todas e quaisquer circunstâncias.
É preciso, pois, distinguir egoísmo e autointeresse. Enquanto o primeiro
significa realizar interesses pessoais à custa ou em detrimento dos outros, o
segundo significa que o indivíduo age de forma benigna sem prejudicar os
interesses alheios. Por exemplo, descansar depois da jornada de trabalho,
candidatar-se a um emprego, inscrever-se num curso de pós-graduação,
8. A ética nas organizações 249

pleitear um aumento salarial, participar de um concurso interno na em-


presa... São umas tantas ações que não prejudicam ninguém, ainda que
atendam às necessidades do agente individual e o beneficiem.
Em resumo: os interesses pessoais podem realizar-se seja de forma
autointeressada (universalista, porque a natureza da ação é consensual ao
interessar a todos os seres humanos), seja de forma egoísta (particularista,
porque a natureza da ação é abusiva ao prejudicar outros seres humanos).
Assim, não é necessariamente preciso atentar contra os interesses dos outros
para realizar interesses individuais. E mais ainda: no mais das vezes, a inter-
venção cooperativa dos demais agentes sociais torna-se imprescindível.
Isso nos leva à questão do altruísmo. O altruísmo postula a necessidade
imperiosa de preocupar-se com os outros, de ir ao encontro de seus interes-
ses e, sobretudo, de não prejudicá-los. Não significa apenas, como alguns
imaginam, amor desinteressado pelo próximo ou filantropia. Somente o
altruísmo extremado ou puro considera o interesse do próximo como um
fim que mereça ações abnegadas e desprendidas. Que ações são estas? É
o caso dos missionários que prestam socorro a populações flageladas, dos
voluntários do Terceiro Setor, dos filantropos e de todos aqueles que doam
tempo ou dinheiro, ou ainda que se expõem a riscos em prol da coletivi-
dade — bombeiros, salva-vidas, médicos que debelam epidemias, soldados
da ONU... Ações de tamanha generosidade, no entanto, não devem ser
entendidas como movimentos unilaterais: o desprendimento não é absoluto,
mas relativo, pois os benfeitores ou os doadores recebem em troca se não
reconhecimento social, pelo menos uma gratificação psicológica.
Quando Adam Smith descreve o paradoxo moral do sistema capitalista
em A Riqueza das Nações,38 ele não faz o elogio do egoísmo exclusivista
como alguns, inadvertidamente, interpretam. Mostra como o sistema
capitalista funciona com base no autointeresse e não movido por um
afã egoístico.39 Afinal, a satisfação dos interesses particulares passa pelo
atendimento das necessidades dos clientes. Sem o quê, o dispêndio de
energia seria inútil, os esforços seriam baldados e o capital perdido. Em
outras palavras, exigências de mercado conduzem à adoção do senso de
interdependência. Como o lucro é o dínamo do sistema capitalista e visa
a obter retorno sobre os investimentos realizados, o autointeresse dos
empreendedores os induz a produzir aquilo que o mercado demanda, sob
risco de o negócio não prosperar. Não se trata, por conseguinte, de um
interesse egoísta que os move, mas do autointeresse que precisa corres-
ponder às expectativas de outros agentes para se realizar.
250 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

Convenhamos, no entanto, que a lógica da maximização do lucro e a


tendência à concentração do capital podem eventualmente privilegiar o
parcialismo, ou seja, podem conduzir à satisfação dos interesses empresa-
riais à custa dos outros. Isso não quer dizer que todas as empresas sempre
deem as costas aos demais agentes.40
Mas o que vem a ser exatamente o parcialismo? Significa que um grupo
causa danos aos outros de modo ganancioso e discriminador. Significa
satisfazer interesses grupais em detrimento dos interesses alheios ou rea-
lizar o bem grupal de forma abusiva, portanto particularista. Exemplos
abundam: dar calote em fornecedores, poluir o meio ambiente, desmatar
áreas de preservação permanente, sonegar impostos, formar cartéis, cobrar
“pedágio” de prestadores de serviços... 41
Pior ainda, no parcialismo dormitam tenebrosos demônios. É fonte
de preconceitos (os demais grupos são sujos, mesquinhos, inferiores e
outros que tais); base da intolerância (somos melhores do que aqueles lá);
e plataforma do ódio (é preciso livrar-se dessa escória).
É no parcialismo que reside o problema de maior gravidade do ponto
de vista ético porque, diferentemente dos indivíduos, os grupos possuem
cacifes que lhes permitem segregar e até eliminar os “diferentes”. É a partir
do discurso de justificação parcial que derivam as limpezas étnicas, os cam-
pos de concentração, a escravidão em larga escala, as guerras religiosas, as
carnificinas entre seitas ou, num registro mais trivial, os confrontos entre
torcidas organizadas...
É vital distinguir, ainda, parcialismo e altruísmo. Quando há altruísmo
então? Quando o indivíduo ou o grupo se preocupa com o bem-estar dos
outros e age de modo cooperativo e solidário; quando um agente leva
em conta os interesses dos outros para não prejudicá-los. Por exemplo:
respeitar os direitos autorais de artistas, intelectuais ou produtores de
softwares; denunciar as tentativas de extorsão praticadas por fiscais; não
ocupar os lugares destinados a portadores de deficiência, idosos e mulheres
grávidas; premiar o desempenho positivo dos colaboradores; não fumar
em recinto fechado para não provocar fumo passivo.
Agir de modo altruísta significa beneficiar os outros na medida do
possível, ainda que isso implique algum “custo” (esforço ou contribuição).
Vale dizer, não se deve ter uma leitura ingênua do altruísmo. Ninguém,
em sã consciência, pararia o seu veículo à meia noite na Marginal do Tietê
em São Paulo para socorrer uma mulher que acena, na escuridão, diante
de um carro encostado. Por que será? Por maldade, descaso, indiferença?
8. A ética nas organizações 251

Claro que não. É porque antevê o risco de um assalto. Se quiser ajudar,


poderia, isso sim, telefonar para o número de emergência da Polícia Militar.
Seria um gesto altruísta, além de prudente.
Não se deve tampouco imaginar o altruísmo como uma via de mão
única: a prática é uma via de duas mãos; trata-se de uma relação biunívoca
em que ambas as partes se beneficiam de algum modo. Quem se der ao
trabalho de telefonar para o número 190 para alertar a Polícia a respeito da
mulher que se encontra parada na Marginal saberá que agiu como cidadão
e ficará com isso satisfeito. Afinal, essa mulher poderia, em outra ocasião,
ser a esposa do motorista, a irmã dele ou sua própria mãe, de sorte que
ele ficaria grato se outro cidadão vier a tomar essa mesma providência.
Porque o telefonema corresponde a uma ação cooperativa (atuar juntos)
e solidária (compromisso com o outro).
Outro caso é o da empresa que capacita tecnicamente seu pessoal.
Não se trata de mero gesto de desprendimento, uma vez que a empresa
aumenta com isso a produtividade do negócio, aprimora a qualidade dos
produtos, ganha eficiência no atendimento, valoriza o próprio capital in-
telectual, além de obter outras vantagens motivacionais (melhora do clima
organizacional, empenho do pessoal, dívida moral para com a empresa).
Do ponto de vista dos funcionários, por sua vez, há ganhos indiscutíveis:
a maior qualificação lhes confere maior empregabilidade, à medida que
os torna mais competitivos e os valoriza no mercado de trabalho.
O fato é que o altruísmo assegura a coesão coletiva pelo senso de
interdependência. Com efeito, a múltipla satisfação de interesses é uma
vantagem evolutiva do Homo sapiens, como aliás o é de todos os animais
gregários, porque garante maior capacidade de apropriação e de defesa
do espaço vital.
Usando, agora, uma expressão consagrada por algumas coletividades
e que foi chamada de “regra de ouro”, o altruísmo corresponde a tratar
os outros do mesmo jeito que se espera ser tratado.
Um ponto essencial merece agora relevo: há vários altruísmos e não um
só como acena o senso comum. Cada um dos altruísmos remete, porém,
a interesses específicos, seja à realização do bem grupal, seja à realização
do bem comum. Sublinhemos também: o altruísmo tem necessariamente
caráter universalista, pois interessa a todos e não prejudica ninguém.42
Quando uma empresa faz o recall voluntário de produtos defeituo-
sos, age de forma altruísta restrita. Arca com os custos da devolução e
do reparo, reconhece publicamente o erro cometido e pede desculpas a
252 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

seus clientes. Este caso nos remete ao altruísmo restrito que corresponde
a práticas de apoio mútuo que beneficiam um grupo ou alguns grupos.
Tanto pode ser praticado pelo 2o Setor (o lucrativo), como pelo 1o Setor
(o público) e o 3o Setor (o voluntário). O benefício grupal não prejudica
os interesses alheios e reforça os laços de afinidade existentes entre os
membros do grupo ou dos grupos envolvidos. O bem gerado é restrito,
porque não abarca a sociedade como um todo, embora possa provocar
reflexos benéficos de amplo espectro.
De maneira que a realização do bem grupal pode ocorrer de duas
maneiras distintas. Uma consensual, uma vez que o grupo age de forma
benevolente sem prejudicar outros, e isso nos reporta ao altruísmo restri-
to. Outra abusiva, uma vez que o grupo age de forma danosa e prejudica
outros, e isso nos reporta ao parcialismo.
Ora, esses dois conceitos nos lembram de chofre os dois anteriores,
em função das simetrias conceituais que apresentam. De fato, um indiví-
duo realiza bem pessoal seja de maneira autointeressada, seja de maneira
egoísta; um grupo realiza bem grupal seja maneira altruísta restrita, seja de
maneira parcial. Assim, autointeresse e altruísmo restrito, bem como egoís-
mo e parcialismo obedecem à mesma lógica: consensuais e universalistas os
primeiros; abusivos e particularistas os segundos. Contudo — e vale a pena
insistir nisso —, não são conceitos equivalentes, pois realizam interesses
de agentes diversos: indivíduos os primeiros; grupos os segundos.
Exempliquemos. São práticas altruístas restritas uma empresa montar um
SAC (Serviço de Atendimento ao Cliente) ou financiar cursos de pós-gradu-
ação aos executivos (ganham os clientes e os colaboradores respectivamente,
assim como ganha a própria empresa com os efeitos positivos produzidos).
São práticas parciais uma empresa vender produtos usados como novos
ou cometer espionagem econômica (perdem os clientes e os concorrentes,
embora ganhe a empresa). São práticas autointeressadas um indivíduo gozar
férias remuneradas em período negociado com sua chefia ou aceitar uma
promoção (ninguém sai prejudicado, embora o agente se beneficie com isso).
São práticas egoístas um indivíduo maquiar as informações sobre a carreira
profissional ou espalhar fofocas maliciosas a respeito de colegas (o agente
se beneficia à custa da empresa, de um lado, e dos colegas, de outro).
Nessas circunstâncias, quais os efeitos das escolhas feitas pelos agentes?
Procuram sempre um bem para si, o que é absolutamente natural. Todavia,
conseguem obtê-lo cometendo mal aos outros por meio de atos egoístas
ou parciais, vale dizer, lançam mão de práticas abusivas e particularistas.
8. A ética nas organizações 253

Ou conseguem obtê-lo sem prejudicar ninguém e até fazendo bem aos


outros, por meio de atos autointeressados ou altruístas, vale dizer, lançam
mão de práticas consensuais e universalistas.
Avançando nessa linha de raciocínio, cabe perguntar-se: o que orienta
decisões e ações? Valores universalistas orientam práticas que são consen-
suais, porque obedecem à lógica da inclusão: o bem gerado interessa a
todos os seres humanos (todo mundo quer desfrutá-lo). Por isso é que o
autointeresse e os altruísmos se pautam pela razão ética.43 Em contrapar-
tida, valores particularistas orientam práticas que são abusivas, porque
obedecem à lógica da exclusão: o bem de uns causa mal a outros seres
humanos (poucos se locupletam à custa de muitos). Por isso é que o ego-
ísmo e o parcialismo se pautam pela racionalização antiética.44
Eis então revisitada a linha de demarcação que nos permite categorizar
universalmente os fatos morais: universalismo versus particularismo, prá-
ticas consensuais versus práticas abusivas, razão ética versus racionalização
antiética.
Um esclarecimento agora se faz necessário. Estamos fazendo repetidas
referências aos altruísmos, utilizando o plural, mas só explicamos o con-
ceito de altruísmo restrito. Quais são os demais altruísmos? São dois e se
referem à realização do bem comum, a saber, visam satisfazer interesses
gerais e consistem, por isso mesmo, em práticas consensuais.
O altruísmo extremado corresponde a práticas em boa parte desinteres-
sadas (não totalmente desinteressadas, pois há sempre uma contrapartida).
Trata-se de sacrifícios que benfeitores fazem para ajudar seus semelhantes
que se encontram em situação emergencial (boas causas) ou para aliviar o
sofrimento de necessitados (ajuda humanitária).Vocação típica do 3o Setor,
remete a uma espécie de heroísmo moral que pessoas abnegadas adotam em
reiterados gestos de desprendimento. De maneira menos arrojada, porém
não menos generosa, também remete aos voluntários do Terceiro Setor
que o praticam. A partir dos anos 1990, quando a falência do Estado, sua
hipertrofia e sua incapacidade de atender a demandas sociais específicas
ficaram patentes, um ponto de inflexão na história social brasileira ocor-
reu — multiplicaram-se as ações de cooperação coletiva.45
São exemplos do altruísmo extremado: amparar vítimas de fome ou
de epidemias; atender feridos em teatro de guerra; doar órgãos; acolher
refugiados, doentes, sinistrados ou desamparados; doar invenções, soft-
wares ou patentes; oferecer abrigo e cestas de alimentos a populações
flageladas e assim por diante.
254 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

Resta-nos falar do altruísmo imparcial, um processo em que se con-


jugam os interesses gerais, grupais e pessoais, fundamento primeiro do
convívio social. De fato, o altruísmo imparcial visa à realização de interesses
sociais (âmbito societário) e corresponde a práticas de interesse geral —
vocação típica do 1o Setor (público) —, porque diz respeito à produção
de bens ou de serviços públicos. Gera benefícios que são compartilhados
por todos, menos por aqueles que se encontram à margem da sociedade
(delinquentes ou miseráveis excluídos pelo mercado). Serve de base à
sociabilidade humana, à medida que realiza o bem comum e viabiliza a
convivência social. Aliás, os agentes sociais adotam tais processos não por
razões humanitárias, mas por motivos essencialmente pragmáticos que se
coadunam com os imperativos gregários. Se não, vejamos.
Peguemos o serviço de ambulância. Primeira pergunta: é de interesse
geral que exista? É claro que sim, pois pode salvar vidas. Segunda pergunta:
é de interesse do hospital que presta o serviço? Se for um hospital privado,
é uma prestação de serviço remunerada; se for um hospital público, é um
serviço que previne maiores complicações aos pacientes. Terceira pergunta:
é de interesse pessoal do paciente transportado? Sem dúvida, já que pode
abreviar seu sofrimento e antecipar graves consequências. Conclusão:
ninguém é contra, todo mundo se beneficia, trata-se de serviço essencial,
combinam-se os três tipos de interesses (gerais, grupais e pessoais).
A mesma situação se reproduz com as operações de torres de controle
em aeroportos: quem iria, em sã consciência, opor-se à sua existência?
Elas não asseguram com suas disciplinas a segurança da população circun-
vizinha, dos aviões em trânsito e de seus tripulantes e passageiros? Mais
ainda: qual passageiro conhece de fato a tripulação? Raros, para não dizer
nenhum. Ora, como é possível que alguém entregue em mãos alheias o que
tem de mais precioso — a própria vida? Façamos aqui algumas suposições:
os passageiros confiam (consciente ou inconscientemente) no rigor do De-
partamento de Aviação Civil (DAC) que não autorizaria o funcionamento
de companhias aéreas incompetentes. Confiam, ademais, nos programas
de manutenção preventiva e corretiva das empresas, em sua capacidade de
selecionar e de treinar pilotos habilitados e em seu interesse intrínseco em
evitar acidentes. Em última análise, os passageiros supõem que os pilotos
prezem a própria vida (quedas de avião costumam ser fatais), razão pela
qual poderiam viajar sossegados...
Todas as organizações que são indispensáveis para o convívio coletivo
exercitam o altruísmo imparcial. É suficiente pensar na relevância de por-
8. A ética nas organizações 255

tos, hidrelétricas, bibliotecas públicas, museus, redes de esgoto, escolas,


hospitais, emissoras de rádio ou de televisão, correios, hidrovias, parques,
segurança pública, sepultamento ou cremação de corpos, operadoras de
telefonia ou de gás natural, tribunais de Justiça, companhias metroviárias,
ferroviárias ou de ônibus, centros de detenção etc.. Não há muito o que
pensar para convencer-se de sua centralidade para a existência coletiva.
Agente social algum deixa de usufruir desses bens e serviços, a não ser, é
claro, os marginalizados. E todos os bens e serviços públicos representam
umas tantas ilustrações de um fato primário: sem equipamentos de interesse
comum, sem mecanismos de regulação social, sem regras de convivência
social, a vida em sociedade se inviabiliza.46
São exemplos de altruísmo imparcial: o atendimento de pacientes por
critérios de urgência médica; a proibição do fumo em ambiente fechado de
uso coletivo; a operação do sistema monetário; o abastecimento da popula-
ção com alimentos e remédios; a proibição da pesca em tempo de reprodução
das espécies (período de defeso); o pagamento por serviços ambientais; a
diminuição do tamanho das embalagens, reduzindo insumos...
Isso nos leva a indagar: quais os fundamentos do altruísmo imparcial?

„ A imparcialidade, à medida que todos os interesses são considerados


sem que haja distinção ou discriminação entre os agentes sociais;
„ A universalidade, uma vez que os processos são aplicáveis em qual-

quer lugar, ou seja, transcendem fronteiras e diferenças;


„ A equidade, já que os efeitos beneficiam a todos igualmente, ainda

que proporcionais às necessidades desiguais dos agentes.

Feitas essas considerações, vale a pena consolidar nossas distinções:

„ Indivíduos realizam o bem pessoal exercendo práticas egoístas ou


práticas autointeressadas.
„ Grupos realizam o bem grupal exercendo práticas parciais ou prá-

ticas altruístas restritas.


„ Coletividades inclusivas (sociedades e humanidade) realizam o bem

comum exercendo práticas altruístas imparciais ou práticas altruístas


extremadas.

Em suma, ao agrupar os conceitos, temos práticas abusivas, de caráter


particularista, e que obedecem à racionalização antiética: são elas as práticas
256 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

egoístas e parciais. E temos práticas consensuais, de caráter universalista,


e que obedecem à razão ética: são elas as práticas autointeressadas e as
altruístas restritas, imparciais e extremadas.47
Por exemplo, dois alunos de uma importante escola privada paulista-
na prestaram vestibular no meio do terceiro ano do ensino médio como
“treineiros”. Cada qual entrou numa faculdade de renome. Para viabilizar
a inscrição, ambos obtiveram o diploma do ensino médio graças a uma
suposta reclassificação feita por um colégio do Mato Grosso do Sul. Como
qualificar esta situação do ponto de vista científico? Trata-se de uma ação
egoísta perpetrada pelos alunos, de início, pois o benefício pessoal de cada
qual foi obtido à custa de um candidato devidamente habilitado. No se-
gundo momento, quando da compra do diploma, houve uma ação parcial,
pois o benefício foi grupal, com vários agentes se locupletando à custa
dos candidatos preteridos. Em ambos os momentos, operou uma lógica
particularista de exclusão, com base em justificativas que correspondem à
racionalização antiética. Por exemplo: o diploma do ensino médio é mera
formalidade burocrática; demonstramos cabalmente que possuímos os
conhecimentos necessários para passar no vestibular; obtivemos maiores
notas do que os candidatos preteridos; é injusto que a falta de um pape-
lucho prejudique quem está melhor classificado...
O diretor da escola paulistana percebeu a manobra e denunciou o fato
às autoridades educacionais. Feita a investigação, o Ministério da Educação
interveio no colégio responsável pela irregularidade: os diplomas foram
invalidados e as matrículas dos alunos nas faculdades canceladas. Como
caracterizar este desdobramento do ponto de vista científico? Trata-se de
altruísmo imparcial tanto por parte do MEC como por parte do diretor da
escola, porque preservou o bem comum: prevaleceu o respeito às regras,
houve punição do jeitinho, restabeleceu-se o resultado correto e devolve-
ram-se as vagas aos candidatos habilitados. Isto é, adotaram-se práticas que
operam sob a lógica da inclusão e que correspondem à razão ética.
Por fim, um exemplo interessante que versa sobre a doação de sangue.
Em tese a doação visa a salvar vidas humanas. Constitui uma prática altruísta
extremada quando é feita de forma anônima e gratuita, pois promove o bem
para a humanidade. Entretanto, se a doação for feita mediante pagamento,
sob a égide de uma rede clandestina de tráfico que comercializa o sangue,
trata-se de prática parcial, uma vez que vários agentes se locupletam em
detrimento dos interesses gerais. Agora, se o doador receber um incentivo
oferecido publicamente — remissão de um dia de trabalho, lanche, tipagem
8. A ética nas organizações 257

de sangue, meia entrada em espetáculos ou isenção de taxas de inscrição


em exames e concursos públicos —, a prática é altruísta imparcial, já que
beneficia todos os membros de uma sociedade concreta. Por fim, se a do-
ação tiver um endereço certo, seja um parente ou seja um amigo, a prática
permanece altruísta extremada, pois se trata de um ato humanitário (o
propósito é socorrer), embora pareça altruísta restrita.

As teorias éticas e os processos de decisão


A voz corrente é a de que, diante de um dilema moral, faz-se uma es-
colha entre o bem e o mal. Ocorre que esta forma convencional de pensar
pode embutir uma conclusão precipitada: se eu estou fazendo a coisa certa,
isso significa que quem se opõe a mim está fazendo a coisa errada... Ora,
as duas coisas podem estar certas!
Com efeito, o leque das decisões éticas não se reduz à escolha do bem
para afastar o mal, quer dizer, à escolha entre o bem e o mal. É possível
haver escolha entre dois bens, quer dizer, escolher entre o bem e o bem. E
mais ainda: é possível escolher fazer um sacrifício — “mal necessário” —
para obter um bem maior, quer dizer, escolher o mal para alcançar o bem.
E, finalmente, é possível fazer o sacrifício do “mal menor” para evitar um

Figura 16

O leque das decisões éticas

y Escolha do bem y Escolha entre


para afastar o mal dois bens

Bem/Mal Bem/Bem

Mal/Mal Mal/Bem

y Sacrifício do mal y Sacrifício do mal


menor para evitar necessário para
um mal maior obter um bem maior
258 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

mal maior, quer dizer, escolher entre o mal e o mal. Eis uma combinatória
que traduz a extraordinária riqueza das análises éticas.
Vamos dar exemplos de escolhas entre o bem e o bem. Pagar uma dívida
em dia ou ajudar um amigo necessitado? Denunciar à Receita Federal a
empresa na qual se trabalha por maquiar dados de balanço ou recusar-se
simplesmente a compactuar e arriscar ser demitido? Apoiar colega que é
vítima de assédio moral e perder uma promoção certa ou manter-se neutro
e obter a promoção que resolverá as pendências financeiras da própria
família? Cursar um MBA exigente ou dedicar o escasso tempo livre aos
filhos adolescentes?
Agora, para entender as questões candentes levantadas pela problemá-
tica do “mal necessário” e do “mal menor” é preciso remeter-se às teorias
éticas. De fato, à semelhança das demais ciências, não há uma única teoria
que ocupe todo o espaço da investigação ética. No campo da sociologia,
por exemplo, é possível identificar três grandes matrizes teóricas que são
clássicas — a funcionalista, a weberiana e a materialista histórica. Na
ciência da moral, de igual modo, duas teorias éticas científicas são reco-
nhecidas — a teoria ética da convicção e a teoria ética da responsabilidade.
Ambas configuram, em última análise, dois modos radicalmente distintos
de tomar decisão.48
As teorias éticas legitimam as decisões morais ao fundamentá-las e ao
mostrar seus efeitos universalistas. São científicas, porque a contrapelo da
filosofia, são um “pensar com provas”: constituem discursos de demons-
tração, explicitam os fundamentos sociológicos tanto estruturais quanto
históricos dos dilemas enfrentados e, por conseguinte, captam o porquê
da adoção de tais ou quais cursos de ação.
O caráter abstrato-formal de seus conceitos confere-lhe a universalidade
indispensável para que possam ser investidos no conhecimento das inúme-
ras situações concretas que emergem em quaisquer tempos e sob quaisquer
céus. Por exemplo, o saber da medicina alopática pode ser investido no
conhecimento de quaisquer espécimes de Homo sapiens. Afinal, a biologia
humana é uma só. Da mesma maneira, decisões éticas existem em quaisquer
sociedades humanas, assim como são universais os dois modos de tomar
decisão — o de aplicar convicções universalistas às polêmicas morais (teoria
da convicção) ou o de elaborar soluções universalistas para os problemas
morais com base na análise de riscos (teoria da responsabilidade).
Vamos agora distinguir as duas teorias que conferem consistência às
decisões e as abrigam sob o guarda-chuva da razão ética. A teoria ética da
8. A ética nas organizações 259

convicção obedece a uma mecânica específica. Ela ensina que, para serem
justificadas, as decisões e as ações devem estrita obediência a um proto-
colo previamente estipulado, isto é, exigem conformidade a prescrições
ou a virtudes de caráter universalista. Vale dizer: as ações condizem com
as obrigações? Trata-se então de cumprir deveres, daí o relativo conforto
que a tomada de decisão provoca, uma vez que ela se vale de soluções
consagradas.
Por sua vez, a teoria ética da responsabilidade está animada por outra
dinâmica. Considera justificadas as decisões e as ações que atingirem fins
universalistas, resultados que interessem a todos os seres humanos. A
questão que se coloca é: quais as consequências presumíveis das ações?
Assumem-se riscos calculados obedecendo ao seguinte compasso: as ações
cujos malefícios forem maiores do que os benefícios carecem de justifi-
cação ética. Em outras palavras, não basta pretender fins universalistas, é
preciso também ter êxito na empreitada; não basta uma análise apurada, é
indispensável que ocorram os efeitos presumíveis sobre os agentes. Trata-
-se então de realizar uma análise situacional e um cálculo racional, donde
certa vertigem na tomada de decisão, uma vez que as incertezas perduram
até na fase de implantação da decisão.
Ambas as teorias éticas adotam por pressuposto a realização do univer-
salismo consensual pelo exercício de práticas autointeressadas ou altruístas.
Por quê? Porque as práticas egoístas ou parciais, como já o vimos, interes-
sam exclusivamente a alguns em detrimento de muitos, sem que existam
razões fundadas para tanto — sejam elas situações extremas ou condições
de viabilidade prática —, daí a carência de legitimidade ética.
A teoria ética da responsabilidade sustenta essa tese, aliás, com um ra-
ciocínio límpido. Vejamos o caso de um navio que esteja afundando e que
não disponha de botes salva-vidas em quantidade suficiente para acolher
todos os passageiros e tripulantes.49 Não havendo possibilidades concre-
tas de salvar todos (condições de viabilidade prática), não seria legítimo
imaginar que coubesse salvar um número menor, porém objetivamente
possível? Faz-se o que é factível fazer nessas circunstâncias, de modo a
melhor atender o interesse coletivo. Não se trata, é claro, de privilegiar
alguns em detrimento de outros, para não desembocar no particularismo
abusivo. Adota-se então o mal necessário, a saber, comete-se um sacrifício
para alcançar um bem maior.
A teoria ética da convicção defende a tese de outra forma: o que é de
interesse geral, salvar alguns ou salvar todos? Obviamente, salvar todos.
260 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

Como não se pode fazê-lo e não se pode barganhar com vidas humanas,
isto é, decidir quem viverá e quem morrerá, o destino de cada qual fica
nas mãos de Deus ou da sorte.50
Assim sendo, na teoria ética da convicção, as decisões e as ações con-
substanciam pressupostos socialmente definidos e compartilhados, desde
que universalistas. Elas aplicam princípios ou ideais sine ira et studio (sem
raiva ou parcialidade). Se o bem comum não for realizado, não vem ao
caso: desde que cumpra suas obrigações, o agente não pode ser responsa-
bilizado pelos resultados das ações. No cerne da teoria ética da convicção
opera uma lógica formal do tipo “faça o que deve ser feito e aconteça o
que tiver de acontecer”. Quais são então os fatores que entram em linha
de conta? A coerência entre a ação e a intenção, a pureza das intenções, a
estrita consistência entre o feito e o socialmente esperado. Por exemplo,
se uma menina grávida com quinze anos, depois de ter implorado sem
sucesso a ajuda da mãe católica para realizar um aborto (ideia rejeitada
como pecado abominável), vier a morrer no parto, alguém culpará a mãe?
De forma alguma. Nem a própria mãe se sentirá responsável. Por que será?
Porque cumpriu o seu dever, deu curso a crenças coletivas amplamente
partilhadas, cometeu uma ação virtuosa, levou adiante uma ação racional
em relação a um valor universalista (não sacrificar a vida do feto). Se a
menina morreu, era seu destino, Deus assim quis, havia chegado sua hora.
Não foi a proibição do aborto que causou sua morte, foi o parto.51
Na teoria ética da responsabilidade, diferentemente, os propósitos que
orientam as decisões e as ações, bem como os resultados presumidos, só se
justificam se gerarem os benefícios prometidos. Cabe ao agente analisar as
necessidades e as dificuldades emergentes, assumir riscos calculados e agir
com as devidas precauções — cometer, pois, uma ação racional em relação
a fins universalistas. Mas não só: precisa necessariamente chegar às metas
pretendidas, isto é, executar corretamente as providências cabíveis. No
cerne da teoria ética da responsabilidade opera uma lógica prática do tipo
“faça o que for necessário para que ocorram efeitos benéficos”. Entram
em linha de conta a presunção da certeza e a eficácia do resultado.52 Por
exemplo, suponhamos que a menina grávida não tivesse pedido ajuda à
mãe dela, pois sabia de antemão que a resposta seria negativa. E supo-
nhamos ainda que ela tivesse recorrido ao pai e este tivesse patrocinado o
aborto da criança não desejada. Como ficaria a situação se a menina viesse
a falecer no aborto? Não há dúvida: o pai seria considerado responsável
pelo falecimento. Ele responderia por todas as consequências negativas
8. A ética nas organizações 261

da ação; não poderia amparar-se nas justificativas que os padrões cultu-


rais conferem; ficaria em campo aberto, submetido ao fogo cruzado das
críticas e das sanções. Em suma, estaria desemparado ou, na melhor das
hipóteses, contaria com a solidariedade de poucos amigos.
Isso nos motiva a investigar os modos de tomar decisão que as duas teo-
rias éticas nos revelam. O famoso romance A Escolha de Sofia de William
Styron nos servirá de plataforma para tal incursão. Durante a Segunda
Guerra Mundial, a jovem e bela Sofia Zawistowska, católica, filha de um
professor de direito e mãe de dois filhos, teve o marido e o pai mortos na
Polônia invadida pelas tropas alemãs. Depois de presa ao traficar carne, foi
mandada para o campo de concentração de Auschwitz com os dois filhos
— um menino e uma menina. Na fila de triagem, depois do desembarque,
um oficial alemão se interessou por ela, elogiando sua beleza e dizendo-lhe
cruamente que gostaria de dormir com ela. Logo depois quis saber se era
comunista e, na sequência, se era judia. Diante da dupla negativa, propôs
salvar-lhe a vida e a de uma criança, desde que ela escolhesse entre as
duas aquela que seria salva e aquela que seria sacrificada... Ou seja: caso
não escolhesse, morreriam as duas crianças; caso escolhesse uma delas,
a outra sobreviveria. Em pânico, refém de uma situação extrema, Sofia
recusou-se a decidir. Irado, o oficial mandou arrastar as duas crianças para
a fila da câmara de gás. Foi quando Sofia, em prantos, escolheu a filha...
que foi morta. O oficial cumpriu sua promessa, preservando a vida dela
e a do filho.
O que ocorreu nessa história? Sofia fez uma escolha, ainda que em
desespero de causa. Adotou o caminho da análise das circunstâncias, da
relação custo-benefício. Optou pelo menor dos males, porque tentar salvar
a vida de uma criança é um fim de caráter universalista. Fez uma análise
de riscos. Temos assim, diante de nós, algumas das chaves de decifração
da teoria da responsabilidade.
Em franco contraste, a teoria ética da convicção é um corpo de pres-
crições absolutas, dogmáticas, iluminadas pela pureza doutrinária de seus
imperativos . As obrigações morais que esta teoria inspira assumem feições
incondicionais e unívocas. Sua máxima é “tudo ou nada”, à semelhança
dos programas de tolerância zero. Aliás, todas as morais ou sistemas nor-
mativos que a invocam reproduzem esse modo de obrar. Qual é então
seu mecanismo-chave? O das distinções qualitativas, indissociavelmente
opostas e articuladas: o bom e o mau, o branco e o preto, o sim e o não,
o certo e o errado, o virtuoso e o vicioso, o fiel e o infiel. Cumpre aos
262 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

agentes fazerem escolhas entre termos binários, categorias insertas em


dicotomias inconciliáveis, componentes de binômios maniqueístas. O ar-
gumento trivial de que a teoria se vale é: não existe meia gravidez! Nessa
visão inteiriça, os alicerces do mundo são unidades discretas: inexistem
meios termos, zonas cinzentas, matizes. Assim, no caso de Sofia, ela não
deveria ter escolhido, não poderia ter transigido com a vida da filha, Deus
é quem decide quanto a isso. Deveria ter lançado o repto, sim: ou os dois
vivem ou os dois morrem! E eu com elas! Não o fez.
Diferente foi o caso de um soldado alemão, vítima de um dilema
assemelhado durante a Segunda Guerra Mundial. Estávamos em 1944 e,
enquanto as tropas estavam em retirada na Itália Setentrional, um oficial
foi morto por guerrilheiros italianos (partigiani). O comandante alemão
ficou furioso e quis dar uma lição exemplar: ordenou a seus soldados
que prendessem a esmo vinte civis na aldeia mais próxima. Trazidos à
sua presença, mandou executá-los. Acontece que, antes do fuzilamento,
um dos soldados — piedoso e comprometido com os valores cristãos
— assinalou ao comandante que matar vinte homens para vingar um
único oficial parecia um tanto desproporcional. O comandante refletiu
e disse ao soldado: “está bem, escolha um deles e fuzile-o!”. Por razões
de consciência, o soldado não ousou escolher. Logo depois, os vinte civis
foram fuzilados.
Decorridos cinquenta anos, esse mesmo homem ainda sofria com a
decisão que tomou, embora nenhum tribunal o culpasse. Pensava que se
tivesse tido a coragem de escolher e se tivesse assumido a responsabilidade
de matar um infeliz, dezenove inocentes não teriam perdido a vida...53
Mas a decisão que ele havia adotado se enquadra na rígida mecânica
da teoria ética da convicção. Ele se refugiara, quisesse ele ou não, sob as
asas protetoras de um idealismo que não mede consequências. Aplicara
aos prisioneiros italianos aquilo que ele julgou ser seu dever, uma postura
imperativa que derivava de suas convicções cristãs — não matar, que é
um valor universalista. Seu procedimento havia sido dedutivo: procurara
em um relance qual seria a solução à charada que seu superior lhe havia
lançado e a identificara num dos dez mandamentos divinos.54
Dito de outra forma, a teoria ética da convicção:

„ Consiste em aplicar pressupostos éticos às situações concretas que


apresentem dilemas, em pinçar na consciência moral dos agentes as
convicções assimiladas no processo de socialização;
8. A ética nas organizações 263

„ É uma teoria que repousa em certezas e em imperativos categóricos


— verdadeiro repertório de respostas acabadas e verdades absolu-
tas, como se fosse um vade mécum de mandamentos, prescrições,
preceitos, ordenações, normas, obrigações, ditames, determinações
ou deveres de natureza universalista;55
„ Opera como processo de decisão dedutivo, uma vez que se vale de

preceitos definidos ex ante;


„ Prescreve aos agentes que observem códigos universalistas que sua

consciência introjetou (fruto dos padrões morais da sociedade em


que vivem), lhes determina estrita obediência aos ditames morais e
exige rigorosa conformidade às regras sociais.

A teoria ética da responsabilidade, diversamente:

„ Consiste em realizar uma análise situacional e um cálculo racional:


configura, assim, uma análise de riscos;
„ Força os agentes a procurar respostas que facultem resultados bené-

ficos de caráter universalista, ou seja, orienta ações que maximizem


benefícios (produzam resultados objetivamente positivos) e minimi-
zem malefícios (evitem resultados objetivamente negativos);
„ Inspira-se pela máxima da utilidade (decisões e ações se justificam

eticamente se forem capazes de maximizar o bem para o maior


número possível de pessoas) ou pela máxima da eficácia (decisões e
ações se justificam eticamente se forem capazes, em situações extre-
mas, de fazer o máximo de bem às pessoas objetivamente possíveis
de beneficiar);
„ É um processo de reflexão indutivo — ex post — e os riscos assu-

midos são calculados;


„ Parte do pressuposto de que as soluções não existem a priori, mas

precisam ser construídas, como se fosse uma obra em aberto, cujas


ameaças e oportunidades merecem ser ponderadas num esforço
incessante que exige maturidade e competência estratégica.56

Um caso relativamente recente pode ilustrar o embate entre as duas


teorias éticas: trata-se da decisão quanto à interrupção da gestação de
feto anencefálico.
Por não possuírem cérebro, os fetos não têm chance de viver: morrem
dentro do útero ou poucas horas após o parto. A teoria ética da responsa-
264 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

bilidade concorda que é preciso conceder às mães o direito de interromper


a gravidez, enquanto a teoria ética da convicção se opõe a tal, pelo menos
na visão da Igreja Católica e de muitas nações islâmicas que qualificam o
aborto como assassinato.57

As vertentes das duas teorias éticas


Cabe alertar, no entanto, que as respostas a dilemas ou a questões eti-
camente polêmicas não são únicas ou uniformes, nem mesmo no caso da
teoria ética da convicção. É bem verdade que ela tem um modo próprio
de tomar decisão, um algoritmo ou um método formal que consiste em
aplicar prescrições universalistas. Mas as decisões podem ser múltiplas e
divergir na essência, dependendo dos valores culturais que estejam em
jogo. Pois, como todo corpo de conhecimentos abstratoformais, a teoria
da convicção funciona como uma gramática: ela supõe certas regras de
procedimento, não define a substância histórica ou axiológica dos pre-
ceitos, embora respeite sempre a lógica inclusiva do universalismo. Isso
significa que o conteúdo dos deveres a serem observados adquire impor-
tância maiúscula.
Veja-se o caso de uma criança exangue, internada em situação de
emergência num hospital. Estamos em meados dos 1990. O médico de
plantão lhe receita uma urgente transfusão de sangue em função do risco de
morte. De forma surpreendente, os pais da criança se opõem à prescrição
do médico e se declaram Testemunhas de Jeová. Depois de argumentar
inutilmente, o médico consulta seus pares. A equipe médica é sondada às
pressas e decide salvar a vida do paciente. Apoia-se em quê? No juramento
de Hipócrates, chave de seu código profissional de conduta, que prescreve
que o médico deve guardar absoluto respeito pela vida humana, atuando
sempre em benefício do paciente.
Ora, pais e médicos se escoram no mesmo modo de tomar decisão que
a teoria da convicção utiliza. Porém, embora universalistas, os valores que
os guiam são diferentes. De uma parte, os pais consideram fundamental que
sua fé seja respeitada, porquanto a transfusão de sangue apartaria seu filho
da comunidade religiosa à qual pertence e, por isso, vetam a proposta. De
outra parte, os médicos sustentam que não realizar a transfusão constituiria
um atentado à razão de ser da medicina — zelar pela vida humana e atuar
sempre em benefício do paciente. Estabelece-se, assim, um evidente con-
flito de valores, embora o modo de proceder seja o mesmo. Ou seja: para
8. A ética nas organizações 265

dirimir polêmicas, dilemas, dúvidas, aplicam-se mandamentos superiores;


mas, no caso, as decisões acabam sendo opostas.
Fica mais uma vez claro o quão importante é não confundir o nível
abstrato-formal das duas teorias e o nível histórico-real dos fenômenos
morais. Uma coisa é navegar no espaço sideral dos conceitos gerais, outra
coisa radicalmente diversa é mergulhar por inteiro nas águas terrenas dos
valores ou dos propósitos concretos. Uma coisa são os conhecimentos
universais, outra coisa são os balizamentos morais singulares. A confusão
comumente feita entre as morais históricas (dos povos, classes, categorias
sociais, organizações) e o corpo de conhecimentos das teorias éticas faz
com que se caia num relativismo exacerbado e inconsequente. Quando isso
ocorre, a “ética”, assimilada a uma moral particular, fica na dependência
das inclinações de cada qual, balança ao sabor dos padrões culturais e
faz escoar pelo ralo os critérios objetivos que são imprescindíveis para a
análise científica.
A teoria ética da convicção é uma ética dos deveres universalistas, da
conformidade a preceitos previamente definidos ou da observância de
virtudes.58 Ela preceitua que princípios ou ideais devam pautar as decisões
e as ações. De modo que ela abriga duas vertentes:

„ A de princípio, que normas atualizam, obedecendo à máxima “res-


peite as regras universalistas haja o que houver”, pois ganham todos
pelo respeito aos princípios;
„ A da esperança, que valores especificam, seguindo a máxima “o

ideal universalista antes de tudo”, pois ganham todos pelo triunfo


dos ideais.

A teoria ética da convicção indica ainda que o arcabouço axiológico


acha-se inculcado nas consciências individuais: “Faço algo porque é um
mandamento e devo cumprir minhas obrigações”. No entanto, como as
consciências não existem no vácuo, de onde provêm as mensagens que
foram captadas e assimiladas pelos agentes? Das várias agências de con-
trole social: as tradicionais, como a família, a comunidade local, a escola,
a igreja, embora estejam perdendo vigor nas regiões mais densamente
urbanizadas; e as mais modernas, em franco processo de fortalecimento,
tais como as empresas, o mercado, a mídia e o Estado.
Por sua vez, a teoria da responsabilidade é uma ética dos resultados,
do cálculo racional e dos riscos. Seu processo de legitimação centra-se
266 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

na realização de interesses universalistas e não na satisfação de interesses


particularistas ou facciosos. Orienta os agentes a analisar o contexto ou
as circunstâncias em que os dilemas se processam; os conduz a avaliar a
relação custo-benefício e a ponderar as implicações que oportunidades e
ameaças ensejam. Tudo isso à luz de propósitos universalistas — nunca
será demais insistir nesse ponto. De modo que a teoria da responsabilidade
abriga também duas vertentes:

„ A da finalidade que justifica decisões e ações em função da bondade


dos fins, guiada pela máxima “realize fins universalistas custe o que
for necessário”, pois ganham as pessoas objetivamente possíveis;
„ A utilitarista que justifica decisões e ações a partir de um jogo coletivo

de soma positiva, norteada pela máxima “faça o máximo de bem


para o maior número”, pois mais gente sai ganhando.

O agente então pensa da seguinte forma: “Faço algo porque é o menor


dos males ou porque gera o bem maior para todos”.
Assim sendo, após muitos embates e polêmicas históricas, é possível
colher inúmeros exemplos de políticas e medidas tomadas segundo o
processo decisório da teoria ética da responsabilidade. São eles “males
necessários” para obter-se o bem geral, ou “males menores” para que
sejam evitados males maiores.
Vamos começar com casos de “mal necessário”:

„ Provedores de Internet retêm dados de usuários e os entregam à


polícia a fim de combater o terrorismo ou o crime organizado: a
quebra da privacidade é um mal necessário para que se obtenham in-
formações valiosas para prevenir graves ameaças ao bem comum.
„ A delação premiada: o abrandamento da pena e até a anistia do

acusado são males necessários para desvendar esquemas criminosos


e para identificar de forma circunstanciada quem participou dos
delitos.
„ A adição de iodo no sal: corre-se o risco de um possível excesso que

cause tireoidite autoimune, mas é um mal necessário para prevenir


o bócio em adultos e o cretinismo em crianças.
„ Os agrotóxicos e os pesticidas na agricultura: o impacto negativo

sobre a saúde e o meio ambiente são males necessários para produzir


alimentos em larga escala e controlar as pragas.
8. A ética nas organizações 267

„ Submeter-se à aplicação de Raios X: a radiação, perniciosa quando


reiterada, é um mal necessário para diagnosticar fraturas, tumores,
câncer e doenças ósseas.
„ Colocar conservantes nos alimentos enlatados: seus efeitos nocivos

são males necessários para que sejam preservados contra a deterio-


ração no transporte e no armazenamento.
„ Abater reses infectadas pela doença da vaca louca e eliminar aves

contaminadas pela gripe aviária: os prejuízos financeiros que os


proprietários sofrem são males necessários para conter epidemias.
„ Usar fotocopiadoras: a nocividade dos raios laser e do negro de fumo

do toner são males necessários para ganhar eficiência e rapidez no


campo administrativo.
„ A fluoração da água potável: os possíveis erros de dosagem e o risco

de fluorose são males necessários para prevenir e reduzir a incidência


de cáries dentárias na população.
„ A construção de hidrelétricas: as áreas inundadas, os moradores

deslocados, a fauna e a flora afetados são males necessários para


gerar energia limpa.
„ Instalar reatores nucleares para gerar energia elétrica: o lixo nuclear

e o risco de contaminação radioativa são males necessários para


obter eletricidade sem emitir gases de efeito estufa, chuva ácida ou
destruição da camada de ozônio.
„ Aplicar a energia nuclear em diagnóstico e tratamento de inúmeras

doenças (medicina); irradiar alimentos para conservar alimentos e


produzir sementes (agricultura); verificar a qualidade de equipamen-
tos e esterilizar materiais médicos e cirúrgicos (indústria); monitorar
poluentes e identificar recursos aquíferos (meio ambiente): o risco de
contaminação é um mal necessário para obter ganhos em eficiência
e produtividade com a utilização de técnicas avançadas.

A teoria ética da responsabilidade também se vale do processo decisó-


rio que assume o “mal menor” para evitar um mal maior. Vejamos alguns
exemplos:

„ Escolher um paciente entre outros para ocupar a única vaga dispo-


nível na UTI constitui um mal menor (procura-se salvar a pessoa
objetivamente possível), pois os demais pacientes podem morrer,
mas evita-se que todos morram (mal maior).
268 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

„ O rodízio de carros em dias alternados constitui um mal menor,


pois causa transtorno aos motoristas atingidos pela medida, mas
ameniza-se a enormidade dos congestionamentos (mal maior).
„ Triar feridos em hospitais de campanha constitui um mal menor,

uma vez que os não escolhidos têm grandes chances de vir a falecer,
mas evita-se que muito mais soldados morram, caso um ou outro
paciente grave monopolizasse a atenção da equipa cirúrgica (mal
maior).
„ Demitir funcionários para aliviar custos em empresa que passa por

graves dificuldades constitui um mal menor, pois os dispensados


vão encarar o drama do desemprego, mas evita-se a falência da em-
presa com a consequente extinção de todos os postos de trabalho
existentes (mal maior).
„ Dar preferência ao atendimento de idosos, gestantes, portadores

de deficiência e mulheres com criança de colo constitui um mal


menor, pois desrespeita-se a ordem de chegada, mas evita-se agravar
os desgastes físicos que pessoas com dificuldades sofrem em longas
filas (mal maior).
„ Autoridade ministerial negar na mídia a iminente desvalorização

da moeda constitui um mal menor, por tratar-se de mentira cívica


(pode ser desmascarada, é claro, quando do lançamento de um
pacote), porque evita-se especulação no mercado, lesiva ao bem
comum (mal maior).
„ Usar a “pílula do dia seguinte” que dificulta a fecundação constitui

um mal menor, pois existem contraindicações e efeitos colaterais,


mas evita-se a gestação de uma criança indesejada (mal maior).
„ Escolher o paciente que terá o fígado transplantado por critérios

médicos constitui um mal menor, o de não seguir a ordem de ins-


crição, mas evitam-se mais falecimentos (males maiores).

Veremos agora situações que podem ser lidas de ambas as maneiras:


como mal menor para evitar mal maior ou como mal necessário para
obter um bem maior:

„ O uso de remédios, em função dos efeitos colaterais e das reações


adversas (remédio é um veneno que deve ser corretamente receitado
e deve ser tomado na dose certa), mas evita-se doença grave (mal
maior) ou combate-se a doença para obter a cura (bem maior).
8. A ética nas organizações 269

„ As vacinas obrigatórias contra doenças contagiosas, em função das


picadas e dos efeitos colaterais em pessoas alérgicas, mas evita-se a
contaminação da população e os surtos epidêmicos (males maiores)
ou busca-se manter saudável a população (bem maior).
„ A derrubada de aviões intrusos e suspeitos que entram no espaço aéreo

e se recusam a aterrissar, em função da perda de vidas, mas evitam-se


os riscos de ataque terrorista ou de contrabando de drogas e armas
(males maiores) ou garante-se a segurança do país (bem maior).
„ As cirurgias invasivas, em função dos riscos da anestesia, das infec-

ções hospitalares e da eventual imperícia do médico, mas evita-se o


risco de morte ou de graves complicações (males maiores) ou visa-se
à plena recuperação do paciente (bem maior).
„ O furto famélico em caso de calamidade natural, em função do

atentado à propriedade privada, mas evita-se a mortandade da po-


pulação (mal maior) ou salvam-se vidas (bem maior).

Apreciados esses exemplos, vê-se que grande parte das decisões es-
tratégicas, nos planos político e empresarial, se inspira na teoria ética da
responsabilidade. E queira-se ou não, implica o aceite de certa dose de
“mal”. Ora, isso remete diretamente a um agudo debate em torno do uso
dos meios: será que certos fins justificam o uso de meios condenáveis ou
“impuros”?
Duas concepções aqui se contrapõem: a pureza dos meios versus a
justeza dos fins. Na primeira concepção, somente a pureza dos meios
legitima as ações, ou seja, cabe “fazer certas as coisas” sem se preocupar
com as consequências.
Na segunda concepção, a justeza dos fins legitima os meios adotados,
ou seja, cabe “fazer as coisas certas” porque boas consequências são in-
dispensáveis.
Nessa toada, Albert Camus sentenciou de forma lapidar: “São os meios
que justificam os fins”. Em paralelo, e de forma contundente, Hannah
Arendt, profundamente inquieta com as atrocidades dos totalitarismos,
alertou: “Aqueles que escolhem o mal menor esquecem rapidamente que
escolheram o mal. O argumento do ‘mal menor’ é um dos mecanismos
embutidos na maquinaria do terror e da criminalidade”. Assim, e em tese,
a teoria ética da convicção recusa os meios que impliquem lançar mão do
mal. Em contrapartida, a teoria ética da responsabilidade aceita o mal que
realiza mais bem ou que evita mal maior.
270 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

Contrapõem-se desse modo uma posição idealista que considera que


os fins não justificam os meios, pois cometer algum mal compromete o
bem que se quer, e uma posição realista que considera que, embora meios
puros sejam desejáveis, nem sempre são possíveis, pois a realidade mostra
que há males que vêm para o bem. A dor, por exemplo, é um mal útil, uma
vez que é um sinal de alerta para que se tome uma atitude saneadora.
Em função disso, cabe uma importante ponderação: embora a teoria
da convicção reivindique o monopólio da defesa do uso de “meios pu-
ros”, não se pode deixar de ressaltar que foram utilizados muitos meios
implacáveis em nome de princípios e de ideais. Basta lembrar as torturas
e os autos de fé procedidos pela Inquisição durante séculos e os atentados
terroristas cometidos por fundamentalistas muçulmanos nos dias atuais
(carros-bomba, homens-bomba, aviões-bomba). Essa constatação, no en-
tanto, não resolve a questão.
Uma tentativa para tanto consistiria em procurar legitimar o uso dos
meios, principalmente por aqueles que sofrem suas consequências. Só que
precisaria ter por base, e necessariamente, a macroperpectiva da huma-
nidade. Afinal, muitas crueldades inomináveis foram amplamente justifi-
cadas em âmbitos nacionais.59 Em consequência, seria preciso conceber e
consagrar algumas salvaguardas para assegurar o respeito aos direitos do
menor número e para evitar imperícias técnicas. Sem o quê, poderíamos
resvalar para os abusos insanos de que o século XX foi tão pródigo.60

A estruturação dos processos decisórios


Vejamos agora como se estrutura o processo decisório da teoria ética
da convicção. Ele obedece a quatro etapas:

1. A formulação do problema ou a questão a resolver. Por exemplo,


no caso da criança exangue das Testemunhas de Jeová, a equipe
médica considera que há urgente necessidade de transfundir sangue
ou soro sanguíneo. O problema consiste então em saber: realiza-se
ou não o procedimento?
2. A aplicação de convicções universalistas. No exemplo, o imperativo
impele os médicos a realizar o procedimento (o princípio que se
aplica reza: “a vida é sagrada”), ainda que, para os pais, isso seja
visto como aberração (o princípio que se aplica reza: “cabe respeitar
a liberdade de crença”);
8. A ética nas organizações 271

3. A identificação dos meios opcionais com adoção de soluções puras.


No exemplo, a imediata transfusão é a medida que se impõe para os
médicos, depois de realizada a competente análise do tipo sanguí-
neo e da compatibilidade do sangue a ser transfundido, malgrado a
negativa dos pais que defendem a não efetivação do procedimento,
porque isso fere sua crença religiosa — são contra a transfusão por
mais que ela seja tecnicamente recomendável;
4. A tomada de decisão deve se conformar a deveres previamente
fixados. No exemplo, a transfusão de sangue deve ser realizada por
coadunar-se perfeitamente com o princípio-chave do código profis-
sional médico e o será — é preciso cumprir seu dever –, a despeito
da oposição dos pais — é preciso respeitar a vontade de Deus.

Em outras palavras, toda decisão sob a égide da teoria ética da con-


vicção conduz a um mergulho na consciência moral, a uma aplicação de
prescrições coletivamente sancionadas, desde que revestidas de caráter
universalista. Estas podem ser princípios que normas traduzem em termos
operacionais ou ser ideais que valores também traduzem.61

Figura 17

A decisão convicta: cumprimento de dever

Problema Exame de
consciência Decisão

Vertente Meios Aplicação

Norma moral: Convicções


Princípio: ditame padrão de conduta
moral, preceito universalista

Esperança: ideal, Valor cultural: Age-se de acordo


causa, aspiração preferência com deveres
à perfeição universalista

O processo decisório da teoria ética da responsabilidade, por sua vez,


é bem mais complexo. Implica sete etapas no processo de decisão, além
de exigir cautelas na fase de implantação:
272 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

1. A formulação do problema ou a questão a resolver. Por exemplo, no


caso da criança das Testemunhas de Jeová, a equipe médica considera
que há urgente necessidade de transfundir sangue ou soro sanguíneo.
Problema: realiza-se ou não o procedimento?
2. A análise das circunstâncias ou o estudo do contexto. No exemplo,
a criança está exangue e pode morrer a qualquer hora, mas os pais
se opõem ao procedimento porque são Testemunhas de Jeová;
3. A definição de fins universalistas. No exemplo, tentar salvar a vida
da criança é um fim louvável, de caráter universalista;
4. A identificação de meios opcionais ou de soluções seguras e eficazes.
No exemplo, a imediata transfusão, tomadas as precauções técnicas
(análise do sangue, existência de sangue compatível, esterilização dos
instrumentos, equipamentos em ordem), é uma medida plenamente
apropriada;
5. A análise da relação custo-benefício com a competente busca da
eficiência. No exemplo, ainda que os pais se oponham a uma solu-
ção que contrarie suas crenças religiosas, a situação é emergencial
e uma vida pode ser salva;
6. A análise de riscos ou a ponderação dos fatores em jogo No
exemplo, o procedimento é altamente testado, os pais não podem
impedir a decisão médica no momento atual por ser uma questão
de vida e morte. Mais tarde, porém, poderão eventualmente retaliar
os médicos e o hospital, mas, em contrapartida, os médicos deixam
de incorrer em omissão de socorro do ponto de vista legal;
7. A decisão é tomada, depois de sopesada e amparada por um con-
junto de salvaguardas que visam a prevenir imperícias ou injustiças.
No exemplo, se não houver transfusão, a criança pode morrer, de
modo que o procedimento será realizado e os médicos assumem a
responsabilidade pelo feito.
Depois de tomada a decisão, o processo de execução deve ainda ter
em vista:
„ O curso de ação deve buscar a efetividade. No exemplo, aplica-se
a transfusão com zelo e competência;
„ A efetivação das consequências reais da ação ocorre num ambiente

de incertezas e elas precisam ser administradas. No exemplo, embo-


ra a criança tenha sido salva, os pais fazem um escândalo e podem
processar o hospital;
8. A ética nas organizações 273

„ A legitimidade ética depende da eficácia das salvaguardas e, em


última instância, supõe que se obtenham resultados positivos (se
não, perde-se a legitimidade). No exemplo, a opinião pública apoia
a transfusão e confere respaldo à equipe médica, desde que tenham
utilizado as melhores técnicas disponíveis para salvar a criança.

Em outras palavras, toda decisão sob a égide da teoria ética da res-


ponsabilidade supõe uma elaborada análise situacional. Esta passa pelo
conhecimento das circunstâncias, da relação custo-benefício, dos fins
pretendidos e dos meios disponíveis e culmina numa cuidadosa análise
dos riscos envolvidos. Com qual propósito? A montagem de cenários
alternativos, a ponderação de suas consequências presumíveis e, sobretu-
do, a adoção de um conjunto de salvaguardas indispensáveis, tais como
pesquisas preliminares, testes prévios, ensaios e checagens, tendo sempre
em vista o respeito devido aos direitos do menor número. Somente então,
e depois de avaliadas as vantagens e as desvantagens de cada cenário, a
decisão será tomada.
O processo só se conclui com a transformação da decisão em fato, isto
é, com sua implantação num ambiente de incertezas . Se os resultados forem
socialmente úteis e tenham base universalista, as chances de legitimação

Figura 18

A decisão responsável: consequencialista

Problema Elaboração
de cenários Decisão

Análise das Definição dos fins Relação


circunstâncias e dos meios custo-benefício

Consequências Escolha do
Análise de riscos prováveis e melhor cenário
salvaguardas universalista
274 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

serão enormes; caso contrário, os agentes ficarão sem legitimidade ética,


ao capricho de ventos e trovoadas.
Vamos exemplificar com a invasão do Iraque pelo governo norte-
-americano de George W. Bush, ocorrida em 2003. A justificação ética
para o ataque repousava na presunção de que o regime ditatorial de
Saddam Hussein dispunha de armas de destruição em massa, a contra-
pelo das buscas infrutíferas e dos esforços baldados de uma comissão de
inspeção patrocinada pela ONU. Muitos países, em particular a França
e a Alemanha, se opunham à intervenção. Em consequência, os Estados
Unidos não obtiveram respaldo por parte do Conselho de Segurança da
ONU. A despeito disso, e malgrado o clamor de maciças manifestações
de rua ocorridas em muitas nações, uma coalizão anglo-americana invadiu
o Iraque. As armas que haviam servido de pretexto, todavia, não foram
achadas. Se as tivesse encontrado, a coalizão justificaria sua ação preven-
tiva como uma operação que salvou a humanidade da sanha de inimigos
obscurantistas e teria obtido legitimidade ética! Ocorre que, passados
poucos meses, a culpa da ineficiência foi lançada sem muita cerimônia
sobre os serviços secretos de informação. E o presidente Bush mudou
o eixo de seu discurso. Advogou que, com ou sem armas químicas ou
biológicas, a intervenção militar havia sido útil para defender os direitos
humanos e para instalar um regime democrático no Iraque — fato que
iluminaria o Oriente Médio pelas suas virtudes e que serviria de efeito
demonstração... A manobra não obteve respaldo mundial nem se revestiu
de legitimidade ética, porque os acontecimentos do Iraque não confir-
maram os prognósticos do presidente americano.
Aliás, em 2004, uma série de fotos publicadas na mídia internacio-
nal jogou por terra esse segundo argumento: eram retratos de seguidos
abusos praticados contra detentos iraquianos na prisão de Abu Ghraib,
masmorra do antigo regime iraquiano. Segundo os depoimentos de sol-
dados americanos incriminados, ordens superiores lhes foram dadas para
“amaciar” os presos antes dos interrogatórios. Ainda que pudessem ser
vistas como alegações da defesa, ficou patente que os oficiais em comando
não desconheciam boa parte do que estava acontecendo. O fato é que a
credibilidade do governo Bush ficou mais uma vez comprometida.62 E isso
teve dois graves efeitos: alimentou um sentimento antiamericano até em
países tradicionalmente aliados como o Reino Unido e alienou boa parte
do apoio internacional que os Estados Unidos haviam recebido depois
número de inimigos e reduziu o número de aliados. Os movimentos de
8. A ética nas organizações 275

insurgentes recrudesceram, convertendo o território invadido num terreno


ideal para operações terroristas. O Iraque se tornou uma região de enorme
insegurança. E o caos estabelecido no país influiu de forma decisiva para
o desgaste político dos Estados Unidos no plano internacional, ao mesmo
tempo em que as represálias promovidas por grupos extremistas islâmi-
cos se tornaram aterradoras.63 Ganhou corpo então um sinistro paralelo
com a Guerra do Vietnã, quando a perda da batalha simbólica, no início
dos anos 1970, foi minando o moral das tropas combatentes. De fato, a
legitimidade ética havia ido pelos ares, com a clara impressão de que a
guerra tinha sido desnecessária.64
Um erro crítico cometido pela administração Bush foi não ter percebido
que o terrorismo é um método, não um fim em si mesmo. De maneira que
o conflito travado com os fundamentalistas muçulmanos é um conflito ide-
ológico, não militar. O terrorismo é um meio usado para fazer proselitismo,
pois, antes de tudo, os radicais islâmicos participam de um movimento
intelectual de cunho ideológico. A doutrinação integrista levada a efeito
nas mesquitas e nas madrassas (escolas religiosas) forma e recruta levas
sempre renovadas de futuros combatentes. Esses soldados da fé não têm
territórios a defender, não precisam vencer batalhas clássicas; sua guerra
se processa no terreno das mentes e ocorre em tempo real, via satélite. O
dilema que daí resulta poderia ser resumido em termos catastrofistas: ou
o Ocidente se mobiliza para uma longa contraofensiva ideológica, ou a
noite teológica pode se abater sobre o século XXI.

A teoria da derrogação
A rigidez maniqueísta da teoria ética da convicção, em tese, não dá
guarida a razões de Estado ou a real politik que, em situações extremas,
a teoria ética da responsabilidade justifica.65 Todavia, quando o rigor
deontológico é colocado em xeque, entra em jogo a chamada “teoria da
derrogação”. Esta capitula exceções; encontra-se presente nos tratados de
teologia moral para uso dos confessores; está consolidada nos sistemas
jurídicos (lex specialis derogat generali).66 Em outras palavras, ressalvas
às normas morais são autorizadas em circunstâncias excepcionais: matar
em legítima defesa; não falar a verdade para um doente incurável; um
revolucionário mentir a seus captores para acobertar companheiros e
não revelar seus esconderijos. No estado de necessidade, igualmente, a
violação da ordem moral se justificaria como nos casos do furto famélico,
276 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

do confinamento de doentes contagiosos e da suspensão de direitos em


estado de sítio.67
Ou, ainda, se socorrendo da extrema ratio (extrema razão) de Estado:
durante uma invasão estrangeira ou durante uma guerra civil, proceder a
condenações ao exílio, confiscos, massacres e atos de força.
Há outras exceções abertas pela teoria da convicção que merecem
registro, situações em que os agentes se rendem ao realismo diante dos
padrões culturais vigentes. A primeira é quando se incorporam aos códigos
profissionais deveres mais rígidos do que as exigências morais dominantes
— por exemplo, não aceitar agrados nem sequer brindes em circunstância
alguma, embora a praxe seja complacente a esse respeito. A segunda, ao
contrário, é quando os profissionais ficam isentos de deveres impraticá-
veis, como aquele de dizer a verdade — caso do médico frente a paciente
que tem doença incurável. Isso para não falar do próprio exercício da
política que muitos consideram uma atividade amoral, enquanto outros a
vêem como algo que se opõe à moral comum. Afinal, ações moralmente
reprováveis são adotadas no âmbito político, embora sejam requeridas pela
natureza intrínseca da atividade.68 Por exemplo, omitir informações para
não causar pânico na população; não concordar com análises negativas
sobre a situação econômica ou política para não desestimular os cidadãos
e não contribuir para as profecias autorrealizáveis; não revelar os acertos
de bastidores com parlamentares para obter a maioria necessária à apro-
vação de projetos de lei.
Ora dirão alguns: ainda que de forma envergonhada, isso tudo não
destoa do modo dogmático que caracteriza a tomada de decisão da teoria
ética da convicção? Não diz respeito — e sem contorções intelectuais —
ao modo de proceder da teoria ética da responsabilidade? Como analisar
as derrogações? As exceções à regra e os estados de necessidade parecem
deslocar a teoria da convicção (fundada no rigor dos deveres) em direção
à teoria da responsabilidade (fundada na racionalidade dos fins).
Em contrapartida, quando a teoria da responsabilidade normaliza
decisões universalistas ou, quando torna rotineiras decisões por meio de
normas práticas, ela também parece se deslocar em direção à teoria da
convicção. Detecta-se aí um duplo movimento:

„ As derrogações indo no sentido de atropelar e desfigurar a essência


proceder mais afeito a uma corrente da teoria da responsabilidade
chamada “utilitarista da norma”;
8. A ética nas organizações 277

„ O processo de codificação de orientações estabelecidas pelos parâ-


metros da teoria da responsabilidade, por sua vez, indo no sentido
de dispensar reflexões prévias e de fixar diretrizes imperativas, à
semelhança da teoria da convicção.

Vale a pena esclarecer agora que a vertente utilitarista da teoria da


responsabilidade abriga duas correntes:

„ O utilitarismo da ação focaliza as consequências de cada ação singular


e calcula a utilidade social dela;69
„ O utilitarismo da norma focaliza as consequências que a adoção

generalizada de uma determinada norma geraria e calcula a utilidade


social de aceitá-la ou de rejeitá-la.70

Assim, o utilitarismo da norma se contrapõe ao utilitarismo da ação


por discordar de decisões que não possam ser transformadas em normas
gerais. Mesmo que tais decisões sejam alegadamente tomadas em prol da
coletividade. Ou, melhor dizendo, tendo em vista salvaguardar os direitos
do menor número, aconselha a adotar um conjunto de impedimentos in-
contornáveis. Por exemplo, seria possível justificar o uso de dez bebês como
cobaias para descobrir a cura para a síndrome da morte infantil repentina
que mata 10.000 bebês por ano? O utilitarismo da ação responderá que
sim, o utilitarismo da norma dirá que não, porque afirma que esse tipo
de decisão não pode ser transformado em norma geral. Como converter
o sacrifício de alguns em opção sistemática? Que tipo de sociedade seria
esta em que tal orientação se tornasse regra? Ela ignoraria o direito à vida,
tornaria as pessoas inseguras, instalaria um regime de medo. O utilitarismo
da norma propõe então o “princípio do dano”: os agentes podem fazer
tudo o que quiserem até o limite de não prejudicar outrem.
Vejamos mais ilustrações. As correntes se dividem diante da seguinte
indagação: é pertinente torturar um prisioneiro para obter informações
que impediriam a matança de centenas de pessoas? O utilitarismo da nor-
ma dirá que não (essa decisão não pode ser convertida em norma geral),
enquanto o utilitarismo da ação e a vertente da finalidade dirão que sim
(apesar da barbárie representada pela tortura, centenas de vidas merecem
ser preservadas).
É possível comer a carne humana de defuntos em situação extrema
de fome, como no caso do avião uruguaio que caiu nos Andes?71 As duas
278 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

correntes utilitaristas, assim como a vertente da finalidade, dirão que


sim. Uma vez que não houve dano a ninguém (os passageiros estavam
mortos) e que a vida de muitos dependia dessa providência, a quebra
do tabu da antropofagia se justifica (essa decisão pode ser convertida
em norma geral).
É aceitável que um destacado governante, ferido à bala e que precisa
de transplante de coração e pulmões, seja salvo usando como doador um
morador de rua até então mantido vivo na UTI graças a aparelhos? Sobre-
tudo quando se sabe que não existem doadores disponíveis e compatíveis
a não ser ele? O utilitarismo da ação e a vertente da finalidade dirão
que sim, o utilitarismo da norma dirá que não. Os primeiros dirão que,
havendo certeza médica de que o morador de rua irá morrer em poucos
dias, as consequências do transplante produzirão maior utilidade social. O
segundo dirá que não se pode permitir que hospitais matem seus pacientes
para doar órgãos, pois a confiança coletiva nos hospitais ficará minada
se tal providência fosse convertida em norma. Em função disso tudo, há
fundadas razões para questionar os fins advogados pelo utilitarismo da
ação: seriam eles universalistas? Não estaríamos implantando uma espécie
de totalitarismo moral em benefício do maior número?
De qualquer forma, é importante constatar que existem tentações para
que se derive de um lado para o outro das duas teorias éticas.
A clivagem entre as duas teorias, entretanto, não deve ficar obscurecida,
como podem induzir as ponderações que acabaram de ser tecidas. E as
razões para tal são simples. As derrogações podem perfeitamente decorrer
da teoria ética da convicção, se todas as exceções às regras forem claras
e previamente definidas. Pois permanecerão partes de um repertório de
deveres a ser aplicado com rigor.
De forma simétrica, as codificações procedidas pelos utilitaristas da
norma podem perfeitamente sintonizar-se com a teoria ética da responsa-
bilidade desde que todas as reflexões que as fundamentam estiverem clara
e explicitamente definidas. Pois permanecerão sujeitas à revisão crítica e,
a exemplo das cláusulas pétreas constitucionais, desde que seja estabele-
cido um consenso em torno de quais vedações deverão ser observadas nas
tomadas de decisão (como, por exemplo, a salvaguarda dos direitos do
menor número). Afinal, adotar a teoria da responsabilidade não significa
proibir-se de usar princípios e ideais numa análise situacional. Só que
esses permanecem não sendo a chave da decisão — são apenas elementos
constitutivos do processo.
8. A ética nas organizações 279

Por fim, é importante frisar que quaisquer vertentes e correntes da


teoria da responsabilidade se assemelham aos empréstimos bancários, à
medida que exigem precauções, cautelas e garantias para evitar imperícias
e minimizar os riscos incorridos. E mais: o critério último de avaliação
continua sendo a consecução de resultados universalistas, em contraposição
à coerência entre intenção e ação da teoria da convicção. Isso, contudo,
não resolve a pendência crucial que consiste em saber se a maximização
dos benefícios e a minimização dos malefícios para a coletividade passam
ou não pelo respeito aos direitos de minorias eventuais. Sem uma precisa
definição nesse sentido, a linha divisória entre o que obedece à razão ética
(a realização de interesses universalistas que interessem a todos) e o que
obedece à racionalização antiética (a realização de interesses particularistas
que prejudicam outros) ficará baralhada.
Um grande perigo ronda, aliás, a adoção da teoria ética da responsabi-
lidade: trata-se da racionalização particularista. Ela falsifica a teoria com
falsas razões, efetiva análises deficientes ou usa sofismas, distorce e mascara
práticas antiéticas. De um modo geral, confunde casuísmos particularistas
com fins universalistas em que poucos se beneficiam em situações que não
são extremas ou que não são “escolhas de Sofia”.
É a armadilha da “legitimidade moral” que confissões religiosas, ideo-
logias políticas, doutrinas econômicas ou credos empresariais conferem.
Tome-se o caso dos homens-bomba fundamentalistas: homenageados como
heróis ou mártires por suas comunidades locais, desfrutam de legitimidade
moral, mas não de legitimidade ética, pois, do frio ponto de vista científi-
co, trata-se de terroristas (matam indiscriminadamente civis). Nada há de
universalista na causa deles, nem há obediência à razão ética.
Em outras palavras, freios, contrapesos e muito discernimento tornam-
-se indispensáveis para evitar que quaisquer vertentes éticas se convertam
em ferramentas justificadoras de decisões cujas implicações podem ser
atrozes. A história do século passado ensinou que as justificações morais
tanto podem se transformar em embustes abusivos em mãos oportunistas
como em armas letais em mãos totalitárias.

Notas
1. É preciso sublinhar que nem todos os fatos sociais se revestem de um caráter moral: há um sem-
número de fatos neutros, portanto amorais, tal como pentear os cabelos, andar na rua, almoçar,
ler um jornal, ir ao trabalho ou ao supermercado, tomar banho, rir de uma piada, fazer contas,
participar de um partida de futebol, assistir a um filme, telefonar para um amigo etc. Contudo, se
280 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

esses eventos ou seus desdobramentos vierem a afetar outrem, se não observarem ou transgredirem
normas que regem o que é considerado socialmente bom ou mau, muda seu estatuto: passam a
ser fatos morais. Por exemplo, assistir a um filme pornográfico no computador da empresa, ao
lado de colegas do sexo feminino, não é amoral, é imoral. Por quê? Porque fere regras de caráter
moral, que são corporativa e socialmente estabelecidas. No tocante à empresa, trata-se de uso
inapropriado de equipamento; quanto às colegas, elas podem se sentir constrangidas, para não
dizer ofendidas e até mesmo assediadas moralmente.
2. Na própria literatura sociológica, costuma-se também entender por domínio moral a superestrutura
social ou, mais especificamente, a dimensão simbólica do espaço social. Fala-se então da esfera
moral da sociedade em contraste com sua base material ou econômica.
3. Essas asserções valem, mutatis mutandis, para as organizações.
4. A educação moral e cívica foi introduzida em 1969, em caráter obrigatório, como disciplina ou
prática educativa. Tinha por finalidade oficial “a preservação do espírito religioso, da dignidade
da pessoa humana, dos valores espirituais e éticos, do aprimoramento do caráter, da compreensão
dos deveres cívicos, com obediência à lei e às instituições nacionais”.
5. Embora emblemática entre os latinos, a pluralidade de morais encontra-se tanto entre os gregos
politeístas quanto entre os hindus, em função da rígida separação em castas (cada qual com seu
dharma). A duplicidade moral também existe entre os chineses contemporâneos, em função do re-
gime político totalitário: o que se diz ou pensa em público não é o que se faz e pensa à socapa.
6. Situação tão bem retratada pela famosa frase: “faça o que eu digo, não faça o que eu faço” e
que acaba com o dissabor de verificar que as pessoas que foram admoestadas, longe de seguir o
conselho, preferem mirar-se no exemplo e superar o mestre...
7. A Igreja Católica chegou a possuir um terço das terras aráveis na Idade Média. A ostentação de
sua riqueza contrastou com o voto de pobreza das ordens mendicantes como a dos Agostinhos,
Dominicanos, Franciscanos, Mínimos e das Carmelitas. Estas tinham por inspiração, entre outras,
uma passagem do Evangelho em que Cristo instruía seus apóstolos sobre o modo de ir pelo mundo,
“sem túnicas, sem bastão, sem sandálias, sem provisões, sem dinheiro no bolso ...”.
8. Também utilizado em toda a América Latina, nas Antilhas e no sul das colônias inglesas da Amé-
rica do Norte, em contraponto com o sistema de colonização de povoamento que prevaleceu no
norte das colônias norte-americanas e no sul do Brasil. O sistema de exploração se assentou na
grande propriedade rural (latifúndio ou plantation), na produção monocultora e padronizada
para exportação (economia extrovertida e complementar da europeia) e no trabalho compulsório
(escravidão ou outras formas de servidão). A sociedade resultante foi aristocrática e patriarcal, com
arraigadas bases oligárquicas e autoritárias, e se caracterizou por um declarado racismo e atitudes
generalizadamente discriminatórias. A configuração do sistema de povoamento, em contraste, é
de pequena propriedade familiar, policultura voltada para o consumo interno e trabalho livre. A
sociedade, neste caso, foi mais aberta e tolerante e nela floresceram organizações da sociedade
civil, com fortes propensões à cooperação coletiva.
9. Ver do autor Ética Empresarial (Rio de Janeiro: Editora Elsevier, 2008, 3ª edição revista e atua-
lizada, pp. 63-77).
10. Para uma análise pormenorizada das morais brasileiras, ver Idem, pp. 79-102.
11. Estes, como muitos políticos, fingem ser o que não são, impedem ser tomados pelo que são e dão
mostras que não são o que são.
12. As relações pessoais ou paroquiais, consubstanciadas em laços de parentesco, compadrio, afini-
dade, amizade, vizinhança, coleguismo ou camaradagem, sempre foram determinantes no Brasil
tradicional. O networking norte-americano é uma rede de contatos de caráter profissional que
não garante a seus membros algum trunfo em relação aos próprios méritos. Difere das relações
pessoais brasileiras que conformam uma rede de compadrio, isto é, que se articulam com base
na patronagem (o famoso “QI”, quem indica), patrocinadora de favoritismos, nepotismos, pri-
vilégios e abusos.
13. Afora os inúmeros casos de suborno, concussão e corrupção é interessante lembrar ilustrações
pinçadas ao acaso: milhões de pessoas compram regularmente no mercado informal aplicativos
piratas, relógios clonados, roupas de grife falsificadas, imitações de tênis; muitos médicos ou
dentistas não dão recibo ou nota fiscal pelos serviços prestados; espertalhões dão gorjetas ao
8. A ética nas organizações 281

maître para obter uma mesa, furando a fila; motoristas subornam guardas rodoviários para não
serem multados ou batem em outro carro no estacionamento, indo simplesmente embora sem
deixar recado; despachantes dão “caixinhas” a funcionários públicos para que cumpram suas
obrigações com celeridade (são as “taxas de urgência”) ou para que “quebrem galhos” (são as
“taxas de sucesso”); estudantes colam para passar de ano ou se valem do grupo de estudo ao
qual pertencem para assinar trabalhos dos quais não participaram; feirantes põem frutas vistosas
no topo da caixa, escondendo aquelas que estão batidas; compradores e vendedores de imóveis
não registram no cartório o verdadeiro valor da transação para burlar o fisco e desovar “di-
nheiro frio”; “fominhas” trafegam no acostamento de rodovias apinhadas na volta de feriados
prolongados; restaurantes majoram as notas fiscais como cortesia para que seus clientes levem
vantagem em sua prestação de contas; criadores de gado dão sal e água a seu rebanho antes
de chegar ao mercado, porque vendem as cabeças por peso; frigoríficos “turbinam” o peso de
frangos, injetando água no peito dos animais imediatamente antes de congelá-los; e assim por
diante. Por sua vez, aqueles que respeitam as normas da moral da integridade são tachados de
trouxas, otários, crédulos, bocós, caretas, panacas, poetas, babacas, inocentes, Caxias. Ou seja:
sujeitos que “marcam bobeira”.
14. É útil não confundir o oportunismo com o senso de oportunidade. O primeiro diz respeito a
tirar vantagens pessoais dos outros e a subordinar princípios ou compromissos sociais a interesses
menores ou mesquinhos, quando não escusos. O segundo significa habilidade em rastrear boas
ocasiões em negócios ou na vida, sem o propósito de lesar os outros.
15. A chave didática para diferenciar fatos morais íntegros de fatos morais oportunistas encontra-se
na difusão pública: aquilo que não se pode comentar abertamente (com exceção dos segredos
de Estado, de negócio e profissionais) ou que não se pode divulgar de forma transparente é
oportunista.
16. A Lei da Ficha Limpa, aprovada em 2010 e decorrente da mobilização de mais dois milhões de
brasileiros que assinaram o projeto de “iniciativa popular”, teve sua aplicação adiada pelo Supremo
Tribunal Federal para 2012 e deverá, em tese, sanar essa excrescência.
17. Weber, Max. Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro, Zahar, s/d., pp. 309-315, e Le Savant..., pp.
166-167.
18. Os comportamentos são socialmente sancionados: de forma positiva, quando estão em conso-
nância com as expectativas coletivas; de forma negativa, quando dissentem ou transgridem as
normas vigentes.
19. Um dos caminhos profícuos para conhecer a moral de uma organização — nem que seja do ponto
de vista retórico — é investigar as ideologias política e econômica que seus membros professam.
Com quais propósitos? Captar os parâmetros considerados ideais, descobrir o que opinam os
agentes, apanhar o fraseado prevalecente. Mas para aferir se tais pensamentos são de fato levados
a efeito é preciso observar as práticas reais, mapear com precisão aquilo que efetivamente vem
sendo feito na e pela organização. Cabe analisar, sobretudo, os modos de tomar decisão e os
interesses que eles beneficiam ou contrariam.
20. Além de serem padrões culturais, as morais acabam também expressando relações de força, uma
vez que os agentes coletivos procuram legitimar seu poder por meio delas.
21. Os agentes individuais são portadores de morais elaboradas, partilhadas e difundidas coletivamente,
embora as vivenciem “pessoalmente”. E isso lhes dá a falsa impressão de que a moral é só deles
ou fruto exclusivo das próprias reflexões.
22. Costuma-se também confundir amoralidade com imoralidade, uma vez que a ausência de quali-
ficação moral é interpretada como “ausência de moral” e não como neutralidade.
23. Nessa mesma linha, escreve Angèle Kremer-Marietti: “A moral está marcada com o selo da história
presente e passada, enquanto a ética é uma disciplina teórica, relativa ao pensamento” (Kremer-
Marietti, Angèle. A Ética. Campinas: Papirus, 1989, p. 7). Toda generalidade abstrata e formal
se expressa, assim, num plano anistórico.
24. Por exemplo, a Sociologia Geral, a Psicologia Geral, a Biologia Geral ou a Química Geral.
25. Para a análise e a distinção dos níveis de abstração conceitual, ver Srour, Robert Henry. Classes,
Regimes..., pp. 28-37. As morais constituem fenômenos de mais densa saturação histórica: tanto
é que se pode falar da moral da IBM do Brasil, da Petrobras, do Banco Itaú, da OAB, da CNBB,
282 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

da CUT, do Pão de Açúcar, da Fundação Abrinq e assim por diante, em um período datado e
num lugar preciso.
26. Escreve Wilhem Dilthey sobre a ética filosófica: “Toda filosofia autêntica deve deduzir de seus
conhecimentos teóricos os princípios da conduta de vida do indivíduo e da orientação da socie-
dade” (Sistema da Ética. São Paulo: Ícone, 1994, p. 13).
27. Qualquer cobiça, a velhíssima auri sacra fames (a avidez sagrada pelo ouro) que a tantos povos
enfeitiçou, era assim abominada.
28. Os judeus, colocados à margem da sociedade medieval cristã, tinham uma situação jurídica pre-
cária e não podiam ser proprietários de terras ou desempenhar profissões legais. Sobreviviam nos
interstícios do sistema econômico, fato que os direcionou para a expansão do capital comercial
nas Idades Média e Moderna: fizeram empréstimos a pessoas modestas e financiaram grandes
Estados para que pudessem suprir suas necessidades, emitir moeda, levar a cabo suas guerras e
fundar colônias; desenvolveram o comércio de mercadorias através de pequenas lojas, do comércio
ambulante e do tráfico com produtos rurais; dedicaram-se ao comércio de valores por atacado,
ao câmbio de moedas, ao crédito e aos negócios bancários. Max Weber escreveu: “Como povo
pária, os judeus conservavam a dupla moral que toda comunidade aplica originariamente na
vida econômica. O que se rechaça veementemente ‘entre irmãos’ é permitido com os estranhos.”
Os estrangeiros eram vistos como “inimigos” e deles se podia cobrar juros (o que não se fazia
entre judeus), além de poder tirar proveito dos erros que cometessem (Weber, Max. Economía
y sociedad..., pp. 475-484).
29. Weber, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1967.
30. Constituem o capital intelectual as habilidades técnicas dos colaboradores, o nível de escolari-
dade formal do pessoal e seu grau de informação sobre o mercado, as competências gerenciais,
as patentes registradas, as inovações promovidas pela área de pesquisa e desenvolvimento — em
suma, a “inteligência organizacional”.
31. O capital de reputação é formado pela qualidade das relações mantidas com os públicos de inte-
resse (goodwill) e pelo valor das marcas da empresa (brand equity).
32. http://www.businesszone.co.uk/item/173378. É curioso saber que ele já vinha fazendo comentários
semelhantes em outros discursos há pelo menos cinco anos, porém em fóruns menos expressivos
e sem a presença da mídia nacional.
33. Frank, Robert e Pacelle, Mitchell. “Presidente da Andersen pede demissão. Firma tenta vender
ativos nos EUA”, The Wall Street Journal Americas, publicado pelo O Estado de S. Paulo, 27
de março de 2002, B14; Cohen, David. “Andersen, em consultas”, Revista EXAME, pp. 14-16;
Brown, Ken e Bryan-Low, Cassell. “Andersen é uma sombra de si mesma”, The Wall Street Jour-
nal Américas, publicado pelo OESP, 30 de abril de 2002, B16. Bloomberg. “Andersen eliminou
documentos da Enron”, Gazeta Mercantil, 11 de janeiro de 2002, p. A-8.
34. O superfaturamento atingiu pelo menos R$169 milhões. Uma semana depois de sua cassação, o
ex-senador ainda comentou, num rasgo de sinceridade: “Não sou santo. Nenhum quadro de santo
se sustenta na parede para uma pessoa que ganhou 1 bilhão de reais em quatro anos.” (Revista
Veja, 5 de julho de 2000).
35. Conte, Carla. “Juiz decreta prisão de sócio da Botica”, Folha de S. Paulo, 10 de novembro de 1998.
Berton, Patrícia. “Veado D’Ouro faz reestruturação”, Gazeta Mercantil, 29 de abril de 1999.
36. Ao largo de uma leitura antropocêntrica que confere aos seres humanos o monopólio da conside-
ração moral ou da dignidade dos “seres morais”, poderíamos dizer que os macacos antropóides,
os animais com sistema nervoso central e até ecossistemas ou todo o planeta também merecem
ter consideração moral. Isso nos levaria a substituir a expressão “seres humanos” por seres vivos.
Mas esta é uma polêmica ainda em curso.
37. Eis alguns exemplos entre milhares possíveis: estacionar em fila dupla é egoísta, portanto par-
ticularista, porque prejudica a fluidez do trânsito, mas estacionar em lugar permitido leva em
conta os interesses alheios, e é, portanto, universalista, interessa a todos, porque contribui para
que os demais motoristas possam deslocar-se para seus afazeres; colocar um vaso de plantas para
receber insolação na beirada de uma janela do décimo andar é particularista (egoísta), porque
não leva em conta o risco de cair e matar alguém, enquanto colocar o vaso na sacada, afastando
deliberadamente o perigo anterior é universalista (leva em conta os interesses alheios); jogar um
8. A ética nas organizações 283

maço vazio de cigarros na rua, ao invés de procurar uma lixeira, é particularista (egoísta), porque
a rua é de todos e a responsabilidade de não sujá-la também, mas guardar o maço no bolso e
colocá-lo conscientemente no lixo de casa ou do escritório é universalista; ocupar uma vaga no
estacionamento do supermercado e avançar na faixa amarela da vaga ao lado, impedindo que
outro veículo estacione, é particularista (egoísta), ao passo que estacionar respeitando as devidas
distâncias é universalista; buzinar em túneis lotados é egoísta; tocar músicas bem alto à noite ou
de madrugada num bairro adormecido é egoísta; deixar água estagnada em pratos sob os vasos
de plantas, sabendo do risco de proliferarem as larvas da dengue, é egoísta; segurar o elevador
num prédio para jogar conversa fora com uns amigos, em detrimento dos condôminos que
aguardam a vez de descer ou subir, é particularista; jogar entulhos em áreas públicas ajardinadas
é particularista.
38. “Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que podemos esperar nosso
jantar, mas da observância que eles têm do próprio interesse. Nós apelamos não à sua humani-
dade, mas a seu amor-próprio, e jamais falamos a eles de nossas necessidades, mas das vantagens
que eles terão.”
39. Não esqueçamos que Adam Smith era um filósofo moral. Escreveu A Teoria Ética dos Sentimentos
Morais que versa sobre a cooperação entre os homens.
40. É fundamental não confundir o egoísmo que remete às ações e aos interesses do indivíduo e o
parcialismo que remete às ações e aos interesses do grupo, embora ambos os conceitos digam
respeito a práticas exclusivistas e abusivas.
41. Em edições anteriores, utilizamos o conceito de “altruísmo parcial” que substituímos posterior-
mente por parcialismo (ver do autor Casos de Ética Empresarial (Rio de Janeiro: Elsevier, 2011),
por causa da confusão que a menção ao altruísmo gerava. O conceito anterior fazia sentido rigo-
rosamente quando se tem em mente a cumplicidade e a lei do silêncio que existem, por exemplo,
entre os membros de empresas que utilizam aplicativos piratas ou que têm caixa 2, ou ainda, entre
os membros de uma gangue mafiosa. O defeito manifesto do conceito, segundo leitores e alunos
que ficavam incomodados, era de que a menção ao altruísmo não era exclusivamente positiva:
tinha uma natureza contraditória ao valer tanto para o bem como para o mal... O que o autor
considerava virtude era visto como deficiência, daí a alteração.
42. Cabe anotar uma exceção à regra de “não prejudicar os outros”. O indivíduo que fere o bandido
que invadiu seu lar reage em autodefesa; uma empresa que denuncia o concorrente que pratica
dumping também reage em autodefesa. Nos dois casos, a reação (ou o revide) provoca danos aos
transgressores, porém não deixa de ser legítima. Afinal, quem violou os espaços alheios foram o
bandido com seus propósitos hostis, de um lado, e a empresa que pretende eliminar a concorrência
e dominar o mercado, de outro. Por terem assumido riscos, pagam o preço de sua agressão. No
primeiro caso, a reação é de autointeresse, portanto universalista, no segundo caso, a reação é
altruísta restrita, ou seja, igualmente universalista como veremos logo a seguir.
43. Valores universalistas no Brasil atual são, por exemplo: integridade, justiça, dignidade, liberdade,
idoneidade, competência, privacidade, solidariedade, equidade, pluralidade, isenção, confiança,
imparcialidade, reciprocidade, honestidade, impessoalidade, individualidade, veracidade, diligên-
cia, coerência, mérito, efetividade, prudência, transparência, credibilidade... É importante sublinhar
que os valores mudam historicamente, porém a lógica universalista permanece a mesma.
44. Valores particularistas no Brasil atual são, por exemplo: oportunismo, esperteza, manha, ganância,
malícia, caradurismo, mesquinharia, jeitinho, lábia, permissividade, desconfiança, malandragem,
egotismo, pessoalidade, leniência, favorecimento, hipocrisia, artimanha, matreirice para sonegar,
subornar, fraudar, contrabandear, falsificar... É importante assinalar que tais valores jamais são
assumidos em público, mas cultivados às escondidas porque se chocam com a moral pública.
45. É importante salientar que centenas de milhares de organizações não governamentais operam no
Brasil, envolvendo dezenas de milhões de voluntários que prestam serviços públicos da mais alta
relevância. O desvirtuamento eventual das finalidades das ONGs ocorrido nos últimos anos é um
capítulo lamentável da malversação dos recursos públicos operada por sujeitos inescrupulosos ou
por militantes que transformaram essas organizações em fontes de financiamento de atividades
partidárias. Aliás, é bom que se diga que, das 340 mil ONGs existentes no Brasil em 2010, 99,4%
284 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

não recebiam dinheiro do governo federal (Laura Diniz. “Quem paga o pato são as boas.. ONGs.”
Revista VEJA, 9 de novembro de 2011).
46. O contraponto entre razão ética e racionalização antiética, ou entre universalismo consensual
e particularismo abusivo, tem caráter meramente classificatório e não constitui uma prescrição
valorativa entre o que é “bom” e o que é “mau” à moda dos juízos de valor. Isso é feito à se-
melhança dos conceitos de externalidades positivas ou negativas em economia, de eletricidade
positiva e negativa em física, de corpo saudável e doente em medicina, de aliados e inimigos em
ciência política, de comportamento social e antissocial em psicologia, de processos de cooperação
e de competição em sociologia, de ato lícito e ilícito em direito etc. São dicotomias que não são
dogmas, mandamentos ou preceitos, mas ferramentas conceituais para apreender a realidade.
47. Ver a nota 4 do Capítulo precedente sobre os bens públicos.
48. Max Weber, em sua obra seminal Le Savant et le Politique conceitua: “Toda atividade orientada
segunda a ética pode estar subordinada a duas máximas totalmente diferentes e irredutivelmente
opostas. Ela pode orientar-se segundo a ética da responsabilidade ou segundo a ética da convic-
ção. Isso não quer dizer que a ética da convicção esteja desprovida de responsabilidade e a ética
da responsabilidade de convicção. Não se trata disso. Contudo, há uma oposição abissal entre a
atitude de quem age segundo as máximas da ética da convicção — em linguagem religiosa diría-
mos: “O cristão faz seu dever e no que diz respeito ao resultado da ação remete-se a Deus” —, e
a atitude de quem age segundo a ética da responsabilidade que diz: “Havemos de prestar contas
das consequências previsíveis dos nossos atos” (p. 172). Mais adiante, Weber adverte mais uma
vez: “Não é possível conciliar a ética da convicção e a ética da responsabilidade...” (p. 175).
49. O Titanic, por exemplo, naufragou em 1912. Caso seus botes fossem utilizados em sua capacidade
máxima, eles poderiam abrigar 1.300 pessoas. Ocorre que havia 2.223 passageiros e tripulantes.
Era a primeira viagem, faltava experiência e o pânico atrapalhou as manobras. Ao fim e ao cabo,
foram salvas apenas 706 pessoas. O que seria sensato fazer: não utilizar os botes, já que nem
todos caberiam? Alguns dados, porém, lançam uma nódoa sobre a decisão adotada: dos 329
passageiros da 1ª classe salvaram-se 60,5%; dos 285 passageiros da 2ª classe salvaram-se 41,7%;
dos passageiros da 3ª classe salvaram-se 24,5%; e dos 899 tripulantes salvaram-se 23,8%... (http://
pt.wikipedia.org/wiki/RMS_Titanic#Conclus.C3.B5es_dos_relat.C3.B3rios_de_inqu.C3.A9rito)
De fato, o acesso aos botes não obedeceu a critérios igualitários, pois a escolha de quem iria morrer
ou de quem iria sobreviver foi determinada pela discriminação social. Vale dizer, a decisão acabou
assumindo caráter particularista.
50. A não ser que se apele para a teoria da derrogação (ver o tópico logo adiante), abrindo uma
exceção à regra. Só que essa medida deveria ser previamente pactuada e não poderia ser fruto de
casuísmo. É o caso do capitão que tem por obrigação mandar usar os botes salva-vidas.
51. Ou, como diz o ditado popular: “Deus escreve certo por linhas tortas”.
52. Ver Norberto Bobbio. Teoria ética geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos.
Rio de Janeiro, Campus, 2000, pp. 174-175 (livro organizado por Michelangelo Bovero).
53. Leisinger, Klaus M. e Schmitt, Karin. Ética Empresarial; responsabilidade global e gerenciamento
moderno. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 120.
54. Mesmo usando uma das exceções à regra que a teologia moral católica admite — matar em le-
gítima defesa na guerra —, ele não tinha onde se amparar, pois o que lhe foi proposto era levar
a cabo uma execução sumária.
55. O agente se dobra às injunções e usa expressões tais como “tenho que, devo, cumpre-me, cabeme,
preciso, sou obrigado a, não posso deixar de, obedeço a, impõe-se, exige-se, é imprescindível,
é indispensável, é praxe fazer, manda a tradição...”; o agente cumpre os deveres universalistas
que são expectativas coletivas, faz aquilo que todos esperam que ele faça e age em função do
dever pelo dever.
56. O agente raciocina e usa expressões tais como “faz sentido, vale a pena, almejo, pretendo conseguir,
objetivo, é sensato, sábio, inteligente, consequente, tecnicamente viável, consistente, responsá-
vel...”; o agente projeta metas de interesse coletivo, visa a realizar o bem comum, o bem grupal
ou o bem pessoal, sempre de caráter universalista, e assume a responsabilidade não só por aquilo
que faz, mas também pelo êxito do empreendimento.
8. A ética nas organizações 285

57. O Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, um conselho consultivo da Presidência da
República brasileira, aprovou resolução em favor do direito da mulher a abortar feto sem cére-
bro, contra o único voto contrário do procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, católico
fervoroso que defendeu a tese de que o direito à vida é atemporal. Disse: “Não importa o tempo
de vida que o feto anencefálico terá e sim que se trata de uma vida.” De outro lado, o jurista Luis
Roberto Barroso, autor da ação junto ao Supremo Tribunal Federal, comparou a obrigatoriedade
de manter a gravidez nessas condições a um ato de tortura da mãe. Afirmou: “As leis não podem
ser subordinadas aos dogmas religiosos ou à fé de quem quer que seja.” (Vannildo Mendes e
Mariângela Gallucci. “Conselho defende aborto de feto sem cérebro”, O Estado de S.Paulo, 20
de agosto de 2004) Sobre a liminar do STF que concedeu o direito ao aborto, a Confederação
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) afirmou em nota: “A vida é sempre um dom de Deus e
deve ser respeitada, desde o seu início até o seu fim natural. Não temos o direito de tirar a vida de
ninguém.” (Simone Iwasso. “Brasil é 4o no ranking de nascidos sem cérebro”, O Estado de S.Paulo,
18 de julho de 2004) Em contraposição, a médica geneticista Dafne Horovitz, vice-presidente da
Sociedade Brasileira de Genética Clínica, explicou: “O feto não tem cérebro, ou tem apenas uma
pequena parte dele. O restante do tecido fica exposto, sem proteção do crânio ou da pele. Cerca
de 50% morrem dentro do útero; os outros 50% morrem quase sempre minutos após o parto.
Raramente resistem até 12 horas. Em todos os casos é 100% fatal.” (Simone Iwasso. “Especialistas
rejeitam vincular anencefalia a aborto”, O Estado de S.Paulo, 8 de agosto de 2004).
58. Há uma corrente denominada “ética das virtudes”, abordagem dominante até o Iluminismo, que
tem sua origem em Aristóteles e que foi retomada nos anos 1950 (notadamente por Elisabeth
Anscombe). Essa corrente afirma que: a) a base das normas morais está nas virtudes ou nos tra-
ços de caráter julgados como moralmente valiosos; b) toda pessoa precisa dessas virtudes para
realizar-se como ser humano. Em vez de ser uma teoria da ação correta, essa corrente indaga:
quais os traços de caráter que definem uma pessoa moralmente boa ou uma pessoa admirável?
É um pensamento que pretende superar a corrente deontológica que sentencia que a justificação
moral da ação decorre de sua correção intrínseca. E também aspira a transcender a corrente tele-
ológica que confere justificação moral às ações que promovem resultados universalistas. Trata-se
de uma leitura estreitamente fundada na perspectiva do indivíduo, em oposição à perspectiva do
ato coletivamente esperado ou de suas consequências socialmente úteis. Em suma, é uma ética
do caráter, das intenções corretas. Os fatores relevantes são intra-individuais: traços de caráter,
motivações, desejos, emoções, disposições subjetivas. Ora, além de depender de pressupostos
filosóficos — ou seja, de ilações discutíveis —, essa corrente implica um controverso processo
das intenções, uma vez que os objetos da avaliação moral deixam de ser os atos externos obser-
váveis e passam a ser as motivações internas dos agentes. E mais: ela acaba abrindo o flanco para
uma leitura que autoriza a “falácia das maçãs boas e das maçãs podres”, como se os homens se
dividissem desde o nascimento em gente boa e em gente má, o que resvala num reducionismo
de senso comum (ver a esse respeito do autor, Ética Empresarial, pp. 1-5). Na nossa leitura, essa
corrente acaba tendo de se inscrever na agenda da ética da convicção, ainda que postule ser uma
terceira via, pois as virtudes pressupostas nada mais são senão valores operantes e socialmente
definidos (valores em ação), inculcados pelos agentes individuais ao longo de sua vida. Pois não
existem valores, ainda que universalistas, que sejam absolutamente universais: os próprios valores
que se subordinam à lógica universalista (daquilo que interessa a todos os seres humanos) mudam
com o tempo, são históricos.
59. Foram assim justificadas abominações como as limpezas étnicas, os pogroms, os paredóns, as de-
portações coletivas, as atrocidades contra as populações civis dos países invadidos, a discriminação
e a perseguição de minorias, a depuração dos “elementos contrarrevolucionários infiltrados” nos
Partidos Comunistas, a expropriação das terras dos kulaks, a caça aos espiões e aos traidores da
“quinta-coluna”, a repressão em massa dos “inimigos do povo”, o extermínio dos proprietários
fundiários, a escravização e o massacre de populações citadinas pelo Khmer Vermelho no Camboja,
a delação institucional nos regimes totalitários, o uso de reféns sociais, os campos de reeducação
moral na China maoísta. Todos esses atos e o terror do Estado (meio utilizado) atentam contra
os direitos humanos e, desse ponto de vista, tampouco seriam respaldados pela teoria ética da
responsabilidade.
286 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

60. Essa discussão encontra-se desenvolvida no livro do autor Ética Empresarial, 3a edição, pp.
204-212.
61. Não é impertinente considerar que a teoria da convicção se adequa mais a decisões tomadas no
âmbito individual do que no âmbito coletivo, ao reverso da teoria da responsabilidade que se
presta mais a decisões de abrangência coletiva, sem que os dois universos sejam estanques. De
outro lado, as lógicas que inspiram ambas as teorias também divergem: o sistema da corporação
parece adequar-se melhor à teoria da convicção (lógica da proteção) e o sistema do mercado à
teoria da responsabilidade (lógica do risco).
62. É interessante lembrar que, na história dos Estados Unidos, houve outras manipulações ou mentiras
de Estado. Por exemplo, a destruição do encouraçado americano “Maine” na Baía de Havana
em 1898 foi o pretexto utilizado para a declaração de guerra dos Estados Unidos à Espanha. De
fato, o “Maine” afundou depois de uma violenta explosão, matando 260 homens. A imprensa
norte-americana da época acusou os espanhóis de terem colocado uma mina sob o casco do navio
e denunciou sua barbárie, tal como a existência de “campos de morte” e até mesmo a prática
da antropofagia... O desfecho da guerra redundou na posterior anexação de Cuba, Porto Rico,
Filipinas e Ilha de Guam. Em 1911, uma comissão que investigava a destruição do navio concluiu
que ocorreu uma explosão acidental na sala de máquinas. De forma simétrica, em 1964, dois
destróeires declararam ter sido atacados no Golfo de Tonquim por torpedos norte-vietnamitas.
Usando esses ataques como motivo, o presidente Lyndon B. Johnson ordenou bombardeios de
represália contra o Vietnã do Norte e exigiu do Congresso americano uma resolução que lhe
permitiu envolver o Exército americano no conflito. Foi assim que começou a Guerra do Vietnã.
Mais tarde, em 1975, membros da tripulação confessaram que o ataque aos destróieres fora pura
invenção... (Ignacio Ramonet. “A maior fraude de todos os tempos”, Le Monde Diplomatique,
reproduzido pelo jornal A Tarde, Salvador, 6 de julho de 2003).
63. Ataques de surpresa, suicídios em carros-bomba com dezenas de mortos e feridos, sequestros de
reféns, muitos civis, com a degola de alguns deles diante das câmeras de televisão.
64. Escreve Paul Krugman, professor da Universidade de Princeton: “Trinta anos depois do Vietnã,
soldados americanos estão morrendo outra vez numa guerra que foi vendida sob falsas premissas
e cria mais inimigos do que mata” (“Patriotismo ‘à la Rambo’”, The New York Times, publicado
por O Estado de S.Paulo, 25 de agosto de 2004).
65. Por exemplo, seria sensato que generais colocassem em risco suas tropas revelando seus planos?
Caberia que autoridades abrissem o flanco à especulação antecipando medidas econômicas de
impacto? Poderiam empresas tornar públicos seus segredos de negócio? Seria inteligente que
delegados de polícia anunciassem as pistas que vêm seguindo em investigações criminais? Não faz
sentido algum dirá a ética da responsabilidade, ainda que seja necessário lançar mão de omissões,
subterfúgios ou até de mentiras cívicas. Com qual justificativa? A de que qualquer uma dessas
revelações acarretaria imensos prejuízos públicos; respectivamente: massacre de tropas, ataques
especulativos às finanças do País, destruição de negócios, fuga dos suspeitos.
66. Norberto Bobbio, Op. cit., pp. 186-187.
67. Situações inevitáveis, não provocadas pelos agentes, como, por exemplo, as calamidades natu-
rais.
68. Norberto Bobbio, Op. cit, pp. 176-194.
69. Seu representante mais conspícuo é Jeremy Bentham.
70. Seu representante mais conspícuo é John Stuart Mill.
71. Trata-se da história dos dezesseis jovens uruguaios cujo avião caiu nos Andes em 1972. Esgotados
os víveres, optaram pelo canibalismo e saciaram sua fome com a carne congelada dos 29 passa-
geiros mortos. O fato vazou para a imprensa dois meses e meio depois, quando de seu resgate. A
repercussão provocou uma comoção mundial. Ao fim e ao cabo, entretanto, os jovens escaparam
do estigma do canibalismo, pois a opinião pública internacional aceitou a quebra do tabu como
um evento inelutável. Considerou que, em iguais circunstâncias, o grosso da humanidade con-
temporânea teria reagido da mesma forma.
9
A título de conclusão

O mundo contemporâneo está vivendo extraordinárias rupturas de


forma insensível. A soma das inovações tecnológicas, o florescimento de
modos novos de convivência social, as comunicações em tempo real, a
velocidade dos transportes, a superação incessante das fronteiras do co-
nhecimento científico, a economia do saber, a consolidação do Terceiro
Setor, o fortalecimento ímpar da sociedade civil estão redesenhando os
espaços sociais.
Diante de transformações tão assombrosas, pergunta-se: as organiza-
ções irão desaparecer? Pois tendem a desaparecer as organizações que
sufocam a autonomia individual e a criatividade, as que operam como
casernas ou como grandes burocracias verticais. Em contrapartida, irão se
desenvolver cada vez mais organizações cujos formatos propendem à ver-
satilidade, graças ao impulso conferido pela universalização das relações
liberais de poder. Provavelmente, as arquiteturas organizacionais irão nos
surpreender em função do uso geral da tecnologia da informação e das
telecomunicações. Basta pensarmos nas chamadas organizações “virtuais”
para vislumbrarmos a profusão de formas e a riqueza das articulações
possíveis entre os agentes.
A disciplina de conhecer antecede a coragem de ousar. A atual acele-
ração histórica que convulsiona o planeta — a Revolução Digital — tem
claramente uma vantagem em relação às duas outras revoluções tecnoló-
gicas. Aponta para rotas democráticas ao consolidar as tendências para a
formação de um capitalismo social em que a maioria da população possa
desfrutar de uma vida digna. Melhor ainda, uma vida que mereça ser
vivida. Mas esse não é um caminho sem volta nem um desfecho assegu-
288 Poder, Cultura e Ética nas Organizações

rado. Tanto no plano inclusivo, quanto no plano das organizações, a


conquista da cidadania é uma tarefa hercúlea. Na miudeza do cotidiano,
nas finas dobras das hierarquias, escondem-se os demônios do autorita-
rismo. Esconjurá-los exige um empenho incessante, sem o quê renascem
das cinzas com vigor redobrado.

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