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Volume III
YOSKHAZ
MANUSCRITOS
Volume III
YOSKHAZ
1ª edição
Rio de Janeiro
Tinta Livre
2018
Copyright © 2018 Yoskhaz
Título original:
Manuscritos, volume 3
Capa:
Ana Cunhal Zivick
Revisão:
Carlos André Oighenstein
Diagramação:
Fátima Serpa
Projeto editorial:
Tinta Livre
Editores de produção:
Marcello Schweitzer e Carlos André Oighenstein
Editoras adjuntas:
Tatiana da Costa Velho e Carvalho e Júlia Reuter e Carvalho
Editor responsável:
Jorge Desgranges
Yoskhaz
www.yoskhaz.com
www.tintalivre.com
tintalivre@gmail.com
ÍNDICE
T
A angústia me dominava quando entrei na
biblioteca do mosteiro em busca de alguma leitura
que aliviasse a aflição da minha alma. Sentado em
uma confortável poltrona, com um livro repousado
no colo, o Velho, como carinhosamente chamávamos
o monge mais antigo da Ordem, olhava para as
montanhas através de uma das janelas, quando
teve a sua atenção desviada para mim. Ao perceber
pelo meu semblante a desordem interna que
imperava, franziu as sobrancelhas como maneira
de perguntar o que havia acontecido. Reclamei do
descaso das pessoas no trato pessoal, de como eram
insensíveis, materialistas e individualistas. Relatei
várias situações para exemplificar a razão do meu
sentimento. Falei de como esse comportamento
provocava tragédias desnecessárias. Eu me sentia
abandonado e deslocado. Definitivamente, concluí, a
humanidade estava perdida e o mundo não era um
bom lugar para se viver. O monge sorriu, como quem
se diverte com uma criança que reclama porque não
ganhou um doce, se levantou e guardou o livro na
estante apropriada, foi até outra prateleira em busca
de um título diferente. Procurou por algo em suas
páginas por breves instantes, guardou-o no bolso da
túnica, segurou meu braço e me encaminhou para
fora da biblioteca. Depois falou: “Vamos conversar
no refeitório; preciso de uma xicara de café”. Alguns
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minutos depois, diante de duas canecas fumegantes,
ele iniciou a conversa: “Se você está bem consigo
estará bem com o mundo. O olhar que cada qual tem
sobre si mesmo será a lente pela qual enxergará a
vida. Isto definirá a clareza, as cores e a extensão do
universo que é o mesmo para todos, mas diferente
para cada um de nós. O mundo, feio ou bonito, será
sempre o espelho da sua alma”.
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“Saia do círculo do tempo
e entre na esfera do amor.
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de café e prosseguiu: “Cada qual é responsável pela
própria felicidade. Ela é uma construção interna de
entendimento e aperfeiçoamento. Introspecção, silêncio
e quietude. Neste aspecto o Caminho é solitário”.
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lembrou: “Mas não esqueça do amor, a matéria-prima
de todas as transformações. Ele é o miolo da flor a
dar sustentação às pétalas, é a seiva que alimenta e
anima, ao mesmo tempo em que acabará por se tornar
o fruto quando mudar a estação”.
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por absorver as energias afins que envolvem cada
movimento, concedendo peso ou leveza aos seus
passos, definindo o próprio destino e as próximas
lições, sempre em compasso com as leis universais, que
orientam a evolução de todos, fazendo com que cada
qual seja herdeiro de si mesmo no momento seguinte”.
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o mundo e, no outono, se transmutar em doce fruto a
alimentar a humanidade”.
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A FLOR DA SIMPLICIDADE
T
Estávamos eu e o Velho, como carinhosamente
chamávamos o monge mais antigo da Ordem, em uma
prestigiosa universidade para um ciclo de palestras
sobre as várias faces da inteligência: cognitiva,
emocional, artística e espiritual. Falariam cientistas,
professores, psicanalistas, filósofos e artistas.
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a simplicidade é uma virtude poderosa e rara,
indispensável a todas as demais virtudes”.
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por interpretar personagens ‘bem resolvidos’ por
acreditar que dessa maneira será mais fácil sermos
aceitos e amados, sem nos darmos conta de que
isto somente alarga a ferida e o sofrimento. Quando
aumentamos o distanciamento da nossa essência, nos
afastamos da indispensável cura do ser. A simplicidade
é o eficiente guia que nos ajudará a atravessar a ponte
estreita que aproxima o ego da alma”.
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acabam se tornando enfadonhas pelo fato de se
olharem com vaidade ao invés de observarem com
amor. Abrem mão da luz para se esconderem nos becos
sombrios da própria personalidade. Então, o centro da
existência resta perdido em favor de uma configuração
externa que nada acrescenta à evolução. As pessoas
simples trazem a leveza daqueles que não ligam para
as críticas alheias. Não dão a mínima para a imagem
ou reputação. Isto é problema de quem se mantém no
raso. O ser simples caminha protegido pelo escudo da
humildade. Conhece as próprias imperfeições e sabe da
batalha interna que trava em busca de aprimoramento.
Está concentrado em entender o peso que lhe verga as
costas para transformá-lo em asas”.
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sinceridade. É deixar a vida fluir com naturalidade,
com coragem, com humildade, em paz”. Tornou a
beber mais um gole de café e questionou: “Percebe
que é impossível viver o amor em toda a sua amplitude
sem a presença da simplicidade? Entende que cada
uma das virtudes é uma flor indispensável no jardim
da plenitude? Ser simples é simplesmente ser. É um
degrau para a liberdade. É indispensável para atravessar
o primeiro portal do Caminho”.
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café e pediu outra xícara ao garçom. Depois finalizou:
“A simplicidade é uma conquista consciente, típica
da maturidade. Como naquela história infantil, cada
qual precisa de sinceridade e coragem para se olhar no
espelho e admitir que os belos trajes não passam de débil
ilusão: ‘o rei está nu’. É preciso simplicidade para lidar
com a verdade. Este é o primeiro passo para resgatar a
verdadeira força que o habita. O poder do espírito livre
começa na simplicidade do ser”.
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A ÂNFORA DA HUMILDADE
T
Eu estava de volta ao Himalaia. Era uma
promessa que tinha feito a mim mesmo, retornar
uma vez por ano à vila chinesa, próxima ao Tibete, para
estudar o Tao com Li Tzu. A única hospedaria que havia
no lugar estava sempre lotada de alunos de todas as
partes do mundo, sedentos por conhecer um pouco mais
sobre o milenar Tao Te Ching, o Livro do Caminho e da
Virtude. As reservas, na prática, eram de pouca utilidade
e não garantiam a vaga. As reclamações quase nunca
surtiam efeito, pois a anciã responsável pela pousada
respondia, sempre sorrindo, em inglês ou mandarim, de
acordo com a conveniência dela em se fazer entender.
No pequeno espaço que servia como recepção, eu
disputava com um homem enorme, com mais de dois
metros de altura, forte como um halterofilista, quem
ficaria com o último quarto vago. Ambos tínhamos
reserva, a minha era anterior a dele, mas ele chegara à
hospedaria minutos antes de mim. Discutíamos, cada
qual com suas razões e argumentos, diante da anciã que
parecia se divertir, uma vez que não parava de sorrir,
embora o tom da discussão aumentasse a cada palavra
proferida. Até que ele pegou a chave do quarto das mãos
dela e disse que a questão estava resolvida: ele ficaria
com o quarto, salvo se eu fosse capaz de tomar a chave
dele. Repleto de raiva, não reagi. A diferença de força
física anunciava uma grande surra, caso eu aceitasse
jogar pelas regras do meu oponente. Pedi à anciã que
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tomasse uma atitude contra aquela arbitrariedade.
Ela apenas deu ombros e respondeu, em seu idioma,
algo que interpretei como “nada posso fazer”. Claro,
sem abandonar o sorriso. Como se não bastasse, e com
efeito devastador para mim, ainda ouvi uma série de
provocações e piadas desagradáveis por parte do meu
desafeto enquanto me retirava da hospedaria.
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aceita comparecer a este tipo de baile”. Bebeu um gole
de chá e prosseguiu: “Apenas é humilhado quem não
traz em si a virtude da humildade. A humilhação atinge
somente os espíritos toscos, ainda movidos por orgulho
e vaidade. A compaixão é o antídoto contra o veneno da
ofensa e do sarcasmo. Um escudo em forma de manto
de amor que derramamos sobre o agressor. É o amor em
forma de sabedoria por entender que cada qual age na
exata medida do seu nível de consciência e capacidade
afetiva. A compaixão sabe que as rosas não florescem
no deserto. A maneira de reagir diante das situações
desagradáveis define a distância que já conseguimos
percorrer no Caminho e quais flores já germinaram em
nosso Jardim de Virtudes. Apenas quem traz em si as
sombras do orgulho e da vaidade pode ser humilhado.
A humildade é a cura. Ela transmuta a escuridão e
dissolve a humilhação em pétalas de luz. Ninguém se
torna andarilho ou jardineiro sem a ânfora da humildade”.
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Os dias se passaram sem que eu tornasse a
falar com Li Tzu, sempre atencioso com os inúmeros
viajantes que vinham em busca de seu conhecimento
sobre o Tao. Passei a me entreter com os bonsais até
que veio um recado para que eu lesse o capítulo 11
do livro:
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grande que é como se todas as moléculas do seu corpo
recebessem uma martelada. Como se não bastasse,
ainda o mantém algemado ao agressor por afinidade
de sentimentos. É preciso colocar o seu conhecimento
para se proteger daquilo e a se libertar disso”, explicou.
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Comentei que tinha dúvida se a humildade era,
de fato, uma virtude. Sempre a considerei algo menor,
típico das pessoas que não tinham grandes sonhos.
Li Tzu me olhou como quem se diverte com uma criança
teimosa e explicou: “A humildade é a virtude dos santos
e dos verdadeiros sábios. Você apenas se torna grande
quando entende a grandeza de ser pequeno. Ou não
haverá espaço para crescer. Os pequenos não mudarão
de tamanho enquanto se enganarem grandes”.
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Você precisa estar vazio ou nada poderá acrescentar a
si. Esta ânfora se chama humildade”.
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Comentei que eu tinha a sensação de que as
pessoas humildes não amavam a si mesmo. Li Tzu
explicou: “O humilde ama a si próprio sem abandonar
a verdade. Esta é a grandeza da humildade. Apenas
assim ele consegue desapegar das ilusões que trazem
o sofrimento e a escuridão, que tanto consomem as
suas forças e o desvia da felicidade e da paz. Ele não
tem vergonha das suas imperfeições, ao contrário, elas
servem de inspiração para o enriquecimento moral
e espiritual que almeja. A conquista da humildade
estabelece um novo capítulo na vida do indivíduo ao
elaborar um diferente código de compreensão e conduta,
norteando as demais virtudes a serem sedimentadas
pela alma”.
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aproveitaria a oportunidade para agredi-lo e me vingar.
Confesso que isso me ocorreu, mas a vontade, naquele
momento, era nenhuma. Peguei a mala, andamos
um bom tempo, lado a lado, em silêncio até que a
coloquei no bagageiro do ônibus que ele embarcaria.
As feições do homem estavam diferentes daquelas
que eu havia conhecido quando cheguei à vila.
Ele foi sincero em me agradecer e acrescentou que “sem
aquela não haveria esta”. Tornou a agradecer. Apenas
fechei os olhos e sorri, também em agradecimento,
como resposta. Nos abraçamos. Ambos tínhamos
sido agraciados com preciosos aprendizados.
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BELEZA OCULTA
T
Pelas manhãs era comum encontrar o Velho,
como carinhosamente chamávamos o monge mais
antigo da Ordem, no jardim do pátio interno do
mosteiro, cuidando das plantas. Tinha predileção
pelas rosas, às quais ele dedicava horas a fio.
Sempre que possível, eu gostava de acompanhá-lo,
não pelo gosto à jardinagem, mas pelas conversas
proporcionadas. Nesse dia, ele foi procurado por uma
jovem. A moça se declarou desencantada pela vida.
Tudo lhe parecia sem graça, os dias eram cinzentos
e as pessoas desprovidas de encanto. Confessou que
a alegria a irritava por parecer idiotice. Os dias não
passavam de uma sucessão de erros e frustrações.
Não existia razão para sorrir. Ao final dos seus
lamentos perguntou se o Velho era feliz. O monge que a
tudo ouviu com paciência e atenção enquanto cuidava
do jardim, mostrou na palma da mão uma pequena
lagarta que tinha tirado das flores, guardou-a no
bolso da túnica para depois soltá-la na floresta e disse:
“Sempre haverá motivos para sorrir; a alegria é uma
semente possível de germinar até mesmo no deserto.
A alegria é uma escolha da sabedoria e do amor”.
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A alegria é a alternativa”. A jovem se irritou. Acusou
a insensibilidade do monge em relação aos problemas
alheios, alguns muito sérios. O Velho, sem perder a
serenidade prosseguiu: “O problema nunca será o
verdadeiro problema. O problema é a maneira como
cada um escolhe enfrentar as inevitáveis adversidades.
Você pode percebê-lo como uma barreira intransponível
e restar frustrada. Então, você tem um problema.
Porém, pode entender que ali reside uma lição para
aprendizado e superação. Nesse caso, você está
diante de um mestre. A cada curva podemos estagnar
ou evoluir. A decisão é pessoal; cada qual viaja sob
condições próprias, como herdeiro de suas escolhas”.
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terminado o romance, abruptamente, por se descobrir
apaixonado por outra mulher. O monge se esforçou
para mostrar um infinito leque de possibilidades: “São
situações que podem parecer o fim do mundo ou surgirem
como uma oportunidade de renovação para que o seu dom
pessoal ou a magia da vida se revelem. Quantas vezes o
que pensamos ser uma tragédia não passa do universo, em
sua infinita bondade e inteligência, tentando corrigir uma
trajetória errática, conspirando a nosso favor, enquanto
insistimos em atrapalhar”. Tornou a se calar por instantes
e falou: “Um erro muito comum reside em confundir os
desejos como se fossem degraus evolutivos. Nem sempre
uma coisa tem a ver com a outra. Então, precisamos fracassar
para aprender a fazer certo. Demoramos a entender por
achar que já sabemos. Como o ego costuma gritar ao
fazer as suas exigências, temos dificuldade em ouvir os
conselhos na voz suave da alma. Por isto é tão importante
o silêncio, a quietude e o encontro consigo mesmo”.
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frustrados, sonhos negados, muitos são os motivos
de tristeza quando você se observa prisioneira da
situação; ou de alegria, quando percebe a ferramenta
oferecida para aprender a viver diferente e melhor.
A vida precisa das decepções para provocar a mudança
na maneira de olhar; das dificuldades para aperfeiçoar
o jeito de andar. Assim, ao seu modo estranho, a vida
se faz perfeita através das imperfeições”.
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de luz está embutido na sua vontade, quais virtudes
você já possui sedimentadas no ser. Assim cada qual
narra verdadeiramente a própria história. Queiramos
ou não, o filme da vida de qualquer pessoa conta uma
trajetória de superação. Toda vitória está misturada
a fracassos, erros, decepções, além do compromisso
em tentar de novo. E depois outra vez. Claro que você
pode fazer isso com tristeza, mas acho mais leve e
inteligente usar a alegria”.
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Pedi desculpas por ter provocado, sem querer, aquela
emoção. Ele sorriu e disse com o seu jeito doce:
“Está tudo bem. Só há saudade onde existe amor. Eu sou
grato a isto”. Depois falou: “Quando jovem, meus sonhos
eram outros, nunca me imaginei fazendo parte de uma
ordem esotérica e morando em um mosteiro. Eu queria
uma vida confortável e uma família feliz, ideal bonito de
vida, que nada tem de errado. Estudei muito, consegui
um excelente emprego, casei com uma bela mulher e
cheguei ao topo da carreira ao conquistar a cadeira de
presidente de uma famosa empresa multinacional. Logo
em seguida a minha esposa engravidou e meus melhores
sonhos estavam na palma da minha mão. Lembro que
pensei: ‘cheguei no alto da montanha’. No entanto,
houve complicações no parto e em um só instante perdi
a mulher amada e o filho desejado”.
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uma rotina. Com o passar do tempo, por algum motivo,
no auge da vida profissional e afetiva eu estava sempre
desconfortável. Eu vivia um sonho bonito e desejado
pela maioria das pessoas, porém, não era feliz. Sim, atrás
da bela aparência de um homem forte e eficiente que
conquistou o mundo, na essência eu era frágil e incapaz
de conquistar a própria paz. O motivo era simples: aquele
não era o meu sonho, e eu começava a entender isto. Outro
era o meu campo de batalha. Ao menos nesta existência.
Era preciso me reinventar. Vieram novos estudos, outros
interesses, pessoas com novos valores, a Ordem. Foi
uma longa caminhada até aqui, com as dificuldades e
alegrias inerentes a todo percurso, mas diametralmente
oposta aos sonhos inicias. Todos os problemas, conflitos
e frustrações se mostraram imprescindíveis para que o
verdadeiro sonho se apresentasse e acontecesse. O olhar
se modificou e diferente se tornaram as escolhas. Então,
conheci a felicidade de uma maneira inimaginável em
outros tempos”.
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A ESTAÇÃO
T
Na pequena e charmosa cidade que fica no
sopé da montanha que acolhe o mosteiro há uma
secular estação de trem. Estávamos, eu e o Loureiro,
o elegante sapateiro amante dos vinhos e dos livros,
sentados em um antigo banco de madeira à espera de
sua sobrinha, que a pedido da mãe, uma das irmãs do
artesão, passaria alguns dias com o tio, na tentativa de
ajudá-la a dissolver a angústia que a abatia. Era muito
cedo e o sol ainda não ganhara força para afastar o frio
da madrugada. Percebi que ele estava encantado com
todo aquele movimento de chegadas e partidas, típico
de qualquer estação. Antes que eu lhe indagasse sobre
o assunto, surgiu a sua sobrinha. Era uma moça na casa
dos trinta anos. Muito bonita, porém, bastante abatida.
Eles trocaram um abraço forte, como fazem os que se
amam ao se encontrarem. Fomos apresentados e ela foi
muito gentil. A jovem disse que precisava de um café.
Fomos a uma cafeteria ali mesmo. Quando a simpática
garçonete colocou sobre a mesa as canecas fumegantes
acompanhadas de pão quente com o delicioso queijo da
região, a sobrinha abriu o coração. Lamentou que a vida
tinha virado ao avesso.
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digna, por mais espaço e notoriedade, além de muita
discórdia entre todos da equipe do seu setor. Fora isto,
não sentia mais no namorado a vontade e a alegria
sinceras de estar ao seu lado. Como se não bastasse, o
pai se encontrava em coma terminal, reflexo da doença
que o acometia há anos. Por fim, confessou que embora
sempre tivesse amado a vida, viver daquele jeito não
mais a interessava. Faltavam-lhe forças para prosseguir.
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da única parte na qual temos total poder: cada um
sobre si mesmo. Mudamos a realidade na medida que
modificamos as nossas escolhas; apenas no exercício da
liberdade encontraremos a plenitude e a paz”.
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da mudança; tudo o que está não ficará. Ou não
acontecerá a indispensável renovação e a vida não
encantará com a sua fantástica magia. Isto nos ajuda a
ter um relacionamento saudável com a impermanência
e, por consequência, com a tão temida morte, fase
necessária para a evolução em marcha”.
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em frente, tão somente. Você pode até não concordar
com o outro, mas jamais lhe impor qualquer tipo de
mudança sob nenhuma condição. A recíproca também
se aplica: nunca concedermos a ninguém o poder sobre
as nossas escolhas. Afinal, em razão delas, caberá a
cada qual as duras intempéries ou as belas paisagens
da própria viagem”.
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que ela tinha ido passar uma semana na fazenda de
uma amiga, próxima dali. Estávamos no meio de uma
conversa quando a sobrinha entrou. Fiquei surpreso.
O semblante era outro, trazia um bonito sorriso no rosto.
Me cumprimentou e deu um beijo estalado na bochecha
do tio. Em seguida falou que os dias de introspecção
tinham permitido um importante descortinar da
realidade. Ela entendeu que a teimosia em não abrir
mão de nada do que a cercava apenas prolongava o
sofrimento em manter ao seu lado o que não mais
deveria estar. A estagnação traz o apodrecimento; no
movimento reside a cura. Agora conseguia ver isto
com clareza. Lembrava da dificuldade e das dores
do pai durante o tratamento; a deterioração física
que ocorrera. Tinha a clara percepção de que ambos
estavam aprisionados a uma cela dolorosa; ele a espera
de ouvir que podia partir em paz, pois ela ficaria bem
e, cedo ou tarde, se encontrariam em outra estação,
pois o amor alinha os destinos. Confessou estar
sendo egoísta e, agora, estava disposta a se despedir
dele. Iria desejar uma boa viagem e um até breve.
O artesão balançou a cabeça e disse: “Sim, há a hora
de dissolver o corpo para o espírito prosseguir em
mais um trecho da grande jornada”. Em seguida, a
jovem falou de quantas concessões contrariadas vinha
fazendo para manter o namorado ao seu lado, que
além de infrutíferas, tornavam ambos infelizes. Era o
momento de cada um pegar o seu trem e partir em
busca de novas histórias. O romance fez sentido até
um determinado capítulo, depois as letras não mais
escreveram palavra. Por fim, confessou de como se
sentia oprimida na empresa em que trabalhava. Embora
tivesse ganho muita experiência, estava insatisfeita.
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Sabia que muitos desejavam o emprego que ela tinha,
mas do que adiantava ser admirada e viver o sonho
alheio se ela não era feliz ali? Não tinha mais a alegria
dos primeiros anos. Admitiu que sempre pensou em
criar roupas e acessórios de moda ao próprio gosto e
estilo. Era preciso colocar o vagão da vida nos trilhos
rumo ao seu dom. Estava determinada a pedir demissão,
abrir um pequeno atelier, desenvolver a própria grife.
Sabia que no início seria muito difícil, mas igualmente
animador, pois, afinal, estaria viajando com o próprio
sonho sentado na poltrona ao lado. Por fim, com os
olhos mareados contou que lembrava de ter ouvido
da boca do tio, quando criança, que os riscos são os
temperos da vida, que sem liberdade o espírito adoece.
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DE VOLTA PARA CASA
T
Quando virei a esquina e não vi a clássica
bicicleta de Loureiro, o sapateiro amante dos livros e
dos vinhos, encostada no poste em frente à sua oficina,
pensei que não estava com sorte naquele dia. Os horários
improváveis e inusitados de funcionamento da sapataria
já tinham virado lenda na pequena e charmosa cidade
que fica ao sopé da montanha que acolhe o mosteiro.
Eu estava triste. Desde sempre, o meu relacionamento
com a minha mãe tinha sido complicado, como se amor
e mágoa se alternassem no palco da vida, gerando
memórias que acabavam por atrapalhar os dias a serem
vividos. Tínhamos tido mais uma discussão e eu queria
encontrar com o bom artesão. Eu precisava falar para
lembrar o que já sabia e ouvir para aprender o que
ainda não sabia. Era a hora do almoço e decidi ir a uma
agradável cantina perto dali. Como se o acaso existisse,
quando entro no restaurante me deparo com o sapateiro
sentado à mesa com uma mulher mais jovem que ele.
Eu não a conhecia. Quando me aproximei percebi
que eles estavam de mãos dadas e tinham as faces
molhadas em lágrimas. Recuei, mas ele me viu, abriu
um sincero sorriso e me chamou. Me presenteou com
um forte abraço e me apresentou a moça. Era a sua filha
mais nova. Ela tinha saído muito cedo de casa, após
muitas brigas com o pai, abandonara a universidade
sem a devida conclusão e ficara anos sem dar notícias.
Eu conhecia a história e sabia que Loureiro a procurara
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por muito tempo sem sucesso. Ela acabara de voltar.
A alegria pelo reencontro transbordava em ambos.
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e as necessidades da alma, o ser alimenta dúvidas
que dependendo do ponto em que já se conhece, de
como consegue lidar consigo mesmo, com as suas
próprias emoções, do refinamento das percepções
e, por consequência, com a situação presente, será
fator de paralisação, fuga ou de evolução. O fato
desagradável pode gerar uma insegurança capaz de
levá-lo à completa estagnação por se deixar dominar
pelo medo; uma fuga pela dificuldade em equilibrar
os instintos primários aos desejos mais nobres; ou a
usar o momento para melhor entender a busca pela
essência que o ilumina, na jornada pela superação das
dificuldades, ora impeditivas”.
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de amealhar bens materiais; medo, egoísmo, vaidade e
ganância são as sombras que dominam esses indivíduos;
costumam estar rodeados por pessoas com iguais
interesses em simulações de afeto e, embora neguem
ou tentem disfarçar as aparências, são profundamente
infelizes e amargos. Preste atenção, eles aparentam
possuir grande força externa, se sustentam no orgulho
da ilusão de se acreditar melhores, na arrogância de
se sentirem poderosos, mas, no fundo, são frágeis e
gostariam de pedir auxílio para sair do porão escuro
em que se encontram. Nunca admitem os seus erros,
restam estagnados. Caso em que o ego viajou para um
país distante, longe de casa e não admite voltar. A alma
é a verdadeira casa do ego, que insiste em negá-la, na
busca pela felicidade em lugar longínquo, fora de si
mesmo. Nesse momento, eles se tornam escravos das
próprias sombras”.
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O ego está perdido na floresta das sombras.
Desesperados, tentam fugir de si mesmo. Restam
aprisionados, tendo as sombras como carcereiras”.
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As experiências vividas, somadas à ampliação da
consciência e à capacidade amorosa, o fazem perceber
que a busca pelos bens valiosos e imperecíveis tem
como destino o outro lado de si mesmo, a alma. Então,
nesse dia, retorna à casa e acontece o grande encontro”.
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com amor é fazer diferente e melhor. É entregar o que
ela precisa”.
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OS TONS DA PRUDÊNCIA
T
Quando dobrei a esquina para entrar na
estreita rua onde se localizava a oficina de Loureiro,
o sapateiro amante dos livros e dos vinhos, me alegrei
ao avistar a sua clássica bicicleta encostada no poste.
Era cedo, o sol acabara de surgir para evaporar o sereno
que umedece o calçamento de pedras em agradável
sensação de andar por entre as brumas. Fui à oficina
em busca de café e um pouco de prosa vadia. Ao entrar
me deparei com outros amigos do artesão. Sentados,
enquanto Loureiro lhes enchia as xícaras, eles estavam
reunidos em uma espécie de assembleia informal.
O sapateiro me recebeu com a alegria habitual, me
acomodou sentado sobre uma caixa de madeira e logo
me entregou uma caneca fumegante para afastar o frio
da manhã e acordar as ideias. Aqueles homens tinham
entre si uma amizade que os unia há muito tempo.
Ele me explicou que a turma teve mais um integrante,
René, o dono da mais tradicional banca de revistas da
cidade, falecido há pouco. Em frente à banca, todos
os dias, bem cedo, esses amigos se reuniram durante
anos para conversar sobre qualquer assunto enquanto
aguardavam o jornal do dia chegar. Era um ritual
que fazia parte da história de todos eles. O filho do
jornaleiro tinha assumido o negócio, ainda durante o
tratamento do pai, mas agora, em razão de uma dívida,
o distribuidor se negava a entregar novos jornais e
revistas. Sem renovar o material para trabalhar a
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banca estava prestes a fechar. O filho os procurara em
busca de dinheiro emprestado para quitar o débito e
evitar que o tradicional negócio cerrasse as portas.
O problema é que o filho, que morara fora por muito
tempo, não tinha boa fama na cidade.
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de René teria abandonado os próprios filhos e não lhes
prestava qualquer auxílio. Fez questão de sublinhar que
um homem digno não desampara a família. Entendia a
separação, nunca o abandono. Concluiu dizendo que pai
e filho eram muito diferentes e os amigos não poderiam
se deixar enganar.
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a todos sem dizer palavra. Pediram a sua opinião e ele
não se fez de rogado: “Todas colocações foram muito
sensatas. É verdade que não podemos confundir pai e
filho ou fundi-los como se fossem uma única pessoa.
Cada qual é único e há muita beleza nisto. Aceito que a
probabilidade de não recebermos o dinheiro emprestado
é enorme e todo esfoço seja em vão. As histórias narradas
parecem clarear a melhor decisão. Concordo com todos
vocês”, fez uma pequena pausa e destoou: “Até antes de
fazer a última curva”.
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pode ser exagerada a ponto servir de desculpa a
impedir o exercício da generosidade, outra virtude
valiosa. É o capítulo dois da mesma lição oferecida
por essa virtude”.
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mão, movidos pelos mesmos sentimentos e experiências
frustrantes, afiamos a espada com o rigor daqueles que
insistem em olhar para fora de si na tentativa de evitar
o encontro consigo mesmo, na ilusão de que os erros
alheios quando revelados possam esconder as nossas
próprias dificuldades”. Colocou mais café na caneca de
cada amigo e lembrou: “O que sabemos da intimidade
e das crises do casamento desse moço? Qual de nós
em algum momento, mormente quando jovens, não
nos desviamos em busca dos prazeres sensuais, na
tentação do dinheiro fácil ou das diversões rasas?
Quem nunca precisou rever planos e recomeçar?
Quantas vezes fomos chamados a reavaliar a própria
conduta?”. Bebericou o café e continuou: “Podemos
levar em consideração que a dívida foi contraída justo
no momento em que o pai estava internado, exigindo
maiores cuidados e mais medicamentos ou crer que
as economias foram desviadas para fins obscuros
em hora de pouca vigilância. Se o dinheiro foi gasto
com o tratamento ou na farra, não sei responder.
Mas também não quero adivinhar. Sei apenas que
cada um de nós tem histórias que não nos deixariam
à vontade se fossem lembradas em público, assim
como temos outras que são merecedoras de sincera
admiração. A prudência nos lembra de ambas”.
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“A prudência apenas avisa, quem impede é o
medo. A prudência diz para tomar cuidado ao seguir,
nunca para desistir. Toda a virtude precisa de outras para
se completar: a prudência sem amor se torna egoísmo;
sem compaixão é abandono; sem coragem é fuga; sem
generosidade é desistência; sem justiça é covardia.
A prudência, essa virtude tão mal compreendida, tem
compromisso com o aperfeiçoamento, jamais com o
retrocesso. Ou não seria uma virtude”.
56
banhadas em lágrimas. Sem dizer palavra, cada
qual preencheu um cheque e deixou em cima do
balcão. Em seguida, como se aquela conversa
não tivesse acontecido, um deles lembrou que no
domingo seguinte era a Páscoa. Todos se alegraram
e começaram a discutir em qual restaurante iriam
almoçar. Escolheram o predileto do René.
57
O CAMPO DE BATALHA
T
O céu tinha amanhecido azul após dias
cinzentos de muita chuva. Todos pareciam alegres no
mosteiro, menos eu. Um dilema pessoal me corroía
e furtava a minha paz. Sentado na cantina divagava
a minha dúvida diante de uma xícara de café e um
pedaço de bolo de aveia quando tive os pensamentos
interrompidos pelo Velho, como chamávamos o monge
mais antigo da Ordem. Ele me convidou para ajudá-lo
a colher cogumelos na floresta no arredor do mosteiro.
Explicou que o sol forte após os dias chuvosos era
perfeito para a germinação dessas iguarias aos
pés dos carvalhos da montanha. Acrescentou que
pretendia fazer a sua famosa sopa de cogumelos no
jantar. Logo que entramos em uma trilha o monge
disse perceber a minha agonia e perguntou qual era
o motivo. Expliquei que um grande amigo tinha me
convidado para acompanhá-lo durante as férias em
um acampamento de refugiados na África. Ele fazia
parte de uma organização internacional de médicos
que prestava atendimento em várias regiões do planeta
onde havia carência de cuidados pela manutenção da
vida. O Velho se virou para mim enquanto andava
com seus passos lentos, porém firmes, e disse: “É um
serviço maravilhoso e indispensável prestado por esses
homens e mulheres, médicos ou não, no esforço de levar
um pouco de conforto e muita cura em lugares onde
há ausência de condições básicas de sobrevivência.
58
Eu estive em um desses acampamentos anos atrás,
durante uma insensata guerra local e me confesso
encantado com a compaixão, a misericórdia e
a generosidade depositada em forma de amor
incondicional. Apesar de tanta dor e sofrimento,
você entende a grandeza da vida e as maravilhas da
superação no esforço de fazer diferente e melhor”.
59
etapas: aprender, transmutar, compartilhar e seguir.
Atravessamos inúmeros ciclos enquanto travamos no
íntimo a grande batalha da vida ao iluminar as sombras
que nos habitam, em aproximar o eu-aparência,
chamado de ego, ao eu-essência, conhecido como
alma, às conquistas da liberdade e da paz pessoais,
sempre com alegria, semeando a beleza do convívio
consigo e com toda a gente. Assim, pouco a pouco,
despertamos todo o amor ainda adormecido em nós”.
60
front sombrio da existência. Nos fechamos em esfera
de dor por não permitir a transmutação do ser na
disposição de fazer diferente e melhor. Mau humor,
irritação, impaciência, fuga da realidade por meio de
ilusões e diversões baratas, depressão, agonia, pânico
e até outras doenças somatizadas ao corpo são os
sintomas mais comuns quando estamos desorientados
no meio da batalha. Onde há sofrimento significa a
existência de olhares equivocados sobre si mesmo e a
vida. Isto leva às consequentes escolhas inadequadas
gerando a repetição dos ciclos educacionais. Aprender
a lição oculta que o conflito traz consigo, transmutar
este aprendizado, dividir com o mundo o novo ser
que floresceu e seguir a viagem ao encontro da Luz
é um método eficiente de transformar o sofrimento
em pó de estrelas, na beleza de cada ciclo de
aprimoramento. Lição internalizada, carma extinto
por desnecessidade. Eis a batalha a ser travada
amorosamente com o desenvolvimento das virtudes,
as verdadeiras armas da Luz”.
61
se expandem em um lago até os confins do universo.
Essas ondas são geradas não apenas no convívio e nas
relações pessoais, mas também através do seu ofício
ou arte. Aqui está o seu darma; é o seu outro campo de
batalha; é a sua jornada nesta existência no planeta, a
incumbência de fazer germinar flores em um pequeno
pedaço do deserto”.
62
igual importância, seja padeiro ou médico; governante
de uma nação ou professor do jardim de infância.
A falta de um único parafuso é capaz de enguiçar a
máquina mais sofisticada. Tudo que é simples costuma
ser essencial”.
63
compromissada no exercício de suas capacidades e
possibilidades. Uns complementam outros, como um
conjunto de vigas necessárias para manter erguida
uma construção”.
64
prazer do ego com a satisfação da alma. O dom são as
sandálias; o campo de batalha é a estrada. O amor será
sempre o melhor jeito de andar e a Luz é o destino final.
Ao fazer assim, enquanto cuida de si estará cuidando
do mundo”.
65
A LEI DA AÇÃO E REAÇÃO
T
Eu tinha ido encontrar o Loureiro, o sapateiro
amante dos livros e dos vinhos, em uma agradável
taberna próxima à sua oficina. Logo após o garçom
encher as nossas taças foi inevitável não desviarmos
a atenção para a mesa ao lado. Um casal começou a
discutir um pouco acima do tom até que a moça se
levantou, disse ao rapaz que “tudo é ação e reação”
e foi embora. Ficamos alguns minutos em silêncio
até que o artesão comentou displicente: “As leis da
vida são inexoráveis”. Eu o corrigi, acrescentando
que a Lei da Ação e Reação era uma lei da Física,
mais precisamente uma das três Leis do Movimento
de Isaac Newton, renomado físico inglês. Com ar
professoral, expliquei que para toda ação existe
uma reação de igual intensidade e sentido contrário.
Loureiro me olhou com doçura como quem está
diante de uma criança exibida e disse: “Exato. Por
ser uma lei da Física trata-se de uma lei do Universo;
logo uma lei da vida, que atinge não apenas coisas e
objetos, mas os relacionamentos e define o destino
próximo de cada pessoa. Como uma sábia e amorosa
bordadeira, o Universo tece a teia da vida de todos
nós usando as leis como trama para que não reste
nenhum fio solto”. Fiquei alguns instantes refletindo
sobre aquelas palavras até que me dei por vencido
e confessei que não tinha entendido todo o sentido
do raciocínio.
66
O sapateiro bebeu um gole do tinto e disse:
“Há uma famosa frase, dita por um anjo, que define
bem o assunto. Ele ensinou que ‘a semeadura é livre, a
colheita é obrigatória’. Ou seja, temos a liberdade e o
poder das escolhas, no entanto, as consequências serão
na perfeita medida das causas que as provocaram.
Não há como impedir”.
67
herdeiro de si próprio, timoneiro do seu destino. Todos
os conflitos, problemas de qualquer ordem ou relações
tumultuadas são resultantes de escolhas equivocadas
em situações pretéritas. Significa, grosso modo, que
a lição ainda não foi aprendida e existe algo a ser
modificado em si mesmo. A questão se torna recorrente
quando por orgulho, vaidade, comodidade ou teimosia
nos negamos a avançar ou insistimos em transferir aos
outros a responsabilidade pela transformação interna
que nos cabe”.
68
de alterar o próprio destino na medida em que estiver
disposto a modificar os interesses e padrões de
comportamento”.
69
a igualdade e a equidade, ao seu tempo e com fina
sabedoria, entre todos os acontecimentos e relações,
nos levando ao entendimento da dificílima virtude da
justiça. Ser verdadeiramente justo não é fácil”.
70
apenas não entendem onde ela habita e, assim, teimam
em fazer escolhas que os distanciam dela, insistindo
em padrões conflituosos, distantes das melhores
virtudes”. Deu uma pequena pausa e finalizou de
maneira poética: “Desde a antiguidade os marinheiros
navegam tendo as constelações como mapa e bússola.
Todos desejam um porto de águas tranquilas para
atracar, mas acabam a mercê das tempestades por não
lembrarem que as estrelas existem para guiá-los ao
melhor destino”.
71
A PORTA ESTREITA
T
O Sermão da Montanha é o eixo central dos
estudos da Ordem, todos os demais textos, oriundos das
mais diversas tradições filosóficas e metafísicas, são
variantes a aprofundar e colorir esse valioso pensamento.
Eu estava sentado em uma confortável poltrona na
biblioteca do mosteiro, com o olhar perdido na bela
paisagem oferecida por suas janelas, refletindo sobre as
palavras proferidas nas colinas de Kurun Hattin, quando
fui surpreendido pelo Velho, como carinhosamente
chamávamos o monge mais antigo da Ordem. Ele trouxe
da cantina duas canecas com café, colocou uma delas
na pequena mesa ao meu lado e foi escolher um livro
nas prateleiras. Sorri em agradecimento à gentileza
e o convidei para sentar na poltrona à minha frente.
Aproveitaria que estávamos a sós para conversarmos
um pouco. Ele aceitou, se acomodou, bebeu um gole de
café e quis saber o que eu estava lendo. Respondi que
lia esse precioso legado filosófico, mais precisamente
a parte em que falava sobre a porta estreita. “Entrai
pela porta estreita, porque larga é a porta e espaçosa
é a estrada que conduz à perdição e numerosos são os
que por aí entram. Estreita, porém, é a porta e difícil
o caminho da vida e raro são os que o encontram”, li o
pequeníssimo trecho. Comentei que o texto poderia ser
um pouco mais extenso para fornecer mais detalhes e
explicações quanto ao seu conteúdo. O Velho balançou
a cabeça e disse: “O texto está perfeito em sua concisão.
72
Lembre que ele foi elaborado não para alguns, mas
para todos. É preciso que, ao seu modo, atinja os mais
diversos níveis de consciência. Cada qual encontrará
a profundidade a que estiver disposto a mergulhar.
O Sermão da Montanha é o Código do Caminho, porém
respeito quem o veja como uma grande bobagem”.
73
Eu quis saber como aplicar aquelas palavras
ao cotidiano. O monge explicou: “Fazemos inúmeras
escolhas todos os dias, desde as mais corriqueiras como,
por exemplo, se vamos sorrir para o vizinho ou virar o
rosto fingindo que não o vimos, até as mais complexas
como mudar de emprego, de país ou de estilo de vida.
A cada escolha ouviremos as orientações do ego ou os
conselhos da alma. Assim, a todo momento estamos
definindo a porta pela qual entraremos”.
74
respeito e compaixão. Há uma enorme dificuldade em
dizer para si mesmo que ‘o rei está nu’; ou seja, que os
valores que o orientaram até aqui são ilusórios e que a
verdade é diferente: a riqueza, o poder e a magia estão
dentro, não fora de si. Devemos privilegiar a bagagem
que cabe no coração, como a alegria, a dignidade, a
liberdade e a paz”.
75
sempre oferece uma linha de raciocínio tortuosa
para justificar os desejos do ego em detrimento das
necessidades da alma. Este é o trabalho incansável
das nossas sombras: os inúmeros truques para nos iludir
quanto à verdade e nos afastar da luz. Então, brigamos
e sofremos. No entanto, temos o poder e a magia da
vida”. Interrompi para dizer que não acreditava em
magos e magias. O Velho deu uma gostosa gargalhada e
disse: “Todos somos feiticeiros; magia é transformação.
Alteramos a realidade na medida em que aceitamos as
transformações internas orientadas pelos valores da luz
que nos habita”.
76
comando, sempre dispostas a iniciar a jornada de cura e
libertação. Os exemplos são inúmeros:
77
O mundo precisa de mais diplomacia e menos
julgamentos. Ao se deparar com um conflito entre
terceiros dispa-se do tentador papel de juiz; aceite a
difícil incumbência do diplomata a costurar a paz e o
entendimento. Não raro, quando duas pessoas discutem
ambas têm razão, cada qual dentro do seu nível de
consciência, capacidade amorosa e esfera de interesses
e dificuldades;
78
de evolução”. Comentei que era tudo muito difícil.
O Velho rebateu de pronto: “Por isso a porta é estreita e
o a estrada exige esforço”.
79
“...
Onde houver erro, que eu leve a verdade
Onde houver desespero, que eu leve a esperança
Onde houver tristeza, que eu leve a alegria
Onde houver trevas, que eu leve a luz.
...”.
80
ASSIM NASCEM AS ASAS
T
Chovia muito e eu apressei o passo. Me alegrei
assim que dobrei a esquina da rua estreita e sinuosa
onde se localiza a oficina de Loureiro, o sapateiro
amante dos livros e dos vinhos. Vi a sua clássica
bicicleta encostada ao poste. Ao entrar na loja uma
profusão de perfumes, cheiros de couro e café fresco
se misturavam ao de flores. Foi uma grata surpresa
encontrar Valentina sentada ao balcão. Ela tinha
acabado de chegar. Embora também fosse monja da
Ordem, nem sempre nos encontrávamos no mosteiro,
uma vez que o compromisso assumido por todos
os integrantes da irmandade é o de passar um mês
ao ano para estudos, debates e reflexão. Nossas
datas andaram desencontradas nos últimos tempos.
Valentina tinha a poesia como arte, a engenharia
como ofício. Eu a considerava uma poetisa singular,
expoente da sua geração. Fui recebido com alegria
por ambos. Logo estava sentado com uma caneca
fumegante à minha frente. Perguntei pelo próximo
livro e ela contou que terminava uma coletânea de
poemas sobre o amor. Falou que pensava em dividir
a obra em duas partes; em uma abordaria as mágoas
provocadas pelo amor, enquanto a outra mostraria o
poder encantador do amor. Comentei que a dor era a
parte podre do amor. Ela concordou, quando fomos
interrompidos pelo sapateiro: “Vocês entendem muito
pouco sobre o amor”.
81
A poetisa sustentou que toda relação
afetiva provoca decepções e frustrações, não apenas
em função das possibilidades existentes e mal
aproveitadas, mas também do amor oferecido e nem
sempre correspondido. Acrescentou que essa era a
face dramática do amor. Loureiro balançou a cabeça e
disse: “Para começar é fundamental que se estabeleça
a diferença entre paixão e amor. Há confusão
quanto a esses sentimentos, embora eles sejam bem
diferentes, tanto no trato consigo mesmo quanto em
relação aos outros”. Valentina pediu para ele explicar
melhor e o sapateiro mostrou a gentileza que lhe era
característica: “A paixão é a mola propulsora do ego;
o amor movimenta a alma. A plenitude se revela no
instante em que o ego também passa a se encantar pelo
amor em detrimento da paixão, em passo definitivo de
unificação e evolução do ser”.
82
‘Tenho direito de ser feliz’. Sem dúvida que tem, mas
por não saber como construir ou encontrar esse estado
de plenitude em si mesmo, vai buscar na vida do outro,
no atalho cômodo da transferência de responsabilidade.
‘Serei feliz ao ter essa pessoa ao meu lado’, estabelece
a sentença. Nesse exato momento você abdica do poder
sobre a própria vida e o entrega para o outro, pois as
suas alegrias e tristezas passam a variar de acordo com
as escolhas alheias. A dependência se torna absoluta
e o sofrimento inevitável. A paixão nos faz crer que
a felicidade é um banquete obrigatório oferecido pelo
outro, como desculpa pela própria recusa em entrar na
cozinha, elaborar a receita pessoal com os ingredientes
inerentes a cada um e disponíveis a todos. Sem
esquecer que ninguém consegue suportar o fardo de
fazer alguém feliz todos os dias. Assim, como fogos de
artifício, a paixão surge, faz barulho, tem brilho e logo
depois do show vai embora”.
83
e falou: “Eis a questão. Desejamos ser correspondidos
na medida daquilo que acreditamos oferecer ou
merecer. Isto é paixão, não é amor. É o ego exigindo
atitudes onde não deve, se intrometendo na consciência
dos outros; são as suas sombras transferindo ao mundo
a responsabilidade pela própria alegria e bem-estar”.
Bebeu um gole de café antes de prosseguir: “O amor
é o inverso da equação, é a superação do sofrimento.
O amor, por ser amor, traz em si virtudes essenciais: a
sabedoria de entender que cada qual é responsável pela
própria felicidade; a compaixão para não determinar
a carga de afeto que desejamos, pois não se pode
exigir o que o outro não possui; a humildade se faz
indispensável por compreender que não é justo esperar
pela perfeição alheia uma vez que não a temos para
oferecer; a sensatez de aceitar que não podemos impor
os nossos desejos à vontade dos outros e também não
somos prioridade na vida de ninguém”.
84
O amor é a única ponte entre o deserto e as Terras
Altas. Viver o amor é fazer a travessia”.
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é capaz de florescer sob as mais terríveis tempestades.
Entretanto, não germina em solo adubado por interesses
estranhos às virtudes essenciais”.
86
irá nos completar é uma enorme sombra e raiz de muita
dor. Por outro lado, quando entendemos que o amor
se torna perfeito no simples ato de doar o melhor de
si sem pedir absolutamente nada em troca, ao exercitar
sem qualquer contrapartida as virtudes já consolidadas,
nos libertamos da terrível prisão sem grades chamada
dependência emocional. Assim nascem as asas”.
87
ao meu dispor,
brigo, brigo e brigo.
Sofro, sinto dor”.
88
O ESCONDERIJO DO MAL
T
Canção Estrelada, o xamã que tinha o dom de
transmitir a sabedoria ancestral do seu povo através
das músicas e das histórias que contava, acendeu
o fornilho de pedra vermelha do seu indefectível
cachimbo e deu uma baforada. Era um final de tarde
de outono, estávamos sentados na varanda da sua casa
e nos cobríamos com mantas coloridas para afastar
o frio típico das montanhas do Arizona nessa época
do ano. Eu tinha acabado de chegar de viagem e a
primeira coisa que o xamã me perguntou, logo após
aos cumprimentos, foi o motivo pelo qual eu “parecia
carregar tanto peso nas costas”. Sim, era verdade,
eu estava mal. Dei um sorriso amarelo como quem
é visto sem as roupas do personagem que criamos
para interpretar quem não somos nos palcos da vida
e declarei que o mundo não era um bom lugar para
se viver. Em seguida narrei alguns problemas que
enfrentava em razão do posicionamento absurdo de
algumas pessoas contrários aos meus. Sentenciei que,
sem dúvida, o planeta é habitado por gente atrasada,
insensível e ruim.
89
de Canção Estrelada. Ele sorriu e narrou a história
compassadamente: “Havia uma aldeia próspera e
tranquila que estava na expectativa de saber qual dos
seus habitantes seria escolhido para preencher uma
vaga no Conselho dos Sábios que governava a tribo.
Já havia tido várias reuniões sem que o Conselho se
definisse pelo novo membro. Até que um dos seus
integrantes mais antigos, o sensato e bondoso feiticeiro
da tribo, teve um sonho no qual o Grande Mistério
avisava que a aldeia estava prestes a ser atacada por
um monstro desconhecido. Alertou que somente
após a captura da fera o Conselho teria condições
de decidir pelo novo membro. Por coincidência,
uma das avós da tribo, uma anciã generosa e muito
querida, teve o mesmo sonho naquela noite. Era o
Grande Mistério confirmando os sinais. Não restou
dúvida que o predador deveria ser caçado. Como era
uma tarefa extremamente perigosa, entenderam que
estaria a cargo de quem se voluntariasse a tamanho
risco. De pronto, um dos guerreiros mais bravos da
tribo, um caçador habilidoso, conhecido por sua
beleza, destreza, coragem e admirado por todos, se
candidatou. Como ninguém conhecia as feições do
monstro, foi preciso que o feiticeiro da tribo, pedisse ao
Grande Mistério que as revelasse através dos sonhos.
Naquela mesma noite o pedido foi atendido e na
manhã seguinte o poderoso xamã descreveu os traços
assustadores da criatura maligna. Disse, também, que
o Grande Mistério antecipara que apenas se o bem
fosse persistente seria capaz de vencer o mal. Diante
da comoção geral o intrépido guerreiro se despediu
da esposa e do filho amados e prometeu à tribo que só
retornaria trazendo em sua sacola a cabeça demoníaca
90
do animal desconhecido. Cavalgou por dias sem conta
usando toda a sua enorme habilidade para rastrear o
monstro. Por vezes, parecia chegar bem próximo do
predador, a ponto de quase se encontrarem, mas o
animal parecia escapar por alguma fresta misteriosa
da floresta. Em muitas noites, deitado e aquecido pelo
calor de uma fogueira, sentiu vontade de retornar por
causa da saudade da família e da aldeia, mas lembrava
da promessa que fizera, do compromisso em defender
aqueles que tanto amava. Era um guerreiro e isto o
animava a prosseguir. Até que um dia, com as forças
quase esgotadas, desanimado porque as suas preces
ao Grande Mistério não eram atendidas, corroído
pelo desgaste físico e emocional, desapeou do cavalo
na beira de um enorme lago de águas plácidas,
pois, sentia sede. Quando aproximou o seu rosto no
perfeito espelho d`água, para a sua enorme surpresa,
viu refletida a face do monstro que perseguia”.
91
aldeia com a sua caça, amava a sua esposa e o seu
filho, era leal aos seus amigos. Chegou a pensar
que enlouquecera ao ver a face do monstro em seu
próprio rosto. Resolveu montar acampamento na
beira do lago até que entendesse tudo que acontecia.
Nos primeiros dias foi tomado por um misto de
decepção, desânimo e raiva ao descobrir que não
era exatamente quem sempre se imaginou. Chegou a
cogitar o absurdo suicídio como maneira eficiente de
exterminar com o monstro. Foi demovido da ideia ao
lembrar as palavras do sábio feiticeiro de que, se fosse
persistente, o bem se sobreporia ao mal. Passado o
impacto inicial, percebeu ter criado uma imagem de
si próprio que, se não era verdadeira, também não
era de toda mentirosa. Admitiu mágoas recorrentes,
frustrações ainda não superadas, escamoteamentos
da realidade na tentativa de fugir ao enfrentamento
com as suas emoções conflitantes, logo ele, um
guerreiro famoso pela bravura. Reconheceu que,
muitas vezes, confundiu o sentimento de justiça com
o desejo de vingança. Percebeu que as essenciais
virtudes da compaixão e da humildade eram anuladas
pelas sombras da vaidade e do orgulho, fazendo com
que se irritasse com facilidade e culpasse os outros
por suas decepções. Não raro usava a impetuosidade
sob o manto da coragem. Lembrou de momentos em
que usou inadequadamente a sua força de guerreiro
para prevalecer em pequenas questões com os mais
fracos. Entendeu também que, embora a coragem
fosse uma nobre virtude, parte dessa bravura servia
para desviar a sua própria atenção, e a de todos,
quanto às fragilidades que sangravam no seu íntimo,
justo aquelas que ele não tinha coragem em revelar
92
e enfrentar. Aos poucos entendeu a necessidade de
inverter o olhar que tinha para consigo, de encontrar
o que havia perdido dentro, ao invés de apenas lutar
contra o que existia fora; de aprender que o mundo só
desaba quando a alma se desequilibra. Diante de tanta
desarmonia a sua famosa coragem poderia ser mal
direcionada e prejudicar, além de si mesmo, toda a
aldeia. Era preciso aceitar e abraçar as suas sombras; o
lado mais obscuro, justo aquele cuja existência nunca
quis admitir. Somente assim poderia tirar da caverna
escura a sua outra face para oferecer a claridade e a
beleza da luz. Era oportunidade de ser pleno; ao fazer
com que o ego se encantasse pelas virtudes da alma,
uniria todas as partes de si mesmo, se transformando
em um indivíduo mais forte, consciente e amoroso”.
93
pois todo o mal tem a sua origem na falta de amor.
A cura se traduz em liberdade; nunca pela morte do
carcereiro, mas por sua transformação”.
94
volta do guerreiro se modificou para um ambiente de
grande tensão; afinal, havia um compromisso a ser
honrado. Alguns segundos de silêncio pareceram
demorar uma eternidade. Diante do questionamento
do sábio feiticeiro, todos os olhares se voltaram
para o guerreiro, que manteve as feições serenas e
inabaláveis; aquele corpo alquebrado e faminto,
que nem de longe lembrava o homem musculoso de
outrora, transmitia uma força descomunal. O guerreiro
abriu a sacola e retirou o totem que esculpira em seus
últimos dias no lago. Era a estátua do seu próprio
rosto modelada à perfeição’”.
95
decisão’. Naquela aldeia a pena pela palavra desonrada
era o banimento. Houve um grande murmurinho.
Em seguida, o feiticeiro esticou o braço, entregou
ao guerreiro o bastão sagrado do Conselho dos
Sábios e disse: ‘Você se transformou no guerreiro
de si mesmo, no herói da própria história e venceu a
grande batalha. Assim nascem os sábios. Você está
pronto. Não queremos perder a sua melhor parte.
Seja bem-vindo!’”.
96
AS MARAVILHAS DA DÚVIDA
T
“Qual é a coisa certa?”, me perguntou o Velho,
como carinhosamente chamávamos o monge mais
antigo da Ordem, como fazia Sócrates, o filósofo grego,
que devolvia uma pergunta com outra como método de
raciocínio. Estávamos sentados na cantina do mosteiro
diante de uma caneca de café e um pedaço de bolo
de aveia. Desde sempre eu me sentia desconfortável
com uma série de dilemas do cotidiano. De questões
políticas e sociais que, de alguma maneira, atingem a
todos até incertezas quanto à minha vida pessoal, como
trocar de namorada, trabalho, cidade ou estilo de vida.
Argumentei que a todo instante nos deparamos com
dúvidas que nos incomodam em diferentes escalas,
algumas são banais, outras muito sérias. O ruim é que
as dúvidas causam enorme desconforto. Para piorar,
em face das minhas incertezas eu me deparava com
pessoas de opiniões divergentes, contra ou a favor,
ambas convictas de suas posições e apresentando fortes
argumentos. Falei que queria me livrar do incômodo da
dúvida e saber sempre a coisa certa a fazer. Então, veio a
pergunta do Velho sobre qual era a coisa certa. Respondi
que se eu perguntei era porque não sabia e precisava
de uma resposta. O monge bebeu um gole de café e
disse: “A minha resposta desenha a minha verdade, não
necessariamente a sua. É necessário que você se esforce
para encontrar aquela que irá lhe completar, por isto o
desconforto. Bendita seja a dúvida!”.
97
Irritado, falei que ele não estava me ajudando.
O monge manteve o tom tranquilo da voz para me
trazer de volta à agradável ambiência do mosteiro:
“As dúvidas trazem os questionamentos; estes se
aprofundam e nos levam a procurar a parte que nos
falta; apenas no exercício desta busca encontraremos a
verdade”. Argumentei que ele estava errado, pois muitas
das verdades que me eram absolutas no passado hoje
já não se sustentam. O Velho sorriu e disse: “Perfeito
e maravilhoso. Tudo muda. Sabe o que isto significa?
Evolução”. Pedi para ele explicar melhor e o monge
foi paciente: “As verdades se modificam à medida
em que alteramos os níveis de consciência e de amor.
O entendimento se transforma com o florescimento
das virtudes no indivíduo. De flor em flor construímos
os jardins da humanidade; de verdade em verdade
encontraremos a Verdade”.
98
em que as pessoas achavam isso normal, entendiam ter
esse direito e que, sim, poderiam ser donas de outras.
Havia escritura de compra e venda e os escravos eram
considerados bens passíveis de herança. Acredite,
embora tortuosos, não lhes faltavam argumentos e
eram acompanhados por muitos que viveram naquele
período. Essa era a verdade de uma parte significativa
da população naquele momento”. Deu uma pequena
pausa para mordiscar um pedaço de bolo e seguiu:
“No compassado processo de evolução da humanidade
foi preciso que alguém levantasse dúvidas sobre
aquelas verdades e direitos; aos poucos outras pessoas
foram aderindo e ampliando os questionamentos,
apresentando a possibilidade da existência de uma
verdade diferente, onde era possível uma coexistência
mais luminosa. Este novo jeito de ser e viver foi se
expandido até que vieram as inevitáveis mudanças”.
99
quanto às dúvidas que eu tinha, todas atuais e
influentes no meu dia a dia. Ele me sugeriu de modo
enigmático: “Pense na árvore e no fruto”. O ponto
de interrogação que surgiu na minha testa fez com
que ele aprofundasse o raciocínio: “Conhecemos
uma árvore pelos seus frutos. Você é a árvore; suas
escolhas são os frutos. Perceba se eles alimentam e
alegram quem está a sua volta; se a cada decisão que
tomar o mundo se aproximará ou se distanciará dos
seus sonhos. Costuma ser um método eficiente para
sanear dúvidas momentâneas, quebrar paradigmas,
inventar novos padrões e iluminar as ruas escuras
pelas quais andamos”.
100
Cada escolha é um fruto e todo fruto é repleto
de sementes. Então, que sejam de Luz!”.
101
Pediu para eu colocar mais café na sua
caneca, bebeu um gole e lembrou: “Por isso a tentativa
de convencer os outros quanto às próprias verdades
é o exercício dos tolos. Nem sempre a pessoa está
pronta para entender a mudança. Cada qual traz uma
bagagem de experiências ainda mal resolvidas que
precisa decodificar, harmonizar e, posteriormente,
extrair as verdades ali contidas. Assim expandimos a
consciência. É preciso respeitar e ter paciência com as
dificuldades pessoais e o tempo que cada um necessita
para completar cada ciclo de conhecimento. Quando
expomos a nossa verdade, não raro, encontramos
no outro um questionamento aquém ou além do
nosso”. Deu uma pausa e concluiu: “Não pense que
pelo simples fato de você se sentir acordado, todos
os demais que não pensam igual a você ainda estão
dormindo; alguns acordaram mais cedo”.
102
os meus passos. Orgulho ou humildade; vaidade
ou simplicidade; egoísmo ou compaixão; desejo ou
necessidade; vingança ou justiça; subterfúgio ou
pureza. Somente o amor me dirá se a verdade que me
aconselha se origina das sombras ou da Luz”.
103
UMA DELICADA VIRTUDE
T
Os fortes ventos do final do outono
anunciavam a chegada do inverno e assolavam a
pequena e charmosa cidade que fica no sopé da
montanha que acolhe o mosteiro. Eu caminhava por
suas ruas sinuosas tentando me proteger do frio,
quando avistei a clássica bicicleta de Loureiro, o
sapateiro amante dos livros e dos vinhos, encostada
no poste em frente ao atelier. Fui recebido com alegria
e uma caneca de café. Sentados ao antigo balcão de
madeira, íamos começar uma conversa vadia quando
um sobrinho do artesão entrou na oficina em busca de
abrigo e prosa. O jovem realizara uma audiência em
seu tumultuado processo de divórcio no singelo fórum
da cidade e o trem que o levaria de volta para a cidade,
onde agora morava, apenas partiria ao anoitecer.
Ele estava bastante chateado e logo começou a
desabafar com o tio sobre a enorme aporrinhação que
o divórcio lhe causava. Tudo por causa da separação de
bens. Explicou que a ex-mulher se negava a reconhecer
os seus direitos e a entregar o que era seu por justiça.
Disse que a lei era clara e definia o que pertencia a cada
um. O artesão interrompeu com um sutil comentário:
“A lei pode ser clara, a justiça nem tanto”.
104
gesto que fazia quando sabia que a conversa não seria
fácil e disse: “As leis surgem da necessidade de um
convívio harmonioso em sociedade, no qual é preciso
estabelecer regras para definir interesses, dirimir
conflitos, equalizar forças e manter a ordem social.
A paz é uma questão interna, de cunho espiritual que
pouco ou nada tem a ver com as leis. Lei e justiça, não
raro, estão distantes entre si. A História está repleta
de exemplos”.
105
Egoísmo? O rapaz estranhou. O sapateiro
explicou: “Desde os seus primórdios as leis são
utilizadas para manter interesses nem sempre
legítimos, sustentar privilégios e resguardar ‘o que
é meu’. É muito comum usarmos inadequadamente
a lei para disfarçar o egoísmo com as máscaras do
Direito. Todas as vezes que escuto alguém falando
que ‘quero o que é meu por direito’, o sinal de alerta
apita e me pergunto: será esse direito, regularmente
garantido por lei, uma medida justa? Tal lei carrega
consigo o vício do privilégio ou a beleza da justiça?
São perguntas que não podem se calar na consciência
de um andarilho”. Tomou um gole de café e comentou:
“Pouquíssimos são os que conseguem delinear a
diferença entre o ranço das vantagens e o perfume
do merecimento quando possuem algum interesse em
jogo. Onde há privilégios não existe justiça”.
106
quanto aos novos sabores; a pureza para que não
haja intenções ocultas na receita; a sabedoria para
não deixar que as experiências desastrosas do
passado turvem o paladar; a generosidade como o
tempero essencial a todos os pratos; o bom-senso
para não servir nem mais nem menos, mas a exata
porção; além do amor, é claro, sem o qual a vingança
azedará a justiça”.
107
econômico em jogo o ego primitivo se agarra em leis
que porventura sustentem o seu desejo ou dispara
um curioso mecanismo pelo qual monta raciocínios
tortuosos como peças de um absurdo quebra-cabeça
na tentativa de justificar o injustificável”.
108
O rapaz, claramente incomodado, não parava
de se mexer na cadeira. O artesão seguiu o raciocínio:
“O florescimento da virtude se apresenta no momento
em que somos capazes de abrir mão de algo que nos
pertença por direito, mas nos é ilegítimo por justiça.
Se recusar a exercer determinado privilégio, mesmo
que legal, ou abdicar de alguma coisa quando todas
as leis ofereçam a garantia para mantê-lo sob o nosso
domínio, demonstra a capacidade em ouvir a doce
flauta da justiça em detrimento do rufar ensurdecedor
dos tambores do egoísmo”. Tornou a bebericar o café
e complementou: “O contrário nem sempre se aplica:
exigir que alguém abdique de algum direito em nosso
favor pode ser atitude simplória e tendenciosa, na qual
não residirá qualquer virtude. Lutar por um direito
nem sempre significa uma batalha justa. Há que se
ficar atento”. Olhou nos olhos do rapaz e segredou:
“É preciso se conhecer para evoluir; é preciso ir fundo
em si mesmo para ser justo ou não haverá libertação”.
109
chegaremos a um ponto de mutação no qual as leis
comuns deixarão de existir por pura desnecessidade”.
Eu quis saber o que era um ponto de mutação.
A resposta do artesão foi concisa: “Tudo que existe no
universo se traduz em energias que se expandem até
a fronteira do próprio limite, quando se transmutam
em si mesmas por outras”. Mesmo sem ter certeza se
tinha entendido, perguntei o quão distante estávamos
do tal ponto de mutação quanto à necessidade das
leis. O sapateiro explicou de maneira pedagógica:
“Ao entrar na minha oficina você não verá uma placa
dizendo ‘é proibido cuspir no chão’, pelo simples fato
de ser impensável que alguém faça isto. Entretanto,
enquanto precisarmos de uma lei declarando que
‘todos são iguais perante a lei’ é porque noções
elementares de justiça ainda não são compreendidas
pela grande maioria das pessoas”. Arqueou os lábios
em leve sorriso e disse: “Mas não se preocupe, de um
jeito ou outro, estamos todos condenados a completar
a viagem rumo à perfeição. Cada qual ao seu passo”.
110
ENCONTRO MARCADO
T
O Velho, como carinhosamente chamávamos
o monge mais antigo da Ordem, me repreendeu
apenas com o olhar, sem dizer palavra. Eu estava
no jardim interno do mosteiro falando ao celular,
quando apenas é permitido usá-lo à noite, no quarto,
para não desperdiçarmos o melhor da vivência
oferecida no mosteiro. A OEMM – Ordem Esotérica
dos Monges da Montanha – é uma irmandade secular
dedicada ao estudo da filosofia e da metafísica.
Os monges e aprendizes, como são denominados os
seus membros, têm o compromisso de passar ao menos
um mês por ano no mosteiro para estudos, debates
e reflexões. Após, retornam às suas casas, famílias,
trabalhos e atividades rotineiras tentando aplicar
o aprendizado assimilado. O conhecimento apenas
se transforma em sabedoria quando utilizado em
nossos relacionamentos no dia a dia; caso contrário,
não passará de uma ferramenta enferrujada por
inutilidade. Encerrei a ligação e fui me desculpar com
o monge. Expliquei que estava prestes a fechar um
importante contrato para a minha agência e precisava
tomar algumas precauções. Confessei a tensão que
me envolvia, pois temia ser passado para trás, como
ocorrera em outra ocasião, embora envolvessem
diferentes pessoas. O Velho apenas ouviu as minhas
explicações e nada falou.
111
Como se não bastasse, eu andava disperso
naqueles dias. Outro motivo de preocupação era o
ciúme que sentia da minha nova namorada. Ela era
uma atriz de teatro e estava em cartaz com uma peça
de grande sucesso. Muitas pessoas a procuravam
para cumprimentar e conversar, fato que me causava
insegurança, agravada pela sua beleza, simpatia e
talento. Contei tudo isso ao Velho quando fui convidado
para uma conversa na varanda do mosteiro, emoldurada
pelas belas montanhas que o acolhem. A minha falta de
concentração acabaria por desperdiçar a estadia daquele
ano, caso eu não revertesse a situação. Acabei por
tornar ao assunto da ligação do dia anterior na tentativa
de justificar o distanciamento. O Velho ouviu todas as
minhas queixas com paciência e, ao final, citou uma
passagem do Sermão da Montanha: “Bem-aventurados
os puros de coração, porque verão a face de Deus”. Em
seguida comentou: “Percebe que a ausência de uma
única virtude, no caso me refiro à pureza, tem o poder
de anular todas as demais virtudes e furtar a sua paz?”.
112
ou no afeto. O monge arqueou os lábios em leve sorriso
e disparou: “Paciência e compaixão com aqueles que
desperdiçaram a oportunidade em conviver com o
melhor que há em mim. Se mesmo assim eu tivesse
dificuldade em harmonizar os sentimentos, me
esforçaria para que a humildade despontasse para me
lembrar que não posso exigir dos outros a perfeição
que não tenho. Então, seguiria em paz”. Deu uma pausa
e falou: “A desconfiança impede que se veja a beleza
do mundo, pois muito além das lindas paisagens, ela
está dentro das pessoas”. Deu uma breve pausa e disse:
“Não esqueça que elas podem estar sendo sinceras
e honestas contigo; caso tenha certeza do contrário,
gire nos calcanhares e siga o seu caminho com leveza
e sem dor”.
113
tristeza pela sabedoria e agradeço por ‘estar do lado
de cá”. Me olhou nos olhos e concluiu: “Claro que
devemos estar atentos para evitar o mal e estancá-lo
com a firmeza necessária quando ele se apresentar.
Mas presumir a maldade é como fechar as cortinas
para impedir a entrada da luz. Não raro nos perdemos
quando medimos os outros com a nossa régua,
envolvendo as intenções alheias com a maldade que
nos habita. Por outro lado, devemos lembrar que cada
pessoa é única e não repetirá necessariamente o ato
equivocado de terceiros ou mesmo equívocos que ela
mesma cometeu no passado. Todos mudam e precisam
de novas chances. O medo pode nos fazer agir como
ervas daninhas nos jardins da humanidade”. Sustentei
que algumas pessoas vivem a enganar os outros.
O Velho concordou: “Sim, se precavenha delas, mas
não se contamine com elas. Não tenho domínio sobre
os outros, não posso controlar as suas escolhas,
apenas tenho total poder sobre mim mesmo, logo,
não vou negar as virtudes do mundo porque alguns,
ou mesmo muitos, não a possuem. É impossível ser
feliz sem confiar. Em si e no outro. Ou o dia não
amanhecerá”.
114
que eu respondesse, emendou outra pergunta: “Por que
está tão preocupado com o negócio que está prestes
a fechar?”. Expliquei que vinha me preparando há
tempos para esse momento e, se concretizado, elevaria
a minha agência para um patamar de sonhos. O Velho
abriu os braços e falou: “Entende que é justamente
a proximidade com a felicidade que tem motivado a
sua tormenta? Concorda que, a princípio, não há nada
de errado e que o equívoco pode estar apenas em seu
olhar? Você sofre por antecipar uma possibilidade que
talvez nunca aconteça”.
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o condicionamento ancestral em sentir medo de tudo
aquilo que não conseguimos dominar. Isto precisa ser
superado. A recusa em aceitar a liberdade dos outros
aprisiona e faz sofrer. Temos dificuldade em entender
que as únicas escolhas que podem nos prejudicar são
somente as nossas e de mais ninguém. Cada qual é
responsável por si e, por consequência, pela própria
felicidade. Ajudamos a todos sempre que necessário,
mas não vivemos a vida de ninguém. Cada um seguirá
ao seu passo na medida do esforço em aprender,
transformar e compartilhar. Tudo sem culpa nem peso.
Enquanto for bom e agradável andaremos juntos, caso
contrário cada qual em seu rumo ao encontro das
pessoas com as quais haja afinidades nesse momento da
existência. Tudo muda; voltaremos a nos encontrar mais
adiante, na certeza da união promovida pela força do
amor, ao perfeito encaixe das partes que compõe o todo
no aperfeiçoamento da obra”.
116
de que é hora de rever conceitos e padrões. Ao invés de
se corroer em lamentos e dor, aproveite. O caos costuma
ser um valioso impulso às grandes mudanças. Isto torna
a decepção libertadora!”.
117
Deu uma pausa e finalizou: “Para ver a face de Deus é
indispensável encontrá-lo onde Ele o aguarda: dentro
de você. Somente assim perceberá a presença Dele em
todas as coisas e pessoas”.
118
PEQUENAS GRANDES COISAS
T
Acordei antes do sol e fui até a varanda da
casa de Canção Estrelada, o xamã que tinha o dom
de semear a sabedoria do seu povo através da palavra
e da música, onde eu estava hospedado. Ele estava
sentado em uma cadeira de balanço e tinha os olhos
fixos no Leste, “a casa da águia”, como costumava
falar, à espera do amanhecer. Me serviu uma xícara
de café e continuou a colocar fumo no fornilho de
pedra vermelha do seu indefectível cachimbo. Baforou
algumas vezes e, em seguida, pegou o seu tambor de
duas faces para entoar uma sentida canção no dialeto
nativo que, em tradução não-literal, significa “Os ciclos
da vida”, na qual agradece ao Grande Espírito as
infinitas oportunidades oferecidas a cada dia para
se renovar e prosseguir na Longa Estrada Dourada.
Não muito tempo depois, ainda envolvidos em nossas
preces e reflexões, fomos interrompidos pela irmã do
xamã, acompanhada por seu filho caçula, que acabara
de entrar na vida adulta. Ela veio pedir que o irmão
aconselhasse o jovem, que embora muito inteligente,
andava desinteressado pelos afazeres simples do
cotidiano por se considerar predestinado a realizar
algo grandioso. Isto também o tornara relapso no trato
com os outros, pois, no seu entendimento, as pessoas
não eram capazes de compreender a sua enorme
capacidade e o seu brilhante destino. Canção Estrelada
apenas fechou os olhos e balançou de leve a cabeça
119
como maneira de dizer que entendia e estava disposto
a atender ao pedido. A irmã sorriu em agradecimento
e se retirou. Eu quis saber se também deveria sair,
mas ele fez um gesto com a mão de que não era
necessário. O xamã fechou os olhos e se manteve em
silêncio. Impaciente, o jovem não parava de se mexer
na cadeira, até que disse que aquilo era pura perda de
tempo. Canção Estrelada olhou o sobrinho com doçura
e começou a contar uma história:
120
envolvidos em outras atividades de manutenção do
bem-estar da aldeia, as quais considerava serviços
menores. Embora vestisse as roupas confecionadas
pelas artesãs e comesse o pão que ali era fabricado
todos os dias, apenas para ficar com alguns exemplos,
não lhes prestava a merecida importância, pois os tinha
como meros suportes para o grande acontecimento da
sua vida, aquele que o cobriria de glórias”.
121
esfomeado e maltrapilho. Como não podia ir à floresta
colher frutas e caçar para não desguarnecer a aldeia,
passou a se alimentar da captura de pequenos roedores
que porventura atravessassem o perímetro da tribo.
Chegou a cogitar em ir para uma aldeia próxima em
busca de mantimento e roupa, mas se abandonasse
a aldeia seria lembrado como fraco e covarde, não
como o intrépido guerreiro que era. Pensou em fazer
o próprio pão, porém não bastava colher, era preciso
debulhar o trigo, transformar em farinha, preparar a
massa para assar, conhecer a temperatura do forno e o
tempo de cozimento. Ele não sabia como fazer; nunca
se interessara por um serviço tão simples. Cogitou em
pegar o couro de uma barraca para costurar uma nova
roupa, contudo não dominava o ofício menor do corte e
da costura. As necessidades básicas que não conseguia
manter, somadas a uma espera sem fim, foram pouco
a pouco enfraquecendo o físico e esmorecendo o
emocional do grande guerreiro. O seu espírito, aquele
destinado às grandes façanhas, estava desequilibrado e
debilitado pela falta das pequenas coisas, tão simples,
corriqueiras e insignificantes. Enfraquecido, nos
últimos dias se limitou a ficar deitado, com todas as
armas ao seu lado, observando o portão de entrada a
espera do violento invasor. Até que chegou o inverno;
o frio agravou ainda mais a situação e até os pequenos
roedores sumiram. O último animal que viu antes de
dormir naquela noite foi um corvo, o mensageiro das
dimensões, pousado sobre o totem da aldeia. Sentiu
um desagradável frio na espinha”.
122
chamado para o aguardado combate. Para a sua enorme
surpresa, o invasor era um pequeno adolescente,
quase um menino, que mal alcançara os doze anos de
idade, vestido e pintado para guerra. O guerreiro e
guardião da tribo sorriu e chegou a achar engraçado
que o temível malfeitor não fosse mais do que uma
criança fantasiada. Tinha habilidade para dominar o
oponente com apenas uma das mãos e tinha a certeza
da brevidade da luta. Contudo, quando tentou se
levantar, faltaram as forças indispensáveis; o corpo
enfraquecido se negava a obedecer ao comando da
mente. Fez um esforço incomensurável para ficar de pé,
como se escalasse uma montanha. Quando conseguiu,
cambaleante, tentou atacar. O adolescente sorriu, fez
uma leve esquiva e o golpe do guerreiro foi ao vento.
As tentativas seguintes foram meras repetições da
mesma cena. Cansado e desequilibrado pelos ataques
infrutíferos, o poderoso guerreiro desabou no chão
sem ao menos ter sido tocado pelo invasor. O pequeno
malfeitor estocou, sem rasgar a pele, e manteve a ponta
da lança fincada no pescoço do guerreiro. A vida
dele estava nas mãos de um adversário improvável
diante de um destino impensável e traiçoeiro. Naquele
instante, como um relâmpago que ilumina todo o céu
em frações de segundo, se deu conta da grandeza das
pequenas coisas, percebeu a importância de cada parte
para a harmonia do todo. Misericordioso, o algoz
disse ao guerreiro que ele podia fazer uma derradeira
oração. Olhou para o céu, murmurou um sincero
pedido de desculpas ao Grande Espírito por ter sido
tão injusto para com toda a sua tribo; pelo olhar turvo
e comportamento equivocado com todos aqueles que
na simplicidade de seus ofícios e artes mantinham o
123
essencial e belo funcionamento da vida. Se tivesse uma
chance, com certeza, faria diferente e melhor. Sentiu
uma desconhecida sensação de paz e fechou os olhos a
espera do golpe final”.
124
à frente do Conselho dos Sábios e é lembrado com
carinho pelas gerações posteriores, mesmo sem nunca
ter travado uma batalha. Ao menos, não da maneira
que imaginava lutar quando ainda jovem”.
125
A espera pelo momento ideal para ser pleno nos faz
perder a chance de viver o dom e o sonho; ao lamentar o
imperfeito amor oferecido pelo mundo desperdiçamos
a oportunidade de torná-lo perfeito em nós”. Olhou nos
meus olhos e segredou: “Não espere que os oceanos
se levantem. A beleza da vida está nos detalhes, nas
quase imperceptíveis transformações oferecidas pelos
dias comuns”.
126
A BARGANHA
T
Era um domingo de primavera, eu e o Velho,
como carinhosamente chamávamos o monge mais
antigo da Ordem, tínhamos ido à pequena e charmosa
cidade que fica ao sopé da montanha que acolhe o
mosteiro para assistir à missa. Não raro, o Velho
era convidado pelo pároco local, seu amigo pessoal,
a falar sobre algum assunto. Perguntei sobre qual
tema dissertaria naquela manhã, ele me respondeu
que ainda não sabia. Como tínhamos chegado cedo,
aguardávamos sentados em um enorme banco de
madeira na praça em frente à igreja aproveitando o
sol que nos aquecia, enquanto as crianças, levadas
pelos pais, corriam em alegre algazarra. Dois homens
pediram licença de maneira educada e dividiram
o banco conosco. Logo, começaram a conversar
entre eles. Percebi que o Velho, disfarçadamente,
prestava atenção à conversa e o repreendi com um
olhar severo. Ele riu com jeito maroto e continuou.
Acabou que também comecei a prestar atenção ao
papo dos dois. Um deles confessou ao outro de que
os negócios não iam bem. Nem de longe andavam
como no passado. Sério, disse que tinha feito uma
aposta na loteria cujo prêmio estava acumulado em
muitos milhões e, se fosse o ganhador, jurou que
adotaria uma criança. Acrescentou que os seus filhos
já estavam encaminhados na vida e talvez fosse a
hora de dar esse passo. No entanto, somente o faria
127
com a devida tranquilidade financeira. O colega
concordou e lembrou dos altos custos em criar uma
criança. Falou que também tinha apostado naquela
extração da loteria. Se o premiado fosse ele, não
chegaria ao ponto da adoção, mas também jurou fazer
um vultuoso aporte econômico em prol de alguma
instituição filantrópica. Logo os sinos começaram a
chamar para a missa e a grande maioria das pessoas
que estavam na praça se dirigiram para a igreja.
128
padroeiro dos matrimônios. “Talvez seja um mau
hábito desde a infância”. Deu uma pausa e perguntou
ao público: “Quem nunca prometeu algo a Deus em
troca de uma nota dez em matemática?”. Mais risos.
129
as adequadas condições para o seu aperfeiçoamento
e evolução nesta existência. A cada operário a exata
ferramenta para construção da obra em sintonia com
as capacidades que já possui e as habilidades que
necessita desenvolver. Por justiça e afinidade, você se
envolverá com as situações, suaves ou rigorosas, de
sombras e de luz, que precisa enfrentar na medida do
próximo nível de entendimento a ser atingido. Como
em uma universidade, ao aluno aplicado as provas
parecem mais fáceis, embora sejam as mesmas para
toda a classe”.
130
“Claro que a vida deseja que você se torne
uma pessoa melhor, que seja mais generoso com o
planeta, com os outros e consigo próprio”. Deu uma
pausa e explicou: “Sim, precisamos aprender a ser
mais carinhosos conosco. É muito comum na busca
pela felicidade nos enganarmos pelo brilho efêmero
e falsas facilidades, que tanto seduzem, ao invés de
escolher em função da verdade e do amor contidos
na essência de todos os atos. Então, nos maltratamos
e sofremos. O viés do ego em detrimento à alma nos
faz sentir abandonados no meio de uma multidão.
É preciso prestar atenção ao que mantém, impulsiona e
ilumina ou, mais do que ninguém, cada qual continuará
a prejudicar a si mesmo”.
131
tivesse sido rigoroso em suas palavras. Olhei para
o padre que sorria satisfeito e, em seguida, assumiu o
ritual da missa. Ao final, veio até nós para agradecer
o discurso do monge; trocaram um sincero abraço e
partimos. Já fora da igreja, em direção a uma cafeteria
próxima, fomos abordados pelos dois homens que
mais cedo dividiram o banco da praça conosco.
De modo rude, perguntaram se o discurso tinha sido
uma indireta, pois lembravam que o monge sentara ao
lado deles. O Velho foi gentil: “Peço desculpas pela
indelicadeza de ter ouvido a conversa, porém, leve em
consideração que a proximidade a tornou inevitável e
acabou me servindo de inspiração. Não foi um recado
para vocês, mas um lembrete a todos, inclusive para
mim. A vida não é um grande balcão de interesses,
mas um sofisticado educandário evolutivo”.
132
oferenda é aceita”. Franziu as sobrancelhas e revelou:
“Aquela que o torna uma pessoa melhor a cada dia, no
aperfeiçoamento do espírito e na libertação do ser: se
transforme no pão que alimenta a humanidade em sua
fome por luz”. Piscou um olho como quem conta um
segredo e finalizou: “Nada mais”.
133
AQUI E AGORA
T
Loureiro, o sapateiro amante dos livros e dos
vinhos, encheu as nossas canecas com café fresco
para iniciarmos uma conversa vadia quando fomos
surpreendidos por Zinedine, um simpático artista
plástico local, que se dedicava a esculpir peças em
bronze. Embora tivesse talento e sensibilidade, a maior
parte das suas obras estavam inacabadas. Ora porque
enquanto esculpia uma peça era tomado por outra ideia,
que considerava melhor, e abandonava a anterior; noutras
vezes largava o trabalho no meio por não o considerar
suficientemente bom. O tempo parecia lhe passar com
rapidez, esgotando a herança deixada pela família. Tinha
grande urgência de que a arte passasse a ser também
um ofício e fonte do seu sustento, fato que o deixava
cada vez mais agoniado. Contou que acabara de chegar
de uma viagem e, embora tivesse sido bem agradável,
confessou que a partir de determinado momento sentiu
saudades de casa. Ocorre que passados alguns dias do
regresso, já tinha sido tomado por uma enorme vontade
em tornar a viajar. Loureiro ofereceu a ele uma xícara
de café e disse: “Viajar pode ter um efeito parecido a
renovar o guarda-roupa da alma ao nos depararmos
com outras culturas: maneiras diferentes de ser na vida
e estar no mundo. Isto amplia as possibilidades e indica
rumos nunca antes imaginados, o que é maravilhoso.
Como somente sentimos saudades do que é bom, revela
que em casa introduzimos ao cotidiano os hábitos que
134
nos agradam e alegram. Se ao estar fora, depois de um
determinado momento, você não sente falta da sua casa
e rotina, revela que há algo de errado em suas escolhas
ou que ainda não sabe onde é a sua casa nem entendeu a
rotina que deve construir para si. A viagem tem o poder
de nos revelar o caminho de casa”, deu uma pequena
pausa antes de concluir: “Em todos os sentidos”.
135
como as águas conduzindo pessoas em suas correntes
e fertilizando as terras por onde passam. Alguns se
comportam como o fogo para destruir as velhas formas
e a forjar o aço de uma nova realidade”. Bebeu um gole
de café e acrescentou: “Não estranhe se ora você for de
um jeito e, em outros momentos, de outro. O importante
é entender que cada qual é único e todos são essenciais;
nisto reside a beleza da vida”.
136
o ego e a alma, tornando ainda mais dolorosa a batalha
do ser dividido. Para esses, o mundo nunca será um bom
lugar para viver, por mais luxuoso que seja o castelo de
cimento e tijolos por eles habitado”.
137
Tornou a beber um gole de café e comentou: “Uma folha
de papel pode servir para embrulhar o pão, escrever
uma poesia, virar um origami ou ser apenas uma folha
de papel. A sua mente poderá levá-lo até a esquina ou a
lugares fantásticos, depende apenas do quanto de você
mesmo for ofertado em cada olhar e gesto”.
138
a vida acontece nos mares da travessia. Desperdiçamos
a fila do ônibus, o supermercado lotado, a criança
chorando, o faminto que pede pão, o amigo problemático,
os parentes encrenqueiros, a difícil e bonita luta pela
sobrevivência, sementes de todas as lições. Afinal, no
desejo pelo paraíso, onde não exista nenhuma dessas
chateações, perdemos a vida na espera da hora ideal
e do lugar perfeito. A luz é um dom latente no ser; a
queremos, mas nem sempre percebemos o véu que
a esconde diante dos nossos olhos. Por ansiar pela
obra pronta esquecemos das ferramentas oferecidas,
da responsabilidade como criaturas e da alegria por
participar da criação”.
139
que ele possa se preencher, expandir até o limite e,
então, transmutar em outra possibilidade nunca antes
imaginada”. Abaixou a cabeça e sussurrou como quem
conta um segredo: “Então, a luz”. Bebeu o último gole
de café e finalizou: “Fora do aqui e agora não existe
vida, apenas um espectro de vida”.
140
OS SERES-PÁSSAROS
T
Encontrei com o Velho, como carinhosamente
chamávamos o monge mais antigo da Ordem, sentado
na agradável varanda do mosteiro com o olhar perdido
nas maravilhosas montanhas dos arredores. Ofereci
uma xícara de café e ele aceitou com um sorriso.
Quando coloquei a caneca na pequena mesa ao seu
lado fui convidado para sentar. Ele quis saber se
algo me preocupava. Neguei. O monge, então, me
perguntou a razão dos meus olhos tristes. Era difícil
esconder os sentimentos da percepção apurada do
Velho. Acomodei-me na poltrona ao lado e contei
que eu tinha começado a namorar uma mulher que
ocupava um cargo importante na empresa com a qual
a minha agência de publicidade tinha assinado um
vultuoso contrato. Tínhamos nos conhecido durante
as reuniões para o fechamento do negócio. O namoro
evoluiu bem até que perdeu o encanto para mim sem
nenhuma razão específica. Ela era uma mulher bonita,
inteligente e meiga. Nossas conversas eram doces como
os seus beijos. No entanto, algo havia esmorecido em
meu coração. Quando encerrei o relacionamento ela
acusou de ter me envolvido por interesse comercial ao
invés de por sincera afeição. Eu estava triste porque
não queria que ela tivesse aquela imagem de mim.
141
O primeiro é a motivação da sua tristeza. Se você foi
sincero com seu coração quando iniciou o namoro
nada há o que fazer, tampouco dar vazão a tristeza.
Se ela tenta, de maneira equivocada, desviar a origem
da própria frustração para não apagar a imagem
idealizada de si mesmo, nada há o que fazer, salvo a
compreensão nascida da sincera compaixão. Espíritos
livres não têm nenhum interesse em controlar ou
dominar qualquer aspecto das ideias, vontades ou
opiniões da vida alheia. Ao serem honestos consigo
mesmo também são com o mundo; ao estarem a
alinhados ao amor estão no passo da luz. Por isso
são livres e possuem uma alegria serena, pois, vivem
em paz”. Bebeu um gole de café e acrescentou:
“No entanto, se não havia pureza em seus sentimentos
é hora de ser humilde, pedir desculpas, assumir o
compromisso consigo próprio de não mais agir assim e
seguir em frente pela oportunidade de fazer diferente
e melhor em uma próxima oportunidade”.
142
virtude primordial”. Bebericou o café e prosseguiu:
“Todavia, não podemos esquecer dos guardiões do
limiar que ficam a espreita, em cada um dos portais,
para impedir a passagem daqueles que ainda não estão
prontos”. Interrompi para dizer que não sabia do que
se tratava. O monge explicou: “Como nas histórias,
todo andarilho é um guerreiro da luz que está em busca
do cálice sagrado. Para atingir o objetivo ele precisa
enfrentar adversários que, ao primeiro olhar, tentarão
impedir a vitória, porém, na verdade, apenas têm a
finalidade de aprimorar e fortalecer as habilidades do
guerreiro. Esta mestria são as virtudes da alma. Todas
estão em semente; muitas vezes, precisam da pressão
exercida pelo solo para que a casca se rompa e possam
florescer para o grande encontro. O encontro consigo
mesmo, pois o cálice sagrado é o seu próprio coração,
onde Deus faz a morada. É a definitiva volta para a casa”.
143
instante que alguém possa furtar o seu. O mundo será
sempre o exato espelho da sua consciência e coração;
toda luz e amor que você é capaz de enxergar no outro
é reflexo das virtudes que já germinaram em você.
Lembre que a batalha mais importante da vida é travada
dentro de si mesmo na luta amorosa para harmonizar os
interesses do ego, o eu-aparência, aos valores da alma,
o eu-essência”.
144
onde ela não exista. A pureza traz em si uma força
incomensurável, pois permite aos puros expor as
suas dificuldades sem que elas sejam sinônimo de
fragilidade. Já não mentem para si mesmo; para a
pureza nada é inconfessável. São aqueles capazes
de olhar no espelho sem estar diante de um enigma,
mas dispostos a enfrentar a própria face, de alma
nua, despidos das fantasias sedutoras oferecidas pelo
ego exacerbado. A pureza não condena as escolhas
alheias, pois, sabe que cada qual está diante das
dificuldades inerentes ao próprio processo evolutivo.
Como as virtudes são complementares, a pureza evita
que a humildade vire uma vaidade; não permite que
a compaixão seja movida por orgulho; impede que a
caridade se torne motivo de ostentação; explica que o
perdão não pode virar objeto de soberba; a vingança
jamais substituirá a justiça; ensina que o amor não
é um balcão de trocas; onde não há amor não existe
luz. A pureza é uma virtude altamente sofisticada pela
extrema simplicidade que oferece”.
145
todas prisões emocionais construídas com as pedras
das mágoas e com a grades dos ressentimentos acabem
se desmanchando no ar. A pureza joga fora o peso
inútil da presunção ou supervalorização da maldade
e oferece a leveza fundamental para quem está pronto
para alçar o voo da liberdade. O ser puro vive pelo bem
e pela luz, sem exigência por nenhum gesto, palavra
ou olhar de outra pessoa. Ninguém precisa concordar,
acompanhar ou pode impedir um espírito livre de
seguir a viagem. Por serem conceituais, as suas asas
não podem ser cortadas pelo aço do mundo; as virtudes
verdadeiramente conquistadas não retroagem nem se
perdem nos trilhos do tempo”.
146
se impõe o domínio das sombras sobre as escolhas do
indivíduo devido à sua falta de clareza. Ao contrário
do que muitos imaginam, a maldade é ingênua por não
ser capaz de ver a beleza e o poder da luz. A pureza
escancara os porões escuros do ser para que sejam
iluminados e transmutados em aconchegantes quartos
para se viver. Tolo é quem vive a procurar o mal ao
invés de buscar o bem. Tolo é quem vê o mal ou o
presume onde não existe. Ingênuo é quem ainda não
entendeu como o amor pode transformar a vida e o
mundo; e o amor precisa da pureza para que possa se
apresentar por inteiro”.
147
A BELEZA DE SER ÚNICO
T
Canção Estrelada, o xamã que tinha dom de
perpetuar a filosofia do seu povo através da palavra,
cantada ou não, rufava o seu tambor de duas faces em
melodia sentida enquanto o dia amanhecia. A música
era uma oração de comunhão pela alegria de nos
sentirmos parte essencial do universo e, em resposta,
todo esse poder vibrava em nosso ser. Apagamos a
fogueira e descemos a montanha. Quando chegamos
à casa do xamã, um dos habitantes da aldeia o
aguardava para pedir ajuda. Ele estava muito triste
com o seu filho, sempre inseguro e medroso, bem
diferente dos outros garotos da sua idade e do próprio
pai. Lamentou que o menino tivesse nascido covarde.
Canção Estrelada o convidou para sentar na varanda,
nos serviu café, acendeu, sem pressa, o seu inseparável
cachimbo com fornilho de pedra vermelha enquanto
ouvia o pai explicar que o filho estava com treze anos
e em breve teriam na aldeia o ritual de passagem para
a vida adulta, o Cerimonial de Iniciação, cuja prova
principal eram os combates corpo a corpo entre os
garotos, como demonstrações de coragem e habilidade.
O xamã baforou o cachimbo e disse: “Ninguém nasce
fraco; ser forte é uma escolha permitida a todos.
No entanto, conhecer a própria força é a raiz da magia
pessoal; perceber a dimensão e o poder do universo
em si e diante de si alimenta a coragem, ensina sobre a
humildade e transforma o ser. Traga-o aqui amanhã”.
148
No dia seguinte, logo cedo, o pai o levou.
Era uma belo e saudável rapaz, porém os seus olhos
fugiam para não encontrar outros olhares. Lee era o
seu nome. O pai agradeceu e se foi. Canção Estrelada
o recebeu com seu jeito afetuoso e nos convidou para
um passeio. Era um dia quente de verão e fomos até
um grande lago próximo à aldeia. Algumas crianças
brincavam e nadavam no local. O xamã disse para
ele ficar à vontade e entrar na água, caso quisesse.
Lee disse que tinha vontade, porém, nunca aprendera
a nadar, pois tinha medo de se afogar. Canção
Estrelada não insistiu, mas argumentou: “Justo o
medo de não aprender a nadar torna a possibilidade
de afogamento maior”.
149
tinha ritmo e o pequeno ritual durou horas. Ao final,
confessou que adorava música e que costumava se
esconder dos outros meninos enquanto eles treinavam
lutas para, sozinho, tocar e cantar. Sentia-se deslocado
por não compartilhar dos mesmos gostos dos outros
rapazes da sua idade. Tirou uma pequena gaita do
bolso e entoou várias canções, algumas conhecidas,
outras de sua autoria.
150
sorriu com bondade e disse: “O medo se espraiou e
furtou o sal da vida pelo fato de você não perceber
a beleza de ser único. Ninguém é igual a ninguém;
aceitar as diferenças é entender a si mesmo, ampliar
as possibilidades e expandir o universo”. Apontou
para céu e falou: “Não há duas estrelas iguais no
firmamento. Assim como cada pessoa possui a sua
própria manifestação de magia. Somos protagonistas
da nossa história e coadjuvantes das narrativas
alheias. Cada um com o seu dom e o seu jeito, uma
beleza única e essencial, como partes distintas e
indispensáveis que, quando devidamente encaixadas,
irão compor o todo”. O rapaz falou que compreendia
o que o xamã dizia, porém, em seu íntimo sentia que
faltava algo capaz de transformar aquelas palavras
em atitude, como uma peça no quebra-cabeça.
Lee insistiu em saber qual era. Canção Estrelada
foi monossilábico: “Fé”.
151
Os olhos de Lee brilhavam mais do que a
fogueira. Ele perguntou que poderes eram esses.
O xamã respondeu de pronto: “Toda a virtude se
traduz em luz. O exercício delas transforma, liberta
e pacifica o ser. Isto é magia”. Deu uma pequena
pausa, olhou nos olhos do jovem e disse: “Magia é
manifestação do poder pessoal, do despertar da força
divina adormecida no seu ser. Quem a movimenta é a
fé. Apenas ela”.
152
as tornam turvas impedindo de espelhar a essência
vital que deve orientar a evolução. É preciso deixar as
águas tranquilas para colocar a mente e o coração em
diálogo com o próprio espírito ou não haverá avanço e
plenitude. Sem ela não existirá a verdadeira liberdade
nem a conquista da paz. Não haverá encanto por si,
pelo mundo e pela vida. Se faz necessário que a fé
consiga manifestar a magia pessoal”.
153
corpo a corpo. Aos pares, com os dorsos nus pintados
com motivos de guerra, os jovens se enfrentavam sob
os aplausos de toda a aldeia. Era impossível não notar
traços de angústia e ansiedade no rosto do pai de Lee.
Até que o menino foi convocado para a pequena arena.
Ao contrário do que eu imaginava, o rapaz se apresentou
com porte austero, olhar confiante e uma postura
elegante. No entanto, diferente dos outros garotos, em
seu peito estava desenhado um grande e colorido sol.
Com os olhos busquei por Canção Estrelada. O xamã,
sentado ao lado dos demais membros do Conselho de
Anciãos, estava impassível.
154
Houve um grande burburinho e, pelos
comentários, eu notei que as pessoas tendiam a
aprovar a decisão do cerimonialista. No entanto,
era também parte da tradição que uma sentença
dessa monta fosse homologada pelo Conselho dos
Anciãos, órgão responsável pela direção da aldeia.
O Conselho se fechou em círculo para deliberar.
Por um tempo que não sei precisar, trocaram ideias
em tom baixo de voz, inaudível ao restante da tribo,
até que o mais velho dos seus membros, que havia
sido um valoroso guerreiro na juventude e se tornara
um respeitável sábio na velhice, pediu para falar em
nome do colegiado:
155
e agir como elemento de mudança a abrir espaço para
a renovação da vida. Assim prosseguimos”.
156
A aldeia explodiu em aplausos. O sábio
levantou a mão e voltou a pedir silêncio para falar:
“A partir de agora, no Cerimonial de Iniciação, ao
invés de não haver opção além das lutas, cada jovem
poderá apresentar a tribo outro dom e a sua magia”.
Olhou para o garoto e falou: “Para encerrar, peço ao
jovem Lee que nos ofereça mais um pouco da sua
habilidade de encantamento”. Então, da flauta de
Lee começou a soar uma canção alegre que logo
foi acompanhada pelos tambores da tribo. O pai do
garoto era a manifestação pura da alegria. Toda a
aldeia começou a dançar e o Cerimonial de Iniciação
mudou para sempre.
157
A MARATONA
T
Eu estava de volta na pequena vila chinesa,
encravada no Himalaia, próxima ao Butão. Queria
estudar um pouco mais com Li Tzu, o mestre taoista.
O ônibus tinha me deixado muito cedo na única
estalagem local e como só haveria quartos disponíveis
depois do meio-dia, deixei a minha mochila e segui
para a casa de Li Tzu, na esperança de acompanhá-lo
em um bom chá quente. O sol se apresentava em raios
tímidos e quase não havia pessoas nas ruas. O portão da
casa do mestre taoista nunca era trancado. Entrei sem
fazer barulho. Senti o perfume do incenso e uma paz
absoluta. Encontrei Li Tzu sobre um pequeno tapete,
estendido no jardim de bonsais, fazendo complicados
exercícios de ioga. Um gato preto, chamado Meia-
noite, que também morava na casa, deitado ao lado,
observava a tudo, preguiçosamente. Fui recebido
com um sorriso sincero e sem cessar a sua prática, o
mestre taoista disse para eu me servir de chá. Fui à
cozinha; sobre o fogão havia um bule com uma mistura
deliciosa de ervas e flores em infusão. Voltei com uma
xícara cheia, me sentei ao seu lado e ofereci para tocar
uma música no meu celular para acompanhar a ioga.
Li Tzu disse: “Agradeço, mas aprecio a voz do silêncio.
Já há muitos ruídos e barulhos durante o dia. Não quero
perder essa iguaria que o amanhecer me permite”.
Foi impossível não perceber as difíceis posturas de ioga
executadas pelo mestre taoista, mormente em razão da
158
sua idade. Ele tinha sido colega de faculdade do Velho,
como carinhosamente chamávamos o monge mais
antigo da Ordem, em uma prestigiosa universidade
inglesa, quando ambos eram jovens. Comentei isso
enquanto, sentados à mesa, fazíamos o desjejum.
Embora a alimentação de Li Tzu fosse frugal e o
seu corpo, magro; as suas feições esbanjavam saúde,
além de extrema serenidade. Acrescentei que, apesar
de ser bem mais moço, eu não seria capaz de realizar
nenhum daqueles exercícios. Ele me olhou como a
uma criança e explicou: “O Tao nos ensina que tudo
é possível. O Tao vem do céu e estamos sob o céu”.
159
que possamos tirar a vida do inconsciente e modificar
as escolhas”.
160
em breve e com a devida dedicação, completar uma
maratona. A ioga me lembra disso todos os dias.
Serve tanto em relação à superação física quanto à
mental, emocional e espiritual. Afinal, a natureza não
dá saltos. Tudo no universo evolui a passos lentos,
porém, quando ocorrem, são firmes e inexoráveis.
Determinação e paciência são virtudes essenciais aos
viajantes do Tao”.
161
hábitos não significa apenas praticar exercícios, ter
uma alimentação leve, parar de fumar ou de diminuir
o consumo de sal e de açúcar. Na verdade, esta é a
parte mais rasa, embora cuidar do corpo, sem vaidade,
seja uma necessidade e uma atitude de gratidão e
respeito para com a vida. A profundidade em adquirir
bons hábitos consiste em importante passo para sair
do conforto da aparência na busca pela serenidade da
essência, em jornada de infinitas transformações”.
162
“Abandonar o vício da dominação como
prática de libertação. O medo, uma sombra traiçoeira,
nos impõe o hábito ancestral de controlar os outros
em razão da possibilidade de sofrermos algum mal.
A liberdade se inicia quando paramos de interferir ou
impor a nossa vontade nas escolhas alheias. Assim,
ficamos mais leves para alçar voos mais altos”.
163
Perguntei se havia algum truque para
auxiliar a troca de hábitos. O mestre taoista arqueou
os lábios em leve sorriso e explicou: “A meditação é
maravilhosa para isso”. Argumentei que a meditação
era muito difícil para a cultura ocidental. Li Tzu
arqueou as sobrancelhas e replicou com firmeza:
“Você nem começou e já está se convencendo que
não conseguirá”? Abaixei os olhos e ele prosseguiu:
“Meditar é silêncio e quietude. É abandonar as
preocupações do mundo para encontrar consigo
mesmo; encontrar-se consigo é permitir que o mundo
invisível permeie o seu ser, que o universo possa se
fundir em suas células; é a conexão com o próprio
espírito que, quando realizada, permite ler os sinais
do Caminho. É a hora de esvaziar as águas turvas da
ânfora para tornar a enchê-la com água pura”.
164
átomo às estrelas, do egoísmo ao amor. Avançamos à
medida que expandimos a consciência e ampliamos
a capacidade de amar; neste processo evolutivo, a
germinação das virtudes é uma via segura. O Tao nos
ensina isso. Os bons hábitos, além do bem-estar e leveza
que proporcionam, tornam tangíveis os compromissos
mais profundos das pequenas transformações pessoais
que assumimos, cada qual com si mesmo, que, em
análise final, são os mesmos que temos para com o
mundo. Nossas atitudes são ondas concêntricas a se
propagar no grande lago cósmico”.
165
A CARTA DE PAULO
T
Uma palestra proferida pelo Velho, como era
carinhosamente chamado o monge mais antigo do
mosteiro, para os demais membros da Ordem, tinha
abordado sobre a indispensabilidade do amor como
elemento essencial às demais virtudes, além da sua
enorme força de transformação. Como era costume,
ao final, iniciamos os debates. Frank pediu a palavra.
Ele era um jovem membro da OEMM – Ordem
Esotérica dos Monges da Montanha –, filho de um dos
fundadores, já falecido. Apesar da pouca idade, mal
completara trinta anos, tinha graduação em jornalismo,
completara o mestrado e o doutorado em sua área de
atuação profissional e possuía um discurso articulado
e culto. Recentemente, em razão da crise econômica
enfrentada pelo país em que morava, fora demitido
de um grande jornal impresso, no qual respondia pelo
caderno cultural. Frank argumentou ser prejudicial
para uma pessoa o excesso de virtudes. Explicou que
vivíamos em um mundo injusto, habitado por pessoas
imperfeitas, gerando relações humanas complicadas e
conflitantes. Acrescentou que para sobreviver na selva,
como denominou a civilização contemporânea, era
imprescindível uma boa dose de maldade.
166
as manifestações. Garantiu que daria voz a todos,
desde que um de cada vez. O primeiro monge a falar
lembrou que as virtudes, tais como a compaixão, a
misericórdia, a delicadeza, a humildade, a mansidão,
a generosidade, além, claro, do amor, quando
inseridas no meio social tornavam aquele grupo
mais harmonioso, pacífico e feliz. Frank rebateu com
o argumento de que as sociedades, em geral, são
dirigidas por pessoas insensíveis que se aproveitam
da generosidade e da boa-fé alheias.
167
uma possibilidade educativa de mudança para um
relacionamento saudável e capaz de alavancar a
evolução, seja individual, seja coletiva. Disse, ainda,
que é imprescindível oferecer a outra a face; a face de
luz, a face do amor que precisa florescer para a vida.
Esta era a diferença angular nos relacionamentos; a
fronteira entre a agonia e a alegria.
168
que estudasse mais o esoterismo como instrumento
para melhor enfrentar as dificuldades inerentes à vida.
Frank rebateu sob a alegação que já lera todos os livros
sobre o assunto. Lembrou a todos quem era o seu pai,
que fora educado naqueles trilhos e nada mais tinha a
aprender a respeito.
169
devolveu no mesmo diapasão e logo se instalou
uma enorme confusão. O debate foi imediatamente
encerrado para que os ânimos serenassem.
170
que a verdade tem o poder de curar. O Velho
balançou a cabeça e falou: “Sim, é verdade. Desde
que acompanhada de amor, a virtude que deve estar
contida em todas as demais virtudes, aliás, o tema
da palestra de hoje. A sinceridade é uma virtude
importantíssima, é o vagão no qual viaja a verdade,
que apenas completa a jornada virtuosa quando usada
para cura. Qualquer outra intenção vazia de amor é
como locomotiva sem maquinista; tira dos trilhos o
trem da verdade com destino à luz”.
171
e a vaidade que o incomodavam no Frank acabaram se
fazendo presentes em você, face a maneira rude como
quis impor a ele a sua verdade”.
172
para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu
corpo para ser queimado, se eu não tivesse amor, nada
disso me aproveitaria”.
173
O SAL DA TERRA
T
Encontrei o Velho, como carinhosamente
chamávamos o monge mais antigo da Ordem, por acaso,
do lado de fora dos muros do mosteiro. Ele voltava de
um passeio na floresta localizada no arredor. Como
havia chovido nos dias anteriores e o sol reaparecera,
aquela manhã estava perfeita para a colheita dos
cogumelos que germinam aos pés dos carvalhos.
Provavelmente, à noite, teríamos a sua famosa sopa.
Eu tinha saído para fumar um cigarro. Como sempre,
o monge estava bem-humorado, no bom equilíbrio
entre a alegria e a serenidade. Cumprimentou-me
com um sorriso sincero, mostrou a cesta repleta de
cogumelos e comentou que a colheita tinha sido
proveitosa. Não teceu qualquer comentário a respeito
do cigarro. Quando ele fez menção de prosseguir para
atravessar os portões do mosteiro, eu comentei que
voltara a fumar para não me suicidar. O Velho apenas
comentou: “Trágico, não”? E seguiu. Logo adiante,
deu uma pequena parada, se virou e disse: “Estarei na
cantina”. Piscou um olho como quem conta um segredo
e falou: “Ouvi dizer que um bom café é perfeito após o
cigarro”. E tornou a seguir. Com os olhos acompanhei
os seus passos lentos, porém, firmes, até desaparecer
por entre os muros.
174
considerei desatenciosa com a minha dor. A minha
cabeça estava tomada por um torvelinho de ideias
desencontradas. Nenhuma tinha força para me alegrar.
Encontrei com o Velho na cantina. Ele estava sentado
na última cadeira da enorme mesa coletiva. Sozinho,
parecia distraído com os seus pensamentos diante de
uma xícara de café e um pedaço generoso de bolo
de aveia, acompanhado de uma grossa fatia do
delicioso queijo produzido na região. Cheguei na
ofensiva. Acusei-o pela insensibilidade de fazer pouco
do meu sofrimento. Nem mesmo a possibilidade de
cometer um suicídio o comoveu. O Velho me olhou
com doçura, fez sinal com o queixo para eu me sentar
ao seu lado, se levantou e trouxe uma caneca cheia
de café para mim. Tornou a se acomodar e disse:
“O drama é para os fracos”, deu uma pequena pausa
e prosseguiu: “Cada um tem os problemas na perfeita
medida das lições de que precisa, nem mais nem menos.
Não perca tempo com lamentações estéreis e cenas
inúteis. Ao invés disto, aproveite a chance oferecida
para aprender e se transformar”. Bebeu um gole
de café e prosseguiu: “No mais, não precisa se
comportar como um menino que foi pego em plena
travessura. Você conhece todas os malefícios que
envolvem o cigarro e tem plenas condições de fazer as
suas escolhas. Acredite, não há qualquer recriminação
da minha parte. Fumar fora do mosteiro é um direito
seu que não diz respeito a ninguém. Portanto, relaxe.
Não fumo porque não gosto e quero aproveitar
de maneira saudável o meu lapso de tempo nesta
existência; é uma das maneiras que tenho de agradecer
e respeitar o universo por esta oportunidade.
Além disso, outro motivo pelo qual não fumo, é
175
para não perder o paladar. Ficar sem o sabor dos
alimentos deve ser ruim; perder o gosto pela vida é a
tristeza maior”.
176
sal é necessário tanto na cozinha quanto na vida: em sua
ausência, perdemos o gosto pela busca e atolamos no
charco do desânimo e da agonia; em excesso, seremos
atrapalhados pelas brumas que impedem o melhor
olhar, descambando no precipício do fanatismo”.
177
Ri enquanto soluçava. Ele prosseguiu: “Os suicidas
não têm por costume avisar sobre o ato de desespero e
escuridão que cometerão. No entanto, aqueles que se
sentem desamparados e, em última análise, precisam
de atenção, costumam usar esse artifício infantil”.
Eu confessei que não sabia como lidar com os meus
problemas. Ele sugeriu: “Fale; exteriorize todos os
seus sentimentos, toda a sua dor, todos os fatos que o
oprimem”. Perguntei se ele me ajudaria. A resposta foi
doce e sincera: “Não sei se poderei ajudá-lo. Apenas
sei que você, mais do que qualquer outra pessoa, possui
tamanho poder para ajudar a si mesmo. Toda a luz da
qual precisa está adormecida em seu âmago. É preciso
acendê-la. Ao falar, você irá ouvir a sua própria voz,
as suas razões, o tom das emoções e a insensatez que
o alimenta. É um ótimo exercício. Perceberá, também,
que enquanto transferir a outros a responsabilidade
pela sua felicidade, estará adiando e abdicando do
poder que possui sobre a própria vida. Isto fará com que
comece a entender quem você é e as transformações
que precisa operar em si mesmo. Apenas assim a vida
se modifica de verdade”. Eu quis saber se existia outro
método para eu não me expor tanto. O Velho aquiesceu
com a cabeça: “Sim, a meditação é outra maneira
eficiente de chegar ao mesmo resultado. A escolha será
sempre sua”.
178
para as transformações necessárias ao ser”. Pausou
por instante e ofereceu: “Caso queira, estou aqui
para ouvir”.
179
aperfeiçoamento, pois as dificuldades opostas e as
decepções provocadas pelo mundo são eficientes
ferramentas utilizadas no processo evolutivo, por nos
movimentar e nos reinventar, sempre com um jeito
diferente e melhor de ser e viver. Justo as enormes
dificuldades e limitações alheias me levarão a entender
quais virtudes ainda estão adormecidas em mim e
que necessitam florescer, assim como os cogumelos
precisam das noites de chuva para germinarem ao sol
da manhã. O outro se faz indispensável para que eu
possa acender e compartilhar toda a luz que existe
em mim, pois o que ainda não consigo dividir, em
verdade, não tenho nem sou. Assim, benditas sejam
as frustrações! Perceber isto é construir o jardim da
paz onde antes existia um campo de batalha”. Sorriu
e concluiu: “Dentro do próprio coração”.
180
“Aceitar quem você é sem subterfúgios e
mentiras, mas com a responsabilidade e o ânimo de
se aperfeiçoar, concede o poder de modificar tudo ao
seu redor na medida que transformar a si mesmo.
O método mais eficiente de escalar os obstáculos da
existência é com o burilamento das virtudes no ser.
As virtudes são os elementos da luz que dissiparão
a escuridão; elas mostram que os muros mais altos
podem se tornar da altura de um risco de giz no chão”.
181
último comentário. Fiquei sentado na cantina por um
tempo que não sei precisar. Somente, então, percebi
algo que nunca tinha reparado: que todas as xícaras
do mosteiro tinham um coração insculpido no fundo,
visível apenas quando estavam vazias. Sorri sozinho.
Em seguida gargalhei, comecei a bailar em volta da
mesa e abençoei o Velho por sua saudável loucura.
Entendi que se eu fosse ao fundo de mim mesmo, me
esvaziasse dos condicionamentos, ideias e sentimentos
turvos, enxergaria o que nunca tinha visto: o meu
próprio coração. Ali está o poder da vida; ali brota o
sal da terra”.
182
UM FIEL CARCEREIRO
T
Era domingo. Aproveitei a carona do
caminhão que entregava leite no mosteiro e desci
rumo à pequena e charmosa cidade localizada no
sopé da montanha. Eu queria assistir à missa em sua
bela catedral gótica, em frente à praça. O dia ainda
amanhecia enquanto eu andava pelas ruas sinuosas
calçadas com pedras seculares, ouvindo o barulho dos
meus passos, tamanho era o silêncio, em busca de uma
caneca de café para acordar os pensamentos. Arrisquei
passar na oficina de Loureiro, o sapateiro amante dos
livros e dos vinhos, onde os horários inusitados de
funcionamento eram tão famosos quanto a boa prosa
do seu proprietário. Sorri comigo mesmo ao ver a
clássica bicicleta de Loureiro encostada no poste.
Quando entrei na loja fiquei surpreso ao encontrar uma
mulher sentada ao balcão, ao lado do artesão, entre
café e lágrimas. Fiz menção em dar meia-volta, mas o
sapateiro ofereceu um sorriso sincero quando me viu
e convidou para sentar com eles. Fomos apresentados
e Loureiro, sempre gentil, logo colocou uma xícara
fumegante com café fresco nas minhas mãos. Nancy
era uma pediatra muito requisitada e querida na
cidade. Ela foi muito simpática e não se incomodou de
eu participar da conversa. Apesar de ser uma mulher
em idade madura e inteligente, sofria muito em seus
relacionamentos afetivos. O ciúme a atormentava
desde a adolescência quando começou a namorar.
183
Embora já tivesse iniciado a narração dos
seus lamentos, pude entender que ela namorava um
artista plástico de uma cidade próxima e o fato de ele
nada exigir dela, deixava-a insegura e desconfiada.
Reclamou que se sentia solta demais e desconfiava
dos sentimentos dele, pois “quem ama, cuida”.
O relacionamento tinha se deteriorado pelo fato de
ela, cada vez mais, chegar para visitá-lo sem avisar.
No início ele adorava, depois percebeu se tratar de
tentativas de dominação e controle inspiradas pelo
medo que alimenta o ciúme. A situação se agravou
quando Nancy insinuou a sua desconfiança em
relação ao comportamento dele, até porque tivera
conhecimento de casos de infidelidade por parte do
namorado em relacionamentos anteriores. Ela sofria
muito em razão de toda essa instabilidade emocional.
184
cuidar bem é o ato de desejar, com sinceridade, uma
boa viagem. Os relacionamentos amorosos são laços,
justamente para que possam se desfazer suavemente,
com sabedoria e amor. Mesmo quando o amor se esgota
na afetividade íntima de um casal, deve permanecer
vivo na esfera do convívio comum, do bem-querer e da
amizade. Ao contrário, ao amarrar o relacionamento
em nó, para desatá-lo, não raro, precisamos cortá-lo.
Os cortes sangram; causam um trauma desnecessário
no fio que mantém, em fina trama, todos unidos,
solidários e independentes ao mesmo tempo. Se ao
invés de dar um nó aprendermos a fazer o laço com
suavidade e respeito, nunca mais precisaremos cortar,
sangrar e sofrer”.
185
você. No entanto, o medo é uma emoção ancestral que
nos acompanha desde tempo imemoriais, aconselhando
a dominar tudo aquilo que pode frustrar os nossos
desejos ou nos fazer sofrer. Temos uma enorme
dificuldade em lidar com as frustrações e decepções.
Por ignorância, nos iludimos que a felicidade
depende de mudar e adaptar o outro ao nosso agrado.
Não suportamos contrariedades, como se a negativa
alheia pudesse furtar aquilo que ninguém pode levar:
o equilíbrio indispensável à plenitude. Ela nos mantém
suspensos no ar”.
186
momento de superar as dificuldades para harmonizar a
relação; assim como, é preciso aceitar a hora de partir.
Qualquer que seja a escolha, deve estar revestida de
amor, dignidade, liberdade e paz. Assim também deve
ser recebida”.
187
que não mais existe ou em manipular a vontade alheia,
é teimar pela dominação que tanto sofrimento traz.
Para ser livre é preciso amar a liberdade; para viver
o amor é necessário amar o amor. Para ser amor é
indispensável ser livre. Ou não passará de um cárcere,
mesmo que doce, dourado e sem grades, onde todos
os envolvidos restam aprisionados, em uma enorme
penitenciária planetária construída pelos tijolos do
ciúme e do medo”.
188
conquista da felicidade. Entretanto, a maneira como
trabalhamos essa construção faz toda a diferença,
pois, define quem somos, as circunstâncias a nossa
volta e o próprio destino. Faz também que os sonhos,
por vezes, se desencontrem pela falta de harmonia
daquele momento evolutivo. Os sonhos compõem
uma orquestra que toca no baile de todos os casais;
ora eles estarão ritmados, noutros momentos restarão
desafinados. Haverá casais em sintonia para bailes
sem fim; todavia, se não for mais possível dançar a
mesma música em razão da diferença de tom, é hora
de seguir em frente na busca por outras sonoridades,
com a mesma alegria e por respeito a você, ao outro e
a todos os sonhos do mundo. Ser livre é indispensável
para viver o amor. O amor traz consigo a paz interior
e a leveza para se manter muito além das sombras e da
dor. Ou não é amor”.
189
do que enganar; prefiro liberdade, com todos os seus
riscos, a exercer o papel do vigia implacável sobre a
vida alheia. Se há alguém que preciso vigiar, é apenas
a mim mesmo para não alimentar as minhas sombras.
Não quero que as virtudes me abandonem; nelas estão
as minhas asas”.
190
dificuldades. Necessita também da compaixão, para
aceitar que cada um compartilha apenas no estreito
limite do seu nível de consciência. Da misericórdia
e da paciência para entender que a flor da felicidade
tardará para germinar naquele que insiste em não
andar de mãos dadas com a sinceridade; tudo é
aprendizado, superação e evolução. E ainda da alegria,
para que apague até mesmo a menor cicatriz”.
“Tudo muda.
O universo marcha em inexorável evolução.
Trocam-se as horas; os dias.
A primavera se repete sem se repetir como no
ano passado.
Toda a gente se transforma: chave infinita
da evolução.
De permanente apenas a impermanência.
191
Não há, nem houve, mentira.
192
foi até a mãe e, de maneira delicada, sugeriu que
não cerceasse o garoto de brincar, pois a pretexto de
cuidar do filho estava impedindo de ele ser ele mesmo
e, logo, de ser feliz. A mãe argumentou que o amava
e precisava protegê-lo dos riscos. Nancy ponderou
que os riscos eram inerentes à vida, à liberdade e ao
próprio amor. A mãe, um pouco envergonhada, liberou
o menino para extravasar toda a sua alegria. Quando
a médica tornou a se sentar do nosso lado, Loureiro
deu um sorriso maroto, piscou um olho como quem
revela um segredo, e sussurrou uma única palavra:
“Percebe?”
193
UMA VIAGEM ENTRE O TAO E A FÉ
T
Li Tzu, o mestre taoista, pediu para que eu
chegasse cedo em sua casa. Quando saí da estalagem
o céu era um manto salpicado de estrelas. Andei
pelas ruas da vila chinesa encantado com a beleza
oferecida pela Via Láctea, perdido em ilações
quanto aos infinitos mundos existentes no universo.
Encontrei Li Tzu finalizando a sua meditação diária.
Ele estendeu dois tapetes para que eu o acompanhasse
em seus exercícios de ioga. Meia-noite, o gato preto
que também morava na casa, nos observava com um
olhar preguiçoso. Claro que eu fiquei bem aquém das
posições complexas conseguidas pelo sereno ancião
chinês. Ao final, nos dirigimos para a cozinha e me
sentei à mesa, enquanto ele nos servia um saboroso
chá. Perguntei, para puxar assunto, se ele tinha o
hábito de olhar para o céu e pensar em todo o mistério
que envolve as estrelas. Ele me olhou com curiosidade,
como seu eu lhe perguntasse o óbvio, e disse: “Entender
o todo ajuda a saber quem sou; me conhecer faz com
que eu sinta o poder do todo em mim”.
194
misturar ciência com religião, duas esferas distintas,
o que me causava estranheza, uma vez que eu
conhecia a sua formação acadêmica e, acrescentei,
sabia das pesquisas nas quais havia sido laureado
na universidade inglesa que estudara quando jovem,
onde conhecera o Velho, o monge mais antigo da
Ordem. Embora Li Tzu tivesse cursado botânica e o
Velho, economia, construíram uma amizade que os
uniu por toda a vida.
195
do indivíduo, e que admite a presença do mistério.
A ciência, por sua vez, busca entender o desconhecido
e a sua posterior utilização para o bem-estar de toda a
gente. O mistério é aquilo que ainda não conseguimos
provar cientificamente, como outrora aconteceu com
o uso do fogo, as doenças virais e a Lei da Gravidade,
apenas para ficar em poucos exemplos básicos; o
que não elimina, por princípio real, a existência do
mistério. Metade do conhecimento humano de hoje
não existia há um século. Curioso pensar que no
final do Século XIX, a Real Academia de Ciência,
em Londres, onde se reuniam os mais renomados
cientistas da época, declarou que o conhecimento
tinha chegado à sua fronteira final. Então, veio o
século seguinte, apresentando ao mundo a televisão,
os celulares, a internet, a tomografia, os satélites, entre
outras maravilhas, distantes da imaginação daqueles
sábios. Apenas sessenta anos separam o voo do 14-Bis,
em Paris, da chegada do homem à lua. O impossível
sonho de voar, então permitido apenas para os poetas
e loucos, se tornou banal de uma hora para outra.
O orgulho e a vaidade sobre o conhecimento são
poderosas sombras a impedir o avanço do próprio
conhecimento”. Bebeu um gole do chá e comentou:
“Sigmund Freud rompeu com Carl Jung, sob a acusação
de misticismo, quando o professor suíço sustentou,
para o criador da psicanálise, a possibilidade da alma”.
Interrompi para falar que não existe tal comprovação
científica. Li Tzu deu de ombros e disse: “Quando
perguntaram a Jung se ele acreditava em Deus, ele
respondeu: ‘eu sinto’. A percepção, mesmo quando
ainda não traduzida em fórmulas matemáticas, é
a fonte primeira na qual o conhecimento começa a
196
beber. Essa foi a gênesis do trabalho de Albert Einstein
para provar a relatividade do espaço e do tempo.
Na época, ele foi ridiculizado por muitos cientistas
e, ainda hoje, a sua tese é entendida por poucos, mas
aceita pelos alquimistas desde tempos imemoriais”.
197
mesma família, pois, têm a mesma ‘mãe’. São pedaços
separados ou nascidos pela explosão daquela bola de
boliche inicial”. Fez uma pausa dramática e comentou
perspicácia: “Através de um viés puramente científico”.
198
“A esperança é a certeza de que o universo
sempre nos socorrerá; nunca na medida dos nossos
desejos, mas de nossas necessidades evolutivas.
A ciência já provou que o universo está em constante
expansão; como somos parte dele, ninguém restará
abandonado ou não haverá qualquer evolução; o
alicerce frágil compromete toda a construção dos
operários que precisam prosseguir na obra. Quando
nos movemos em sentido contrário à luz, o universo
nos interrompe de um jeito suave ou rigoroso,
a depender do grau de teimosia que possuímos.
Como bom educador, ele nos ensinará na exata régua
do nível de consciência e capacidade amorosa que
possuímos. Quando apontamos a proa na direção da
luz, ele torna a impulsionar a nave com os melhores
ventos. O problema é que nem sempre fazemos a
leitura correta do mapa e da bússola e, assim, não
raro, nos perdemos em tempestades. Mas nem os
naufrágios são de todo ruim, pois, costumam se
reverter em preciosas lições para os marinheiros
dispostos em aprender a arte de navegar e seguir a
viagem. A esperança é a virtude que nos permite
entender que, mesmo quando as coisas dão errado,
assim acontecem para que possam, mais adiante,
darem certo. De modo consistente e verdadeiro. Logo,
a esperança nunca é vã e será sempre uma grande
aliada para não perdermos a alegria no Caminho nem
o amor pela vida”.
199
científico, o meu DNA é o mesmo da luz das estrelas,
da pureza da neve, do fogo do sol. A fé se traduz em
sentir essa força em si mesmo e fazê-la pulsar para
alavancar todas as transformações e o bem infinito.
Entender e movimentar esse poder é a percepção viva
de que sou a morada de Deus”.
200
insistir em administrar o vazio e a falta de sentido da
vida, que a certeza da morte, inevitavelmente, traz; é
se envaidecer com a própria amargura e o sarcasmo
quanto à beleza da vida, comuns naqueles espíritos
que pela vaidade e orgulho em relação à própria
inteligência, na ilusão da superioridade, se deixam
envolver pelas sombras que o fragilizam e furtam a
verdadeira alegria da jornada”.
201
a compõe até o ponto de mutação, então, ocorre a
explosão e, por consequência, a transformação em
algo diferente, alterando a vida ao redor”.
202
e quietude, alegria e calma; polaridades que animam e
impulsionam a vida. Vale lembrar que ação e atitude
representam o movimento externo, que deve ser
firme e sereno, nunca agressivo; reflexão e quietude
significam o movimento interno, que jamais deve ser
confundido com a estagnação. Como o final de um
ciclo será sempre o início de outro, os movimentos
devem prosseguir em expansão e contração, em
infinitas transmutações; assim é com as estrelas e
com as pessoas. Essas polaridades representam a
força interior que equilibra, movimenta e transforma.
É o Tao, em essência, tal e qual a fé”.
203
ALÉM DO FIM DO TÚNEL
T
Ao lado de Loureiro, o sapateiro amante dos
livros e dos vinhos, buscávamos um restaurante que
ainda servisse almoço no meio da tarde. Tinha chovido
forte durante todo o dia. Aproveitamos a esteada para
singrarmos as ruas estreitas e tortas da pequena e
charmosa cidade localizada no sopé da montanha que
acolhe o mosteiro. As pesadas nuvens deixavam o céu
escuro e fizeram com que os lampiões se acendessem
mais cedo do que de costume. Conversávamos de
maneira alegre e vadia, como dois amigos que se
sentem felizes pelo simples fato de estarem juntos,
enquanto desviávamos das poças d’água formadas
no calçamento contruído com pedras seculares.
Ao entrarmos no restaurante nos deparamos com
Carlo, um amigo em comum. Tomamos um susto.
Nem de longe parecia aquele homem confiante,
bonito e bem cuidado que estávamos acostumados a
ver. Tínhamos nos encontrado há menos de um mês
e ele aparentava estar muito bem. Naquele dia era
o reverso da pessoa que conhecíamos. Carlo estava
abatido, encurvado, sem viço, parecia um espectro
de si mesmo.
204
negativa. Há dias estava sem apetite. Acrescentou
que a sua vida tinha virado ao avesso de uma hora
para outra. Carlo tinha um bom emprego; trabalhava
na sede de uma multinacional situada em uma
metrópole não muito distante, a apenas uma hora
de trem. Na semana anterior, ao chegar na empresa
foi chamado por um diretor e informado que haveria
uma reformulação nos quadros funcionais. Alguns
cargos seriam extintos, entre os quais, o seu.
Nem lhe foi permitido voltar à sua sala; os seus
pertences pessoais já estavam acondicionados em
uma caixa, sendo entregues naquele instante. A verba
rescisória seria depositada em sua conta bancária no
dia seguinte. Passados alguns dias, a sua esposa, com
quem esteve casado por quase dez anos, comunicou o
fim do matrimônio. Ela estava apaixonada por outra
pessoa e, com a mala pronta, partiu em seguida.
205
o seu raciocínio: “O mundo somente se desmorona
quando a alma está desequilibrada”.
206
os naufrágios encontram aqueles que insistem em
não ler os sinais. Porém, nada resta de todo perdido,
pois os naufrágios acabam por formar os melhores
navegadores; a vida é uma escola formadora de grandes
mestres”. Deu uma pausa e concluiu: “Desde que se
esteja disposto a aprender com ela”.
207
pode, no fundo do poço, começar a construir um
túnel. Nunca como fuga da realidade, mas em busca
de uma nova realidade, com possibilidades nunca
antes imaginadas. Voltar à tona, no mesmo lugar,
reconstruir a vida sobre os mesmos alicerces, o mesmo
padrão antigo de ser e viver, é perpetuar a estagnação
através de outra roupagem. É preciso conhecer as
possibilidades que estão além do fim do túnel para
que haja transformação efetiva e verdadeira. Caso
contrário, viveremos a maldição de Sísifo, o mito
grego, que empurra todos os dias uma grande pedra
para o alto de uma montanha, da mesma maneira,
que quando próxima ao cume, teima em rolar para
baixo, em constante repetição, fadado ao insucesso.
O fim do poço tem que ser o início do túnel a permitir
alcançar a luz desconhecida, de um jeito diverso do
anterior, com verdadeiro avanço íntimo”.
208
que se desconhece será sempre uma pessoa frágil,
necessitada de artifícios aparentes de ilusão, vulnerável
às menores decepções. O autoconhecimento permite
entender a sua capacidade e as virtudes que já possui
para fazer um bom uso delas. Reconhece, também,
as imperfeições ainda existentes e as virtudes que
faltam germinar, instrumentos imprescindíveis à
evolução. Humildade e determinação são os ventos
impulsionadores dessa travessia, da busca pelo
tesouro escondido a espera de ser revelado em prol
de si mesmo e para o mundo. Se soubermos fazer a
leitura correta do mapa da vida, perceberemos que o
fundo do poço é a permissão amorosa para o início de
uma viagem a um maravilhoso mundo desconhecido,
tão longe e tão perto. O próprio coração; a essência
do ser e a semente sagrada do universo”.
209
diferente do homem que era nos dois momentos
anteriores da sua vida. Nem era o arrumado executivo
da multinacional nem o homem alquebrado no fundo
do poço. Tinha uma elegância informal e estava mais
bonito do que sempre. Usava uma barba bem aparada,
calça jeans acompanhada de uma bela camisa, um par
de tênis e, mais importante, um sorriso indescritível
no rosto. Abriu os braços quando nos viu e pediu
para sentar à mesa conosco.Comentei da boa
coincidência de nos encontrarmos no mesmo
restaurante. Ele explicou que não havia nenhum
acaso nisso. O dono era um velho conhecido que, a
pedido seu, avisou que estávamos lá. Era importante
que fosse no mesmo lugar, pois aquele encontro havia
sido angular em sua vida.
210
casar, mas atingir a maturidade. Falou que no início foi
muito difícil, mas depois percebeu que o abandono que
sentia, na verdade, era a fantástica chance de assumir o
controle da própria vida, sempre postergado pelo fato
de culpar os outros pelos seus insucessos e decepções.
Aceitou que era a hora de ser sincero consigo ou não
sairia da infância da existência. Acrescentou que a
vitimização é cômoda, mas acovarda o indivíduo e
impede o seu crescimento. A maturidade se traduz
em aceitar a responsabilidade pelas suas escolhas,
aprender com elas e seguir adiante, a cada dia, com
um jeito diferente e melhor de ser.
211
poço, era o princípio do túnel que lhe permitiu uma
busca, então, impensada. Ao invés de retornar à tona,
como era a vontade inicial, descobriu um novo lugar,
onde havia muito mais luz. Contou que nesse processo,
à medida em que se conhecia, se transformava e tudo ao
redor também mudava. Os interesses, as vontades e as
escolhas ficaram diferentes. O que antes era primordial,
passou a não fazer qualquer sentido. Revelou que
como sempre fora apaixonado por motocicletas, tinha
aberto uma pequena oficina na garagem da sua casa.
Lá conhecera uma moça, também amante dos motores,
com quem começou a sair. O namoro e o negócio
estavam engatinhando, o dinheiro ainda era curto e
limitado, mas os passeios que fazia de motocicleta com a
namorada nos fins de semana eram longos e deliciosos.
Confessou que nunca se sentira tão livre e leve.
Vivia cada vez mais em sintonia com a sua essência e isto
o fazia feliz. Ao contrário de antes, agora, todos os dias,
acordava bastante animado com a vida. Se tudo desse
errado, tinha aprendido as possibilidades ilimitadas
de sobreviver, tinha entendido a força incomensurável
que trazia dentro de si e, agora, sabia que poderia
recomeçar tantas vezes quantas fossem necessárias.
O fundo do poço tinha sido uma bênção.
212
Loureiro concordou: “Sim, é como se eles estivessem
adormecidos e o nosso papo apenas os despertou,
pois do contrário, ainda seriam refutados pelo tempo
necessário para amadurecerem no inconsciente até
serem levados ao consciente. Assim expandimos o
nosso nível de percepção e mudamos a própria vida”.
213
A ARTE DE AJUDAR OS OUTROS
T
Eu e Loureiro, o sapateiro amante dos livros
e dos vinhos, tínhamos acabado de almoçar em um
dos nossos restaurantes preferidos na pequena e
charmosa cidade localizada no sopé da montanha que
abriga o mosteiro. Por saber que ainda conversaríamos
por um bom tempo, o garçom, um velho conhecido,
deixou um bule de café fresco em nossa mesa, quando
fomos surpreendidos por Paola, uma sobrinha querida
do artesão. Ela tinha entrado no restaurante apenas
para tomar um café e divagar sobre algumas questões
pessoais e ficou feliz em nos encontrar. Sentou-se
conosco e disse que era bom estarmos ali, pois queria
ouvir o que o tio pensava a respeito de algo que a
chateava nos últimos meses. Fiz menção em deixá-los
a sós, mas Paola, gentil, falou que não era necessário.
Em seguida, contou que, como o tio já sabia, namorava
com Giovani por quase quatro anos. O primeiro
período tinha sido de muitas alegrias e descobertas,
viagens e total sintonia. Com o passar do tempo tudo
parecia desandar e os desentendimentos eram cada vez
mais constantes.
214
as brigas se acirraram. Os seus interesses e amigos
mudaram; Giovani passara a sentir ciúme do novo
estilo de vida dela e brigavam por situações que só
existiam na imaginação dele. Ela vinha se esforçando
para trazê-lo para esse mundo novo e maravilhoso
que descobria aos poucos, mas ele estava reativo.
Paola sabia da grandeza em ajudar a todos e reconhecia
no namorado um enorme potencial de crescimento,
pois ele tinha um bom coração. No entanto, quanto
mais ela tentava mais ele refutava a ideia. Até que
no último final de semana eles discutiram e Giovani
proferiu palavras bem agressivas.
215
pretéritas, não raro desastrosas. Além disso, existe o
aconselhamento das sombras individuais e coletivas,
como o medo, a inveja, a ganância, o ciúme, entre
outras, oferecendo ilusões de vantagem e proteção.
Será sempre uma bonita batalha de superação sobre
si mesmo”.
216
própria e decidir o destino que melhor lhe aprouver.
Da mesma maneira que não abandona a cria, ainda
indefesa, por amor, existe a hora de deixá-la enfrentar
as lições que cabe a vida ministrar, sozinho, também
por amor, para não criar um fraco. O amor precisa da
sabedoria para que possa melhor semear os desertos
do mundo. Serve tanto para quem o oferece quanto
para quem o recebe. Esta é a arte de ajudar os outros”.
217
“A humildade também se faz primordial, ao
lado da simplicidade, para não esquecer, em momento
nenhum, que ajudar não nos torna superior a aquele a qual
prestamos o auxílio. Todos, em algum momento da vida,
necessitam de amparo, seja material, seja emocional.
Todo cuidado é pouco para que a ajuda oferecida não
seja exercício de vaidade, dispensando, com sinceridade,
qualquer gesto de retorno. A gratidão não deve se tornar
uma dívida. Nunca pode existir credores nem devedores
para que seja uma ajuda de verdade. O amor apenas
florescerá daquele ato se oferecido sem a imposição de
condições, taxas ou impostos”.
218
sobre nós mesmos. Respeito por si mesmo significa
não conceder a ninguém nenhum poder sobre as
próprias escolhas; de outro lado, e por consequência
virtuosa, não exercer qualquer tipo de dominação
sobre a vida alheia é o perfeito exercício do respeito
para com o mundo”.
219
recusar a receber ajuda. Entenda, sem qualquer traço
de ressentimento, que é um direito dele. Pode ser a
falta de entendimento ou mesmo um momento de
introspecção, quietude e silêncio, o inverno no qual
o urso hiberna na escuridão da caverna para digerir
todos os acontecimentos vividos e se preparar para a
primavera da vida. Apenas mantenha a porta da sua
casa e do seu coração abertos para caso ele mudar
de ideia”.
220
disse com seriedade: “Somos todos viajantes rumo
às mais diversas estações, cada qual de acordo com
a sua afinidade vibratória. Em razão desta sincronia
energética e, também, por necessidade evolutiva,
há momentos em que estaremos sós; noutros,
acompanhados por seguir na mesma direção e ritmo.
O importante é perceber o valor e a beleza de ambas as
situações. Enquanto houver sintonia, estaremos juntos
na estrada, quando em desafino, cada um deve seguir
em busca das suas músicas, lições e sonhos. Assim o
Caminho se perfaz de modo solitário e solidário, na
perfeita lição de que não dependemos de ninguém
para fazer o coração cantar melodias sinceras de amor
e felicidade, porém, precisamos do outro para nos
ajudar a afinar o instrumento pessoal, indispensável à
grande sinfonia do universo: o espírito, a verdadeira
identidade de cada um de nós”.
221
saudade, revelando o amor que transmutou para outro
estágio por ter atingido o seu limite, sempre será a
escolha mais saudável e saborosa”. Piscou o olho para
sobrinha e segredou: “Para ficar tem que ser bom;
para partir também. Sempre existe uma escolha que
tem o sagrado poder de nos tirar uma enorme mochila
de pedras das costas. O seu coração sabe qual é.
Tenha coragem para escutá-lo e seja feliz!”
222
METADES
T
A casa de Canção Estrelada, o xamã que
tinha o dom de transmitir a sabedoria ancestral do seu
povo através da palavra, estava vazia quando entrei.
Como o bule de café ainda estava quente, me servi
de uma caneca e fui para a varanda. Uma simpática
vizinha me informou que ele estava em uma escola
próxima dali, ministrando uma animada palestra para
uma turma de adolescentes. Quando entrei no auditório,
uma jovem, de olhos perspicazes, perguntava a ele
qual a razão da nossa existência. O xamã respondeu
de pronto: “Evoluir, simplesmente evoluir”. A moça,
longe de se dar por satisfeita com a resposta, indagou
sobre o significado da evolução. Canção Estrelada
arqueou os lábios em leve sorriso e disse: “Evoluir é
ampliar o nível de consciência e expandir a capacidade
de amar. O amor é o sentido da vida. No entanto,
pelo seu enorme poder e complexidade, precisamos
da sabedoria para nos orientar nessa conquista”.
Deu uma pequena pausa e concluiu: “Embora o amor
seja a nossa essência, conhecemos muito pouco sobre
o amor”. A jovem insistiu em seus questionamentos e
quis saber qual era a conquista a que o xamã se referia.
Atencioso, ele respondeu: “Se o amor é a razão da
vida e a essência de cada um de nós, a conquista a que
me refiro é quanto à parte não revelada; ao outro que
somos e desconhecemos”. Como todo bom contador
de histórias, deu uma pausa dramática e disparou:
223
“Metade de mim eu sei quem é, a outra parte ainda é
um enigma”.
224
O xamã acrescentou: “Se somente reconhe-
cemos um pedaço do que somos, restaremos
incompletos. Nunca seremos por inteiro. Assim,
desperdiçamos parte da magia da vida e do poder
do ser. Viveremos em eterno conflito com o mundo
enquanto houver uma batalha interna, travada pelas
metades separadas, e, portanto, em desarmonia.
É preciso unir uma parte à outra para fundarmos os
pilares da plenitude no coração”.
225
despencar no abismo da tristeza; a maneira como cada
uma das virtudes que compõem a luz se manifestou
para aquele indivíduo; da flor do amor que brotou no
pântano da mágoa; do beijo que revelou as estrelas que
não existem no céu; de como uma decepção serviu
para o fortalecimento pessoal e preparou a estrada
para as conquistas fundamentais da existência como
a liberdade, a paz, a dignidade, a felicidade e o amor.
Estes são os diamantes, todo o resto é apenas o papel
reluzente do embrulho”.
226
para absurda estratosfera em total esquecimento a
essência primordial. Esta é a semente da vaidade,
a triste dependência pelos aplausos do mundo, ainda que
sejam efêmeros, imerecidos, falsos, fúteis e rasteiros”.
227
isto de maneira mais profunda do que muitas vezes
somos capazes de compreender. Então, na tentativa
de preencher esse buraco, procuramos nas relações
afetivas, nas conquistas profissionais e materiais, nas
diversões incessantes ou, muito pior, nas drogas, a
completude que falta. Em vão”.
228
“As reações à incompletude são várias. Em comum,
apenas os enormes poderes que concedemos as
sombras. Tristeza, desesperança e depressão, criando
o vício em antidepressivos, ansiolíticos ou coisas
mais pesadas. Orgulho, vaidade, inveja e ganância,
sombras motivadas pelo pleno desconhecimento
da pessoa que somos ou podemos ser, disparando
comportamentos arrogantes, violentos e superficiais.
A competição em detrimento da comunhão; a
aparência em detrimento da essência; o ter em
detrimento do ser. O ter tudo, mas não ser nada,
gera no indivíduo um abismo sombrio que o torna
agressivo ou triste, seja pela incompreensão de si
mesmo, seja pelo abandono da sua outra parte”.
229
a mansitude, a pacificação, a coragem, a fé, entre
várias outras, além da maior delas, o amor, é claro.
Quando reunidas formam o que os sábios ancestrais
chamavam de iluminação”.
230
A MINHA CIDADE
T
Naquele ano, quando entrei no mosteiro para
mais um período de estudos, eu estava desiludido
com a humanidade. Logo que encontrei com o
Velho, como carinhosamente chamávamos o monge
mais antigo da Ordem, ele me perguntou o motivo
de eu estar abatido e com os ombros curvados.
“Parece que carrega o peso do mundo nas costas”,
comentou. Falei que andava desanimado diante tanto
egoísmo e agressividade. Comentei que cogitava
a possibilidade de mudar de cidade, pois aquela
onde eu morava se mostrava inabitável. Acrescentei
que era mal administrada, as pessoas só pensavam
nelas mesmas e não mediam os meios de atingir os
seus objetivos. O bom monge disse: “A violência
sob qualquer aspecto é muito ruim. De outro lado,
pensar em si mesmo é muito bom, desde que tenha
o carinho de compartilhar o melhor que encontrar.
Cada pessoa deve ser administrada como a uma
cidade. Os sentimentos são como indivíduos; devem
circulam livremente. Como nem sempre estão bem
orientados ou têm moradia segura, devemos cuidar
deles para que encontrem o devido lugar e a merecida
tranquilidade. As reformas estruturais precisam de
atenção constante para não impedir o progresso.
Os becos escuros devem ser iluminados para que
dali não surjam surpresas desagradáveis. As ideias,
tais como cidadãos livres, muitas vezes entrarão
231
em conflito e devem ser colocadas para dialogar
até encontrarem a perfeita comunhão. Por fim, e não
menos importante, os portões da cidade devem estar
sempre abertos para quem quiser ou precisar entrar,
mesmo que de início causem algum desconforto.
Não podemos esquecer que são as dificuldades,
quando tratadas com amor e sabedoria, que acabam por
trazer as indispensáveis melhorias”. Fez uma pequena
pausa antes de prosseguir: “Uma cidade abandonada
se torna imprestável”. Olhou-me nos olhos e falou:
“Assim acontece conosco quando damos mais valor ao
que existe fora do que dentro da gente. Cada qual mora
na cidade que constrói dentro de si”.
232
em Nova Iorque ou em um monastério em Katmandu.
Quando por dentro tudo está bagunçado, você não
encontrará a paz, a felicidade, o amor, a liberdade ou a
dignidade que procura. O melhor lugar, seja onde for,
só será agradável se a cidade que construímos dentro
da gente for confortável”.
233
si mesmo. Ainda que haja muita turbulência e
confusão em volta dos seus corpos, as suas almas
habitam em cidades tranquilas e serenas”. Mordeu
um pedaço de bolo e ponderou: “Vale salientar que
a recíproca também se aplica. De nada vale ao corpo
morar em cidades progressivas se o espírito habita em
região ainda arraigada por conceitos ultrapassados.
A liberdade física de ir e vir se torna imprestável
diante das prisões existenciais”.
234
apregoamos os defeitos do comportamento alheio
em um singelo bate-papo ou através das poderosas
redes sociais, no fundo, nos valemos de um surrado
truque das sombras: desviar a atenção quanto às
nossas próprias dificuldades para evitar o esforço
do aperfeiçoamento pessoal. Vigiamos os outros e
esquecemos de tomar conta de nós. Na busca pela
felicidade desejamos que todos se adaptem aos
nossos interesses na vã tentativa de fugir ao trabalho
da lapidação íntima, sem perceber o quanto isso
alimenta conflitos e desordens. Assim, adiamos as
transformações indispensáveis em total contradição
ao processo evolutivo. Reclamamos da escuridão a
espera que tragam a luz que nos cabe buscar”.
235
alimentamos a decomposição moral da sociedade,
que por ironia e tragédia, tanto nos incomoda”.
236
“Enfim, nenhuma cidade do planeta trará
acolhimento enquanto o indivíduo não organizar e
pacificar a cidade interna que arde em conflitos”. Deu
uma pausa e concluiu: “Embora repleto de imperfeições,
o desconforto que o mundo lhe causa é reflexo das suas
dores e incompreensões, que ao projetá-las de maneira
difusa, impedem o diagnóstico e a cura. A cura do ser
é a perfeita engenharia de reconstrução do mundo.
Todo o resto são obras de mera maquiagem”.
237
UM POUCO SOBRE MÁSCARAS,
ROTEIROS E SOMBRAS
T
Eu e Loureiro, o sapateiro amante dos livros
e dos vinhos, tínhamos acabado de assistir a um
filme no único cinema da pequena e charmosa cidade
localizada no sopé da montanha que acolhe o mosteiro.
Fomos para uma agradável livraria que abriga uma
cafeteria na parte dos fundos em busca de boa prosa e
café. A fita narrava a história de Dayse e Giovani, casal
de namorados na faixa dos cinquenta anos de idade;
ambos já tinham passado por outros relacionamentos.
Ele era um tranquilo professor de matemática em uma
escola do ensino médio, praticante de judo e dedicado
aprendiz de roteirista. O seu sonho era contar ao
mundo as histórias que o povoavam desde sempre.
Passava boa parte das horas de folga aplicado em
suas escritas. Ela era uma mulher alegre que vivia
da generosa pensão deixada pelo marido falecido
há muitos anos. Era uma pessoa caridosa, sempre
atenciosa às necessidades alheias, que também gostava
de passear com a amigas e se divertir. Para muitos
formavam um casal perfeito. No entanto, tinham
uma relação intermitente, de idas e vindas. A causa
era sempre a mesma: ela, por vezes, se mostrava
irritadiça e mal-humorada, seja com o pouco carinho
que recebia do namorado, seja pela vida quieta que
levava ao lado dele. Giovani, então, preferia se
afastar na certeza de que ela não era a pessoa com a
238
qual deveria compartilhar a sua vida afetiva. Passado
alguns dias ou semanas, a namorada o procurava
como se nada tivesse acontecido e o relacionamento
era reatado, mais por comodidade do que por amor.
Isto aconteceu várias vezes e sempre pelo mesmo
motivo. Quando do último afastamento, embora não
fosse uma separação declarada, ele tomara a decisão
de não mais voltar, pois tinha a convicção que, apesar
de a moça possuir muitas virtudes, não a amava.
Uma relação sustentada apenas por comodidade
acabava por ser prejudicial a ambos. Entretanto, dessa
vez, por acaso, tomara conhecimento de que ela estava
envolvida com outra pessoa. De outro lado, Dayse
soube, através de terceiros, de que Geovani tinha ciência
do seu novo romance. Ela enviou uma mensagem de
que a história não era exatamente como aparentava,
desmentiu o novo romance, afirmou que Geovani
ainda tinha lugar cativo em seu coração e voltou a
um discurso, muito comum a ela, de transparência e
fidelidade. Ela sempre lamentara que o seu casamento
anterior fora muito afetado pelos contantes casos de
infidelidade do marido falecido e, por isto, não tolerava
tais situações. Segundo ela, este era o motivo pelo qual
acabou levando-a também a ter relações extraconjugais
durante o matrimônio. Mas o fato, agora revelado, era
inegável. Embora tenha sentido ciúme, ele entendia o
momento dela, respeitava o seu direito em tentar ser
feliz ao lado de outra pessoa e pensava que, cedo ou
tarde, o melhor seria também se envolver com alguém.
O problema é que resolveu passar na casa de Dayse
para devolver alguns pertences que estavam consigo e
para dizer que poderiam ser bons amigos. Para a sua
total surpresa, foi recebido com extrema agressividade,
239
sendo alvo de acusações vagas e desconexas. A mulher
alegou que tudo aquilo tinha acontecido por causa
dele, que odiava a vida pouco movimentava que levava
ao seu lado e, por fim, que sentia desprezo por ele e
que se enganara quanto ao amor que sempre dissera
sentir. Giovani passou dias sem entender a razão de
tamanha reação. Até que decidiu escrever um roteiro
sobre essa história, com a finalidade de contá-la para
si mesmo, na tentativa de entender o fundo da questão.
Ocorre que esse se torna o primeiro roteiro que ele
consegue vender a uma produtora. Na sessão de estreia
reencontra com Dayse no saguão do cinema; ela,
feliz, está acompanhada do seu novo namorado;
ele, feliz, pela realização de um sonho. A cena final
é uma troca se sorrisos entre os dois, deixando ao
expectador a conclusão que melhor aprouver.
240
desequilíbrio e sofrimento. Não raro, o indivíduo,
quando ainda envolvido pelos mantos do orgulho e da
vaidade, faz um grande esforço em ocultá-los, tanto
dos outros quanto de si mesmo. De outro lado existe a
alma, a metade ligada ao aprimoramento da essência
do ser. Aquela que tem o conhecimento, ainda que
inconsciente, de que a melhor aparência será sempre
a mais pura essência. Quando com a consciência já
desperta, o ser não se importa em revelar ao mundo
as imperfeições e dúvidas que lhe são inerentes, pois
possuem a determinação em caminhar sob a orientação
da simplicidade e da humildade, nos primeiros passos
rumo à plenitude”.
241
exercer o seu domínio sobre o indivíduo. Ao serem
reveladas é comum a reação violenta. É o destempero
de quem se descobre por inteiro, sem máscaras, ilusões
ou subterfúgios. As sombras chegam para socorrer e,
o truque mais comum, é fazer acreditar que aquele
sofrimento é por culpa de outra pessoa, transfere a
responsabilidade e vira o rosto do exato espelho para
não olhar nos olhos da verdade. Veja o caso de Dayse,
ela sempre manteve relações extraconjugais, embora
as condenasse, mas atribuía a sua atitude aos desvios
do ex-marido. Daquela vez não teve como sustentar
discurso sobre o valor da sinceridade e da lealdade,
então, a fúria e o desequilíbrio”.
242
uma atitude consciente. No caso dela, as suas sombras
a convenciam a uma prática que ela própria condenava
transferindo a responsabilidade para o companheiro
pelo fato de ele não entregar o amor que ela julgava
merecer. Assim, a cada dia, concedia maior poder
as próprias sombras. Se você para pensar, em última
análise, a ira da Dayse não foi contra Giovani, mas
em razão da verdade ter surgido em hora imprópria.
Foi o desespero de estar diante de si mesma sem
qualquer disfarce. Por ironia e tragédia, aquilo que
lhe dava prazer também trazia dor, seja pelo vazio,
seja pela incompletude, seja pela ilusão. Assim são
as sombras”.
243
conseguir enfrentar a si mesmo. Esta é a motivação
mais comum para a agressividade das pessoas: as
próprias sombras que na ilusão de proteção ou de
sucesso aparente acabam por manipular e sufocar o
melhor do ser. Até o limite da dor que causa na alma.
Então, a pessoa explode, quando não em fúria, através
de doenças somatizadas ou de tristezas sem fim, por
tudo aquilo de bom que poderia ser, mas não foi”.
244
a falsa sensação de vitória. O poder sobre si mesmo
é pura luz; sobre os outros é uma terrível, porém,
inebriante sombra”.
245
“A cena dos dois na casa de Dayse é repleta
de simbolismos importantes. Lembre que o diretor faz
questão de que a porta seja aberta em câmara lenta para
enfatizar não o encontro entre namorados, mas como
se uma porta se abrisse para que cada um pudesse ir
ao encontro de si mesmo. Ela de cara lavada e sem
máscaras; ele com a desculpa de devolver os objetos,
quando na verdade ansiava pelo pedido de desculpas
da namorada e restabelecer os seus domínios”.
246
A VIDA NÃO É CURTA
T
Era sábado à noite quando o ônibus estacionou
na singela vila chinesa onde mora Li Tzu. Deixei a
minha mochila na única estalagem do lugar e fui para
a casa do mestre taoista. Como sempre, o portão estava
aberto e a pouca iluminação era fornecida apenas por
muitas velas espalhadas por todos os cantos, inclusive,
no belo jardim de bonsais. Meia-noite, o gato preto
que também morava lá, na espreita, desconfiado, me
acompanhou o tempo todo com os olhos. Chamei
pelo mestre algumas vezes, mas não obtive resposta.
O silêncio apenas era quebrado por uma melodia
alegre que vinha de longe. Achei que era deselegante
esperar por ele em sua casa e, como eu estava sem
sono, me deixei guiar pelo som animado. Atravessei
algumas ruas sinuosas sempre tendo os meus tímpanos
como bússola, até que cheguei a um sobrado de onde
surgia a música. Subi os degraus de madeira da escada
estreita e me deparei com uma espécie de baile aberto
ao público. Surpreendi-me com Li Tzu dançando uma
animada canção em companhia de uma bela moça.
Em seguida, ele foi conversar com um grupo de
amigos que pareciam felizes pela maneira como riam
e se abraçavam. Estranhei o comportamento do pacato
e silencioso mestre taoista.
247
curioso para ver a reação de Li Tzu quando ali me
percebesse. Apostei que ele se comportaria como uma
criança envergonhada ao ser pega em plena travessura.
Pedi uma bebida e esperei. Para a minha surpresa, ao
me ver, o mestre taoista abriu um largo sorriso e veio
até a mim de braços abertos. Após um abraço forte e
sincero, perguntei se ele aceitava uma bebida, pois tive
certeza de que toda aquela animação era em decorrência
de um estado alcoólico alterado. Em outras palavras,
tinha convicção de que ele estava bêbado. Então, outra
surpresa quando Li Tzu respondeu: “Água, por favor”.
Fez uma pequena pausa e justificou: “Não tenho nada
contra, mas, particularmente, não aprecio bebidas
fortes”. A pequena banda, formada por quatro ou cinco
instrumentistas, com flautas, tambores, chocalhos
e uma espécie de sanfona, iniciou uma canção que,
exceto por mim, era bastante conhecida, pois quase
todos foram para a pista de dança. O mestre taoista me
convidou a se juntar a eles. Como recusei, ele pediu
licença e foi acompanhar com os demais essa música
em que todos repetiam os mesmos passos, como um
corpo de balé ensaiado. Ao final, todos riram divertidos
e bateram muitas palmas.
248
Não satisfeito, acrescentei que ele, naquela
noite, fugiu aos padrões que eu esperava. O mestre
taoista sorriu e disse: “Ainda bem, Yoskhaz. Que eu
possa sempre desconcertar com o inusitado e a
ousadia”. Irritado, eu parti para o ataque ao dizer
que aquele comportamento mundano no baile feria as
diretrizes sagradas do Tao que ele próprio ensinava.
Li Tzu balançou a cabeça em negativa e explicou:
“O sagrado está oculto no mundano. Aquele precisa
deste para se revelar”.
249
Interrompi para dizer que não tinha
entendido. O mestre taoista foi didático: “Imagine a
sua existência como um grande lago, que ora tem as
águas plácidas banhadas por sol; noutras vezes, são
agitadas por fortes tempestades”.
250
pouco de chá, e disse: “Há uma ilusão e uma verdade
no que você acabou de falar”. Eu quis saber ao que ele
se referia e o mestre taoista foi paciente: “Sim, temos
que aproveitar a vida. No entanto, para aqueles que
assim o fazem, a vida não é curta. Ela tem o tempo
exato”. Olhou-me nos olhos e completou: “Tudo
depende do melhor sentido que cada um consegue
aplicar à própria vida”.
251
cascalho que esconde a divina estátua. A vida tem
que ser a melhor obra de si mesmo a embelezar os
jardins da humanidade. Quando entendemos isto e
nos movimentamos nesta direção, a existência ganha
sentido. Somente a vida desperdiçada se torna curta”.
252
ao sombrio desejo de impor os próprios conceitos
e a manipular às escolhas alheias. Boas intenções
quando desligadas das nobres virtudes acabam
por ser instrumentos detestáveis de manipulação
e aprisionamento. O mesmo acontece com o outro
lado da polaridade: a falta de coragem para enfrentar
com sabedoria e amor as batalhas que se apresentam,
aprisionam o indivíduo na sombra da desculpa de que
‘o mundo não tem jeito’, fazendo com que abandonem
as lições e o propósito da vida, desconectando o
melhor de si das maravilhas do mundo. Uma variante
comum é o trancamento em si mesmo na busca por
um conhecimento superior. Mergulhar em si mesmo é
primordial para o progresso pessoal, contudo, é preciso
voltar à tona e nadar para as margens para oferecer
ao mundo o tesouro encontrado nas profundezas do
seu âmago e, em contrapartida, conhecer as belezas
disponibilizadas pelas outras pessoas, em constante
exercício de aperfeiçoamento. O conhecimento
nunca se transformará em sabedoria caso não seja
compartilhado e aplicado ao cotidiano. Ao contrário, se
tratará apenas do medo se escondendo nos mantos do
egoísmo, do orgulho e da vaidade. É preciso vir sempre
à superfície, se alimentar com o sol, respirar novos ares,
confraternizar com toda a gente, encher os pulmões para
voltar a mergulhar fundo no lago da vida. Ambos os
movimentos, de longitude e latitude, devem se alternar
incessantemente, como orienta o Tao”.
253
Mas também encontre com os seus amigos, abrace,
sorria, cante e celebre esse valioso alimento da vida.
Medite, trabalhe, ouse, brinque e descanse. Enfrente
cada dificuldade, não como quem está diante de um
problema, mas como quem percebe um mestre em sala
de aula disposto a ensinar como se transforma muros
em pontes. É no contato com o mundo, no esforço e no
entendimento de unir todas as partes em uma única
peça, que as virtudes se manifestam e se constrói a
obra de arte cuja a matéria-prima é a vida de cada um
de nós, pedaço primordial ao Universo”.
254
O INFERNO ASTRAL
T
Naquele ano, o período no qual passo um
mês no mosteiro para estudo e reflexão coincidiu
com a chegada de um grande número de membros,
fato que me obrigou a dividir um quarto com outro
monge, como denominamos todos os iniciados na
Ordem. Tínhamos, eu e ele, hábitos bem distintos,
entre os quais os horários de dormir e acordar.
Eu me deitava mais cedo e me levantava bem antes
dele. Por mais que tivéssemos cuidado, luzes e ruídos
nos incomodavam mutuamente, ora a um, ora outro, a
depender das horas. Isto, aos poucos, foi criando um
desgaste em nosso convívio. Paralelamente, na véspera
da minha viagem para o mosteiro, eu tivera um grande
entrevero com os sócios da minha empresa por não
concordar com a maneira com que eles administravam
os seus departamentos. Eu tinha chegado aborrecido
às montanhas. Como se não bastasse, há poucos dias,
eu discutira com a minha namorada, pelo telefone, por
não gostar de uma postagem que ela havia feito em
uma rede social. Até que certa noite, com dificuldades
para dormir, me senti incomodado com o abajur da
cabeceira do colega de quarto, aceso para o auxílio na
leitura, além do barulho que ele fazia tanto para ir ao
banheiro quanto para comer ou beber alguma coisa.
Acabei por repreendê-lo de maneira rude. Tivemos
um desagradável bate-boca, que escalou a altos tons,
fazendo com que monges de outros quartos viessem
255
intervir para que não chegássemos às vias de fato.
No dia seguinte, após os ofícios da manhã, procurei
pelo Velho, o monge mais antigo da Ordem, para
conversar. Encontrei-o, distraído e feliz, podando
as roseiras do jardim interno do mosteiro. Falei que
estava em um mau momento e precisava conversar.
Ele guardou o alicate no bolso da túnica de lã, me
ofereceu um sorriso repleto de compaixão e disse:
“Eu estava à sua espera. Foi bom você ter vindo”.
Olhou para o céu e sugeriu: “Acho que logo começará
a chover. Vamos conversar em minha sala”.
256
nova realidade, muitas vezes impostas ao acaso, como,
por exemplo, a convivência harmoniosa com o seu
colega de quarto, pode se tornar mais enriquecedora do
que todo o estudo que você fará na Ordem este mês”.
Fez uma pausa e concluiu: “Devemos prestar atenção
às lições que podem existir na relação com aquele
parente chato ou com o estranho colega de trabalho.
As diferenças costumam ocultar valiosos mestres”.
257
Conhecer a virtude não a torna uma realidade
para si. Ou seja, ver a porta não significa que já a
tenha atravessado. Esse passo pode ser dado amanhã
ou, não raro, demorar séculos. Depende apenas
do andarilho. A serenidade é a prova externa do
equilíbrio interno. Todas as vezes que a irritação nos
domina, significa que perdemos a batalha. A porta
ainda não foi ultrapassada”.
258
deve ser dita apenas quando servir de ferramenta para
o auxílio de alguém, caso contrário, devemos calar.
A verdade nem sempre absolve; lembre que muitas
vezes usamos a verdade com a intenção de ferir ou
simplesmente punir. A verdade cumpre o seu sentido
quando anima e ilumina o coração alheio. Para tanto,
ela precisa estar envolvida em alguma forma de amor.
Temos que tratar a verdade com sabedoria; caso
contrário, discursaremos para ouvidos moucos ou,
mais grave, interpretaremos o famigerado personagem
de moralizador do mundo, os capatazes da sociedade.
No mais, cada uma das partes sempre entenderá
no exato limite da sua expansão de consciência e
capacidade amorosa. Nem um milímetro a mais.
Portanto, insistir é tolice; impor é violência. Contudo,
esteja sempre de coração aberto, sem taxas ou
impostos emocionais, quando retornarem em busca de
ajuda”. Bebericou mais um gole de café e prosseguiu:
“Da mesma forma, devemos estabelecer limites
através das virtudes da doçura e da firmeza, mescladas
com a sensatez, permitidas a cada caso específico,
para não usar uma bomba atômica com o intuito de
deter o abuso dos passos de uma frágil formiga”.
259
ignorância sobre quem somos. O descontrole emocional
revela que os fundamentos básicos das virtudes
que ainda não restam sedimentadas no indivíduo.
Em outras palavras, a irritação levada ao destempero
ou à agressividade é a reprovação nas lições essenciais”.
260
“O sentimento se espalha em sofrimento
quando fica perdido dentro da gente, perambula pelas
periferias mentais, sem rumo, cresce como uma
mágoa dolorosa cuja a incompreensão atribuímos aos
outros, mas na verdade é uma enfermidade típica de
quem se conhece apenas em parte. Sem entendimento
sobre quem você é por inteiro, não haverá cura; o
coração seguirá em hemorragia e a mente continuará
cega. Por incômodo e incompletude, na menor
oportunidade de conflito, você continuará a extrapolar
a própria dor na vã tentativa de transferi-la para os
outros, ainda que esse movimento seja inconsciente.
Então, perdemos o prumo, o passo e o compasso da
existência. É o reinado das sombras”.
261
Eu quis saber como tratar as sombras. O Velho
respondeu de pronto: “Com luz, filho. As virtudes são
os instrumentos da luz. A humildade, a compaixão,
o perdão, a simplicidade, a justiça, a pacificação, a
mansidão, a generosidade, a gratidão, a leveza, a vontade,
a honestidade, a sinceridade, a prudência, a doçura, a
paciência, a tolerância, o respeito, o equilíbrio, a pureza,
a coragem, a firmeza, o bom humor, a esperança, a fé,
além, é claro, do amor. O amor é a maior das virtudes
por estar presente em todas as demais”. Bebeu mais um
pouco de café e acrescentou: “Cada virtude é uma ponte
na estrada que leva à plenitude. A plenitude se compõe
da paz, da liberdade, da dignidade, da felicidade e do
amor em sua maior amplitude. O amor é uma ferramenta
e a própria obra. A luz é o destino infinito”.
262
Reconheci o meu comportamento conflituoso
para com o mundo e me confessei cansado de ser assim,
em sucessivos descontroles emocionais. O Velho
comentou: “Quando perdemos o controle é porque algo
está errado dentro da gente; no entanto, insistimos em
culpar os outros. Daí estagnamos, sofremos e brigamos.
Quando agredimos alguém significa que nos perdemos
de nós mesmos, esquecemos quem somos e vagamos
perdidos nos becos escuros do próprio ser”.
263
NOS BECOS ESCUROS DO CIÚME
E DA MENTIRA
T
Os horários inusitados e irregulares de
funcionamento da oficina de Loureiro, o elegante
sapateiro amante dos livros e dos vinhos, já
tinham virado lenda na charmosa cidadezinha
localizada no sopé da montanha que acolhe o
mosteiro. A única maneira de saber se o atelier
estava aberto era ir até lá. Por isto, virar a esquina
da estreita rua sinuosa, com calçamento de
pedras, e me deparar com a sua clássica bicicleta
encostada no poste em frente era motivo de alegria.
Fui recebido com um sorriso sincero e um abraço
forte. Eu disse que tinha ido em busca de uma boa
conversa sobre um assunto que vinha me incomodando
há tempos, o ciúme. Loureiro tinha no remendo do
couro o ofício que executava com extrema habilidade;
a costura de ideias era uma arte que ele trabalhava
com rara mestria. O bom amigo decidiu encerrar o
expediente, embora ainda estivéssemos no início da
tarde, e me convidou para almoçar em um tranquilo
restaurante próximo dali. Devidamente acomodados,
o garçom completou as nossas taças com um delicioso
tinto da região; logo em seguida, eu comecei a contar
que ultimamente vinha tendo muitas brigas com a
minha namorada em razão do ciúme que atormentava
o relacionamento. Os desentendimentos vinham
escalando de tom e as discussões estavam cada vez
264
mais desgastantes. Confessei estar cansado de me
sentir assim.
265
e a beleza ao ser; a desarmonia dos sentimentos traz
o peso e o desconforto de viver, que somatizados em
diferentes níveis, revelam desde um nocivo mau humor
até perigosos tumores”.
266
se avizinham. O artesão discordou: “Ledo engano.
O medo tem que ser enfrentado com vontade e
sabedoria para que não continue a esbulhar e a impedir
de ousarmos em viver os nossos sonhos, de sermos
diferentes e melhores aos padrões estabelecidos por
condicionamentos socioculturais, que acabam por
funcionar como uma espécie de cerca-elétrica, a nos
impedir de ir além e esconder a nossa verdadeira
face”. Bebericou um gole do tinto e prosseguiu:
“O medo paralisa e nos leva à estagnação. Tudo o
que fica estagnado, apodrece. Combatemos o medo
com coragem, virtude derivada da vontade, e com
sensatez e prudência, virtudes oriundas da sabedoria.
A coragem é a virtude que nos impulsiona a seguir
adiante na certeza de que todo desafio é uma lição
oferecida que, ao final, me deixará mais forte e
iluminado. A prudência me avisa dos perigos,
situações inerentes à vida, mas também me lembra
que devo ficar atento às oportunidades que ali se
ocultam. Por fim, vem a sensatez para me auxiliar
na escolha das várias direções que posso tomar
naquele momento. O mais importante é que, dentre
todas as escolhas disponíveis, só não posso parar
de caminhar”.
267
Interrompi para dizer que o sapateiro estava
errado. Afirmei que eu era um homem corajoso e não
tinha medo da minha namorada. Loureiro arqueou os
lábios em leve sorriso, por perceber que eu ainda não
entendia o que ele falava, e explicou com paciência:
“O ciúme surge do medo que nos acompanha desde
tempos ancestrais. Quando movido pelo instinto
primário, o inconsciente ainda nos condiciona a
dominar tudo aquilo que se apresenta como uma
ameaça. Por errada interpretação, entendemos como
uma ameaça o fato de alguém não mais desejar viver
ao nosso lado. Ao invés de priorizarmos a liberdade
alheia como um eficiente método de respeito a nossa
própria liberdade, acabamos por escolher em controlar
as escolhas do outro, seus desejos e vontades. Assim,
em essência, o ciúme se revela como uma guerra
contra o amor e a liberdade. Paradoxalmente, o medo
de sofrer movimenta todos os demais sofrimentos”.
268
da paz, da felicidade, da dignidade. São as flores da
vida. Essas sementes, todas escondidas no âmago do
ser, depois de plantadas, germinadas e floridas, devem
ter os seus frutos compartilhados com toda a gente.
Assim seremos plenos; dessa maneira espalhamos
beleza mundo afora. Embora receber amor seja
delicioso e importante, amar é a nossa face divina.
Ao contrário do que se prega, amor não é troca. Amor
é doação; o único amor que tenho é tão e somente
aquele consigo dar. Este é o segredo da plenitude”.
269
nossas próprias prisões nas quais somos prisioneiros
e carcereiros um do outro, simultaneamente. Uma
absurda situação na qual o prisioneiro não pode sair,
pois é impedido pelo carcereiro, e este, também resta
aprisionado na função de vigiar eternamente o outro
no cárcere da infelicidade”.
270
é. Isto o impedirá se tornar uma pessoa diferente e
melhor. Como consequência não conseguirá manter
a leveza indispensável a qualquer romance. Então,
o outro logo se sentirá desconfortável, ainda que
não descubra a mentira, e desejará partir. Embora
naquele instante desconheça que é mentira o que lhe
contam, se sente desinteressado pelo romance, pois
a fraude poluiu a atmosfera do amor. Não esqueça
que o universo se compõe de energias de múltiplas
frequências que se entrelaçam para nos conduzir à
perfeição. Não há como ignorar esta Lei. A mentira
é um feitiço que sempre envenenará a porção na qual
o feiticeiro terá que beber. Há que se ter compaixão”.
271
como você se comportará diante da situação. Lembre
sempre que ninguém precisa de ninguém para ser
feliz, uma vez que a felicidade é um tesouro escondido
dentro de cada um de nós. No entanto, precisamos dos
outros para dividir a beleza que nos habita, aprender e
ensinar; os relacionamentos são primordiais para nos
tornar pessoas melhores quando há empenho em aparar
as arestas e pacificar o convívio com todos. No mais, a
Lei das Infinitas Oportunidades sempre permitirá que
uma nova história de amor seja escrita em sua vida.
Basta aprender a lição. Afinal, o término de um ciclo
sempre será o início de outro”.
272
Caminho se definem pela maneira de o andarilho
pisar no chão”.
273
A FRONTEIRA ENTRE A RIQUEZA
E A PROSPERIDADE
T
Um dos meus sócios na agência de publicidade
conseguiu me localizar na única estalagem da
pequena vila chinesa onde morava Li Tzu. Tanto o
sinal do celular quanto a internet eram precários e
intermitentes em razão da região, não raro, assolada
por fortes ventanias. O recado deixado na recepção
era claro: eu deveria retornar imediatamente das
minhas férias e interromper os estudos do Tao Te
Ching que fazia com o mestre taoista. Uma conhecida
multinacional tinha nos procurado para fechar um
vultoso contrato. Todavia, para atendê-la da melhor
maneira, teríamos que rescindir os acordos com as
pequenas e médias empresas que sempre foram uma
base sólida para a agência. Toda a paz e a felicidade
que eu estava sentindo nos estudos, na meditação
e na prática da ioga, que iniciara naquela viagem,
desapareceram por completo. Fiquei tenso e dividido
entre ir e ficar; entre o risco de aceitar um negócio
milionário que poderia despencar na variação dos
interesses típicos de uma grande corporação, mas
que, se mantido, me deixaria rico ou permanecer no
atendimento às muitas firmas que nos acompanhavam
desde o início da agência. Com os nervos exaltados,
os sócios estavam divididos entre as opções. Acabei
por discutir com um deles ao retornar a ligação.
274
Quando entrei na casa de Li Tzu, Meia-noite,
um preguiçoso e desconfiado gato preto que morava lá,
me olhou espantado, eriçou a pelugem e se escondeu.
O mestre taoista, ao me ver, mesmo sem ainda saber dos
fatos, não hesitou em afirmar: “Algum acontecimento
não foi bem absorvido em seu interior e teve força
para lhe tirar do eixo. A sua energia emana tensão e
desajuste”. Confessei-me agoniado e contei tudo o que
ocorria. Ele me convidou para um chá. Enquanto me
acomodava à mesa, Li Tzu colocou algumas ervas em
infusão, comentei que estava triste de ter que interromper
abruptamente aquele retiro em razão da solicitação dos
meus sócios, pois aquela convivência me fazia bem.
O mestre taoista deu de ombros, como quem fala o óbvio,
ao dizer: “A cada um os percalços a serem enfrentados
no Caminho. O que fortalece o peregrino são as escolhas
de direção todas as vezes que surge uma bifurcação.
E elas são muitas; algumas simples, outras complexas.
De um lado a estrada das paixões; de outro, a vereda do
amor. A cada escolha escrevemos o diário da viagem,
definimos a paisagem que encontraremos a seguir, o
tempo e a dificuldade do percurso naquele trecho”.
275
que qualquer pessoa no meu lugar também ficaria
dividida e agoniada com a decisão que tomaria.
A chance era boa, porém envolvia riscos consideráveis.
Ele discordou: “Os riscos são inerentes à vida. A ousadia
é necessária”. Perguntei se ele estava aconselhando a
fechar negócio com a multinacional. O mestre taoista
balançou a cabeça: “De jeito nenhum. A ousadia reside
em fazer o que poucos fariam. Está em ir quando todos
acham melhor ficar ou ficar quando todos gostariam de
partir. A escolha tem que ser sua, pois, será você quem
terá que lidar com as consequências e, mais, é parte
essencial do aprendizado que lhe cabe. Cada escolha
funciona como o leme da nau na viagem da existência.
A viagem é pessoal e intransferível, pois traz consigo
a magia da plenitude quando se trava a batalha do
destino. Mas pode levar ao sofrimento quando se luta
a guerra errada”. Falei que não estava entendendo e
pedi que explicasse melhor, afinal, ele era um mestre.
Li Tzu sorriu com sincera humildade e falou:
“Vou ajudá-lo sempre que possível. No entanto, jamais
esqueça que cada qual é o perfeito mestre de si mesmo
e, também, o único guerreiro que poderá conduzi-
lo a vitória”. Em seguida, abriu um surrado exemplar
do milenar Tao Te Ching, no capítulo trinta e três:
276
Pediu para que, depois que eu soubesse o
texto de cor, me dirigisse à sala de meditação e ficasse
lá com as outras pessoas que também estudavam o
Tao. Retornei no final do dia em busca de uma boa
conversa e alguma orientação. Li Tzu pediu que eu
fosse para a estalagem descansar e retornasse no dia
seguinte. Isto se repetiu por três dias consecutivos,
sem que eu conseguisse trocar ideias com o mestre
taoista. Ansioso, procurei por Li Tzu para dizer que
eu estava sendo pressionado pelos meus sócios que
pediam a minha volta e exigiam uma decisão em
relação à questão. A multinacional não esperaria
por muito tempo. Ele disse: “O seu tempo é o tempo
perfeito para você”. Falei que não tinha entendido.
O mestre taoista foi didático: “Enquanto o tomate
amadurece em meses, o abacateiro leva anos até a
primeira floração. Assim são as pessoas. Cada qual
tem um período único de gestação para que uma nova
ideia esteja pronta para ser vivida. É o movimento
interno de contração, o Yin, que deve se ampliar ao
limite para restar completo e então possa, em constante
processo de mutação, iniciar a fase de expansão para
o mundo, o Yang. Ambos são igualmente importantes
e imprescindíveis. Daí a importância da paciência
para com toda a gente e, principalmente, para consigo
mesmo”. Olhou-me com bondade e perguntou: “A sua
escolha já está madura?” Respondi que não e por isto
eu estava agoniado. Acrescentei que não achava justo
fazer com que os outros esperassem indefinidamente
pela minha escolha. Li Tzu concordou, em parte: “Claro
que não podemos estender demasiadamente uma
decisão quando terceiros dependem dela. Isto é ruim,
é exercício de dominação. No entanto, também não a
277
podemos apressá-la em demasia apenas no intuito de
atender à ansiedade e aos desejos alheios. Isto também
é ruim; é a permissão da dominação. Algo ou alguém
apenas têm sobre nós o poder que concedemos a eles;
não devemos permitir a interferência sobre as nossas
escolhas. Precisamos nos respeitar, sempre com o
cuidado de manter o orgulho, a vaidade e o egoísmo à
distância. Esta é uma maneira elegante de atravessar
a vida. Isto é libertador”.
278
fosse rico, não me faltava nada. Acrescentei que tinha
um ótimo relacionamento com os clientes antigos,
donos de pequenas empresas. Alguns tinham até
virado amigos. Não desejava trocar isso por uma
relação impessoal e de meros resultados numéricos.
Esta era a minha escolha. Perguntei se eu estava errado.
Li Tzu bebeu um gole do chá e disse: “Não existe
certo ou errado. As escolhas devem estar alinhadas à
vida que cada um deseja viver. Respeite as escolhas
alheias como jeito honesto de fazer com que as suas
escolhas sejam respeitadas, principalmente por você
mesmo. O melhor para você não é, necessariamente,
o melhor para o outro; a recíproca se aplica de modo
exato. Isto o faz entender qual é a sua batalha para
não travar a guerra errada”.
279
A riqueza está ligada ao acúmulo de bens, ao conceito
de quanto mais eu tiver mais poder terei. O indivíduo
passa por toda uma existência empenhado em
amealhar posses; depois fica preocupado em proteger
a riqueza para não perdê-la, pois, segundo raciocínio
típico, seria considerado como uma derrota”.
Olhou-me com doçura e fez uma pergunta retórica:
“Qual a utilidade de ter mais do que se precisa?”
280
a liberdade, a dignidade, o amor incondicional e a
felicidade. O verdadeiro tesouro é imaterial e sutil, tal
e qual o espírito. A plenitude traz consigo um poder
incomensurável”.
281
“Cada pessoa sempre estará diante da
perfeita batalha. Trata-se daquela travada dentro de
si mesmo, com as armas disponibilizadas sempre
na exata necessidade do aprendizado individual.
Esta é a parte que cabe a cada qual na obra de arte
da vida. Tenha cuidado para não esquecer da sua ao
se distrair com a batalha dos outros. Senão, lutará
a guerra errada. Enfrente a sua com determinação e
se empenhe em ajudar os demais no que for capaz.
Assim, a prosperidade sempre será uma aliada.
Este é o bom combate”.
282
ganho muito dinheiro durante aquele período, puderam
se aposentar sem qualquer dificuldade econômica em
relação ao futuro. Tinham ficado ricos. Um deles foi
morar em uma bela mansão nos arredores de Paris,
cidade onde residia a filha. Mais tarde, eu soube que ele
sofria de depressão pelo fato de encarar o fechamento
da agência como uma derrota pessoal. Tornou-se uma
pessoa de difícil trato. O outro separou uma boa parte
do dinheiro adquirido para montar uma ONG junto a
um subúrbio do Rio de Janeiro, com a finalidade de
instruir jovens carentes nos vários softwares de design
gráfico, indispensáveis para quem deseja ingressar na
publicidade. Era um homem feliz por usar o que tinha,
seja o dinheiro, seja a vasta experiência no setor, em
prol da alegria de todos.
283
Hoje, quando escuto as pessoas confundirem
riqueza com prosperidade, é inevitável a lembrança
das lições de Li Tzu. Recordo que naquela visita,
quando, com a mochila nos ombros, fui me despedir
dele, o mestre taoista perguntou se a minha escolha
estava madura. Respondi que sim. Ele, então,
sussurrou um dos segredos mais profundos do Tao:
“O poder sobre si mesmo lhe concede a força do
mundo e a beleza da vida”.
284
OS DESERTOS DO SER
T
Quando entrei no refeitório do mosteiro em
busca de uma caneca cheia de café, percebi que o
Velho, como carinhosamente chamávamos o monge
mais antigo da Ordem, conversava com Valentina, uma
jovem e bela monja da nossa irmandade. Ela é uma das
poetisas mais talentosas da sua geração e, nas horas
vagas, trabalha como engenheira em uma conhecida
empresa aeroespacial. Eu tinha acabado de chegar ao
mosteiro e não sabia que ela também estava lá para o
seu período de estudos. Fiquei feliz em vê-la. Somente
quando me aproximei foi que reparei as lágrimas
escorrendo pela face da moça. Fiz menção em me
afastar, mas ela sorriu ao me ver e me convidou para
sentar com eles. Valentina brincou comigo ao dizer
para eu não ter medo de mulheres que choram. Embora
um pouco constrangido, sorri e balancei a cabeça ao
afirmar que eu não tinha problemas com isso, apenas
não queria atrapalhar a conversa. Ela insistiu para que
eu sentasse. O Velho abriu um largo sorriso ao perceber
que Valentina mantinha o bom humor e a delicadeza
apesar da dor, indicou com o queixo uma cadeira ao
seu lado e disse: “Lágrimas são gotas que transbordam
quando os mares do coração estão agitados”.
285
consideravam como certa a sua indicação. Ela também.
Ocorre que na última reunião a diretoria optou por outro
funcionário para preencher a vaga. Fato que ela achou
injusto e a encheu de mágoas. Com os olhos mareados,
a jovem monja disse que estava ressentida e, confessou,
até mesmo com uma ponta de raiva. Aproximava-se a
hora de retornar e ela comentou que, embora amasse o
seu trabalho, considerava a hipótese de pedir demissão
para mergulhar em um período sabático no mosteiro
em busca de reflexão e entendimento.
286
“As maneiras de reagir são várias e definem
quem ainda não somos. Uns se utilizam de ofensas,
lamentos e maledicências; outros, negam a mágoa e
se dizem ‘apenas decepcionados’ e usam a violência
do desprezo para satisfazer o orgulho ferido.
Muitos ficam incomodados pela imagem que o fato
reflete, como um espelho, mostrando a insensatez do
ego exacerbado ou a mentira que a vaidade, usada
como maquiagem, escondeu; alguns tentam se ocultar
na ilusão de que o mundo não é um bom lugar e as
pessoas são nocivas, então, optam por se retirar da
realidade pelo medo que têm de enfrentá-la. Assim,
terminam desanimados perante a vida”. Fez uma
pausa e disse com sinceridade: “Esta última hipótese
me parece ser o caso em questão”.
287
isto, negamos. Costumamos negar a imagem refletida
no espelho quando este não mostra a face idealizada”.
288
Aquela traz a fama e os aplausos; esta te oferece
a verdadeira riqueza da vida, a plenitude, traduzida
em seus cinco estados: liberdade, paz, felicidade,
amor e dignidade”.
289
“Um problema pode te levar para o meio
de um deserto inóspito e te abandonar lá. Porém,
esse mesmo problema pode ser o celeiro de valiosas
sementes para um novo ciclo de vida. Flores e frutos;
perfume e beleza, não permitidos até então. Apenas
você tem o poder de definir sobre os jardins ou os
desertos da sua própria vida. Nada mais ou ninguém”.
290
Piscou um olho como quem conta um segredo e
concluiu com uma frase enigmática: “Os dedos do
universo são longos”.
291
assim que me avistou. Recebeu-me com um sorriso
sincero e me entregou um envelope. Adiantou que
era o convite para o seu casamento. Perguntei quem
era o homem mais sortudo do planeta e ela contou
que vivia um belo filme escrito por um roteirista
encantado. Explicou que após aquela conversa no
mosteiro seguiu empenhada nos seus estudos e
trabalhos, sem se deixar envolver com comentários
maliciosos sobre a decisão da empresa. Com o passar
dos meses, o funcionário escolhido para o cargo se
mostrou um homem competente e sério, no entanto,
o projeto envolvido era grandioso e ele necessitou
de ajuda. Convidou-a para montarem uma equipe.
Disse que admirava não apenas a sua capacidade
profissional, mas a postura digna que manteve durante
todo aquele período. Em plena afinidade, de braço
direito ela se tornou uma feliz namorada; de potencial
adversário, ele virou um marido apaixonado.
Amam-se profundamente. O Velho não disse palavra,
apenas sorriu e mostrou as mãos espalmadas como
quem diz: “Os dedos do universo são longos”.
292
O VIAJANTE
293
Grão: O deserto não é um bom lugar para
se viver.
Grão: Não.
Grão: Não.
294
Viajante: Do que me serve a semente?
295
O SAGRADO
T
Canção Estrelada, o xamã que tinha o dom de
difundir a sabedoria do seu povo através da palavra,
cantada ou não, baforava o seu indefectível cachimbo
de fornilho de pedra vermelha enquanto, da varanda
da sua casa, em silêncio, observávamos as cores com
que o sol poente pintava as montanhas e o céu do
Arizona. Na sala da casa, Canção Estrelada mantinha
um pequeno altar. Diferente da minha tradição
cristã, na qual mantenho imagens de Jesus, Fátima
e Francisco de Assis ou na casa de Li Tzu, o mestre
taoista, onde vemos pequenas estátuas de Buda, Shiva
e Ganesha pelo jardim de bonsais, no altar do xamã
repousava uma pena de águia, uma garra de urso, seus
animais de poder, o tambor de duas faces usados em
seus cerimoniais, algumas pedras que ele, em respeito,
reverenciava como “o ‘povo’ mais antigo, que traz toda
a memória e a energia dos acontecimentos vividos no
planeta desde tempos imemoriais”, além de muitas
plantas. Eu entendia bem como funcionava toda a
linguagem e a ritualística xamânica com as suas fortes
e belas conexões telúricas. No entanto, algo me causava
estranheza. Tratava-se de um sapato de palhaço, bem
antigo, daqueles tradicionais, enorme, colorido e com
o bico propositalmente aberto.
296
boca, fechou os olhos como se a memória o levasse
a uma viagem distante e disse: “Na adolescência
trabalhei como palhaço-mirim por um breve período
em um circo que rodou esta região. Foi uma época
de muitos risos”. Fez uma breve pausa e prosseguiu:
“Ele é sagrado para mim”. Argumentei que não se
tratava de um objeto sagrado, mas de uma agradável
lembrança. Canção Estrelada virou a cabeça em
minha direção para me olhar nos olhos e disse:
“Tudo aquilo que me torna um homem melhor é
sagrado. As imagens de mestre Jesus ou de mestre
Buda apenas serão sagradas se tiverem em você a
força de recordar as lindas lições deixadas por eles.
Este é o poder delas”. Questionei como um sapato
de palhaço poderia ajudar em seu processo evolutivo.
O Xamã explicou com paciência: “A alegria é uma
característica dos espíritos iluminados. Trata-se uma
vigorosa ponte que nos liga ao mundo invisível. Todos
os dias, quando passo pela sala de casa, o sapato tem
o poder de não me permitir esquecer a importância
da alegria na vida”. Fez uma pausa e concluiu:
“A mais eficiente prece de gratidão ao Grande Mistério
por todas as bênçãos da existência é a semeadura da
alegria por onde passarmos”.
297
sapato de palhaço na sala de Canção Estrelada.
Para a minha surpresa, não estava lá. Mais tarde,
enquanto tomávamos café e conversávamos na
varanda, indaguei pelo sumiço do sapato. O Xamã me
disse com simplicidade: “Eu dei o sapato ao filho da
minha irmã”. Questionei o motivo de ele se desfazer de
algo tão precioso para si. Canção Estrelada explicou:
“O jovem estuda para ser ator e não sabia que o tio
já tinha trabalhado nos palcos. Ficou encantado e
pediu para levar como objeto de inspiração. Permiti
com alegria”. Ainda sem entender, perguntei se era
correto se desfazer de um objeto sagrado. O xamã
sorriu e falou: “Era mais importante para ele do que
para mim. Temos que ter cuidado para que a nossa
casa não vire um museu, algo bem diferente de
termos um altar, com tudo aquilo que nos ajuda na
conexão com o infinito e nos transforma. Um altar
pode ser material ou imaterial, assim como tudo o
mais que o compõe”.
298
Passado uma semana, ela chegou. Nayelli
era o seu nome. Uma mulher morena, magra e ágil,
na mesma faixa etária de Canção Estrelada, com
fortes traços étnicos. Os cabelos compridos, já
grisalhos, eram presos em rabo de cavalo. Tinha um
olhar e uma postura que emanavam uma estranha
e incomensurável força. A fala, embora firme,
demostrava uma bondade enorme e sincera. Percebi
que era muito querida por todos. Assim que trocou
de roupa foi ao nosso encontro. Fomos apresentados
e ela se mostrou gentil. Saímos os três para uma
caminhada até um enorme lago não muito distante.
Enquanto andávamos, os dois conversavam. Nayelli
era uma bem-sucedida editora. Ela publicava livros
que falavam sobre a história, a filosofia e a mitologia
dos seus ancestrais, seja através de biografias, seja em
romances de ficção. As obras vendiam aos milhares,
mensalmente, em diversos países. Era uma pessoa
de hábitos simples sem demonstrar a boa condição
financeira que alcançara. Quando chegamos ao lago,
já era final da tarde. Canção Estrelada me pediu
para acender uma fogueira e avisou que passaríamos
a noite ali. Ele tinha levado mantas para todos. Logo
o céu ficou salpicado de estrelas, nos aproximamos
do fogo para afastar o frio e uma enorme lua cheia
veio nos visitar, surgindo por detrás das montanhas,
vizinhas ao lago, ao norte. O xamã batucou o tambor
de duas faces em ritmo suave e Nayelli começou a
cantar uma linda e sentida canção. Em seguida, com
a face banhada em lágrimas, se levantou e começou a
dançar na beira do lago, ao som da melodia. Canção
Estrelada e Nayelli tinham no rosto um sorriso sereno,
pareciam em êxtase; eu olhava tudo, admirado.
299
Passado um tempo que não sei precisar, a
mulher se sentou ao nosso lado, junto à fogueira.
Aos poucos o tambor de duas faces diminuiu o ritmo
até silenciar. Canção Estrelada acendeu o indefectível
cachimbo com fornilho de pedra vermelha e pediu
para Nayelli me contar um pouco sobre a sua vida
para eu entender o que tinha presenciado. A editora
contou que havia se casado muito jovem com outro
membro da tribo, um homem digno e amoroso.
Logo nasceu o filho do casal, um lindo e saudável
menino. Formavam uma família feliz. Pouco depois
sofreram um acidente automobilístico, o que encerrou
a passagem do marido e do filho nesta existência.
Nos primeiros meses se sentiu desorientada e sem chão.
Confessou que, na verdade, se sentiu complemente
destruída. Eram tantos cacos que chegou a duvidar
se algum dia tornaria a se sentir inteira. Não sabia
o que fazer da vida e até mesmo como sobreviveria,
uma vez que sempre cuidara da casa e do filho
enquanto o marido trabalhava. Não eram ricos e a
poupança era pouca. Até que um dia ela resolveu
passear nas montanhas e aconteceu algo estanho.
Foi como se o vento soprasse uma voz que dizia para
ela encontrar forças na sabedoria do seu povo.
300
um despertá-lo em si. Na tradição cristã esta valiosa
virtude é conhecida como fé”.
301
em que eu avançasse nas páginas da minha história.
Fugir da própria história é fugir de si mesmo, é negar
a realidade; é abandonar o sonho, abdicar do dom e
virar as costas para o Caminho. É não conhecer o mel
da vida; é recusar o sal da terra”.
302
filho, eu me senti destruída, abandonada e cheguei
a duvidar se algum dia tornaria a ter alegria e vontade
em viver. Eu olhava para os potes que guardavam
as cinzas deles e me afogava em tristeza. Um dia,
lendo um livro, me permiti uma interessante analogia
de ideias: a tristeza e a covardia eram o avesso dos
espíritos daquelas pessoas que eu tanto amava.
Eles tinham que ser a minha força e não a minha
fraqueza”.
303
Tornou a dar uma pausa e concluiu:
“As pontes podem ser de cimento, de pedras, de
madeira, de porcelana ou mesmo de cinzas. As mais
sólidas, não tenha dúvida, são as construídas pelo
mais puro amor”. Perguntei de ela sentia saudade
deles. Nayelli me ofereceu um sorriso bondoso e
disse: “Claro! Eu adoro sentir saudade. A saudade
é sagrada, pois apenas existe onde há amor.
No entanto, a saudade para ser sagrada tem que
ser alegre, como são alegres o amor e a liberdade.
Quando sinto saudade deles, posso estar em Londres
ou Hong Kong, olho para céu, danço, canto as belas
canções que conheço e o meu coração fica em paz.
A lua é o meu altar, ela é sagrada para mim”.
304
A REALEZA DO MUNDO
T
O trem tinha me deixado cedo na estação
da pequena e charmosa cidade que fica no sopé da
montanha que acolhe o mosteiro. Como a minha
carona até a sede da Ordem era para o final da tarde,
decidi arriscar a encontrar aberta a oficina de Loureiro,
o sapateiro amante dos livros e dos vinhos, lendária
não apenas pela habilidade do artesão em costurar
tanto o couro quanto as ideias, mas também pelos
horários inusitados de funcionamento. Naquele dia
a loja estava fechada, embora todo o comércio local
estivesse em plena atividade. Um jornaleiro próximo
me informou que o meu amigo tinha trabalhado noite
adentro, cerrando as portas assim que amanheceu.
Resolvi seguir para uma cafeteria em busca de uma
xícara de café fresco e um pão com o bom queijo da
região na chapa. Antes, comprei o jornal para me fazer
companhia. Enquanto andava pelas ruas estreitas e
sinuosas com calçamento de pedras, típicas daquela
cidadezinha, passei os olhos nas manchetes e li que
uma famosa rainha de um país europeu havia falecido.
Embora o cargo fosse apenas protocolar e simbólico,
sem qualquer poder administrativo, a reportagem
relatava uma grande comoção. O enterro ocorreria
com toda a pompa.
305
enquanto lia o mesmo jornal. Abriu um sorriso
sincero quando me viu, se levantou para me dar um
forte abraço e me convidou para sentar com ele.
Era um homem elegante. Magro, alto, com o corpo
ágil e ereto apesar da idade, os cabelos completamente
brancos. Ele vestia uma calça preta de fina alfaiataria
acompanhada de uma camisa imaculadamente branca,
com as mangas dobradas até a altura dos cotovelos e
sapatos de confecção própria. A sua elegância sempre
me chamou a atenção. Sentados, comentei a surpresa
pela morte da rainha ter causado tanto burburinho.
Sugeri que talvez fosse pelo fato de a realeza estar
ligada à época romântica do mundo. Não que eu
fosse a favor de qualquer tipo de absolutismo, muito
pelo contrário, repudiava a centralização do poder
público e o cerceamento das liberdades, individual
e coletiva. Eu achava que a globalização deixara
o mundo muito “sem sal”. Reis e rainhas eram
de um tempo em que o mundo era mais elegante.
Hoje, jovens de Paris, Tóquio ou do Rio de Janeiro se
vestem iguais: jeans, t-shirts e tênis. As roupas, que
sempre marcaram diferenças culturais, eram cada vez
mais parecidas, assim como os hábitos e os gostos.
Falei que o planeta estava ficando sem graça e as
pessoas se ressentiam disso.
306
atuais, traz a sensação ancestral de orfandade por
parte da população. Isto apenas ocorre quando o
indivíduo ainda não consegue entender quem é, não
consegue dar conta de si, se sente impossibilitado de
equilibrar os próprios sentimentos ou não consegue
articular com clareza as suas ideias. Então, transfere
a responsabilidade pela sua felicidade e, assim, o
falecimento de um monarca é interpretado como uma
perda pessoal, capaz de afetar o seu bem-estar”.
307
“A nobreza dos dias atuais não é mais
caracterizada por essa bobagem de títulos nobiliárquicos
nem por laços sanguíneos. Nobre é o indivíduo que trata
os demais, seja filho, vizinho ou um mero desconhecido,
como se ele fosse a pessoa mais importante do mundo.
E, em verdade, é. O faz, não por encenação, mas por
sentimento, com sinceridade e amor, pela consciência e
responsabilidade em saber do valor dos mínimos gestos
individuais na harmonia da obra coletiva”.
308
de amor. Oferecer um sorriso para espantar a tristeza,
dizer uma palavra de esperança para adocicar uma
alma amarga, mostrar a delicadeza no meio da selva da
impessoalidade, são de uma nobreza incomensurável.
É a possibilidade da beleza impensada. Nisto reside
toda a força e poder. O resto são apenas máscaras tolas
e ilusões vulgares”.
309
para o Loureiro. Ele sorriu de volta e sussurrou:
“Agora temos um segredo”. Rimos e uma gostosa
sensação de bem-estar me invadiu o coração.
310
O MELHOR MÁGICO DO MUNDO
T
Eram dias modorrentos. Eu andava desanimado
naquele período em que estava no mosteiro para
estudos. Não conseguia me concentrar nas leituras
nem nas meditações. As palestras e debates
pareciam de uma chatice sem fim. As atividades
físicas, como a ioga ou caminhadas pelas montanhas
também não me despertavam interesse. Aos que
me perguntavam sobre a razão do meu “olhar sem
vida”, respondia que não mais alimentava ilusões
quanto à humanidade. Argumentava que as nuvens
da vaidade, da inveja, da ganância, da mentira e
do medo tinham deixado o mundo para sempre sob
as suas sombras. Até que encontrei o Velho, como
carinhosamente chamávamos o monge mais antigo
da Ordem, acomodado em uma poltrona na varanda
do mosteiro, entretido com um livro. Ofereci de ir
à cantina buscar uma xícara de café e ele aceitou
com um lindo sorriso. Quando acomodei a caneca
na mesa ao seu lado, o monge me convidou para
sentar. Sem que ele me perguntasse nada, assim
que me acomodei, soprei um vendaval de lamentos
quanto à inutilidade da vida. Confessei que não
via sentido em viver e, talvez, aqueles que viviam
pela busca constante do prazer estivessem certos.
O Velho deu de ombros e disse: “Depende
daquilo que você entende como prazer”.
311
Fechou o livro e prosseguiu: “É preciso definir
um sentido para a viagem. Caso contrário, nenhuma
paisagem será capaz de lhe encantar os olhos. Nada
nem ninguém terá beleza. Em natural reação, você
não terá nada de bom a oferecer em razão do vazio
que o habitará. Então, tudo parecerá chato, triste e
abandonado, inclusive você. É preciso que sempre
haja flores e frutos para compartilhar em nosso cesto
sagrado, o coração”.
312
aparências da existência. A escolha entre o brilho ou
a luz, define o prazer, o sentido e a dimensão da vida”.
313
de amor sincero, entre outras escuridões silenciosas
da existência. Outros, ainda nas veredas do brilho,
embora em estágio não tão sombrio, imaginam achar
os estados da plenitude na vitória sobre os demais,
na ostentação do luxo, na fama vazia e nos aplausos
fáceis. Suas escolhas privilegiam aquilo que os olhos
conseguem enxergar na superfície, na aparência,
longe do mel da essência, abandonado no âmago do
ser. Se iludem em buscar fora aquilo que somente
encontrarão dentro de si. A sombra mais poderosa,
rainha de todas as demais, é a ignorância”.
314
que espectadores, mas personagens influentes no palco
da existência, ficaremos entretidos com o resultado
aparente do truque, sem usufruir da plenitude, que
na verdade se revela aos poucos, oculta no processo
infinito das transformações íntimas”.
315
atos de ordem pública; e a felicidade os aguarda em
festas barulhentas, sem entender que a agitação nem
sempre garante a alegria”.
316
profunda e infinita beleza através do ritual sem fim
de encontrar a luz muito além dos brilhantes fogos de
artifício oferecidos pelo mágico das sombras”.
317
A LUZ DO MUNDO E UM BOLO DE LARANJA
T
O dia amanhecia. Eu estava na pacata estação
da pequena e charmosa cidade, situada no sopé da
montanha onde fica o mosteiro, à espera do trem
que me levaria com o Velho, como carinhosamente
chamávamos o monge mais antigo da Ordem, até uma
movimentada metrópole, sede de uma prestigiosa
universidade. Ele era muito requisitado para palestras
em escolas, empresas e centros comunitários.
Nunca recusava um chamado. Na impossibilidade
de alguma data em razão de outro compromisso,
não sossegava enquanto não ajeitava o calendário
para atender ao pedido. Como o nosso trem ainda
demoraria um pouco, fomos até a cafeteria da estação
em busca de uma xícara de café fresco e do famoso
bolo de laranja com gengibre feito pela gentil dona
do estabelecimento. Devidamente acomodados, com
duas canecas fumegantes à frente, perguntei se ele não
sentia necessidade em ter mais tempo para descansar.
O monge bebericou o café e disse: “Descansar é muito
importante, assim como ter um tempo para dedicar a
mim, encontrar comigo mesmo e ‘arrumar a casa’”.
Deu um sorriso e complementou: “Fazer faxinas
rotineiras são de extremo valor para que possamos
varrer a poeira dos sentimentos densos, consertar
as emoções que quebraram, trocar a decoração
ultrapassada das ideias que não mais embelezam
a vida, abrir as janelas para uma troca de ares e
318
permitir ao sol entrar. A minha casa é o meu ponto
de observação e interação com o mundo”. Bebeu mais
um gole de café e prosseguiu: “Da mesma maneira,
tem grande importância dedicar um tempo à diversão.
A arte, através de qualquer das suas modalidades,
que tanto nos ajudam a ver além das fronteiras dos
condicionamentos e da rotina do cotidiano, encontrar
com os amigos, com a família para boas conversas e,
acima de tudo, rir bastante, têm a força de alimentar
a alma”. Olhou-me nos olhos e concluiu: “No entanto,
apenas quando estou servindo sinto o poder do
universo de um jeito diferente. Quando compartilho
o melhor que há em mim, levo conforto ao coração
de alguém, ajudo a brotar o sorriso no rosto de outra
pessoa ou consigo, com uma palavra, iluminar a
escuridão nos porões de uma alma, é como se as mãos
das estrelas se acoplassem às minhas e todo o meu
ser ardesse em fogo, tamanha é a luz que me invade.
É o perfeito sentimento do sagrado”.
319
mesmo tempo em que colabora com a obra do mundo,
no expoente da capacidade que já tenha atingido e
no exercício do pleno aperfeiçoamento daquilo que
pretende ser, funciona como uma lanterna a orientar,
além dos próprios passos, os de quem está ao redor,
durante os nevoeiros da existência. Unir um cuidado
ao outro, em serena harmonia, traduz a melhor arte,
aquela em que o artista e a obra se fundem em um”.
320
maneira eficiente de revolucionar a vida. Mudamos
o mundo apenas na medida que nos transformarmos
naquele cidadão que ansiamos encontrar nas ruas.
Nunca na força bruta do discurso vazio e vaidoso,
sempre no poder sutil da doce e humilde atitude”.
321
a dia. Quais virtudes podemos identificar em cada
gesto? O jeito como reagimos a cada negativa ou
decepção leva à derrota ou estimula a superação.
A maneira como trabalhamos o ego em conjunto com a
alma quando alguém se opõe ou atrapalha a conquista
de um desejo define quem ainda não somos. A seiva
que alimenta a árvore são as ideias e os sentimentos
que se refletem no doce ou no amargo dos frutos.
Ou mesmo se haverá qualquer fruto. O jardim ou o
deserto à nossa volta são apenas consequências naturais
da árvore, frondosa ou seca, que nos permitimos ser”.
322
respondeu com serenidade: “O Apocalipse não trata
do final do mundo; é uma imagem de ficção literária
destinada a permitir o desembarque daqueles que
possuem amor no coração. A viagem, na verdade, já
começou há tempos e muitos ainda não percebem que
este planeta são apenas os trilhos pelos quais cada
maquinista conduz o próprio trem. Outros destinos,
bem mais agradáveis, somente são permitidos para
aqueles que têm pureza na alma e boa vontade
para com os demais passageiros. A viagem é sem fim,
mas a mudança de rota é uma escolha hábil, a qualquer
momento, para quem traz uma bagagem leve e livre de
impostos alfandegários”. Olhou nos olhos do homem e
finalizou: “Apenas o amor cumpre tais requisitos”.
323
O GUARDIÃO E O MESTRE
T
A palestra que o Velho, como carinhosamente
chamávamos o monge mais antigo da Ordem, tinha
ministrado em uma conhecida universidade versava
sobre a necessidade do equilíbrio entre o ego e a alma.
Ele aproveitou uma figura de linguagem usada por
Teresa D’Avila ao comparar o íntimo de uma pessoa
como a um castelo de muitos cômodos. Em cada quarto
habita um sentimento ou uma ideia. Alguns densos e
pesados, outros leves e sutis. No portão de entrada, em
contato direto com o mundo, está o ego. Na sala do trono,
no interior do castelo, centro das decisões primordiais,
mora a alma. O bom funcionamento do castelo vai
depender da capacidade de harmonia e conexão entre
os seus moradores. Embora o conceito não seja novo,
é pouco conhecido e transitou durante séculos apenas
entre monastérios e irmandades esotéricas. Ao final da
explanação houve muitos questionamentos, dúvidas e
material para reflexões posteriores. Esta era a intenção
do bom monge. Quando estávamos de saída, ele
perguntou pelo professor de estatística Carl Bacon,
seu contemporâneo quando cursou economia em uma
universidade inglesa, com quem tinha construído uma
sólida amizade. Foi informado que o professor Carl
estava de licença em razão de uma forte depressão,
tinha desistido da cátedra e poucos acreditavam que ele
retornaria a dar aulas. O Velho se mostrou preocupado
e quis saber onde encontrá-lo. Disseram que ele pouco
324
saía de casa, salvo para passear, solitário e a esmo,
pelo bosque da universidade. Acrescentaram que não
teríamos dificuldade para achá-lo.
325
contas a pagar, é na alma que tratamos dos assuntos
primordiais à vida. Na alma está parte oculta do
todo à espera do movimento; como um sol guardado
dentro de uma caixa que quando aberta irá afastar
todo o frio e escuridão do ser. É o algo a mais, é você
além da existência rasa”.
326
“A depressão, assim como os demais sofrimentos
emocionais representam a insurreição da alma.
Um grito de quem precisa ser ouvido, um pedido
de socorro daquele que deseja ser salvo. Todas as
vezes que sofremos significa que algo precisa ser
redesenhado e reconstruído no íntimo. O ego sofre
quando não consegue defender o portão do castelo,
que acaba violado por uma horda de sentimentos
bárbaros. No entanto, isto somente acontece quando
a alma emudece e não mais escutamos a sua voz. São
as orientações e fundamentos da alma que sustentam
a melhor atividade do ego”.
327
da existência. Justo neste ponto está a riqueza da vida
e a beleza da alma”.
328
Lá não encontraremos equações matemáticas, mas o
próprio ser, a alma”.
329
Carl questionou como todas aquelas palavras
poderiam ajudar na depressão que enfrentava.
O Velho disse com o seu jeito doce: “A quietude e
a solidão têm muito valor quando bem utilizadas.
Ao invés de usá-las como ferramentas de tortura,
aproveite-as como pontes para ir ao encontro de si
mesmo. Busque na memória afetiva, com sinceridade
e coragem, qual o fato, ou os fatos, que serviram de
gatilho para desencadear o sofrimento que o abate.
Você verá que são aqueles que invadiram o castelo,
feriram o ego, desarrumaram os quartos, oprimiram
os demais moradores e sitiaram a alma na prisão do
esquecimento. Leve cada acontecimento desagradável
até a sala íntima da alma. Lá existe um armário com
muitos frascos sagrados de cura. Cada um deles
contém uma virtude. Disseque cada fato doloroso e se
permita enfrentar as feridas emocionais que tanta dor
provocam. Trate-as com os elixires da humildade, da
compaixão, do perdão, do amor, entre vários outros
disponíveis. Aprenda o absoluto poder curativo
contido em cada um deles. Toda a cura apenas se
revela na essência do ser. Lá está a plenitude oculta
em si mesmo. Lá está a alma, à sua espera”.
330
pessoalmente. Como diz o alquimista do Recôncavo,
‘é apenas um jeito de corpo, não precisa ninguém me
acompanhar’”. Argumentei que Carl era um intelectual
muito festejado por seus pares. O monge contrapôs:
“Por vezes, grandes inteligências cognitivas acabam
por relegar outras inteligências, como a emocional e a
espiritual. Então vem o desequilíbrio”.
331
O SAPATEIRO, O INDUSTRIAL E A IRONIA
T
Eu andava pelas ruas estreitas e sinuosas da
charmosa cidadezinha que fica no sopé da montanha
que acolhe o mosteiro na incerteza de encontrar a
oficina de Loureiro, o sapateiro amante dos livros e
dos vinhos, famoso por costurar o couro como ofício
e as ideias como arte, ainda aberta para um café fresco e
uma boa prosa. Como a sua oficina era lendária na
região por funcionar em horários inusitados e incertos,
fiquei feliz, quando ao dobrar a esquina, avistei a sua
clássica bicicleta, o único meio de transporte que se
permitia usar dentro da cidade, encostada no poste
em frente à loja. Neste mesmo instante, um reluzente
Mercedes-Benz estacionou em frente à oficina.
O chofer desceu para abrir a porta de trás e achei ter
visto Loureiro sair do carro. Estranhei de imediato.
Ao me aproximar, os meus olhos ruins perceberam não
se tratar do sapateiro, mas de alguém muito parecido
com ele. Quando entrei na loja tudo foi esclarecido.
Tratava-se do irmão de Loureiro; embora tivessem
uma grande semelhança física, não eram gêmeos.
O artesão nos apresentou. Ele se chamava Sergei e era
dois anos mais moço. Polido e educado como Loureiro,
no entanto, de pronto percebi que as semelhanças se
esgotavam ali. Tinham elegâncias distintas, diferentes
interesses e olhares opostos em relação à vida.
Sergei também não tinha o sorriso fácil do sapateiro.
Muito sério, fez questão de dizer que não dispunha de
332
muito tempo, pois era um empresário muito ocupado.
Como proprietário de uma grande fábrica de tecido
em uma região industrial distante a muitas horas
dali, não poderia desfrutar da companhia do irmão
por mais do que alguns poucos minutos. Loureiro foi
passar um café fresco enquanto nos acomodávamos
ao balcão. Perguntei ao Sergei o que ele fazia na
pequena cidade. O empresário contou que viera trazer
uma senhora, dona de uma grande rede de lojas que
absorvia boa parte da produção de sua fábrica, para
conhecer o Velho, como carinhosamente chamávamos
o monge mais antigo da Ordem. Acabara de descer da
montanha e a cliente seguira a viagem em seu próprio
carro. Então, ele viera dar um abraço no irmão e logo
voltaria para a fábrica. Eu quis saber como havia
sido o encontro com o Velho. Ele esclareceu que
tinham chegado de surpresa, sem avisar. Entretanto,
o monge estava ocupado, ministrando uma palestra
no mosteiro, e pediu para que eles retornassem na
manhã seguinte, quando os atenderia. Indaguei se eles
tinham combinado o encontro e Sergei, esclareceu que
não. Sugeri que pernoitasse para que pudesse jantar
conosco. Acrescentei que a cidade, embora acanhada,
era conhecida por seus excelentes restaurantes,
alguns renomados mundo afora. Falei, ainda, que
subiria ao mosteiro logo cedo e poderíamos ir juntos.
Ele lamentou, mas não tinha tempo para isso, pois os
seus negócios possuíam uma dinâmica intensa e ele era
um industrial muito solicitado, com a agenda repleta
de compromissos e reuniões. Sibilou que capitalizara
prejuízos financeiros e profissionais naquela viagem,
pois deixara de fechar alguns negócios e teria que lidar
com a decepção da cliente que não conseguira falar
333
com o Velho, como ele, Sergei, prometera. Acreditou
que a amizade do irmão com o monge facilitaria o
encontro. Em seguida, com um comentário irônico,
sugeriu que o Velho “estava ocupado, treinando para
substituir Deus”.
334
que pessoas como ele não podiam se dar ao luxo de
errar. A sua responsabilidade era tamanha que uma
decisão equivocada poderia acarretar em uma queda
na produção fabril gerando muitos desempregos.
Ao contrário do monge, que vivia a distribuir “biscoito
chinês da sorte” e “elixir da eterna felicidade”
sem maiores consequências. Irritado, falou que, ao
contrário do que ocorria no mosteiro, era na sua
fábrica que acontecia, todos os dias, o mundo real.
Acrescentou que “nenhum supermercado aceita as
ideias pregadas por um sonhador como forma de
pagamento”. Falou que religiosos e místicos vivem a
“navegar nos ventos do mundo que empresários, como
eu, sopram e, portanto, devem ter mais consideração
e reverência ao nos receber”.
335
Sarcástico, Sergei fez questão de passar os
olhos como que medindo o pequeno espaço da oficina
do irmão antes de argumentar que o espírito era a
surrada consolação dos fracassados. Loureiro deu de
ombros e disse: “Tudo é uma questão de como cada um
consegue entender o significado de sucesso e vitória”.
O industrial se mostrou surpreso com o absurdo do
raciocínio. Disse para o sapateiro comparar a vida deles
dois e dizer quem tinha atingido o sucesso na vida,
quem era o vitorioso. Loureio respondeu com bondade:
“Você, se a régua usada for o dinheiro e o prestígio
social. No entanto há outras medidas para o sucesso e
diferentes conceitos sobre o verdadeiro significado da
vitória”. O irmão pediu para ele falar de maneira mais
clara. O artesão explicou: “O sucesso pode estar em um
lugar impensado para muitos: nos estados de plenitude
do ser, por exemplo. A grande vitória pode não estar na
conquista do mundo, mas na iluminação das sombras
internas que tanto sofrimento provocam”.
336
entender o sentido que se aplica ao trabalho para que
dele gere o progresso. O objetivo do trabalho não
deve ser a riqueza, mas a prosperidade. A riqueza está
ligada ao acúmulo de bens; a prosperidade ensina o
melhor uso dos bens, independente de serem fartos
ou escassos. Portanto, a importância de cada trabalho
não se mede na quantidade de dinheiro que se
ganha, mas se traduz na qualidade das razões e dos
sentimentos aplicados à obra. Felicidade, amor,
dignidade, paz e liberdade podem ser boas
referências”. Sergei rebateu dizendo que todo aquele
discurso era uma grande bobagem e servia apenas
para justificar o fracasso profissional do Loureiro.
Acrescentou que era impossível que alguém pudesse
ser feliz tendo como local de trabalho uma “lojinha
um pouco maior do que um ovo”. Ofereceu para o
irmão largar o atelier e trabalhar com ele na fábrica,
onde ganharia muito mais. O artesão agradeceu, mas
recusou de maneira gentil.
337
O empresário demonstrou uma falsa
surpresa ao comentar que “desconhecia a proibição
das críticas”. Loureiro manteve o tom tranquilo:
“As críticas serão sempre bem-vindas. Todavia, a
crítica apenas se completa caso seja elaborada para
iluminar, educar e construir. Qualquer comentário
que tenha por objetivo depreciar, ferir ou lançar um
manto de escuridão, acaba por se tornar uma ofensa.
A violência verbal não precisa necessariamente de
palavrões. A ofensa nunca fez com que a humanidade
avançasse um único milímetro sequer. Se prestarmos
atenção perceberemos que a ironia fala mais em
relação ao arqueiro do que sobre o alvo”.
338
é quando essa amargura se apresenta fantasiada nos
palcos do mundo”.
339
iluminados nunca são ranzinzas nem sisudos.
Bem diferente da ironia, o bom humor se caracteriza
pela lucidez de escolher a alegria como viés do
Caminho. A ironia é a zombaria; o humor é a
brincadeira. A ironia é ferina; o bom humor é lúdico.
A diferença entre a zombaria e a brincadeira é que
zombamos de tudo aquilo que detestamos ou não
compreendemos; de outro lado, brincamos com as
situações e as pessoas que amamos”. Bebericou o café
e finalizou: “A ironia é o triunfo do narcisismo e da
amargura; o bom humor é a vitória do amor e da alegria”.
340
A LEI DO PROGRESSO
T
Eu estava sentado na varanda do mosteiro
apreciando as belas montanhas que o acolhem
quando se aproximou o Velho, como carinhosamente
chamávamos o monge mais antigo da Ordem. Sempre
com o seu jeito jovial, apesar da idade avançada, trazia
duas canecas de café fresco e as acomodou na mesa
ao meu lado. Sentou-se em uma confortável poltrona
e brincou ao dizer para eu compartilhar com ele os
meus pensamentos. Agradeci o café e confessei que
questionava o fato de os textos sagrados afirmarem
que somos feitos à imagem e semelhança de Deus.
Enquanto Deus é perfeito, nós ainda nos esforçamos nos
primeiros degraus do aprendizado. Argumentei que se
a origem de todos os males do mundo é a prevalência das
sombras pessoais sobre as escolhas virtuosas cabíveis
a cada indivíduo, teria sido mais sensato que todos
nós tivéssemos nascidos perfeitos, assim como Deus,
evitando, desta forma, todas as tragédias e sofrimentos
provocados pela humanidade contra si mesmo. Portanto,
havia erro do criador quanto à elaboração da criatura.
Ou um grave equívoco em relação aos textos sagrados.
341
para levar o viajante ao destino desejado; um texto
necessita de uma leitura que vá além das letras
aparentes. Leve em consideração que as palavras
sagradas não foram escritas para alguns, afastando
definitivamente a ideia de privilégios; mas para todos,
sem exceção. São sinalizações para nos auxiliar no
constante exercício da lapidação pessoal, permitindo
ultrapassar, aos poucos, cada fase dos inúmeros ciclos
da vida: aprender a lição cabível naquele momento
da existência, se transformar com ela, colocá-la em
movimento ao compartilhar o melhor que floresceu em
si e seguir adiante”.
342
de que os descubram nadando no lado raso do lago.
Dessa vez não foi diferente. Ele explicou: “Sagrado
é tudo aquilo que me torna uma pessoa melhor.
O sagrado está em todos os cantos, escondido por
detrás das coisas e das relações banais do mundo à
espera que você o encontre. Toda palavra ou situação
que me pacifique, amplie o sentimento amoroso para
com toda a gente, destrua o cárcere sem grades das
ideias que limitam a perfeita liberdade da alma,
mostre a possibilidade da felicidade infinita e ventile
a leveza do ser através das escolhas repletas de
dignidade, são sagradas. Todo o texto, livro, filme,
conversa, música ou poesia que trouxer em seu âmago,
de alguma maneira e em qualquer das variantes, o
conceito de que ‘devemos amar cada pessoa como a
si mesmo’, não tenha dúvida, é sagrado. É sagrado
por ser fruto da semente primordial”. Simples assim.
343
nascimento para que sejam criados de maneiras
diferentes. Um deles, desde a infância, terá amplo
acesso a todas as coisas que o dinheiro puder comprar.
Basta um mero desejo. O outro será criado com as
dificuldades inerentes ao mundo material, comum
à grande maioria das pessoas e lhe será concedido
apenas os meios necessários para realizar as suas
conquistas, nunca sem o devido esforço”. Olhou-me
com firmeza e acrescentou: “Vale ressaltar que não
há qualquer demérito ou virtude, seja na riqueza,
seja na pobreza; são apenas ferramentas de lições
existenciais”. Em seguida, tornou a perguntar: “Qual
dos filhos foi privilegiado pelo pai?” De pronto
respondi que era o filho criado na fartura e na riqueza.
344
“Assim nasce o perfeito”.
345
percepção estrutural mais aprimorada? Uma relação
mais afinada com a vida? Qual dos filhos terá melhores
condições de deixar um legado de aprendizado para
quem vier atrás?” Antes que eu pudesse me manifestar,
ele repetiu a pergunta: “Qual dos filhos foi privilegiado
pelo pai?” Eu mudei a resposta e disse que tinha sido
aquele que o pai havia fortalecido através do trabalho.
346
preciosas conquistas íntimas e incorpora o conceito
de prosperidade. No entanto, não é o único nem o
mais difícil. A renúncia pela vida luxuosa usada
apenas como cortina diante das mazelas do mundo,
a abdicação do conforto intramuros na disposição
de transformar riqueza em prosperidade ao usá-la na
propagação da luz, também exige muito esforço, sendo
igualmente preciosa”.
347
“De um modo ou outro, o trabalho é
indispensável ao progresso. Sem aquele não haverá
este. A evolução pessoal é a transformação sem a qual
o mundo não avançará”. Fez uma pausa e lembrou:
“Mestre Jesus certa vez disse: “Vocês podem fazer
tudo o que faço e ainda mais”. Isto significa a evolução
através do aperfeiçoamento das virtudes pessoais.
Este planeta é uma escola formadora de admiráveis
mestres. A Lei do Progresso é a Lei da Perfeição.
Ela é inexorável e atingirá a todos; contudo, o trabalho
lhe é uma condição indispensável”.
348
O AMOR. TÃO PERTO, TÃO DISTANTE.
T
Eu tinha chegado há poucos dias no mosteiro
para o meu período anual de estudos quando recebi
a notícia do falecimento do meu avô. Ele tinha sido
um homem saudável e ativo, estando à frente do
seu pequeno negócio até os últimos dias dessa sua
existência. Tinha se sentindo mal e foi levado ao
hospital. Embora tenha ficado internado para exames
mais aprofundados, os médicos disseram acreditar
não se tratar de nada grave. Fiz uma visita ao meu
avô antes de viajar; ele estava alegre e otimista,
características que sempre estiveram presentes no
seu jeito de ser. Apesar de eu estar confiante em
sua rápida recuperação, fiz preces neste sentido
e, mesmo de longe, enviei boas vibrações de cura.
Fiquei desorientado ao ser avisado do fim desse
ciclo em sua vida. Eu gostaria de mais um tempo
de convivência ao seu lado nesta minha existência.
Foi isto eu que disse ao Velho quando o encontrei
sentado sozinho na cantina entre uma xícara de café e
um pedaço de bolo de aveia. O bom monge se levantou
sem dizer palavra, me deu um forte abraço e depois
me acomodou em uma cadeira à sua frente. Encheu
uma caneca de café para mim, tornou a sentar e me
olhou com doçura como quem diz estar disposto a
me dar a atenção de que eu precisava naquele
momento. Confessei estar desorientado com a situação
e até mesmo um pouco descrente dos meus estudos.
349
Falei que a espinha dorsal dos estudos da Ordem é
o Sermão da Montanha, ensinamentos legados por
mestre Jesus nas colinas Kurun Hattin. Acrescentei
que ele, Jesus, também tinha dito que “todos poderiam
fazer o que ele fez e até mesmo mais”. Narram os livros
sagrados situações de cegos que retomaram a visão
e de aleijados capazes de voltar a andar. No entanto,
diante de uma situação bem mais simples, minhas
preces e vibrações de cura se mostraram insuficientes.
Questionei a valia dos meus conhecimentos.
350
e disse: “Não tenho dúvida do imenso amor que você
tem pelo seu avô; todavia, amar de volta quem sempre
nos ofereceu amor é a infância do amor”. Olhou-me
nos olhos com a delicadeza daqueles que não querem
chatear os outros, mas precisam ser firmes, e falou:
“Amar quem nos ama é para os fracos. A maturidade
do amor consiste em amar a todos, mesmo aqueles que
nos magoaram. É atuar para o bem de todas as pessoas
que nos cercam; inclusive aqueles que se opõem a nós
ou nos pedem ajuda. Independente de quem sejam.
É o sincero sentimento de que o outro é parte essencial
de um mesmo todo”. Olhou-me profundamente e
perguntou: “Você já tentou curar, oferecendo toda a
intensidade do seu amor a quem você não conhece, ou
mesmo a quem te feriu?” Fiz que não com a cabeça.
Ele explicou: “Comece com esses, deposite todo o
seu amor na dor de um desconhecido. Em seguida,
perdoe todos aqueles que te magoaram, trabalhando
com sinceridade para o bem deles. Depois lhe será
permitido curar aqueles que sempre lhe trataram com
afeto”. Fez uma pausa, comeu um pequeno pedaço de
bolo e comentou: “A estrada é longa”. Bebeu um gole
de café e concluiu: “O amor é o fator que determina a
extensão do poder individual gerado pela consciência
e pelo sentimento que o indivíduo tem do todo em si
mesmo. Mover esta força se chama fé”.
351
tão perto e ao mesmo tempo tão distante. Perto, por ser
uma necessidade vital, como um bebê inevitavelmente
buscará o seio da mãe para se alimentar; sem amor a
alma falece por desnutrição. Distante, pela dificuldade
que temos de incorporar o amor em sua manifestação
mais ampla. O amor de uma mãe para com o filho,
o qual amamenta pelo mais puro dos sentimentos,
sem nada exigir em troca, é o primeiro encontro que
todos têm com a verdadeira essência da vida: o amor
incondicional. Evoluir é o exercício de ampliá-lo a
tudo e a todos. Devemos expandir o amor primordial
em ondas concêntricas ao movimentar as águas do
enorme lago da vida através deste sentimento tão
nobre. Essa vibração viajará até os confins do universo.
Quando encontrar a última das estrelas, retornará
em igual intensidade, como reação de merecimento
e generosidade”. Interrompi para dizer que ele não
estava ajudando muito com aquele discurso. O Velho
balançou a cabeça e foi mais objetivo: “O amor embora
íntimo, ainda é desconhecido em razão da sua extrema
sofisticação. Não no sentido de complexidade, pois ele é
simples, mas quanto à profundidade que ele exige para
que possa se revelar por inteiro. É como uma pessoa
que, apesar de viver ao nosso lado, a conhecemos
muito pouco. Assim, desperdiçamos tudo de bom que
ela pode nos proporcionar”.
352
gole de café e prosseguiu: “Muda a si mesmo, muda
as pessoas à sua volta, muda o mundo. Muda o olhar
sobre todas as coisas, relações e o seu destino. Muda a
régua, o passo e o compasso da vida.”
353
Quase pulei da cadeira diante de tamanho
espanto. Como ninguém sofre por amor? Eu era
testemunha de quanto o amor nos causa dor. O Velho
tentou me esclarecer: “Entendo o seu sofrimento diante
da partida inesperada do seu avô para outros importantes
ciclos de aprendizado. Mas o que faz doer é o egoísmo
de querer o outro fisicamente ao seu lado ao invés de
se alegrar com a viagem dele para uma nova esfera,
condizente às lições pertinentes ao seu atual momento
evolutivo. O que o egoísmo teima em mostrar como uma
perda, o amor revela como transformação. O véu das
sombras nos impede a perfeita visão dos laços de amor
unindo todos os corações pela eternidade. Sofremos com
determinada situação apenas por não entender todo o
amor possível e cabível naquele momento. Ao contrário
de como se acredita nas margens do conhecimento, o
amor não é a causa da dor. É justamente a falta de amor
que nos faz sofrer.”
354
prisioneiro no cárcere da dor. Sem amor é impossível
viver a liberdade”.
355
Reclamei que o planeta estava desprovido
de amor, era como um grande jardim abandonado.
O monge balançou a cabeça em negação e disse:
“Sentir-se amado é uma das maravilhosas dádivas da
vida e acaricia a ego de todos. No entanto, a alma
precisa oferecer amor para se sentir inteira. Entenda
que o amor que eu recebo não é meu; ele ‘está’ comigo.
Logo, é dependente do outro e pode se tornar variável
e efêmero. De outro lado, o amor que entrego é meu
por completo, por fazer parte da minha essência, por
‘ser’ comigo. É preciso entender que o amor que tenho
não é aquele que recebo, mas tão e somente o amor
que sou capaz de oferecer. Lembre que ninguém pode
dar o que não tem. Logo, se não consigo entregar
é porque não o possuo comigo. Se não o tenho, me
resta um enorme deserto existencial. Ocorre que ao
invés de criar condições para que o amor germine,
transfiro ao outro a responsabilidade de cuidar de
mim, como um insensato fardo, impossível de ele
carregar por muito tempo. Então, surgem os conflitos
com o mundo, pois desejo solucionar a aridez da vida
ao exigir que os outros me entreguem as flores que me
faltam e, em verdade, são justamente aquelas que me
cabe cultivar. Faz-se necessário mudar esse padrão
de comportamento que tanto sofrimento provoca; é
indispensável cultivar um jardim íntimo para colorir
e perfumar a própria vida. Este é o degrau primordial.
Depois, será possível um segundo degrau ao sentir
a alegria de oferecer aos outros as mesmas flores
que antes exigíamos deles. Inverter a equação do
relacionamento do nosso amor com o mundo permite a
consolidação dos pilares da paz dentro de si e perante
a toda a gente”.
356
O Velho se calou por instantes, como se
soubesse que eu precisava metabolizar todas aquelas
ideias, comeu um pedaço de bolo, e prosseguiu:
“Os sofrimentos surgem à medida em que reagimos
mal às contrariedades que os outros nos opõem.
Nessas horas damos vazão ao ciúme, à inveja, à vaidade,
ao orgulho, entre outras sombras. Abrimos mão de
uma convivência digna e pacífica por não conseguir
envolver o conflito na esfera de amor necessária.
Transferimos responsabilidades e insistimos que
nossas escolhas sejam acatadas pelos outros. As escolhas
são as únicas ferramentas disponíveis para movimentar
a verdade pessoal. A dignidade em respeitar a própria
verdade se reflete na imprescindibilidade de respeitar
a verdade alheia. As verdades pessoais têm diferentes
tons a variar de acordo com os níveis de consciências
alcançados. A harmonia entre os vários olhares possíveis
em relação à vida apenas é possível quando revestidos
de amor. Então, atinjo a fronteira da milenar sabedoria
de agir no estreito limite da atitude que gostaria que
outro tivesse em relação a mim. Isto é a dignidade das
relações. Assim, a dignidade apenas se torna factível se
houver amor em cada umas das minhas ideias, emoções
ou gestos. Sem dignidade todas as relações se fundam
em rascunhos mal traçados da boa vontade da nossa
convivência conosco e com o mundo.”
357
crassos que escuto em todos os lugares é que ‘o amor é
troca’. Fico imaginando o amor diante de um absurdo
balcão de negócios, como algum personagem canastrão
anotando em um improvável livro-caixa todo amor
que deu entrada e saída, como se fosse possível, ou
mesmo saudável, a contabilidade do amor. Seria como
transformar em números o incomensurável; como se
fosse possível descrever o invisível; como tornar pesado
o que, para existir, precisa ser leve; como desmanchar
o todo para virar nada. Amor é compartilhamento.
É oferecer sem tributos ou contrapartida o que se tem
de melhor; ou não será amor. Qualquer interesse fora da
felicidade que se possa transmitir ao outro contamina
o amor que, em reação, desaparecerá. A recíproca
também se aplica e o faz surgir, como por magia,
quando oferecido na sua forma mais pura. Sem entrega
incondicional não haverá amor; na falta de amor, ainda
que haja festa, nenhuma felicidade existirá”.
358
Falei que não era fácil viver por amor.
O Velho deu de ombros e disse: “Ninguém disse que
era fácil. É dificílimo, pois vivemos em um planeta
movido por paixões densas, as quais, não se iluda,
ainda temos total afinidade. Quando se tornar fácil
viver por amor, significa estarmos de malas prontas
para seguir rumo às Terras Altas.” Olhou-me com
bondade e finalizou: “Embora não seja fácil, viver
por amor é simples. A simplicidade, por não conter
subterfúgios, máscaras ou mistérios, leva a uma
profundidade desconcertante, pois leva ao âmago
do ser. Apenas lá você poderá encontrar consigo
mesmo e com todo o amor que lhe permitirá as
mais impensadas transformações. Quando encontrar
consigo ficará diante de Deus. Então, todo o poder lhe
será possível. O amor é o caminho e, não por acaso,
também o destino.”
359
DIANTE DA ALMA
T
O tambor de duas faces de Canção Estrelada, o
xamã que tinha o dom de levar a sabedoria do seu povo
através das palavras, rufava em ritmo compassado
quando cheguei ao seu “lugar de poder.” Este local
era próximo à sua casa, no alto de uma montanha no
Arizona, em um pequeno platô, onde, além da bela
paisagem e profundo silêncio, me chamava a atenção
uma árvore bem antiga em um improvável equilíbrio,
bem na ponta de um penhasco. Ele dizia que todos têm
um lugar onde sentem com maior intensidade a ligação
com o Grande Mistério, o invisível que permeia e atua
no visível, na harmonia entre a força e a sutileza da
vida. A minha viagem para encontrar com o xamã já
estava programada há meses, mas perto da partida a
adiei várias vezes em razão de alguns acontecimentos.
Tudo começou em um evento no qual a minha agência
de publicidade, embora pequena, havia sido premiada
pela originalidade de um anúncio. Uma famosa atriz,
mulher lindíssima, tinha sido contratada para apresentar
a cerimônia de premiação. Foi ela quem puxou assunto
comigo quando nos esbarramos no coquetel que
aconteceu logo após. Ela fez elogios ao meu trabalho e
mostrou interesse em saber mais. Eu fiquei apaixonado
ao ouvir o som das suas palavras enquanto olhava
para aquele rosto angelical, emoldurado pelos cabelos
encaracolados que lhe desciam pelos ombros à mostra.
Ali começou um romance. E também a minha agonia.
360
Os primeiros dias foram de muita euforia.
Além do troféu, aquela noite tinha me presentado
com uma mulher que era um sonho para a grande
maioria dos homens. Em todos os lugares que íamos
as pessoas se viravam para nos observar. Eu me sentia
enorme e poderoso. No entanto, esse relacionamento
acarretou várias mudanças, tanto pessoais quanto
profissionais. A mais significativa foi o término do
meu namoro com a antiga namorada, que já durava
um bom tempo. Esta, embora não tivesse nem uma
pequena parte da beleza e do glamour da atriz, era
uma pessoa adorável. Bem-humorada, inteligente
e sensível, ela colaborava de maneira decisiva para
uma convivência extremamente agradável. Como
morava em outra cidade, nos víamos apenas nos
finais de semana. Mas eram dias de passeios ao ar
livre, ótimas conversas e muitas risadas. Por vezes,
gostávamos de ficar em casa, seja na dela, seja na
minha. Um livro, uma xícara de café e a presença
do outro eram suficientes para nos alegrar a alma; a
vida parecia suave. Com a atriz, eu estava sempre em
festas badaladas, reuniões sociais na casa de alguém
importante, em restaurantes finos, entre holofotes
e paparazzis. Era como se me fosse permitida a
realidade de um mundo apenas conhecido na ficção.
A vida girava em rotação acelerada.
361
meu cotidiano. E este dinheiro não estava sobrando em
minha conta corrente. Não era só. Inconscientemente,
eu me sentia obrigado a ganhar “um prêmio todos
os dias” para que a minha bela e famosa namorada
continuasse a admirar o seu anônimo par. Isto fez
com que o meu humor e paciência se alterassem com
as pessoas que trabalhavam comigo, trazendo vários
atritos. Passei a procurar os velhos amigos apenas para
que eles pudessem me admirar. Eles logo se cansaram.
Embora a leveza tivesse me abandonado, de alguma
maneira aquela vida me embriagava e eu queria mais.
Sem que eu me desse conta, a minha vida seguia em
espiral descendente de agonia e desequilíbrio até o
dia em que briguei com a jovem e competente chefe
da equipe de criação da minha agência. Eu cobrava
dela perfeição e genialidade. O meu sócio me chamou
para uma conversa e me aconselhou a tirar as férias
adiadas. Pensei em recusar, mas fui surpreendido
pelo fim do romance com a bela atriz através de uma
mensagem pelo celular. No dia seguinte vi fotos dela
com o novo namorado, um conhecido diretor de
cinema, na internet. Nesse instante, quando olhei à
minha volta, tudo me pareceu destruído. Foi quando
parti ao encontro do Canção Estrelada.
362
uma permissão. Sente-me à sua frente. Ao final, nos
cumprimentamos e eu lhe pedi ajuda. Falei que ele
era meu guru. Disse que sabia da sua intensa conexão
com a esfera invisível e roguei que ele intercedesse
por mim em busca de auxílio. Acrescentei, sem que
precisasse, que eu estava muito mal. Também contei
tudo que eu havia passado. O xamã me olhou com
compaixão, mas disse com firmeza: “Eu não sou um
guru. Eu abro mão do personagem por entender que
atrapalha mais do que ajuda”. Fez uma pequena pausa
e explicou: “A conexão se torna possível quando há
o encontro com o sagrado. Posso orientar quanto ao
encontro, nunca o substituir. O sagrado habita dentro
de ti. Esse encontro é pessoal e intransferível.”
363
à incompreensão do andarilho. Um dia você será um
mestre; um mestre de si mesmo. Todos serão, cada
qual ao seu tempo.”
364
Acrescentei que ele emanava uma energia
forte que fazia com que as pessoas se sentissem bem
ao seu lado. Canção Estrelada sorriu com humildade
e disse: “Claros ou turvos, irradiamos os sentimentos
que trazemos no coração e as ideias que movimentam
as nossas escolhas. Isso determina a frequência das
nossas vibrações e o conforto que proporcionamos
a quem está ao redor. Diante do conflito podemos
agir com irritação e violência ou com serenidade e
mansidão. Quando nos envolvemos em sintonias de
leveza e paz as soluções se tornam mais claras, sábias,
justas e amorosas. Isso costuma revelar o quanto
da alma já é capaz de se manifestar no indivíduo.
No entanto, nos acostumamos aos impulsos das
paixões, aos vícios dos condicionamentos socio-
culturais, à opinião alheia. Consideramos normal
desistir dos sonhos. Chegamos a nos convencer de que
a escuridão é um bom lugar pelo absurdo argumento
de inexistir outro. Então sofremos pelo vazio que
criamos, como aquelas cidades cinematográficas
que são apenas bonitas fachadas, sem qualquer
estrutura em seus fundamentos, e desabam na breve
ventania. Entrar no Caminho é mudar o sentido
da existência”.
365
Na bolsa havia frutas secas e fósforos. Acendi
uma fogueira com a chegada da noite e, em razão do
cansaço da viagem, dormi profundamente. No primeiro
dia, não demorou para eu me entediar. Logo a bela
paisagem se tornou cansativa e o canto dos pássaros uma
chatice. Achei uma estupidez o que Canção Estrelada
fazia comigo. Pensei em não permitir, me levantar e
ir embora. Aquela mesmice me irritava. Vieram-me à
mente todas as situações recentes. Lembrei de como
a minha bela e famosa namorada tinha sido cruel e
desleal comigo; eu lhe tinha oferecido o melhor que
havia no meu coração. Sem contar as despesas que
fizeram desmoronar as minhas economias. Em troca,
o que recebi? Dor e desilusão. Depois pensei na briga
com a chefe de criação da agência. De como ela
tinha sido ingrata com as oportunidades de trabalho
oferecidas por mim a ela na agência. Sem dúvida, era
uma insolente. O dia foi doloroso e quando chegou a
noite, diante da fogueira, custei a pegar no sono. Eu me
sentia desconfortável por estar em um mundo difícil
de se viver.
366
agradáveis até o retorno do xamã. Optei por esta. Com
o passar das horas, senti fome. Embrenhei-me pela
mata em busca de algo comestível. Não demorou muito,
encontrei um arbusto repleto de pequenas amoras.
Coloquei várias na sacola e retornei. Aquele passeio,
somado ao fato de eu ter superado a dificuldade com a
fome, me fez bem. No final da tarde acendi a fogueira
e fiquei observando o entardecer por um tempo que
não sei precisar. Quando me dei conta, o fogo tinha
consumido os gravetos e o céu estava salpicado de
estrelas. Percebi que eu não olhava mais a paisagem; eu
olhava para dentro de mim. Pensava em como eu poderia
realizar esse “encontro comigo” ou o “encontro com
a minha alma” de que Canção Estrelada tanto falava.
Na prática, como era isso? Não tinha a menor ideia.
367
meu redor. Naquele instante entendi a importância
da humildade para descobrir quem eu sou; para me
situar na imensidão e fazer parte dela, com todas as
suas possibilidades. Pensei em como eram ridículos
todo o meu orgulho e vaidade, duas das paixões que
me moviam, que supostamente me engrandeciam,
quando, no fundo, apenas tentavam esconder a minha
fragilidade. Ri da ignorância que me aprisionava
no sofrimento. Entendi que para renascer é preciso
entender quem ainda não sou para somente depois
conceber tudo aquilo em que posso me transformar.
Impossível conseguir isso sem humildade. A humildade
é o gatilho da evolução. Enquanto acreditar que sou
especial, superior a tudo e a todos ao meu redor, estarei
negando a necessidade da evolução. Assim, desperdiço
o poder concedido pelo universo, pois abro mão das
transformações e expansões oferecidas. Naquele
instante ficou claro que a grande viagem não era para
Londres, Nova Iorque ou Pequim, e sim para encontrar
e dar voz à minha alma. Nela nasce toda a minha força.
368
orgulho e da vaidade. Na verdade, nunca houve amor,
apenas o meu ego sedento por brilho a me enganar
quanto aos sentimentos envolvidos. Eu me permiti
viajar ao mundo dela. A ilusão me levou a viver os
valores de vida escolhidos por ela. Diga-se, nem certos
nem errados. O contrário disto seria tornar a escorregar
na ideia de que sou especial ou superior, conceito onde
surgem o distanciamento e a separatividade que tanto
sofrimento causam. Sou único, nem melhor nem pior;
apenas diferente. Daí a importância de cada indivíduo,
todos singulares e belos, para completar e colorir o
maravilhoso mosaico da vida.
369
ego exacerbado. Não satisfeito, a culpei, provocando
o conflito. Por justiça, eu tinha que admitir a sua
enorme competência e talento. Faltava dizer para ela
o que eu acabara de falar para mim mesmo: o prêmio
ganho pela agência era muito mais mérito dela e da
sua equipe do que meu. As exigências eram frutos
do meu desequilíbrio. Eu iria procurar a jovem e lhe
pedir desculpas. Senti-me feliz por tê-la trabalhando
ao meu lado.
370
O xamã estendeu uma manta, se sentou, acendeu o
seu inconfundível cachimbo com fornilho de pedra
vermelha, baforou várias vezes, me entregou o
cachimbo em cerimônia de comunhão entre almas
e disse: “Muitos buscam uma experiência espiritual;
a maioria, somente quando diante de um problema de
difícil solução. Chegam em busca de ajuda rápida e
anseiam por algum fenômeno sobrenatural. As dores
da alma precisam de entendimento e transformação.
De dentro para fora. Nenhuma experiência religiosa
ou filosófica atingirá os patamares mínimos se o
indivíduo não se aventurar a sair da superfície da
existência para um mergulho no fundo de si mesmo.
Lá está a alma. A alma é a essência do ser, o berço do
amor; o elo com a vida, é a sua parte no todo.”
371
A LUZ DO MUNDO E A MISERICÓRDIA
T
O mundo não é um bom lugar para se viver.
Eu estava convencido desta afirmação enquanto
observava as belas montanhas, sentado em uma
confortável poltrona na varanda do mosteiro. Cansado
de tantos conflitos, injustiças e maldades, eu tinha
perdido a esperança de viver em um mundo melhor.
A minha vida pessoal também acumulava uma série
de brigas e decepções, seja na família, entre amigos
ou no trabalho. Desse modo, me alegrei ao viajar para
passar um período de estudos e reflexões na Ordem.
O mosteiro era um bom refúgio. Eu tinha chegado
na noite anterior e ainda não tinha encontrado com
o Velho, como carinhosamente chamávamos o
monge mais antigo da irmandade. Ele retornara um
pouco mais cedo; vinha de uma série de palestras
em cidades próximas e tinha se recolhido em seu
quarto para descansar. No dia seguinte, ao acordar,
passei na biblioteca para pegar um livro, enchi uma
caneca de café no refeitório e fui para a varanda.
Não demorou muito o Velho veio ao meu encontro.
A barba branca cuidadosamente aparada, os passos
lentos, porém firmes, e com as feições coradas pelo
sol das montanhas, ele era a imagem da alegria e da
jovialidade apesar da idade avançada. Uma energia
de bem-estar e paz o envolvia e contagiava as pessoas
à sua volta. Mas não era uma calma preguiçosa; era
uma tranquilidade vitalizante. Ele próprio, embora
372
apreciasse o descanso, estava sempre envolvido em
várias atividades, estudos e não dispensava a prática
da yoga ao acordar. Ele trazia em si o poder da leveza
e a força do movimento. Ofereceu-me um sorriso
sincero e um forte abraço. Sentado na poltrona ao
lado, contou do ciclo de palestras que acabara de
ministrar e como estava contente por isto. Disse que
queria me falar de seus novos projetos, mas antes
desejava saber como eu estava. Como as palavras
costumam refletir a bagagem da alma, derramei todas
as minhas frustrações e lamentos quanto ao mundo.
Conclui dizendo que agora iria me fechar mais em
meu círculo de vida e seguir cada vez mais alheio às
iniquidades da humanidade. Em seguida, acrescentei
que eu estava ansioso pelo início daquele período de
estudos e pelo desenvolvimento espiritual que ele
traria. O velho me ouviu com atenção e paciência
sem me interromper. Ao final, disse: “O novo ciclo
de aprendizado será bem diferente dos anteriores.
Acho que será proveitoso, embora tenha dúvida se
irá lhe agradar.”
373
ficaremos? Eu tinha vindo de outro continente em
busca de sossego e estudo. Sinceramente, não fazia
parte dos meus planos trocar o conforto do mosteiro
pela precariedade de um acampamento de refugiados.
O Velho balançou a cabeça como quem diz que me
entendia e disse: “Não lhe tiro a razão nem a liberdade
de escolha.” Perguntei se todos os monges, como são
denominados os membros da Ordem, também iriam.
Ele sacudiu a cabeça e explicou: “Não. Iremos você
e eu. Os demais ficarão para as palestras, leituras,
debates e meditação.” Em seguida concluiu: “Partirei
amanhã cedo, logo após o café. Esteja pronto, caso
queira me acompanhar. Do contrário, você pode ficar
com os demais. Sem problema.”
374
me sentei ao seu lado no banco de trás. Ele, sem olhar
para mim, arqueou os lábios em leve sorriso.
375
luz indescritível. Irradiava o amor na sua vibração
mais alta; era a caridade, a beneficência, a compaixão;
o amor em seu sentido mais nobre: ame o outro como
a si mesmo. Eu já ouvira esta frase diversas vezes, mas
foi a primeira vez que eu a vi.
376
Não tinha jeito; era impossível evitar o espelho.
Eu tinha cruzado o “ponto sem volta”. Joguei a minha
mochila para o lado e me aproximei de um médico, que
estava generosamente prestando serviço ali durante as
suas férias no hospital em que trabalhava, e me ofereci
para ser o seu assistente. Ele sorriu e pediu para que
eu lhe passasse mais gaze e algodão. Uma energia
incomensurável pulsou em minhas entranhas e toda a
repulsa se modificou por uma enorme vontade de fazer
o que tivesse que ser feito. Naquele instante comecei a
entender um pouco mais sobre o amor.
377
meus problemas pessoais, por perceber o quanto eles
eram de simples superação; tinha me dado conta de
como eram risíveis as minhas paixões. Acrescentei
que a vida podia ser diferente e um mundo um bom
lugar. O Velho sorriu e disse: “Somos a luz do mundo.
Se dentro mim está escuro, encontrarei um mundo
sombrio para viver. Do contrário, se existe luz em
mim, viverei em um mundo claro e colorido, apesar
de todas as dificuldades e problemas inerentes à vida.
Se há luz em mim, tenho também o poder de iluminar
a vida de quem estiver por perto. Quanto mais alto
eu vibrar a minha luz, mais longe será o seu alcance.
As trevas somente persistirão enquanto eu me negar a
acender a minha própria luz. Quando ilumino a mim,
ilumino o mundo.”
378
amor. Na misericórdia o sagrado se manifesta através
de você.”
379
UMA SOFISTICADA VIRTUDE REPLETA
DE OUTRAS VIRTUDES
T
Uma das coisas mais agradáveis para mim
era percorrer as ruas estreitas e sinuosas da pequena
cidade que fica no sopé da montanha que abriga o
mosteiro. Melhor ainda é no início da manhã, quando
o calçamento de pedras está molhado pelo orvalho da
noite. Naquele dia, eu seguia na esperança de encontrar
aberta a oficina de Loureiro, o sapateiro amante dos
livros e dos vinhos. A oficina era lendária na região.
Seja pela mestria de Loureiro em costurar o couro e as
ideias, seja pelos horários inusitados e imprevisíveis
de funcionamento, cujo critério era simplesmente a
vontade do sapateiro. Quando dobrei a esquina e não
avistei a sua clássica bicicleta encostada no poste em
frente, já sabia que encontraria a oficina com as portas
cerradas. Passei em uma banca de revistas próxima e
o jornaleiro disse que o meu amigo tinha trabalhado a
noite toda, acabara de pegar um jornal e seguira para
uma padaria perto dali. Alegrei-me com a possibilidade
de uma boa prosa, logo pela manhã, acompanhada de
café quente e pão fresco. Loureiro estava sentado em
uma mesa ao fundo e abriu um belo sorriso quando me
viu. Devidamente acomodado à mesa, com uma xícara
fumegante e uma fatia de pão com o bom queijo da região
derretido por cima, perguntei o que ele lia no jornal.
O artesão respondeu que era sobre a polêmica em torno
da aposentadoria diferenciada para algumas categorias
380
profissionais. Enquanto uma parte das pessoas
sofriam grandes perdas financeiras ao se aposentar,
outras mantinham seus vencimentos integrais, em
nada sendo afetadas. Havia um grande movimento
para que estas fossem equiparadas àquelas. Ou seja,
todos sofreriam igualmente as perdas. Eu falei que
os protestos me pareciam justos. Loureiro me olhou
por instantes, bebeu um gole de café e ponderou:
“Será que o raciocínio não poderia ser invertido?
Ao invés da luta para que todos tenham os seus ganhos
rebaixados não seria mais sensato que a reivindicação
fosse no sentido do fim das perdas, usando aquelas
aposentadorias, então privilegiadas, como meta a ser
proporcionada a todos?” Após alguns segundos de
silêncio, admiti, um pouco sem jeito, que o sapateiro
tinha razão. Isto faria com que a luta fosse por ganhos
e não por perdas; fosse pela construção, não pela
destruição. O sapateiro concluiu: “Assim passamos a
lutar pela esperança e não movidos pelo ódio.”
381
para dizer que eu sempre tivera aquela sensação.
O artesão começou a explanar o seu raciocínio:
“Em verdade, não é bem assim. A justiça é uma virtude
complexa e, como tal, precisa de outras virtudes que a
complementem. Por isto, precisa de aperfeiçoamento
interno tanto em seu entendimento quanto em sua
aplicação.” Bebeu um gole de café e prosseguiu:
“Entretanto, seja por causa do instinto movido por
condicionamentos ancestrais, seja pelas sombras do
egoísmo e do medo, costumamos, em primeiro plano,
preservar a nossa sobrevivência. Resguardamos tudo
aquilo que denominamos ‘meus direitos’ e, somente
depois, nos permitimos olhar para os lados. Este é
o cerne do problema relacionado à justiça. Todas as
vezes que vejo alguém encher a boca para falar dos
seus direitos, a primeira pergunta que me ocorre é o
quanto de egoísmo pode estar contaminando aquelas
palavras. Não raro somos injustos por não entendermos
a profundidade da justiça. Daí ser uma virtude cujo
alcance requer esforço e mergulho em sua essência.”
382
punições e presídios para segregar pessoas, estaremos,
como corpo social, ainda distantes de entender a
virtude da justiça. Não me refiro aos códigos legais, que
apenas são a perfeita fotografia da realidade cultural de
uma sociedade. As leis avançam na exata medida da
evolução dos indivíduos que estão a elas submetidos.
De quanto mais leis precisarmos, mais selvagem é o
estágio que nos encontramos; mostram como ainda
são injustas as nossas relações cotidianas e como
precisamos de balizamento externo. A necessidade
das normas legais se torna incontestável nos dias
atuais na exata régua da nossa infância espiritual.”
383
afastar o egoísmo que nos faz pensar como pessoas
especiais ou superiores. Se faz imprescindível
incorporar o conceito de que qualquer direito que
seja exclusivo se torna imprestável por injusto; que
todo tipo de elite é fruto de um atavismo alicerçado
na dominação dos demais segmentos da sociedade.
Entretanto, é muito difícil enfrentar a verdade, pois,
não raro, ela nos mostra que os injustos somos nós.”
Tornei a interromper para dizer que não é difícil
entender a realidade do mundo e as suas várias
relações injustas. O sapateiro contrapôs: “Sim, é
fácil apontar várias injustiças mundo afora. E quanto
aos nossos pequenos egoísmos de todos os dias, as
nossas escolhas vingativas alimentadas por mágoas
pretéritas que escondemos sob as fantasias da
justiça? Falo da dificuldade quanto à verdade
interna, aquela possível apenas quando a alma está
diante do espelho. É indispensável sinceridade
para consigo mesmo para, somente então, haver
honestidade para com o mundo.”
384
terá sempre no bojo de sua pena a finalidade maior: a
educação do indivíduo. Enquanto a vingança apenas
deseja punir; a justiça tem a preocupação em resgatar.
Para tanto, é preciso amor. Devemos sempre pensar
nisto ao fazer as escolhas ou ao proferir opiniões, pois
definem o casamento com as sombras da vingança ou
a condução à luz da justiça.”
385
personagens sociais; não negocia com a ilusão; ilumina
as escolhas ao mostrar quais os sentimentos que as
movimentam. A sinceridade é como uma bússola na
estrada do autoconhecimento. É a virtude daqueles
que amam a verdade. Por tudo isto, é primordial aos
justos. Somente então, após sedimentar a sinceridade
em si, será possível ser honesto com o mundo.”
386
maneira de responder que eu concordava com ele.
Em seguida entraram a filha e o genro do sapateiro.
Todos se acomodaram à mesa e a conversa passeou por
vários assuntos. Até que um dos garotos decidiu
fazer queixa da mãe ao avô. Contou-lhe que a mãe
prometera uma caixa de bombons caso acertasse
todas as questões na prova de matemática. “E você
acertou?”, quis saber o Loureiro. O menino confessou
que acertara apenas a metade delas. Entretanto, a mãe
se negava a lhe dar a metade dos bombons a que tinha
direito. A filha do sapateiro interveio dizendo que o
filho que o trato não era aquele. O garoto se mostrou
chateado com o que entendia como uma quebra do
acordo. Declarou-se injustiçado. A mãe falou que o
filho desvirtuava o combinado. O avô disse que não
tinha poderes para intervir e que, de uma próxima
vez, ambos tivessem mais clareza quanto às suas
intenções: “O que se cala pode dizer mais do que
aquilo que se fala.” Mas propôs a pacificação dos
ânimos. Contou que naquela padaria tinha uma bebida
deliciosa, “talvez a mais gostosa do mundo”, feita
com leite quente repleta de pedaços de chocolates que
desmanchavam na boca. Proposta aceita, o mal-estar
restou desfeito. Loureiro me olhou, piscou um olho e
murmurou: “Entende agora?” Eu sorri em resposta.
Se o amor é a ponte de todas as relações, a justiça são
os alicerces que a sustentam.
387
SEMPRE TENHO TUDO O QUE PRECISO
T
Lá estava eu de volta à pequenina vila chinesa
próxima ao Himalaia. A viagem, além de cansativa
pelas muitas horas de voos, conexões necessárias
e o trecho feito de ônibus pela precária estrada que
serpenteava a montanha, me trouxera o inconveniente
de ter a mala extraviada pela companhia aérea.
As minhas reclamações no aeroporto se mostraram
inúteis e a empresa não garantiu a entrega da bagagem,
na ventura de aparecer, em local tão distante e de difícil
acesso. Sobrou-me a mochila com os documentos e
algumas poucas peças de roupa que levara para trocar
durante o longo percurso. Assim que cheguei tentei
descansar um pouco na única hospedaria do lugar.
Em vão. A irritação e a revolta faziam a cabeça girar
pela força de muitas ideias e sentimentos que pareciam
ter a necessidade de transbordar de dentro de mim.
O dia ainda não tinha raiado quando levantei e me
dirigi à agradável casa de Li Tzu, o mestre taoista,
onde ele recebia alunos de todas as partes do mundo
em busca dos ensinamentos das milenares lições
contidas no Tao Te Ching. Ao cruzar o portão da
casa, sempre aberto, senti uma agradável sensação.
Um perfume que eu não soube identificar se vinha
do enorme jasmineiro que envolvia o belo jardim de
bonsais ou dos muitos incensos espalhados pela casa,
preenchiam o silêncio e a quietude do local. Algumas
lanternas de iluminação tênue indicavam o estreito
388
e sinuoso caminho até a varanda. Li Tzu terminara
uma solitária sessão de yoga e se mostrou feliz em me
ver. Sempre delicado, ele me convidou para um chá.
Quando entrei na copa, Meia-noite, o gato negro que
morava na casa, eriçou o pelo e saiu em disparada ao
me ver. Sem graça, comentei que o dócil animal não
deveria ter me reconhecido depois de tanto tempo.
O mestre taoista não me deixou enganar: “Os gatos são
muito sensíveis às energias. A violência o assustou.”
Rebati dizendo que eu era um sujeito pacífico,
incapaz de agredir alguém. Li Tzu explicou com o
tom entre a doçura e a firmeza que lhe era peculiar:
“Todos sabem da sua índole de paz, Yoskhaz.
No entanto, você não está bem. A violência não se
expande apenas na grosseria das palavras ou na
agressividade das atitudes. Lembre-se que somos um
centro gerador de energia. As vibrações primordiais
surgem através das nossas ideias e emoções, invisíveis
aos olhos, mas nem por isto não percebidas e menos
importantes. Pois têm a força de desalinhar o indivíduo
e, algumas vezes, desagregar o ambiente. Ou pior, se
tornarem a semente de escolhas equivocadas por se
distanciarem do amor que deve nos guiar.” Fez uma
pausa e concluiu: “Devemos nos vigiar o tempo todo.”
389
e disse: “Ao incorporar esse conceito nos tornamos
invencíveis diante dos contratempos típicos da
existência.” Olhou-me como quem conta um segredo
e falou: “Embora traga algum desconforto inicial,
não se preocupe tanto com a mala perdida. Procure
se concentrar para manter em ordem a bagagem
interna. Esta, sim, deve estar sempre arrumada
para disponibilizar as ferramentas necessárias para
a superação dos problemas inevitáveis à vida.”
Perguntei que ferramentas eram essas a que ele se
referia. O mestre taoista explicou: “As virtudes.
Elas são o escudo que protege e as asas que libertam.”
Eu quis saber do que as virtudes me libertariam.
Ele esclareceu: “Do sofrimento. O sofrimento é uma
violência desnecessária que nos permitimos por
desconhecer toda a força e poder que temos.”
390
harmonia, outras duas valiosas virtudes. Todas as
vezes que o mundo te desequilibra, a busca para
se adaptar ao novo momento te leva a alguma
transformação no ser e no viver. Isto é evolução.
Reunidas, as virtudes te levam ao céu.”
391
acomodamos a uma situação desconfortável, somos
como uma represa que vai, aos poucos, esgotando
o seu limite até estourar e destruir tudo ao redor.
É quando deixamos que sentimentos ruins alimentem
atitudes violentas ou somatizem doenças. Para que
isto não aconteça, se faz necessário a adaptação à
nova situação como maneira de se permitir o olhar
que ela oferece; a possibilidade de um jeito diferente
de pensar e uma maneira melhor de seguir adiante.
A força da vida está nas águas mansas que descem
o rio abastecendo as suas margens ao mesmo tempo
em que se nutrem com tudo que as margens lhe
proporcionam. Caso contrário, quando reprimidas, as
águas acabam por explodir, destruindo violentamente
tudo por onde passam. Flexibilidade, resiliência são
características da adaptabilidade por permitirem a
indispensável mobilidade. A vida exige movimento;
quando nos negamos, a estagnação nos faz explodir
em fúria ou em dor”
392
somente destrói quando represada inadequadamente.
Os sentimentos apenas transbordam em violência
quando tratados de maneira equivocada”.
393
liberdade você terá que permitir; uma pessoa pode te
ofender, porém a humilhação somente o atingirá com
a tua devida concessão; podem te roubar o dinheiro,
mas apenas perderá a dignidade se a quiser entregar;
nenhum conflito pode esbulhar a paz, salvo com a tua
autorização. Uma doença, a velhice ou um desastre
podem, no máximo, encerrar esta existência; jamais
por fim à vida. A felicidade não depende do mundo, ela
está em tuas mãos.”
394
não os percebemos. Tudo aquilo que ilude e nos faz crer
de que “não consigo viver sem”, é um vício e, portanto,
nocivo por criar dependência. Tornam-se sutis prisões
sem grades. Entendi que na mala extraviada eu trazia
muitos dos meus vícios. No entanto, percebi algo bem
mais sério. Na minha bagagem interior, a consciência,
também havia muito dos meus vícios disfarçados em
necessidade. Vícios são sombras que, como tais, nos
afastam da luz. A dureza do olhar, a inflexibilidade do
pensar e o automatismo no agir, eram alguns desses
perigosos hábitos. Uma bagagem falava muito sobre a
outra mala. Esta era reflexo daquela.
395
SIGA O SEU CORAÇÃO
T
“Siga o seu coração”, me aconselhou Canção
Estrelada quando me despedi. Eu tinha ido às montanhas
do Arizona para participar de alguns cerimoniais
nativos em um período que, por coincidência, era
de mudança de ciclo em minha vida. A agência de
propaganda na qual eu era sócio tinha sofrido uma
forte cisão com a saída de alguns sócios e precisava
encontrar novos rumos. Ao mesmo tempo se encerrava
o romance de alguns anos com a minha namorada que
cheguei a imaginar não ter fim. Naquele momento eu
precisava me reinventar. “Siga o seu coração”, levei
aquelas palavras comigo, que me enchiam de força,
e tomei uma série de decisões, tanto pessoais quanto
profissionais, que se mostraram equivocadas. Alguns
meses depois, no turbilhão de desencontros que a
minha vida tinha se tornado, aproveitei que teria o
tradicional ritual do equinócio de verão e voltei ao
Arizona. Encontrei Canção Estrelada sentado na
cadeira de balanço da agradável varanda de sua casa.
Ele me recebeu com alegria. Depois de devidamente
acomodado, não demorou muito, confessei ao xamã
que seguir o coração tinha se tornado desastroso, haja
visto o que tinha acontecido comigo. Pior, eu tinha a
nítida sensação de as coisas iriam se agravar ainda
mais. Ele me olhou como a uma criança chorosa,
acendeu o seu indefectível cachimbo com fornilho
de pedra vermelha e, depois de algumas baforadas,
396
disse: “Tem dois aspectos no seu discurso que você
parece não entender. O primeiro é que, algumas vezes,
estamos tão arraigados às velhas formas de viver que
é preciso demolir tudo, até não sobrar pedra sobre
pedra, para que seja possível reconstruir uma nova
realidade baseada em um diferente entendimento
sobre o ser. Não se constrói uma boa casa sustentada
por paredes podres.” Tornou a baforar o cachimbo e
concluiu: “Outro aspecto, e não menos importante,
é quanto a seguir o seu coração. Será sempre um
valioso conselho. No entanto, nem sempre possível
de realizar, pois para seguir o coração é preciso
aprender a ouvi-lo.”
397
o coração que nos fala. As sombras também nos falam,
através de medos, desejos e mágoas das mais diversas
espécies, como o ciúme, a inveja, a vaidade, o orgulho,
a usura, entre várias outras, que nos levam a contruir
raciocínios tortuosos de autojustificação do ego quando
em desalinho com a alma. Existem outras vozes com
as quais dialogamos, como os condicionamentos
culturais, que nos levam a decidir no afã da aprovação
e dos aplausos sociais; preconceitos, quaisquer que
sejam, que de tão arraigados nem nos damos conta que
existem; memórias que gostaríamos de esquecer, mas
que ainda sangram como feridas abertas. Enfim, para
seguir o coração é preciso identificar a sua voz no meio
de uma multidão que grita dentro do ser.”
398
virtudes pelo fato de estar presente em todas as demais.
O amor é o remédio e a cura.”
399
conseguido chegar ao coração através da prece, pois
era interrompido a todo o instante com memórias
desagradáveis, de situações que eu não mais fazia
questão em lembrar. O xamã sorriu satisfeito e disse:
“É assim mesmo. Para chegar ao coração é preciso
estar despido das mentiras que contamos para nós
mesmos; dos personagens que criamos na ilusão de
melhor enfrentar a existência. O coração é o lugar
da verdade; para chegar ao coração é preciso estar
envolto na verdade; a verdade sobre si mesmo.
Se conhecer por inteiro é pressuposto para a viagem
até o coração. Por definição, o coração não é uma rota
de fuga; ao contrário, é a estrada da verdade e da luta
pelo autoconhecimento.”
400
fez em determinados momentos da vida. Esta é a
estrada para o coração, este é o tratamento de cura.
Aceite que agimos no exato limite da nossa expansão
de consciência e capacidade de amar. O erro é o mapa
do acerto e o impulso do aperfeiçoamento. Aproveite
para fortalecer o espírito para de uma próxima vez não
tropeçar; assim evoluímos.”
401
Ao forçar a aproximação, cada qual violava a si mesmo
e terminava por responsabilizar o outro. Um erro
infantil, porém, muito comum. Aceitei que o afeto e
a admiração podiam e deviam continuar, entretanto,
não mais enlaçados como um casal. Assim, eu poderia
me sentir verdadeiramente livre para iniciar um novo
relacionamento e teria plenas condições de abençoar
o dela. Uma estranha e agradável sensação de leveza
me invadiu.
402
sentia cansado ou com sono. Uma alegre vibração me
mantinha animado, em um estado entre a alegria e a
serenidade. Eu tive a certeza de ter conversado com
o meu coração. O sagrado que nele habita tinha se
manifestado em verdades que passariam a clarear as
minhas escolhas.
403
O QUEBRA-CABEÇA
T
Esperei que Loureiro, o sapateiro amante
dos livros e dos vinhos, fechasse as portas da oficina.
Embora ainda fossem meio-dia, o seu expediente de
trabalho, que se iniciou de madrugada, já se encerrara
naquele dia. Os horários inusitados de funcionamento
da oficina eram lendários na pequena e charmosa
cidade que fica ao sopé da montanha que abriga o
mosteiro. Seguimos pelas ruas estreitas e sinuosas, com
calçamento de pedras, na direção de um restaurante
que adorávamos, para almoçar e trocar uma conversa
vadia, como dois bons amigos que se alegram pelo
simples encontro. Ao cruzarmos a praça onde se
localiza o restaurante, vimos uma das sobrinhas do
sapateiro sentada em um banco com a face banhada
em lágrimas. Abordada, a moça disse que estava muito
triste; ela acreditava que o seu casamento tivesse
perto do fim, pois a convivência estava muito difícil.
Confessou que não desejava isso. Embora morando
na mesma casa, estavam mais distantes um do outro
a cada dia. Loureiro a chamou para almoçar conosco
e conversar um pouco. Disse que falar, nessas horas,
pode ajudar, já que ao ouvir as razões que sustentam
os lamentos, os sentimentos acabam por se tornar
mais claros. Convite aceito, logo nos acomodamos em
uma mesa confortável, longe do burburinho da rua.
Assim que nossas taças foram cheias com um bom
tinto da região, a jovem iniciou uma fileira de queixas
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em relação ao marido. Desde a sua desatenção em
relação à vida afetiva do casal até o pouco empenho
que tinha na empresa onde trabalhava. Ouvimos tudo
com atenção e paciência, sem interromper a moça.
Ao final, tive uma rápida troca de olhares com
Loureiro. Foi suficiente para, em razão da nossa antiga
amizade, eu saber o que ele pensava. O sapateiro olhou
para a sobrinha e sugeriu: “Acho que você esqueceu
de falar algo.” A jovem disse que não sabia sobre o
que o tio se referia. Ele foi claro: “Esqueceu de nos
contar sobre as qualidades do seu marido. Senão o
casamento não teria durado tanto tempo nem você
estaria sofrendo pela possibilidade do término da
relação.” Ela ficou um pouco sem jeito, mas admitiu
muitas das virtudes do marido. Falou sobre as mais
relevantes e que mais admirava. Embora continuasse
triste e preocupada, o seu ânimo deu uma leve
melhorada. Em seguida, Loureiro comentou: “Todas
as pessoas devem buscar a maturidade no decorrer
da existência.” A jovem falou que, de fato, achava o
marido, às vezes, muito infantil. O sapateiro corrigiu:
“Não falo dele, até porque não seria educado em sua
ausência. Refiro-me a você.” Ela rebateu de pronto
dizendo que não era uma criança. O sapateiro balançou
a cabeça para dizer que concordava e explicou melhor:
“Ser maduro não acontece pelo mero fato de viramos
adultos, de atingirmos a maioridade cronológica.
Atinge-se a maturidade com a maioridade espiritual.
Para isto não há idade definida. A maturidade se
expressa através do ser inteiro. Aquele que está na
busca incessante pela própria essência, quem conhece
e aceita todas as suas características, boas e ruins,
sem se esquivar da eterna batalha do aperfeiçoamento
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pessoal. Não deseja mais viver um personagem, mas
formar a própria personalidade. Que segue em busca
de si mesmo e de toda luz que nele existe. Apenas
este encontro poderá proporcionar a harmonia e
o equilíbrio necessários a todas as relações; seja
consigo mesmo, seja para com o mundo.”
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pedaços do ser na perfeita obra de arte que nos espera
quando da junção de todas as nossas partes.”
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no outro. Ela deveria prestar mais atenção em suas
ideias, sentimentos e escolhas.
408
Diante do espanto da sobrinha, o sapateiro
ampliou o raciocínio: “O outro é o outro, do jeito dele,
com suas dores e delícias, no limite da sua consciência
e na fronteira do seu coração. Você pode e deve impor
limites; nunca mudanças. Cuide de transformar a
si mesmo como alavanca evolutiva. Ajude sempre
que alguém pedir; mas nunca se torne um credor.
Isto é dominação; antítese da liberdade e do amor.
Em verdade, enquanto ainda indivíduos partidos,
nos decepcionamos quando alguém faz escolhas que
nos desagradam. Ou seja, no fundo, responsabilizamos
os outros pela nossa infelicidade. A felicidade, ao lado
do amor, da liberdade, da paz e da dignidade, forma
os cinco estados de cura denominados plenitude. Ora, a
responsabilidade pela conquista da plenitude é sua, é
minha, é de cada um de nós, pelo simples fato de não
a encontrá-la em nenhum outro lugar, salvo dentro
do próprio ser. Depender de alguém para amar, ser
livre, digno, feliz ou viver em paz revela uma pessoa
fragmentada, um indivíduo imaturo, que ainda não
sabe quem é.”
409
Resolvi colorir um pouco mais o assunto
e disse que para atingir a maturidade e, por
consequência, os cinco estados que compõem a
plenitude, temos à disposição as maravilhosas
ferramentas das virtudes. Não devemos fazer de
ninguém alvo de nossas insatisfações. Isto atrasa a
jornada. Quando as críticas, assim como os elogios,
recaírem sobre você, tenha a consciência que nem
sempre aquelas são justas ou estes são sinceros. Isto
afasta a maldade, a bajulação interesseira, a falsidade,
a mentira, a vitimização, o orgulho, a vaidade,
além de outras sombras. Para tanto é necessário ter
humildade para entender as próprias dificuldades,
pois sempre é possível fazer diferente e melhor;
compaixão para compreender as dificuldades alheias
e descartar os desajustes escondidos nas ofensas que
nos lançam; sinceridade no relacionamento consigo;
honestidade no trato com os outros. Misericórdia
para perdoar sempre, doçura para abraçar o mundo
com carinho; firmeza com os seus propósitos; além
de amor, é claro, sem o qual não se chega a lugar
nenhum. Independente de qual seja a opinião das ruas
sobre a sua pessoa, o ser inteiro se movimenta através
da verdade contida na sua essência; não depende da
autorização de ninguém para amar, ser livre, feliz,
digno e viver em paz.”
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se despe do personagem que os condicionamentos
sociais impõem para ser ela mesma, viver a vida
do seu jeito, escrever a própria história, trilhar um
caminho que ninguém pode percorrer por ela. O ser
inteiro trata com sacralidade as suas escolhas. Ele sabe
que as escolhas são as ferramentas que transformam a
vida, é a única maneira de manifestar a sua verdade.
Isto o aproxima do sagrado. Somente através das
escolhas conseguimos evoluir. Permitir que outros
interfiram em nossas escolhas é a maior falta de respeito
que podemos ter para conosco. Da mesma forma,
a recíproca se aplica em relação às escolhas alheias.
É uma questão de puro respeito para o indivíduo
maduro. Quando abdicamos de nossas escolhas
perdemos a personalidade, aquilo que nos identifica
como singulares no universo. Perdemos o encanto da
vida. De outro lado, interferir nas escolhas dos outros
é exercício de dominação e falta de respeito pela
liberdade e dignidade alheia. Sinais de imaturidade
por não entender a responsabilidade e o poder que
cada um tem sobre o próprio voo.
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dela mesma, da responsabilidade que tinha sobre a
própria felicidade e o aperfeiçoamento que lhe cabia.
Ninguém respondeu. Depois de alguns segundos de
um silêncio constrangedor, caímos os três na
gargalhada. Em seguida, a jovem confessou que era
casada com um bom homem, piscou o olho e disse com
jeito maroto que embora pudesse ser melhor, ele era
uma pessoa com muitas qualidades. Pediu licença para
sair, alegou que tinha um importante compromisso.
Eu quis saber se ela iria encontrar com o marido.
A moça deu um sorriso alegre e sincero antes de dizer
que estaria com o marido apenas à noite, que naquele
momento começaria um trabalho, o maior da sua vida:
catar as peças soltas para montar o quebra-cabeça
de si mesmo. Falou que estava entusiasmada com o
desafio e encantada com as infinitas possibilidades
que surgiriam. Sentia-se fortalecida por trazer para
si o poder sobre a própria vida. Loureiro sorriu e
finalizou: “Essa é a maior magia.” A jovem deu um
beijo na bochecha do tio, se despediu de mim e foi
embora. Pela janela do restaurante a vimos andar pela
praça. Aos saltos, parecia que tinha molas nos pés.
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O PERFEITO ESPELHO
T
Mais de uma vez, durante os meus períodos
anuais de estudos na Ordem, encontrei o Velho, como
carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da
irmandade, sentado em uma confortável poltrona na
agradável varanda do mosteiro. Ele adorava aquele
lugar, onde fazia as suas reflexões diárias diante do
belo cenário proporcionado pelas montanhas. Sempre
que eu queria conversar sabia que, quase sempre, o
encontraria lá no final da tarde e, invariavelmente, seria
recebido com um sorriso sincero. Naquele dia não foi
diferente. Cheguei com duas canecas fumegantes de
café, entreguei uma em suas mãos e me acomodei em
uma poltrona ao lado. Em seguida puxei assunto com
o monge. Falei que o foco dos estudos da Ordem era o
autoconhecimento como estrada que leva ao sagrado,
uma vez que não encontraremos Deus em nenhum
lugar, salvo dentro de nós mesmos. Citei as famosas
frases “Conheça a ti mesmo e conhecerás a verdade”
e “Conheça a verdade e vos libertará”, de Sócrates e
Jesus, respectivamente, como eixo filosófico condutor
da busca. Acrescentei que as virtudes eram as
ferramentas que me permitiriam avançar à medida que
as sedimentasse em mim, possibilitando a libertação
do sofrimento, essa cruel prisão sem grades. O monge
ouvia a tudo com paciência e apenas balançava a
cabeça em concordância. No entanto, em relação ao
entendimento de quem eu era de verdade, falei que por
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vezes eu tinha um olhar por demais rigoroso, enquanto
noutras era generoso em excesso. A dificuldade de me
enxergar com clareza complicava o meu processo de
aperfeiçoamento. Confessei que estava com a sensação
de que não conseguia avançar há algum tempo.
O Velho arqueou os lábios em leve sorriso e me
orientou com a sua usual simplicidade: “Preste atenção
a como você reage todas as vezes em que é contrariado;
quando o mundo lhe diz ‘não’. Nas ações costumamos
ouvir antes o coração e, assim, reverberar em luz.
É comum oferecermos o nosso melhor. Entretanto, nas
reações quem costuma falar são as nossas sombras.
É quando refletimos a face ainda obscura do ser.
As reações nos mostram os cantos que ainda não foram
iluminados”. Fez uma pausa para concluir: “As reações
são o perfeito espelho do ser, pois nos mostram o que
ainda não queremos ou não conseguimos ver”.
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se sentir melhor ou adiar a inevitável batalha interna.
Clamam por justiça quando em verdade estão sedentas
por vingança, pois não vejo a preocupação na educação
do outro, mas apenas em fazê-lo sentir uma dor igual
ou ainda maior do que aquela sofrida. Então temos o
mal pelo mal, como maneira absurda de agigantar as
sombras coletivas ao invés de estancar a escuridão”.
Deu de ombros como quem diz o óbvio e falou:
“Por princípio, para iluminar é necessário... Luz”.
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“Em um primeiro momento, preste atenção
a cada reação surgida diante da adversidade. Depois,
desligue o botão do ‘automático’. Tente entender como
você pode reagir diferente e melhor toda a vez que o
mundo lhe disser ‘não’. Assim avançamos”.
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evolução. Muitas vezes, na busca para se aproximar
do ‘modelo perfeito’ nos preocupamos mais com a
imagem externa do que com o aperfeiçoamento interno.
Sem trabalho nas entranhas, sem a transformação
vital da essência a aparência não irá se sustentar.
Como uma construção sem alicerces, cedo ou tarde
aquele personagem restará desmoronado em atitudes
infantis, depressivas ou violentas. São os recalques e
as negações sobre si mesmo”.
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pode ser a dor do parto, do renascimento espiritual”.
Bebeu mais um gole de café antes de concluir:
“As reações servem como diagnóstico. A cura depende
do quanto de sabedoria e amor você envolverá a
própria dor. A luz será sempre uma espada a romper
a noite da existência, impulsionada pela força da vida
que precisa prosseguir”.
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Oportunidades e alavancamos a evolução”.
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