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MANUSCRITOS

Volume III

YOSKHAZ
MANUSCRITOS
Volume III

YOSKHAZ

1ª edição

Rio de Janeiro
Tinta Livre
2018
Copyright © 2018 Yoskhaz

Copyright © 2018 por Tinta Livre


Todos os direitos reservados

Título original:
Manuscritos, volume 3

Capa:
Ana Cunhal Zivick

Revisão:
Carlos André Oighenstein

Diagramação:
Fátima Serpa

Projeto editorial:
Tinta Livre

Editores de produção:
Marcello Schweitzer e Carlos André Oighenstein

Editor de produção digital:


Mariano Fonseca

Editoras adjuntas:
Tatiana da Costa Velho e Carvalho e Júlia Reuter e Carvalho

Editor responsável:
Jorge Desgranges

Yoskhaz

Manuscritos, vol. 3 / Yoskhaz – 1ª edição


Rio de Janeiro: Tinta Livre editora, 2018.

ISBN: 978 – 85 – 92644 – 00 – 0

Ficção / Contos / Metafísica

www.yoskhaz.com
www.tintalivre.com
tintalivre@gmail.com
ÍNDICE

1 - O MUNDO É O ESPELHO DA SUA ALMA ................................. 07


2 - A FLOR DA SIMPLICIDADE .......................................................... 14
3 - A ÂNFORA DA HUMILDADE ....................................................... 20
4 - BELEZA OCULTA .......................................................................... 29
5 - A ESTAÇÃO .................................................................................. 36
6 - DE VOLTA PARA CASA ................................................................. 43
7 - OS TONS DA PRUDÊNCIA ........................................................... 50
8 - O CAMPO DE BATALHA ............................................................... 58
9 - A LEI DA AÇÃO E REAÇÃO .......................................................... 66
10 - A PORTA ESTREITA .................................................................... 72
11 - ASSIM NASCEM AS ASAS ......................................................... 81
12 - O ESCONDERIJO DO MAL ......................................................... 89
13 - AS MARAVILHAS DA DÚVIDA .................................................. 97
14 - UMA DELICADA VIRTUDE ........................................................ 104
15 - ENCONTRO MARCADO ............................................................. 111
16 - PEQUENAS GRANDES COISAS ................................................. 119
17 - A BARGANHA ............................................................................. 127
18 - AQUI E AGORA .......................................................................... 134
19 - OS SERES-PÁSSAROS................................................................. 141
20 - A BELEZA DE SER ÚNICO .......................................................... 148
21 - A MARATONA ............................................................................ 158
22 - A CARTA DE PAULO ................................................................... 166
23 - O SAL DA TERRA ........................................................................ 174
24 - UM FIEL CARCEREIRO ............................................................... 183
25 - UMA VIAGEM ENTRE O TAO E A FÉ ........................................ 194
26 - ALÉM DO FIM DO TÚNEL .......................................................... 204
27 - A ARTE DE AJUDAR OS OUTROS ............................................. 214
28 - METADES ................................................................................... 223
29 - A MINHA CIDADE ...................................................................... 231
30 - UM POUCO SOBRE MÁSCARAS, ROTEIROS E SOMBRAS ..... 238
31 - A VIDA NÃO É CURTA ................................................................ 247
32 - O INFERNO ASTRAL .................................................................. 255
33 - NOS BECOS ESCUROS DO CIÚME E DA MENTIRA ................ 264
34 - A FRONTEIRA ENTRE A RIQUEZA E A PROSPERIDADE .......... 274
35 - OS DESERTOS DO SER ............................................................... 285
36 - O SAGRADO ............................................................................... 296
37 - A REALEZA DO MUNDO ........................................................... 305
38 - O MELHOR MÁGICO DO MUNDO ........................................... 311
39 - A LUZ DO MUNDO E UM BOLO DE LARANJA ......................... 318
40 - O GUARDIÃO E O MESTRE ....................................................... 324
41 - O SAPATEIRO, O INDUSTRIAL E A IRONIA ............................. 332
42 - A LEI DO PROGRESSO ............................................................... 341
43 - O AMOR. TÃO PERTO, TÃO DISTANTE ................................... 349
44 - DIANTE DA ALMA ...................................................................... 360
45 - A LUZ DO MUNDO E A MISERICÓRDIA .................................. 372
46 - UMA SOFISTICADA VIRTUDE REPLETA DE OUTRAS VIRTUDES .... 380
47 - SEMPRE TENHO TUDO O QUE PRECISO ................................ 388
48 - SIGA O SEU CORAÇÃO .............................................................. 396
49 - O QUEBRA-CABEÇAS ................................................................ 404
50 - O PERFEITO ESPELHO ............................................................... 413
O MUNDO É O ESPELHO DA SUA ALMA

T
A angústia me dominava quando entrei na
biblioteca do mosteiro em busca de alguma leitura
que aliviasse a aflição da minha alma. Sentado em
uma confortável poltrona, com um livro repousado
no colo, o Velho, como carinhosamente chamávamos
o monge mais antigo da Ordem, olhava para as
montanhas através de uma das janelas, quando
teve a sua atenção desviada para mim. Ao perceber
pelo meu semblante a desordem interna que
imperava, franziu as sobrancelhas como maneira
de perguntar o que havia acontecido. Reclamei do
descaso das pessoas no trato pessoal, de como eram
insensíveis, materialistas e individualistas. Relatei
várias situações para exemplificar a razão do meu
sentimento. Falei de como esse comportamento
provocava tragédias desnecessárias. Eu me sentia
abandonado e deslocado. Definitivamente, concluí, a
humanidade estava perdida e o mundo não era um
bom lugar para se viver. O monge sorriu, como quem
se diverte com uma criança que reclama porque não
ganhou um doce, se levantou e guardou o livro na
estante apropriada, foi até outra prateleira em busca
de um título diferente. Procurou por algo em suas
páginas por breves instantes, guardou-o no bolso da
túnica, segurou meu braço e me encaminhou para
fora da biblioteca. Depois falou: “Vamos conversar
no refeitório; preciso de uma xicara de café”. Alguns

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minutos depois, diante de duas canecas fumegantes,
ele iniciou a conversa: “Se você está bem consigo
estará bem com o mundo. O olhar que cada qual tem
sobre si mesmo será a lente pela qual enxergará a
vida. Isto definirá a clareza, as cores e a extensão do
universo que é o mesmo para todos, mas diferente
para cada um de nós. O mundo, feio ou bonito, será
sempre o espelho da sua alma”.

Discordei veementemente. O mundo era injusto;


alguns com muito, enquanto muitos nada possuíam;
uns doentes, outros esbanjando saúde. Pior, ninguém
parecia preocupado com ninguém. O meu discurso
foi subindo de tom até beirar a revolta. Ele me ouviu
com enorme paciência e ao final me lembrou de uma
passagem célebre contida no Sermão da Montanha:
“Quando o seu olho é bom todo o universo é luz”.
Em seguida concluiu: “O mundo é perfeito”. Questionei
se aquilo era uma brincadeira ou se ele estava louco.
O Velho sorriu antes de explicar: “A vida neste planeta
é uma universidade exigente, formadora de excelentes
mestres. O mundo é a sua sala de aula e apresentará
a cada aprendiz as lições cabíveis para o exato
aperfeiçoamento e a devida evolução. A sua maior
dificuldade é o seu melhor professor. Quem está no
Caminho agradece por cada problema oferecido, pois
percebe a oportunidade de superação e fortalecimento
do próprio ser. As lamentações apenas se manifestam
nos lábios dos maus alunos”.

Pegou o livro que trouxera no bolso. Eram os


Poemas Místicos de Rumi, o sábio dervixe. Folheou
as páginas, escolheu uma e leu:

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“Saia do círculo do tempo
e entre na esfera do amor.

Se queres a visão secreta,


fecha teus olhos.
Se desejas um abraço,
abre o teu peito.

Se anseias por uma face com vida,


rompe o teu rosto de pedra.
Por que insiste em matar a vida
justo onde deva nascer?
Prova a doçura em tua boca,
de onde brota a flor, a abelha e o mel.

Aceite esta oferta:


Ofereça uma única vida, a sua.
E receba em troca, ao nada pedir, mais de mil”.

Ficamos um logo tempo sem dizer palavra.


Era necessário deixar a poesia assentar na mente e no
coração. O Velho rompeu o silêncio: “Você tem oferecido
ao mundo o tratamento que deseja para si? Você age em
perfeito acordo com o mundo ideal dos seus sonhos?”

Abaixei os olhos, respondi negativamente.


A voz do monge revelava gentileza: “Não fique
encabulado. Todos sabemos mais do que fazemos.
O conhecimento é a parte inicial da transformação.
O passo seguinte é exercitar o novo conceito para
que ele fique entranhado ao ser, integrando as suas
escolhas e atitudes até que seja impossível viver sem
aplicar esse saber. Assim avançamos”. Bebeu um gole

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de café e prosseguiu: “Cada qual é responsável pela
própria felicidade. Ela é uma construção interna de
entendimento e aperfeiçoamento. Introspecção, silêncio
e quietude. Neste aspecto o Caminho é solitário”.

“Mas não basta. Depois de aprender e se


transformar é vital que compartilhemos com toda
gente a beleza do que trazemos em nossa bagagem
sagrada. Oferecer o nosso melhor é fundamental para
que possamos avançar. É a hora de romper a casca
do ‘eu’ para viver o âmbito do ‘nós’. Movimento,
palavras e abraços. É o momento de sermos solidários
no Caminho”.

Com o olhar distante, o bom monge divagou


em metáforas: “Somos filhos do universo, as leis que
regem as estrelas se aplicam a nós. Uma galáxia se
funde a outra para se expandir. Uma estrela mistura em
si as energias cósmicas que a envolve para transmutar
em luz, aumentando de magnitude na medida que
intensifica essa troca. No entanto, há também os buracos
negros, que a tudo sugam sem nada oferecer, até que
sucumbem em si mesmo. Conosco não é diferente; o
mundo está repleto de variadas correntes energéticas
de diferentes tons. O amor é a mais poderosa delas.
A cada escolha definimos as energias que passarão a
integrar o nosso ser, aumentando ou perdendo poder
pessoal; intensificando ou apagando a própria luz”.
Deu uma pequena pausa para explicar: “A Luz é uma
flor composta de muitas pétalas. Cada pétala é
uma virtude; são partes indispensáveis que aprendemos
a semear no íntimo para que possam germinar em
infinitas flores”. Tomou mais um gole de chá e me

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lembrou: “Mas não esqueça do amor, a matéria-prima
de todas as transformações. Ele é o miolo da flor a
dar sustentação às pétalas, é a seiva que alimenta e
anima, ao mesmo tempo em que acabará por se tornar
o fruto quando mudar a estação”.

“Ao permitir que o seu coração se funda a


milhares de outros você multiplica a força do amor no
universo. Este poder também será seu. Esta é a magia
do Caminho”.

Lamentei que as pessoas não colaboravam


e quase nunca entendiam ou devolviam na mesma
intensidade o amor oferecido. O Velho fez um gesto
com as mãos como quem diz para eu deixar de
bobagem. Em seguida, explicou: “As pessoas sofrem
porque insistem em tratar o amor como mercadoria
a ser negociada na base da troca. O mundo não é
um balcão de sentimentos, mas um belíssimo jardim
inacabado onde cada qual deve se comportar como
aquele jardineiro que se encanta com as flores que
plantou, suas cores e perfumes, com o sorriso e
alegria de alguém que as viu, na pura intenção de
apenas embelezar a vida”.

“Na verdade e na essência, somente possuímos


aquilo que entregamos. Se não entregamos é porque ainda
não temos. Apenas o exercício do amor ensina isso”.

“O ser desperto, na busca por expansão de


consciência e ampliação da capacidade amorosa, sabe
que toda palavra, pensamento, sentimento ou atitude
é um cerimonial mágico; um ritual de transformação

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por absorver as energias afins que envolvem cada
movimento, concedendo peso ou leveza aos seus
passos, definindo o próprio destino e as próximas
lições, sempre em compasso com as leis universais, que
orientam a evolução de todos, fazendo com que cada
qual seja herdeiro de si mesmo no momento seguinte”.

Falei que tinha a sensação de que o mundo


me oprimia. Eu queria saber o que fazer. O monge
foi didático: “Se o mundo lhe é desagradável está na
hora de entender o que precisa ser transformado em
você. A compatibilidade que cada um tem com a vida
está diretamente ligada à harmonia que traz em si.
Quando sabemos quem somos, entendemos o mundo.
A percepção sincera do ‘eu’ permite a compreensão
verdadeira do ‘nós’ e tudo ao redor. Quanto mais
me conheço e reconheço as minhas dificuldades e
arestas, maior a paciência e a compreensão para com o
comportamento alheio. Isto se torna uma importante
ponte na qual as virtudes pessoais poderão trafegar
instaurando o equilíbrio que não apenas propor-
cionará a verdadeira paz, mas fortalecerá as bases
da felicidade: oferecer ao mundo o exato tratamento
que desejamos ter sem exigir absolutamente nada
em troca”.

Comentei, de modo imaturo, que às vezes


tinha vontade de cavar um buraco na terra para não
precisar ver tantas iniquidades que acontecem no
planeta. O monge franziu as sobrancelhas, como
fazia quando aumentava a seriedade da fala, e disse:
“Se for para se enterrar que seja para virar semente e
renascer. Então, na primavera se tornar flor a colorir

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o mundo e, no outono, se transmutar em doce fruto a
alimentar a humanidade”.

O meu discurso envolvia a ideia de desperdício


da oportunidade em frequentar uma excelente escola.
Me senti envergonhado. O Velho, ao perceber, não
permitiu que eu me sentisse assim. Ele me olhou com
a generosidade de um avô e disse: “O mundo é apenas
o exato reflexo do universo que cada qual traz em
si. É possível mudar a qualquer momento. Feio ou
bonito; escuro ou brilhante; pequeno ou infinito, tudo
se resume a uma escolha; basta um olhar diferente”.
Esvaziou a xícara de café antes de concluir: “Entende
que na medida das suas transformações pessoais tudo
a sua volta evolui e transcende? Por que insiste em se
arrastar como a lagarta se tens as asas da borboleta”?

Não havia palavra em mim que pudesse


expressar a minha gratidão por aquela conversa.
Fechei os olhos e agradeci em silêncio. Tive a estranha
sensação de que o Velho flutuava no ar.

13
A FLOR DA SIMPLICIDADE

T
Estávamos eu e o Velho, como carinhosamente
chamávamos o monge mais antigo da Ordem, em uma
prestigiosa universidade para um ciclo de palestras
sobre as várias faces da inteligência: cognitiva,
emocional, artística e espiritual. Falariam cientistas,
professores, psicanalistas, filósofos e artistas.

No intervalo, logo após a fala de um famoso


intelectual, fomos tomar um café. O outono oferecia
um clima agradável e as mesas do lado de fora da
cafeteria permitiam uma deliciosa integração com
o campus arborizado. O sol nos acariciava por entre
as folhas. Comentei com o monge que não tinha gostado
desse último palestrante. Na verdade, acrescentei, achei
o discurso desnecessariamente rebuscado, pomposo,
repleto de palavras não usadas no dia a dia e, pior,
confuso. O Velho bebeu um gole de café e disse:

“As águas precisam ser turvas para que não


percebam que são rasas”. Pedi para que explicasse
melhor. Ele foi didático: “Quem deseja o entendimento
de uma ideia se expressa de maneira clara, salvo se
o fruto ainda não está devidamente maduro para ser
colhido da árvore. Alguns confundem hermetismo
com sofisticação. A verdadeira sofisticação reside
na simplicidade; consiste em tornar simples uma
ideia elaborada ou difícil. A sabedoria é simples;

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a simplicidade é uma virtude poderosa e rara,
indispensável a todas as demais virtudes”.

Perguntei ao monge se ele se referia à humildade


quando falava em simplicidade. Ele balançou a cabeça
antes de responder: “Não. A humildade é outra virtude
valiosa e aliada inseparável da simplicidade, porém
elas não se confundem, ao contrário; se completam.
Por exemplo, sentir orgulho da própria humildade é um
contrassenso. É preciso que a humildade, a virtude típica
dos sábios, daqueles que conhecem verdadeiramente a
si e se sabem, ainda, incompletos, seja natural e simples,
sem nenhum mérito ou vaidade. Ou não conseguirão
preencher o que ainda há de vazio. O narcisismo é a
raiz do ego e de todas as sombras que o habitam.
A humildade o ilumina; a simplicidade as dissolve”.

Argumentei que a simplicidade tinha que


ser sincera e honesta. O Velho foi além: “Na verdade
elas se integram. A sinceridade e a honestidade, duas
outras virtudes, necessitam ser simples para existir.
Sinceridade e honestidade sem simplicidade não são
virtudes; são tristes demonstrações de exibicionismo”.

Reclamei que a simplicidade não me parecia


simples. O monge deu uma gostosa gargalhada e fez
troça: “O motivo é simples”. Em seguida explicou:
“Simplicidade é a transparência e a clareza do ser.
É o avesso do subterfúgio. O problema é que temos
dificuldade em admitir nossas imperfeições e conflitos
internos, tudo aquilo que possa nos envergonhar.
Na ausência da humildade criamos máscaras na ilusão
de nos proteger dos outros e de nós mesmos. Acabamos

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por interpretar personagens ‘bem resolvidos’ por
acreditar que dessa maneira será mais fácil sermos
aceitos e amados, sem nos darmos conta de que
isto somente alarga a ferida e o sofrimento. Quando
aumentamos o distanciamento da nossa essência, nos
afastamos da indispensável cura do ser. A simplicidade
é o eficiente guia que nos ajudará a atravessar a ponte
estreita que aproxima o ego da alma”.

“A simplicidade é a arte da leveza; a capacidade


de olhar para si e expor ao mundo exatamente como
somos. Defeitos e qualidades; complicações e
entendimentos; erros e acertos; mentiras e verdades.
Sim, somos imperfeitos. No entanto, não precisamos
ser complicados. Nem fingidos. O importante é estar
consciente, olhar amorosamente para si e seguir em
marcha rumo à completude. Simplicidade é despir
a fantasia do ego para deixar a alma nua. Só assim
podemos ver, entender e aperfeiçoar quem somos.
Isto traz encantamento”. Me olhou com jeito maroto e
brincou: “É melhor do que sorvete no calor do verão”.

“Já reparou como as pessoas simples são


encantadoras?”, ele me perguntou. Concordei de
imediato. O monge explicou: “É porque elas estão
abertas para as belezas da vida, têm facilidade em
se relacionar, não têm vergonha em ser o que são;
trazem a magia do andarilho, daqueles que anseiam
por aprender, se transformar e evoluir. No fundo esta
é a arte que todos, conscientes ou não, desejam para
conduzir a própria vida. Por isto o encanto”. Calou
por um breve instante, como se procurasse a melhor
palavra antes de falar: “As pessoas complicadas

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acabam se tornando enfadonhas pelo fato de se
olharem com vaidade ao invés de observarem com
amor. Abrem mão da luz para se esconderem nos becos
sombrios da própria personalidade. Então, o centro da
existência resta perdido em favor de uma configuração
externa que nada acrescenta à evolução. As pessoas
simples trazem a leveza daqueles que não ligam para
as críticas alheias. Não dão a mínima para a imagem
ou reputação. Isto é problema de quem se mantém no
raso. O ser simples caminha protegido pelo escudo da
humildade. Conhece as próprias imperfeições e sabe da
batalha interna que trava em busca de aprimoramento.
Está concentrado em entender o peso que lhe verga as
costas para transformá-lo em asas”.

“Somente a simplicidade permite uma vida


sem mentira, sem excesso, sem afetação. É a percepção
da força da essência em detrimento à fragilidade da
aparência”. Argumentei que as pessoas simples me
pareciam pouco elaboradas intelectualmente. O monge
rebateu de imediato: “A simplicidade não é simplória.
Esta, sim, o mantém na superfície da existência ao
insistir na autoilusão; a simplicidade, ao contrário
do que muitos pensam, é um mergulho nas profundezas
do verdadeiro eu sem aflição nem medo, para conhecer e,
posteriormente, sem pressa, iluminar cada canto escuro
do ser. O avesso da simplicidade não é a complexidade
ou a sofisticação; é a obscuridade”.

“Ser sincero é não simular nem esconder.


É viver sem artimanhas, sem segundas intenções.
Sem mentiras para os outros e, principalmente, para si
mesmo. Ser simples é não calcular nem complicar a

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sinceridade. É deixar a vida fluir com naturalidade,
com coragem, com humildade, em paz”. Tornou a
beber mais um gole de café e questionou: “Percebe
que é impossível viver o amor em toda a sua amplitude
sem a presença da simplicidade? Entende que cada
uma das virtudes é uma flor indispensável no jardim
da plenitude? Ser simples é simplesmente ser. É um
degrau para a liberdade. É indispensável para atravessar
o primeiro portal do Caminho”.

Ficamos um bom tempo em silêncio para que


as novas ideias se ajeitassem em mim, até que comentei
nunca ter imaginado a importância e a sofisticação de
ser simples. O Velho arqueou os lábios em um bonito
sorriso e disse: “Ninguém nasce simples. Desde criança
sofremos a influência de muitos condicionamentos
sociais e culturais que, não raro, valorizam a importância
da aparência ou de comportamentos enlatados para
a conquista da admiração alheia. Isto faz com que
percamos o respeito por nós mesmos pelo fato de
irmos, pouco a pouco, nos afastando da nossa essência,
esquecendo a importância em seu burilamento. O ser
resta enfeitado por fora, oco por dentro. Tudo se torna
efêmero e as relações se fragilizam. As consequências
mais comuns desse sentimento, que teimamos em
negar, é a impaciência, a agressividade, a tristeza
ou a depressão. Isto talvez explique a necessidade de
tantos enfeites no corpo, quem sabe não são, em parte,
para distrair a atenção quanto ao abandono da alma?
Diferente não é a elaboração de um discurso complicado
para explicar a si mesmo. Sem perceber, a falta de
simplicidade acaba por montar uma armadilha cuja a
presa é a própria pessoa”. O monge bebeu o resto do

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café e pediu outra xícara ao garçom. Depois finalizou:
“A simplicidade é uma conquista consciente, típica
da maturidade. Como naquela história infantil, cada
qual precisa de sinceridade e coragem para se olhar no
espelho e admitir que os belos trajes não passam de débil
ilusão: ‘o rei está nu’. É preciso simplicidade para lidar
com a verdade. Este é o primeiro passo para resgatar a
verdadeira força que o habita. O poder do espírito livre
começa na simplicidade do ser”.

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A ÂNFORA DA HUMILDADE

T
Eu estava de volta ao Himalaia. Era uma
promessa que tinha feito a mim mesmo, retornar
uma vez por ano à vila chinesa, próxima ao Tibete, para
estudar o Tao com Li Tzu. A única hospedaria que havia
no lugar estava sempre lotada de alunos de todas as
partes do mundo, sedentos por conhecer um pouco mais
sobre o milenar Tao Te Ching, o Livro do Caminho e da
Virtude. As reservas, na prática, eram de pouca utilidade
e não garantiam a vaga. As reclamações quase nunca
surtiam efeito, pois a anciã responsável pela pousada
respondia, sempre sorrindo, em inglês ou mandarim, de
acordo com a conveniência dela em se fazer entender.
No pequeno espaço que servia como recepção, eu
disputava com um homem enorme, com mais de dois
metros de altura, forte como um halterofilista, quem
ficaria com o último quarto vago. Ambos tínhamos
reserva, a minha era anterior a dele, mas ele chegara à
hospedaria minutos antes de mim. Discutíamos, cada
qual com suas razões e argumentos, diante da anciã que
parecia se divertir, uma vez que não parava de sorrir,
embora o tom da discussão aumentasse a cada palavra
proferida. Até que ele pegou a chave do quarto das mãos
dela e disse que a questão estava resolvida: ele ficaria
com o quarto, salvo se eu fosse capaz de tomar a chave
dele. Repleto de raiva, não reagi. A diferença de força
física anunciava uma grande surra, caso eu aceitasse
jogar pelas regras do meu oponente. Pedi à anciã que

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tomasse uma atitude contra aquela arbitrariedade.
Ela apenas deu ombros e respondeu, em seu idioma,
algo que interpretei como “nada posso fazer”. Claro,
sem abandonar o sorriso. Como se não bastasse, e com
efeito devastador para mim, ainda ouvi uma série de
provocações e piadas desagradáveis por parte do meu
desafeto enquanto me retirava da hospedaria.

Fui ao encontro de Li Tzu e narrei todo o


ocorrido. Em resposta, o mestre taoista me convidou a
tomar chá com ele. Fechei os olhos para controlar a ira
e apenas concordei com a cabeça. Fomos à cozinha e,
sem nenhuma pressa, ele foi misturando várias folhas
desidratadas em um coador para depois deixá-las em
infusão por alguns minutos. Tudo sem dizer palavra.
Bastante irritado, perguntei se ele não iria comentar
sobre o que eu tinha contado. Li Tzu respondeu:
“Por ora, o silêncio. Ele permite que você ouça o
seu coração. Será sempre o melhor mestre”. Depois
encheu as duas xícaras e as colocou sobre a mesa de
madeira rústica. Então, falou: “Você perdeu a batalha”.
Questionei se ele me aconselhava a reagir de maneira
violenta e lutar pela chave do quarto. Ele balançou
a cabeça em negativa e disse: “Claro que não. A sua
derrota foi decretada quando se permitiu sentir raiva.
A sombra foi mais forte do que a luz”.

Argumentei que não tinha como me sentir


de outra maneira, afinal eu havia sido humilhado.
O mestre taoista franziu as espessas sobrancelhas
grisalhas e explicou: “A derrota, pelo visto, foi ainda
mais profunda. A ofensa é um convite para dançar
nas trevas. Somente quem não conhece a compaixão

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aceita comparecer a este tipo de baile”. Bebeu um gole
de chá e prosseguiu: “Apenas é humilhado quem não
traz em si a virtude da humildade. A humilhação atinge
somente os espíritos toscos, ainda movidos por orgulho
e vaidade. A compaixão é o antídoto contra o veneno da
ofensa e do sarcasmo. Um escudo em forma de manto
de amor que derramamos sobre o agressor. É o amor em
forma de sabedoria por entender que cada qual age na
exata medida do seu nível de consciência e capacidade
afetiva. A compaixão sabe que as rosas não florescem
no deserto. A maneira de reagir diante das situações
desagradáveis define a distância que já conseguimos
percorrer no Caminho e quais flores já germinaram em
nosso Jardim de Virtudes. Apenas quem traz em si as
sombras do orgulho e da vaidade pode ser humilhado.
A humildade é a cura. Ela transmuta a escuridão e
dissolve a humilhação em pétalas de luz. Ninguém se
torna andarilho ou jardineiro sem a ânfora da humildade”.

Torci o nariz. Falei que ânfora era uma espécie


de vaso antigo e a humildade era destinada aos fracos.
Argumentei que a questão não era apenas as ofensas,
mas também o fato de ter vindo de longe para estudar
o Tao e não ter onde dormir. Sim, acrescentei, eu tinha
motivos para estar irado. Impassível, Li Tzu disse:
“Você poderá dormir no galpão dos fundos onde ficam
os bonsais. Para tanto, terá o compromisso de regá-los
duas vezes ao dia e os colocar ao sol, bem cedo, todas as
manhãs. Caso concorde, aconselho ir até a mercearia da
vila. Lá vende material de alpinismo. Compre um saco
de dormir”. Agradeci e aceitei a oferta. Perguntei quando
começaríamos as aulas. Ele respondeu de imediato:
“Já começaram. Na hospedaria”.

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Os dias se passaram sem que eu tornasse a
falar com Li Tzu, sempre atencioso com os inúmeros
viajantes que vinham em busca de seu conhecimento
sobre o Tao. Passei a me entreter com os bonsais até
que veio um recado para que eu lesse o capítulo 11
do livro:

“Molda-se o barro, faz-se um vaso,


mas útil é o vazio do interior.
Uma casa tem portas e janelas,
mas útil é o vazio, lá de dentro.
No existir está a posse,
no vazio, a utilidade.”

Ainda refletia sobre aquelas palavras quando o


mestre taoista se aproximou. Falei que tinha lido o poema
e que não concordava com o raciocínio. Acrescentei
que uma pessoa, diferente de um vaso ou ânfora, não
podia ter o interior vazio. O valor estava justamente em
seu conteúdo. Acrescentei que eu tinha me graduado
em uma famosa universidade, além de ter concluído o
mestrado e o doutorado. Não fazia sentido jogar todo esse
conhecimento fora. Li Tzu ouviu todo o meu discurso
com enorme paciência, ao final, me ofereceu um olhar
doce e falou: “Você é um homem culto e eu reverencio
o conhecimento. Porém, tudo o que você aprendeu
de nada lhe serviu na briga que teve na hospedaria”.
Interrompi para dizer que o outro hóspede é quem foi
agressivo e autoritário. Eu tinha sido a vítima. O mestre
taoista se manteve sereno: “Sim, é verdade. No entanto,
você se permitiu a ira. A raiva e todos os sentimentos
que lhe são afins, como a mágoa ou o ressentimento,
causam um tremendo desequilíbrio na alma, tão

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grande que é como se todas as moléculas do seu corpo
recebessem uma martelada. Como se não bastasse,
ainda o mantém algemado ao agressor por afinidade
de sentimentos. É preciso colocar o seu conhecimento
para se proteger daquilo e a se libertar disso”, explicou.

Discordei. Disse que nenhum conhecimento


é capaz de lançar uma mordaça na boca de pessoas
deselegantes. Li Tzu anuiu com a cabeça e explicou:
“Concordo mais uma vez. Contudo, não se trata de calar
o outro, mas impedir que as flechas verbais o atinjam”.
Irônico, perguntei se eu deveria enfiar o tal vaso vazio
na cabeça, pois assim, talvez, não ouvisse as ofensas.
O mestre taoista deu uma gostosa gargalhada e depois
me olhou com bondade. Percebi, talvez a primeira vez
na vida, que era compaixão e misericórdia. Ao invés
de se chatear, ele se divertiu com o veneno que lancei.
Me senti um ser grosseiro, sem qualquer lapidação, e
fiquei envergonhado do próprio sarcasmo. Li Tzu se
manteve sereno: “O pão apenas vira alimento quando
na boca; enquanto na vitrine, não cumprirá o seu
destino. O conhecimento só passa a ter valor quando
colocado em prática. Ele precisa ser útil ou perderá o
sentido. Ninguém precisa de ninguém para ser feliz,
mas todos precisam dos outros para evoluir. As lições se
apresentam no convívio. Um eremita, por maior que seja
o seu saber, se não sair da caverna restará estagnado.
O conhecimento somente se transforma em sabedoria
quando em movimento”. Deu uma pequena pausa antes
de acrescentar: “Mas não é só. Todo verdadeiro sábio
reconhece a necessidade de evoluir. Para tanto, precisa
aceitar com sinceridade e humildade a sua condição de
eterno aprendiz”.

24
Comentei que tinha dúvida se a humildade era,
de fato, uma virtude. Sempre a considerei algo menor,
típico das pessoas que não tinham grandes sonhos.
Li Tzu me olhou como quem se diverte com uma criança
teimosa e explicou: “A humildade é a virtude dos santos
e dos verdadeiros sábios. Você apenas se torna grande
quando entende a grandeza de ser pequeno. Ou não
haverá espaço para crescer. Os pequenos não mudarão
de tamanho enquanto se enganarem grandes”.

“O orgulho e a vaidade são sombras que


alimentam a ilusão de que somos os maiores e melhores,
aprisionando o verdadeiro eu na escuridão. Todo
intelectual, enquanto se gabar do seu conhecimento
estará longe de se tornar um sábio. Todo maioral
enquanto orgulhoso de sua força ou envaidecido pelo
poder não passará de um ser frágil pelo alvo fácil que se
tornou. Continuará a ser um tolo, um personagem social
de si mesmo. Viverá de débeis aplausos que alimentam o
ego e enfraquecem a alma; uma aparência condecorada,
uma essência combalida. Isto porque a ânfora da
humildade, repleta de orgulho, mofada por vaidade, não
permite lugar para o novo e, por consequência, para a
transformação. Ela está lotada de ideias que não servem
mais por manterem o ser estacionado. A sorte é que,
não raro, a vida se apresenta em forma de tragédia e
caos para que o vaso lotado de preciosas inutilidades
se quebre. O universo está empenhado com a evolução
de cada um. Ninguém ficará de fora, nem mesmo os
mesquinhos e teimosos. Somos partes indissociáveis
do todo. A renovação é indispensável e inexorável.
Renovamos e seguimos ou estagnamos e sofremos
até que quebrem a nossa ânfora; não há outra opção.

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Você precisa estar vazio ou nada poderá acrescentar a
si. Esta ânfora se chama humildade”.

“Quando o indivíduo a preenche com virtudes,


o vaso se mantém vazio para que sempre haja lugar
para novas e outras virtudes. Infinitamente. Somente as
virtudes permitem ao andarilho avançar no Caminho.
A verdadeira virtude não pesa, dá asas; preenche sem
ocupar lugar; tem poder sem vontade de dominar; possui
valor sem desejo de aparentar. A humildade é o primeiro
portal e a habilitação necessária para a conquista das
demais virtudes de que fala o Tao”.

Argumentei que nunca tive bons olhos para


a humildade. Sempre a liguei à pobreza, à fraqueza e à
ignorância. Li Tzu balançou a cabeça em negativa
e disse: “Justo ao contrário. A humildade é uma virtude
repleta de lucidez, pois ao saber exatamente quem
somos, reconhecemos o que ainda não somos; este é o
bilhete de entrada. É o indivíduo que se percebe simples
em espírito, no entanto, disposto a conquistar e
sedimentar em si cada uma das virtudes que compõem
a Luz. Ele já entende que essa é a verdadeira fortuna.
A sua riqueza não precisa ser guardada no cofre,
pois não pode ser roubada”. Deu uma pequena pausa
antes de prosseguir: “Acaba por se tornar a virtude
dos fortes, daqueles que não podem ser humilhados
ou maltratados por inatingíveis. Por banais, as pedras
da ofensa, do desprezo, do descaso, da chacota e
dos cerceamentos vis lançadas por toda a gente são
vistas como malcriações de crianças insatisfeitas,
mimadas e desorientadas, sem quaisquer condições
de alcançá-lo”.

26
Comentei que eu tinha a sensação de que as
pessoas humildes não amavam a si mesmo. Li Tzu
explicou: “O humilde ama a si próprio sem abandonar
a verdade. Esta é a grandeza da humildade. Apenas
assim ele consegue desapegar das ilusões que trazem
o sofrimento e a escuridão, que tanto consomem as
suas forças e o desvia da felicidade e da paz. Ele não
tem vergonha das suas imperfeições, ao contrário, elas
servem de inspiração para o enriquecimento moral
e espiritual que almeja. A conquista da humildade
estabelece um novo capítulo na vida do indivíduo ao
elaborar um diferente código de compreensão e conduta,
norteando as demais virtudes a serem sedimentadas
pela alma”.

Bebemos o chá sem falar palavra. Ao final,


Li Tzu retornou aos seus afazeres. Nos dias que se
seguiram, enquanto cuidava dos bonsais, refletia sobre
o poema do Tao e na conversa que tivemos. Aos poucos,
toda a discussão na hospedaria foi perdendo tamanho
e importância, até que me encontrei rindo do ridículo
da situação. Me senti leve. Seriam essas as asas de que
falara o mestre taoista?

Naquela tarde, tive que dar um pulo no pequeno


comércio da vila para comprar algumas coisas. Por
acaso – se é que acasos existem –, encontrei o homem
enorme com quem tinha brigado. Ele estava indo
embora e percebi que, apesar do seu tamanho, tinha
dificuldades em carregar a própria mala. Explicou
que tivera uma contratura muscular nas costas e
tinha dificuldade para os movimentos mais simples.
Me adiantei, ele recuou. Talvez pensando que eu

27
aproveitaria a oportunidade para agredi-lo e me vingar.
Confesso que isso me ocorreu, mas a vontade, naquele
momento, era nenhuma. Peguei a mala, andamos
um bom tempo, lado a lado, em silêncio até que a
coloquei no bagageiro do ônibus que ele embarcaria.
As feições do homem estavam diferentes daquelas
que eu havia conhecido quando cheguei à vila.
Ele foi sincero em me agradecer e acrescentou que “sem
aquela não haveria esta”. Tornou a agradecer. Apenas
fechei os olhos e sorri, também em agradecimento,
como resposta. Nos abraçamos. Ambos tínhamos
sido agraciados com preciosos aprendizados.

Quando voltei, falei para Li Tzu que estava


na hora de partir e contei o ocorrido. Acrescentei que
entendia a necessidade de manter vazia a ânfora da
humildade para que novas ideias e virtudes encontrassem
um lugar em mim. O mestre taoista balançou a cabeça
em concordância, me presenteou com um belo sorriso
e finalizou a lição: “Mas não basta. É preciso lembrar
que além das ideias e das virtudes, a ânfora não pode
estar repleta do ‘eu’. Necessário se faz que também haja
lugar para o outro. Ou nada fará sentido e a humildade
se perderá em si”.

Naquele dia, enquanto eu andava pelas ruas da


vila, tive a estranha sensação de que podia voar.

28
BELEZA OCULTA

T
Pelas manhãs era comum encontrar o Velho,
como carinhosamente chamávamos o monge mais
antigo da Ordem, no jardim do pátio interno do
mosteiro, cuidando das plantas. Tinha predileção
pelas rosas, às quais ele dedicava horas a fio.
Sempre que possível, eu gostava de acompanhá-lo,
não pelo gosto à jardinagem, mas pelas conversas
proporcionadas. Nesse dia, ele foi procurado por uma
jovem. A moça se declarou desencantada pela vida.
Tudo lhe parecia sem graça, os dias eram cinzentos
e as pessoas desprovidas de encanto. Confessou que
a alegria a irritava por parecer idiotice. Os dias não
passavam de uma sucessão de erros e frustrações.
Não existia razão para sorrir. Ao final dos seus
lamentos perguntou se o Velho era feliz. O monge que a
tudo ouviu com paciência e atenção enquanto cuidava
do jardim, mostrou na palma da mão uma pequena
lagarta que tinha tirado das flores, guardou-a no
bolso da túnica para depois soltá-la na floresta e disse:
“Sempre haverá motivos para sorrir; a alegria é uma
semente possível de germinar até mesmo no deserto.
A alegria é uma escolha da sabedoria e do amor”.

A moça interrompeu para dizer que tudo era


muito poético e pouco prático. Não fazia sentido a alegria
ser uma escolha. Muito menos ligada à sabedoria e ao
amor. O Velho explicou: “O sofrimento é uma escolha.

29
A alegria é a alternativa”. A jovem se irritou. Acusou
a insensibilidade do monge em relação aos problemas
alheios, alguns muito sérios. O Velho, sem perder a
serenidade prosseguiu: “O problema nunca será o
verdadeiro problema. O problema é a maneira como
cada um escolhe enfrentar as inevitáveis adversidades.
Você pode percebê-lo como uma barreira intransponível
e restar frustrada. Então, você tem um problema.
Porém, pode entender que ali reside uma lição para
aprendizado e superação. Nesse caso, você está
diante de um mestre. A cada curva podemos estagnar
ou evoluir. A decisão é pessoal; cada qual viaja sob
condições próprias, como herdeiro de suas escolhas”.

A moça tornou a discordar. Sustentou que o


sofrimento tinha como fonte razões externas, alheias
à vontade das pessoas. Não havia como evitar isso.
O monge, com muita calma, tentou explicar: “Penso que
não. O que determina a alegria ou a tristeza é o olhar”.
Deu uma pausa e começou a falar como se pensasse em
voz alta: “Dinheiro? Já encontrei gente feliz em favelas
enquanto conhecia pessoas deprimidas morando em
mansões à beira-mar. Saúde? Certa vez fui visitar um
amigo, internado para tratamento de um câncer severo.
Nunca eu o vi tão feliz. Ele me disse que a doença foi
a melhor coisa que lhe aconteceu, pois permitiu um
novo sentido sobre valores e interesses. Agradecia por
aquele momento angular em sua vida. A enfermeira que
cuidava daquele setor estava mal-humorada e lamentava
a sorte por ter torcido o pé”.

A moça revelou que tinha sido demitida do


emprego e, como se não bastasse, o namorado havia

30
terminado o romance, abruptamente, por se descobrir
apaixonado por outra mulher. O monge se esforçou
para mostrar um infinito leque de possibilidades: “São
situações que podem parecer o fim do mundo ou surgirem
como uma oportunidade de renovação para que o seu dom
pessoal ou a magia da vida se revelem. Quantas vezes o
que pensamos ser uma tragédia não passa do universo, em
sua infinita bondade e inteligência, tentando corrigir uma
trajetória errática, conspirando a nosso favor, enquanto
insistimos em atrapalhar”. Tornou a se calar por instantes
e falou: “Um erro muito comum reside em confundir os
desejos como se fossem degraus evolutivos. Nem sempre
uma coisa tem a ver com a outra. Então, precisamos fracassar
para aprender a fazer certo. Demoramos a entender por
achar que já sabemos. Como o ego costuma gritar ao
fazer as suas exigências, temos dificuldade em ouvir os
conselhos na voz suave da alma. Por isto é tão importante
o silêncio, a quietude e o encontro consigo mesmo”.

“Em resumo, alegria ou tristeza, definem o


olhar que cada qual oferece a si mesmo. Orgulho ou
humildade; vaidade ou simplicidade; ilusão ou verdade;
maquiagem ou cura. O que você busca quando se
observa no espelho? Isto define se o mundo continuará
a ser um lugar desconfortável. Ou não”.

A jovem deu uma gargalhada. Sarcástica,


disse que aquele discurso era bonito, mas distante da
realidade. Falou que gostaria de encontrar um único
motivo para sorrir. Declarou que a sua vida era uma
tragédia. O Velho se manteve impassível e falou com
doçura: “Dificuldades financeiras, problemas de saúde,
a morte de pessoas queridas, relacionamentos afetivos

31
frustrados, sonhos negados, muitos são os motivos
de tristeza quando você se observa prisioneira da
situação; ou de alegria, quando percebe a ferramenta
oferecida para aprender a viver diferente e melhor.
A vida precisa das decepções para provocar a mudança
na maneira de olhar; das dificuldades para aperfeiçoar
o jeito de andar. Assim, ao seu modo estranho, a vida
se faz perfeita através das imperfeições”.

A moça disse que perdia o seu tempo naquela


conversa. Tinha mais o que fazer. Antes de sair, acusou
o monge de manter aquele belo discurso pelo fato de
levar uma vida mansa, cuidando das flores, sem nunca
ter enfrentado um revés. Girou nos calcanhares e partiu.
Eu fiquei abalado; toda aquela grosseria tinha me
incomodado bastante. O monge se virou, pegou o alicate
e, com enorme tranquilidade, voltou a cuidar das flores.
Fiquei observando e vi que havia paz em suas feições.
Uma calma verdadeira e inatacável. Cheguei a olhar para
ver se os seus pés tocavam o chão, pois tive a sensação de
que ele flutuava no ar. Quando começou a assoviar uma
antiga canção, achei demais e, eu que havia assistido a
tudo sem dizer palavra, resolvi me intrometer. Perguntei
se ele não estava ofendido com a situação. O Velho me
olhou surpreso e respondeu: “De maneira nenhuma.
A deselegância foi dela, eu a tratei com atenção e amor.
Ofereci o meu melhor com sinceridade. Apenas não posso
permitir que a desarmonia de ninguém abale a minha paz.
Permito que a luz alheia me contagie; a sombra, jamais”.

“Todo conflito ou decepção pode ser um


problema paralisante ou um desafio à evolução. Este
é o poder das escolhas. O diferencial reside no quanto

32
de luz está embutido na sua vontade, quais virtudes
você já possui sedimentadas no ser. Assim cada qual
narra verdadeiramente a própria história. Queiramos
ou não, o filme da vida de qualquer pessoa conta uma
trajetória de superação. Toda vitória está misturada
a fracassos, erros, decepções, além do compromisso
em tentar de novo. E depois outra vez. Claro que você
pode fazer isso com tristeza, mas acho mais leve e
inteligente usar a alegria”.

Argumentei que algumas pessoas tinham


uma vida mais difícil do que outras. Para minha
surpresa, o monge parou de podar as rosas, guardou o
alicate e se sentou em banco de pedra à sombra de uma
árvore. Quando olhou para mim seus olhos estavam
mareados. Perguntei se ele estava bem, ele disse que
sim com a cabeça. Depois falou: “Cada qual enfrenta
as perfeitas lições que lhe cabem. A vida entrega os
instrumentos necessários e as condições adequadas
para o ser iluminar as sombras que o habitam.
Nem mais nem menos. Em essência, temos que
exercitar o amor através das várias virtudes existentes.
As virtudes são as ferramentas da Luz, o amor é a
mais importante delas”. Olhou no fundo dos meus
olhos e disse: “Viver o amor e a alegria ao lado de
quem amamos, em perfeitas condições de convívio e
sem problemas, é maravilhoso, mas é para os fracos.
Aos fortes é destinado o desafio de fazer florescer o
amor e a alegria diante das adversidades”.

Perguntei se a vida tinha sido dura com ele.


Uma lágrima escapuliu pela pele vincada do monge.

33
Pedi desculpas por ter provocado, sem querer, aquela
emoção. Ele sorriu e disse com o seu jeito doce:
“Está tudo bem. Só há saudade onde existe amor. Eu sou
grato a isto”. Depois falou: “Quando jovem, meus sonhos
eram outros, nunca me imaginei fazendo parte de uma
ordem esotérica e morando em um mosteiro. Eu queria
uma vida confortável e uma família feliz, ideal bonito de
vida, que nada tem de errado. Estudei muito, consegui
um excelente emprego, casei com uma bela mulher e
cheguei ao topo da carreira ao conquistar a cadeira de
presidente de uma famosa empresa multinacional. Logo
em seguida a minha esposa engravidou e meus melhores
sonhos estavam na palma da minha mão. Lembro que
pensei: ‘cheguei no alto da montanha’. No entanto,
houve complicações no parto e em um só instante perdi
a mulher amada e o filho desejado”.

Interrompi para dizer que ele não precisava


continuar, caso não estivesse à vontade. Ele me ofereceu
um sorriso doce e balançou a cabeça dizendo que não
tinha problema. Depois contou: “Como se não bastasse,
uma crise financeira de âmbito mundial fez com que
a empresa em que eu trabalhava fosse absorvida por
outra. Agradeceram os meus serviços, mas eu não era
mais necessário ali. Namorei várias pessoas, algumas
bem interessantes; tive outros excelentes empregos, mas
aquela realidade não mais se adequava a mim. Conheço
histórias de muitos que conseguiram, mas comigo foi
diferente. Achei que fosse ficar triste, mas algo havia
mudado. Aos poucos percebi que o meu sucesso,
apesar de proporcionar conforto e admiração, era fonte
de ansiedade, insônia e nervosismo. No casamento,
embora amasse a minha esposa, as discussões eram

34
uma rotina. Com o passar do tempo, por algum motivo,
no auge da vida profissional e afetiva eu estava sempre
desconfortável. Eu vivia um sonho bonito e desejado
pela maioria das pessoas, porém, não era feliz. Sim, atrás
da bela aparência de um homem forte e eficiente que
conquistou o mundo, na essência eu era frágil e incapaz
de conquistar a própria paz. O motivo era simples: aquele
não era o meu sonho, e eu começava a entender isto. Outro
era o meu campo de batalha. Ao menos nesta existência.
Era preciso me reinventar. Vieram novos estudos, outros
interesses, pessoas com novos valores, a Ordem. Foi
uma longa caminhada até aqui, com as dificuldades e
alegrias inerentes a todo percurso, mas diametralmente
oposta aos sonhos inicias. Todos os problemas, conflitos
e frustrações se mostraram imprescindíveis para que o
verdadeiro sonho se apresentasse e acontecesse. O olhar
se modificou e diferente se tornaram as escolhas. Então,
conheci a felicidade de uma maneira inimaginável em
outros tempos”.

O Velho me olhou como um pai e disse:


“É preciso ver a beleza oculta da vida. O amor e
a sabedoria escondidos em cada curva fechada do
Caminho. Os desejos precisam se frustrar para que
os sonhos se revelem; a vida precisa derrapar para
corrigirmos a rota; o errado é o mapa para o certo.
A necessidade abençoa a evolução; o problema,
quando bem aproveitado, se torna o esmeril da virtude.
Do contrário, continuaremos a confundir paixão com
amor; conhecimento com sabedoria; fogos de artifício
com a verdadeira Luz”. Deu uma pequena pausa antes
de finalizar: “Entender a beleza oculta da vida significa
a capacidade de ver a face de Deus em todas as coisas”.

35
A ESTAÇÃO

T
Na pequena e charmosa cidade que fica no
sopé da montanha que acolhe o mosteiro há uma
secular estação de trem. Estávamos, eu e o Loureiro,
o elegante sapateiro amante dos vinhos e dos livros,
sentados em um antigo banco de madeira à espera de
sua sobrinha, que a pedido da mãe, uma das irmãs do
artesão, passaria alguns dias com o tio, na tentativa de
ajudá-la a dissolver a angústia que a abatia. Era muito
cedo e o sol ainda não ganhara força para afastar o frio
da madrugada. Percebi que ele estava encantado com
todo aquele movimento de chegadas e partidas, típico
de qualquer estação. Antes que eu lhe indagasse sobre
o assunto, surgiu a sua sobrinha. Era uma moça na casa
dos trinta anos. Muito bonita, porém, bastante abatida.
Eles trocaram um abraço forte, como fazem os que se
amam ao se encontrarem. Fomos apresentados e ela foi
muito gentil. A jovem disse que precisava de um café.
Fomos a uma cafeteria ali mesmo. Quando a simpática
garçonete colocou sobre a mesa as canecas fumegantes
acompanhadas de pão quente com o delicioso queijo da
região, a sobrinha abriu o coração. Lamentou que a vida
tinha virado ao avesso.

Ela estava de férias. Trabalhava em uma


famosa grife italiana de roupas e acessórios femininos,
mundialmente conhecida. O ambiente no trabalho
andava péssimo; muita disputa interna, nem sempre

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digna, por mais espaço e notoriedade, além de muita
discórdia entre todos da equipe do seu setor. Fora isto,
não sentia mais no namorado a vontade e a alegria
sinceras de estar ao seu lado. Como se não bastasse, o
pai se encontrava em coma terminal, reflexo da doença
que o acometia há anos. Por fim, confessou que embora
sempre tivesse amado a vida, viver daquele jeito não
mais a interessava. Faltavam-lhe forças para prosseguir.

O sapateiro mordeu o sanduíche, lambeu os


beiços, bebericou o café. Como se não tivesse pressa
para escolher a melhor palavra, apontou a plataforma
com o queixo por detrás da janela e disse: “Uma vez
por dia, todos os dias, esta estação recebe e despacha
muitas pessoas. Venho aqui há anos e quando vejo duas
pessoas se abraçando, muitas vezes chorando, nunca
sei se é pela alegria da partida ou da chegada”. A moça
interrompeu para lembrar que podia ser de tristeza,
uma vez que a partida nem sempre é desejada. Loureiro
a fitou com doçura nos olhos e explicou: “Todas as
vezes em que há tristeza pelo simples fato de alguém
seguir o seu rumo, significa que existe algo de errado
dentro da gente. Os espíritos livres encaram a partida
com sabedoria e amor, por isto, com alegria”. Deu uma
pequena pausa para tornar a beber um gole de café e
continuou o raciocínio: “Não falo apenas da partida de
pessoas queridas para outras cidades ou esferas, mas
de empregos, coisas, amores, ideias e comportamentos.
Somos condicionados a ter o controle de nossas vidas;
contudo, por erro de cálculo passamos boa parte do
tempo na tentativa de dominar as situações externas
que nos envolvem, justo aquelas sobre as quais quase
não temos qualquer ingerência, esquecendo de cuidar

37
da única parte na qual temos total poder: cada um
sobre si mesmo. Mudamos a realidade na medida que
modificamos as nossas escolhas; apenas no exercício da
liberdade encontraremos a plenitude e a paz”.

“As nossas escolhas nos concedem o poder da


vida. Aprimorar as escolhas é o verdadeiro processo de
libertação e cura do ser. Asas ou algemas se definem na
medida em que entendemos as razões e os sentimentos
que movimentam cada decisão. Tristeza ou incômodo
na partida sinalizam a possibilidade de apego, egoísmo
ou tentativa frustrada de dominação”.

“Adiar a partida é prolongar a dor. Deixe ir,


tudo e todos. Isto é essencial para quem quer aprender
a voar”.

Deu uma pequena pausa e prosseguiu: “Por que


se entristecer com o ciclo da vida? Percebe que tudo e
todos têm a sua hora de ir embora?”. A jovem se espantou.
Tudo e todos? O artesão balançou a cabeça e disse:
“Sim, só sofremos pela partida de alguém quando, por
infantilidade ou medo, transferimos equivocadamente a
outra pessoa o eixo central da nossa existência. Traga de
volta o poder que lhe pertence por essência, entretanto,
não atrapalhe a trajetória alheia”.

“Não falo apenas de pessoas que partem


para outros destinos em busca de si mesmas, mas
coisas, lugares e situações que até podem já ter sido
importantes em nossas vidas, mas que completaram
os seus ciclos, assim como temos os nossos. Em
suma, tudo o que representa o status quo está à beira

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da mudança; tudo o que está não ficará. Ou não
acontecerá a indispensável renovação e a vida não
encantará com a sua fantástica magia. Isto nos ajuda a
ter um relacionamento saudável com a impermanência
e, por consequência, com a tão temida morte, fase
necessária para a evolução em marcha”.

A moça confessou que tinha medo de perder


o que tinha conquistado e acabar ficando sem nada.
O tio se manteve didático: “A vida exige coragem.
Porém, não o heroísmo agressivo ou desmedido dos
loucos, mas a valentia tranquila que nasce do olhar dos
sábios. Percebe que a mesma estação da partida é a
da chegada? Precisamos deixar ir para que possamos
ter os braços abertos e as mãos livres para receber o
que ou quem irá chegar. O sábio sabe que o fim de
um ciclo será necessariamente o início de outro, assim
como uma história começa quando a outra termina.
Isto alimenta e sustenta a sua coragem diante do novo
e do desconhecido”.

A sobrinha perguntou quando saberia


ter chegado a hora de abrir mão de algo. Loureiro
disse: “Todas às vezes em que nos sentimos infelizes
ou desconfortáveis significa que algo precisa ser
modificado. Sempre na gente, nunca nos outros.
Cada qual é responsável por suas transformações
e arca com as consequências de suas escolhas.
Abandone em definitivo vício de desejar que o outro,
ou mesmo o mundo, mude para se adequar às suas
vontades. Isto é falta de respeito e, pior, tentativa
de dominação. Além de ser inútil por ineficaz.
Faça a sua parte da melhor maneira possível e siga

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em frente, tão somente. Você pode até não concordar
com o outro, mas jamais lhe impor qualquer tipo de
mudança sob nenhuma condição. A recíproca também
se aplica: nunca concedermos a ninguém o poder sobre
as nossas escolhas. Afinal, em razão delas, caberá a
cada qual as duras intempéries ou as belas paisagens
da própria viagem”.

“Lembre da possibilidade de aceitar com


paciência e respeito quando a decisão de alguém em
partir, de alguma maneira, o atingir. O outro também
está na trajetória pelo encontro consigo mesmo. É hora
de desejar boa viagem e substituir a tristeza do que vai
pela alegria do que virá.”.

“Quando a vida se mostra insossa ou desa-


gradável é o aviso de que passou da hora para as
inevitáveis mudanças que impulsionam os avanços.
É o momento de partir ou deixar ir. A vida precisa
de movimento para não estagnar. Não o movimento
vazio da diversão rasa que não passa da fuga de si
mesmo. Mas o movimento que o faz encontrar consigo
próprio, aquele que o torna uma pessoa diferente e
melhor; livre e em paz.”.

Ficamos algum tempo sem dizer palavra


até que a jovem começou a chorar. Perguntei se ela
estava bem. A moça balançou a cabeça dizendo que
sim. Disse que precisava ficar a sós consigo mesma.
Pagamos a conta e saímos.

Passados alguns dias, eu voltei à oficina de


Loureiro e perguntei pela sua sobrinha. Ele disse

40
que ela tinha ido passar uma semana na fazenda de
uma amiga, próxima dali. Estávamos no meio de uma
conversa quando a sobrinha entrou. Fiquei surpreso.
O semblante era outro, trazia um bonito sorriso no rosto.
Me cumprimentou e deu um beijo estalado na bochecha
do tio. Em seguida falou que os dias de introspecção
tinham permitido um importante descortinar da
realidade. Ela entendeu que a teimosia em não abrir
mão de nada do que a cercava apenas prolongava o
sofrimento em manter ao seu lado o que não mais
deveria estar. A estagnação traz o apodrecimento; no
movimento reside a cura. Agora conseguia ver isto
com clareza. Lembrava da dificuldade e das dores
do pai durante o tratamento; a deterioração física
que ocorrera. Tinha a clara percepção de que ambos
estavam aprisionados a uma cela dolorosa; ele a espera
de ouvir que podia partir em paz, pois ela ficaria bem
e, cedo ou tarde, se encontrariam em outra estação,
pois o amor alinha os destinos. Confessou estar
sendo egoísta e, agora, estava disposta a se despedir
dele. Iria desejar uma boa viagem e um até breve.
O artesão balançou a cabeça e disse: “Sim, há a hora
de dissolver o corpo para o espírito prosseguir em
mais um trecho da grande jornada”. Em seguida, a
jovem falou de quantas concessões contrariadas vinha
fazendo para manter o namorado ao seu lado, que
além de infrutíferas, tornavam ambos infelizes. Era o
momento de cada um pegar o seu trem e partir em
busca de novas histórias. O romance fez sentido até
um determinado capítulo, depois as letras não mais
escreveram palavra. Por fim, confessou de como se
sentia oprimida na empresa em que trabalhava. Embora
tivesse ganho muita experiência, estava insatisfeita.

41
Sabia que muitos desejavam o emprego que ela tinha,
mas do que adiantava ser admirada e viver o sonho
alheio se ela não era feliz ali? Não tinha mais a alegria
dos primeiros anos. Admitiu que sempre pensou em
criar roupas e acessórios de moda ao próprio gosto e
estilo. Era preciso colocar o vagão da vida nos trilhos
rumo ao seu dom. Estava determinada a pedir demissão,
abrir um pequeno atelier, desenvolver a própria grife.
Sabia que no início seria muito difícil, mas igualmente
animador, pois, afinal, estaria viajando com o próprio
sonho sentado na poltrona ao lado. Por fim, com os
olhos mareados contou que lembrava de ter ouvido
da boca do tio, quando criança, que os riscos são os
temperos da vida, que sem liberdade o espírito adoece.

Loureiro abriu um largo sorriso, se levantou


e abraçou a jovem por um longo tempo. Olharam-se
profundamente e o sapateiro disse: “Você está pronta
para ir à estação. O trem do seu próximo destino acabou
de chegar”.

42
DE VOLTA PARA CASA

T
Quando virei a esquina e não vi a clássica
bicicleta de Loureiro, o sapateiro amante dos livros e
dos vinhos, encostada no poste em frente à sua oficina,
pensei que não estava com sorte naquele dia. Os horários
improváveis e inusitados de funcionamento da sapataria
já tinham virado lenda na pequena e charmosa cidade
que fica ao sopé da montanha que acolhe o mosteiro.
Eu estava triste. Desde sempre, o meu relacionamento
com a minha mãe tinha sido complicado, como se amor
e mágoa se alternassem no palco da vida, gerando
memórias que acabavam por atrapalhar os dias a serem
vividos. Tínhamos tido mais uma discussão e eu queria
encontrar com o bom artesão. Eu precisava falar para
lembrar o que já sabia e ouvir para aprender o que
ainda não sabia. Era a hora do almoço e decidi ir a uma
agradável cantina perto dali. Como se o acaso existisse,
quando entro no restaurante me deparo com o sapateiro
sentado à mesa com uma mulher mais jovem que ele.
Eu não a conhecia. Quando me aproximei percebi
que eles estavam de mãos dadas e tinham as faces
molhadas em lágrimas. Recuei, mas ele me viu, abriu
um sincero sorriso e me chamou. Me presenteou com
um forte abraço e me apresentou a moça. Era a sua filha
mais nova. Ela tinha saído muito cedo de casa, após
muitas brigas com o pai, abandonara a universidade
sem a devida conclusão e ficara anos sem dar notícias.
Eu conhecia a história e sabia que Loureiro a procurara

43
por muito tempo sem sucesso. Ela acabara de voltar.
A alegria pelo reencontro transbordava em ambos.

Fomos apresentados e a jovem foi muito


amável. Eles tinham terminado de almoçar, ela pediu
a chave da casa para o pai; precisava de um banho e
algum descanso. Feliz, se despediu. Loureiro disse
para eu sentar e comer. Pediria mais uma taça de tinto
para me acompanhar. A sós, o artesão me contou que a
filha retornou após constantes decepções e frustrações
pelas quais passara; vinha à procura de aconchego
e auxílio. Comentei a excelente oportunidade para
terem uma séria conversa e ele a enquadrar de maneira
rigorosa, pois ela só o procurara porque o mundo lhe
fora hostil. Ele arqueou os lábios em leve sorriso e
disse: “Não, Yoskhaz. A vida já aplicou as lições mais
duras, é a oportunidade de eu fazer a diferença, de
mostrar a outra face. Ela precisa de compreensão e
carinho. E de muito amor”.

Ele bebeu um gole de vinho e acrescentou:


“Todos, na incompreensão de si mesmo, partem rumo
a um país distante à procura de se encontrar, até
entenderem que aquilo que buscam está em casa. Então,
cedo ou tarde, retornamos”. Interrompi para dizer que
não tinha entendido esta última parte. Ele explicou:
“É uma viagem que todos, sem exceção, fazem.
Alguns sentem a necessidade de viajar com o corpo;
no entanto, todos a realizam em espírito, dentro de si”.
Insisti que não compreendia. O sapateiro foi didático:

“A insatisfação e angústia têm raiz na


fragmentação do ser. Divido entre os desejos do ego

44
e as necessidades da alma, o ser alimenta dúvidas
que dependendo do ponto em que já se conhece, de
como consegue lidar consigo mesmo, com as suas
próprias emoções, do refinamento das percepções
e, por consequência, com a situação presente, será
fator de paralisação, fuga ou de evolução. O fato
desagradável pode gerar uma insegurança capaz de
levá-lo à completa estagnação por se deixar dominar
pelo medo; uma fuga pela dificuldade em equilibrar
os instintos primários aos desejos mais nobres; ou a
usar o momento para melhor entender a busca pela
essência que o ilumina, na jornada pela superação das
dificuldades, ora impeditivas”.

“Todos trazemos heranças sociais, culturais


e ancestrais que compõem os arquivos tanto do
ego quanto da alma. O ego está ligado aos prazeres
imediatos e sensoriais, aos instintos impulsionados
pelas sombras, aos aplausos, à segurança da vida pelo
controle da vontade alheia, à dominação, à posse,
ao brilho social. A alma é a parte do ser preocupada
com o desenvolvimento das virtudes, aos sentimentos
fraternos, a evolução, ao encanto da vida pela
liberdade dos outros e de si próprio, ao desapego, a
Luz pessoal. A cada escolha separamos ainda mais as
partes ou aproximamos uma à outra, em processo de
harmonização e, posterior, plenitude”.

“Em diferentes níveis, todos percebem essa


divisão interna. Quanto maior o abismo, mais dolorosa
a ferida. Uns preferem ignorar a cisão e concedem total
poder às próprias sombras. São os que desejam dominar
os outros, as situações que os cercam ou vivem em função

45
de amealhar bens materiais; medo, egoísmo, vaidade e
ganância são as sombras que dominam esses indivíduos;
costumam estar rodeados por pessoas com iguais
interesses em simulações de afeto e, embora neguem
ou tentem disfarçar as aparências, são profundamente
infelizes e amargos. Preste atenção, eles aparentam
possuir grande força externa, se sustentam no orgulho
da ilusão de se acreditar melhores, na arrogância de
se sentirem poderosos, mas, no fundo, são frágeis e
gostariam de pedir auxílio para sair do porão escuro
em que se encontram. Nunca admitem os seus erros,
restam estagnados. Caso em que o ego viajou para um
país distante, longe de casa e não admite voltar. A alma
é a verdadeira casa do ego, que insiste em negá-la, na
busca pela felicidade em lugar longínquo, fora de si
mesmo. Nesse momento, eles se tornam escravos das
próprias sombras”.

“Outros, um pouco mais conscientes, optam


por sufocar os instintos primários e as lembranças
traumáticas em verdadeira guerra contra si próprios, na
ilusão de esconder as sombras, com o risco de permitir
a sua movimentação sorrateira e a perda inesperada
de controle. Não raro as sombras se manifestam como
explosões nervosas ou decisões incabíveis de pessoas
aparentemente calmas e sensatas. ‘Não acredito que
fulano fez isso, ele sempre pareceu tão equilibrado’, é
a frase que costumamos ouvir nesses casos. Aprisionar
as sombras é uma guerra inglória que acabará levando
o individuo ao descontrole, a acessos repentinos de
fúria ou a seguir para o outro lado, igualmente ruim,
o da depressão, do desânimo ou do pânico. Intuem que
precisam voltar para casa, mas ainda não sabem como.

46
O ego está perdido na floresta das sombras.
Desesperados, tentam fugir de si mesmo. Restam
aprisionados, tendo as sombras como carcereiras”.

Alguns, no entanto, conseguem se olhar no


espelho com sinceridade; estão dispostos ao mergulho
profundo do autoconhecimento. Aceitam a existência
das suas sombras e as abraçam com amor. A cada
conselho oriundo do ego para o ser, a alma convida o
ego para uma conversa carinhosa a fim de mostrar que
sempre existem diferentes possibilidades. Como uma
criança que precisa ser educada, sempre com amor,
para se tornar um adulto melhor. Qualquer memória
desagradável que traga culpa ou trauma, como nunca será
esquecida, não deve ser castigada ou repelida quando se
apresenta. Ao contrário, é uma excelente oportunidade
para ser tratada com sabedoria, compaixão, humildade,
equilíbrio, perdão e, principalmente amor, no trabalho
incansável de mostrar que cada um agiu na medida
exata da capacidade da mente e do coração naquele
momento do processo evolutivo. Tanto você quanto o
outro. Ao entender que o erro é permitido a todos na
escola da perfeição, deixamos de nos envolver pela
mágoa, que tanto corrói, ou nos abater pela culpa, que
tanto paralisa, para assumir a responsabilidade de fazer
diferente e melhor daqui por diante. Assim, iniciamos o
trajeto de volta para a casa. No exercício de afinar o ego
à alma para se tornarem uno, sempre tendo as virtudes
como guia, a Luz acaba por dissipar, em definitivo, as
sombras. Isto integraliza o ser e o liberta”.

“Quando desorientado, o ego parte para um


país distante no anseio por encontrar o mel da vida.

47
As experiências vividas, somadas à ampliação da
consciência e à capacidade amorosa, o fazem perceber
que a busca pelos bens valiosos e imperecíveis tem
como destino o outro lado de si mesmo, a alma. Então,
nesse dia, retorna à casa e acontece o grande encontro”.

“Este grau de equilíbrio se chama maturidade


e se reflete na melhoria de todas as nossas relações.
É a sedimentação da virtude da harmonia no ser e a
possibilidade de viver em paz.” Acrescentou que a sua
filha começava a viver esse último entendimento e
concluiu: “O movimento interno sempre se reflete na
atitude exteriorizada”.

Argumentei que era muito fácil se arrepender


depois de ‘quebrar a cara’. Loureiro franziu as
sobrancelhas e fez uma pergunta retórica: “Não é assim
com todos?”, em seguida prosseguiu o raciocínio:
“Como na parábola do filho pródigo, abandonamos a
casa a procura do melhor que a vida tem a oferecer,
iludidos quanto a essas riquezas e prazeres. As
tempestades nos forçam a procurar um porto seguro.
A volta para a casa marca a sedimentação da
humildade no ser: apenas terá espaço para crescer
aquele que se admite pequeno e se coloca ao dispor
das lições. Ao entender que a conquista do tesouro é
o desenvolvimento das próprias virtudes, o andarilho
admite o rumo equivocado, faz meia volta e traz o ego
para se afinar com a alma. Esta virtude, a humildade,
permite iniciar o Caminho e será indispensável para
atravessar o primeiro portal”. Tornando a se referir à
filha, falou: “Tratá-la de maneia severa é fazer igual
ao mundo. Estas lições ela já aprendeu. Recebê-la

48
com amor é fazer diferente e melhor. É entregar o que
ela precisa”.

Encerrou a taça de vinho e pediu licença para


ir embora. Queria muito estar ao lado da filha. Me deu
outro abraço e o vi sair da cantina, estava saltitante
de alegria. Pedi uma torta de chocolate de sobremesa
e me dei conta de como tudo aquilo se aplicava ao
meu relacionamento com a minha mãe. Mesmo
sem conversar sobre isso com sapateiro, ele havia
me fornecido todas as respostas que eu necessitava.
Já tínhamos sido muito rigorosos um com o outro;
muitas cobranças e exigências, nenhuma paciência e
pouco respeito em aceitar as diferenças e os limites do
outro. Era hora de inverter aquele jogo e me permitir
fazer diferente para que eu pudesse descobrir o
melhor de nós dois. Corri para estação e comprei uma
passagem no próximo trem. Iria almoçar com a minha
mãe no domingo. Eu estava, de vários modos, voltando
para casa.

49
OS TONS DA PRUDÊNCIA

T
Quando dobrei a esquina para entrar na
estreita rua onde se localizava a oficina de Loureiro,
o sapateiro amante dos livros e dos vinhos, me alegrei
ao avistar a sua clássica bicicleta encostada no poste.
Era cedo, o sol acabara de surgir para evaporar o sereno
que umedece o calçamento de pedras em agradável
sensação de andar por entre as brumas. Fui à oficina
em busca de café e um pouco de prosa vadia. Ao entrar
me deparei com outros amigos do artesão. Sentados,
enquanto Loureiro lhes enchia as xícaras, eles estavam
reunidos em uma espécie de assembleia informal.
O sapateiro me recebeu com a alegria habitual, me
acomodou sentado sobre uma caixa de madeira e logo
me entregou uma caneca fumegante para afastar o frio
da manhã e acordar as ideias. Aqueles homens tinham
entre si uma amizade que os unia há muito tempo.
Ele me explicou que a turma teve mais um integrante,
René, o dono da mais tradicional banca de revistas da
cidade, falecido há pouco. Em frente à banca, todos
os dias, bem cedo, esses amigos se reuniram durante
anos para conversar sobre qualquer assunto enquanto
aguardavam o jornal do dia chegar. Era um ritual
que fazia parte da história de todos eles. O filho do
jornaleiro tinha assumido o negócio, ainda durante o
tratamento do pai, mas agora, em razão de uma dívida,
o distribuidor se negava a entregar novos jornais e
revistas. Sem renovar o material para trabalhar a

50
banca estava prestes a fechar. O filho os procurara em
busca de dinheiro emprestado para quitar o débito e
evitar que o tradicional negócio cerrasse as portas.
O problema é que o filho, que morara fora por muito
tempo, não tinha boa fama na cidade.

Charles, o mais falante deles, dono da melhor


livraria da região, onde apenas se encontrava obras de
ficção, pois, segundo ele ‘a realidade era por demais
absurda e inverosímil’, iniciou o debate. Disse que René
foi um dos seus melhores amigos e um dos homens mais
honestos que conheceu na vida. Que não hesitaria em
emprestar todo o dinheiro que possuía ao jornaleiro.
Porém, alertou, não poderia deixar que a emoção lhe
furtasse a razão: não se tratava de René. As histórias
que ouvira sobre o filho lhe convenciam que jamais
receberiam o dinheiro de volta.

Yves, proprietário de uma maravilhosa padaria,


onde era possível encontrar doces capazes de invocar os
melhores sonhos, aproveitou a deixa para contar o que
ouvira de terceiros. Eram muitos os comentários sobre
o filho do jornaleiro: como o rapaz fora relapso em seus
empregos, a vida desregrada e a sua compulsão por
jogo. O motivo pelo qual retornara para perto do pai se
deu em razão de ter contraído uma grande dívida com
agiotas. Garantiram para ele que o jovem corria risco
se soubessem que ele voltara a morar na cidade. Tinha
certeza que o esforço dos amigos seria em vão e logo ele
retornaria à perdição.

Antônio, diretor de uma excelente escola de


ensino médio, lembrou de terem lhe contado que o filho

51
de René teria abandonado os próprios filhos e não lhes
prestava qualquer auxílio. Fez questão de sublinhar que
um homem digno não desampara a família. Entendia a
separação, nunca o abandono. Concluiu dizendo que pai
e filho eram muito diferentes e os amigos não poderiam
se deixar enganar.

Francisco, dono de um grande armazém,


confessou que possuía uma dívida de gratidão com
René. O jornaleiro foi quem lhe estendeu a mão quando
chegou à cidade sem conhecer ninguém e nenhum
centavo no bolso. Ele foi seu fiador junto aos produtores
para que pudesse pegar um carregamento dos famosos
queijos da região e revendê-lo em outras cidades. Foi o
degrau necessário para se tornar o empresário que se
tornou. No entanto, soubera através de fontes confiáveis
que a dívida da banca de revistas iniciara justamente
com a internação de René, quando o filho assumira o
negócio, desviando o dinheiro para supérfluos e outras
desnecessidades. Fez questão de lembrar a fama do
jornaleiro pela credibilidade construída por toda uma
vida, na qual sempre honrou os compromissos e a
palavra. O René era um homem digno para se confiar
a chave do cofre de um banco. Entretanto, desconhecia
que honestidade fosse transmitida pelos genes.
Era melhor que o filho vendesse a banca e fosse gastar o
dinheiro em outro lugar.

Todos convencidos e acordados, a questão


estava fechada. Eu tinha prestado atenção a tudo que
havia sido dito e achava que os amigos estavam certos
em negar o empréstimo. Seria dinheiro jogado no lixo.
Até que alguém lembrou de Loureiro. O sapateiro ouvira

52
a todos sem dizer palavra. Pediram a sua opinião e ele
não se fez de rogado: “Todas colocações foram muito
sensatas. É verdade que não podemos confundir pai e
filho ou fundi-los como se fossem uma única pessoa.
Cada qual é único e há muita beleza nisto. Aceito que a
probabilidade de não recebermos o dinheiro emprestado
é enorme e todo esfoço seja em vão. As histórias narradas
parecem clarear a melhor decisão. Concordo com todos
vocês”, fez uma pequena pausa e destoou: “Até antes de
fazer a última curva”.

Os amigos disseram que não tinham entendido


a colocação. Eu, calado no meu canto, menos ainda.
O artesão desconcertou a todos: “Receber o dinheiro
de volta é de menor importância”. Se formou um
burburinho. Os amigos contestaram a afirmação.
O dinheiro deles era fruto de trabalho honesto e
não merecia ser desperdiçado. Loureiro iniciou o
raciocínio com uma pergunta: “Qual motivo os faz
crer que ele não aplicará a quantia emprestada no
negócio herdado?”. Tornaram a lembrar das várias
histórias que depunham contra o comportamento
do rapaz. O sapateiro arqueou as sobrancelhas e
indagou: “Algum de nós foi protagonista, coadjuvante
ou testemunha de algum desses fatos?”. Houve
um silêncio inicial, mas logo em seguida um deles
lembrou que as histórias, chegadas através de fontes
confiáveis, não eram poucas, e por isto mereciam ser
levadas em conta. Salientaram que o momento exigia
prudência. O artesão balançou a cabeça e disse:
“Concordo, a prudência é uma virtude importante
para nos afastar dos riscos desnecessários, sem a
qual os esforços restam inúteis. Contudo, ela não

53
pode ser exagerada a ponto servir de desculpa a
impedir o exercício da generosidade, outra virtude
valiosa. É o capítulo dois da mesma lição oferecida
por essa virtude”.

“A verdade maior se revela no entendimento


das pequenas verdades que habitam em todos os
corações”. Deu uma pequena pausa e prosseguiu:
“Por exemplo, sabemos que quando uma notícia nos
chega depois de passar por uma série de interlocutores,
não raro, estará contaminada ou alterada pelos filtros
das emoções, dos traumas e dos interesses individuais.
Talvez não seja de toda mentirosa, mas com certeza
não será de toda verdadeira”. Bebeu um gole de café e
deu de ombros ao falar: “A prudência nos ensina a não
contestar as histórias que não vivenciamos”. Franziu
as sobrancelhas ao acrescentar: “A mesma prudência
nos alerta para lembrar que tais versões também não
merecem ser abraçadas incondicionalmente”.

“Contudo, utilizar esses comentários para


formar juízo de valor sobre alguém é uma decisão
equivocada, trazendo para si a enorme responsabilidade
de se afastar de outra preciosa virtude: a justiça”.
Abaixou os olhos para que as suas próximas palavras
não fossem dirigidas especificamente a ninguém e
disse: “Ser justo é um dos mais estreitos portais do
Caminho. Nos arvoramos com enorme facilidade
no papel de juízes em tribunais nos quais não fomos
investidos com tamanho poder: julgar a vida alheia.
O pior, na mão em que seguramos a balança colocamos
em seus pratos as nossas vivências, emoções, mágoas,
decepções a descompensar a perfeita medida; na outra

54
mão, movidos pelos mesmos sentimentos e experiências
frustrantes, afiamos a espada com o rigor daqueles que
insistem em olhar para fora de si na tentativa de evitar
o encontro consigo mesmo, na ilusão de que os erros
alheios quando revelados possam esconder as nossas
próprias dificuldades”. Colocou mais café na caneca de
cada amigo e lembrou: “O que sabemos da intimidade
e das crises do casamento desse moço? Qual de nós
em algum momento, mormente quando jovens, não
nos desviamos em busca dos prazeres sensuais, na
tentação do dinheiro fácil ou das diversões rasas?
Quem nunca precisou rever planos e recomeçar?
Quantas vezes fomos chamados a reavaliar a própria
conduta?”. Bebericou o café e continuou: “Podemos
levar em consideração que a dívida foi contraída justo
no momento em que o pai estava internado, exigindo
maiores cuidados e mais medicamentos ou crer que
as economias foram desviadas para fins obscuros
em hora de pouca vigilância. Se o dinheiro foi gasto
com o tratamento ou na farra, não sei responder.
Mas também não quero adivinhar. Sei apenas que
cada um de nós tem histórias que não nos deixariam
à vontade se fossem lembradas em público, assim
como temos outras que são merecedoras de sincera
admiração. A prudência nos lembra de ambas”.

“A prudência nos avisa do sério risco de


perdermos o dinheiro emprestado. Por outro lado, a
prudência nos chama a atenção para não desperdiçarmos
a oportunidade de ajudar alguém em momento angular
da sua vida, de não jogar fora a chance de fazer a
diferença. Se pensarmos bem, o calote é o menor dos
perigos que corremos”.

55
“A prudência apenas avisa, quem impede é o
medo. A prudência diz para tomar cuidado ao seguir,
nunca para desistir. Toda a virtude precisa de outras para
se completar: a prudência sem amor se torna egoísmo;
sem compaixão é abandono; sem coragem é fuga; sem
generosidade é desistência; sem justiça é covardia.
A prudência, essa virtude tão mal compreendida, tem
compromisso com o aperfeiçoamento, jamais com o
retrocesso. Ou não seria uma virtude”.

“Temos ‘tudo e nada’ a ver com a vida


alheia”. Diante dos semblantes de dúvida, explicou:
“Absolutamente nada se tivermos em consideração
a verdade incontestável de que o filho de René é
o único responsável por sua felicidade e escolhas.
Ou tudo, se levarmos em conta que o Universo precisa
de mensageiros para alavancar os destinos daqueles
que se arrependeram. E cada um de nós precisa dessas
oportunidades para exercitar as muitas virtudes, entre
elas e principalmente, a do amor em um grau que ainda
não conhece em si. Então, ir além”.

“Experimentar o melhor de si e da vida, mesmo


com sérios riscos de perdas; ou se esconder no vazio
de aparente segurança em uma existência sem qualquer
magia, sem nenhuma Luz. A depender do momento,
a prudência pode recomendar a fechar as janelas para
não ouvir as vozes das ruas ou pode aconselhar a abrir
as portas para convidar o mundo ao aconchego do seu
coração. Por onde anda a nossa prudência?”.

Fez-se um grande silêncio por longo tempo.


Quando me dei conta, todos eles tinham as faces

56
banhadas em lágrimas. Sem dizer palavra, cada
qual preencheu um cheque e deixou em cima do
balcão. Em seguida, como se aquela conversa
não tivesse acontecido, um deles lembrou que no
domingo seguinte era a Páscoa. Todos se alegraram
e começaram a discutir em qual restaurante iriam
almoçar. Escolheram o predileto do René.

57
O CAMPO DE BATALHA

T
O céu tinha amanhecido azul após dias
cinzentos de muita chuva. Todos pareciam alegres no
mosteiro, menos eu. Um dilema pessoal me corroía
e furtava a minha paz. Sentado na cantina divagava
a minha dúvida diante de uma xícara de café e um
pedaço de bolo de aveia quando tive os pensamentos
interrompidos pelo Velho, como chamávamos o monge
mais antigo da Ordem. Ele me convidou para ajudá-lo
a colher cogumelos na floresta no arredor do mosteiro.
Explicou que o sol forte após os dias chuvosos era
perfeito para a germinação dessas iguarias aos
pés dos carvalhos da montanha. Acrescentou que
pretendia fazer a sua famosa sopa de cogumelos no
jantar. Logo que entramos em uma trilha o monge
disse perceber a minha agonia e perguntou qual era
o motivo. Expliquei que um grande amigo tinha me
convidado para acompanhá-lo durante as férias em
um acampamento de refugiados na África. Ele fazia
parte de uma organização internacional de médicos
que prestava atendimento em várias regiões do planeta
onde havia carência de cuidados pela manutenção da
vida. O Velho se virou para mim enquanto andava
com seus passos lentos, porém firmes, e disse: “É um
serviço maravilhoso e indispensável prestado por esses
homens e mulheres, médicos ou não, no esforço de levar
um pouco de conforto e muita cura em lugares onde
há ausência de condições básicas de sobrevivência.

58
Eu estive em um desses acampamentos anos atrás,
durante uma insensata guerra local e me confesso
encantado com a compaixão, a misericórdia e
a generosidade depositada em forma de amor
incondicional. Apesar de tanta dor e sofrimento,
você entende a grandeza da vida e as maravilhas da
superação no esforço de fazer diferente e melhor”.

Expliquei que esse era o meu dilema. Eu


entendia a beleza desse trabalho, no entanto, me
confessei sem vontade de ir. Essa divisão interna me
agoniava. Perguntei se eu estava errado em recusar o
convite e a oportunidade. O Velho parou, me olhou
com doçura. procurou uma pedra banhada em sol, pois
a manhã ainda estava fria e se sentou. Depois, disse:
“De jeito nenhum. Se afaste da dualidade aparente
entre o certo e o errado. Cada um elege as escolhas
de acordo com aprimoramento das virtudes que já
lhe são inerentes. Essas decisões também sofrem
influências do dom, do carma e do darma. Há que se
ter entendimento e respeito por si e por todos; cada
qual tem o seu campo de batalha. Para cada coração
uma viagem está reservada”.

Falei que não tinha entendido. O monge


explicou com paciência: “Todos temos carma e darma
pessoais. Carma é o aprendizado; darma é o propósito
de vida”. Interrompi para dizer que agora entendia
ainda menos. Ele sorriu e continuou: “Estamos aqui
para evoluir. Para tanto, temos que aperfeiçoar no
âmago do ser cada uma das virtudes que compõem a
Luz a ponto de se tornarem inseparáveis às escolhas.
Em cada ciclo evolutivo passamos por quatro diferentes

59
etapas: aprender, transmutar, compartilhar e seguir.
Atravessamos inúmeros ciclos enquanto travamos no
íntimo a grande batalha da vida ao iluminar as sombras
que nos habitam, em aproximar o eu-aparência,
chamado de ego, ao eu-essência, conhecido como
alma, às conquistas da liberdade e da paz pessoais,
sempre com alegria, semeando a beleza do convívio
consigo e com toda a gente. Assim, pouco a pouco,
despertamos todo o amor ainda adormecido em nós”.

“A cada existência trazemos as exatas


lições que nos cabem naquele momento da escala
evolutiva. É o famoso carma. O carma está ligado
ao entendimento do valor das virtudes, à importância
de cada uma delas para o aperfeiçoamento do ser.
Claro que podemos nos recusar ao aprendizado, afinal
as escolhas são livres. Aliás, é muito comum isto
acontecer. Então, o carma se torna um educador mais
severo e o sofrimento acaba por inevitável. Não como
forma de castigo como muitos acreditam. Afaste a
ideia de que carma é punição, isto atrapalha. Sofremos
por teimar em nos manter na ignorância, em ficar na
escuridão, ao não levar o ego para se encontrar com
a alma, ao insistir nas escolhas vis e inapropriadas.
Uma parte de nós se mantém aprisionada a conceitos
obsoletos e conquistas de adoração social, enquanto
a outra parte anseia por liberdade e renovação. Então
surge o conflito interno em razão dos interesses
dissonantes ao mesmo tempo em que a vida lhe
frustra as ambições de sucesso e poder calcadas nas
conquistas materiais e prazeres primários, que mesmo
quando alcançadas não se traduzem em plenitude e
felicidade. Acordamos no vazio; como se perdidos no

60
front sombrio da existência. Nos fechamos em esfera
de dor por não permitir a transmutação do ser na
disposição de fazer diferente e melhor. Mau humor,
irritação, impaciência, fuga da realidade por meio de
ilusões e diversões baratas, depressão, agonia, pânico
e até outras doenças somatizadas ao corpo são os
sintomas mais comuns quando estamos desorientados
no meio da batalha. Onde há sofrimento significa a
existência de olhares equivocados sobre si mesmo e a
vida. Isto leva às consequentes escolhas inadequadas
gerando a repetição dos ciclos educacionais. Aprender
a lição oculta que o conflito traz consigo, transmutar
este aprendizado, dividir com o mundo o novo ser
que floresceu e seguir a viagem ao encontro da Luz
é um método eficiente de transformar o sofrimento
em pó de estrelas, na beleza de cada ciclo de
aprimoramento. Lição internalizada, carma extinto
por desnecessidade. Eis a batalha a ser travada
amorosamente com o desenvolvimento das virtudes,
as verdadeiras armas da Luz”.

“Os aprendizados são oferecidos através das


relações e do convívio; o outro será sempre o melhor
espelho. Para atravessarmos a existência nos é permitido
um instrumento: são as sandálias do andarilho, a
espada do guerreiro, o ancinho do jardineiro. Essa
ferramenta se chama dom. Trata-se daquela habilidade
especial que o torna único. Cada qual tem o seu,
sem exceção. Esse dom tem que ser usado tanto em
prol do aperfeiçoamento pessoal como para semear a
alegria e o bem-estar no mundo. A começar dentro de
si, depois, em casa, na família, no trabalho, nas ruas,
na aldeia e no mundo como ondas concêntricas que

61
se expandem em um lago até os confins do universo.
Essas ondas são geradas não apenas no convívio e nas
relações pessoais, mas também através do seu ofício
ou arte. Aqui está o seu darma; é o seu outro campo de
batalha; é a sua jornada nesta existência no planeta, a
incumbência de fazer germinar flores em um pequeno
pedaço do deserto”.

Interrompi o Monge. Pelo que eu tinha


entendido havia dois campos de batalha. O Velho
arqueou os lábios em leve sorriso e concordou: “Sim,
um interno e outro externo. São pessoais e interpessoais
ao mesmo tempo, em constante comunicação.
O burilamento do indivíduo se reflete na transformação
do coletivo. A sua batalha pessoal é a exata parte que lhe
cabe na evolução da humanidade. Não há outro método
de avanço. O seu sofrimento ou alegria são as ondas
que você produz no lago cósmico. É a energia pessoal
gerada a permear e atingir a toda gente. Esta vibração
pode ser leve e sutil ou densa e pesada, a depender dos
seus sentimentos, pensamentos e escolhas”.

Falei que achava tudo muito complicado.


O Velho deu uma risada gostosa e esclareceu: “Não,
Yoskhaz. É tudo por demais simples e talvez por isto
tenhamos dificuldade em perceber. O dom se manifesta
através de inúmeras possibilidades: cuidar, curar,
prover, abastecer, aplicar a lei com justiça, limpar,
embelezar, encantar, ensinar, administrar, cantar,
escrever, construir, além de outras muitas habilidades.
O dom, seja ofício ou arte, é um instrumento de
aperfeiçoamento pessoal, além de uma ferramenta
ao serviço do planeta. Todos são indispensáveis e de

62
igual importância, seja padeiro ou médico; governante
de uma nação ou professor do jardim de infância.
A falta de um único parafuso é capaz de enguiçar a
máquina mais sofisticada. Tudo que é simples costuma
ser essencial”.

Comentei que a conversa era boa, mas não


entendia como podia me ajudar diante do dilema
sobre acompanhar o meu amigo na sua viagem ao
acampamento de refugiados. O Velho explicou com
paciência: “A viagem é dele; embora grandiosa, não
significa que seja a sua também. Embora a missão a
que se proponha seja das mais belas e necessárias,
existem muitos outros problemas carentes de mãos e
sentimentos. Fome, epidemias, guerras, desmatamento,
injustiças sociais, extinção de espécies, demagogia,
opressões e massacres de toda ordem. Há sérias
questões por todos os lados, frutos da ignorância,
raiz de uma enorme sombra coletiva e precisam de
enfrentamento e solução. Convém lembrar que os
grandes problemas nascem de pequenos dilemas; crises
globais têm origem em conflitos pessoais. Precisamos
de gente para cuidar das questões individuais com
o mesmo carinho e atenção com que nos dedicamos
a solucionar problemas planetários. O indivíduo
não mais fragmentado em si, harmonizado em sua
essência, sabe que não existe felicidade pessoal gerada
através do uso da maldade e de seus subterfúgios.
Ao ter atenção com a parte para que se desenvolva em
harmonia, preservamos o equilíbrio do todo. Assim, é
de extremo valor o trabalho comum do dia a dia, digno
e honesto que sustenta e movimenta a civilização.
Em todos os lugares precisamos de gente disposta e

63
compromissada no exercício de suas capacidades e
possibilidades. Uns complementam outros, como um
conjunto de vigas necessárias para manter erguida
uma construção”.

“O exercício do darma pode ser local ou


global. Cuidar da parte é curar o todo; apagar um
incêndio em uma família é tão valioso como costurar
o tratado de paz entre nações, apesar de não ter a
mesma repercussão. Um problema pode evitar o outro.
O micro produz o macro”. Deu uma pequena pausa e
disse: “É preciso entender onde está o seu campo de
batalha. Por todos cantos, seja dentro da sua casa, onde
os moradores abandonaram uns aos outros, ou nas ruas
da cidade, na qual a população resta esquecida pelos
mandatários, os guerreiros do bom combate serão
sempre indispensáveis. Ser mãe e cuidar de um lar
com carinho pode ser tão complexo e importante como
ser prefeito e administrar com cuidado uma metrópole.
Ambos são valiosos campos de batalha; cada um de
nós com o seu dom, carma e darma”.

Confessei-me perdido. Eu não sabia qual era


o meu dom nem onde estava o meu campo de batalha
no mundo. O monge tentou esclarecer: “Escute o seu
coração; o seu dom habita no seu sonho”. Ao ouvir
aquela frase não me contive. Falei que essa expressão
me irritava, pois dizia tudo e nada ao mesmo tempo.
O Velho manteve a serenidade: “Embora seja um dos
ensinamentos mais valiosos, tentarei de outra maneira:
procure entender onde está a sua alegria, a atividade
que lhe enche de vitalidade, onde o desânimo parece
incapaz de lhe alcançar. Apenas não confunda o

64
prazer do ego com a satisfação da alma. O dom são as
sandálias; o campo de batalha é a estrada. O amor será
sempre o melhor jeito de andar e a Luz é o destino final.
Ao fazer assim, enquanto cuida de si estará cuidando
do mundo”.

Ele me olhou fundo nos olhos e finalizou:


“Nunca deixe de oferecer o seu coração ao campo
de batalha. Lá também estará o coração do mundo.
Cedo ou tarde você os sentirá rufando como um único
tambor. É a canção da vitória!”.

65
A LEI DA AÇÃO E REAÇÃO

T
Eu tinha ido encontrar o Loureiro, o sapateiro
amante dos livros e dos vinhos, em uma agradável
taberna próxima à sua oficina. Logo após o garçom
encher as nossas taças foi inevitável não desviarmos
a atenção para a mesa ao lado. Um casal começou a
discutir um pouco acima do tom até que a moça se
levantou, disse ao rapaz que “tudo é ação e reação”
e foi embora. Ficamos alguns minutos em silêncio
até que o artesão comentou displicente: “As leis da
vida são inexoráveis”. Eu o corrigi, acrescentando
que a Lei da Ação e Reação era uma lei da Física,
mais precisamente uma das três Leis do Movimento
de Isaac Newton, renomado físico inglês. Com ar
professoral, expliquei que para toda ação existe
uma reação de igual intensidade e sentido contrário.
Loureiro me olhou com doçura como quem está
diante de uma criança exibida e disse: “Exato. Por
ser uma lei da Física trata-se de uma lei do Universo;
logo uma lei da vida, que atinge não apenas coisas e
objetos, mas os relacionamentos e define o destino
próximo de cada pessoa. Como uma sábia e amorosa
bordadeira, o Universo tece a teia da vida de todos
nós usando as leis como trama para que não reste
nenhum fio solto”. Fiquei alguns instantes refletindo
sobre aquelas palavras até que me dei por vencido
e confessei que não tinha entendido todo o sentido
do raciocínio.

66
O sapateiro bebeu um gole do tinto e disse:
“Há uma famosa frase, dita por um anjo, que define
bem o assunto. Ele ensinou que ‘a semeadura é livre, a
colheita é obrigatória’. Ou seja, temos a liberdade e o
poder das escolhas, no entanto, as consequências serão
na perfeita medida das causas que as provocaram.
Não há como impedir”.

Interrompi para dizer que o Universo era


bastante vingativo. Loureiro franziu as sobrancelhas,
como fazia ao ficar sério, e explicou: “Não, Yoskhaz!
O Universo jamais trabalha em nível de vingança por
ser o amor em sua mais pura manifestação. Como o
bom mestre que ama o aprendiz, mas também a lição,
o Universo anseia pela evolução de cada indivíduo, até
por conhecer outra famosa lei da Física, a do alquimista
alemão, e físico nas horas vagas, Albert Einstein,
que nos ensinou que ‘o universo está em constante e
infinita expansão’. Ora, se somos parte indissociável
do todo, o Universo precisa que acompanhemos a sua
evolução para que possa continuar a crescer. Estamos
fadados à perfeição e à eternidade. Não existe um
fim para nada nem para ninguém, apenas incessantes
transformações”.

Deu uma pequena pausa e prosseguiu:


“Para evoluirmos é indispensável o aprimoramento
de cada uma das virtudes que compõe a luz. A justiça
é uma das virtudes mais difíceis de serem entendidas
e sedimentadas. A Lei da Ação e Reação é uma lei
educacional em diversos aspectos. O mais importante
talvez seja a de mostrar as inevitáveis relações entre
causa e efeito, ensinando ao indivíduo que ele é

67
herdeiro de si próprio, timoneiro do seu destino. Todos
os conflitos, problemas de qualquer ordem ou relações
tumultuadas são resultantes de escolhas equivocadas
em situações pretéritas. Significa, grosso modo, que
a lição ainda não foi aprendida e existe algo a ser
modificado em si mesmo. A questão se torna recorrente
quando por orgulho, vaidade, comodidade ou teimosia
nos negamos a avançar ou insistimos em transferir aos
outros a responsabilidade pela transformação interna
que nos cabe”.

“Portanto, creia ou não, a reclamação é


sempre incabível. Enquanto o tolo se lamenta da sorte,
o sábio agradece a lição, supera a situação alterando
o próprio olhar, valores e as próximas escolhas,
dignificando o ser, deixando para trás interesses que já
foram importantes, porém em nada mais acrescentam.
Ele fecha um ciclo de vida que restou ultrapassado, se
liberta das amarras e inicia um novo trecho nos mares
da existência. Isto é evolução”

“A Lei da Ação e Reação prima pelo ensina-


mento, pouco a pouco, através da percepção pessoal.
Todas as escolhas, e fazemos centenas delas todos
os dias, são causas e movimentarão inevitáveis
consequências no mesmíssimo ritmo, como uma
bailarina que dança conforme a música disponibilizada
pelo maestro. A bailarina representa todas as suas
relações; você é o maestro. O teatro é o palco da vida.
É um método eficiente, embora por vezes severo, seja
pela dificuldade do aluno em expandir a consciência,
seja em depurar os próprios sentimentos. Assim, é
oferecida a cada um, todos os dias, a oportunidade

68
de alterar o próprio destino na medida em que estiver
disposto a modificar os interesses e padrões de
comportamento”.

“Ao semear o amor teremos uma primavera


de paz, ao passo que os ventos do ódio trarão as
tempestades da intolerância. Se teremos à mesa os
frutos da alegria ou do sofrimento depende apenas de
uma escolha sofisticadamente simples, ao alcance
de cada um de nós”.

“A Lei da Ação e Reação trata do equilíbrio


entre relações e interesses. É comum julgarmos os
outros pelos fatos e desejar que nos julguem por nossas
intenções e razões, não raro, tortuosas, que criamos
na tentativa de justificar desejos nem sempre cabíveis.
Entende a discrepância? Percebe onde está enterrada
a raiz de todos os conflitos? Negamos a oferecer aos
outros as mesmas condições que pleiteamos para
nós e, como se não bastasse, ainda reclamamos das
imperfeições do mundo como maneira de desviar a
atenção para onde residem os problemas e, também, as
soluções: no âmago de si mesmo. Lá é onde se esconde
a mola-mestra das escolhas, a pedra sagrada da
felicidade. Ao perceber a harmonia entre causa e efeito
sobre todas as coisas, o indivíduo resgata a fantástica
magia sobre como direcionar a vida para o destino que
melhor lhe agradar. Entender o poder das escolhas é
conhecer um poder incomensurável”

“O caráter pedagógico dessa lei faz com que


alguns prefiram chamá-la de Lei da Educação. Eu gosto
de denominá-la como Lei da Justiça, porque provoca

69
a igualdade e a equidade, ao seu tempo e com fina
sabedoria, entre todos os acontecimentos e relações,
nos levando ao entendimento da dificílima virtude da
justiça. Ser verdadeiramente justo não é fácil”.

Comentei que todos se acreditam justos.


Loureiro balançou a cabeça concordando: “Sim,
esse é o problema. Por não conhecerem a justiça
não conseguem exercê-la. Para que uma decisão seja
justa é necessário abstrair os interesses mesquinhos,
o instinto primitivo de vingança, oferecer a outra
face através da compaixão pelas dificuldades alheias,
deixar aflorar a humildade na compreensão dos
próprios equívocos e, acima de tudo, permitir que
todo o amor que o alimenta seja transferido para o
outro. Não se encontra justiça onde não há amor. Ao
contrário do que muitos pensam, o ato justo não é
aquele que pune o erro, mas o que ensina uma maneira
diferente e melhor de ser. Só então haverá justiça
e luz; todo o resto é manipulação de privilégios,
ilusões e sombras”.

Ficamos um bom tempo sem dizer palavra


até que me confessei impressionado com o conteúdo
pedagógico da Lei da Ação e Reação e com a mestria
do Universo na educação de todos. Loureiro tornou
a encher a sua taça com o bom tinto que bebíamos e
falou: “Entender as leis é aprender o funcionamento
da vida. O Código do Universo tem como espinha
dorsal a Lei do Amor que ensina ao indivíduo amar a
todos como a si mesmo. Esta é a lei maior e a perfeita
iluminação; todas as demais leis são suportes para
nos conduzir a tal estágio. Todos querem a felicidade,

70
apenas não entendem onde ela habita e, assim, teimam
em fazer escolhas que os distanciam dela, insistindo
em padrões conflituosos, distantes das melhores
virtudes”. Deu uma pequena pausa e finalizou de
maneira poética: “Desde a antiguidade os marinheiros
navegam tendo as constelações como mapa e bússola.
Todos desejam um porto de águas tranquilas para
atracar, mas acabam a mercê das tempestades por não
lembrarem que as estrelas existem para guiá-los ao
melhor destino”.

71
A PORTA ESTREITA

T
O Sermão da Montanha é o eixo central dos
estudos da Ordem, todos os demais textos, oriundos das
mais diversas tradições filosóficas e metafísicas, são
variantes a aprofundar e colorir esse valioso pensamento.
Eu estava sentado em uma confortável poltrona na
biblioteca do mosteiro, com o olhar perdido na bela
paisagem oferecida por suas janelas, refletindo sobre as
palavras proferidas nas colinas de Kurun Hattin, quando
fui surpreendido pelo Velho, como carinhosamente
chamávamos o monge mais antigo da Ordem. Ele trouxe
da cantina duas canecas com café, colocou uma delas
na pequena mesa ao meu lado e foi escolher um livro
nas prateleiras. Sorri em agradecimento à gentileza
e o convidei para sentar na poltrona à minha frente.
Aproveitaria que estávamos a sós para conversarmos
um pouco. Ele aceitou, se acomodou, bebeu um gole de
café e quis saber o que eu estava lendo. Respondi que
lia esse precioso legado filosófico, mais precisamente
a parte em que falava sobre a porta estreita. “Entrai
pela porta estreita, porque larga é a porta e espaçosa
é a estrada que conduz à perdição e numerosos são os
que por aí entram. Estreita, porém, é a porta e difícil
o caminho da vida e raro são os que o encontram”, li o
pequeníssimo trecho. Comentei que o texto poderia ser
um pouco mais extenso para fornecer mais detalhes e
explicações quanto ao seu conteúdo. O Velho balançou
a cabeça e disse: “O texto está perfeito em sua concisão.

72
Lembre que ele foi elaborado não para alguns, mas
para todos. É preciso que, ao seu modo, atinja os mais
diversos níveis de consciência. Cada qual encontrará
a profundidade a que estiver disposto a mergulhar.
O Sermão da Montanha é o Código do Caminho, porém
respeito quem o veja como uma grande bobagem”.

Perguntei por que a porta era estreita.


O monge arqueou os lábios em leve sorriso e disse:
“A porta é estreita porque o ego é enorme; muitas são
as desnecessidades e inutilidades que ego insiste em
carregar consigo, tornando a viagem lenta, dolorosa
e pesada”. Pedi para explicar melhor e o Velho foi
atencioso: “A raiz de todos os sofrimentos é a separação
entre o ego e a alma. Quanto mais distante um do outro,
maior é a divisão do ser, numerosos serão os conflitos
e as agonias. A completa integração entre as partes é
a plenitude traduzida na paz de espírito que o manterá
inatingível aos golpes e venenos do mundo”.

“De um lado, temos a valorização das


aparências que tanto encantam o ego; o empoderamento
das sombras, a alimentar o egoísmo, a vaidade, a
arrogância, o orgulho, o ciúme, a ganância, a inveja,
os prazeres efêmeros e o desejo de dominação sobre
os outros. Todas essas emoções são frutos do medo e
da ignorância”.

“Do outro lado, temos a importância da essência


do ser trabalhada pela alma, a verdadeira identidade de
todos nós; o amor como estrela-guia, a evolução como
objetivo, as virtudes como método de cura e libertação
do espírito. São as flores da luz”.

73
Eu quis saber como aplicar aquelas palavras
ao cotidiano. O monge explicou: “Fazemos inúmeras
escolhas todos os dias, desde as mais corriqueiras como,
por exemplo, se vamos sorrir para o vizinho ou virar o
rosto fingindo que não o vimos, até as mais complexas
como mudar de emprego, de país ou de estilo de vida.
A cada escolha ouviremos as orientações do ego ou os
conselhos da alma. Assim, a todo momento estamos
definindo a porta pela qual entraremos”.

Questionei sobre a dificuldade da estrada sobre


a qual o texto se refere. A paciência do Velho parecia
sem fim: “A dificuldade está em percorrê-la levando na
bagagem o enorme volume produzido pelos valores a que
fomos condicionados, nos quais as buscas espirituais,
que devem ocorrer sem detrimento das conquistas
materiais no âmbito da sensatez, da necessidade e da
ética, restaram em segundo plano. Para viajar pela via
da luz é preciso leveza. Não é fácil percorrer a estrada
de uma existência terrena disposto abrir mão do
supérfluo, do excesso, da fama vazia, do poder mundano
de dominação, da ostentação que tantos aplausos e
reverências proporcionam. O brilho que aparenta ainda
traz mais admiração do que a luz que sustenta. Inverter
os valores culturais nos quais o perdão entre no lugar
do ressentimento; a humildade dissolva o orgulho; a
justiça se torne um instrumento de educação e não mais
de vingança; os princípios seculares do Iluminismo, tais
como igualdade e fraternidade, substituam os teimosos
privilégios ancestrais, são apenas alguns exemplos que
fazem o individuo bailar no ritmo do universo, mas
na contramão dos costumes sociais. Não haverá mais
tapinhas nas costas nem paparico; no entanto, existirá

74
respeito e compaixão. Há uma enorme dificuldade em
dizer para si mesmo que ‘o rei está nu’; ou seja, que os
valores que o orientaram até aqui são ilusórios e que a
verdade é diferente: a riqueza, o poder e a magia estão
dentro, não fora de si. Devemos privilegiar a bagagem
que cabe no coração, como a alegria, a dignidade, a
liberdade e a paz”.

“A porta estreita é a passagem permitida apenas


àqueles que escolhem caminhar com o cajado das
virtudes. Por necessidade evolutiva, o refinamento das
virtudes no ser é a jornada de aproximação e integração
entre o ego e a alma, como exercício de superação.
A absoluta unidade entre o ego e a alma, indispensável
à plenitude, somente será possível para quem se dispõe
à jornada do autoconhecimento. Esta é a verdadeira
batalha, assim iniciamos e seguimos no Caminho”.

Comentei que eu era capaz de enumerar muitas


virtudes: o amor, a justiça, a pacificação, a mansidão,
a generosidade, a gratidão, a dignidade, a sinceridade, a
honestidade, a compaixão, a misericórdia, a delicadeza,
a doçura, a paciência, o respeito, a harmonia, a pureza,
a coragem, a alegria, ânimo, a firmeza, o bom humor,
a humildade, a simplicidade, a esperança, a fé, entre
outras que eu pudesse ter esquecido naquele momento.
O Velho deu de ombros e perguntou: “Responda, não
para mim, mas para você mesmo, quais delas você já
traz sedimentadas em si?”.

Abaixei os olhos e confessei que muitas


vezes encontro desculpas para abdicar das virtudes
em minhas escolhas. O monge concordou: “O mundo

75
sempre oferece uma linha de raciocínio tortuosa
para justificar os desejos do ego em detrimento das
necessidades da alma. Este é o trabalho incansável
das nossas sombras: os inúmeros truques para nos iludir
quanto à verdade e nos afastar da luz. Então, brigamos
e sofremos. No entanto, temos o poder e a magia da
vida”. Interrompi para dizer que não acreditava em
magos e magias. O Velho deu uma gostosa gargalhada e
disse: “Todos somos feiticeiros; magia é transformação.
Alteramos a realidade na medida em que aceitamos as
transformações internas orientadas pelos valores da luz
que nos habita”.

Tornei a interromper para questionar sobre


tais valores. O monge explicou: “Aperfeiçoar em si
cada uma das virtudes que você acabou de elencar é
iluminar e transmutar as sombras. Ao invés de brigar
com as suas sombras, abrace-as com carinho, reconheça
as suas dificuldades e, como um pai amoroso que se
dedica à educação do filho, mostre que elas podem
e devem evoluir, pois o ser precisa se tornar uno por
imperativo de evolução. Assim, aos poucos, afinamos
cada uma das virtudes, até que todas estejam alinhadas
na consciência e no coração. Este é o processo para o
encontro da verdadeira paz e da autêntica liberdade.
Então, perceba como tudo se altera ao seu redor. Isto
é pura magia”. Falei que eu era uma pessoa pragmática
e empírica. Pedi para ele explicar como as virtudes, na
prática, poderiam alavancar a minha evolução e fazer a
diferença no mundo.

O Velho não se fez de rogado: “A vida é farta


em oportunidades. As virtudes estão à espera do nosso

76
comando, sempre dispostas a iniciar a jornada de cura e
libertação. Os exemplos são inúmeros:

Todas as vezes que o mundo acusar alguém,


podemos avolumar a condenação, afundando o infeliz
em tristeza e culpa; ou resgatá-lo para a luz, mostrando
a ele a possibilidade e a responsabilidade de fazer
diferente e melhor da próxima vez;

Quando estiver diante de um dilema entre a lei


e a justiça, no qual o direito te protege na medida que
a justiça se afasta, renuncie aos privilégios concedidos
como exemplo sagrado de equidade;

Ter firmeza para estancar o mal, sem esquecer


da compaixão e da misericórdia em relação ao infrator.
Precisamos nos afastar do terrível risco da vingança,
estágio de equiparação nas trevas. A justiça é uma
virtude que se completa com a educação e não com a
mera punição;

Diante da ofensa, nunca esqueça que a


humilhação é uma flecha de curto alcance e não atinge
quem voa com as asas da humildade e da compaixão.
Perdoe e siga em frente;

Diante das exigências das inevitáveis reformas


sociais, traga sempre consigo a mansidão. É aliada
inseparável dos argumentos cristalinos. Não esqueça
que as transformações apenas se efetivam de dentro
para fora do indivíduo, nunca ao contrário. E acima de
tudo, se o argumento é forte, lembre que o exemplo é o
definitivo de mudança;

77
O mundo precisa de mais diplomacia e menos
julgamentos. Ao se deparar com um conflito entre
terceiros dispa-se do tentador papel de juiz; aceite a
difícil incumbência do diplomata a costurar a paz e o
entendimento. Não raro, quando duas pessoas discutem
ambas têm razão, cada qual dentro do seu nível de
consciência, capacidade amorosa e esfera de interesses
e dificuldades;

Nunca seja um muro na estrada alheia. Torne-se


a ponte pela qual todos farão a travessia sobre os
abismos da existência terrena. Embora o Caminho
seja solitário, a viagem é solidária. Ninguém cumpre
a jornada sem ajuda;

A alegria é a melhor maneira de agradecer


por todas as flores que enfeitam a vida. Por mais
que você se recuse a vê-las, acredite, a beleza está
por toda parte. Possibilitar o sorriso de alguém é a
mais poderosa das orações de gratidão e uma valiosa
magia; o bom humor é uma constante nos espíritos
iluminados. Não há vaga para os ranzinzas no trem
que leva às Terras Altas.

Jamais se lamente ou imponha aos outros a


sua vontade. Apenas se transforme. As virtudes estão
aí para isto”.

O monge deu uma pequena pausa e concluiu:


“Os bons exemplos não cessam aqui, são infinitas as
aplicações das virtudes como ferramentas da Luz
a transmutar as sombras individuais e coletivas.
O aprimoramento das virtudes é um eficiente método

78
de evolução”. Comentei que era tudo muito difícil.
O Velho rebateu de pronto: “Por isso a porta é estreita e
o a estrada exige esforço”.

Ficamos um bom tempo sem dizer palavra.


Rompi o silêncio para me confessar surpreso com
a longa interpretação do monge em relação a um
pequeno parágrafo de tão poucas linhas. Ele deu
de ombros e comentou: “O mergulho não foi tão
profundo. Podemos ir muito mais longe”. Acrescentei
que toda essa teoria era nova. O Velho me ofereceu
um belo sorriso e a devida correção: “Não, Yoskhaz!
Toda a sabedoria é muito antiga e nasceu em tempos
imemoriais. Ao lado do amor, a sabedoria tem
cultivado as sementes da luz e da verdade nos campos
da humanidade desde sempre. Nós é que teimamos
em não aprender. Repare que Jesus proferiu o
discurso há dois milênios com a autoridade de quem
oferece a si mesmo como exemplo das suas palavras.
Embora a porta seja estreita, ela é a única entrada
para o Caminho. A porta está à disposição de todos,
a qualquer momento; basta apenas uma escolha”. Deu
uma pequena pausa antes de fazer a observação final:
“Repare a preocupação do universo para conosco.
Um pouco mais de mil anos depois do Sermão da
Montanha, o mestre pediu para que um dos seus mais
valorosos apóstolos retornasse, para nos lembrar não
apenas sobre o poder do amor, a virtude maior, mas
também para mostrar a sabedoria transformadora das
demais virtudes e sinalizar o Caminho”. Interrompi
para dizer que não sabia do que e de quem ele se
referia. O Velho fechou os olhos e cantarolou a oração
ensinada por Francisco:

79
“...
Onde houver erro, que eu leve a verdade
Onde houver desespero, que eu leve a esperança
Onde houver tristeza, que eu leve a alegria
Onde houver trevas, que eu leve a luz.
...”.

80
ASSIM NASCEM AS ASAS

T
Chovia muito e eu apressei o passo. Me alegrei
assim que dobrei a esquina da rua estreita e sinuosa
onde se localiza a oficina de Loureiro, o sapateiro
amante dos livros e dos vinhos. Vi a sua clássica
bicicleta encostada ao poste. Ao entrar na loja uma
profusão de perfumes, cheiros de couro e café fresco
se misturavam ao de flores. Foi uma grata surpresa
encontrar Valentina sentada ao balcão. Ela tinha
acabado de chegar. Embora também fosse monja da
Ordem, nem sempre nos encontrávamos no mosteiro,
uma vez que o compromisso assumido por todos
os integrantes da irmandade é o de passar um mês
ao ano para estudos, debates e reflexão. Nossas
datas andaram desencontradas nos últimos tempos.
Valentina tinha a poesia como arte, a engenharia
como ofício. Eu a considerava uma poetisa singular,
expoente da sua geração. Fui recebido com alegria
por ambos. Logo estava sentado com uma caneca
fumegante à minha frente. Perguntei pelo próximo
livro e ela contou que terminava uma coletânea de
poemas sobre o amor. Falou que pensava em dividir
a obra em duas partes; em uma abordaria as mágoas
provocadas pelo amor, enquanto a outra mostraria o
poder encantador do amor. Comentei que a dor era a
parte podre do amor. Ela concordou, quando fomos
interrompidos pelo sapateiro: “Vocês entendem muito
pouco sobre o amor”.

81
A poetisa sustentou que toda relação
afetiva provoca decepções e frustrações, não apenas
em função das possibilidades existentes e mal
aproveitadas, mas também do amor oferecido e nem
sempre correspondido. Acrescentou que essa era a
face dramática do amor. Loureiro balançou a cabeça e
disse: “Para começar é fundamental que se estabeleça
a diferença entre paixão e amor. Há confusão
quanto a esses sentimentos, embora eles sejam bem
diferentes, tanto no trato consigo mesmo quanto em
relação aos outros”. Valentina pediu para ele explicar
melhor e o sapateiro mostrou a gentileza que lhe era
característica: “A paixão é a mola propulsora do ego;
o amor movimenta a alma. A plenitude se revela no
instante em que o ego também passa a se encantar pelo
amor em detrimento da paixão, em passo definitivo de
unificação e evolução do ser”.

“Todos buscam a felicidade; onde e como


encontrá-la é o diferencial e nos define como pessoa.
Por mais absurdo que pareça, aqueles ainda em estágio
primitivo de evolução, que matam ou roubam, apenas
para ficarmos nos exemplos mais básicos, acreditam que
podem ser felizes na prática do mal, que os produtos de
seus crimes trarão a sonhada felicidade. Separando as
indispensáveis diferenças, algo parecido ocorre entre
paixão e amor. Nos apaixonamos por outra pessoa e
nos iludimos quanto ao amor que sentimos por ela”.
Interrompi para dizer que estava confusa a explicação.

O doce artesão sorriu e foi didático: “A paixão


é instrumento de felicidade do ego, preocupado com
as próprias alegrias e prazeres. O ego declara ao ser:

82
‘Tenho direito de ser feliz’. Sem dúvida que tem, mas
por não saber como construir ou encontrar esse estado
de plenitude em si mesmo, vai buscar na vida do outro,
no atalho cômodo da transferência de responsabilidade.
‘Serei feliz ao ter essa pessoa ao meu lado’, estabelece
a sentença. Nesse exato momento você abdica do poder
sobre a própria vida e o entrega para o outro, pois as
suas alegrias e tristezas passam a variar de acordo com
as escolhas alheias. A dependência se torna absoluta
e o sofrimento inevitável. A paixão nos faz crer que
a felicidade é um banquete obrigatório oferecido pelo
outro, como desculpa pela própria recusa em entrar na
cozinha, elaborar a receita pessoal com os ingredientes
inerentes a cada um e disponíveis a todos. Sem
esquecer que ninguém consegue suportar o fardo de
fazer alguém feliz todos os dias. Assim, como fogos de
artifício, a paixão surge, faz barulho, tem brilho e logo
depois do show vai embora”.

Perguntamos sobre o amor. O sapateiro


explicou com o seu jeito doce: “As virtudes são as
ferramentas para que a alma seja plena. Sem plenitude
não há felicidade. O amor é a mais importante das
virtudes pelo fato de estar presente em todas as demais
virtudes. Logo, é impossível ser feliz sem amar”.

“No entanto, é preciso entender o amor sob o


risco de não conseguir vivê-lo. Se você está sofrendo,
tenha certeza que não é por amor, mas por falta dele”.
Quase que em coro, eu e a Valentina discordamos
do artesão. Argumentamos que todas as pessoas já
sofreram por amor ao se frustrar em suas relações
justamente por amarem demais. Ele balançou a cabeça

83
e falou: “Eis a questão. Desejamos ser correspondidos
na medida daquilo que acreditamos oferecer ou
merecer. Isto é paixão, não é amor. É o ego exigindo
atitudes onde não deve, se intrometendo na consciência
dos outros; são as suas sombras transferindo ao mundo
a responsabilidade pela própria alegria e bem-estar”.
Bebeu um gole de café antes de prosseguir: “O amor
é o inverso da equação, é a superação do sofrimento.
O amor, por ser amor, traz em si virtudes essenciais: a
sabedoria de entender que cada qual é responsável pela
própria felicidade; a compaixão para não determinar
a carga de afeto que desejamos, pois não se pode
exigir o que o outro não possui; a humildade se faz
indispensável por compreender que não é justo esperar
pela perfeição alheia uma vez que não a temos para
oferecer; a sensatez de aceitar que não podemos impor
os nossos desejos à vontade dos outros e também não
somos prioridade na vida de ninguém”.

“Assim, o amor transpõe as dificuldades


tão comuns nas relações e dos fatos mundanos que
vulgarmente chamamos de ‘problemas’, por transcender
aos mesmos. O amor leva a outro estágio de percepção
e faz com que o indivíduo não seja alcançado pelo
turbilhão de emoções desencontradas, pois o mantém
suspenso no ar. Só o amor possibilita o florescimento
da essência que habilita todas as transformações.
O Universo em resposta entrega tudo e muito mais
em total completude do indivíduo consigo mesmo,
afastando as brumas da ilusão que tanto enganam
quanto à conquista da plenitude e consequente estado
de paz e felicidade. Este é o poder. O amor se torna
sagrado por despertar o divino adormecido em você.

84
O amor é a única ponte entre o deserto e as Terras
Altas. Viver o amor é fazer a travessia”.

Valentina tinha um olhar distante como se


encantada por uma paisagem inusitada. Eu estava
inconformado com aquelas ideias e afirmei que os
amantes também se magoam. O sapateiro discordou:
“Só existe ressentimento entre os apaixonados, nunca
em uma relação de amor verdadeiro. O amor é a perfeita
cura da mágoa. O amor traz em si a compreensão, a
paciência, a tolerância e, se precisar, o indispensável
perdão”. Rebati dizendo que tal sentimento era um sonho
quase impossível. Loureiro franziu as sobrancelhas e
explicou: “Será difícil enquanto aprisionado à obsoleta
maneira de pensar, condicionado a receber ao invés de
oferecer, sem entender que todo o amor que se possui é
tão e somente aquele que se é capaz de dar.” Deu uma
pequena pausa para outro gole de café e disse: “Aquilo
que não somos capazes de dar ainda não estamos
prontos para viver”.

Argumentei que muitas vezes doei muito de


mim e não recebi nada em troca. O sapateiro me olhou
como a uma criança e perguntou: “E qual o problema,
não era amor? Onde existe doação não cabe exigir
nada de volta. Quando é amor nunca haverá recibos,
boletos ou impostos. Devemos nos alegrar pela beleza
e encanto que provocamos, nada mais. No entanto, se
esperava algo em retribuição não havia pureza em suas
intenções, você estava mais interessado em si do que
no outro, somente oferecia para que pudesse receber,
logo, não era amor. O amor, quando puro, e somente
assim será verdadeiro, não se magoa, não apodrece e

85
é capaz de florescer sob as mais terríveis tempestades.
Entretanto, não germina em solo adubado por interesses
estranhos às virtudes essenciais”.

Lembrei de como é bom se sentir amado.


Loureiro concordou: “Sem dúvida, é maravilhoso. O amor
que recebemos acalenta e conforta. Apenas não esqueça
que somente o amor oferecido transforma e eleva”.

“Na paixão a felicidade se traduz no afeto


que se recebe. No amor encontramos a plenitude ao
oferecer o melhor que nos habita; a felicidade é mera
consequência”. Franziu as sobrancelhas, gesto que
sempre fazia ao aumentar o tom de seriedade das
palavras e disse: “O mais grave e a causa dos maiores
sofrimentos é justamente condicionarmos a felicidade
ao recebimento de carinho e atenção. Esta mentalidade
se torna um vício cruel; e pior, para mantê-lo precisamos
controlar as escolhas alheias. Então, criamos regras
de comportamento absurdas e coercitivas, revelando
o condicionamento ancestral e atávico de dominação
existente no inconsciente coletivo, fruto do medo
pelo abandono, da agonia típica da incompletude e da
ansiedade por não entender qual é o pedaço que falta;
da ignorância por não perceber que para ser por inteiro
basta despertar as virtudes latentes em seu próprio
âmago e esta possibilidade está ao alcance de qualquer
pessoa. Se ilude em pensar que achará em outro alguém
aquilo que não consegue encontrar em si mesmo.
Aprendemos muito com os outros, nos sentimos bem
ao lado de certas pessoas pela afinidade energética em
razão de uma mesma sintonia de ideias e sentimentos;
amamos muita ou pouca gente, contudo, crer que alguém

86
irá nos completar é uma enorme sombra e raiz de muita
dor. Por outro lado, quando entendemos que o amor
se torna perfeito no simples ato de doar o melhor de
si sem pedir absolutamente nada em troca, ao exercitar
sem qualquer contrapartida as virtudes já consolidadas,
nos libertamos da terrível prisão sem grades chamada
dependência emocional. Assim nascem as asas”.

“O Universo, em sua incomensurável,


sabedoria nos oferece a experiência dos filhos e da
família, entre outros motivos, como oportunidade de
vivenciar o amor incondicional em sua forma mais
básica. Pais que amam os seus rebentos sentem-se
repletos de felicidade ao ver o sorriso na face dos seus
filhos. Não querem troco ou troca, não medem esforço
ou sacrifício, apenas se alegram na alegria da prole.
Não costuma ser assim? Resta aprender a expandir
esse amor ao mundo e a toda a gente”.

Ficamos um tempo em silêncio. O sapateiro


foi passar mais um pouco de café, quando reparei que
Valentina rabiscava palavras em um bloco sobre o
balcão. Perguntei o que escrevia e ela fez um gesto
com a mão para que eu esperasse um pouco. Quando o
artesão retornou com um bule de café fresco e tornou
a encher as nossas canecas, ela leu a própria criação:

“Na infância da existência me alegro


com a minha bola,
a minha boneca,
a minha bicicleta,
e quando os meus amigos não estão
na prateleira,

87
ao meu dispor,
brigo, brigo e brigo.
Sofro, sinto dor”.

“Na maturidade da vida me completo


com as flores que plantei,
com o pote d’água que deixei,
com os sorrisos que provoquei,
com os abraços que troquei.
E sigo.
O que levo?
Tão e somente
o amor que semeei”.

88
O ESCONDERIJO DO MAL

T
Canção Estrelada, o xamã que tinha o dom de
transmitir a sabedoria ancestral do seu povo através
das músicas e das histórias que contava, acendeu
o fornilho de pedra vermelha do seu indefectível
cachimbo e deu uma baforada. Era um final de tarde
de outono, estávamos sentados na varanda da sua casa
e nos cobríamos com mantas coloridas para afastar
o frio típico das montanhas do Arizona nessa época
do ano. Eu tinha acabado de chegar de viagem e a
primeira coisa que o xamã me perguntou, logo após
aos cumprimentos, foi o motivo pelo qual eu “parecia
carregar tanto peso nas costas”. Sim, era verdade,
eu estava mal. Dei um sorriso amarelo como quem
é visto sem as roupas do personagem que criamos
para interpretar quem não somos nos palcos da vida
e declarei que o mundo não era um bom lugar para
se viver. Em seguida narrei alguns problemas que
enfrentava em razão do posicionamento absurdo de
algumas pessoas contrários aos meus. Sentenciei que,
sem dúvida, o planeta é habitado por gente atrasada,
insensível e ruim.

Canção Estrelada ouviu tudo em silêncio,


quando terminei de falar ele perguntou: “Há uma
bela lenda do meu povo que talvez o ajude a entender
o momento pelo qual atravessa. Quer ouvi-la?”.
Respondi que seria uma honra, afinal esse era o talento

89
de Canção Estrelada. Ele sorriu e narrou a história
compassadamente: “Havia uma aldeia próspera e
tranquila que estava na expectativa de saber qual dos
seus habitantes seria escolhido para preencher uma
vaga no Conselho dos Sábios que governava a tribo.
Já havia tido várias reuniões sem que o Conselho se
definisse pelo novo membro. Até que um dos seus
integrantes mais antigos, o sensato e bondoso feiticeiro
da tribo, teve um sonho no qual o Grande Mistério
avisava que a aldeia estava prestes a ser atacada por
um monstro desconhecido. Alertou que somente
após a captura da fera o Conselho teria condições
de decidir pelo novo membro. Por coincidência,
uma das avós da tribo, uma anciã generosa e muito
querida, teve o mesmo sonho naquela noite. Era o
Grande Mistério confirmando os sinais. Não restou
dúvida que o predador deveria ser caçado. Como era
uma tarefa extremamente perigosa, entenderam que
estaria a cargo de quem se voluntariasse a tamanho
risco. De pronto, um dos guerreiros mais bravos da
tribo, um caçador habilidoso, conhecido por sua
beleza, destreza, coragem e admirado por todos, se
candidatou. Como ninguém conhecia as feições do
monstro, foi preciso que o feiticeiro da tribo, pedisse ao
Grande Mistério que as revelasse através dos sonhos.
Naquela mesma noite o pedido foi atendido e na
manhã seguinte o poderoso xamã descreveu os traços
assustadores da criatura maligna. Disse, também, que
o Grande Mistério antecipara que apenas se o bem
fosse persistente seria capaz de vencer o mal. Diante
da comoção geral o intrépido guerreiro se despediu
da esposa e do filho amados e prometeu à tribo que só
retornaria trazendo em sua sacola a cabeça demoníaca

90
do animal desconhecido. Cavalgou por dias sem conta
usando toda a sua enorme habilidade para rastrear o
monstro. Por vezes, parecia chegar bem próximo do
predador, a ponto de quase se encontrarem, mas o
animal parecia escapar por alguma fresta misteriosa
da floresta. Em muitas noites, deitado e aquecido pelo
calor de uma fogueira, sentiu vontade de retornar por
causa da saudade da família e da aldeia, mas lembrava
da promessa que fizera, do compromisso em defender
aqueles que tanto amava. Era um guerreiro e isto o
animava a prosseguir. Até que um dia, com as forças
quase esgotadas, desanimado porque as suas preces
ao Grande Mistério não eram atendidas, corroído
pelo desgaste físico e emocional, desapeou do cavalo
na beira de um enorme lago de águas plácidas,
pois, sentia sede. Quando aproximou o seu rosto no
perfeito espelho d`água, para a sua enorme surpresa,
viu refletida a face do monstro que perseguia”.

Canção Estrelada, como um bom contador


de histórias, deu uma proposital pausa dramática,
baforou o cachimbo e continuou a contar a lenda:
“Ao contrário do que se possa imaginar, o monstro
não estava atrás ou ao lado do guerreiro, mas era
ele próprio. Viu nos contornos da sua face os traços
da fera descrita pelo feiticeiro. Apenas na solidão e
na entrega da busca pode se permitir o verdadeiro
encontro, o de estar frente a frente consigo mesmo,
sem máscaras, truques, mentiras e ilusões para
desvendar a verdade”.

“Ficou muito assustado. Sempre acreditara


ser um bom homem, um guerreiro que alimentava a

91
aldeia com a sua caça, amava a sua esposa e o seu
filho, era leal aos seus amigos. Chegou a pensar
que enlouquecera ao ver a face do monstro em seu
próprio rosto. Resolveu montar acampamento na
beira do lago até que entendesse tudo que acontecia.
Nos primeiros dias foi tomado por um misto de
decepção, desânimo e raiva ao descobrir que não
era exatamente quem sempre se imaginou. Chegou a
cogitar o absurdo suicídio como maneira eficiente de
exterminar com o monstro. Foi demovido da ideia ao
lembrar as palavras do sábio feiticeiro de que, se fosse
persistente, o bem se sobreporia ao mal. Passado o
impacto inicial, percebeu ter criado uma imagem de
si próprio que, se não era verdadeira, também não
era de toda mentirosa. Admitiu mágoas recorrentes,
frustrações ainda não superadas, escamoteamentos
da realidade na tentativa de fugir ao enfrentamento
com as suas emoções conflitantes, logo ele, um
guerreiro famoso pela bravura. Reconheceu que,
muitas vezes, confundiu o sentimento de justiça com
o desejo de vingança. Percebeu que as essenciais
virtudes da compaixão e da humildade eram anuladas
pelas sombras da vaidade e do orgulho, fazendo com
que se irritasse com facilidade e culpasse os outros
por suas decepções. Não raro usava a impetuosidade
sob o manto da coragem. Lembrou de momentos em
que usou inadequadamente a sua força de guerreiro
para prevalecer em pequenas questões com os mais
fracos. Entendeu também que, embora a coragem
fosse uma nobre virtude, parte dessa bravura servia
para desviar a sua própria atenção, e a de todos,
quanto às fragilidades que sangravam no seu íntimo,
justo aquelas que ele não tinha coragem em revelar

92
e enfrentar. Aos poucos entendeu a necessidade de
inverter o olhar que tinha para consigo, de encontrar
o que havia perdido dentro, ao invés de apenas lutar
contra o que existia fora; de aprender que o mundo só
desaba quando a alma se desequilibra. Diante de tanta
desarmonia a sua famosa coragem poderia ser mal
direcionada e prejudicar, além de si mesmo, toda a
aldeia. Era preciso aceitar e abraçar as suas sombras; o
lado mais obscuro, justo aquele cuja existência nunca
quis admitir. Somente assim poderia tirar da caverna
escura a sua outra face para oferecer a claridade e a
beleza da luz. Era oportunidade de ser pleno; ao fazer
com que o ego se encantasse pelas virtudes da alma,
uniria todas as partes de si mesmo, se transformando
em um indivíduo mais forte, consciente e amoroso”.

“Muitos meses se passaram até que pudesse


se conhecer por inteiro. Os viajantes que passavam
pelo lago e viam aquele homem solitário, maltrapilho,
sentado debaixo de uma árvore, com um estranho
sorriso no rosto, seguiam adiante pensando se tratar
de um louco. Até que o guerreiro percebeu que
conseguira iluminar muitas das fendas sombrias do
seu ser. O suficiente para saber quem era, onde morava
o monstro, o alcance dos seus tentáculos, a influência
dos seus conselhos e enganos. O mais importante:
ele entendeu que matar o monstro seria matar uma
parte de si mesmo; era preciso abraçá-lo. Estavam
ligados como criador e criatura. O monstro não era
um inimigo; ao contrário, todo o seu enorme poder
poderia ser usado em favor do bem. Para se conseguir a
cura, o tratamento escolhido é fundamental: o monstro
precisava conhecer e se encantar com o poder do amor,

93
pois todo o mal tem a sua origem na falta de amor.
A cura se traduz em liberdade; nunca pela morte do
carcereiro, mas por sua transformação”.

“Chegara o momento de retornar para compar-


tilhar com a tribo a riqueza que amealhara.
Era possível seguir com leveza e simplicidade sem o
peso insuportável do orgulho e da vaidade. As virtudes
estavam livres para florescer. Havia um novo conceito
e jeito de ser e viver. Este entendimento define as dores
e as delícias da vida, a guerra ou a paz, no mundo, na
aldeia e em si mesmo”.

“Porém, não queria voltar de mãos vazias,


levando apenas palavras. Viu um pedaço de tronco e
teve uma ideia. Com o seu punhal começou a esculpir
um totem. Ao final, retornou para casa. Quando
atravessou o portão da aldeia, houve uma grande
comoção. Muitos o tinham como morto, vencido pelo
monstro ou pela floresta. A sua esposa o abraçou
emocionada; o seu filho, ainda de colo quando partira,
correu para se aninhar e sentir os braços do pai.
O guerreiro estava muito magro, as roupas em
farrapos, sujo, com fome, mas tinha uma luz
indescritível em seu olhar e uma doçura desconhecida
em seu sorriso. Vários se apressaram em preparar
uma festa pelo retorno do valoroso guerreiro, outros
queriam ouvir as histórias que ele tinha para contar,
até que o bom feiticeiro da tribo se colocou diante
do guerreiro e perguntou pela promessa feita: apenas
voltar se trouxesse em sua bagagem a cabeça do
monstro. Lembrou que uma pessoa vale pela sua
palavra. Neste instante todo o clima de alegria pela

94
volta do guerreiro se modificou para um ambiente de
grande tensão; afinal, havia um compromisso a ser
honrado. Alguns segundos de silêncio pareceram
demorar uma eternidade. Diante do questionamento
do sábio feiticeiro, todos os olhares se voltaram
para o guerreiro, que manteve as feições serenas e
inabaláveis; aquele corpo alquebrado e faminto,
que nem de longe lembrava o homem musculoso de
outrora, transmitia uma força descomunal. O guerreiro
abriu a sacola e retirou o totem que esculpira em seus
últimos dias no lago. Era a estátua do seu próprio
rosto modelada à perfeição’”.

“Diante da tribo assustada, o guerreiro disse:


‘A vós ofereço a cabeça do monstro que existia em
mim, mas deu lugar a um novo ser, embora ele mesmo,
diferentes em si. Não é uma imagem para ser adorada
em nenhum altar, mas para ser transmutada na
fogueira desta noite, em lembrança a um homem que
fez a travessia pelas profundezas abissais do próprio
âmago e retornou à luz, trazendo todas as partes que
o compõe devidamente alinhadas, harmonizadas e
em paz’. O feiticeiro quis saber se além da cabeça da
criatura, o que mais o guerreiro trazia na bagagem.
Ele respondeu: ‘O amor por mim e, por consequência,
por toda a gente. O amor adormecido é a cura ainda
não revelada de todo o sofrimento. Este é o verdadeiro
encontro da vida, esta é a essência, todo o resto é
apenas aparência’”.

“Em seguida, o guerreiro concluiu: ‘Não


sei se o Conselho considerará a promessa como
cumprida, mas acatarei com resignação qualquer

95
decisão’. Naquela aldeia a pena pela palavra desonrada
era o banimento. Houve um grande murmurinho.
Em seguida, o feiticeiro esticou o braço, entregou
ao guerreiro o bastão sagrado do Conselho dos
Sábios e disse: ‘Você se transformou no guerreiro
de si mesmo, no herói da própria história e venceu a
grande batalha. Assim nascem os sábios. Você está
pronto. Não queremos perder a sua melhor parte.
Seja bem-vindo!’”.

Ficamos em silêncio por longo tempo. Era


o momento de refletir sobre tudo o que tinha sido
dito e encontrar o devido lugar para aquelas ideias.
Quando o xamã me passou o cachimbo eu estava
com um olhar distante. Ele sorriu por perceber que
as suas palavras fizeram semeadura em meu coração.
Perguntei se ele tentava me dizer que todo o mal do
mundo se escondia em mim. Canção Estrelada me
olhou com compaixão e humildade e falou: “Todo,
não. Apenas o mal que lhe faz mal. O monstro que
atormenta e devora está dentro e não fora da gente.
Ninguém pode nos prejudicar mais do que cada qual
a si mesmo”. Tornou a pegar o cachimbo de minhas
mãos e baforou antes de finalizar: “Observe o mundo,
aproveite a vida, ofereça o seu melhor e eduque o
monstro que habita em suas entranhas. Enquanto
isso, seja feliz”.

96
AS MARAVILHAS DA DÚVIDA

T
“Qual é a coisa certa?”, me perguntou o Velho,
como carinhosamente chamávamos o monge mais
antigo da Ordem, como fazia Sócrates, o filósofo grego,
que devolvia uma pergunta com outra como método de
raciocínio. Estávamos sentados na cantina do mosteiro
diante de uma caneca de café e um pedaço de bolo
de aveia. Desde sempre eu me sentia desconfortável
com uma série de dilemas do cotidiano. De questões
políticas e sociais que, de alguma maneira, atingem a
todos até incertezas quanto à minha vida pessoal, como
trocar de namorada, trabalho, cidade ou estilo de vida.
Argumentei que a todo instante nos deparamos com
dúvidas que nos incomodam em diferentes escalas,
algumas são banais, outras muito sérias. O ruim é que
as dúvidas causam enorme desconforto. Para piorar,
em face das minhas incertezas eu me deparava com
pessoas de opiniões divergentes, contra ou a favor,
ambas convictas de suas posições e apresentando fortes
argumentos. Falei que queria me livrar do incômodo da
dúvida e saber sempre a coisa certa a fazer. Então, veio a
pergunta do Velho sobre qual era a coisa certa. Respondi
que se eu perguntei era porque não sabia e precisava
de uma resposta. O monge bebeu um gole de café e
disse: “A minha resposta desenha a minha verdade, não
necessariamente a sua. É necessário que você se esforce
para encontrar aquela que irá lhe completar, por isto o
desconforto. Bendita seja a dúvida!”.

97
Irritado, falei que ele não estava me ajudando.
O monge manteve o tom tranquilo da voz para me
trazer de volta à agradável ambiência do mosteiro:
“As dúvidas trazem os questionamentos; estes se
aprofundam e nos levam a procurar a parte que nos
falta; apenas no exercício desta busca encontraremos a
verdade”. Argumentei que ele estava errado, pois muitas
das verdades que me eram absolutas no passado hoje
já não se sustentam. O Velho sorriu e disse: “Perfeito
e maravilhoso. Tudo muda. Sabe o que isto significa?
Evolução”. Pedi para ele explicar melhor e o monge
foi paciente: “As verdades se modificam à medida
em que alteramos os níveis de consciência e de amor.
O entendimento se transforma com o florescimento
das virtudes no indivíduo. De flor em flor construímos
os jardins da humanidade; de verdade em verdade
encontraremos a Verdade”.

Pedi para ele exemplificar. O Velho foi


didático: “Voltemos aos anos 1800. Duzentos anos
no contexto histórico é um segundo na História, tão
pouco tempo que os reflexos daquele período ainda são
claramente sentidos nos dias de hoje. Nessa época boa
parte do mundo, mormente as Américas, enfrentava o
grande dilema pelo fim da escravidão. A escravidão é
um assunto resolvido na modernidade, não existindo
qualquer dúvida sobre o absurdo de uma pessoa ser
proprietária de outra. Claro que você pode questionar
que ainda há cativeiros oriundos de relações trabalhistas
precárias ou de dependências emocionais. Porém, me
refiro à insensatez de a lei permitir o comércio de pessoas
como se fossem coisas, sem qualquer manifestação de
vontade daqueles que eram cativos. Mas houve tempos

98
em que as pessoas achavam isso normal, entendiam ter
esse direito e que, sim, poderiam ser donas de outras.
Havia escritura de compra e venda e os escravos eram
considerados bens passíveis de herança. Acredite,
embora tortuosos, não lhes faltavam argumentos e
eram acompanhados por muitos que viveram naquele
período. Essa era a verdade de uma parte significativa
da população naquele momento”. Deu uma pequena
pausa para mordiscar um pedaço de bolo e seguiu:
“No compassado processo de evolução da humanidade
foi preciso que alguém levantasse dúvidas sobre
aquelas verdades e direitos; aos poucos outras pessoas
foram aderindo e ampliando os questionamentos,
apresentando a possibilidade da existência de uma
verdade diferente, onde era possível uma coexistência
mais luminosa. Este novo jeito de ser e viver foi se
expandido até que vieram as inevitáveis mudanças”.

“As dúvidas de hoje estarão superadas amanhã


na perfeita régua da evolução individual que aos
poucos se espraia para toda a humanidade, quando,
inevitavelmente, surgirão novas dúvidas para que outras
verdades possam se revelar. Assim caminhamos”.

O Velho ficou com os olhos perdidos como


se falasse consigo mesmo e sussurrou: “Me assusta as
pessoas que não têm nenhuma dúvida, sobre qualquer
assunto. Daí, não raro, costumam surgir alguns
absurdos, quando não, atrocidades. A História está
cheia de exemplos”.

Falei que entendia toda a explicação do


monge, no entanto, não sabia como me posicionar

99
quanto às dúvidas que eu tinha, todas atuais e
influentes no meu dia a dia. Ele me sugeriu de modo
enigmático: “Pense na árvore e no fruto”. O ponto
de interrogação que surgiu na minha testa fez com
que ele aprofundasse o raciocínio: “Conhecemos
uma árvore pelos seus frutos. Você é a árvore; suas
escolhas são os frutos. Perceba se eles alimentam e
alegram quem está a sua volta; se a cada decisão que
tomar o mundo se aproximará ou se distanciará dos
seus sonhos. Costuma ser um método eficiente para
sanear dúvidas momentâneas, quebrar paradigmas,
inventar novos padrões e iluminar as ruas escuras
pelas quais andamos”.

“Não estranhe se nesse momento uma voz


interna venha lhe dizer que o mundo está perdido,
que não tem jeito, que as pessoas não vão mudar,
que as suas atitudes isoladas serão insignificantes
e que você está perdendo tempo. São os conselhos
das suas sombras atreladas ao comodismo, ao
egoísmo e ao inconsciente coletivo ainda nebuloso
e vinculado a experiências sofredoras do passado
que não conseguem superar. As suas escolhas, por
mais isoladas que sejam, farão toda a diferença.
Lembre que o Universo sempre conspira a favor da
Luz; logo, nenhum movimento nesse sentido, embora
aparentemente imperceptível, será desprezado. Ainda
que as mudanças demorem muito tempo para se
concretizar, um belo jardim nasce de uma única árvore
e da força de seus frutos. Haverá outras pessoas que
também têm as mesmas dúvidas e questionamentos,
sonhos e verdades; nesse momento a sua atitude
será angular para eles se animarem a prosseguir.

100
Cada escolha é um fruto e todo fruto é repleto
de sementes. Então, que sejam de Luz!”.

“A dúvida é a semente da transformação da


realidade. A verdade é o seu fruto que quando maduro
tem o sabor da liberdade”.

Deu uma pausa e acrescentou: “Apenas


não esqueça o compromisso que devemos ter com a
mansidão e a paz. Mudanças violentas ou impostas na
marra não se sustentam por muito tempo, pois são de
fora para dentro. A transformação tem que ocorrer de
dentro para fora; a verdade tem que estar entranhada no
ser ou não será transformação, mas mera maquiagem
que desmanchará na primeira chuva”.

Perguntei se as dúvidas apenas traziam


benefícios. O Velho franziu as sobrancelhas e disse:
“Claro que não. Em tudo na vida existe um ponto de
mutação. Se você não souber usar a dúvida como mola
propulsora para descortinar o véu que impede um olhar
mais apurado e, com ele, alterar a própria realidade, a
dúvida o aprisionará na agonia da inércia. A dúvida
precisa de enfrentamento e resolução. A verdade nasce
do movimento interno pela libertação do ser”.

“A verdade precisa da dúvida para germinar.


A sua consciência se alimenta das suas verdades;
elas se ampliam até o último dos limites, então se
transformam em outras. O nome disso é transmutação,
é o que Canção Estrelada, o sábio xamã do Arizona,
chama de medicina da cobra: trocar de pele para
crescer; ser o mesmo, mas ser diferente e melhor”.

101
Pediu para eu colocar mais café na sua
caneca, bebeu um gole e lembrou: “Por isso a tentativa
de convencer os outros quanto às próprias verdades
é o exercício dos tolos. Nem sempre a pessoa está
pronta para entender a mudança. Cada qual traz uma
bagagem de experiências ainda mal resolvidas que
precisa decodificar, harmonizar e, posteriormente,
extrair as verdades ali contidas. Assim expandimos a
consciência. É preciso respeitar e ter paciência com as
dificuldades pessoais e o tempo que cada um necessita
para completar cada ciclo de conhecimento. Quando
expomos a nossa verdade, não raro, encontramos
no outro um questionamento aquém ou além do
nosso”. Deu uma pausa e concluiu: “Não pense que
pelo simples fato de você se sentir acordado, todos
os demais que não pensam igual a você ainda estão
dormindo; alguns acordaram mais cedo”.

Perguntei o que fazer quando não houver


convergência de opiniões: “Exponha os seus argu-
mentos de maneira clara e aceite serenamente o
posicionamento alheio. A boa semente não se perde.
Isto demonstra respeito por si e sabedoria em relação
à vida. O mais importante, viva as suas ideias como
modo de animar as próprias palavras. As verdades
pessoais nos definem e elas não são os discursos, mas
as escolhas que colocamos em prática”.

Eu quis saber o que ele fazia diante de uma


dúvida. O Velho arqueou os lábios em leve sorriso
e disse: “Quando tenho que tomar uma decisão e a
dúvida faz com que uma bifurcação surja no caminho,
tenho sempre o amor como estrela-guia a orientar

102
os meus passos. Orgulho ou humildade; vaidade
ou simplicidade; egoísmo ou compaixão; desejo ou
necessidade; vingança ou justiça; subterfúgio ou
pureza. Somente o amor me dirá se a verdade que me
aconselha se origina das sombras ou da Luz”.

103
UMA DELICADA VIRTUDE

T
Os fortes ventos do final do outono
anunciavam a chegada do inverno e assolavam a
pequena e charmosa cidade que fica no sopé da
montanha que acolhe o mosteiro. Eu caminhava por
suas ruas sinuosas tentando me proteger do frio,
quando avistei a clássica bicicleta de Loureiro, o
sapateiro amante dos livros e dos vinhos, encostada
no poste em frente ao atelier. Fui recebido com alegria
e uma caneca de café. Sentados ao antigo balcão de
madeira, íamos começar uma conversa vadia quando
um sobrinho do artesão entrou na oficina em busca de
abrigo e prosa. O jovem realizara uma audiência em
seu tumultuado processo de divórcio no singelo fórum
da cidade e o trem que o levaria de volta para a cidade,
onde agora morava, apenas partiria ao anoitecer.
Ele estava bastante chateado e logo começou a
desabafar com o tio sobre a enorme aporrinhação que
o divórcio lhe causava. Tudo por causa da separação de
bens. Explicou que a ex-mulher se negava a reconhecer
os seus direitos e a entregar o que era seu por justiça.
Disse que a lei era clara e definia o que pertencia a cada
um. O artesão interrompeu com um sutil comentário:
“A lei pode ser clara, a justiça nem tanto”.

O rapaz se espantou. Argumentou que as


leis existem para trazer a paz e distribuir a justiça.
Loureiro passou a mão sobre os cabelos brancos,

104
gesto que fazia quando sabia que a conversa não seria
fácil e disse: “As leis surgem da necessidade de um
convívio harmonioso em sociedade, no qual é preciso
estabelecer regras para definir interesses, dirimir
conflitos, equalizar forças e manter a ordem social.
A paz é uma questão interna, de cunho espiritual que
pouco ou nada tem a ver com as leis. Lei e justiça, não
raro, estão distantes entre si. A História está repleta
de exemplos”.

“O Direito, como tudo mais na vida, se


modifica na medida da evolução pessoal que se espraia
na civilização. As leis refletem o nível de consciência
de um povo; o atual estágio de entendimento de um
grupo sobre a realidade que o envolve, suas buscas e
anseios. A justiça, por se tratar de uma virtude, tem
caráter pessoal e, sendo assim, está ligada ao grau de
evolução espiritual do indivíduo. Aplicar ou seguir
as leis é uma tarefa de ofício de todo cidadão no dia
a dia; ser justo, uma arte do ser a qualquer instante e
raros são os que a conseguem entender”.

O sobrinho pediu para o tio explicar melhor.


O sapateiro disse: “Como uma fotografia dinâmica
das pessoas enquadradas, as leis ainda navegam
nos mares da imperfeição, na árdua viagem do
aperfeiçoamento ao serviço de uma sociedade em
busca do seu equilíbrio. Por ora, as leis se alimentam
em celeiros de luz e de trevas. Por um lado, avançam
através dos séculos no sentido de garantir direitos
fundamentais às pessoas comuns ao reduzir os
desmandos dos poderosos e os excessos do Estado.
Por outro, uma de suas fontes sempre foi o egoísmo”.

105
Egoísmo? O rapaz estranhou. O sapateiro
explicou: “Desde os seus primórdios as leis são
utilizadas para manter interesses nem sempre
legítimos, sustentar privilégios e resguardar ‘o que
é meu’. É muito comum usarmos inadequadamente
a lei para disfarçar o egoísmo com as máscaras do
Direito. Todas as vezes que escuto alguém falando
que ‘quero o que é meu por direito’, o sinal de alerta
apita e me pergunto: será esse direito, regularmente
garantido por lei, uma medida justa? Tal lei carrega
consigo o vício do privilégio ou a beleza da justiça?
São perguntas que não podem se calar na consciência
de um andarilho”. Tomou um gole de café e comentou:
“Pouquíssimos são os que conseguem delinear a
diferença entre o ranço das vantagens e o perfume
do merecimento quando possuem algum interesse em
jogo. Onde há privilégios não existe justiça”.

O rapaz argumentou que a solução era


simples, pois bastava uma varredura nos códigos
legais para afastar todos os privilégios. Loureiro
arqueou os lábios em leve sorriso e falou: “Seria
uma boa medida, sem dúvida, mas não bastaria.
Ser justo vai muito além. As nossas relações são os
campos de prova onde exercitamos o aprendizado e
aperfeiçoamos o ser. No convívio com todos devemos
oferecer as virtudes já florescidas e cultivar aquelas
ainda em semente. A justiça é uma das mais difíceis,
pois necessita de várias outras virtudes para se
completar. É uma iguaria de diversos ingredientes
e de preparo sofisticado: é preciso a humildade para
reconhecer as suas imperfeições como cozinheiro;
a compaixão para entender a dificuldade alheia

106
quanto aos novos sabores; a pureza para que não
haja intenções ocultas na receita; a sabedoria para
não deixar que as experiências desastrosas do
passado turvem o paladar; a generosidade como o
tempero essencial a todos os pratos; o bom-senso
para não servir nem mais nem menos, mas a exata
porção; além do amor, é claro, sem o qual a vingança
azedará a justiça”.

O jovem disse achar tudo muito poético e


pouco esclarecedor. O artesão foi didático: “A justiça
é uma virtude, embora aparentemente simples para
a maioria, pois muitos se acreditam justos, fato
que atrapalha por impedir superar o atual estágio
de entendimento, na verdade, a justiça possui uma
complexidade própria”. Bebeu um gole de café e disse:
“O inconsciente participa mais das nossas decisões
do que somos capazes de perceber. Uma série de
vivências, situações nem sempre prazerosas, ficam
ali escondidas nos condicionando e manipulando
as percepções e, por consequência, as escolhas.
Por ignorância ou comodidade, na tentativa de
tornar a evitá-las, permitimos que o medo assuma
o comando. Lembranças de experiências sofridas e
desastrosas tendem a desvirtuar a melhor escolha de
diversas maneiras”.

“O medo da escassez material somado à


ignorância quanto ao patrimônio espiritual que o
enriquece, leva o indivíduo a açambarcar de modo
indevido e desnecessário as suas posses ou manter
a qualquer custo as vantagens e privilégios, por
ora, assegurados. Quando existe algum interesse

107
econômico em jogo o ego primitivo se agarra em leis
que porventura sustentem o seu desejo ou dispara
um curioso mecanismo pelo qual monta raciocínios
tortuosos como peças de um absurdo quebra-cabeça
na tentativa de justificar o injustificável”.

“Comuns, também, são os casos de ordem


emocional. Surgem quando o ego, tomado pelas
sombras e influenciado por sofrimentos pretéritos, é
aconselhado a sentenciar o outro ao mesmo sofrimento
por ele sofrido, como se espalhar a própria dor a
tornasse menor dentro de si, em cruel ciclo vicioso.
Condenar o outro se torna uma irracional equação de
absolvição de si mesmo; atrelados ao vício atávico
da dominação precisamos achar que o outro é pior e
menor na ilusão de que somos maiores e melhores.
Um comportamento que restará sem solução enquanto
o indivíduo não trouxer ao consciente os temores
inconfessáveis do inconsciente”.

“Em ambas as situações, acabamos por


alimentar o inconsciente coletivo ligado à escuridão.
Estagnados, abdicamos da luz gerada pela força
motriz do autoconhecimento, atrasando as preciosas
transformações evolutivas. Enquanto não levarmos
para o consciente as emoções dolorosas do incons-
ciente para serem transmutadas em sabedoria e amor,
estaremos afastados do perfeito senso de justiça.
Um coração ferido sempre ofusca o olhar cristalino da
mente. Assim, infeliz por incompletude, o indivíduo
procura as fantasias do poder contidas no orgulho,
na vaidade e na arrogância como jeito de esconder as
suas fragilidades perturbadoras”.

108
O rapaz, claramente incomodado, não parava
de se mexer na cadeira. O artesão seguiu o raciocínio:
“O florescimento da virtude se apresenta no momento
em que somos capazes de abrir mão de algo que nos
pertença por direito, mas nos é ilegítimo por justiça.
Se recusar a exercer determinado privilégio, mesmo
que legal, ou abdicar de alguma coisa quando todas
as leis ofereçam a garantia para mantê-lo sob o nosso
domínio, demonstra a capacidade em ouvir a doce
flauta da justiça em detrimento do rufar ensurdecedor
dos tambores do egoísmo”. Tornou a bebericar o café
e complementou: “O contrário nem sempre se aplica:
exigir que alguém abdique de algum direito em nosso
favor pode ser atitude simplória e tendenciosa, na qual
não residirá qualquer virtude. Lutar por um direito
nem sempre significa uma batalha justa. Há que se
ficar atento”. Olhou nos olhos do rapaz e segredou:
“É preciso se conhecer para evoluir; é preciso ir fundo
em si mesmo para ser justo ou não haverá libertação”.

Desconfortável com a conversa, o sobrinho


alegou que estava atrasado, embora soubéssemos
que faltava um par de horas para a partida do trem.
Agradeceu a acolhida, o café e se despediu. Quando
chegou à porta, se virou, olhou sério para o tio e
disse que voltaria para continuar aquela conversa.
O sapateiro sorriu satisfeito e disse: “Há muito mais
para se falar sobre a justiça, essa delicada virtude”.

A sós, comentei que o assunto era amplo e


repleto de sutilezas. Loureiro balançou a cabeça
e acrescentou: “O paradoxal nisso tudo é que quando
equalizarmos justiça e direito na mesma sintonia,

109
chegaremos a um ponto de mutação no qual as leis
comuns deixarão de existir por pura desnecessidade”.
Eu quis saber o que era um ponto de mutação.
A resposta do artesão foi concisa: “Tudo que existe no
universo se traduz em energias que se expandem até
a fronteira do próprio limite, quando se transmutam
em si mesmas por outras”. Mesmo sem ter certeza se
tinha entendido, perguntei o quão distante estávamos
do tal ponto de mutação quanto à necessidade das
leis. O sapateiro explicou de maneira pedagógica:
“Ao entrar na minha oficina você não verá uma placa
dizendo ‘é proibido cuspir no chão’, pelo simples fato
de ser impensável que alguém faça isto. Entretanto,
enquanto precisarmos de uma lei declarando que
‘todos são iguais perante a lei’ é porque noções
elementares de justiça ainda não são compreendidas
pela grande maioria das pessoas”. Arqueou os lábios
em leve sorriso e disse: “Mas não se preocupe, de um
jeito ou outro, estamos todos condenados a completar
a viagem rumo à perfeição. Cada qual ao seu passo”.

110
ENCONTRO MARCADO

T
O Velho, como carinhosamente chamávamos
o monge mais antigo da Ordem, me repreendeu
apenas com o olhar, sem dizer palavra. Eu estava
no jardim interno do mosteiro falando ao celular,
quando apenas é permitido usá-lo à noite, no quarto,
para não desperdiçarmos o melhor da vivência
oferecida no mosteiro. A OEMM – Ordem Esotérica
dos Monges da Montanha – é uma irmandade secular
dedicada ao estudo da filosofia e da metafísica.
Os monges e aprendizes, como são denominados os
seus membros, têm o compromisso de passar ao menos
um mês por ano no mosteiro para estudos, debates
e reflexões. Após, retornam às suas casas, famílias,
trabalhos e atividades rotineiras tentando aplicar
o aprendizado assimilado. O conhecimento apenas
se transforma em sabedoria quando utilizado em
nossos relacionamentos no dia a dia; caso contrário,
não passará de uma ferramenta enferrujada por
inutilidade. Encerrei a ligação e fui me desculpar com
o monge. Expliquei que estava prestes a fechar um
importante contrato para a minha agência e precisava
tomar algumas precauções. Confessei a tensão que
me envolvia, pois temia ser passado para trás, como
ocorrera em outra ocasião, embora envolvessem
diferentes pessoas. O Velho apenas ouviu as minhas
explicações e nada falou.

111
Como se não bastasse, eu andava disperso
naqueles dias. Outro motivo de preocupação era o
ciúme que sentia da minha nova namorada. Ela era
uma atriz de teatro e estava em cartaz com uma peça
de grande sucesso. Muitas pessoas a procuravam
para cumprimentar e conversar, fato que me causava
insegurança, agravada pela sua beleza, simpatia e
talento. Contei tudo isso ao Velho quando fui convidado
para uma conversa na varanda do mosteiro, emoldurada
pelas belas montanhas que o acolhem. A minha falta de
concentração acabaria por desperdiçar a estadia daquele
ano, caso eu não revertesse a situação. Acabei por
tornar ao assunto da ligação do dia anterior na tentativa
de justificar o distanciamento. O Velho ouviu todas as
minhas queixas com paciência e, ao final, citou uma
passagem do Sermão da Montanha: “Bem-aventurados
os puros de coração, porque verão a face de Deus”. Em
seguida comentou: “Percebe que a ausência de uma
única virtude, no caso me refiro à pureza, tem o poder
de anular todas as demais virtudes e furtar a sua paz?”.

Reagi de imediato. Argumentei que não


se tratava de falta pureza, mas de cuidado no trato
pessoal. O mundo não tem lugar para os ingênuos.
Era necessário me precaver da maldade ou estaria
fadado ao sofrimento. O Velho me olhou com doçura e
disse: “Essa mentalidade o faz sofrer mesmo que seus
temores não se concretizem. Seja nos negócios ou no
namoro, a presunção da maldade já azedou o mel da
vida. Não existe mais paz nem alegria em você, apenas
uma pessoa atormentada com uma possibilidade,
mesmo que ela não exista na realidade”. Questionei o
que ele faria se fosse passado para trás em um contrato

112
ou no afeto. O monge arqueou os lábios em leve sorriso
e disparou: “Paciência e compaixão com aqueles que
desperdiçaram a oportunidade em conviver com o
melhor que há em mim. Se mesmo assim eu tivesse
dificuldade em harmonizar os sentimentos, me
esforçaria para que a humildade despontasse para me
lembrar que não posso exigir dos outros a perfeição
que não tenho. Então, seguiria em paz”. Deu uma pausa
e falou: “A desconfiança impede que se veja a beleza
do mundo, pois muito além das lindas paisagens, ela
está dentro das pessoas”. Deu uma breve pausa e disse:
“Não esqueça que elas podem estar sendo sinceras
e honestas contigo; caso tenha certeza do contrário,
gire nos calcanhares e siga o seu caminho com leveza
e sem dor”.

Dei-lhe razão, mas lembrei das minhas


experiências anteriores e duvidei que ele não sofreria
ao se descobrir enganado. O Velho arqueou os lábios
em leve sorriso e disse: “A dor será sempre do algoz,
ainda que ele demore a ter consciência, quando
se confrontar com a verdade e sentir vergonha.
Qualquer vitória com os instrumentos das sombras
é vã e ilusória. Não existe nada de bom no mal,
salvo quando cumpre o seu papel como semente
do bem, germinando no indivíduo a necessidade
em refazer toda a jornada desperdiçada após o
despertar da consciência, quando terá que lidar com
o arrependimento e transformá-lo em alavanca para a
superação”. Insisti em saber se ele não se sentiria mal
ao ser ludibriado. O velho monge inverteu a lógica do
ego exacerbado: “Mil vezes ser o lesado a ser o ladrão;
prefiro ser o traído a trair alguém, assim substituo a

113
tristeza pela sabedoria e agradeço por ‘estar do lado
de cá”. Me olhou nos olhos e concluiu: “Claro que
devemos estar atentos para evitar o mal e estancá-lo
com a firmeza necessária quando ele se apresentar.
Mas presumir a maldade é como fechar as cortinas
para impedir a entrada da luz. Não raro nos perdemos
quando medimos os outros com a nossa régua,
envolvendo as intenções alheias com a maldade que
nos habita. Por outro lado, devemos lembrar que cada
pessoa é única e não repetirá necessariamente o ato
equivocado de terceiros ou mesmo equívocos que ela
mesma cometeu no passado. Todos mudam e precisam
de novas chances. O medo pode nos fazer agir como
ervas daninhas nos jardins da humanidade”. Sustentei
que algumas pessoas vivem a enganar os outros.
O Velho concordou: “Sim, se precavenha delas, mas
não se contamine com elas. Não tenho domínio sobre
os outros, não posso controlar as suas escolhas,
apenas tenho total poder sobre mim mesmo, logo,
não vou negar as virtudes do mundo porque alguns,
ou mesmo muitos, não a possuem. É impossível ser
feliz sem confiar. Em si e no outro. Ou o dia não
amanhecerá”.

Virou-se para mim e perguntou: “Quais


atributos o encantam na sua namorada?”. Eu citei a
beleza, a simpatia e o talento. Ele fez um gesto com a
mão como se eu me recusasse ao ver o óbvio e disse:
“Percebe que as exatas características que você admira
nela são aquelas que causam a sua dor? Ao desejar
apenas para si as virtudes da sua namorada e a impedir
de compartilhar com o mundo, o ego sufoca o amor e
encobre a luz com as nuvens do ciúme”. Sem deixar

114
que eu respondesse, emendou outra pergunta: “Por que
está tão preocupado com o negócio que está prestes
a fechar?”. Expliquei que vinha me preparando há
tempos para esse momento e, se concretizado, elevaria
a minha agência para um patamar de sonhos. O Velho
abriu os braços e falou: “Entende que é justamente
a proximidade com a felicidade que tem motivado a
sua tormenta? Concorda que, a princípio, não há nada
de errado e que o equívoco pode estar apenas em seu
olhar? Você sofre por antecipar uma possibilidade que
talvez nunca aconteça”.

Argumentei que sempre era possível que ela


acabasse se apaixonando por algum admirador ou que
outra agência apresentasse planos e propostas melhores
que as minhas. Se isso acontecesse a decepção
me causaria uma enorme dor. O monge franziu as
sobrancelhas e disse com seriedade: “É impossível
viver sem assumir riscos. A vida, perfeita através das
próprias imperfeições, acaba por fazer da decepção
uma dádiva maravilhosa”.

Falei que ele só podia estar brincando ou tinha


enlouquecido. O Velho sacudiu a cabeça e prosseguiu
o raciocínio: “A decepção, quando bem trabalhada, é
uma poderosa alavanca para evolução pessoal. Entenda
que você sofre por insegurança, aconteça ou não os seus
temores; sofre pela comodidade em desejar que o mundo
se adeque às suas vontades ao invés de se transformar
para se encantar com a beleza que transborda por todas
as bordas da vida. A sua insegurança tem origem no
fato de ser impossível dominar os sentimentos da sua
namorada ou determinar a escolha do seu cliente. Temos

115
o condicionamento ancestral em sentir medo de tudo
aquilo que não conseguimos dominar. Isto precisa ser
superado. A recusa em aceitar a liberdade dos outros
aprisiona e faz sofrer. Temos dificuldade em entender
que as únicas escolhas que podem nos prejudicar são
somente as nossas e de mais ninguém. Cada qual é
responsável por si e, por consequência, pela própria
felicidade. Ajudamos a todos sempre que necessário,
mas não vivemos a vida de ninguém. Cada um seguirá
ao seu passo na medida do esforço em aprender,
transformar e compartilhar. Tudo sem culpa nem peso.
Enquanto for bom e agradável andaremos juntos, caso
contrário cada qual em seu rumo ao encontro das
pessoas com as quais haja afinidades nesse momento da
existência. Tudo muda; voltaremos a nos encontrar mais
adiante, na certeza da união promovida pela força do
amor, ao perfeito encaixe das partes que compõe o todo
no aperfeiçoamento da obra”.

Piscou o olho e lembrou: “Crises de ciúme


são sombrias e dolorosas. Quanto mais dominador
e medroso for o ego, mais ciumenta a pessoa será.
Se você prestar atenção entenderá que o ciúme nada
tem a ver com o amor. Ofereça o seu melhor e aproveite
sem medo a felicidade que se apresenta. Aceite que o
outro pode não estar pronto para repartir o momento
contigo. Entenda a hora de partir e respeite o direito
do outro em fazer a mesma coisa. Leveza e liberdade
são os alicerces da felicidade”. Deu uma pequena pausa
e continuou: “Quanto aos negócios, eles dão certo ou
errado. É importante que seja assim. Enquanto o seu
trabalho for inovador e de qualidade haverá serviço,
clientes e progresso. Caso contrário, entenda os avisos

116
de que é hora de rever conceitos e padrões. Ao invés de
se corroer em lamentos e dor, aproveite. O caos costuma
ser um valioso impulso às grandes mudanças. Isto torna
a decepção libertadora!”.

“A pureza é uma virtude essencial para que


as demais virtudes não se percam. Por exemplo, a
humildade sem a pureza pode ser uma fantasia para o
ego ainda orgulhoso; a compaixão pode virar motivo
de vaidade quando a usamos para nos vangloriar da
própria bondade; a coragem perde a beleza na vitrine da
ostentação; o amor se envenena pelo ciúme. Apenas para
citar algumas possibilidades. Lembre que a maldade
alheia pode ser fruto do preconceito e fique atento para
que ela não crie raízes em seu coração. A pureza é muito
parecida com a virtude da simplicidade que é viver sem
intenções ocultas, interesses rasteiros ou subterfúgios
de qualquer espécie. A pureza consiste em não presumir
tais máscaras nos outros”.

Comentei que a pureza era uma virtude


bastante complicada. O monge sacudiu a cabeça e me
corrigiu: “A pureza é tênue, apenas possível quando
o ego estiver alinhado à alma, rufando no mesmo
compasso de amor e paz, em total plenitude. Ser puro
é acender as luzes do mundo e libertar os outros de si
mesmo. Então, ser livre”.

Em seguida explicou que precisava se retirar.


Um grupo de monges e aprendizes aguardavam para
o debate que haveria naquele final de tarde. Antes de
sair tornou a lembrar o Sermão: “Bem-aventurados
os puros de coração, pois verão a face de Deus”.

117
Deu uma pausa e finalizou: “Para ver a face de Deus é
indispensável encontrá-lo onde Ele o aguarda: dentro
de você. Somente assim perceberá a presença Dele em
todas as coisas e pessoas”.

Observei o velho monge se afastar com seu


passo lento, porém, firme. Fiquei um tempo que não
sei precisar olhando as montanhas e deixando que
aquelas palavras encontrassem o devido lugar em
mim. Quando me dei conta, como um louco, eu sorria
sozinho. Sim, eu tinha um encontro marcado. Estava
na hora de me preparar.

118
PEQUENAS GRANDES COISAS

T
Acordei antes do sol e fui até a varanda da
casa de Canção Estrelada, o xamã que tinha o dom
de semear a sabedoria do seu povo através da palavra
e da música, onde eu estava hospedado. Ele estava
sentado em uma cadeira de balanço e tinha os olhos
fixos no Leste, “a casa da águia”, como costumava
falar, à espera do amanhecer. Me serviu uma xícara
de café e continuou a colocar fumo no fornilho de
pedra vermelha do seu indefectível cachimbo. Baforou
algumas vezes e, em seguida, pegou o seu tambor de
duas faces para entoar uma sentida canção no dialeto
nativo que, em tradução não-literal, significa “Os ciclos
da vida”, na qual agradece ao Grande Espírito as
infinitas oportunidades oferecidas a cada dia para
se renovar e prosseguir na Longa Estrada Dourada.
Não muito tempo depois, ainda envolvidos em nossas
preces e reflexões, fomos interrompidos pela irmã do
xamã, acompanhada por seu filho caçula, que acabara
de entrar na vida adulta. Ela veio pedir que o irmão
aconselhasse o jovem, que embora muito inteligente,
andava desinteressado pelos afazeres simples do
cotidiano por se considerar predestinado a realizar
algo grandioso. Isto também o tornara relapso no trato
com os outros, pois, no seu entendimento, as pessoas
não eram capazes de compreender a sua enorme
capacidade e o seu brilhante destino. Canção Estrelada
apenas fechou os olhos e balançou de leve a cabeça

119
como maneira de dizer que entendia e estava disposto
a atender ao pedido. A irmã sorriu em agradecimento
e se retirou. Eu quis saber se também deveria sair,
mas ele fez um gesto com a mão de que não era
necessário. O xamã fechou os olhos e se manteve em
silêncio. Impaciente, o jovem não parava de se mexer
na cadeira, até que disse que aquilo era pura perda de
tempo. Canção Estrelada olhou o sobrinho com doçura
e começou a contar uma história:

“Há muitos invernos atrás, quando os bisões


ainda eram comuns nas planícies, em uma pequena e
próspera aldeia que vivia em harmonia e paz, havia
um jovem índio inconformado e desiludido. Desde
criança ouvira histórias de valentes guerreiros que
foram eternizados como verdadeiras lendas. Sonhara
desde pequeno em se tornar um deles, acreditava que
tinha nascido para realizar grandes façanhas e a se
tornar um herói famoso. Aprendera a lutar, a usar as
armas, montar a cavalo, rastrear e todas as demais
habilidades necessárias para a guerra. Ocorre que a
aldeia era liderada por um sábio e amoroso ancião
que cultivava um ótimo relacionamento com as tribos
próximas, afastando qualquer possibilidade de conflito.
Isto fez com que a aldeia prosperasse e todos vivessem
satisfeitos, salvo esse jovem índio, que, por aguardar o
clímax da vida e se considerar um guerreiro nato, não
se interessava por mais nada que se referisse à vida
em comum da tribo. Achava as crianças irritantes e
barulhentas, não se permitindo contagiar com a alegria
delas. Embora não falasse, sentia desprezo pelos
anciãos, pois eles não mais serviam para a guerra.
Não tinha a devida consideração por todos aqueles

120
envolvidos em outras atividades de manutenção do
bem-estar da aldeia, as quais considerava serviços
menores. Embora vestisse as roupas confecionadas
pelas artesãs e comesse o pão que ali era fabricado
todos os dias, apenas para ficar com alguns exemplos,
não lhes prestava a merecida importância, pois os tinha
como meros suportes para o grande acontecimento da
sua vida, aquele que o cobriria de glórias”.

“Os dias se passavam e a guerra que o


imortalizaria na memória ancestral do seu povo não
se avizinhava, fato que o tornava a cada dia mais
impaciente e descuidado com tudo e com todos.
Até que certa manhã, quando acordou, estava
sozinho na aldeia. Todos tinham partido. Uma carta,
deixada pelo ancião que chefiava o Conselho dos
Sábios, explicava que foram avisados pelas aldeias
próximas sobre um homem mau e poderoso vindo de
longe que ateava fogo e dizimava todas as tribos que
encontrava. Pelas informações recebidas, aquela era
a próxima aldeia a ser atacada e, rezava a tradição,
somente o melhor dos guerreiros poderia vencê-lo.
Tal batalha deveria ser travada mano a mano.
Cuidadosos, os aldeões deixaram todas as armas
disponíveis, além de comida suficiente para muitos
dias. O rapaz se alegrou, tratou de afiar as armas,
se pintou para o combate, traçou uma estratégia de
luta e ficou à espera do agressor. Porém, o inimigo
não apareceu naquele dia. Nem nos dias seguintes.
As luas se alternavam no céu e o malfeitor não dava
as caras. O jovem guerreiro começou a racionar a
comida que chegava ao fim. As suas vestes começaram
a ficar sujas. Passado mais algumas luas, ele estava

121
esfomeado e maltrapilho. Como não podia ir à floresta
colher frutas e caçar para não desguarnecer a aldeia,
passou a se alimentar da captura de pequenos roedores
que porventura atravessassem o perímetro da tribo.
Chegou a cogitar em ir para uma aldeia próxima em
busca de mantimento e roupa, mas se abandonasse
a aldeia seria lembrado como fraco e covarde, não
como o intrépido guerreiro que era. Pensou em fazer
o próprio pão, porém não bastava colher, era preciso
debulhar o trigo, transformar em farinha, preparar a
massa para assar, conhecer a temperatura do forno e o
tempo de cozimento. Ele não sabia como fazer; nunca
se interessara por um serviço tão simples. Cogitou em
pegar o couro de uma barraca para costurar uma nova
roupa, contudo não dominava o ofício menor do corte e
da costura. As necessidades básicas que não conseguia
manter, somadas a uma espera sem fim, foram pouco
a pouco enfraquecendo o físico e esmorecendo o
emocional do grande guerreiro. O seu espírito, aquele
destinado às grandes façanhas, estava desequilibrado e
debilitado pela falta das pequenas coisas, tão simples,
corriqueiras e insignificantes. Enfraquecido, nos
últimos dias se limitou a ficar deitado, com todas as
armas ao seu lado, observando o portão de entrada a
espera do violento invasor. Até que chegou o inverno;
o frio agravou ainda mais a situação e até os pequenos
roedores sumiram. O último animal que viu antes de
dormir naquela noite foi um corvo, o mensageiro das
dimensões, pousado sobre o totem da aldeia. Sentiu
um desagradável frio na espinha”.

“Foi acordado no dia seguinte pela ponta


de uma lança espetando de leve o seu peito; era o

122
chamado para o aguardado combate. Para a sua enorme
surpresa, o invasor era um pequeno adolescente,
quase um menino, que mal alcançara os doze anos de
idade, vestido e pintado para guerra. O guerreiro e
guardião da tribo sorriu e chegou a achar engraçado
que o temível malfeitor não fosse mais do que uma
criança fantasiada. Tinha habilidade para dominar o
oponente com apenas uma das mãos e tinha a certeza
da brevidade da luta. Contudo, quando tentou se
levantar, faltaram as forças indispensáveis; o corpo
enfraquecido se negava a obedecer ao comando da
mente. Fez um esforço incomensurável para ficar de pé,
como se escalasse uma montanha. Quando conseguiu,
cambaleante, tentou atacar. O adolescente sorriu, fez
uma leve esquiva e o golpe do guerreiro foi ao vento.
As tentativas seguintes foram meras repetições da
mesma cena. Cansado e desequilibrado pelos ataques
infrutíferos, o poderoso guerreiro desabou no chão
sem ao menos ter sido tocado pelo invasor. O pequeno
malfeitor estocou, sem rasgar a pele, e manteve a ponta
da lança fincada no pescoço do guerreiro. A vida
dele estava nas mãos de um adversário improvável
diante de um destino impensável e traiçoeiro. Naquele
instante, como um relâmpago que ilumina todo o céu
em frações de segundo, se deu conta da grandeza das
pequenas coisas, percebeu a importância de cada parte
para a harmonia do todo. Misericordioso, o algoz
disse ao guerreiro que ele podia fazer uma derradeira
oração. Olhou para o céu, murmurou um sincero
pedido de desculpas ao Grande Espírito por ter sido
tão injusto para com toda a sua tribo; pelo olhar turvo
e comportamento equivocado com todos aqueles que
na simplicidade de seus ofícios e artes mantinham o

123
essencial e belo funcionamento da vida. Se tivesse uma
chance, com certeza, faria diferente e melhor. Sentiu
uma desconhecida sensação de paz e fechou os olhos a
espera do golpe final”.

“Estranhou quando ouviu uma voz lhe dizendo


que todos merecem novas e infinitas oportunidades,
caso contrário o Grande Espírito não seria o puro
amor e o Seu jardim não estaria enfeitado com a flores
da plenitude. Pensou que tivesse morrido e estivesse
diante dos portões do Grande Mistério. No entanto,
aquela tonalidade não era de um adolescente nem a
voz lhe era desconhecida. Temeroso, abriu lentamente
os olhos e quem estava diante dele era o sábio ancião,
líder da aldeia. O pequeno invasor estava ao lado e tinha
recolhido a lança. O guerreiro chorou e se confessou
arrependido. O ancião disse para ele não sentir
vergonha nem culpa. Ele tinha pedido uma nova chance
e fora atendido. Agora era agir com responsabilidade
para não tornar a desperdiçá-la. Neste instante, toda
a tribo entrou na aldeia e imediatamente iniciaram as
reformas e arrumações necessárias após tanto tempo
de abandono. Não havia condenação em nenhum
olhar. Começaram, também, a cuidar do guerreiro
combalido. Quando melhorou começou a estudar a
filosofia e a mitologia de seu povo para transmitir às
crianças. Se encantou ao se dar conta que aprendia
enquanto ensinava. Como nenhum conhecimento é em
vão, como ele conhecia a arte do combate e trazia em
si esta energia, então, passou também a se revezar, à
noite, com outros guardiões nos muros da aldeia para
evitar o ataque de animais selvagens. Muitos e muitos
invernos depois esse guerreiro se tornou um ancião

124
à frente do Conselho dos Sábios e é lembrado com
carinho pelas gerações posteriores, mesmo sem nunca
ter travado uma batalha. Ao menos, não da maneira
que imaginava lutar quando ainda jovem”.

O xamã tornou a ficar em silêncio e reacendeu


o cachimbo. O sobrinho disse que nunca tinha ouvido
uma história mais idiota. Confessou que quando a mãe
o levou para conversar com o tio desconfiava que seria
perda de tempo. Agora tinha certeza. Perguntou se havia
mais alguma coisa a ser dita. Canção Estrelada ofereceu
um sorriso doce e balançou levemente a cabeça. O rapaz
se foi. A sós, procurei nas feições do xamã os traços
da contrariedade pelo comportamento do sobrinho,
mas encontrei apenas serenidade. Questionei se ele
estava chateado com o que tinha acontecido. O xamã
negou: “Uma semente de sabedoria, ao menos como
eu a entendo, foi lançada com amor em seu coração;
se for boa, cedo ou tarde surgirá as condições de
germinação. O tempo e a paciência fazem parte de um
processo comum a todas as coisas, o amadurecimento.
É a jornada da maturidade do espírito, da semente ao
caroço do fruto, quando de novo semente. Cada qual
em seu momento, com o enfrentamento das batalhas
que lhe são devidas e justas, não daquelas que deseja”.

Canção Estrelada arqueou os lábios em


doce sorriso e comentou: “Quem não dá valor às
pequenas coisas nunca estará pronto para viver os
grandes momentos da vida; ser pequeno é um degrau
indispensável para se tornar grande. Ao não reconhecer
a importância de toda a gente nos distanciamos da
própria essência por ignorar quem somos de verdade.

125
A espera pelo momento ideal para ser pleno nos faz
perder a chance de viver o dom e o sonho; ao lamentar o
imperfeito amor oferecido pelo mundo desperdiçamos
a oportunidade de torná-lo perfeito em nós”. Olhou nos
meus olhos e segredou: “Não espere que os oceanos
se levantem. A beleza da vida está nos detalhes, nas
quase imperceptíveis transformações oferecidas pelos
dias comuns”.

126
A BARGANHA

T
Era um domingo de primavera, eu e o Velho,
como carinhosamente chamávamos o monge mais
antigo da Ordem, tínhamos ido à pequena e charmosa
cidade que fica ao sopé da montanha que acolhe o
mosteiro para assistir à missa. Não raro, o Velho
era convidado pelo pároco local, seu amigo pessoal,
a falar sobre algum assunto. Perguntei sobre qual
tema dissertaria naquela manhã, ele me respondeu
que ainda não sabia. Como tínhamos chegado cedo,
aguardávamos sentados em um enorme banco de
madeira na praça em frente à igreja aproveitando o
sol que nos aquecia, enquanto as crianças, levadas
pelos pais, corriam em alegre algazarra. Dois homens
pediram licença de maneira educada e dividiram
o banco conosco. Logo, começaram a conversar
entre eles. Percebi que o Velho, disfarçadamente,
prestava atenção à conversa e o repreendi com um
olhar severo. Ele riu com jeito maroto e continuou.
Acabou que também comecei a prestar atenção ao
papo dos dois. Um deles confessou ao outro de que
os negócios não iam bem. Nem de longe andavam
como no passado. Sério, disse que tinha feito uma
aposta na loteria cujo prêmio estava acumulado em
muitos milhões e, se fosse o ganhador, jurou que
adotaria uma criança. Acrescentou que os seus filhos
já estavam encaminhados na vida e talvez fosse a
hora de dar esse passo. No entanto, somente o faria

127
com a devida tranquilidade financeira. O colega
concordou e lembrou dos altos custos em criar uma
criança. Falou que também tinha apostado naquela
extração da loteria. Se o premiado fosse ele, não
chegaria ao ponto da adoção, mas também jurou fazer
um vultuoso aporte econômico em prol de alguma
instituição filantrópica. Logo os sinos começaram a
chamar para a missa e a grande maioria das pessoas
que estavam na praça se dirigiram para a igreja.

A missa transcorreu dentro da normalidade


e talvez aquele dia se misturasse a muitos outros
sem maior atenção à minha memória, não fossem as
palavras do monge quando foi convidado pelo padre
a subir ao púlpito. O Velho, com a sua serenidade
habitual, falou ao público como quem conversa
com um amigo: “Temos um jeito muito grosseiro de
lidar com Deus. Costumamos nos comportar muito
mal quando conversamos com Ele”. Diante do olhar
espantado de todos, inclusive do meu, prosseguiu:
“Na maioria das vezes O tratamos como se Ele fosse
um mercador, um importante mercador, mas não mais
do que um mercador, ou que o Universo não passasse
de um reles balcão de negócios. ‘Se eu conseguir
aquele emprego prometo que paro de fumar; se
receber uma promoção no trabalho, paro de beber;
se ficar curado da doença que porventura tenha
recaído sobre mim, prometo fazer uma doação à
Igreja, ir à missa ou visitar a minha mãe todos os
domingos; se conseguir um bom casamento doarei
doces às crianças no dia de São Cosme e São Damião’”.
Deu uma pausa e brincou: “Ou a doação seria para Santo
Antônio?”. Arrancou risos ao lembrar do aclamado

128
padroeiro dos matrimônios. “Talvez seja um mau
hábito desde a infância”. Deu uma pausa e perguntou
ao público: “Quem nunca prometeu algo a Deus em
troca de uma nota dez em matemática?”. Mais risos.

“Se eu ganhar mais um dinheirinho doarei


uma parte à caridade. Barganhamos um ‘tantão’ para
abrirmos mão de um tantinho, não é assim?”. As pessoas
voltaram a ficar sérias. Ele prosseguiu: “Pedimos muito
para repartir pouco, sempre à espera de um suposto
melhor momento para compartilhar o mel da vida.”.

“Por que precisamos auferir lucro antes de


dividir o conteúdo da nossa bagagem? Ninguém é tão
pobre que não possa exercitar o amor em forma de
caridade: um abraço sincero é infinitamente mais rico
do que um maço de dinheiro. Por que não inverter a
equação para nos tornarmos pessoas mais virtuosas
no trato comum e, por consequência, começarmos
a levar uma vida mais interessante?”. Parou de falar
por instantes para que as palavras encontrassem lugar
entre todos. Em seguida, prosseguiu com o raciocínio:
“Independente de ser adepto do cristianismo,
judaísmo, islamismo, budismo, hinduísmo, espiritismo,
xamanismo, esoterismo, de seguir qualquer outra
tradição religiosa, filosófica, metafísica ou mesmo ser
simplesmente um sincero ateu, a força que nos rege,
orienta e educa é rigorosamente a mesma. Não importa
como se imagina o professor, as lições de sabedoria e
amor são perfeitas para todos”.

“Alheio à maneira como você concebe as


mãos que enlaçam a teia da vida, lhe foram entregues

129
as adequadas condições para o seu aperfeiçoamento
e evolução nesta existência. A cada operário a exata
ferramenta para construção da obra em sintonia com
as capacidades que já possui e as habilidades que
necessita desenvolver. Por justiça e afinidade, você se
envolverá com as situações, suaves ou rigorosas, de
sombras e de luz, que precisa enfrentar na medida do
próximo nível de entendimento a ser atingido. Como
em uma universidade, ao aluno aplicado as provas
parecem mais fáceis, embora sejam as mesmas para
toda a classe”.

“Alguns dirão que não é verdade o que falo,


pois, a vida é visivelmente mais dura com uns do que
com outros. Para tal argumento existem duas respostas,
ao meu ver, igualmente verdadeiras: o ano letivo
começou há algum tempo; alguns avançaram, outros
se encontram em recuperação. Aos alunos relapsos as
lições se tornam mais severas, não por castigo, mas
por amor, pois o bom professor trabalha pelo progresso
de toda a turma sem abdicar de ninguém. Da mesma
forma, não se deixe iludir pelas aparências. Se alguns
alunos enfrentam lições aparentemente mais fáceis para
resolver em sala de aula, muitas vezes desconhecemos
as dificuldades dos deveres de casa que lhe foram
aplicados. Ao final do curso, cada um ao seu tempo,
todos restarão diplomados”.

“O universo é um mestre justo, amoroso e


incorruptível. Portanto, não tente barganhar com ele.
Esqueça a ideia de oferecer uma maçã para receber
dois pontos a mais, dos quais não se faz merecedor, na
nota de geografia”.

130
“Claro que a vida deseja que você se torne
uma pessoa melhor, que seja mais generoso com o
planeta, com os outros e consigo próprio”. Deu uma
pausa e explicou: “Sim, precisamos aprender a ser
mais carinhosos conosco. É muito comum na busca
pela felicidade nos enganarmos pelo brilho efêmero
e falsas facilidades, que tanto seduzem, ao invés de
escolher em função da verdade e do amor contidos
na essência de todos os atos. Então, nos maltratamos
e sofremos. O viés do ego em detrimento à alma nos
faz sentir abandonados no meio de uma multidão.
É preciso prestar atenção ao que mantém, impulsiona e
ilumina ou, mais do que ninguém, cada qual continuará
a prejudicar a si mesmo”.

“Desorientados, decidimos barganhar com


o professor. Esquecemos que a vida, embora possa
aparentar diferente, não é um mercado para negócios
milionários; em essência, é uma escola formadora de
excelentes mestres”.

Olhou firme para o público e fez uma pergunta


sem esperar pela resposta: “O caminho está difícil?
Mude o jeito de andar. Aprenda, se transforme em
alguém diferente e ofereça o seu melhor ao mundo.
Pare de exigir e comece a fazer. Perceba como tudo
a sua volta começa a se alterar”. Tornou a dar uma
pausa antes concluir: “Mas nem pense em trapacear:
a mudança tem que ser por amor profundo, nunca por
interesse raso”.

Quando o Velho desceu do púlpito, percebi


que as pessoas estavam acabrunhadas e achei que

131
tivesse sido rigoroso em suas palavras. Olhei para
o padre que sorria satisfeito e, em seguida, assumiu o
ritual da missa. Ao final, veio até nós para agradecer
o discurso do monge; trocaram um sincero abraço e
partimos. Já fora da igreja, em direção a uma cafeteria
próxima, fomos abordados pelos dois homens que
mais cedo dividiram o banco da praça conosco.
De modo rude, perguntaram se o discurso tinha sido
uma indireta, pois lembravam que o monge sentara ao
lado deles. O Velho foi gentil: “Peço desculpas pela
indelicadeza de ter ouvido a conversa, porém, leve em
consideração que a proximidade a tornou inevitável e
acabou me servindo de inspiração. Não foi um recado
para vocês, mas um lembrete a todos, inclusive para
mim. A vida não é um grande balcão de interesses,
mas um sofisticado educandário evolutivo”.

Os homens falaram que o monge não era o


dono da verdade, tampouco sabia das dificuldades e
dores de cada pessoa. Partiram zangados. Sem perder a
serenidade, o monge me segurou pelo braço e continuou
a caminhar rumo a uma caneca de café fresco. Eu quis
saber se ele tinha ficado chateado com a acusação que
lhe foi feita. O Velho arqueou os lábios em doce sorriso
e explicou: “De jeito nenhum, até porque concordo com
eles: eu não tenho monopólio da verdade. No entanto,
tenho o direito de compartilhar o meu olhar sobre a vida
na forma que a entendo verdadeira. Ninguém precisa
concordar nem me acompanhar. Alheio a como cada
qual concebe a Deus, o Universo ou a Existência, não
acredito em barganha para o florescimento das virtudes
ou comércio de paz para a plenitude da alma”. Deu uma
pausa e disse, para a minha surpresa: “Apenas uma

132
oferenda é aceita”. Franziu as sobrancelhas e revelou:
“Aquela que o torna uma pessoa melhor a cada dia, no
aperfeiçoamento do espírito e na libertação do ser: se
transforme no pão que alimenta a humanidade em sua
fome por luz”. Piscou um olho como quem conta um
segredo e finalizou: “Nada mais”.

133
AQUI E AGORA

T
Loureiro, o sapateiro amante dos livros e dos
vinhos, encheu as nossas canecas com café fresco
para iniciarmos uma conversa vadia quando fomos
surpreendidos por Zinedine, um simpático artista
plástico local, que se dedicava a esculpir peças em
bronze. Embora tivesse talento e sensibilidade, a maior
parte das suas obras estavam inacabadas. Ora porque
enquanto esculpia uma peça era tomado por outra ideia,
que considerava melhor, e abandonava a anterior; noutras
vezes largava o trabalho no meio por não o considerar
suficientemente bom. O tempo parecia lhe passar com
rapidez, esgotando a herança deixada pela família. Tinha
grande urgência de que a arte passasse a ser também
um ofício e fonte do seu sustento, fato que o deixava
cada vez mais agoniado. Contou que acabara de chegar
de uma viagem e, embora tivesse sido bem agradável,
confessou que a partir de determinado momento sentiu
saudades de casa. Ocorre que passados alguns dias do
regresso, já tinha sido tomado por uma enorme vontade
em tornar a viajar. Loureiro ofereceu a ele uma xícara
de café e disse: “Viajar pode ter um efeito parecido a
renovar o guarda-roupa da alma ao nos depararmos
com outras culturas: maneiras diferentes de ser na vida
e estar no mundo. Isto amplia as possibilidades e indica
rumos nunca antes imaginados, o que é maravilhoso.
Como somente sentimos saudades do que é bom, revela
que em casa introduzimos ao cotidiano os hábitos que

134
nos agradam e alegram. Se ao estar fora, depois de um
determinado momento, você não sente falta da sua casa
e rotina, revela que há algo de errado em suas escolhas
ou que ainda não sabe onde é a sua casa nem entendeu a
rotina que deve construir para si. A viagem tem o poder
de nos revelar o caminho de casa”, deu uma pequena
pausa antes de concluir: “Em todos os sentidos”.

Zinedine argumentou que possuía a natureza


inquieta. Quando estava aqui queria estar ali e vice-
versa. Admitiu que nunca estava totalmente à vontade
em um local, pois quando estava em casa trabalhando
lembrava das delícias de descobrir uma nova cidade e
os hábitos do seu povo; quando viajava sentia vontade
de voltar para inserir em suas obras as maravilhas
do mundo e da vida que tinham sido descortinadas.
Loureiro comentou: “O movimento é gratificante
quando dirigido pela necessidade consciente da busca
por si mesmo; quando desorientado, o indivíduo se
move em sentido contrário, atrás de distrações e
fugas que adiem o encontro mais importante de sua
vida, aquele que cedo ou tarde terá consigo próprio.
Não raro, se torna uma pessoa impaciente. Então, é
hora da introspecção e da quietude, um movimento
que fazemos para dentro; a viagem interior capaz de
nos revelar diferentes maravilhas, de um encanto sem
igual, que não encontraremos em nenhum outro lugar
do mundo”.

“Há os se sentem bem em fincar raízes como


árvores milenares. Outros ficam à vontade em flanar
como o vento levando e trazendo os perfumes de
outras estações e dimensões. Existem os que circulam

135
como as águas conduzindo pessoas em suas correntes
e fertilizando as terras por onde passam. Alguns se
comportam como o fogo para destruir as velhas formas
e a forjar o aço de uma nova realidade”. Bebeu um gole
de café e acrescentou: “Não estranhe se ora você for de
um jeito e, em outros momentos, de outro. O importante
é entender que cada qual é único e todos são essenciais;
nisto reside a beleza da vida”.

“Quando o movimento se torna de dentro para


fora as escolhas são serenas e alegres, na percepção do
aprimoramento pessoal, no florescimento das virtudes,
da conquista da liberdade, da paz e da plenitude ao
refletir a evolução interna no embelezamento planetário.
Ao se deixar levar pelo movimento contrário, o
condicionamento imposto pelo atual estágio da
humanidade alimentará as sombras do orgulho e
da vaidade a direcionarem as escolhas pessoais.
A falta de profundidade torna efêmera todas as
situações e pessoas, criando no indivíduo a necessidade
de reabastecimentos cada vez mais frequentes em
forma de purpurina e aplausos para maquiar uma
existência baseada nas tintas de uma casca vibrante,
sem qualquer entendimento quanto ao valor da
semente adormecida no âmago. O moto-contínuo
dessa fome frenética e voraz estimulará a ansiedade
em um primeiro momento, que quando expandida ao
máximo, cede a vez à agonia e à depressão”.

“A falta de entendimento sobre a essência de si


mesmo gera a insatisfação em relação a tudo que o cerca,
bagunça o coração, bloqueia a mente e oculta o caminho
de volta para casa ao adiar o devido alinhamento entre

136
o ego e a alma, tornando ainda mais dolorosa a batalha
do ser dividido. Para esses, o mundo nunca será um bom
lugar para viver, por mais luxuoso que seja o castelo de
cimento e tijolos por eles habitado”.

Inteligente, o artista plástico perguntou se


o sapateiro usava aquele discurso como uma maneira
indireta de explicar o fato de ele, Zinedine, nunca se
sentir satisfeito onde estava ou por deixar as suas obras
inacabadas ao iniciar a construção de outras. Loureiro
franziu as sobrancelhas e disse: “Se você não sabe o
que quer dizer nenhuma palavra fará sentido nem trará
clareza; se não sabe onde deseja estar, nenhuma casa se
tornará um lar”. O artista argumentou que em sua cabeça
polvilhavam muitas ideias e ele ficava em dúvida sobre
qual delas era a melhor. O sapateiro tentou explicar:
“Todas as ideias são boas, depende apenas da maneira
como será trabalhada. Todos os assuntos podem tocar
no coração das pessoas, basta a abordagem adequada”.

“Quando começar algo, prossiga. Desmanche,


recomece, insista. Aprenda com as dificuldades.
Refaça, apare, burile, aperfeiçoe. Vá, volte e retorne
a ir. Nada está pronto, tudo está por fazer e carece de
chegar ao final”.

“O importante é ser por inteiro onde quer


que esteja, em absoluta intensidade com toda a magia
oferecida pelo momento. Quando faço um sapato,
algumas vezes faço apenas um sapato; noutras consigo
aproveitar a oportunidade para transformar o couro
como arte circulante em pés alheios. A diferença será o
quanto do meu coração foi depositado naquele trabalho”.

137
Tornou a beber um gole de café e comentou: “Uma folha
de papel pode servir para embrulhar o pão, escrever
uma poesia, virar um origami ou ser apenas uma folha
de papel. A sua mente poderá levá-lo até a esquina ou a
lugares fantásticos, depende apenas do quanto de você
mesmo for ofertado em cada olhar e gesto”.

“Independente da situação, quando olhamos e


agimos com amor o universo se manifesta em luz”.

“Assim é o fato de sempre desejar estar em


outro lugar, diferente daquele no qual se encontra.
Enquanto eu não entender quem sou não saberei onde
estou. Sem referências sobre a minha direção pessoal
não entenderei o sentido do Caminho. Penso no táxi
de Londres quando estou no metrô de Tóquio; desejo
um restaurante de Nova Iorque enquanto almoço no
mercado em Istambul. Acabo por desperdiçar o tesouro
da existência”. O artista plástico quis saber sobre esta
riqueza referida pelo sapateiro. Loureiro disse: “É uma
valiosa sabedoria ensinada por Buda, que de tão antiga,
muitos a julgam obsoleta”, arqueou os lábios em leve
sorriso e acrescentou: “O melhor lugar do mundo é
aqui e agora”.

“Independente de onde estiver, aqui estão as


suas lições e o mel da vida. Agora é a hora de oferecer
o seu melhor, de fazer diferente e ser feliz. Não existe
nenhum outro lugar ou momento”.

“A espera nem sempre significa paciência.


Movimento nem sempre se traduz em transformação.
Ansiamos tanto pelo porto seguro que esquecemos que

138
a vida acontece nos mares da travessia. Desperdiçamos
a fila do ônibus, o supermercado lotado, a criança
chorando, o faminto que pede pão, o amigo problemático,
os parentes encrenqueiros, a difícil e bonita luta pela
sobrevivência, sementes de todas as lições. Afinal, no
desejo pelo paraíso, onde não exista nenhuma dessas
chateações, perdemos a vida na espera da hora ideal
e do lugar perfeito. A luz é um dom latente no ser; a
queremos, mas nem sempre percebemos o véu que
a esconde diante dos nossos olhos. Por ansiar pela
obra pronta esquecemos das ferramentas oferecidas,
da responsabilidade como criaturas e da alegria por
participar da criação”.

“O momento certo e o lugar adequado será


sempre onde estiver o seu coração. E ele apenas pode
estar aqui e ser agora”.

Ficamos um longo tempo sem dizer palavra.


Foi Zinedine quem rompeu o silêncio ao perguntar se o
sapateiro o aconselhava permanecer com uma ideia ou
em determinado lugar mesmo quando não mais estivesse
satisfeito. Loureiro balançou a cabeça e respondeu:
“Em absoluto. A insatisfação é o primeiro sinal da
necessidade de mudança. Ninguém é obrigado a nada.
As escolhas são e precisam ser livres para que possam
nos traduzir e conduzir pelo Caminho. A liberdade é uma
ferramenta indispensável às mutações. Independente de
ir ou ficar, permanecer ou trocar, apenas não devemos
nos comportar de maneira superficial e volúvel. Lembre
que lições estão ocultas nos problemas. O importante é
aproveitar a situação vivida aqui e agora com a máxima
intensidade, se colocar por inteiro no momento para

139
que ele possa se preencher, expandir até o limite e,
então, transmutar em outra possibilidade nunca antes
imaginada”. Abaixou a cabeça e sussurrou como quem
conta um segredo: “Então, a luz”. Bebeu o último gole
de café e finalizou: “Fora do aqui e agora não existe
vida, apenas um espectro de vida”.

Zinedine fechou os olhos e sorriu em


agradecimento.

140
OS SERES-PÁSSAROS

T
Encontrei com o Velho, como carinhosamente
chamávamos o monge mais antigo da Ordem, sentado
na agradável varanda do mosteiro com o olhar perdido
nas maravilhosas montanhas dos arredores. Ofereci
uma xícara de café e ele aceitou com um sorriso.
Quando coloquei a caneca na pequena mesa ao seu
lado fui convidado para sentar. Ele quis saber se
algo me preocupava. Neguei. O monge, então, me
perguntou a razão dos meus olhos tristes. Era difícil
esconder os sentimentos da percepção apurada do
Velho. Acomodei-me na poltrona ao lado e contei
que eu tinha começado a namorar uma mulher que
ocupava um cargo importante na empresa com a qual
a minha agência de publicidade tinha assinado um
vultuoso contrato. Tínhamos nos conhecido durante
as reuniões para o fechamento do negócio. O namoro
evoluiu bem até que perdeu o encanto para mim sem
nenhuma razão específica. Ela era uma mulher bonita,
inteligente e meiga. Nossas conversas eram doces como
os seus beijos. No entanto, algo havia esmorecido em
meu coração. Quando encerrei o relacionamento ela
acusou de ter me envolvido por interesse comercial ao
invés de por sincera afeição. Eu estava triste porque
não queria que ela tivesse aquela imagem de mim.

Sem desviar os olhos das montanhas, o monge


disse: “Há três aspectos interessantes nesse caso.

141
O primeiro é a motivação da sua tristeza. Se você foi
sincero com seu coração quando iniciou o namoro
nada há o que fazer, tampouco dar vazão a tristeza.
Se ela tenta, de maneira equivocada, desviar a origem
da própria frustração para não apagar a imagem
idealizada de si mesmo, nada há o que fazer, salvo a
compreensão nascida da sincera compaixão. Espíritos
livres não têm nenhum interesse em controlar ou
dominar qualquer aspecto das ideias, vontades ou
opiniões da vida alheia. Ao serem honestos consigo
mesmo também são com o mundo; ao estarem a
alinhados ao amor estão no passo da luz. Por isso
são livres e possuem uma alegria serena, pois, vivem
em paz”. Bebeu um gole de café e acrescentou:
“No entanto, se não havia pureza em seus sentimentos
é hora de ser humilde, pedir desculpas, assumir o
compromisso consigo próprio de não mais agir assim e
seguir em frente pela oportunidade de fazer diferente
e melhor em uma próxima oportunidade”.

Ficamos sem dizer palavra por algum tempo


para que aquelas ideias encontrassem o devido lugar
em mim. Em seguida, questionei qual seria o terceiro
aspecto mencionado pelo monge. Como sempre, ele foi
atencioso: “Existem oito portais no Caminho, em ordem
crescente de dificuldade espiritual. Apenas é possível
atravessar cada um deles após o andarilho incorporar
determinado grupo de virtudes ao ser. Por exemplo, o
primeiro portal é o dos Corações Simples, no qual a
humildade, a simplicidade e a compaixão capitaneiam
as virtudes essenciais, sem as quais não é permitido
iniciar a travessia. Outro, precisamente o sexto, é o
Portal das Asas e da Liberdade, no qual a pureza é a

142
virtude primordial”. Bebericou o café e prosseguiu:
“Todavia, não podemos esquecer dos guardiões do
limiar que ficam a espreita, em cada um dos portais,
para impedir a passagem daqueles que ainda não estão
prontos”. Interrompi para dizer que não sabia do que
se tratava. O monge explicou: “Como nas histórias,
todo andarilho é um guerreiro da luz que está em busca
do cálice sagrado. Para atingir o objetivo ele precisa
enfrentar adversários que, ao primeiro olhar, tentarão
impedir a vitória, porém, na verdade, apenas têm a
finalidade de aprimorar e fortalecer as habilidades do
guerreiro. Esta mestria são as virtudes da alma. Todas
estão em semente; muitas vezes, precisam da pressão
exercida pelo solo para que a casca se rompa e possam
florescer para o grande encontro. O encontro consigo
mesmo, pois o cálice sagrado é o seu próprio coração,
onde Deus faz a morada. É a definitiva volta para a casa”.

“Você ou a sua namorada, ou ambos, estiveram


diante do portal da pureza, mas foram derrotados
pelos guardiões do limiar”. Tornei a interromper para
pedir que ele explicasse melhor quem seriam tais
guardiões. O monge foi didático: “São as dificuldades
ou adversários que se apresentam para testar a virtude
em jogo naquele limiar. Uma dificuldade pode colocar
o guerreiro diante de um problema se ele a encarar
como um problema; ou de um mestre se ele a olhar como
uma lição a ser aprendida. Em verdade, os adversários
do guerreiro são as suas próprias sombras, traduzidas
pelos sentimentos ainda selvagens que ele tem tanto
em relação a si quanto ao mundo. Um guerreiro egoísta
verá egoísmo por toda a parte, mesmo onde ela não
exista; assim como um ladrão de sonhos receia a todo

143
instante que alguém possa furtar o seu. O mundo será
sempre o exato espelho da sua consciência e coração;
toda luz e amor que você é capaz de enxergar no outro
é reflexo das virtudes que já germinaram em você.
Lembre que a batalha mais importante da vida é travada
dentro de si mesmo na luta amorosa para harmonizar os
interesses do ego, o eu-aparência, aos valores da alma,
o eu-essência”.

Pedi para ele aprofundar mais sobre esse


portal específico. O Velho explicou: “É a passagem
permitida apenas aos puros de coração. A pureza é a
virtude que impede o amor de virar uma cobiça;
não permite que ninguém seja dono de ninguém.
É a virtude daqueles que conquistam sem possuir;
não confundem o amor com as paixões; não exigem
impostos ou apresentam boletos emocionais em troca
do amor ofertado. Amam apenas porque amam amar;
amam o outro como a si mesmo. Não negociam com a
mentira mesmo quando esta se manifesta em forma de
ocultação da verdade nem a justificam com raciocínios
tortuosos na tentativa de legitimar os próprios desejos”.

“Para os puros a verdade tem clareza e é tão


imprescindível quanto o ar que respiram. Tudo é
simples porque não há mais véus de ilusão a ofuscar a
alegria da vida; são bonitos por conseguirem encontrar
beleza em todas as coisas e pessoas. Já não são
escravos das próprias sombras, agora transmutadas
em luz. Não misturam desejos na mesma bagagem
das necessidades; não têm segundas intenções ou
interesses camuflados nos relacionamentos com os
outros. Não presumem a maldade alheia ou a criam

144
onde ela não exista. A pureza traz em si uma força
incomensurável, pois permite aos puros expor as
suas dificuldades sem que elas sejam sinônimo de
fragilidade. Já não mentem para si mesmo; para a
pureza nada é inconfessável. São aqueles capazes
de olhar no espelho sem estar diante de um enigma,
mas dispostos a enfrentar a própria face, de alma
nua, despidos das fantasias sedutoras oferecidas pelo
ego exacerbado. A pureza não condena as escolhas
alheias, pois, sabe que cada qual está diante das
dificuldades inerentes ao próprio processo evolutivo.
Como as virtudes são complementares, a pureza evita
que a humildade vire uma vaidade; não permite que
a compaixão seja movida por orgulho; impede que a
caridade se torne motivo de ostentação; explica que o
perdão não pode virar objeto de soberba; a vingança
jamais substituirá a justiça; ensina que o amor não
é um balcão de trocas; onde não há amor não existe
luz. A pureza é uma virtude altamente sofisticada pela
extrema simplicidade que oferece”.

Tornamos a ficar em silêncio até que perguntei


o motivo desse portal, ligado à pureza, ser considerado o
portal das asas. O Velho arqueou os lábios em
leve sorriso e disse: “Pureza e liberdade estão
intrinsecamente ligados. Apenas aos puros é permitido
o entendimento do verdadeiro sentido e gozo da
liberdade. Por não existir cobrança, má-fé ou vontade de
domínio não resta qualquer dívida ou contraprestação
nos relacionamentos. A pureza impede que o amor
acabe por negar os seus fundamentos e se torne uma
prisão. O fato de a fartura do perdão no coração dos
puros ter a abundância do sal nos oceanos faz com que

145
todas prisões emocionais construídas com as pedras
das mágoas e com a grades dos ressentimentos acabem
se desmanchando no ar. A pureza joga fora o peso
inútil da presunção ou supervalorização da maldade
e oferece a leveza fundamental para quem está pronto
para alçar o voo da liberdade. O ser puro vive pelo bem
e pela luz, sem exigência por nenhum gesto, palavra
ou olhar de outra pessoa. Ninguém precisa concordar,
acompanhar ou pode impedir um espírito livre de
seguir a viagem. Por serem conceituais, as suas asas
não podem ser cortadas pelo aço do mundo; as virtudes
verdadeiramente conquistadas não retroagem nem se
perdem nos trilhos do tempo”.

Argumentei que sempre achei as pessoas


puras um tanto quanto ingênuas, sem a exata noção
das maldades do mundo. O monge arqueou as
sobrancelhas, como sempre fazia quando aumentava
o tom de seriedade e disse: “É justo ao contrário”.
Esvaziou o café da xícara e explicou: “Lembre que as
virtudes são complementares. A prudência e a justiça
são portais anteriores à pureza, portanto, os puros já
as possuem. Claro que o mal deve ser estancado onde
se apresentar, na sua exata medida educativa, sempre
com o senso aprimorado de justiça, uma indispensável
e difícil virtude no equilíbrio do ser, para não permitir
que o encanto pelo bem reste contaminado. No mesmo
caldeirão bem temperado da mestria, a prudência é
uma preciosa virtude por impedir o conflito entre a
pureza e a ingenuidade. A prudência ensina não apenas
a identificar o mal, mas, também, a encontrar o bem
nos lugares mais improváveis. A ingenuidade brota do
olhar enevoado sobre todas as coisas, no qual ainda

146
se impõe o domínio das sombras sobre as escolhas do
indivíduo devido à sua falta de clareza. Ao contrário
do que muitos imaginam, a maldade é ingênua por não
ser capaz de ver a beleza e o poder da luz. A pureza
escancara os porões escuros do ser para que sejam
iluminados e transmutados em aconchegantes quartos
para se viver. Tolo é quem vive a procurar o mal ao
invés de buscar o bem. Tolo é quem vê o mal ou o
presume onde não existe. Ingênuo é quem ainda não
entendeu como o amor pode transformar a vida e o
mundo; e o amor precisa da pureza para que possa se
apresentar por inteiro”.

“A pureza tem a força maravilhosa de conceder


infinitas oportunidades a toda a gente, pois sabe que
ela própria nasceu no pântano dos equívocos. A pureza
é libertadora”.

“A pureza são as asas dos seres-pássaro”.

O Velho olhou no fundo dos meus olhos e


concluiu: “A pureza é a virtude da outra face; a face
capaz de mostrar e vivenciar o poder da vida, da
verdade, do amor e da luz. Típico de quem possui
uma fé inquebrantável em si e no mundo”. Tornou a
lançar o olhar para as montanhas antes de finalizar:
“Bem-aventurados os puros de coração, pois a eles
será permitido ver a face de Deus”.

147
A BELEZA DE SER ÚNICO

T
Canção Estrelada, o xamã que tinha dom de
perpetuar a filosofia do seu povo através da palavra,
cantada ou não, rufava o seu tambor de duas faces em
melodia sentida enquanto o dia amanhecia. A música
era uma oração de comunhão pela alegria de nos
sentirmos parte essencial do universo e, em resposta,
todo esse poder vibrava em nosso ser. Apagamos a
fogueira e descemos a montanha. Quando chegamos
à casa do xamã, um dos habitantes da aldeia o
aguardava para pedir ajuda. Ele estava muito triste
com o seu filho, sempre inseguro e medroso, bem
diferente dos outros garotos da sua idade e do próprio
pai. Lamentou que o menino tivesse nascido covarde.
Canção Estrelada o convidou para sentar na varanda,
nos serviu café, acendeu, sem pressa, o seu inseparável
cachimbo com fornilho de pedra vermelha enquanto
ouvia o pai explicar que o filho estava com treze anos
e em breve teriam na aldeia o ritual de passagem para
a vida adulta, o Cerimonial de Iniciação, cuja prova
principal eram os combates corpo a corpo entre os
garotos, como demonstrações de coragem e habilidade.
O xamã baforou o cachimbo e disse: “Ninguém nasce
fraco; ser forte é uma escolha permitida a todos.
No entanto, conhecer a própria força é a raiz da magia
pessoal; perceber a dimensão e o poder do universo
em si e diante de si alimenta a coragem, ensina sobre a
humildade e transforma o ser. Traga-o aqui amanhã”.

148
No dia seguinte, logo cedo, o pai o levou.
Era uma belo e saudável rapaz, porém os seus olhos
fugiam para não encontrar outros olhares. Lee era o
seu nome. O pai agradeceu e se foi. Canção Estrelada
o recebeu com seu jeito afetuoso e nos convidou para
um passeio. Era um dia quente de verão e fomos até
um grande lago próximo à aldeia. Algumas crianças
brincavam e nadavam no local. O xamã disse para
ele ficar à vontade e entrar na água, caso quisesse.
Lee disse que tinha vontade, porém, nunca aprendera
a nadar, pois tinha medo de se afogar. Canção
Estrelada não insistiu, mas argumentou: “Justo o
medo de não aprender a nadar torna a possibilidade
de afogamento maior”.

No segundo dia o xamã nos levou para andar


a cavalo. Lee disse que, embora tivesse vontade
de aprender, pois parecia muito divertido, nunca
cavalgara. Confessou o receio de cair e se machucar.
Canção Estrelada comentou como quem lança uma
semente: “Percebe que o medo de que aconteça o pior
o impede de desfrutar o melhor da vida?”. O jovem
não respondeu.

No terceiro dia, à tarde, subimos as montanhas.


Após uma caminhada intensa paramos em um pequeno
platô que nos permitia uma vista linda do vale.
Como começava a anoitecer, o xamã me pediu para
acender uma fogueira. Em seguida começou a cantar
lindas canções ancestrais que acariciavam o coração.
Foi a primeira vez que eu vi o Lee esboçar um sorriso.
Canção Estrelada percebeu e entregou o tambor de
duas faces para que o jovem o acompanhasse. O garoto

149
tinha ritmo e o pequeno ritual durou horas. Ao final,
confessou que adorava música e que costumava se
esconder dos outros meninos enquanto eles treinavam
lutas para, sozinho, tocar e cantar. Sentia-se deslocado
por não compartilhar dos mesmos gostos dos outros
rapazes da sua idade. Tirou uma pequena gaita do
bolso e entoou várias canções, algumas conhecidas,
outras de sua autoria.

Ao final, Canção Estrelada falou: “As mais


bonitas histórias são as de superação. Todas as boas
músicas, em essência, revelam que a luz desmancha
a escuridão; que o amor é a cura para toda a dor”.
Lee disse que não estava entendendo. O xamã
explicou: “A sua beleza resta escondida pelo fato
de aceitar as grades do medo. O medo, por si só,
não é um problema, pois só existe coragem onde
antes havia o medo. Todas as virtudes são flores
germinadas nas sementes da dificuldade. A questão
do medo é a mesma de qualquer dificuldade: a
maneira como reagimos à situação faz toda a
diferença. O problema é um problema quando você
se deixa aprisionar por ele; ou pode ser um mestre
se usado para alavancar uma transformação pessoal”.
Olhou nos olhos do rapaz e concluiu: “Isto torna
as escolhas angulares”.

Lee confessou que, ao contrário dos outros


garotos, detestava as lutas. Fato que o isolou do grupo
e acabou impedindo que não aprendesse a nadar
e cavalgar com os outros meninos. Sentia falta de
todos e das brincadeiras, mas não gostava dos olhares
de estranheza e das acusações de covardia. O xamã

150
sorriu com bondade e disse: “O medo se espraiou e
furtou o sal da vida pelo fato de você não perceber
a beleza de ser único. Ninguém é igual a ninguém;
aceitar as diferenças é entender a si mesmo, ampliar
as possibilidades e expandir o universo”. Apontou
para céu e falou: “Não há duas estrelas iguais no
firmamento. Assim como cada pessoa possui a sua
própria manifestação de magia. Somos protagonistas
da nossa história e coadjuvantes das narrativas
alheias. Cada um com o seu dom e o seu jeito, uma
beleza única e essencial, como partes distintas e
indispensáveis que, quando devidamente encaixadas,
irão compor o todo”. O rapaz falou que compreendia
o que o xamã dizia, porém, em seu íntimo sentia que
faltava algo capaz de transformar aquelas palavras
em atitude, como uma peça no quebra-cabeça.
Lee insistiu em saber qual era. Canção Estrelada
foi monossilábico: “Fé”.

Em seguida, diante de um enorme ponto de


interrogação nas feições do garoto, o xamã perguntou
o que ele entendia por fé. O jovem disse que fé era se
atirar no precipício com a certeza de que uma mão
o ampararia na queda. Canção Estrelada corrigiu
com bom humor: “Isto é suicídio”. Todos rimos e o
ambiente desanuviou. O xamã continuou: “Um filho
traz consigo os genes dos seus pais. Somos a perfeição
do Mistério Infinito ainda em embrião, logo, trazemos
conosco toda a força do Criador. Basta que cada
qual permita que esses poderes se manifestem em
seu âmago. Isto é fé”. Deu uma pausa e prosseguiu:
“Todavia, acreditar nesses poderes de nada adianta se
não os entender e sentir dentro de si”.

151
Os olhos de Lee brilhavam mais do que a
fogueira. Ele perguntou que poderes eram esses.
O xamã respondeu de pronto: “Toda a virtude se
traduz em luz. O exercício delas transforma, liberta
e pacifica o ser. Isto é magia”. Deu uma pequena
pausa, olhou nos olhos do jovem e disse: “Magia é
manifestação do poder pessoal, do despertar da força
divina adormecida no seu ser. Quem a movimenta é a
fé. Apenas ela”.

“No entanto, quem direciona a fé é o amor.


Ou nada fará sentido”.

“A fé em si mesmo, quando manifestada


através das escolhas pessoais sincronizadas com a
luz, conecta o indivíduo ao Infinito e os funde em
um único ser. O uno é uma força indescritível, muito
além da imaginação vulgar. Todos têm esse poder.
Use-o, Lee!”.

O rapaz argumentou que não sabia como


fazer. Canção Estrelada, ao seu modo, foi didático:
“Todo processo tem um início. O ponto de partida é
saber quem você é de verdade, sem ilusões e desculpas.
Assim, passo a passo, entenderá a necessidade de
transformar as escolhas que, aos poucos, você perceber
que não servem mais. Essa é a maneira de como as
virtudes florescem no ser. Procure o silêncio e a
quietude. A mente e o coração precisam parecer como
a um lago de águas plácidas para que possam refletir o
próprio espírito, a sua face divina. A correria dos dias
modernos faz com que as águas do nosso lago interno
andem muito agitadas e os condicionamentos sociais

152
as tornam turvas impedindo de espelhar a essência
vital que deve orientar a evolução. É preciso deixar as
águas tranquilas para colocar a mente e o coração em
diálogo com o próprio espírito ou não haverá avanço e
plenitude. Sem ela não existirá a verdadeira liberdade
nem a conquista da paz. Não haverá encanto por si,
pelo mundo e pela vida. Se faz necessário que a fé
consiga manifestar a magia pessoal”.

Em seguida disse que estava na hora de


dormir. Enrolados em nossas mantas, nos acomodamos
próximos à fogueira e, sob um manto de estrelas,
adormecemos. Diversas vezes acordei durante a noite
e vi os olhos de Lee fixos no firmamento. Percebi
que neles não havia medo ou incerteza, mas fascínio.
Descemos a montanha na manhã seguinte e eu parti
para Sedona, uma cidade próxima, em razão de outros
compromissos. Aceitei o convite para voltar dentro
de três meses, na data da Cerimônia de Iniciação, o
rito de passagem tribal para a vida adulta.

Chegado o dia, encontrei a aldeia toda


enfeitada. Como me atrasei um pouco, todos já
estavam reunidos para a festa. Passei rapidamente
na casa de Canção Estrelada para deixar a mochila
e reparei duas fotos no canto da mesa. Em uma, Lee
estava sorridente montado em um cavalo ao lado do
xamã; na outra, mergulhava de uma pedra no lago.
Sorri comigo mesmo e fui ao encontro de todos.
Era uma grande festa de origem ancestral na qual os
meninos demonstravam a coragem necessária para
se tornar guerreiros. A prova principal consistia em
demonstrar as habilidades individuais para a luta

153
corpo a corpo. Aos pares, com os dorsos nus pintados
com motivos de guerra, os jovens se enfrentavam sob
os aplausos de toda a aldeia. Era impossível não notar
traços de angústia e ansiedade no rosto do pai de Lee.
Até que o menino foi convocado para a pequena arena.
Ao contrário do que eu imaginava, o rapaz se apresentou
com porte austero, olhar confiante e uma postura
elegante. No entanto, diferente dos outros garotos, em
seu peito estava desenhado um grande e colorido sol.
Com os olhos busquei por Canção Estrelada. O xamã,
sentado ao lado dos demais membros do Conselho de
Anciãos, estava impassível.

Quando ficou de frente para o seu oponente,


Lee fez uma reverência respeitosa, se virou para toda
a aldeia e declarou que não lutaria com o outro garoto.
Acrescentou que o combate tinha por finalidade
apresentar a aldeia as habilidades individuais e ele
ofereceria a sua. Para espanto geral, sacou do cós da
calça uma pequena flauta de bambu e, por minutos que
pareciam sem fim, tocou uma doce e suave melodia,
capaz de atingir aos corações mais endurecidos.
Quando acabou, reinou o mais absoluto dos silêncios.
Alguns estavam atônitos; outros, desconcertados.

O cerimonialista, a quem cabia a função


de organizar os combates, uma honra concedida ao
mais bravo guerreiro tribo, declarou a eliminação de
Lee e a sua expulsão da festa. Alegou que além da
falta de coragem para o combate, o rapaz maculara
o ritual e ofendera as tradições da tribo, alicerces
culturais daquele povo, que deveriam ser respeitados
e preservados.

154
Houve um grande burburinho e, pelos
comentários, eu notei que as pessoas tendiam a
aprovar a decisão do cerimonialista. No entanto,
era também parte da tradição que uma sentença
dessa monta fosse homologada pelo Conselho dos
Anciãos, órgão responsável pela direção da aldeia.
O Conselho se fechou em círculo para deliberar.
Por um tempo que não sei precisar, trocaram ideias
em tom baixo de voz, inaudível ao restante da tribo,
até que o mais velho dos seus membros, que havia
sido um valoroso guerreiro na juventude e se tornara
um respeitável sábio na velhice, pediu para falar em
nome do colegiado:

“Há razão quando se diz que as tradições


devem ser respeitadas, pois elas falam sobre a nossa
cultura, a riqueza de mostrar a toda a gente os valores
espirituais, a maneira de ser e o jeito de viver de
nosso povo. Esta é uma das razões dos cerimoniais, a
outra reside em nos unir costurados pelas linhas dos
sentimentos mais nobres, tendo o amor como guia”.
Deu uma pequena pausa para que nenhuma ideia se
perdesse. A sua fala era mansa e clara: “Contudo, sem
qualquer demérito às tradições, tudo na vida precisa
se transformar para que a vida continue a pulsar e a
evolução se complete. O equilíbrio na impermanência
é uma arte imprescindível para uma existência
harmoniosa. A coragem é uma virtude essencial como
todas as demais. Durante séculos a nossa maneira
de a demonstrar foi através das lutas corpo a corpo,
até porque elas eram vitais no passado. Porém, tudo
muda. Assim, como o pai cria, a mãe cuida e mantém,
o filho chega para destruir as velhas formas de pensar

155
e agir como elemento de mudança a abrir espaço para
a renovação da vida. Assim prosseguimos”.

“Trata-se de um ritual de coragem e ao se


recusar, na frente de todos, a lutar com o seu oponente,
o jovem Lee escolheu por enfrentar toda a aldeia e a
desafiar os nossos dogmas ancestrais”. Tornou a pausar
e em seguida prosseguiu: “Não houve desrespeito,
mas, ao contrário, mostrou muita coragem em revelar
que tudo pode e precisa ser diferente e melhor.
Ou apodreceremos na estagnação. Ele teve a coragem
de poucos ao questionar a tradição, com o risco de
eliminação, sob a pena do desprezo e da pecha de
covarde. A sua coragem nos mostrou possibilidades
de manifestação até então inimagináveis ou, no
mínimo, inconfessáveis. Ele ofereceu o seu dom
como instrumento de encantamento e expansão de
consciência, como ferramenta de amor, transmutação
e superação. Ele nos deu a oportunidade de perceber
que a coragem se manifesta em outros domínios que
não apenas na guerra. O jovem Lee nos mostrou o
quanto precisamos ser fortes para viver o amor com
toda a intensidade necessária”. Olhou toda a aldeia ao
seu redor e perguntou: “Quantos teriam a coragem de
lançar um desafio como ele fez?” Aguardou alguns
segundos pela manifestação de alguém e, diante do
silêncio de todos, concluiu: “Assim, o Conselho dos
Anciões, com os poderes investidos por esta tribo,
enlaçada nos mais dignos ideais de fraternidade,
declara que o participante honrou a tradição de
coragem necessária para completar a prova e deve ser
declarado como um verdadeiro guerreiro”.

156
A aldeia explodiu em aplausos. O sábio
levantou a mão e voltou a pedir silêncio para falar:
“A partir de agora, no Cerimonial de Iniciação, ao
invés de não haver opção além das lutas, cada jovem
poderá apresentar a tribo outro dom e a sua magia”.
Olhou para o garoto e falou: “Para encerrar, peço ao
jovem Lee que nos ofereça mais um pouco da sua
habilidade de encantamento”. Então, da flauta de
Lee começou a soar uma canção alegre que logo
foi acompanhada pelos tambores da tribo. O pai do
garoto era a manifestação pura da alegria. Toda a
aldeia começou a dançar e o Cerimonial de Iniciação
mudou para sempre.

Procurei por Canção Estrelada. Encontrei o


velho feiticeiro, quieto em um canto, baforando o seu
indefectível cachimbo com fornilho de pedra vermelha,
como se nada daquilo tivesse a ver com o seu dom e a
sua magia.

157
A MARATONA

T
Eu estava de volta na pequena vila chinesa,
encravada no Himalaia, próxima ao Butão. Queria
estudar um pouco mais com Li Tzu, o mestre taoista.
O ônibus tinha me deixado muito cedo na única
estalagem local e como só haveria quartos disponíveis
depois do meio-dia, deixei a minha mochila e segui
para a casa de Li Tzu, na esperança de acompanhá-lo
em um bom chá quente. O sol se apresentava em raios
tímidos e quase não havia pessoas nas ruas. O portão da
casa do mestre taoista nunca era trancado. Entrei sem
fazer barulho. Senti o perfume do incenso e uma paz
absoluta. Encontrei Li Tzu sobre um pequeno tapete,
estendido no jardim de bonsais, fazendo complicados
exercícios de ioga. Um gato preto, chamado Meia-
noite, que também morava na casa, deitado ao lado,
observava a tudo, preguiçosamente. Fui recebido
com um sorriso sincero e sem cessar a sua prática, o
mestre taoista disse para eu me servir de chá. Fui à
cozinha; sobre o fogão havia um bule com uma mistura
deliciosa de ervas e flores em infusão. Voltei com uma
xícara cheia, me sentei ao seu lado e ofereci para tocar
uma música no meu celular para acompanhar a ioga.
Li Tzu disse: “Agradeço, mas aprecio a voz do silêncio.
Já há muitos ruídos e barulhos durante o dia. Não quero
perder essa iguaria que o amanhecer me permite”.
Foi impossível não perceber as difíceis posturas de ioga
executadas pelo mestre taoista, mormente em razão da

158
sua idade. Ele tinha sido colega de faculdade do Velho,
como carinhosamente chamávamos o monge mais
antigo da Ordem, em uma prestigiosa universidade
inglesa, quando ambos eram jovens. Comentei isso
enquanto, sentados à mesa, fazíamos o desjejum.
Embora a alimentação de Li Tzu fosse frugal e o
seu corpo, magro; as suas feições esbanjavam saúde,
além de extrema serenidade. Acrescentei que, apesar
de ser bem mais moço, eu não seria capaz de realizar
nenhum daqueles exercícios. Ele me olhou como a
uma criança e explicou: “O Tao nos ensina que tudo
é possível. O Tao vem do céu e estamos sob o céu”.

Falei que não tinha entendido. Achava o


Tao muito enigmático. Li Tzu arqueou os lábios em
leve sorriso e disse: “O Tao é estrada para a luz do
mundo; a luz é a conquista da plenitude do ser, a casa
da liberdade e da paz. O Caminho do Tao se completa
no exercício das virtudes. As virtudes florescem na
prática dos bons hábitos”.

“Quando você diz ‘eu não consigo’, se


conforma na escravidão imposta pelos maus
hábitos. Ao se conscientizar de que é capaz de
fazer absolutamente qualquer coisa, está dando o
passo mais importante para a libertação do ser.
A preguiça, a fraqueza mental, o vício, as dependências
emocionais, os condicionamentos culturais, além das
demais sombras, são perigosas prisões que aumentam
o nosso nível de dependência externa. O Tao nos
diz que ‘de quanto menos eu precisar, mais livre
serei’. Boa parte da nossa vida é vivida no ‘modo
automático’. Temos que desligar esse botão para

159
que possamos tirar a vida do inconsciente e modificar
as escolhas”.

“‘Esta é a melhor palavra a ser pronunciada’?


‘Este é um pensamento libertador’? ‘Esta atitude
irá serenar o meu coração’? ‘Este é o melhor que
posso oferecer para mim mesmo e para o mundo’?
são perguntas necessárias a todo instante. Mudar
as escolhas é transformar a vida; é o limite entre o
cárcere e a liberdade, a fronteira que divide as ruas do
sofrimento e o jardim da paz”.

Falei que ele estava enganado, pois, existe


uma enorme distância entre o discurso e a prática.
Contei que a minha namorada tinha me convidado
para ir com ela a Nova Iorque correr a maratona.
Declinei por conhecer da minha inaptidão física.
O mestre taoista comentou, parecendo se divertir:
“Com certeza você cairia duro, enfartado, antes de
conseguir ver a Estátua da Liberdade”. Deu uma
pausa e prosseguiu: “Mas, o exemplo é muito bom.
Para quem nunca correu, será bem difícil completar
a prova. No entanto, se você traçar um plano de
treinamento para, ao invés de ultrapassar os próprios
limites de uma única vez, o que além de perigoso
pode se tornar desanimador, optar por expandir
a capacidade física aos poucos, com certeza, terá
êxito. Comece com pequenas caminhadas, depois
alguns trotes; todos os dias aumente um pouquinho
a distância e, quando se der conta, estará cruzando
a linha de chegada. Se você consegue colocar as
mãos na barriga, logo conseguirá colocá-las nos pés.
Se consegue colocar as mãos nos pés, conseguirá,

160
em breve e com a devida dedicação, completar uma
maratona. A ioga me lembra disso todos os dias.
Serve tanto em relação à superação física quanto à
mental, emocional e espiritual. Afinal, a natureza não
dá saltos. Tudo no universo evolui a passos lentos,
porém, quando ocorrem, são firmes e inexoráveis.
Determinação e paciência são virtudes essenciais aos
viajantes do Tao”.

“Bons hábitos são exercícios que auxiliam


a formação das virtudes no ser, demonstram a
capacidade de superação do indivíduo e a libertação
dos condicionamentos do mundo. Para um bom
guerreiro, de nada adianta a sua habilidade com
espada durante a batalha se mentalmente ele for
fraco. Acreditar em si é despertar a centelha de luz
cósmica adormecida e usar este poder para ir além
de si mesmo, vencendo as dificuldades e instalando
um novo padrão de comportamento. Cada qual é
um centro gerador e também uma antena receptora
de energia, capaz de captar as vibrações na mesma
frequência vibratória daquelas que emanar. Isto
faz com que cada ser seja responsável tanto pelo
seu escudo quanto por suas asas e tudo o mais que
acontece ao seu redor. Essa é a maneira de construir
uma ponte até o céu, o lado invisível da vida. Quanto
mais firme for a ponte, maior a capacidade de suportar
o tráfego entre os dois lados. Esta ponte é o Tao”.

Argumentei que nada daquilo era fácil. Li Tzu


me olhou com paciência e disse: “Ninguém falou que
era fácil. Apenas que é indispensável para quem quer
viajar através da estrada do Tao. Abandonar os maus

161
hábitos não significa apenas praticar exercícios, ter
uma alimentação leve, parar de fumar ou de diminuir
o consumo de sal e de açúcar. Na verdade, esta é a
parte mais rasa, embora cuidar do corpo, sem vaidade,
seja uma necessidade e uma atitude de gratidão e
respeito para com a vida. A profundidade em adquirir
bons hábitos consiste em importante passo para sair
do conforto da aparência na busca pela serenidade da
essência, em jornada de infinitas transformações”.

“Não à toa, a sabedoria da tradição cristã, em


plena conformidade com o Tao, ensina que devemos
escolher a porta estreita das virtudes, na qual o
andarilho encontrará uma via difícil, porém, com
importantes escalas evolutivas”.

Pedi para que o mestre taoista fosse mais


objetivo na explicação. Ele foi paciente: “Os melhores
e mais sofisticados hábitos são os mais simples por
estarem à disposição de qualquer pessoa”.

“Negar o perdão é um estágio espiritual


ainda tosco. Aprender a perdoar de verdade, uma arte.
Não raro, vejo a negação ao perdão como exercício
de orgulho e arrogância. Percebo, também, um
não entendimento da completa extensão da prática
libertadora do perdão. ‘Já perdoei fulano, não lhe desejo
mal’, é uma frase bastante ouvida. Não desejar mal é
o primeiro degrau do perdão que apenas se completa
ao se desejar o melhor para o outro. Não entendem
que, além de um maravilhoso exercício de humildade
e compaixão, o perdão, por ser libertador, beneficia a
todos os envolvidos, indiscriminadamente”.

162
“Abandonar o vício da dominação como
prática de libertação. O medo, uma sombra traiçoeira,
nos impõe o hábito ancestral de controlar os outros
em razão da possibilidade de sofrermos algum mal.
A liberdade se inicia quando paramos de interferir ou
impor a nossa vontade nas escolhas alheias. Assim,
ficamos mais leves para alçar voos mais altos”.

“Não criticar terceiros. No fundo, falamos


mal dos outros quando queremos desviar o foco
quanto às nossas próprias imperfeições. Este hábito
é muito comum e, pior, costuma se esconder no
inconsciente, tornando-se um vício de difícil cura.
Apontar os defeitos é uma atitude rasteira e, sem
dúvida, um mau hábito. Concentre toda a energia
no aperfeiçoamento de si mesmo; é um belo hábito,
canteiro de muitas virtudes”.

“O desânimo e as lástimas. Poucos hábitos são


tão nocivos por trazerem tamanho perigo de contágio.
O desânimo é para os fracos; as lamentações, para os
ignorantes. Os obstáculos trazem em si o burilamento
do guerreiro; quando a estrada está difícil o andarilho
agradece a lição, muda o jeito de caminhar e segue
em frente”.

“Entre vários, são apenas quatro exemplos bem


comuns de maus hábitos que precisam de modificação,
mas que de tão inseridos no cotidiano, não nos damos
conta de como estão entranhados em nosso viver e dos
malefícios que produzem. A alteração da rotina estufa
as velas com os ventos da liberdade e da paz. Então, o
barco singra os mares da existência”.

163
Perguntei se havia algum truque para
auxiliar a troca de hábitos. O mestre taoista arqueou
os lábios em leve sorriso e explicou: “A meditação é
maravilhosa para isso”. Argumentei que a meditação
era muito difícil para a cultura ocidental. Li Tzu
arqueou as sobrancelhas e replicou com firmeza:
“Você nem começou e já está se convencendo que
não conseguirá”? Abaixei os olhos e ele prosseguiu:
“Meditar é silêncio e quietude. É abandonar as
preocupações do mundo para encontrar consigo
mesmo; encontrar-se consigo é permitir que o mundo
invisível permeie o seu ser, que o universo possa se
fundir em suas células; é a conexão com o próprio
espírito que, quando realizada, permite ler os sinais
do Caminho. É a hora de esvaziar as águas turvas da
ânfora para tornar a enchê-la com água pura”.

“Entenda o vício que precisa abandonar ou,


se for o caso, o bom hábito que deseja incorporar;
leve até o chacra ajña, ou centro crístico, localizado
entre as sobrancelhas e o fixe ali durante a meditação.
Diga mentalmente que vai cauterizar aquela ferida,
quando se tratar dos maus hábitos; ou, no caso do
florescimento das virtudes ainda em sementes, que
permitirá o surgimento de uma nova maneira de ser e
viver, na consolidação de uma ponte sólida entre você
e todo o poder que existe no infinito”. Deu uma pausa
e concluiu: “Nossas possibilidades são inimagináveis.
Afinal, somos uno”.

“O propósito da vida é a evolução. Tão e


somente. Simples e sofisticadamente. Evolução em
todos os planos da vida, da matéria ao espírito, do

164
átomo às estrelas, do egoísmo ao amor. Avançamos à
medida que expandimos a consciência e ampliamos
a capacidade de amar; neste processo evolutivo, a
germinação das virtudes é uma via segura. O Tao nos
ensina isso. Os bons hábitos, além do bem-estar e leveza
que proporcionam, tornam tangíveis os compromissos
mais profundos das pequenas transformações pessoais
que assumimos, cada qual com si mesmo, que, em
análise final, são os mesmos que temos para com o
mundo. Nossas atitudes são ondas concêntricas a se
propagar no grande lago cósmico”.

Perguntei quais os bons hábitos que ele mais


admirava. O mestre taoista não titubeou: “Cultivar
boas amizades, além de espalhar a esperança e a
alegria por onde passar”. Em seguida eu quis saber
qual o mau hábito que ele considerava mais nocivo.
Li Tzu respondeu de pronto: “A estagnação, fruto
do vício mental de que a vida é ruim e o mundo não
tem jeito. Agressividade, tristeza, agonia e depressão
são as consequências mais visíveis, fora a enorme
sombra coletiva que alimentam”. Olhou-me nos olhos
e finalizou a conversa: “O planeta gira para nos manter
vivos; por que ficaríamos parados? Cada um traz em
si a mola-mestra da vida; quando nos movimentamos
para acender a chama da luz interna, tudo a nossa volta
se altera. Bons hábitos mudam a vida do indivíduo e,
aos poucos, iluminam o mundo. Essa é a maratona da
existência; tudo que não se move, apodrece”.

165
A CARTA DE PAULO

T
Uma palestra proferida pelo Velho, como era
carinhosamente chamado o monge mais antigo do
mosteiro, para os demais membros da Ordem, tinha
abordado sobre a indispensabilidade do amor como
elemento essencial às demais virtudes, além da sua
enorme força de transformação. Como era costume,
ao final, iniciamos os debates. Frank pediu a palavra.
Ele era um jovem membro da OEMM – Ordem
Esotérica dos Monges da Montanha –, filho de um dos
fundadores, já falecido. Apesar da pouca idade, mal
completara trinta anos, tinha graduação em jornalismo,
completara o mestrado e o doutorado em sua área de
atuação profissional e possuía um discurso articulado
e culto. Recentemente, em razão da crise econômica
enfrentada pelo país em que morava, fora demitido
de um grande jornal impresso, no qual respondia pelo
caderno cultural. Frank argumentou ser prejudicial
para uma pessoa o excesso de virtudes. Explicou que
vivíamos em um mundo injusto, habitado por pessoas
imperfeitas, gerando relações humanas complicadas e
conflitantes. Acrescentou que para sobreviver na selva,
como denominou a civilização contemporânea, era
imprescindível uma boa dose de maldade.

Houve um grande espanto, seguido de um


enorme burburinho. Todos pareciam querer falar ao
mesmo tempo. O Velho pediu silêncio para ordenar

166
as manifestações. Garantiu que daria voz a todos,
desde que um de cada vez. O primeiro monge a falar
lembrou que as virtudes, tais como a compaixão, a
misericórdia, a delicadeza, a humildade, a mansidão,
a generosidade, além, claro, do amor, quando
inseridas no meio social tornavam aquele grupo
mais harmonioso, pacífico e feliz. Frank rebateu com
o argumento de que as sociedades, em geral, são
dirigidas por pessoas insensíveis que se aproveitam
da generosidade e da boa-fé alheias.

Outro monge sustentou que a justiça é uma


virtude a equilibrar a bondade, uma ferramenta
adequada a estancar o mal sem precisar abdicar da
sua melhor face. Lembrou que, mais do que punir,
a verdadeira justiça tem uma função pedagógica.
Acrescentou que quando combatemos as sombras
com as sombras, a escuridão se agiganta. É necessário
amor para que haja luz. O Velho deu um sorriso quase
imperceptível.

Frank falou que o colega tinha uma postura


ingênua, pois sugeria oferecer flores para as feras.
Uma atitude inútil. A resposta precisava ter uma
linguagem eficiente para que o interlocutor fosse capaz
de compreender. Um dos monges rebateu dizendo
que uma resposta eficiente não vem necessariamente
com os mesmos métodos aplicados por aquele que
prejudica o bom convívio. Ter atitudes firmes para
cessar a injustiça não pode representar uma espiral
descendente de sofrimento e desânimo. Tem que
ser eficiente no sentido de interromper o processo
danoso, no entanto, ser também eficaz ao oferecer

167
uma possibilidade educativa de mudança para um
relacionamento saudável e capaz de alavancar a
evolução, seja individual, seja coletiva. Disse, ainda,
que é imprescindível oferecer a outra a face; a face de
luz, a face do amor que precisa florescer para a vida.
Esta era a diferença angular nos relacionamentos; a
fronteira entre a agonia e a alegria.

O jovem membro confessou que dedicara


toda a sua vida em prol do aperfeiçoamento pessoal,
conforme educação aplicada pelo seu saudoso pai.
Estudara nas melhores universidades, aprendera vários
idiomas, estagiara em grandes redações e, com a
chegada de uma crise econômica, consequência de uma
politica monetária desastrosa aplicada por políticos
incompetentes, ele encabeçou uma extensa lista de
demissões pelo simples fato de ter um alto salário,
fruto da sua qualificação esmerada. Considerou que
outros profissionais, bem menos capazes do que ele,
continuavam empregados justo por terem uma menor
remuneração em função da falta de preparo acadêmico.
Um outro monge pediu a palavra para lembrar ao Frank
da existência das várias inteligências que possuímos: a
cognitiva, a emocional e a espiritual. Falou para termos
atenção ao desenvolvimento de todas. Disse que a
primeira permitia absorver novos conhecimentos;
a segunda, a lidar de maneira sábia e amorosa com
as frustrações, importantes alavancas evolutivas; a
terceira ensinava sobre o poder das escolhas como
ferramentas de transformação. Opinou que as três eram
valiosas e necessárias, mas achava a cognitiva a que
menos influenciava a felicidade pessoal, justo por ser a
mais pobre em virtudes. Em seguida sugeriu ao jovem

168
que estudasse mais o esoterismo como instrumento
para melhor enfrentar as dificuldades inerentes à vida.
Frank rebateu sob a alegação que já lera todos os livros
sobre o assunto. Lembrou a todos quem era o seu pai,
que fora educado naqueles trilhos e nada mais tinha a
aprender a respeito.

Então, eu levantei a mão. Quando o Velho


me concedeu a palavra perguntei ao Frank qual o
pior defeito ou a maior dificuldade pessoal que ele
acreditava possuir. Ele, de pronto, respondeu que o
seu maior problema era o fato de ser uma pessoa boa
demais. Isto o tornava inapto ao mundo. Argumentei
que quem imagina que o seu maior defeito se trata
de uma qualidade, sem dúvida, precisa se conhecer
melhor. Enquanto ele não soubesse quem era de
verdade, ficaria desconfortável perante a vida.
Acrescentei que a infelicidade dele não era fruto
das virtudes, porém, das sombras pessoais que
o enganavam sobre predicados que não possuía.
Questionei se ele percebia o quanto era vaidoso
e arrogante; se entendia o mecanismo pelo qual
transferia para o mundo a responsabilidade pela
própria felicidade; o quanto, na realidade, ainda era
pobre em virtudes, as quais ele acreditava possuir em
excesso. Disse que ele somente sairia daquele estágio
quando fosse capaz de estar frente a frente a um
espelho sem encontrar do outro lado o personagem
que criou para si, mas diante dele mesmo, com todas
as feridas e verdades que precisava enfrentar, ou não
haveria cura. Sim, eu estava profundamente irritado
com toda aquela soberba, o que fez com que o meu
tom de voz fosse bastante agressivo. Ofendido, Frank

169
devolveu no mesmo diapasão e logo se instalou
uma enorme confusão. O debate foi imediatamente
encerrado para que os ânimos serenassem.

Sozinho, fui para a varanda do mosteiro e


sentei em uma das poltronas. O sol desaparecia por trás
das montanhas. Eu precisava me acalmar e encaixar
em mim todos os acontecimentos daquela tarde. Peguei
um caderno e um lápis para fazer algumas anotações.
Escrever me ajuda a entender a vida e a descobrir quem
ainda não sou. Passados longos minutos, o Velho se
aproximou com duas xícaras de café. Entregou-me uma
e se acomodou ao meu lado. Na necessidade de ter o ego
acariciado, puxei assunto sobre o ocorrido. Comentei de
como Frank teve uma postura soberba e, para sublinhar
os meus argumentos, repeti algumas das suas frases
mais arrogantes. Acrescentei que lhe faltou a humildade,
virtude essencial ao primeiro portal do Caminho.
O monge ficou alguns segundos em silêncio, como quem
escolhe as melhores palavras, bebeu um gole de café, e
disse: “Tudo que você falou está corretíssimo e repleto
de verdades”. Esbocei um leve sorriso de satisfação.

Em seguida, o Velho prosseguiu em seu


raciocínio: “No entanto, a verdade são como as mãos.
A mão que socorre também pode esbofetear”. Pausou
por instantes, enquanto a minha ilusão de vitória se
desmanchava no ar, e continuou: “A questão é saber
qual o sentimento lhe move. Isto define se você
pretende usar a verdade para educar ou para ferir”.

Argumentei que a sinceridade é uma virtude


valiosa, da qual não podemos abdicar. Acrescentei

170
que a verdade tem o poder de curar. O Velho
balançou a cabeça e falou: “Sim, é verdade. Desde
que acompanhada de amor, a virtude que deve estar
contida em todas as demais virtudes, aliás, o tema
da palestra de hoje. A sinceridade é uma virtude
importantíssima, é o vagão no qual viaja a verdade,
que apenas completa a jornada virtuosa quando usada
para cura. Qualquer outra intenção vazia de amor é
como locomotiva sem maquinista; tira dos trilhos o
trem da verdade com destino à luz”.

Rebati dizendo que as minhas intenções


foram as melhores. O Velho me olhou com doçura e
disse: “A postura do Frank o irritou. Sem invalidar a
perfeita análise que você fez das sombras que iludem
o nosso irmão, quando você se permitiu a raiva,
desperdiçou a oportunidade do florescimento da
compaixão e da misericórdia, virtudes primordiais
daqueles que entendem o sofrimento alheio e usam
o próprio coração como como antídoto à arrogância.
É o portal da paciência e do respeito para consigo, com
a vida e com o mundo. A humildade e a simplicidade
são os remédios para cauterizar a vaidade e o orgulho
em si próprio; a compaixão e a misericórdia cumprem
o mesmo papel em nosso coração para com as sombras
alheias. Sim, em todas as situações há que se ter
sinceridade e honestidade, desde que transbordantes
em amor”. Mirou-me nos olhos e concluiu: “São as
sutilezas da verdade”.

“Ao ser tomado pela irritação, você não mais


quis ajudá-lo a construir novas ideias, mas derrotar os
argumentos sustentados por ele. Entenda que o orgulho

171
e a vaidade que o incomodavam no Frank acabaram se
fazendo presentes em você, face a maneira rude como
quis impor a ele a sua verdade”.

Ficamos um tempo que não sei precisar


sem dizer palavra. Rompi o silêncio para dizer que
lamentava a oportunidade desperdiçada. O Velho me
olhou com doçura e disse: “Não se culpe pelo ocorrido,
faz parte do aprendizado de todos os envolvidos, cada
qual ao seu jeito. Apenas assuma a responsabilidade de
fazer diferente e melhor daqui por diante, pois a vida
é incansável nas ofertas quando estamos dispostos ao
aperfeiçoamento. Tampouco deixe que os fatos desta
tarde afetem a amizade e o bom convívio com o Frank.
Ao contrário, esse laço deve restar ainda mais forte,
pois tiveram a honra de dividir a mesma lição”.

O Velho apontou com o queixo para o caderno


sobre a pequena mesa e quis saber se eu gostaria de
anotar o trecho de uma carta que muito ensina sobre
sabedoria e amor. Respondi afirmativamente. O Velho
fechou os olhos e a recitou de cor:

“Ainda que eu falasse as línguas dos homens


e dos anjos, e não tivesse amor, as palavras seriam
apenas como o som de metal de um sino que vibra”.

“Ainda que tivesse o dom da profecia, e


conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda
que tivesse toda a fé, de maneira tal que movesse as
montanhas, se eu não tivesse amor, nada seria”.

“Ainda que distribuísse toda a minha fortuna

172
para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu
corpo para ser queimado, se eu não tivesse amor, nada
disso me aproveitaria”.

“O amor não é invejoso; não é ciumento.


O amor não é leviano, não é soberbo.
Não tem interesses escusos, não se irrita, não
suspeita mal;
Não faz acordo com a injustiça, mas faz
contrato com a verdade;
O amor nunca falha; é a centelha da
transformação capaz de tornar perfeito tudo aquilo
que, porventura, ainda restar imperfeito”.

Com os olhos mareados, me confessei


emocionado com aquele poema. Perguntei quem
era o artista, pois gostaria de conhecer mais sobre a
sua obra. O Velho arqueou os lábios em leve sorriso
e finalizou: “São as Cartas de Paulo, o apóstolo dos
gentios. Essa ele escreveu aos coríntios. Desde tempo
imemoriais, a sabedoria ensina que o amor forma os
pilares da verdade e conduz ao ápice da luz”.

173
O SAL DA TERRA

T
Encontrei o Velho, como carinhosamente
chamávamos o monge mais antigo da Ordem, por acaso,
do lado de fora dos muros do mosteiro. Ele voltava de
um passeio na floresta localizada no arredor. Como
havia chovido nos dias anteriores e o sol reaparecera,
aquela manhã estava perfeita para a colheita dos
cogumelos que germinam aos pés dos carvalhos.
Provavelmente, à noite, teríamos a sua famosa sopa.
Eu tinha saído para fumar um cigarro. Como sempre,
o monge estava bem-humorado, no bom equilíbrio
entre a alegria e a serenidade. Cumprimentou-me
com um sorriso sincero, mostrou a cesta repleta de
cogumelos e comentou que a colheita tinha sido
proveitosa. Não teceu qualquer comentário a respeito
do cigarro. Quando ele fez menção de prosseguir para
atravessar os portões do mosteiro, eu comentei que
voltara a fumar para não me suicidar. O Velho apenas
comentou: “Trágico, não”? E seguiu. Logo adiante,
deu uma pequena parada, se virou e disse: “Estarei na
cantina”. Piscou um olho como quem conta um segredo
e falou: “Ouvi dizer que um bom café é perfeito após o
cigarro”. E tornou a seguir. Com os olhos acompanhei
os seus passos lentos, porém, firmes, até desaparecer
por entre os muros.

Fumei o cigarro até não restar nenhuma


guimba. Fiquei irritado com a postura do monge, que

174
considerei desatenciosa com a minha dor. A minha
cabeça estava tomada por um torvelinho de ideias
desencontradas. Nenhuma tinha força para me alegrar.
Encontrei com o Velho na cantina. Ele estava sentado
na última cadeira da enorme mesa coletiva. Sozinho,
parecia distraído com os seus pensamentos diante de
uma xícara de café e um pedaço generoso de bolo
de aveia, acompanhado de uma grossa fatia do
delicioso queijo produzido na região. Cheguei na
ofensiva. Acusei-o pela insensibilidade de fazer pouco
do meu sofrimento. Nem mesmo a possibilidade de
cometer um suicídio o comoveu. O Velho me olhou
com doçura, fez sinal com o queixo para eu me sentar
ao seu lado, se levantou e trouxe uma caneca cheia
de café para mim. Tornou a se acomodar e disse:
“O drama é para os fracos”, deu uma pequena pausa
e prosseguiu: “Cada um tem os problemas na perfeita
medida das lições de que precisa, nem mais nem menos.
Não perca tempo com lamentações estéreis e cenas
inúteis. Ao invés disto, aproveite a chance oferecida
para aprender e se transformar”. Bebeu um gole
de café e prosseguiu: “No mais, não precisa se
comportar como um menino que foi pego em plena
travessura. Você conhece todas os malefícios que
envolvem o cigarro e tem plenas condições de fazer as
suas escolhas. Acredite, não há qualquer recriminação
da minha parte. Fumar fora do mosteiro é um direito
seu que não diz respeito a ninguém. Portanto, relaxe.
Não fumo porque não gosto e quero aproveitar
de maneira saudável o meu lapso de tempo nesta
existência; é uma das maneiras que tenho de agradecer
e respeitar o universo por esta oportunidade.
Além disso, outro motivo pelo qual não fumo, é

175
para não perder o paladar. Ficar sem o sabor dos
alimentos deve ser ruim; perder o gosto pela vida é a
tristeza maior”.

Em seguida, me lembrou que éramos membros


da Ordem Esotérica dos Monges da Montanha –
OEMM – e este nome não era pelo mero fato de
o mosteiro se localizar no alto de uma montanha,
mas por ser o Sermão da Montanha o eixo principal
de nossos estudos. Este valioso legado filosófico
tem a profundidade que cada um estiver disposto a
mergulhar. Virou-se para mim e citou de cor um dos
trechos: “‘Você é o sal da terra. Se o sal perde o sabor,
o que restará? Perde-se o sentido da vida’”.

Sem confessar que, de fato, tinha ficado sem


graça por ter sido pego fumando, falei que não havia
entendido a ligação entre o trecho do texto e o meu
atual momento de vida. O Velho manteve a paciência:
“No plano físico o sal é o principal tempero dos
alimentos. Como tudo na vida, o equilíbrio se faz
necessário. Uma comida bem temperada se torna mais
saborosa; com sal em excesso fica intragável; sem
sal restará insossa e despida de qualquer interesse.
Em metáfora perfeita, assim é na esfera espiritual:
o sal da vida é a disposição, o ânimo, a alegria pelo
aprendizado, pelo aperfeiçoamento pessoal, pelo
compartilhamento das virtudes que adquirimos aos
poucos, pela beleza do Caminho, mesmo entre flores
e espinhos. Pela percepção do amor e da sabedoria do
universo ao se movimentar dentro da gente, tanto na
construção de um mundo melhor, quanto na formação
do mestre que um dia seremos”. O uso harmonioso do

176
sal é necessário tanto na cozinha quanto na vida: em sua
ausência, perdemos o gosto pela busca e atolamos no
charco do desânimo e da agonia; em excesso, seremos
atrapalhados pelas brumas que impedem o melhor
olhar, descambando no precipício do fanatismo”.

“Ser o sal da terra é compartilhar a alegria e


a esperança que mantemos vivas dentro da gente; é se
movimentar com a convicção que trazemos na alma
todo o poder do universo, pois já conseguimos sentir
isto, e esta força precisa se manifestar através das nossas
escolhas. Caminhar livre e em paz é o exemplo que
ajudará a temperar o mundo”. Mordiscou um pedaço
de bolo e continuou: “Deixar de ser o sal da terra é
o outro lado, uma das faces sombrias da existência.
Equivale a se perder no Caminho, restar sem rumo,
desencontrar de si mesmo, restar aprisionado no quarto
escuro da inércia e dos medos descabidos”.

“Convém lembrar que na época em que o


discurso foi proferido, o sal era o método usado para a
conservação dos alimentos. Não é diferente no plano
espiritual, somos os responsáveis por manter acesos
os princípios dignos da vida, os valores nobres da
luz, a essência divina do ser, revelando nas atitudes
corriqueiras do cotidiano o sagrado que está oculto em
todas as coisas; é encontrar a beleza de toda a gente. Ser
o sal da terra é conservar os seus sonhos mais lindos
apesar de todas as dificuldades inerentes ao Caminho”.

Tentei impedir o choro, mas não consegui.


O Velho esperou pacientemente que eu parasse de
chorar e brincou: “Prove as suas lágrimas, elas têm sal”.

177
Ri enquanto soluçava. Ele prosseguiu: “Os suicidas
não têm por costume avisar sobre o ato de desespero e
escuridão que cometerão. No entanto, aqueles que se
sentem desamparados e, em última análise, precisam
de atenção, costumam usar esse artifício infantil”.
Eu confessei que não sabia como lidar com os meus
problemas. Ele sugeriu: “Fale; exteriorize todos os
seus sentimentos, toda a sua dor, todos os fatos que o
oprimem”. Perguntei se ele me ajudaria. A resposta foi
doce e sincera: “Não sei se poderei ajudá-lo. Apenas
sei que você, mais do que qualquer outra pessoa, possui
tamanho poder para ajudar a si mesmo. Toda a luz da
qual precisa está adormecida em seu âmago. É preciso
acendê-la. Ao falar, você irá ouvir a sua própria voz,
as suas razões, o tom das emoções e a insensatez que
o alimenta. É um ótimo exercício. Perceberá, também,
que enquanto transferir a outros a responsabilidade
pela sua felicidade, estará adiando e abdicando do
poder que possui sobre a própria vida. Isto fará com que
comece a entender quem você é e as transformações
que precisa operar em si mesmo. Apenas assim a vida
se modifica de verdade”. Eu quis saber se existia outro
método para eu não me expor tanto. O Velho aquiesceu
com a cabeça: “Sim, a meditação é outra maneira
eficiente de chegar ao mesmo resultado. A escolha será
sempre sua”.

Confessei uma certa vergonha de expor as


minha mazelas e preocupações. O monge franziu
as sobrancelhas e disse: “A simplicidade é a
virtude de nos aceitarmos do jeito que somos, sem
subterfúgios, personagens ou medo. A simplicidade
é o poder da transparência, uma poderosa ferramenta

178
para as transformações necessárias ao ser”. Pausou
por instante e ofereceu: “Caso queira, estou aqui
para ouvir”.

Imediatamente comecei a derramar todas as


minhas agonias e sofrimentos. Expliquei como estava
insatisfeito com a minha vida profissional e o no meu
relacionamento afetivo, que depois de anos, me parecia
insuportável. Como era de esperar, culpei os sócios e
a namorada pelas minhas dores. Acusei-os de teimosia
ao insistirem em agir erradamente, cada qual da sua
maneira e com as suas motivações e deficiências.
Falei até cansar. O Velho tornou a encher as nossas
canecas com café, me ofereceu um olhar bondoso, e
disse: “Consegue ver as limitações alheias com muita
precisão, não? E quanto às suas próprias dificuldades?
Não ouvi sequer uma única palavra. A transferência
de responsabilidade sobre a própria felicidade é
uma sombra ardilosa e tentadora. É muito cômodo
culparmos os outros ou lamentarmos a falta de sorte
para justificar o nosso sofrimento. Todas as vezes em
que caímos nessa esparrela, abdicamos do sal da vida”.

“Os outros são como têm que ser, com


suas dores e delícias, cada um em sua busca, com
o nível de consciência e capacidade amorosa que
possuem no momento. Ninguém tem a obrigação
de se modificar para se encaixar em nossos desejos
ou necessidades. Você não precisa de ninguém para
ser feliz. Entender este conceito é o primeiro passo
para se permitir as asas da liberdade. No entanto,
não podemos esquecer que os relacionamentos
pessoais são imprescindíveis como oficinas de

179
aperfeiçoamento, pois as dificuldades opostas e as
decepções provocadas pelo mundo são eficientes
ferramentas utilizadas no processo evolutivo, por nos
movimentar e nos reinventar, sempre com um jeito
diferente e melhor de ser e viver. Justo as enormes
dificuldades e limitações alheias me levarão a entender
quais virtudes ainda estão adormecidas em mim e
que necessitam florescer, assim como os cogumelos
precisam das noites de chuva para germinarem ao sol
da manhã. O outro se faz indispensável para que eu
possa acender e compartilhar toda a luz que existe
em mim, pois o que ainda não consigo dividir, em
verdade, não tenho nem sou. Assim, benditas sejam
as frustrações! Perceber isto é construir o jardim da
paz onde antes existia um campo de batalha”. Sorriu
e concluiu: “Dentro do próprio coração”.

Ficamos um longo tempo sem dizer palavra.


Quebrei o silêncio para me confessar uma pessoa fraca.
Admiti que me sentia sem forças para ultrapassar
as barreiras que se apresentavam em minha vida.
O Velho franziu as sobrancelhas, como fazia quando
aumentava o tom de seriedade, e disse: “O sal da terra
tem a sua genesis no autoconhecimento. Esta é a fonte
no qual todo o poder se alimenta, é a raiz da magia da
vida”. Deu uma pequena pausa e prosseguiu: “Quanto
mais uma pessoa se conhece, de verdade, mais forte ela
se torna. O contrário também é verdadeiro, atrasando
a jornada do indivíduo nas paisagens da ilusão, das
desculpas e lamúrias. O insucesso pode ser uma pá
de cal a enterrar um sonho ou um poderoso adubo a
impulsioná-lo; a escolha será sempre sua”.

180
“Aceitar quem você é sem subterfúgios e
mentiras, mas com a responsabilidade e o ânimo de
se aperfeiçoar, concede o poder de modificar tudo ao
seu redor na medida que transformar a si mesmo.
O método mais eficiente de escalar os obstáculos da
existência é com o burilamento das virtudes no ser.
As virtudes são os elementos da luz que dissiparão
a escuridão; elas mostram que os muros mais altos
podem se tornar da altura de um risco de giz no chão”.

Arqueou os lábios em leve sorriso e elencou


algumas possibilidades: “Humildade e simplicidade
para admitir a perfeição que ainda não possuímos e,
portanto, não podemos exigir dos outros; compaixão
para com as dificuldades e limites alheios; misericórdia
para abraçar o mundo e extinguir as indiferenças;
pureza e justiça para estancar a maldade em si
mesmo; delicadeza, bondade e paciência a qualquer
instante; coragem, esperança e fé para seguir em
frente; amor para iluminar todos os cantos escuros
que encontrar”. Ficou com o olhar distante por
algum tempo e complementou: “As possibilidades de
aplicar as virtudes como instrumentos de superação
e evolução são infinitas”. Mirou-me nos olhos e
sugeriu: “Invente as suas e seja feliz, Yoskhaz.
Não desperdice o sal da terra”!

Em seguida, o Velho pediu licença dizendo


que estava na hora da sua meditação e se retirou. Antes,
porém, bebeu todo o café da sua caneca, deu de ombros
e aconselhou como quem não tem maiores pretensões:
“Beba sempre até o final”. Na hora não entendi este

181
último comentário. Fiquei sentado na cantina por um
tempo que não sei precisar. Somente, então, percebi
algo que nunca tinha reparado: que todas as xícaras
do mosteiro tinham um coração insculpido no fundo,
visível apenas quando estavam vazias. Sorri sozinho.
Em seguida gargalhei, comecei a bailar em volta da
mesa e abençoei o Velho por sua saudável loucura.
Entendi que se eu fosse ao fundo de mim mesmo, me
esvaziasse dos condicionamentos, ideias e sentimentos
turvos, enxergaria o que nunca tinha visto: o meu
próprio coração. Ali está o poder da vida; ali brota o
sal da terra”.

182
UM FIEL CARCEREIRO

T
Era domingo. Aproveitei a carona do
caminhão que entregava leite no mosteiro e desci
rumo à pequena e charmosa cidade localizada no
sopé da montanha. Eu queria assistir à missa em sua
bela catedral gótica, em frente à praça. O dia ainda
amanhecia enquanto eu andava pelas ruas sinuosas
calçadas com pedras seculares, ouvindo o barulho dos
meus passos, tamanho era o silêncio, em busca de uma
caneca de café para acordar os pensamentos. Arrisquei
passar na oficina de Loureiro, o sapateiro amante dos
livros e dos vinhos, onde os horários inusitados de
funcionamento eram tão famosos quanto a boa prosa
do seu proprietário. Sorri comigo mesmo ao ver a
clássica bicicleta de Loureiro encostada no poste.
Quando entrei na loja fiquei surpreso ao encontrar uma
mulher sentada ao balcão, ao lado do artesão, entre
café e lágrimas. Fiz menção em dar meia-volta, mas o
sapateiro ofereceu um sorriso sincero quando me viu
e convidou para sentar com eles. Fomos apresentados
e Loureiro, sempre gentil, logo colocou uma xícara
fumegante com café fresco nas minhas mãos. Nancy
era uma pediatra muito requisitada e querida na
cidade. Ela foi muito simpática e não se incomodou de
eu participar da conversa. Apesar de ser uma mulher
em idade madura e inteligente, sofria muito em seus
relacionamentos afetivos. O ciúme a atormentava
desde a adolescência quando começou a namorar.

183
Embora já tivesse iniciado a narração dos
seus lamentos, pude entender que ela namorava um
artista plástico de uma cidade próxima e o fato de ele
nada exigir dela, deixava-a insegura e desconfiada.
Reclamou que se sentia solta demais e desconfiava
dos sentimentos dele, pois “quem ama, cuida”.
O relacionamento tinha se deteriorado pelo fato de
ela, cada vez mais, chegar para visitá-lo sem avisar.
No início ele adorava, depois percebeu se tratar de
tentativas de dominação e controle inspiradas pelo
medo que alimenta o ciúme. A situação se agravou
quando Nancy insinuou a sua desconfiança em
relação ao comportamento dele, até porque tivera
conhecimento de casos de infidelidade por parte do
namorado em relacionamentos anteriores. Ela sofria
muito em razão de toda essa instabilidade emocional.

O sapateiro se manteve calado por instantes,


porém os olhos de Nancy ansiavam por uma palavra
que a ajudasse na escuridão em que se encontrava.
Loureiro bebeu um gole de café e disse: “Se devemos
cuidar de todos e do mundo, é verdade quando você
diz que devemos cuidar com maior atenção daqueles
que amamos. São os laços do amor que nos unem
à eternidade, mas que devemos ter cuidado para
não apertar em nó”. A médica disse que não tinha
entendido. O artesão foi didático: “Cuidar significa
querer o bem do outro, diferente de dominar o outro,
controlar as suas vontades ou se tornar proprietário
dele. Quando desejamos o melhor para o outro, não
podemos esquecer que, muitas vezes, o melhor para
ele, de acordo com o momento em que vive, é partir
sozinho em busca de novas paisagens. Neste caso,

184
cuidar bem é o ato de desejar, com sinceridade, uma
boa viagem. Os relacionamentos amorosos são laços,
justamente para que possam se desfazer suavemente,
com sabedoria e amor. Mesmo quando o amor se esgota
na afetividade íntima de um casal, deve permanecer
vivo na esfera do convívio comum, do bem-querer e da
amizade. Ao contrário, ao amarrar o relacionamento
em nó, para desatá-lo, não raro, precisamos cortá-lo.
Os cortes sangram; causam um trauma desnecessário
no fio que mantém, em fina trama, todos unidos,
solidários e independentes ao mesmo tempo. Se ao
invés de dar um nó aprendermos a fazer o laço com
suavidade e respeito, nunca mais precisaremos cortar,
sangrar e sofrer”.

Nancy alegou que apenas sentia ciúme em


razão de o comportamento do namorado gerar muita
insegurança nela. Loureiro foi paciente, embora
incisivo: “Esse argumento é um contrassenso nascido
de um olhar viciado em lentes que deturpam a imagem
e ofuscam a claridade. Você pode não concordar com
as escolhas de quem quer que seja, mas elas não
podem afetar a sua felicidade. Permitir que o desejo
alheio seja crucial para a sua vida é transferir o eixo
da felicidade, da liberdade e da paz para o outro,
abdicando do poder pessoal sobre essas conquistas
espirituais. Se você deseja ser feliz, nunca conceda a
ninguém tamanho poder sobre a sua vida”.

“O modo de viver do outro deve ser sempre


respeitado. Cada um decide o que é melhor para si, os
seus gostos, dissabores e lições, de acordo com o seu
momento evolutivo. Isto vale para todos, inclusive para

185
você. No entanto, o medo é uma emoção ancestral que
nos acompanha desde tempo imemoriais, aconselhando
a dominar tudo aquilo que pode frustrar os nossos
desejos ou nos fazer sofrer. Temos uma enorme
dificuldade em lidar com as frustrações e decepções.
Por ignorância, nos iludimos que a felicidade
depende de mudar e adaptar o outro ao nosso agrado.
Não suportamos contrariedades, como se a negativa
alheia pudesse furtar aquilo que ninguém pode levar:
o equilíbrio indispensável à plenitude. Ela nos mantém
suspensos no ar”.

“Aprisionar os outros, seja através de


mecanismos de controle, seja por meio de críticas
severas, está tão enraizado no inconsciente que muitas
vezes nem percebemos o próprio comportamento.
Acaba por virar um vício. Assim, o ciúme faz com que
o relacionamento se torne uma prisão imperceptível
por não vermos as suas grades. Como todo presídio
possui a necessidade da vigilância, acabamos
também aprisionados. O prisioneiro resta algemado
ao carcereiro sob o pretexto absurdo de amar”.

“Percebe que o ciúme nada tem a ver com


o amor? Na verdade, o ciúme é uma característica
daqueles que ainda não aprenderam a amar. O teste é
simples: se você sente ciúme, ainda não conhece o amor
em toda a sua amplitude e possibilidade de libertação”.

“Cada um traz consigo o seu olhar e as suas


vivências. Sempre haverá diferenças a serem alinhadas
em um relacionamento, em constante exercício de
ensinar e aprender ao mesmo tempo. Cabe entender o

186
momento de superar as dificuldades para harmonizar a
relação; assim como, é preciso aceitar a hora de partir.
Qualquer que seja a escolha, deve estar revestida de
amor, dignidade, liberdade e paz. Assim também deve
ser recebida”.

“Por mais que o ego grite ao contrário, entenda:


quando um decide por partir, será bom para os dois.
Teimar em manter de pé aquilo que não mais existe é
a negação de aceitar o final de um ciclo e se recusar a
tudo de bom que um novo ciclo inevitavelmente trará.
Esta falta de entendimento é a razão mais comum dos
sofrimentos afetivos. Por que ao invés de cortar as asas
alheias não passamos a admirar e aplaudir os voos
solos? Isto nos trará a leveza necessária no uso das
próprias asas e nos proporcionará as belas paisagens
nos voos que ainda faremos”.

A médica confessou que o comportamento


do namorado trazia a sensação de que ele não a
considerava boa o suficiente para ficar ao seu lado.
Loureiro sacudiu a cabeça e disse: “O ego, enquanto
desalinhado à alma, sustenta a absurda ideia de que
somos ruins pelo simples fato de o outro não mais
querer compartilhar a vida afetiva conosco. Não se
trata de ser melhor ou pior, é apenas uma questão
de sintonia. As pessoas devem se manter unidas por
afinidade. Interesses e consciências mudam; isto é
bom e natural. Em qualquer relacionamento saudável,
o casal, enquanto estiver na mesma frequência
energética, se manterá unido em laço; quando não, ele
se desfará com suavidade; sem cortes ou traumas, com
todo respeito ao próprio amor. Insistir em manter o

187
que não mais existe ou em manipular a vontade alheia,
é teimar pela dominação que tanto sofrimento traz.
Para ser livre é preciso amar a liberdade; para viver
o amor é necessário amar o amor. Para ser amor é
indispensável ser livre. Ou não passará de um cárcere,
mesmo que doce, dourado e sem grades, onde todos
os envolvidos restam aprisionados, em uma enorme
penitenciária planetária construída pelos tijolos do
ciúme e do medo”.

“Há casos mais cruéis e insensatos, ocorridos


quando o indivíduo se mantém aprisionado, sozinho,
torturado pelo ciúme e o vício da dominação,
mesmo quando o outro já partiu. É a imaturidade de
ser livre, o medo da responsabilidade pela própria
felicidade que um dia terá que assumir”. Bebericou
o café e aprofundou o raciocínio: “A maturidade é
fundamental na conquista da liberdade. A negação em
se responsabilizar pela construção interna da própria
felicidade cria a dependência quanto à vontade e aos
desejos alheios. Transformar esse olhar é o início para
a estrada para paz”.

Nancy confessou que desde menina tinha o


sonho de viver e se dedicar a uma pessoa por toda a
vida. No entanto, cada vez mais, parecia distante de
alcançá-lo. O sapateiro disse com doçura: “Amar é o
ápice da vida; ser amado é um bálsamo maravilhoso.
Os sonhos não devem envelhecer; no entanto, não
podemos obrigar a ninguém a viver os nossos sonhos.
Não esqueça que cada um tem os seus e todos são
belos e, em essência, são muito parecidos, ao menos
nos anseios quanto a se tornarem ferramentas para a

188
conquista da felicidade. Entretanto, a maneira como
trabalhamos essa construção faz toda a diferença,
pois, define quem somos, as circunstâncias a nossa
volta e o próprio destino. Faz também que os sonhos,
por vezes, se desencontrem pela falta de harmonia
daquele momento evolutivo. Os sonhos compõem
uma orquestra que toca no baile de todos os casais;
ora eles estarão ritmados, noutros momentos restarão
desafinados. Haverá casais em sintonia para bailes
sem fim; todavia, se não for mais possível dançar a
mesma música em razão da diferença de tom, é hora
de seguir em frente na busca por outras sonoridades,
com a mesma alegria e por respeito a você, ao outro e
a todos os sonhos do mundo. Ser livre é indispensável
para viver o amor. O amor traz consigo a paz interior
e a leveza para se manter muito além das sombras e da
dor. Ou não é amor”.

Nancy disse que a infidelidade a assombrava.


Não admitia o que denominava “traições”. Loureiro
franziu as sobrancelhas e enfatizou a seriedade que o
assunto exigia: “A fidelidade se traduz na honestidade
que devemos ter, principalmente, para conosco.
Mas, também, no trato com toda a gente, seja no
campo profissional, pessoal ou afetivo. A honestidade
é uma virtude e a sua ausência caracteriza uma
fraude. A virtude é de quem a tem, cabendo apenas
a compaixão por aqueles que ainda não a possuem.
Logo, o constrangimento será sempre de quem não
conseguiu ser sincero; jamais de quem presumiu a
pureza indispensável às boas relações”. Olhou com
doçura para a amiga e disse: “Prefiro ser enganado

189
do que enganar; prefiro liberdade, com todos os seus
riscos, a exercer o papel do vigia implacável sobre a
vida alheia. Se há alguém que preciso vigiar, é apenas
a mim mesmo para não alimentar as minhas sombras.
Não quero que as virtudes me abandonem; nelas estão
as minhas asas”.

A boa médica quis saber como o sapateiro


reagiria ao saber que foi enganado em um namoro.
Loureiro respondeu: “Perdoar sempre”. Pausou e
continuou o raciocínio: “A outra escolha é a mágoa.
Enquanto o perdão liberta a todos os envolvidos, a
mágoa os aprisiona”. Balançou os ombros e concluiu:
“A escolha me parece simples”. Nancy acrescentou
que havia uma terceira possibilidade, o desprezo.
O artesão sacudiu a cabeça em negativa: “O desprezo
é uma mágoa disfarçada em falsa superioridade; o
ressentimento escondido na arrogância. Uma sombra
ainda mais cruel por ser difícil de identificá-la em
si mesmo”.

“Perdoar é a escolha da sabedoria e do amor.


É sábio por optar pela liberdade ao invés do cárcere
das lembranças dolorosas. A mágoa é o chicote; o
perdão, o bálsamo; a mágoa é a ferida; o perdão é
a cura. O perdão é um processo muito valioso, não
apenas por ser libertador, mas pelo aprendizado que
traz ao exercitar muitas virtudes, essenciais para a
conquista da plenitude”. Esvaziou a xícara de café e
detalhou: “O perdão precisa da humildade para que
entenda que não podemos exigir a perfeição que não
temos para oferecer; cada qual com as suas próprias

190
dificuldades. Necessita também da compaixão, para
aceitar que cada um compartilha apenas no estreito
limite do seu nível de consciência. Da misericórdia
e da paciência para entender que a flor da felicidade
tardará para germinar naquele que insiste em não
andar de mãos dadas com a sinceridade; tudo é
aprendizado, superação e evolução. E ainda da alegria,
para que apague até mesmo a menor cicatriz”.

A médica se calou. O sapateiro buscou, na


pequena estante que mantinha no fundo da oficina,
um livro de poemas da Valentina Vaz, uma monja da
Ordem, e leu o poema intitulado “Fidelidade”:

“Tudo muda.
O universo marcha em inexorável evolução.
Trocam-se as horas; os dias.
A primavera se repete sem se repetir como no
ano passado.
Toda a gente se transforma: chave infinita
da evolução.
De permanente apenas a impermanência.

Te jurei amor eterno. Fui sincera.


Porém, não sou mais aquela que proferiu as
sagradas palavras.
Mudei, como tudo mais.

Se eu for fiel às palavras,


Não serei a mim mesma.
Se for fiel a mim,
Trairei a própria promessa.

191
Não há, nem houve, mentira.

Para ser fiel a ti,


Serei infiel ao amor.

A quem devo seguir?


Ao amor que não mais ama
Ou
Ao amor que transmuta na roda do tempo?

Resta ser fiel à lembrança


Ao que havia ali, mas não mais existe aqui
E rezar para que a fiel memória
Não cometa a confidente traição”.

Os olhos de Nancy ficaram mareados.


Fez-se aquele silêncio necessário, típico de quando
novas ideias precisam encontrar a sua morada.
Em seguida, pedi licença, pois estava na hora da missa.
Convidei-os para me acompanhar e ambos aceitaram.
Andamos os três de braços dados, eu e Loureiro
ladeando a médica. Não falamos palavra, mas sentia
uma boa vibração no ar. Os olhos de Nancy traziam
um brilho diferente. Quando chegamos, como a igreja
ainda estava fechada, sentamos em um dos bancos da
praça em frente, à espera das portas se abrirem. Muitas
famílias também aguardavam, algumas sentadas
no enorme gramado, enquanto as crianças faziam
aquela algazarra boa e deliciosa. A nossa atenção
foi desviada para uma mãe que não permitia ao filho
correr com os outros meninos sob a alegação de que,
além de sujar a roupa, corria o risco de se machucar.
Por coincidência, era paciente de Nancy. A pediatra

192
foi até a mãe e, de maneira delicada, sugeriu que
não cerceasse o garoto de brincar, pois a pretexto de
cuidar do filho estava impedindo de ele ser ele mesmo
e, logo, de ser feliz. A mãe argumentou que o amava
e precisava protegê-lo dos riscos. Nancy ponderou
que os riscos eram inerentes à vida, à liberdade e ao
próprio amor. A mãe, um pouco envergonhada, liberou
o menino para extravasar toda a sua alegria. Quando
a médica tornou a se sentar do nosso lado, Loureiro
deu um sorriso maroto, piscou um olho como quem
revela um segredo, e sussurrou uma única palavra:
“Percebe?”

Nancy abaixou os olhos. Afastou-se e fez uma


ligação pelo celular. Voltou sorridente. Pediu desculpas,
mas não assistiria a missa conosco. Tinha convidado
o namorado para almoçar. Desta vez, a única surpresa
era para mostrar os novos óculos pelos quais ela estava
disposta a viver a vida. A vimos desaparecer pelas ruas
estreitas e sinuosas da pequena cidade; parecia garotar
como as crianças da praça. A leveza dava a sensação
de que os seus pés não tocavam no chão.

193
UMA VIAGEM ENTRE O TAO E A FÉ

T
Li Tzu, o mestre taoista, pediu para que eu
chegasse cedo em sua casa. Quando saí da estalagem
o céu era um manto salpicado de estrelas. Andei
pelas ruas da vila chinesa encantado com a beleza
oferecida pela Via Láctea, perdido em ilações
quanto aos infinitos mundos existentes no universo.
Encontrei Li Tzu finalizando a sua meditação diária.
Ele estendeu dois tapetes para que eu o acompanhasse
em seus exercícios de ioga. Meia-noite, o gato preto
que também morava na casa, nos observava com um
olhar preguiçoso. Claro que eu fiquei bem aquém das
posições complexas conseguidas pelo sereno ancião
chinês. Ao final, nos dirigimos para a cozinha e me
sentei à mesa, enquanto ele nos servia um saboroso
chá. Perguntei, para puxar assunto, se ele tinha o
hábito de olhar para o céu e pensar em todo o mistério
que envolve as estrelas. Ele me olhou com curiosidade,
como seu eu lhe perguntasse o óbvio, e disse: “Entender
o todo ajuda a saber quem sou; me conhecer faz com
que eu sinta o poder do todo em mim”.

Falei que já tinha ouvido isso várias vezes,


das mais diversas maneiras, variando a roupagem
retórica da tradição filosófica ou religiosa de quem
profere a frase. Li Tzu explicou: “Uma noção básica
sobre a criação do universo é um primeiro passo para
a compreensão da fé”. Argumentei que ele acabara de

194
misturar ciência com religião, duas esferas distintas,
o que me causava estranheza, uma vez que eu
conhecia a sua formação acadêmica e, acrescentei,
sabia das pesquisas nas quais havia sido laureado
na universidade inglesa que estudara quando jovem,
onde conhecera o Velho, o monge mais antigo da
Ordem. Embora Li Tzu tivesse cursado botânica e o
Velho, economia, construíram uma amizade que os
uniu por toda a vida.

O mestre taoista me ofereceu um olhar


tranquilo e disse: “Quem opõe religião e ciência em
eterna batalha não entende nem uma nem a outra.
Desde que você encare a religião, não como um
conjunto de dogmas e regras castradoras, porém, como
uma filosofia metafísica e libertadora, ao perceber
um mundo invisível e sofisticado, além dos cinco
sentidos básicos, permeando e interagindo com este,
visível e primário, permitindo a expansão do ser até
o inimaginável. Assim como a ciência, que não deve
ser vista apenas pela faceta dos avanços tecnológicos
e do conforto que proporciona à sociedade, mas,
também, como ferramenta para a evolução espiritual
da humanidade”.

“Ciência e religião são aliadas e comple-


mentares; apenas é preciso paciência e respeito, pois,
andam em compassos distintos de compreensão e
método. A religião traz para a vida as possibilidades
filosóficas que, naquele momento histórico, a ciência
ainda não consegue lidar ou explicar. A religião
deve ser entendida como uma corrente filosófica
preocupada com o progresso moral e sentimental

195
do indivíduo, e que admite a presença do mistério.
A ciência, por sua vez, busca entender o desconhecido
e a sua posterior utilização para o bem-estar de toda a
gente. O mistério é aquilo que ainda não conseguimos
provar cientificamente, como outrora aconteceu com
o uso do fogo, as doenças virais e a Lei da Gravidade,
apenas para ficar em poucos exemplos básicos; o
que não elimina, por princípio real, a existência do
mistério. Metade do conhecimento humano de hoje
não existia há um século. Curioso pensar que no
final do Século XIX, a Real Academia de Ciência,
em Londres, onde se reuniam os mais renomados
cientistas da época, declarou que o conhecimento
tinha chegado à sua fronteira final. Então, veio o
século seguinte, apresentando ao mundo a televisão,
os celulares, a internet, a tomografia, os satélites, entre
outras maravilhas, distantes da imaginação daqueles
sábios. Apenas sessenta anos separam o voo do 14-Bis,
em Paris, da chegada do homem à lua. O impossível
sonho de voar, então permitido apenas para os poetas
e loucos, se tornou banal de uma hora para outra.
O orgulho e a vaidade sobre o conhecimento são
poderosas sombras a impedir o avanço do próprio
conhecimento”. Bebeu um gole do chá e comentou:
“Sigmund Freud rompeu com Carl Jung, sob a acusação
de misticismo, quando o professor suíço sustentou,
para o criador da psicanálise, a possibilidade da alma”.
Interrompi para falar que não existe tal comprovação
científica. Li Tzu deu de ombros e disse: “Quando
perguntaram a Jung se ele acreditava em Deus, ele
respondeu: ‘eu sinto’. A percepção, mesmo quando
ainda não traduzida em fórmulas matemáticas, é
a fonte primeira na qual o conhecimento começa a

196
beber. Essa foi a gênesis do trabalho de Albert Einstein
para provar a relatividade do espaço e do tempo.
Na época, ele foi ridiculizado por muitos cientistas
e, ainda hoje, a sua tese é entendida por poucos, mas
aceita pelos alquimistas desde tempos imemoriais”.

Comentei que estávamos deixando fugir o


cerne da questão: como a criação do universo poderia
explicar a existência da fé. Tratei de acrescentar que
não acreditava na teoria criacionista, na qual Deus
tinha criado todas as coisas. Afirmei que não tinha
dúvidas quanto à teoria evolucionista, da qual o Big
Bang é passo inicial do universo. O mestre taoista
tornou a dar de ombros e revelou: “Na verdade, não
faz a menor diferença se acreditamos em uma ou
outra tese. Qualquer uma delas nos levará a mesma
conclusão”. Falei que a explicação estava vaga, confusa
e, provavelmente, equivocada. Pedi para ele explicar
melhor e que usasse a teoria científica, em razão da sua
formação universitária. Li Tzu se manteve inabalável
em sua paz, expondo o raciocínio de maneira clara
e pausada: “O Big Bang, ou a Teoria do Átomo
Primordial, sustenta que o universo, da forma como o
conhecemos hoje, se originou de uma grande explosão.
Em resumo, uma pequena massa, do tamanho de uma
bola de sinuca, de boliche ou da lua, não importa em
nada, ao explodir se multiplicou em planetas, estrelas,
meteoros, poeira, carbono, nitrogênio e outros corpos
cósmicos. Foi, também, por consequência, a raiz de
todos os seres vivos”.

Olhou-me, para avaliar como eu reagiria,


e disse: “Logo, você e o sol, por exemplo, são da

197
mesma família, pois, têm a mesma ‘mãe’. São pedaços
separados ou nascidos pela explosão daquela bola de
boliche inicial”. Fez uma pausa dramática e comentou
perspicácia: “Através de um viés puramente científico”.

Um pouco desconcertado, confessei que


nunca tinha pensado por essa ótica. Ele sorriu e
disse: “Quando Buda e Francisco de Assis chamavam
os passarinhos e as flores de irmãos e irmãs, eles
não devaneavam; eram homens à frente de seus
tempos; assim como os povos celtas e indígenas,
apenas para ficar restrito a poucos exemplos, embora
desconhecessem muito da ciência e da tecnologia,
possuíam a enorme sabedoria através da compreensão
e da importância da integração com a natureza,
pois, o sol, a lua, as árvores, os animais, os rios, a
terra e todas as coisas fazem parte de uma mesma
família, sendo indispensável a interação harmônica
da parte com o todo no avanço do processo evolutivo.
Portanto, todos, visíveis como a rosa e o espinho, ou
invisíveis, como o amor e a tristeza, são sagrados,
assim como você, em viagem de transformação.
Os hindus ensinam os mesmos conceitos há milênios”.

Questionei como tudo isso ajudaria na


explicação da fé. Ele quis saber o que eu entendia por
fé. Embora tivesse, para mim, um conceito bastante
abstrato, compreendia a fé como a certeza da sustentação
de um “poder maior”; era a esperança de que tudo que
acontece na vida, de um jeito ou outro, acabará bem.
Li Tzu sacudiu levemente a cabeça em discordância:
“Fé não é a mesma coisa do que esperança; são duas
valiosas virtudes, porém, distintas”.

198
“A esperança é a certeza de que o universo
sempre nos socorrerá; nunca na medida dos nossos
desejos, mas de nossas necessidades evolutivas.
A ciência já provou que o universo está em constante
expansão; como somos parte dele, ninguém restará
abandonado ou não haverá qualquer evolução; o
alicerce frágil compromete toda a construção dos
operários que precisam prosseguir na obra. Quando
nos movemos em sentido contrário à luz, o universo
nos interrompe de um jeito suave ou rigoroso,
a depender do grau de teimosia que possuímos.
Como bom educador, ele nos ensinará na exata régua
do nível de consciência e capacidade amorosa que
possuímos. Quando apontamos a proa na direção da
luz, ele torna a impulsionar a nave com os melhores
ventos. O problema é que nem sempre fazemos a
leitura correta do mapa e da bússola e, assim, não
raro, nos perdemos em tempestades. Mas nem os
naufrágios são de todo ruim, pois, costumam se
reverter em preciosas lições para os marinheiros
dispostos em aprender a arte de navegar e seguir a
viagem. A esperança é a virtude que nos permite
entender que, mesmo quando as coisas dão errado,
assim acontecem para que possam, mais adiante,
darem certo. De modo consistente e verdadeiro. Logo,
a esperança nunca é vã e será sempre uma grande
aliada para não perdermos a alegria no Caminho nem
o amor pela vida”.

“A fé tem a ver com a origem do universo.


Lembra que somos pedaços da mesma esfera na
explosão do Big Bang? Ora, se sou parte do todo,
o poder do todo está em mim. Sob o ponto de vista

199
científico, o meu DNA é o mesmo da luz das estrelas,
da pureza da neve, do fogo do sol. A fé se traduz em
sentir essa força em si mesmo e fazê-la pulsar para
alavancar todas as transformações e o bem infinito.
Entender e movimentar esse poder é a percepção viva
de que sou a morada de Deus”.

Interrompi para argumentar de que falávamos


de genética e átomos; não de Deus. Li Tzu arqueou
os lábios em leve sorriso e disse: “Independente da
maneira de como você concebe a força divina, seja
como um bom velhinho onipresente e onisciente, seja
como uma poderosa energia cósmica, organizadora
e mantenedora das leis universais de amor e justiça,
ou mesmo na crença da capacidade individual e
coletiva da humanidade, através da inteligência e da
solidariedade, em superar as próprias dificuldades
e avançar em sentido do progresso tecnológico e do
bem-estar do mundo sem qualquer ‘ajuda superior’,
em verdade, não faz diferença. O importante é
sentir a centelha desse poder universal em si
manifestada através dos sentimentos mais puros, e,
instrumentalizado pelas nobres virtudes, usá-la para
a transformação pessoal, que, por consequência, irá
alterar tudo à sua volta. Assim nos expandimos em
plena consonância com as galáxias”.

“Você tem o direito de achar essa retórica não


passa de uma grande bobagem e seguir uma vida de
conquistas efêmeras à medida que engorda a sua conta
bancária, se entope de ansiolíticos e aumenta o muro
da sua casa. Acreditar que a vida além da vida é uma
crença típica daqueles desprovidos de boa cultura, é

200
insistir em administrar o vazio e a falta de sentido da
vida, que a certeza da morte, inevitavelmente, traz; é
se envaidecer com a própria amargura e o sarcasmo
quanto à beleza da vida, comuns naqueles espíritos
que pela vaidade e orgulho em relação à própria
inteligência, na ilusão da superioridade, se deixam
envolver pelas sombras que o fragilizam e furtam a
verdadeira alegria da jornada”.

“Entretanto, você pode se permitir o uso da


fé para mudar o mundo na medida da consolidação
das virtudes em si mesmo, da sua evolução íntima,
com as conquistas da felicidade, da dignidade, da paz
e da liberdade que, juntas, formam a plenitude do ser.
A fé é a virtude que concede poderes inimagináveis
por despertar toda a força do universo que existe
dentro de cada um”. Deu uma pausa e concluiu:
“Este era o motivo de os cristãos ensinarem que a fé
move montanhas”. Olhou nos meus olhos e confessou:
“Movimentar a fé é ter o poder da vida disponível nas
palmas das mãos”.

Cada vez mais desconcertado, perguntei se


ele, de fato, acreditava que toda essa força era possível.
Li Tzu arqueou os lábios em leve sorriso, como se
falasse o óbvio, e disse: “A Teoria do Big Bang explica
que tudo começou com a explosão de uma pequena
massa, em razão do seu núcleo ficar aquecido ao
extremo. E por que aqueceu? Ora, a Física Quântica
já nos mostrou que tudo aquilo que anteriormente
entendíamos como massa, na realidade, se trata de
energia condensada. Quando em movimento, a energia
acelera protóns, elétrons e as demais partículas que

201
a compõe até o ponto de mutação, então, ocorre a
explosão e, por consequência, a transformação em
algo diferente, alterando a vida ao redor”.

“O núcleo do indivíduo, como dizia Jung, é


a alma. Quando movimentamos ideias e sentimentos,
as nossas partículas divinas, levamos o ser ao mesmo
ponto de mutação. Então ele se transmuta em outro,
mudando tudo à sua volta. O que acontece com as
galáxias, acontece contigo”.

“Assim a ciência explica a criação e a


expansão sem fim do universo; assim o Tao, através
do Yin e Yang, ensina a compreensão da vida e
a evolução do indivíduo. Grosso modo, o Yang
é o lado visível e movimentado do ser e do mundo,
representado simbolicamente por uma linha contínua;
o Yin é a face oculta e quieta, representado por dois
traços partilhados.

“O Yang se move pela necessidade de


expansão, de crescimento, indo ao limite, até se
romper. É o ponto de mutação. A linha única, ao
se partir, forma duas linhas pontilhadas, o Yin, agora
em contração, pela necessidade da introspecção,
pelo entendimento do novo, aproximando uma da
outra, até se tornar uma linha una, em fechamento
de ciclo, com os devidos avanços consolidados;
então, de volta ao Yang, torna a iniciar o processo, de
expansão e, posterior, contração, agora em diferente
estágio evolutivo. Assim acontece tanto com o
indivíduo quanto no cosmos. Luz e sombras, fogo e
gelo, destruição e criação. Ação e reflexão, atitude

202
e quietude, alegria e calma; polaridades que animam e
impulsionam a vida. Vale lembrar que ação e atitude
representam o movimento externo, que deve ser
firme e sereno, nunca agressivo; reflexão e quietude
significam o movimento interno, que jamais deve ser
confundido com a estagnação. Como o final de um
ciclo será sempre o início de outro, os movimentos
devem prosseguir em expansão e contração, em
infinitas transmutações; assim é com as estrelas e
com as pessoas. Essas polaridades representam a
força interior que equilibra, movimenta e transforma.
É o Tao, em essência, tal e qual a fé”.

Ficamos um longo tempo sem dizer palavra.


Era o movimento para adequar aquelas novas ideias
em mim. Quando quebrei o silêncio, argumentei
que, sendo verdadeira a tese do mestre taoista, a fé
é poderosa ao extremo. Li Tzu me olhou com
bondade e disse: “A ciência permite possibilidades
maravilhosas; ela nos mostra como funciona
o universo. A fé alça voo para o inimaginável;
coloca o poder do universo em suas mãos”. Deu de
ombros e finalizou: “Usar essa força é uma questão
de sabedoria e amor. É uma simples escolha”.

203
ALÉM DO FIM DO TÚNEL

T
Ao lado de Loureiro, o sapateiro amante dos
livros e dos vinhos, buscávamos um restaurante que
ainda servisse almoço no meio da tarde. Tinha chovido
forte durante todo o dia. Aproveitamos a esteada para
singrarmos as ruas estreitas e tortas da pequena e
charmosa cidade localizada no sopé da montanha que
acolhe o mosteiro. As pesadas nuvens deixavam o céu
escuro e fizeram com que os lampiões se acendessem
mais cedo do que de costume. Conversávamos de
maneira alegre e vadia, como dois amigos que se
sentem felizes pelo simples fato de estarem juntos,
enquanto desviávamos das poças d’água formadas
no calçamento contruído com pedras seculares.
Ao entrarmos no restaurante nos deparamos com
Carlo, um amigo em comum. Tomamos um susto.
Nem de longe parecia aquele homem confiante,
bonito e bem cuidado que estávamos acostumados a
ver. Tínhamos nos encontrado há menos de um mês
e ele aparentava estar muito bem. Naquele dia era
o reverso da pessoa que conhecíamos. Carlo estava
abatido, encurvado, sem viço, parecia um espectro
de si mesmo.

Nos recebeu com a alegria possível ao seu


coração naquele momento. Nos convidou para sentar
à mesa com ele e o acompanhar em uma taça de tinto.
Perguntei se ele almoçaria conosco e a resposta foi

204
negativa. Há dias estava sem apetite. Acrescentou
que a sua vida tinha virado ao avesso de uma hora
para outra. Carlo tinha um bom emprego; trabalhava
na sede de uma multinacional situada em uma
metrópole não muito distante, a apenas uma hora
de trem. Na semana anterior, ao chegar na empresa
foi chamado por um diretor e informado que haveria
uma reformulação nos quadros funcionais. Alguns
cargos seriam extintos, entre os quais, o seu.
Nem lhe foi permitido voltar à sua sala; os seus
pertences pessoais já estavam acondicionados em
uma caixa, sendo entregues naquele instante. A verba
rescisória seria depositada em sua conta bancária no
dia seguinte. Passados alguns dias, a sua esposa, com
quem esteve casado por quase dez anos, comunicou o
fim do matrimônio. Ela estava apaixonada por outra
pessoa e, com a mala pronta, partiu em seguida.

Acrescentou que se sentia no fundo do poço.


A vida estava escura e, pior, não havia qualquer sinal
de que uma luz pudesse se acender. Imediatamente,
tentei animá-lo com um conhecido discurso de
superação, do tipo “agora é pegar o impulso no fundo
para retornar à tona”. Ele se confessou sem forças
para superar aquele momento e reconstruir a sua vida.
Foi quando Loureiro nos surpreendeu ao afirmar:
“Por enquanto, o melhor é continuar no fundo do
poço. Não é hora de voltar”.

Olhei para o sapateiro com censura, como


quem pede um pouco de misericórdia. Carlo se
espantou e chegou a pensar se tratar de uma brincadeira,
claramente inoportuna. Loureiro começou a construir

205
o seu raciocínio: “O mundo somente se desmorona
quando a alma está desequilibrada”.

“Se ele tomar impulso no fundo para


voltar agora, retornará no mesmo estágio em que se
encontrava, ou pior, alimentado por mágoas e desejos
vingança ao transferir a terceiros a razão da sua queda”.

Interrompi para argumentar que a inércia,


neste momento, poderia estimular os mesmos
sentimentos sombrios ou engatilhar um processo de
tristeza e depressão. O sapateiro sacudiu a cabeça
e explicou: “O fundo do poço pode ser visto com
sordidez por muitos, porém, com a devida atenção e
calma, pode ser abraçado como um lugar de silêncio
e quietude, propício para a reflexão e a meditação.
A oportunidade perfeita para entender quais as
escolhas equivocadas que o levaram até lá”.

Tornei a interromper para dizer que era um


absurdo acreditar que alguém fosse ao fundo do poço
por livre e espontânea vontade. Carlo me olhou como se
eu falasse por ele. O sapateiro não perdeu a calma e foi
pedagógico: “Esse é o perigo do Carlo retornar agora à
tona. Provavelmente voltará do mesmo jeito, na ilusão
de que foi empurrado pelos outros. As tempestades
apenas existem para corrigir as rotas dos marinheiros
que ainda não sabem navegar”.

“Antes da tempestade o mar fica encrespado,


o vento anuncia a mudança do tempo e o céu, ao longe,
sinaliza com nuvens pesadas. Cabe a cada um, capitão
da própria nau, manter ou mudar de direção. Assim,

206
os naufrágios encontram aqueles que insistem em
não ler os sinais. Porém, nada resta de todo perdido,
pois os naufrágios acabam por formar os melhores
navegadores; a vida é uma escola formadora de grandes
mestres”. Deu uma pausa e concluiu: “Desde que se
esteja disposto a aprender com ela”.

“O fundo do poço é sempre uma escolha de


quem caiu”.

“A aceitação dessa realidade é o primeiro passo


para afastar eventuais ressentimentos e a vitimização
que tanto retarda a evolução. Enquanto o indivíduo
acreditar que o responsável pelo seu sofrimento é outra
pessoa, não iniciará o processo de transformação, cura
e libertação da prisão em que se colocou”.

“Todos têm as mesmas condições de alcançar


a plenitude, traduzida pelas conquistas da felicidade,
da paz, da liberdade e da dignidade pessoais. Entender
a queda é aprender quais os movimentos foram
equivocados e, daí em diante, passar a fazer diferente e
melhor. É permitir o florescimento de virtudes ainda em
semente no âmago do ser”. Olhou para Carlo com sincera
compaixão e disse: “Você pode interpretar o fundo do
poço como maldade alheia, conspiração infame do
universo e ansiar em voltar à tona com aura de super-
herói. Aliás, este é o desejo mais comum e infantil,
sempre movido por orgulho e vaidade em sonhos de
vinganças vis e de poder efêmeros e inconsistentes”.

Esperou o garçom abrir a garrafa e encher


as taças. Bebeu um gole e prosseguiu: “No entanto,

207
pode, no fundo do poço, começar a construir um
túnel. Nunca como fuga da realidade, mas em busca
de uma nova realidade, com possibilidades nunca
antes imaginadas. Voltar à tona, no mesmo lugar,
reconstruir a vida sobre os mesmos alicerces, o mesmo
padrão antigo de ser e viver, é perpetuar a estagnação
através de outra roupagem. É preciso conhecer as
possibilidades que estão além do fim do túnel para
que haja transformação efetiva e verdadeira. Caso
contrário, viveremos a maldição de Sísifo, o mito
grego, que empurra todos os dias uma grande pedra
para o alto de uma montanha, da mesma maneira,
que quando próxima ao cume, teima em rolar para
baixo, em constante repetição, fadado ao insucesso.
O fim do poço tem que ser o início do túnel a permitir
alcançar a luz desconhecida, de um jeito diverso do
anterior, com verdadeiro avanço íntimo”.

“É hora da humildade e da determinação,


duas preciosas virtudes. O fundo do poço, em razão do
silêncio e da quietude, é o lugar ideal para ficar frente
a frente consigo mesmo, em perfeito espelho, sem a
distorção das máscaras que criamos para aceitação
social, longe dos personagens que inventamos para
sustentar as sombras do orgulho e da vaidade, sem a
fuga da responsabilidade pela própria felicidade, sem
as distrações rasas que têm apenas o intuito de adiar
esse importante encontro marcado: saber quem somos
de verdade, gatilho das grandes transformações”.

“O indivíduo que sabe realmente quem é traz


para si todo o poder da vida, se torna capaz de superar
as mais duras dificuldades; em contrapartida, aquele

208
que se desconhece será sempre uma pessoa frágil,
necessitada de artifícios aparentes de ilusão, vulnerável
às menores decepções. O autoconhecimento permite
entender a sua capacidade e as virtudes que já possui
para fazer um bom uso delas. Reconhece, também,
as imperfeições ainda existentes e as virtudes que
faltam germinar, instrumentos imprescindíveis à
evolução. Humildade e determinação são os ventos
impulsionadores dessa travessia, da busca pelo
tesouro escondido a espera de ser revelado em prol
de si mesmo e para o mundo. Se soubermos fazer a
leitura correta do mapa da vida, perceberemos que o
fundo do poço é a permissão amorosa para o início de
uma viagem a um maravilhoso mundo desconhecido,
tão longe e tão perto. O próprio coração; a essência
do ser e a semente sagrada do universo”.

Reclamei, entre irritado e incrédulo, com a


dureza de Loureiro para com o nosso amigo. Carlo
concordou comigo e disse que não merecia aquele
tratamento por parte do sapateiro, se levantou e saiu.
O artesão manteve o semblante sereno e, diante do
meu olhar inquiridor, deu de ombros e disse: “Sei que
fui duro com ele, mas fiz o que penso ser melhor.
Sem transformação não há avanço. A verdade pode
ser um açoite que fere; então, dói. Ou o bálsamo que
cura; então, liberta. Depende do sentimento de quem
a profere; movimentei-me por amor”.

Passaram-se vários meses sem que tivéssemos


qualquer notícia de Carlo. Certo dia, estávamos
almoçando no mesmo restaurante quando fomos
surpreendidos pela sua chegada. Ele estava muito

209
diferente do homem que era nos dois momentos
anteriores da sua vida. Nem era o arrumado executivo
da multinacional nem o homem alquebrado no fundo
do poço. Tinha uma elegância informal e estava mais
bonito do que sempre. Usava uma barba bem aparada,
calça jeans acompanhada de uma bela camisa, um par
de tênis e, mais importante, um sorriso indescritível
no rosto. Abriu os braços quando nos viu e pediu
para sentar à mesa conosco.Comentei da boa
coincidência de nos encontrarmos no mesmo
restaurante. Ele explicou que não havia nenhum
acaso nisso. O dono era um velho conhecido que, a
pedido seu, avisou que estávamos lá. Era importante
que fosse no mesmo lugar, pois aquele encontro havia
sido angular em sua vida.

Precisava agradecer ao sapateiro por suas


palavras firmes. Com lágrimas nos olhos, confessou
que na época recebeu de outras pessoas, todas bem-
intencionadas, palavras por demais açucaradas,
porém, estéreis. Reconhecia que o discurso de vítima
estava lhe estimulando à fraqueza, a tristeza e, por
consequência, a estagnação. A firmeza da retórica do
artesão o acordou do sono sombrio da acomodação
e do desvio de responsabilidade. Se a vida era sua,
logo, cabia a ele escrever a própria história, dentro
das possibilidades possíveis de superação a serem
alcançadas com o devido esforço. Sem culpa, pois
agiu com o nível de consciência que possuía na época,
mas com o compromisso pessoal de fazer diferente
e melhor dali em diante. Somente assim foi possível
assumir o protagonismo da própria vida. Entrar para
a vida adulta não era apenas arrumar um emprego e

210
casar, mas atingir a maturidade. Falou que no início foi
muito difícil, mas depois percebeu que o abandono que
sentia, na verdade, era a fantástica chance de assumir o
controle da própria vida, sempre postergado pelo fato
de culpar os outros pelos seus insucessos e decepções.
Aceitou que era a hora de ser sincero consigo ou não
sairia da infância da existência. Acrescentou que a
vitimização é cômoda, mas acovarda o indivíduo e
impede o seu crescimento. A maturidade se traduz
em aceitar a responsabilidade pelas suas escolhas,
aprender com elas e seguir adiante, a cada dia, com
um jeito diferente e melhor de ser.

Em seguida, confessou que, pelo fato de


trabalhar há muitos anos naquela multinacional, criara
um mecanismo que distribuía aos outros funcionários
muitas de suas funções, até que, por isto, se tornou
dispensável. Na verdade, inconscientemente, ele é quem
tinha provocado a sua demissão por mostrar a própria
desnecessidade do cargo que ocupava. O contrário
provavelmente aconteceria se tivesse ido além, ao se
fazer essencial. Disse que também se acomodara em
relação ao casamento. Em algum momento desistira de
manter acesa a chama do afeto que o unira à esposa,
sendo natural que ela acabasse se desinteressando
pela relação e surgisse uma lacuna a ser ocupada.
Para ser sincero, em ambos os casos, eram ciclos que
ele já poderia ter encerrado de maneira mais honesta,
seja consigo, seja com os outros. No fundo, a dor que
sentiu era apenas fruto do orgulho ao ser dispensado,
seja pela esposa, seja pela empresa. No momento que
se mostrou disposto a trabalhar isto em si mesmo,
entendeu que aquilo que acreditava ser o fundo do

211
poço, era o princípio do túnel que lhe permitiu uma
busca, então, impensada. Ao invés de retornar à tona,
como era a vontade inicial, descobriu um novo lugar,
onde havia muito mais luz. Contou que nesse processo,
à medida em que se conhecia, se transformava e tudo ao
redor também mudava. Os interesses, as vontades e as
escolhas ficaram diferentes. O que antes era primordial,
passou a não fazer qualquer sentido. Revelou que
como sempre fora apaixonado por motocicletas, tinha
aberto uma pequena oficina na garagem da sua casa.
Lá conhecera uma moça, também amante dos motores,
com quem começou a sair. O namoro e o negócio
estavam engatinhando, o dinheiro ainda era curto e
limitado, mas os passeios que fazia de motocicleta com a
namorada nos fins de semana eram longos e deliciosos.
Confessou que nunca se sentira tão livre e leve.
Vivia cada vez mais em sintonia com a sua essência e isto
o fazia feliz. Ao contrário de antes, agora, todos os dias,
acordava bastante animado com a vida. Se tudo desse
errado, tinha aprendido as possibilidades ilimitadas
de sobreviver, tinha entendido a força incomensurável
que trazia dentro de si e, agora, sabia que poderia
recomeçar tantas vezes quantas fossem necessárias.
O fundo do poço tinha sido uma bênção.

Carlo chamou o garçom. Pediu o cardápio,


iria almoçar conosco. Estava com fome. Fome de
viver, acrescentou. Rimos. Aproveitou para agradecer
ao artesão pela conversa do outro dia. Disse que
tinha a sensação de que os argumentos usados pelo
sapateiro, de alguma maneira, já rondavam pela sua
vizinhança. Faltava abrir as cortinas para que ele
pudesse vê-los com clareza e os convidar para entrar.

212
Loureiro concordou: “Sim, é como se eles estivessem
adormecidos e o nosso papo apenas os despertou,
pois do contrário, ainda seriam refutados pelo tempo
necessário para amadurecerem no inconsciente até
serem levados ao consciente. Assim expandimos o
nosso nível de percepção e mudamos a própria vida”.

Carlo acrescentou que aquilo que parecia um


triste fim, agora se mostrava como o início de uma
bonita jornada. Loureiro sorriu e finalizou: “Embora
não seja uma regra, por vezes, no fundo do poço, a
depender do comportamento de quem caiu, se abre
um túnel que permite ir além. Ir além de si mesmo.
É quando se abre o primeiro portal do Caminho.
O indigente se transforma em andarilho. Então, tudo
se transforma. Para sempre”.

213
A ARTE DE AJUDAR OS OUTROS

T
Eu e Loureiro, o sapateiro amante dos livros
e dos vinhos, tínhamos acabado de almoçar em um
dos nossos restaurantes preferidos na pequena e
charmosa cidade localizada no sopé da montanha que
abriga o mosteiro. Por saber que ainda conversaríamos
por um bom tempo, o garçom, um velho conhecido,
deixou um bule de café fresco em nossa mesa, quando
fomos surpreendidos por Paola, uma sobrinha querida
do artesão. Ela tinha entrado no restaurante apenas
para tomar um café e divagar sobre algumas questões
pessoais e ficou feliz em nos encontrar. Sentou-se
conosco e disse que era bom estarmos ali, pois queria
ouvir o que o tio pensava a respeito de algo que a
chateava nos últimos meses. Fiz menção em deixá-los
a sós, mas Paola, gentil, falou que não era necessário.
Em seguida, contou que, como o tio já sabia, namorava
com Giovani por quase quatro anos. O primeiro
período tinha sido de muitas alegrias e descobertas,
viagens e total sintonia. Com o passar do tempo tudo
parecia desandar e os desentendimentos eram cada vez
mais constantes.

Ela narrou que nesse período passou a se


interessar mais pela espiritualidade. Começou a
estudar esoterismo, meditar e praticar ioga. Disse
que no justo momento em que começou a mergulhar
mais fundo na esfera do desenvolvimento íntimo,

214
as brigas se acirraram. Os seus interesses e amigos
mudaram; Giovani passara a sentir ciúme do novo
estilo de vida dela e brigavam por situações que só
existiam na imaginação dele. Ela vinha se esforçando
para trazê-lo para esse mundo novo e maravilhoso
que descobria aos poucos, mas ele estava reativo.
Paola sabia da grandeza em ajudar a todos e reconhecia
no namorado um enorme potencial de crescimento,
pois ele tinha um bom coração. No entanto, quanto
mais ela tentava mais ele refutava a ideia. Até que
no último final de semana eles discutiram e Giovani
proferiu palavras bem agressivas.

Sem que fosse necessário pedir, o atencioso


garçom colocou mais uma xícara sobre a mesa.
Loureiro nos serviu o café e disse: “Ajudar a quem
encontramos pelas estradas da vida será sempre um
compromisso que temos com o universo. Não por
obrigação ou medo de eventuais consequências,
mas pelo entendimento de que o amor que trago em
mim deve crescer na mesma medida em que a minha
consciência se amplia. Ou não haverá evolução.
Em verdade somos todos irmãos na certeza de uma
mesma origem; em essência, somos um, na sabedoria
da semente que se reparte em mil para, depois de se
transformar em flor e fruto, tornar a virar semente
e, então, se unir as partes”. Bebeu um gole de café
e acrescentou: “No entanto, cada um floresce ao
seu tempo, dentro das capacidades individuais de
sabedoria e amor que possui naquele trecho da
existência, a depender do quanto está desperto,
pressionado por fortes influências emocionais,
condicionamentos socioculturais e de experiências

215
pretéritas, não raro desastrosas. Além disso, existe o
aconselhamento das sombras individuais e coletivas,
como o medo, a inveja, a ganância, o ciúme, entre
outras, oferecendo ilusões de vantagem e proteção.
Será sempre uma bonita batalha de superação sobre
si mesmo”.

Paola comentou que talvez fosse melhor


cada um cuidar de si. Loureiro a olhou com doçura e
devolveu com uma pergunta retórica: “E deixar que
o egoísmo alastre as suas raízes e influência? Este
é o conselho mais comum oferecido pelas sombras.
O Caminho é a estrada da luz, na qual o amor é a
rota e o destino. Avançamos na exata medida que
ampliamos a consciência em consonância com
a capacidade amorosa, pois sabedoria sem amor
costuma trazer dissabores. Para entendermos o
tamanho do coração basta prestar atenção ao amor
que já somos capazes de oferecer. Aquilo que não
conseguimos dar, em verdade, ainda não temos nem
somos”. A sobrinha se confessou perdida e sem saber
como fazer. O sapateiro foi didático: “As virtudes
iluminam as nossas melhores escolhas”.

As feições de Paola mostravam vontade


em saber mais. O tio prosseguiu na explicação:
“Para quem quer ajudar, há que se ter paciência e
respeito, por si e pelo outro; humildade, compaixão
e firmeza, medidas com mesma régua”. Tornou a
bebericar um gole de café e disse: “Assim como uma
mãe possui o sagrado ofício de colocar o filho nos
trilhos do bem, haverá o momento de cessar o auxílio
para que ele possa ganhar força, seguir em locomotiva

216
própria e decidir o destino que melhor lhe aprouver.
Da mesma maneira que não abandona a cria, ainda
indefesa, por amor, existe a hora de deixá-la enfrentar
as lições que cabe a vida ministrar, sozinho, também
por amor, para não criar um fraco. O amor precisa da
sabedoria para que possa melhor semear os desertos
do mundo. Serve tanto para quem o oferece quanto
para quem o recebe. Esta é a arte de ajudar os outros”.

A sobrinha disse não entender como aplicar


essa teoria ao seu namoro com Geovani. O artesão
enfatizou: “O mais importante é lembrar que o amor
será sempre uma ferramenta de libertação para com
todas as pessoas envolvidas, jamais de dominação”.
Paola pediu que ele fosse mais claro. O sapateiro
prosseguiu: “Sempre desejamos o melhor para quem
amamos. Então, oferecemos razões e fundamentos
para iluminar o destino da pessoa amada. No entanto,
não raro, o outro tem suas próprias convicções,
desejos, sonhos e olhares. Aceite que ele tem direito
a isto, a escrever a própria história, a traçar o roteiro
da própria viagem e, mais, todos os anseios têm
ligação direta com as lições que lhe cabem naquele
momento da vida”.

Deu uma pequena pausa e continuou o


raciocínio: “Este é o ponto em que as virtudes entram
em campo. É preciso da humildade para entendermos
que não somos senhores da verdade, tampouco
administradores da vida alheia; temos as nossas
limitações íntimas, muita coisa a aprender, entre elas,
que as diferenças entre as pessoas são as oficinas
adequadas à lapidação da humanidade”.

217
“A humildade também se faz primordial, ao
lado da simplicidade, para não esquecer, em momento
nenhum, que ajudar não nos torna superior a aquele a qual
prestamos o auxílio. Todos, em algum momento da vida,
necessitam de amparo, seja material, seja emocional.
Todo cuidado é pouco para que a ajuda oferecida não
seja exercício de vaidade, dispensando, com sinceridade,
qualquer gesto de retorno. A gratidão não deve se tornar
uma dívida. Nunca pode existir credores nem devedores
para que seja uma ajuda de verdade. O amor apenas
florescerá daquele ato se oferecido sem a imposição de
condições, taxas ou impostos”.

“As virtudes da compaixão e da paciência


também precisar estar presentes para lembrar que cada
um apenas se movimenta na medida exata das suas
capacidades, pois, não atravessar a porta pode significar
uma eventual impossibilidade em vê-la e, mais, entre
enxergar a porta e ter condições de ultrapassá-la existe
uma enorme distância; cada qual ao seu tempo e
passo, suas dores e delícias. A delicadeza é necessária
para que a ajuda não seja um peso para quem a recebe.
A sensatez será útil para saber a hora de começar, de
parar e para estabelecer os devidos limites. Por fim,
o respeito. Costumamos confundir esta sutil virtude
com emoções atávicas, obsoletas e diversas, tais como
temor ou reverência. Ao contrário do que muitos
pensam, o respeito nada tem a ver com evitar ofensas
e humilhações. Estas são situações rasas, facilmente
dissolvidas e incapazes de atingir ao indivíduo que
traz consigo as virtudes da humildade e da compaixão.
A consideração que temos em relação a liberdade
alheia é o perfeito espelho do entendimento que temos

218
sobre nós mesmos. Respeito por si mesmo significa
não conceder a ninguém nenhum poder sobre as
próprias escolhas; de outro lado, e por consequência
virtuosa, não exercer qualquer tipo de dominação
sobre a vida alheia é o perfeito exercício do respeito
para com o mundo”.

“Enfim, o detalhe mais importante é o detalhe


mais esquecido: ajudar os outros não significa escolher
por eles”.

“Quando for ajudar, afaste da mente a nefasta


ideia de que ‘tem que ser do meu jeito ou não será’.
Isto é a imposição da própria vontade sobre a vontade
alheia. Deixa de ser ajuda e se torna subjugação.
É comum errarmos quanto ao método apesar das
nossas melhores intenções. Aconselhe, oriente,
estenda mão, carregue no colo durante os momentos
mais críticos da necessidade, incentive a alçar
voos solos, pois a dignidade tem forte relação
com as próprias asas. Nunca estabeleça qualquer
relação de subordinação para que a ajuda seja real e
verdadeira. Ajude material e financeiramente quando
preciso, tendo em mente que a caridade afetiva
é extremamente mais rara e valiosa. Não tenha
dúvida de que um abraço ou a disponibilidade para
uma conversa amigável é mais precioso do que um
cheque. Acima de tudo, tenha em mente que os mais
nobres andarilhos são os que percebem a necessidade
de ajuda alheia sem que seja preciso rogá-la. Ajude
sempre em silêncio, pois divulgar o auxílio não é
amor, mas mero exibicionismo. De outro lado, aceite
amorosamente quando o outro estiver fechado e se

219
recusar a receber ajuda. Entenda, sem qualquer traço
de ressentimento, que é um direito dele. Pode ser a
falta de entendimento ou mesmo um momento de
introspecção, quietude e silêncio, o inverno no qual
o urso hiberna na escuridão da caverna para digerir
todos os acontecimentos vividos e se preparar para a
primavera da vida. Apenas mantenha a porta da sua
casa e do seu coração abertos para caso ele mudar
de ideia”.

A sobrinha comentou que nunca pensou


que uma simples ajuda pudesse ser tão complexa.
O sapateiro sorriu e disse: “A ajuda não é complexa,
ao contrário, é bastante simples. No entanto é rica
em virtudes e precisa, para se completar, estar
despida de qualquer sombra. Entende porque o
outro é fundamental em nossas vidas? O ato da
caridade movimenta muitas virtudes e aperfeiçoa
o ser. Este entendimento nos permite perceber que
quem socorre acaba mais beneficiado do que aquele
que recebeu a ajuda. Embora a plenitude, traduzida
pelas conquistas da felicidade, da paz, da liberdade,
do amor incondicional e da dignidade, seja uma
construção interna, independente do mundo exterior,
precisamos das pessoas para aprimorarmos as
virtudes, que por sua vez, iluminarão as nossas
escolhas, ferramentas únicas de evolução individual
e, por consequência, planetária”.

Paola argumentou que reconhecia o valor


de tudo que o tio falara, mas persistia a dúvida de
como proceder frente ao namorado, diante de tantas
brigas e ofensas. Loureiro franziu as sobrancelhas e

220
disse com seriedade: “Somos todos viajantes rumo
às mais diversas estações, cada qual de acordo com
a sua afinidade vibratória. Em razão desta sincronia
energética e, também, por necessidade evolutiva,
há momentos em que estaremos sós; noutros,
acompanhados por seguir na mesma direção e ritmo.
O importante é perceber o valor e a beleza de ambas as
situações. Enquanto houver sintonia, estaremos juntos
na estrada, quando em desafino, cada um deve seguir
em busca das suas músicas, lições e sonhos. Assim o
Caminho se perfaz de modo solitário e solidário, na
perfeita lição de que não dependemos de ninguém
para fazer o coração cantar melodias sinceras de amor
e felicidade, porém, precisamos do outro para nos
ajudar a afinar o instrumento pessoal, indispensável à
grande sinfonia do universo: o espírito, a verdadeira
identidade de cada um de nós”.

Arqueou os lábios em leve sorriso e disse:


“Você é livre para ficar, mas também é livre para partir.
Isto, claro, também vale para o Giovani. Essa é uma
bela e simples lição: quando a decisão é boa para um
sempre será para o outro; se houver incompreensão,
será apenas momentânea, reflexo de um ego ainda
desalinhado”.

“Apenas tome cuidado para não se enganar,


disfarçando os seus desejos mais egoístas, de querer
o outro ao seu lado a qualquer custo, sob a desculpa
de ajudá-lo. O peso insuportável e doloroso das
influências indevidas e, por isto, opressivas, sobre as
escolhas alheias, trará, por reação inevitável, o sumiço
da alegria. A leveza das relações, ainda que reste a

221
saudade, revelando o amor que transmutou para outro
estágio por ter atingido o seu limite, sempre será a
escolha mais saudável e saborosa”. Piscou o olho para
sobrinha e segredou: “Para ficar tem que ser bom;
para partir também. Sempre existe uma escolha que
tem o sagrado poder de nos tirar uma enorme mochila
de pedras das costas. O seu coração sabe qual é.
Tenha coragem para escutá-lo e seja feliz!”

Os olhos de Paola estavam perdidos em um


lugar distante. Sem dizer palavra, deu um forte abraço
no tio e foi embora. Apesar do silêncio, eu tive a certeza
de que ela ficou bem depois daquela conversa. O sorriso
que levava no rosto não existia quando chegou.

222
METADES

T
A casa de Canção Estrelada, o xamã que
tinha o dom de transmitir a sabedoria ancestral do seu
povo através da palavra, estava vazia quando entrei.
Como o bule de café ainda estava quente, me servi
de uma caneca e fui para a varanda. Uma simpática
vizinha me informou que ele estava em uma escola
próxima dali, ministrando uma animada palestra para
uma turma de adolescentes. Quando entrei no auditório,
uma jovem, de olhos perspicazes, perguntava a ele
qual a razão da nossa existência. O xamã respondeu
de pronto: “Evoluir, simplesmente evoluir”. A moça,
longe de se dar por satisfeita com a resposta, indagou
sobre o significado da evolução. Canção Estrelada
arqueou os lábios em leve sorriso e disse: “Evoluir é
ampliar o nível de consciência e expandir a capacidade
de amar. O amor é o sentido da vida. No entanto,
pelo seu enorme poder e complexidade, precisamos
da sabedoria para nos orientar nessa conquista”.
Deu uma pequena pausa e concluiu: “Embora o amor
seja a nossa essência, conhecemos muito pouco sobre
o amor”. A jovem insistiu em seus questionamentos e
quis saber qual era a conquista a que o xamã se referia.
Atencioso, ele respondeu: “Se o amor é a razão da
vida e a essência de cada um de nós, a conquista a que
me refiro é quanto à parte não revelada; ao outro que
somos e desconhecemos”. Como todo bom contador
de histórias, deu uma pausa dramática e disparou:

223
“Metade de mim eu sei quem é, a outra parte ainda é
um enigma”.

Houve um grande silêncio inicial, e em seguida,


surgiram brincadeiras e piadas. Canção Estrelada
aguardou com paciência que a alegria e o ânimo
juvenil serenassem e prosseguiu: “Não há nenhuma
novidade no que falo. Existem belíssimas poesias que
exploram o tema, assim como romances profundos
que abordam a importância do outro que nos habita”.
Um rapaz indagou a razão para conhecermos essa
outra parte de nós mesmos. O xamã disse: “Embora
essa metade esteja oculta, não significa que ela não
participe e influencie na sua vida, interferindo, sem
que se perceba, em suas escolhas. Por consequência,
em sua felicidade”.

“O outro de si mesmo quer e precisa ser


ouvido. Ele carece de entendimento e aceitação.
Como teimamos em ignorá-lo, não raro, ele se
manifesta de maneira surpreendente e desagradável.
Sabem o colega manso e cordato que, de repente,
explode em fúria sem que ninguém esperasse por
aquele comportamento? É justamente a outra metade
dele que não suporta mais continuar reprimida.
Com maior ou menor intensidade, creio que algo
parecido já aconteceu com todos nós”. Percebi
que todos os alunos passaram a ficar atentos, pois
Canção Estrelada falava de alguém muito próximo,
de uma pessoa que escondemos nos porões do
ser, cuja existência é inconfessável. Embora fosse
comum a todos, era como se um segredo pessoal
tivesse sido revelado.

224
O xamã acrescentou: “Se somente reconhe-
cemos um pedaço do que somos, restaremos
incompletos. Nunca seremos por inteiro. Assim,
desperdiçamos parte da magia da vida e do poder
do ser. Viveremos em eterno conflito com o mundo
enquanto houver uma batalha interna, travada pelas
metades separadas, e, portanto, em desarmonia.
É preciso unir uma parte à outra para fundarmos os
pilares da plenitude no coração”.

Um dos jovens questionou o motivo de


isso acontecer. Canção Estrelada foi didático:
“A principal razão é porque prestamos mais atenção
aos acontecimentos do mundo exterior do que às
transformações que ocorrem dentro da gente. Todavia,
as maravilhas da vida acontecem dentro, não fora de
nós. Por exemplo, a grande maioria das biografias que
leio retratam as conquistas mundanas do biografado,
os seus feitos diante do mundo, os fatos que lhe
angariaram fama, os seus recordes, títulos, medalhas
e troféus. Todos parecem embriagados com situações
assim e, portanto, a perseguem. Quero ler biografias
que narrem a vida das pessoas comuns, não quanto ao
progresso material e mundano, mas que falem sobre
a sua evolução espiritual. O sagrado da vida são as
transformações íntimas”.

“Interessa-me como cada frustração foi


valiosa para a conquista de um olhar mais apurado
sobre todas as coisas; o relato de uma situação em
que um abraço foi capaz de movimentar uma alma
atolada no pântano do esquecimento; quero saber
sobre uma mão silenciosa que impediu um coração de

225
despencar no abismo da tristeza; a maneira como cada
uma das virtudes que compõem a luz se manifestou
para aquele indivíduo; da flor do amor que brotou no
pântano da mágoa; do beijo que revelou as estrelas que
não existem no céu; de como uma decepção serviu
para o fortalecimento pessoal e preparou a estrada
para as conquistas fundamentais da existência como
a liberdade, a paz, a dignidade, a felicidade e o amor.
Estes são os diamantes, todo o resto é apenas o papel
reluzente do embrulho”.

“Estamos mais preocupados com a imagem


que o mundo tem de nós do que como realmente
somos. Somos condicionados a alcançar a vitória
através da competição, esquecendo de como é valiosa
a vitória pela comunhão. Então, vivemos personagens
para serem aplaudidos e reverenciados. Quando me
empenho mais na manutenção da opinião alheia sobre
mim do que naquilo em que já sou capaz de realizar, de
fato quero ou verdadeiramente sou, alimento a raiz do
orgulho. O aprimoramento excessivo da aparência faz
com que a essência seja relegada a um segundo plano.
O orgulho se mantém pela necessidade de se mostrar
melhor do que os outros ao invés de se esforçar para
fazer melhor do que fez até agora, em diálogo interno
e amoroso, cada um consigo mesmo, como maneira
de acender a luz que iluminará os próprios passos,
que, por consequência, ajudará a quem caminha
próximo. O conceito que o mundo tem sobre você
não pode ser mais forte do que a pessoa que você é
ou que pode se tornar a ser. Negar esta possibilidade
faz surgir a necessidade nefasta de se comparar, a
todo o instante, aos demais, alavancando a aparência

226
para absurda estratosfera em total esquecimento a
essência primordial. Esta é a semente da vaidade,
a triste dependência pelos aplausos do mundo, ainda que
sejam efêmeros, imerecidos, falsos, fúteis e rasteiros”.

“Ao me manter nessa corrida insana contra os


outros em esquecimento de mim mesmo, abdico de uma
outra parte, que, abandonada, deixa de oferecer tudo
aquilo que me falta. Para compensar o enorme vazio
que existe em mim, crio uma enorme variedade de
fantasias e, pior, passo a acreditar nelas, me afastando
cada vez mais da verdade essencial. Máscaras sociais,
profissionais e até mesmo afetivas. Tudo isto porque
temos medo de enfrentar as críticas da tribo que
idolatramos e desejamos pertencer”.

“O medo...”. Deu uma pausa como se a


palavra o levasse a um lugar distante e também para
sublinhá-la. Os alunos se entreolharam como se esse
sentimento fosse um segredo velado entre quase
todos. Em seguida, o xamã se aprofundou: “O medo
da negativa, do insucesso, do fracasso, do ponderável
e do imponderável. O medo de rirem dos meus
sonhos, da ironia dos meus voos inusitados, dos meus
tombos, de ser eu mesmo, de ser único, de ser inteiro.
Então, aceito o padrão, entro na fôrma para não me
sentir diferente ou ridículo. O resultado é apenas um:
embora nem sempre eu consiga agradar aos outros,
uma coisa é certa, decepciono a mim mesmo, ainda
que me negue a confissão”. Tornou a dar uma pausa,
percebeu a atenção que os alunos lhe dispensavam
e prosseguiu: “No entanto, o não reconhecimento
da metade que nos falta cria um vácuo. Sentimos

227
isto de maneira mais profunda do que muitas vezes
somos capazes de compreender. Então, na tentativa
de preencher esse buraco, procuramos nas relações
afetivas, nas conquistas profissionais e materiais, nas
diversões incessantes ou, muito pior, nas drogas, a
completude que falta. Em vão”.

“Nada nem ninguém será capaz de completar


a outra metade de si mesmo”.

Um dos alunos interrompeu para ponderar


se nem mesmo Deus seria capaz de preencher esse
vazio. Canção Estrelada, desconcertante, respondeu:
“Não. No momento e de verdade, não”. Diante da
surpresa de todos, o xamã explicou: “Pelo simples fato
do desencontro, pois, Ele o aguardar justamente na
sua outra metade, a qual você ainda desconhece e se
nega”. O rapaz, muito religioso, afirmou que Deus era
muito importante em sua vida. Canção Estrelada foi
pedagógico: “Não tenho a menor dúvida disso, pois
na minha também. No entanto, temos que diferenciar
a idolatria da fé. A idolatria é a adoração pela
incompreensão ou temor por supostas consequências;
a fé é o abraço pelo carinho do entendimento.
A idolatria está para a fé no mesmo espelho de
como o ciúme está para o amor. Por isto, enquanto
a idolatria domina, a fé liberta. A idolatria distancia
por opor patamares inalcançáveis; a fé aproxima com
a intimidade silenciosa, justo aquela que ocorre no
encontro consigo mesmo”.

Outro aluno questionou as consequências em


se negar a conhecer a outra parte. O xamã explicou:

228
“As reações à incompletude são várias. Em comum,
apenas os enormes poderes que concedemos as
sombras. Tristeza, desesperança e depressão, criando
o vício em antidepressivos, ansiolíticos ou coisas
mais pesadas. Orgulho, vaidade, inveja e ganância,
sombras motivadas pelo pleno desconhecimento
da pessoa que somos ou podemos ser, disparando
comportamentos arrogantes, violentos e superficiais.
A competição em detrimento da comunhão; a
aparência em detrimento da essência; o ter em
detrimento do ser. O ter tudo, mas não ser nada,
gera no indivíduo um abismo sombrio que o torna
agressivo ou triste, seja pela incompreensão de si
mesmo, seja pelo abandono da sua outra parte”.

“Enfim, todos buscam, das mais diversas


maneiras, a plenitude do ser, traduzida pelas
conquistas da paz, da liberdade, da dignidade, da
felicidade e do amor em sua maior amplitude. Muitos
se iludem ao acreditar que a encontrarão no casamento,
na família, na arte ou no ofício, quando, na verdade,
estes são os campos de prova para o descobrimento
e aprimoramento de cada uma das virtudes pessoais.
As virtudes são as ferramentas evolutivas que
dispomos, manifestadas através de cada uma das
escolhas que fazemos todos os dias. Os mais insanos
chegam a ter a convicção de que acharão a plenitude
no ajuntamento da fortuna patrimonial”

A jovem de olhos perspicazes tornou a


interromper para perguntar que virtudes eram essas
a que ele se referia. O xamã explicou: “A humildade, a
compaixão, sinceridade, a pureza, a sensatez, a justiça,

229
a mansitude, a pacificação, a coragem, a fé, entre
várias outras, além da maior delas, o amor, é claro.
Quando reunidas formam o que os sábios ancestrais
chamavam de iluminação”.

Sorriu e finalizou a palestra: “No entanto,


nada disso surtirá qualquer efeito, não haverá
plenitude nem iluminação, por mais virtuoso que o
indivíduo consiga ser, enquanto ele não revelar para
si mesmo a sua outra metade e alinhar em devida
comunhão ambas as partes que o completam”.

Ao final, lado a lado, andamos em silêncio na


volta para a casa. Ele resolveu passar um café fresco
enquanto eu esperei sentado na agradável varanda,
perdido em pensamentos. O xamã colocou as canecas
fumegantes sobre a mesa e eu fiz algumas ilações
sobre como seria essa minha outra metade e, mesmo
se eu gostaria do que iria encontrar ao conhecê-la.
Canção Estrelada ouviu com paciência, franziu as
sobrancelhas e disse com seriedade: “A outra metade
será sempre a nossa melhor parte”. Questionei o
motivo e ele tornou a surpreender: “É nela que as asas
nos aguardam”.

230
A MINHA CIDADE

T
Naquele ano, quando entrei no mosteiro para
mais um período de estudos, eu estava desiludido
com a humanidade. Logo que encontrei com o
Velho, como carinhosamente chamávamos o monge
mais antigo da Ordem, ele me perguntou o motivo
de eu estar abatido e com os ombros curvados.
“Parece que carrega o peso do mundo nas costas”,
comentou. Falei que andava desanimado diante tanto
egoísmo e agressividade. Comentei que cogitava
a possibilidade de mudar de cidade, pois aquela
onde eu morava se mostrava inabitável. Acrescentei
que era mal administrada, as pessoas só pensavam
nelas mesmas e não mediam os meios de atingir os
seus objetivos. O bom monge disse: “A violência
sob qualquer aspecto é muito ruim. De outro lado,
pensar em si mesmo é muito bom, desde que tenha
o carinho de compartilhar o melhor que encontrar.
Cada pessoa deve ser administrada como a uma
cidade. Os sentimentos são como indivíduos; devem
circulam livremente. Como nem sempre estão bem
orientados ou têm moradia segura, devemos cuidar
deles para que encontrem o devido lugar e a merecida
tranquilidade. As reformas estruturais precisam de
atenção constante para não impedir o progresso.
Os becos escuros devem ser iluminados para que
dali não surjam surpresas desagradáveis. As ideias,
tais como cidadãos livres, muitas vezes entrarão

231
em conflito e devem ser colocadas para dialogar
até encontrarem a perfeita comunhão. Por fim, e não
menos importante, os portões da cidade devem estar
sempre abertos para quem quiser ou precisar entrar,
mesmo que de início causem algum desconforto.
Não podemos esquecer que são as dificuldades,
quando tratadas com amor e sabedoria, que acabam por
trazer as indispensáveis melhorias”. Fez uma pequena
pausa antes de prosseguir: “Uma cidade abandonada
se torna imprestável”. Olhou-me nos olhos e falou:
“Assim acontece conosco quando damos mais valor ao
que existe fora do que dentro da gente. Cada qual mora
na cidade que constrói dentro de si”.

Interrompi para falar que o conceito era


confuso. Ele enlaçou o seu braço no meu e nos
encaminhou até a cantina do mosteiro sob a alegação
de que aquela conversa precisava de uma caneca
de café e um pedaço de bolo de aveia. Depois de
acomodados, com uma xícara fumegante à frente,
ele prosseguiu o raciocínio: “Quando estamos
incomodados em um lugar temos o direito de buscar
por outro que melhor se adeque ao estilo de vida que
escolhemos. Metrópoles movimentadas ou pequenas
vilas bucólicas? Todos os lugares são perfeitos
centros de aprendizado e têm as suas funções e
valores. No entanto, você não estará feliz em lugar
nenhum se a cidade que construiu dentro de si estiver
desarrumada e não funcionar corretamente”.

Falei que começava a compreender, mas


precisava que ele explicasse melhor. O monge foi
atencioso: “Não faz diferença se está na Quinta Avenida

232
em Nova Iorque ou em um monastério em Katmandu.
Quando por dentro tudo está bagunçado, você não
encontrará a paz, a felicidade, o amor, a liberdade ou a
dignidade que procura. O melhor lugar, seja onde for,
só será agradável se a cidade que construímos dentro
da gente for confortável”.

Comentei que não era bem assim, pois o


planeta estava repleto de locais miseráveis, seja pelas
guerras, seja pelas condições sub-humanas impostas
por governantes irresponsáveis. Argumentei que
era impossível ser feliz vivendo em um lugar assim.
O Velho deu de ombros e disse: “Cada espírito
tem a sua necessidade própria de aprendizado e
evolução. A imperfeição, embora não seja desejável,
tem a importância de nos fazer entender e construir
a perfeição, sempre ao nível da capacidade e das
ferramentas já conquistadas. Em cada imperfeição se
esconde um mestre para ensinar a encontrar o perfeito”.

Bebeu um gole de café e prosseguiu: “Há os


que precisam sair de um determinado local pela falta
de sintonia com o seu momento evolutivo; outros
fogem deste lugar por covardia. No entanto, há aqueles
que procuram justamente as cidades miseráveis por
entenderem a oportunidade maravilhosa de levar luz
onde as sombras imperam. Estas pessoas fazem uma
enorme diferença no mundo. Não tenha dúvida, esses
indivíduos, ainda que morem em uma cidade física
dominada pela pobreza moral, material ou mesmo
sob ambas as condições, estarão plenos em felicidade,
paz, liberdade, amor e dignidade, pois farão o melhor
uso dos atributos que já conseguem encontrar em

233
si mesmo. Ainda que haja muita turbulência e
confusão em volta dos seus corpos, as suas almas
habitam em cidades tranquilas e serenas”. Mordeu
um pedaço de bolo e ponderou: “Vale salientar que
a recíproca também se aplica. De nada vale ao corpo
morar em cidades progressivas se o espírito habita em
região ainda arraigada por conceitos ultrapassados.
A liberdade física de ir e vir se torna imprestável
diante das prisões existenciais”.

Tornei a interromper para comentar que o


raciocínio estava equivocado, pois embora eu morasse
em uma região detestável, dentro de mim havia uma
cidade maravilhosa e espiritualizada. O Velho me
olhou com bondade e perguntou: “Será”?

Respondi que eu não tinha dúvida. O bom


monge expandiu o seu raciocínio: “Entender e arrumar
a sua cidade interna permite que você se pacifique
com a cidade em que mora, independente de qual seja.
Enquanto não descobrirmos quem somos nenhuma
cidade nos parecerá amigável. Não seremos cidadão
de lugar nenhum. Sempre haverá agonia e desespero”.

“Costumamos reclamar da violência urbana,


mas esquecemos da agressividade que movimentamos
diariamente. Antes de lamentar temos que nos
perguntar o quanto da aspereza urbana é fruto de
recorrentes atos e palavras que proferimos todos os
dias na tentativa de esconder as emoções geradas
pelas frustrações que não conseguimos equilibrar
nem entender e, então, desesperadamente, tentamos
transferi-las para o mundo. Quando, por exemplo,

234
apregoamos os defeitos do comportamento alheio
em um singelo bate-papo ou através das poderosas
redes sociais, no fundo, nos valemos de um surrado
truque das sombras: desviar a atenção quanto às
nossas próprias dificuldades para evitar o esforço
do aperfeiçoamento pessoal. Vigiamos os outros e
esquecemos de tomar conta de nós. Na busca pela
felicidade desejamos que todos se adaptem aos
nossos interesses na vã tentativa de fugir ao trabalho
da lapidação íntima, sem perceber o quanto isso
alimenta conflitos e desordens. Assim, adiamos as
transformações indispensáveis em total contradição
ao processo evolutivo. Reclamamos da escuridão a
espera que tragam a luz que nos cabe buscar”.

“Lamentamos as ruas estreitas e as calçadas


esburacadas que não permitem a melhor circulação de
carros e pessoas. Porém, esquecemos de pavimentar,
expandir e limpar as vias por onde transitam as
nossas ideias, engarrafadas por preconceitos e
condicionamentos socioculturais, atravancando o
andamento dos bons propósitos. Não percebemos
a enorme quantidade de lixo mental e emocional que
produzimos todos os dias. É necessário tornar mais
agradável a cidade imaterial que habitamos”.

“Abominamos a corrupção governamental,


mas ignoramos o quanto de egoísmo depositamos
nas pequenas escolhas do cotidiano, muitas vezes
mais por hábito e comodidade do que por sensatez.
A corrupção nada mais é do que a mão longa do
egoísmo individual que se junta a outras, ganha força
e se espraia em pesadas nuvens coletivas. Assim,

235
alimentamos a decomposição moral da sociedade,
que por ironia e tragédia, tanto nos incomoda”.

“Queixamo-nos da injustiça em diversos


níveis sociais, contudo, fechamos os olhos quando
temos a oportunidade de usufruir de algum privilégio,
mesmo aqueles garantidos por leis anacrônicas e
descompensadas. Aliás, costumamos usar as leis do
mundo como desculpa para garantir interesses pessoais
em detrimento a um código moral escrito com as tintas
das virtudes imortais”.

“Amaldiçoamos a arrogância dos poderosos;


debochamos da vaidade pela mera aparência;
ridicularizamos o orgulho de vidro dos que se
imaginam fortes. Contudo, nem sempre lembramos
de burilar as virtudes primordiais da humildade e da
compaixão que verdadeiramente oferecem o poder
que liberta ao invés de dominar; educa sem ofender;
fortalece sem esmagar; ilumina a essência, templo de
toda a beleza”.

“Reclamamos que as cidades são malgovernadas


sem nos dar conta de como administramos com
desleixo as nossas escolhas, instrumentos vitais de
transformação. Não temos dificuldade em apontar uma
série de descasos e descuidos em relação à diversos
aspectos civilizatórios. No entanto, somos incapazes
de perceber o quanto nos abandonamos no comodismo
da existência, relegando, cada qual a si mesmo, à mera
sobrevivência pelo automatismo que passou a mapear
as decisões pessoais”.

236
“Enfim, nenhuma cidade do planeta trará
acolhimento enquanto o indivíduo não organizar e
pacificar a cidade interna que arde em conflitos”. Deu
uma pausa e concluiu: “Embora repleto de imperfeições,
o desconforto que o mundo lhe causa é reflexo das suas
dores e incompreensões, que ao projetá-las de maneira
difusa, impedem o diagnóstico e a cura. A cura do ser
é a perfeita engenharia de reconstrução do mundo.
Todo o resto são obras de mera maquiagem”.

“Seja a cidade que deseja”.

Abaixei os olhos. Não reconhecer os funda-


mentos nas palavras do monge era adiar a inevitável
reforma da minha cidade interna. Com os olhos mareados,
confessei que ela estava despedaçada, em cacos, como
uma casa em demolição. O Velho tocou o meu queixo
para eu levantar a cabeça e disse com doçura: “Não
lamente o caos, pois são ferramentas indispensáveis
à renovação. Como ensinou um alquimista persa, são
pelas fendas da destruição que a luz atravessa, se instala
e liberta o ser’”.

Em agradecimento, ofereci um sorriso sincero.


Só então me dei conta que ainda não havia sorrido
desde que tinha chegado no mosteiro.

237
UM POUCO SOBRE MÁSCARAS,
ROTEIROS E SOMBRAS

T
Eu e Loureiro, o sapateiro amante dos livros
e dos vinhos, tínhamos acabado de assistir a um
filme no único cinema da pequena e charmosa cidade
localizada no sopé da montanha que acolhe o mosteiro.
Fomos para uma agradável livraria que abriga uma
cafeteria na parte dos fundos em busca de boa prosa e
café. A fita narrava a história de Dayse e Giovani, casal
de namorados na faixa dos cinquenta anos de idade;
ambos já tinham passado por outros relacionamentos.
Ele era um tranquilo professor de matemática em uma
escola do ensino médio, praticante de judo e dedicado
aprendiz de roteirista. O seu sonho era contar ao
mundo as histórias que o povoavam desde sempre.
Passava boa parte das horas de folga aplicado em
suas escritas. Ela era uma mulher alegre que vivia
da generosa pensão deixada pelo marido falecido
há muitos anos. Era uma pessoa caridosa, sempre
atenciosa às necessidades alheias, que também gostava
de passear com a amigas e se divertir. Para muitos
formavam um casal perfeito. No entanto, tinham
uma relação intermitente, de idas e vindas. A causa
era sempre a mesma: ela, por vezes, se mostrava
irritadiça e mal-humorada, seja com o pouco carinho
que recebia do namorado, seja pela vida quieta que
levava ao lado dele. Giovani, então, preferia se
afastar na certeza de que ela não era a pessoa com a

238
qual deveria compartilhar a sua vida afetiva. Passado
alguns dias ou semanas, a namorada o procurava
como se nada tivesse acontecido e o relacionamento
era reatado, mais por comodidade do que por amor.
Isto aconteceu várias vezes e sempre pelo mesmo
motivo. Quando do último afastamento, embora não
fosse uma separação declarada, ele tomara a decisão
de não mais voltar, pois tinha a convicção que, apesar
de a moça possuir muitas virtudes, não a amava.
Uma relação sustentada apenas por comodidade
acabava por ser prejudicial a ambos. Entretanto, dessa
vez, por acaso, tomara conhecimento de que ela estava
envolvida com outra pessoa. De outro lado, Dayse
soube, através de terceiros, de que Geovani tinha ciência
do seu novo romance. Ela enviou uma mensagem de
que a história não era exatamente como aparentava,
desmentiu o novo romance, afirmou que Geovani
ainda tinha lugar cativo em seu coração e voltou a
um discurso, muito comum a ela, de transparência e
fidelidade. Ela sempre lamentara que o seu casamento
anterior fora muito afetado pelos contantes casos de
infidelidade do marido falecido e, por isto, não tolerava
tais situações. Segundo ela, este era o motivo pelo qual
acabou levando-a também a ter relações extraconjugais
durante o matrimônio. Mas o fato, agora revelado, era
inegável. Embora tenha sentido ciúme, ele entendia o
momento dela, respeitava o seu direito em tentar ser
feliz ao lado de outra pessoa e pensava que, cedo ou
tarde, o melhor seria também se envolver com alguém.
O problema é que resolveu passar na casa de Dayse
para devolver alguns pertences que estavam consigo e
para dizer que poderiam ser bons amigos. Para a sua
total surpresa, foi recebido com extrema agressividade,

239
sendo alvo de acusações vagas e desconexas. A mulher
alegou que tudo aquilo tinha acontecido por causa
dele, que odiava a vida pouco movimentava que levava
ao seu lado e, por fim, que sentia desprezo por ele e
que se enganara quanto ao amor que sempre dissera
sentir. Giovani passou dias sem entender a razão de
tamanha reação. Até que decidiu escrever um roteiro
sobre essa história, com a finalidade de contá-la para
si mesmo, na tentativa de entender o fundo da questão.
Ocorre que esse se torna o primeiro roteiro que ele
consegue vender a uma produtora. Na sessão de estreia
reencontra com Dayse no saguão do cinema; ela,
feliz, está acompanhada do seu novo namorado;
ele, feliz, pela realização de um sonho. A cena final
é uma troca se sorrisos entre os dois, deixando ao
expectador a conclusão que melhor aprouver.

Devidamente acomodados em uma mesa no


canto, com duas canecas de café à frente, comentei
que a cena em que Dayse recebe Giovani com
extrema violência verbal era desnecessária. Confessei
que tinha me incomodado. O sapateiro argumentou:
“É a cena mais importante do filme, um momento
fabuloso, que permite uma virada na vida de ambos”.
Falei que não tinha entendido o seu raciocínio.
Ele explicou com paciência: “Toda a agressividade
é consequência da desarmonia entre as metades que
compõem o ser. De um lado o ego, sempre preocupado
com as aparências, em construir uma imagem de
perfeição e força para o mundo, quase sempre irreal,
moldando o indivíduo aos cruéis condicionamentos
socioculturais. Acaba por levar a pessoa a um estilo
de vida que, inevitavelmente, traz um enorme vazio,

240
desequilíbrio e sofrimento. Não raro, o indivíduo,
quando ainda envolvido pelos mantos do orgulho e da
vaidade, faz um grande esforço em ocultá-los, tanto
dos outros quanto de si mesmo. De outro lado existe a
alma, a metade ligada ao aprimoramento da essência
do ser. Aquela que tem o conhecimento, ainda que
inconsciente, de que a melhor aparência será sempre
a mais pura essência. Quando com a consciência já
desperta, o ser não se importa em revelar ao mundo
as imperfeições e dúvidas que lhe são inerentes, pois
possuem a determinação em caminhar sob a orientação
da simplicidade e da humildade, nos primeiros passos
rumo à plenitude”.

“A luta entre a luz e as sombras que nos


habitam é silenciosa, mas nem por isto menos
dolorosa. Quanto mais distante as partes, maior o
sofrimento. A mais importante batalha da vida, não
tenha dúvida, é travada dentro de cada ser. A maior
vitória é aquela que você consegue sobre si mesmo,
que consiste em alinhar amorosamente e em comum
união as suas metades em conflito. Unir uma parte à
outra é a sublime arte da existência”.

Falei que entendia a explicação do artesão,


mas não compreendia a razão da namorada ter sido
agressiva. Loureiro deu de ombros e falou: “A rainha
não pode ser vista nua”. Perguntei se ele se referia a
Dayse, o sapateiro negou: “A rainha são as sombras pelo
poder oculto que exercem sobre nós”. Diante do ponto
de interrogação que surgiu na minha face, o sapateiro
aprofundou o raciocínio: “As sombras precisam se
manter disfarçadas para que possam continuar a

241
exercer o seu domínio sobre o indivíduo. Ao serem
reveladas é comum a reação violenta. É o destempero
de quem se descobre por inteiro, sem máscaras, ilusões
ou subterfúgios. As sombras chegam para socorrer e,
o truque mais comum, é fazer acreditar que aquele
sofrimento é por culpa de outra pessoa, transfere a
responsabilidade e vira o rosto do exato espelho para
não olhar nos olhos da verdade. Veja o caso de Dayse,
ela sempre manteve relações extraconjugais, embora
as condenasse, mas atribuía a sua atitude aos desvios
do ex-marido. Daquela vez não teve como sustentar
discurso sobre o valor da sinceridade e da lealdade,
então, a fúria e o desequilíbrio”.

“Sob o falso argumento de oferecer proteção,


as sombras nos iludem através de óticas equivocadas
e retóricas tortuosas. O ciúme, o orgulho, a vaidade,
a mentira, a inveja, o egoísmo, a ganância, o medo,
ignorância sobre si mesmo são as sombras mais
comuns. As máscaras, os personagens que criamos
em busca de aceitação e aplausos, a transferência
de responsabilidade pelas próprias escolhas são as
ferramentas mais usuais oferecidas pelas sombras”.
Eu quis saber como elas surgiam. Loureiro foi
didático: “Cada um cria as suas próprias sombras; o
abismo entre as partes do ser é o solo fértil para elas se
agigantarem. São criaturas que se apossam do criador,
arrastando-o anos a fio como um sonâmbulo de uma
realidade aparente”.

Comentei que Dayse estava sendo hipócrita,


pois tinha um discurso diferente da prática exercida.
Loureiro me corrigiu: “Não. A hipocrisia tem que ser

242
uma atitude consciente. No caso dela, as suas sombras
a convenciam a uma prática que ela própria condenava
transferindo a responsabilidade para o companheiro
pelo fato de ele não entregar o amor que ela julgava
merecer. Assim, a cada dia, concedia maior poder
as próprias sombras. Se você para pensar, em última
análise, a ira da Dayse não foi contra Giovani, mas
em razão da verdade ter surgido em hora imprópria.
Foi o desespero de estar diante de si mesma sem
qualquer disfarce. Por ironia e tragédia, aquilo que
lhe dava prazer também trazia dor, seja pelo vazio,
seja pela incompletude, seja pela ilusão. Assim são
as sombras”.

“Quando ela fica diante do namorado, sem


condições de negar uma prática que tanto condenava,
sem máscaras, sem a fantasia do personagem social
que havia escolhido para si, se sentiu impossibilitada
de enfrentar o momento de jeito sereno. As sombras
do orgulho e da vaidade nunca permitem, sempre
entregando o boleto para alguém pagar a conta.
Não à toa, o diretor do filme a mostra abrindo porta
logo após o banho, com os cabelos molhados e sem
maquiagem. É a exata metáfora. Na verdade, quando
ela olha para o namorado acaba por revelar para si
mesma as próprias sombras, percebendo nela tudo
aquilo que tanto atribuiu aos outros e a incomodou
em seus romances. É o vazio de uma vida distante
da verdade. Ela percebe que a raiz do sofrimento
não está nas escolhas alheias, mas nas decisões que
tomou ao longo da vida”. Deu um gole no café e
prosseguiu: “Dayse explode em fúria não por estar
impossibilitada de enfrentar o Giovani, mas por não

243
conseguir enfrentar a si mesmo. Esta é a motivação
mais comum para a agressividade das pessoas: as
próprias sombras que na ilusão de proteção ou de
sucesso aparente acabam por manipular e sufocar o
melhor do ser. Até o limite da dor que causa na alma.
Então, a pessoa explode, quando não em fúria, através
de doenças somatizadas ou de tristezas sem fim, por
tudo aquilo de bom que poderia ser, mas não foi”.

Comentei que o Giovani tinha tido sorte


em escapar da vilã. Loureiro tornou a me corrigir:
“A Dayse não é a vilã da história. Repare que
Giovani tinha também as suas próprias sombras
que necessitavam de igual iluminação. Recorde que
ele estava ao lado de Dayse pelo fato de ela ser uma
pessoa bacana e atenciosa, porém, ele não a amava.
Tanto que nem se importava quando ela ficava mal-
humorada e o casal se afastava. No entanto, quando
soube que ela estava com outra pessoa, sentiu
ciúmes”. Falei que, talvez, somente assim foi capaz
de reconhecer o amor que sentia pela namorada.
O artesão balançou a cabeça e esclareceu: “Antes
fosse, porém, na maioria das vezes não é isso que
acontece. O amor é um sentimento fortíssimo, não
costuma deixar dúvida e possui vínculos com a
liberdade. O ciúme, por sua vez, está sempre ligado
à dominação. Penso que ele no fundo gostava da
sensação de poder que sentia pelo fato de depois
dos afastamentos a namorada sempre o procurar,
declarar o seu afeto, de tê-la sempre à disposição.
A dominação é um vício ancestral que sustenta o
orgulho e a vaidade, duas sombras que, embora nos
tornem extremamente frágeis, nos entorpecem com

244
a falsa sensação de vitória. O poder sobre si mesmo
é pura luz; sobre os outros é uma terrível, porém,
inebriante sombra”.

Questionei se Giovani seria o vilão da história.


O artesão explicou: “Também não. O maniqueísmo de
imaginar pessoas absolutamente perfeitas ou totalmente
imperfeitas é outra sombra que atrapalha demais o
entendimento e, por consequência, a evolução. Todos,
sem exceção, somos viajantes em direção às Terras
Altas, alguns em estações mais avançadas do que
outros, no entanto, cedo ou tarde, todos completarão
a jornada de iluminação”. Interrompi para dizer que
as sombras eram as vilãs do filme. Loureiro deu
uma gostosa gargalhada e corrigiu mais uma vez:
“Abandone em definitivo esse conceito de herói e
vilão, ao menos de forma absoluta. Ninguém pode lhe
prejudicar mais do que você a si mesmo, assim como
cada qual sempre será o seu principal aliado. As forças
da luz e das sombras estão em você, qual delas usar
define o próprio destino. Cada um, ao mesmo tempo,
é o protagonista e o antagonista da própria história”.

“Até as sombras têm um importante papel a


serviço da luz, como o instrumento que irá romper
a casca que impede as sementes das virtudes de
ganharem vida. Não negue nem sufoque as suas
sombras para não explodir em desequilíbrio e raiva.
Apenas aprenda a usá-las amorosamente a seu favor.
Repare que após a cena sombria, ambos os personagens
partem em busca das inevitáveis transformações
pessoais por se sentirem sinceramente incomodados
com tudo que aconteceu”.

245
“A cena dos dois na casa de Dayse é repleta
de simbolismos importantes. Lembre que o diretor faz
questão de que a porta seja aberta em câmara lenta para
enfatizar não o encontro entre namorados, mas como
se uma porta se abrisse para que cada um pudesse ir
ao encontro de si mesmo. Ela de cara lavada e sem
máscaras; ele com a desculpa de devolver os objetos,
quando na verdade ansiava pelo pedido de desculpas
da namorada e restabelecer os seus domínios”.

“Cada qual cria a própria prisão em cela sem


grades. Por isto, o voo da liberdade será sempre uma
escolha pessoal e intransferível”.

“O filme mostra que cada personagem, ao seu


modo, após o conflito, vai em busca de entendimento
e transformação. Ela vai fazer terapia e meditação
para se autoconhecer e perceber os sentimentos que
verdadeiramente a movem; Giovani para escrever o
roteiro precisa compreender a história que viveu e isto
só foi possível porque conseguiu revelar para si mesmo
a sua face oculta. Toda a cura consiste em primeiro
reconhecer as sombras para depois trazê-las à luz e,
em seguida, transmutá-las para sempre”.

Eu quis saber, na opinião do sapateiro, qual


seria o significado do sorriso que Dayse e Giovani
trocam na cena final. Loureiro respondeu de pronto:
“De cumplicidade”. Cumplicidade? Estranhei. Perguntei
sobre qual cumplicidade a que ele se referia. O bom
sapateiro disse: “Eles foram cúmplices na libertação”.
Fez uma breve pausa antes de finalizar: “Cada um sobre
si mesmo”.

246
A VIDA NÃO É CURTA

T
Era sábado à noite quando o ônibus estacionou
na singela vila chinesa onde mora Li Tzu. Deixei a
minha mochila na única estalagem do lugar e fui para
a casa do mestre taoista. Como sempre, o portão estava
aberto e a pouca iluminação era fornecida apenas por
muitas velas espalhadas por todos os cantos, inclusive,
no belo jardim de bonsais. Meia-noite, o gato preto
que também morava lá, na espreita, desconfiado, me
acompanhou o tempo todo com os olhos. Chamei
pelo mestre algumas vezes, mas não obtive resposta.
O silêncio apenas era quebrado por uma melodia
alegre que vinha de longe. Achei que era deselegante
esperar por ele em sua casa e, como eu estava sem
sono, me deixei guiar pelo som animado. Atravessei
algumas ruas sinuosas sempre tendo os meus tímpanos
como bússola, até que cheguei a um sobrado de onde
surgia a música. Subi os degraus de madeira da escada
estreita e me deparei com uma espécie de baile aberto
ao público. Surpreendi-me com Li Tzu dançando uma
animada canção em companhia de uma bela moça.
Em seguida, ele foi conversar com um grupo de
amigos que pareciam felizes pela maneira como riam
e se abraçavam. Estranhei o comportamento do pacato
e silencioso mestre taoista.

Permaneci em pé, junto ao balcão de bebidas,


observando o movimento. Na verdade, eu estava

247
curioso para ver a reação de Li Tzu quando ali me
percebesse. Apostei que ele se comportaria como uma
criança envergonhada ao ser pega em plena travessura.
Pedi uma bebida e esperei. Para a minha surpresa, ao
me ver, o mestre taoista abriu um largo sorriso e veio
até a mim de braços abertos. Após um abraço forte e
sincero, perguntei se ele aceitava uma bebida, pois tive
certeza de que toda aquela animação era em decorrência
de um estado alcoólico alterado. Em outras palavras,
tinha convicção de que ele estava bêbado. Então, outra
surpresa quando Li Tzu respondeu: “Água, por favor”.
Fez uma pequena pausa e justificou: “Não tenho nada
contra, mas, particularmente, não aprecio bebidas
fortes”. A pequena banda, formada por quatro ou cinco
instrumentistas, com flautas, tambores, chocalhos
e uma espécie de sanfona, iniciou uma canção que,
exceto por mim, era bastante conhecida, pois quase
todos foram para a pista de dança. O mestre taoista me
convidou a se juntar a eles. Como recusei, ele pediu
licença e foi acompanhar com os demais essa música
em que todos repetiam os mesmos passos, como um
corpo de balé ensaiado. Ao final, todos riram divertidos
e bateram muitas palmas.

A minha estranheza com o comportamento


de Li Tzu não me permitiu ser contagiado com aquela
animação. No fim do baile, acompanhei o mestre
taoista até a sua casa. Ainda durante o trajeto, expressei
a minha surpresa por sua faceta de alegre dançarino,
mormente quando comentei que constatara de que
ele não estava alcoolizado ou tinha feito uso de outra
substância. Li Tzu me olhou com compaixão e revelou:
“A magia vem de dentro”.

248
Não satisfeito, acrescentei que ele, naquela
noite, fugiu aos padrões que eu esperava. O mestre
taoista sorriu e disse: “Ainda bem, Yoskhaz. Que eu
possa sempre desconcertar com o inusitado e a
ousadia”. Irritado, eu parti para o ataque ao dizer
que aquele comportamento mundano no baile feria as
diretrizes sagradas do Tao que ele próprio ensinava.
Li Tzu balançou a cabeça em negativa e explicou:
“O sagrado está oculto no mundano. Aquele precisa
deste para se revelar”.

Demos mais alguns passos e ele prosseguiu:


“A alegria e o bom humor são virtudes; logo, são
ferramentas do sagrado. A alegria é a mais poderosa
oração de agradecimento ao Universo por todas as
bênçãos concedidas. Transmiti-la a toda gente o torna
um emissário dos Céus. O bom humor tem o poder
de transmutar energias de baixa vibração que, por
ventura, se apresentem; por isto, também é sagrado”.

Como tínhamos chegado ao portão da casa


de Li Tzu e, em razão do meu claro desconforto,
ele, sempre elegante e generoso, me convidou para
um chá. Acomodei-me em sua agradável cozinha
enquanto o mestre taoista colocava algumas ervas
em infusão. Não demorou, um delicioso perfume
invadiu o ambiente. Sentado à mesa, diante de duas
canecas fumegantes, Li Tzu iniciou a explicação:
“O Tao sustenta a importância do equilíbrio entre as
polaridades da vida, o Yin e o Yang”. Bebericou o chá e
prosseguiu: “Podemos viver a vida longitudinalmente
ou latitudinalmente”.

249
Interrompi para dizer que não tinha
entendido. O mestre taoista foi didático: “Imagine a
sua existência como um grande lago, que ora tem as
águas plácidas banhadas por sol; noutras vezes, são
agitadas por fortes tempestades”.

“Você pode mergulhar profundo no lago e


perceber que a tempestade abala somente a superfície.
Assim, aprender que toda a paz de que precisa reside
no âmago do lago. É a descoberta da sabedoria oculta.
É o movimento para dentro de si mesmo, de contração,
o Yin do Tao. Quando retornar à superfície estará
fortalecido e iluminado por trazer consigo toda uma
realidade e poder, até então, desconhecidos”.

“Você também pode aproveitar os dias


de sol para nadar para os lados, nas margens do
lago, em busca do conhecimento, da alegria, das
maravilhas oferecidas pelo mundo e, em contrapartida
fundamental, de compartilhar o que já traz na
bagagem. Assim, entender que a vida é farta em beleza
e em infinitas possibilidades. É o movimento para fora
de si, de expansão, o Yang ensinado pelo Tao. Ainda
que de maneira diferente, você se sentirá igualmente
fortalecido e iluminado”.

“Ambos os movimentos são imprescindíveis e


se completam”.

Utilizei um surrado chavão, no qual estamos


condicionados, para comentar que a vida é curta e
quando nos damos conta, ela já passou; portanto,
temos que aproveitá-la. Li Tzu sorriu, bebeu mais um

250
pouco de chá, e disse: “Há uma ilusão e uma verdade
no que você acabou de falar”. Eu quis saber ao que ele
se referia e o mestre taoista foi paciente: “Sim, temos
que aproveitar a vida. No entanto, para aqueles que
assim o fazem, a vida não é curta. Ela tem o tempo
exato”. Olhou-me nos olhos e completou: “Tudo
depende do melhor sentido que cada um consegue
aplicar à própria vida”.

Como as minhas feições deviam transbordar


de curiosidade, Li Tzu prosseguiu na explicação:
“A vida de todos é sujeita às Leis Universais, sem
exceção. Como uma boa universidade que possui
o intuito de fazer com que o aluno evolua, o plano
de estudo é direcionado por dois professores,
conhecidos na tradição oriental pelos nomes de karma
e dharma. Cada pessoa tem a sua própria diretriz,
entretanto, projetos individuais se entrelaçam em
perfeito conjunto. O karma está ligado às lições a
serem aprendidas por aquele indivíduo na régua da
sua evolução. O dharma diz respeito ao propósito
daquela existência, guiado pelo melhor uso dos dons
e das habilidades concedidas e, também, à aplicação
das virtudes já sedimentadas no ser, no intuito de
fomentar outras, ainda em estágio inercial. Nenhuma
ferramenta disponibilizada deve restar esquecida na
obra da vida”.

“Como fazer isso da melhor maneira é a


grande arte. A existência de cada pessoa é como um
bloco de granito; cada qual é o artista designado para
a transformação da simples pedra em obra-prima.
Para tanto, é preciso se empenhar na extração do

251
cascalho que esconde a divina estátua. A vida tem
que ser a melhor obra de si mesmo a embelezar os
jardins da humanidade. Quando entendemos isto e
nos movimentamos nesta direção, a existência ganha
sentido. Somente a vida desperdiçada se torna curta”.

“Como as águas do lago, a vida exige


movimento, pois, apodrece na estagnação. Todavia,
há os que, na ânsia por este movimento, acabam por
confundi-lo com agitação, como um vício sombrio
e aprisionador. A necessidade do novo não deve se
confundir com a mera novidade; estilo não é moda;
informação não é conhecimento; conhecimento
não é sabedoria; diversão, embora saudável e
imprescindível, não significa, necessariamente,
aproveitamento. A correria, por si só, não significa
avanço; a evolução deve se sustentar no binômio
movimento-calma. O indispensável descanso deve
estar atrelado ao trabalho para que não vire ócio,
assim como a criatividade, necessária para rompermos
com o automatismo dos comportamentos, deve ficar
ligada à disciplina e ao esforço para que se torne uma
realidade além da esfera das ideias, celeiro de nossas
ações. O sonho precisa da disposição pessoal para no
real encontrar o seu lugar. Ou se perderá nas nuvens.
Quando esquecemos o sentido da vida, por mais longa
que seja a existência, ela se torna curta”.

“De outro lado, existem os que diante das


dificuldades apresentadas dissolvem a vida nas águas
turvas do desânimo ou se afogam no redemoinho
do fanatismo. A coragem excessiva e sem amor vira
violência. A vontade desmedida pode levar a pessoa

252
ao sombrio desejo de impor os próprios conceitos
e a manipular às escolhas alheias. Boas intenções
quando desligadas das nobres virtudes acabam
por ser instrumentos detestáveis de manipulação
e aprisionamento. O mesmo acontece com o outro
lado da polaridade: a falta de coragem para enfrentar
com sabedoria e amor as batalhas que se apresentam,
aprisionam o indivíduo na sombra da desculpa de que
‘o mundo não tem jeito’, fazendo com que abandonem
as lições e o propósito da vida, desconectando o
melhor de si das maravilhas do mundo. Uma variante
comum é o trancamento em si mesmo na busca por
um conhecimento superior. Mergulhar em si mesmo é
primordial para o progresso pessoal, contudo, é preciso
voltar à tona e nadar para as margens para oferecer
ao mundo o tesouro encontrado nas profundezas do
seu âmago e, em contrapartida, conhecer as belezas
disponibilizadas pelas outras pessoas, em constante
exercício de aperfeiçoamento. O conhecimento
nunca se transformará em sabedoria caso não seja
compartilhado e aplicado ao cotidiano. Ao contrário, se
tratará apenas do medo se escondendo nos mantos do
egoísmo, do orgulho e da vaidade. É preciso vir sempre
à superfície, se alimentar com o sol, respirar novos ares,
confraternizar com toda a gente, encher os pulmões para
voltar a mergulhar fundo no lago da vida. Ambos os
movimentos, de longitude e latitude, devem se alternar
incessantemente, como orienta o Tao”.

Esvaziou a caneca de chá, se levantou e


tornou a enchê-la. Em seguida, prosseguiu: “Encontre
consigo mesmo para conhecer a face oculta da vida;
é na essência do ser que as virtudes se revelam.

253
Mas também encontre com os seus amigos, abrace,
sorria, cante e celebre esse valioso alimento da vida.
Medite, trabalhe, ouse, brinque e descanse. Enfrente
cada dificuldade, não como quem está diante de um
problema, mas como quem percebe um mestre em sala
de aula disposto a ensinar como se transforma muros
em pontes. É no contato com o mundo, no esforço e no
entendimento de unir todas as partes em uma única
peça, que as virtudes se manifestam e se constrói a
obra de arte cuja a matéria-prima é a vida de cada um
de nós, pedaço primordial ao Universo”.

Olhou-me nos olhos e concluiu: “A vida te


espera dentro e fora de você. A vida só é curta para
quem insiste em fugir; seja dos becos escuros do
mundo que anseiam por luz, seja das sombras que nos
habitam, sedentas por iluminação. Apenas foge quem
tem medo”. Interrompi para comentar que sentir medo
é normal. Ele me corrigiu: “Não deveria. O medo se
sustenta apenas na ignorância em saber quem você
é, de verdade”. Então, Li Tzu finalizou com uma das
sagradas lições do Tao: “O medo nada mais é do que a
ilusão da separatividade”.

Olhei para o céu através da janela da cozinha.


Tive a estranha e deliciosa sensação de que uma estrela
brilhante sorria para mim.

254
O INFERNO ASTRAL

T
Naquele ano, o período no qual passo um
mês no mosteiro para estudo e reflexão coincidiu
com a chegada de um grande número de membros,
fato que me obrigou a dividir um quarto com outro
monge, como denominamos todos os iniciados na
Ordem. Tínhamos, eu e ele, hábitos bem distintos,
entre os quais os horários de dormir e acordar.
Eu me deitava mais cedo e me levantava bem antes
dele. Por mais que tivéssemos cuidado, luzes e ruídos
nos incomodavam mutuamente, ora a um, ora outro, a
depender das horas. Isto, aos poucos, foi criando um
desgaste em nosso convívio. Paralelamente, na véspera
da minha viagem para o mosteiro, eu tivera um grande
entrevero com os sócios da minha empresa por não
concordar com a maneira com que eles administravam
os seus departamentos. Eu tinha chegado aborrecido
às montanhas. Como se não bastasse, há poucos dias,
eu discutira com a minha namorada, pelo telefone, por
não gostar de uma postagem que ela havia feito em
uma rede social. Até que certa noite, com dificuldades
para dormir, me senti incomodado com o abajur da
cabeceira do colega de quarto, aceso para o auxílio na
leitura, além do barulho que ele fazia tanto para ir ao
banheiro quanto para comer ou beber alguma coisa.
Acabei por repreendê-lo de maneira rude. Tivemos
um desagradável bate-boca, que escalou a altos tons,
fazendo com que monges de outros quartos viessem

255
intervir para que não chegássemos às vias de fato.
No dia seguinte, após os ofícios da manhã, procurei
pelo Velho, o monge mais antigo da Ordem, para
conversar. Encontrei-o, distraído e feliz, podando
as roseiras do jardim interno do mosteiro. Falei que
estava em um mau momento e precisava conversar.
Ele guardou o alicate no bolso da túnica de lã, me
ofereceu um sorriso repleto de compaixão e disse:
“Eu estava à sua espera. Foi bom você ter vindo”.
Olhou para o céu e sugeriu: “Acho que logo começará
a chover. Vamos conversar em minha sala”.

Passamos no refeitório, enchemos duas


canecas com café e nos acomodamos no gabinete
do monge. Assim que sentamos comecei a reclamar
do meu colega de quarto; sublinhei as diferenças de
comportamento que nos separavam e solicitei a troca
para outro quarto. O Velho me olhou com bondade
e negou o pedido: “A convivência com pessoas que
pensam igual a nós e têm os mesmos gostos é muito
bom, mas está destinada aos fracos. As diferenças
têm a importância de nos desequilibrar. A busca pelo
novo ponto de equilíbrio, além de nos fazer caminhar,
nos faz entender sobre a virtude da adaptabilidade,
um estágio de harmonia que deve ser encontrada
através de movimentos mansos, porém firmes.
Isto leva o indivíduo a outro nível de compreensão por
oferecer uma nova maneira de pensar e agir, até então,
desconhecida. Não que sejamos como os camaleões a
nos disfarçar conforme o ambiente, mas por permitir
a possibilidade de um jeito diferente de ser e viver.
Em graus distintos, sempre traz transformações
evolutivas. A necessidade de adaptação dentro de uma

256
nova realidade, muitas vezes impostas ao acaso, como,
por exemplo, a convivência harmoniosa com o seu
colega de quarto, pode se tornar mais enriquecedora do
que todo o estudo que você fará na Ordem este mês”.
Fez uma pausa e concluiu: “Devemos prestar atenção
às lições que podem existir na relação com aquele
parente chato ou com o estranho colega de trabalho.
As diferenças costumam ocultar valiosos mestres”.

A contragosto, falei que acataria a sugestão,


porém, duvidava dos ganhos da empreitada.
Acrescentei que atravessava o meu inferno astral
face a tantas situações desagradáveis e desgastantes
dos últimos dias. Não à toa, esclareci, o meu mapa
astrológico indicava um movimento retrógrado de
Plutão em Saturno com convergência em Marte.
O Velho bebeu um gole de café e disse sério: “Você
sabe o profundo respeito que tenho pela astrologia;
no entanto, não culpe os astros pelo seu destempero.
O desequilíbrio não está nos planetas ou nas estrelas,
mas em suas emoções”. Discordei de imediato.
Acrescentei que já era um iniciado esotérico e estava
aplicado em meus estudos filosóficos e metafísicos.
Isto me tornava uma pessoa centrada, acima desses
comportamentos vulgares e mundanos. O Velho
arqueou os lábios em leve sorriso, como quem está
diante de uma criança que acredita dominar todos
os segredos da matemática pelo mero fato de ter
aprendido as quatro operações básicas, e explicou
com paciência: “Como você sabe, o esoterismo se
fundamenta em três pilares: ação, sabedoria e amor.
Virtudes que agrupam todas as demais virtudes,
que, por sua vez, se entrelaçam e se complementam.

257
Conhecer a virtude não a torna uma realidade
para si. Ou seja, ver a porta não significa que já a
tenha atravessado. Esse passo pode ser dado amanhã
ou, não raro, demorar séculos. Depende apenas
do andarilho. A serenidade é a prova externa do
equilíbrio interno. Todas as vezes que a irritação nos
domina, significa que perdemos a batalha. A porta
ainda não foi ultrapassada”.

Corrigi o monge para dizer que eu não


tinha perdido a batalha; ao contrário, me sentia
vitorioso, pois tinha enquadrado o meu colega de
quarto. Expliquei que eu tinha razão na discussão.
Acrescentei que me vi obrigado a estabelecer limites
e aguardava um pedido de desculpas por parte dele.
O Velho balançou a cabeça em negação e fez uma
pergunta retórica: “Por que tanta necessidade em
ter razão?” Sem aguardar pela resposta, prosseguiu
o raciocínio: “Briga-se para ter razão como se fosse
possível levar fortunas de razão na bagagem quando
da viagem às Terras Altas. Ou pior, luta-se por
vencer uma discussão como se esta efêmera vitória,
uma ilusão rasa do ego exacerbado, rendesse juros
e correções em absurda caderneta de poupança
emocional. Vencer uma discussão não tem qualquer
importância; pacificar as relações, sim”.

Indaguei se não deveríamos manifestar a nossas


verdades ou estabelecer limites de convivência. O Velho
concordou: “Sempre que necessário. No entanto, a maneira
como fazemos isso traz toda a diferença. A verdade
terá mais chances de prosperar quando expressada de
maneira serena, clara, sincera e amorosa. A verdade

258
deve ser dita apenas quando servir de ferramenta para
o auxílio de alguém, caso contrário, devemos calar.
A verdade nem sempre absolve; lembre que muitas
vezes usamos a verdade com a intenção de ferir ou
simplesmente punir. A verdade cumpre o seu sentido
quando anima e ilumina o coração alheio. Para tanto,
ela precisa estar envolvida em alguma forma de amor.
Temos que tratar a verdade com sabedoria; caso
contrário, discursaremos para ouvidos moucos ou,
mais grave, interpretaremos o famigerado personagem
de moralizador do mundo, os capatazes da sociedade.
No mais, cada uma das partes sempre entenderá
no exato limite da sua expansão de consciência e
capacidade amorosa. Nem um milímetro a mais.
Portanto, insistir é tolice; impor é violência. Contudo,
esteja sempre de coração aberto, sem taxas ou
impostos emocionais, quando retornarem em busca de
ajuda”. Bebericou mais um gole de café e prosseguiu:
“Da mesma forma, devemos estabelecer limites
através das virtudes da doçura e da firmeza, mescladas
com a sensatez, permitidas a cada caso específico,
para não usar uma bomba atômica com o intuito de
deter o abuso dos passos de uma frágil formiga”.

“Em verdade, não existe nenhuma vitória sobre


o outro. A real vitória será sempre sobre si mesmo, na
iluminação das sombras internas, nas transformações
pessoais que movimentam a evolução do ser, na
pacificação de suas emoções e relacionamentos, na
libertação de toda e qualquer forma de dependência
sobre a vontade alheia. A vitória sobre o outro é
uma criação do ego doente e primitivo, viciado em
dominação e aconselhado pelo medo nos trilhos da

259
ignorância sobre quem somos. O descontrole emocional
revela que os fundamentos básicos das virtudes
que ainda não restam sedimentadas no indivíduo.
Em outras palavras, a irritação levada ao destempero
ou à agressividade é a reprovação nas lições essenciais”.

Envergonhado, abaixei os olhos. O Velho


disse com a sua voz mansa: “Não se deixe dominar
pela culpa que pesa e paralisa. O erro é um bom
mestre se você assim o reconhecer. Aceite a
responsabilidade e se comprometa consigo mesmo
de fazer diferente e melhor daqui em diante. A Lei
das Infinitas Possibilidades é inexorável. É assim que
todos caminham. Este é um projeto seguro para a
construção da paz”.

Sorri em sincero agradecimento pelas


palavras doces. Mais confortável, comentei sobre a
briga com o colega de quarto não era nada perto do
desentendimento que havia tido com os meus sócios
na empresa. Aproveitei para contar a crise de ciúme
que tive com a minha namorada. Falei que parecia
que todos me desafiavam ou não se importavam
comigo. O monge deu de ombros, como se eu falasse
sobre algo anunciado, e disse: “Perceba que você
despenca em espiral de sombras e dor por se recusar
a ter boa vontade com o jeito dos outros de ser e, mais
importante, de entender quem você realmente é.
Faz-se necessário serenar todas as emoções dentro
de si para saber o que fazer com cada uma delas.
Em nossas veias navegam os melhores e piores
sentimentos. O que fazemos com cada um deles define
quem somos e em que trecho da viagem estamos”.

260
“O sentimento se espalha em sofrimento
quando fica perdido dentro da gente, perambula pelas
periferias mentais, sem rumo, cresce como uma
mágoa dolorosa cuja a incompreensão atribuímos aos
outros, mas na verdade é uma enfermidade típica de
quem se conhece apenas em parte. Sem entendimento
sobre quem você é por inteiro, não haverá cura; o
coração seguirá em hemorragia e a mente continuará
cega. Por incômodo e incompletude, na menor
oportunidade de conflito, você continuará a extrapolar
a própria dor na vã tentativa de transferi-la para os
outros, ainda que esse movimento seja inconsciente.
Então, perdemos o prumo, o passo e o compasso da
existência. É o reinado das sombras”.

“A ignorância sobre si mesmo é a sombra-mor.


Dela derivam os seus generais: o medo e o egoísmo.
Estes dois comandam as fileiras do ciúme, do orgulho, da
avareza, da mágoa, da dominação, da vaidade, da inveja
e outras variantes, todas bem conhecidas no mundo.
Essas tropas te controlam através de mecanismos como
a raiva, a imoralidade, o moralismo, a falsa moral,
a angústia, a tristeza, as máscaras, a vitimização
pessoal, a vilificação alheia, os personagens sociais
que criamos no anseio por aplausos, a transferência de
responsabilidade, a vingança, o desejo, o abandono dos
sonhos, entre outros. Insatisfeito e incomodado com o
desconforto interno, o indivíduo acaba por manifestar
o sofrimento de diversas maneiras. Violência,
conflitos de diversos níveis, mau humor, impaciência,
dependências de vários tipos, intolerância, tristeza e
depressão são as várias consequências conhecidas do
indivíduo esgotado pelas próprias sombras”.

261
Eu quis saber como tratar as sombras. O Velho
respondeu de pronto: “Com luz, filho. As virtudes são
os instrumentos da luz. A humildade, a compaixão,
o perdão, a simplicidade, a justiça, a pacificação, a
mansidão, a generosidade, a gratidão, a leveza, a vontade,
a honestidade, a sinceridade, a prudência, a doçura, a
paciência, a tolerância, o respeito, o equilíbrio, a pureza,
a coragem, a firmeza, o bom humor, a esperança, a fé,
além, é claro, do amor. O amor é a maior das virtudes
por estar presente em todas as demais”. Bebeu mais um
pouco de café e acrescentou: “Cada virtude é uma ponte
na estrada que leva à plenitude. A plenitude se compõe
da paz, da liberdade, da dignidade, da felicidade e do
amor em sua maior amplitude. O amor é uma ferramenta
e a própria obra. A luz é o destino infinito”.

Deu uma pausa e ofereceu o mapa: “Conheça


a si mesmo e conhecerá a verdade; conheça a verdade
e se libertará”. Perguntei do que eu me libertaria.
O monge respondeu: “Do sofrimento que aprisiona”.
Eu quis saber qual verdade era essa. Ele explicou:
“É o próximo passo que se revela quando estamos no
Caminho. Assim, a verdade se apresenta e se transforma
na régua do avanço do andarilho”. Perguntei, ainda,
o que era o Caminho. O Velho não se fez de rogado:
“É o processo consciente de sublimação das sombras
individuais, a sua transmutação em luz. É a evolução
pessoal como método eficaz da necessidade do
universo de se expandir em todos os seus planos e
dimensões. Ninguém ficará para trás, pois, cada qual
é parte inseparável e valiosa do todo. De um jeito ou
outro, cedo ou tarde, todos são instados a progredir”.

262
Reconheci o meu comportamento conflituoso
para com o mundo e me confessei cansado de ser assim,
em sucessivos descontroles emocionais. O Velho
comentou: “Quando perdemos o controle é porque algo
está errado dentro da gente; no entanto, insistimos em
culpar os outros. Daí estagnamos, sofremos e brigamos.
Quando agredimos alguém significa que nos perdemos
de nós mesmos, esquecemos quem somos e vagamos
perdidos nos becos escuros do próprio ser”.

O bom monge franziu as sobrancelhas


e explicou: “O inferno astral não é uma leitura que
fazemos da abóboda celeste; é a errada interpretação
das nossas emoções. Qualquer sentimento, mesmo os
mais densos, pode se tornar um valioso instrumento
de transformação e da consequente evolução. Não o
negue nem o ignore. Não o sufoque, tampouco lhe dê
vazão. Acolha-o com amor e sabedoria, acompanhe-o
até a sua raiz. Entenda qual das virtudes ali se oculta.
Revele-a”. O Velho sorriu, piscou um olho, e finalizou:
“Então, a luz!”

263
NOS BECOS ESCUROS DO CIÚME
E DA MENTIRA

T
Os horários inusitados e irregulares de
funcionamento da oficina de Loureiro, o elegante
sapateiro amante dos livros e dos vinhos, já
tinham virado lenda na charmosa cidadezinha
localizada no sopé da montanha que acolhe o
mosteiro. A única maneira de saber se o atelier
estava aberto era ir até lá. Por isto, virar a esquina
da estreita rua sinuosa, com calçamento de
pedras, e me deparar com a sua clássica bicicleta
encostada no poste em frente era motivo de alegria.
Fui recebido com um sorriso sincero e um abraço
forte. Eu disse que tinha ido em busca de uma boa
conversa sobre um assunto que vinha me incomodando
há tempos, o ciúme. Loureiro tinha no remendo do
couro o ofício que executava com extrema habilidade;
a costura de ideias era uma arte que ele trabalhava
com rara mestria. O bom amigo decidiu encerrar o
expediente, embora ainda estivéssemos no início da
tarde, e me convidou para almoçar em um tranquilo
restaurante próximo dali. Devidamente acomodados,
o garçom completou as nossas taças com um delicioso
tinto da região; logo em seguida, eu comecei a contar
que ultimamente vinha tendo muitas brigas com a
minha namorada em razão do ciúme que atormentava
o relacionamento. Os desentendimentos vinham
escalando de tom e as discussões estavam cada vez

264
mais desgastantes. Confessei estar cansado de me
sentir assim.

O sapateiro provou o vinho e sorriu em


aprovação. Em seguida, franziu as sobrancelhas e disse
com seriedade: “O ciúme é uma sombra tão comum
que escuto as pessoas falarem que é inerente ao amor.
O ciúme nada tem a ver com o amor; ao contrário, por
ser fonte de muito sofrimento, em verdade, ele nega a
essência do amor”. Bebeu mais um gole e prosseguiu:
“Como toda a sombra, o ciúme precisa de entendimento
para que possa ser iluminado e depois transmutado
definitivamente. Entendimento e transformação, são
algumas das fases do processo evolutivo. Portanto, o
ciúme não deve ser negado, reprimido ou ignorado,
nem tampouco estimulado. O ciúme é um sentimento
que, como um adolescente malcriado, irritadiço e
mimado, precisa de um abraço, de uma conversa
franca, da devida orientação e firmeza para que possa
se tornar um adulto diferente, saudável e feliz”.

Interrompi para dizer que ao contrário de


muita gente que eu conhecia, portadores de ciúmes
doentios, o meu ciúme era saudável. Loureiro
arqueou os lábios em leve sorriso e corrigiu:
“Não existe ciúme saudável. Todos os sentimentos
que causam desconforto, seja um pequeno incômodo,
seja uma profunda dor, precisam de tratamento e cura.
Assim como cuidamos do físico, indispensáveis se
fazem os cuidados com a alma. As emoções, quando
desalinhadas, costumam ser as raízes de muitas das
doenças que se revelam no corpo. O equilíbrio das
emoções tem o poder de conceder a alegria, a leveza

265
e a beleza ao ser; a desarmonia dos sentimentos traz
o peso e o desconforto de viver, que somatizados em
diferentes níveis, revelam desde um nocivo mau humor
até perigosos tumores”.

“As sombras nos habitam e nos dominam


enquanto alimentadas, incompreendidas, negadas
ou reprimidas. Elas utilizam vários mecanismos
de proteção e sobrevivência; por exemplo, quando
transferimos a responsabilidade da nossa dor para os
outros ao invés de buscar a transformação e o equilíbrio
interno. Isso ocorre porque optamos pelo comodismo
de acreditar que somos vítimas do mundo e nos
consumindo em lamentos, reclamações e estagnação;
ou porque no ansiamos por aprovação, aplausos e brilho
e então criamos máscaras e personagens sociais que
escondem a nossa essência, aquele diferencial sagrado
que nos habita, desperdiçando a oportunidade de ser
único e inteiro. Por medo e egoísmo desenvolvemos
comportamentos revestidos de orgulho, vaidade,
inveja, egoísmo, ganância, separatividade e ciúme.
A ignorância sobre quem somos será sempre a mãe de
todas as sombras. Educar as próprias sombras através
do florescimento das virtudes pessoais e transformá-
las em luz é o trabalho maior que cabe a cada um
de nós no aperfeiçoamento do mundo. Enquanto
desconhecermos quem somos, permaneceremos
prisioneiros das emoções densas”.

“Assim, aprofundando o raciocínio, chegamos


a uma sentença simples: apenas quem tem medo sente
ciúmes”. Argumentei que o medo não é de todo ruim,
pois tem a função de nos mostrar os perigos que

266
se avizinham. O artesão discordou: “Ledo engano.
O medo tem que ser enfrentado com vontade e
sabedoria para que não continue a esbulhar e a impedir
de ousarmos em viver os nossos sonhos, de sermos
diferentes e melhores aos padrões estabelecidos por
condicionamentos socioculturais, que acabam por
funcionar como uma espécie de cerca-elétrica, a nos
impedir de ir além e esconder a nossa verdadeira
face”. Bebericou um gole do tinto e prosseguiu:
“O medo paralisa e nos leva à estagnação. Tudo o
que fica estagnado, apodrece. Combatemos o medo
com coragem, virtude derivada da vontade, e com
sensatez e prudência, virtudes oriundas da sabedoria.
A coragem é a virtude que nos impulsiona a seguir
adiante na certeza de que todo desafio é uma lição
oferecida que, ao final, me deixará mais forte e
iluminado. A prudência me avisa dos perigos,
situações inerentes à vida, mas também me lembra
que devo ficar atento às oportunidades que ali se
ocultam. Por fim, vem a sensatez para me auxiliar
na escolha das várias direções que posso tomar
naquele momento. O mais importante é que, dentre
todas as escolhas disponíveis, só não posso parar
de caminhar”.

Loureiro olhou pela janela do restaurante por


alguns segundos, como se o pensamento estivesse
distante e, em seguida, concluiu: “Se mesmo assim
estiver difícil de resolver com as virtudes que acabei
de citar, use a poderosa virtude da fé. Ela nos ensina
que todas as vezes que nos movimentamos no
sentido da luz, o universo trabalhará ao nosso favor.
Invariavelmente”.

267
Interrompi para dizer que o sapateiro estava
errado. Afirmei que eu era um homem corajoso e não
tinha medo da minha namorada. Loureiro arqueou os
lábios em leve sorriso, por perceber que eu ainda não
entendia o que ele falava, e explicou com paciência:
“O ciúme surge do medo que nos acompanha desde
tempos ancestrais. Quando movido pelo instinto
primário, o inconsciente ainda nos condiciona a
dominar tudo aquilo que se apresenta como uma
ameaça. Por errada interpretação, entendemos como
uma ameaça o fato de alguém não mais desejar viver
ao nosso lado. Ao invés de priorizarmos a liberdade
alheia como um eficiente método de respeito a nossa
própria liberdade, acabamos por escolher em controlar
as escolhas do outro, seus desejos e vontades. Assim,
em essência, o ciúme se revela como uma guerra
contra o amor e a liberdade. Paradoxalmente, o medo
de sofrer movimenta todos os demais sofrimentos”.

“Outro equívoco muito comum é acreditar que


outra pessoa terá a capacidade de nos completar, crença
que alimenta o ciúme. Isto não é amor; é dependência.
Viver ao lado de quem amamos, de pessoas que têm
afinidade de olhar e sonhar conosco é simplesmente
maravilhoso. Porém, não devemos nos iludir que
alguém poderá completar o vazio que, porventura,
exista dentro de nós. Claro que aprendemos e ensinamos
com todos, contudo, ainda que alguém possa oferecer
uma lanterna, apenas você poderá iluminar os porões
escuros do seu ser. Mais ninguém”.

“Partimos em viagem ao interior de nós


mesmos em busca das sementes do amor, da liberdade,

268
da paz, da felicidade, da dignidade. São as flores da
vida. Essas sementes, todas escondidas no âmago do
ser, depois de plantadas, germinadas e floridas, devem
ter os seus frutos compartilhados com toda a gente.
Assim seremos plenos; dessa maneira espalhamos
beleza mundo afora. Embora receber amor seja
delicioso e importante, amar é a nossa face divina.
Ao contrário do que se prega, amor não é troca. Amor
é doação; o único amor que tenho é tão e somente
aquele consigo dar. Este é o segredo da plenitude”.

“Só conseguimos viver o amor, de verdade,


quando paramos de exigir amor em contrapartida;
somente sentimos o espírito da liberdade nas veias
quando abdicamos de aprisionar o desejo de alguém
à nossa vontade. Sem dúvida, a recíproca igualmente
se aplica. Esta postura traz consigo a nau da dignidade
a navegar nos mares tranquilos da paz impulsionada
pelas brisas suaves da felicidade sem fim”.

Falei que entendia e apreciava cada palavra


dita pelo sapateiro. No entanto, confessei, eu tinha
certa dificuldade em aplicar aquela teoria à prática.
Acrescentei que sentia ciúmes pois desconfiava
que ela não era sincera em nosso relacionamento.
Acrescentei que ninguém gosta de ser enganado.
A insegurança alimentava o meu descontrole.
O artesão me olhou com bondade e disse: “A perfeita
tradução do ciúme é o medo de alguém se desinteressar
em viver ao nosso lado por desejar outra pessoa.
Acreditamos que ao estabelecer regras, fiscalização
e controles estaremos a salvos. Só se for a salvo
de sermos livres, pois na realidade, contruímos as

269
nossas próprias prisões nas quais somos prisioneiros
e carcereiros um do outro, simultaneamente. Uma
absurda situação na qual o prisioneiro não pode sair,
pois é impedido pelo carcereiro, e este, também resta
aprisionado na função de vigiar eternamente o outro
no cárcere da infelicidade”.

“Claro que ninguém gosta de ser enganado.


O segredo está em entender que é mil vezes melhor
que roubem meus sonhos do que eu ser o ladrão dos
sonhos de alguém. Tenho comigo a capacidade infinita
de me recriar, de inventar um novo sonho para seguir
livre, leve, feliz e em paz. Ao ladrão resta o pesado
fardo do furto, de desemaranhar das teias da fraude em
que se enroscou. Toda a alegria oriunda de qualquer
das ferramentas das sombras é breve como uma
chuva forte de verão, que após algum alívio deixa um
enorme rastro de destruição dentro de quem provocou
a tempestade. Se você prestar atenção perceberá que,
no fundo, todo mal é efêmero no destinatário e ancora
pesado na esfera do remetente. É impossível ser feliz
no exercício das sombras”.

“A mentira é uma sombra tão poderosa que,


além de contaminar todas as relações, facilmente
se torna um vício difícil de largar. O mentiroso não
percebe que a mentira, em essência, é uma falta
de respeito para com ele mesmo. A mentira revela
não apenas a dificuldade em tratar com a verdade,
de ver a real face através do perfeito espelho que é
um relacionamento, mas desperdiça a oportunidade
de ser autêntico; de evoluir. Enquanto o indivíduo se
esconder nas fantasias da mentira não entenderá quem

270
é. Isto o impedirá se tornar uma pessoa diferente e
melhor. Como consequência não conseguirá manter
a leveza indispensável a qualquer romance. Então,
o outro logo se sentirá desconfortável, ainda que
não descubra a mentira, e desejará partir. Embora
naquele instante desconheça que é mentira o que lhe
contam, se sente desinteressado pelo romance, pois
a fraude poluiu a atmosfera do amor. Não esqueça
que o universo se compõe de energias de múltiplas
frequências que se entrelaçam para nos conduzir à
perfeição. Não há como ignorar esta Lei. A mentira
é um feitiço que sempre envenenará a porção na qual
o feiticeiro terá que beber. Há que se ter compaixão”.

“Todo o romance nasce para se tornar uma


linda história de amor. É como um balão que para se
manter suspenso no ar precisa estar sustentado por
uma substância mais leve que o próprio ar. Apenas
o amor possui tal sutileza. Então, quanto mais amor
maior a altura atingida pelo balão. Contudo, a mentira,
em qualquer das suas espécies, é como um gás denso
e pesado que contamina o amor, sempre sutil. Amor
e mentira são substâncias que não se misturam; a
mentira faz o amor desaparecer. Aos poucos o balão
perde altitude e acaba se destruindo nas pedras da
ignorância, do medo e do egoísmo”. Bebeu mais gole
do vinho e concluiu: “Para viver um grande amor é
preciso confiar, é necessário ter pureza. Não há porque
ter receio, pois se houver mentira o amor não se
sustentará”. Tornei a interromper para dizer a frustração
causa muita dor. O sapateiro negou: “Frustração não
precisa ser sinônimo de sofrimento. A frustração pode
trazer superação e crescimento. Depende apenas de

271
como você se comportará diante da situação. Lembre
sempre que ninguém precisa de ninguém para ser
feliz, uma vez que a felicidade é um tesouro escondido
dentro de cada um de nós. No entanto, precisamos dos
outros para dividir a beleza que nos habita, aprender e
ensinar; os relacionamentos são primordiais para nos
tornar pessoas melhores quando há empenho em aparar
as arestas e pacificar o convívio com todos. No mais, a
Lei das Infinitas Oportunidades sempre permitirá que
uma nova história de amor seja escrita em sua vida.
Basta aprender a lição. Afinal, o término de um ciclo
sempre será o início de outro”.

Falei que o discurso beirava a poesia, mas a


vida era bem diferente. Loureiro balançou a cabeça
em negação e disse: “O ciúme é absolutamente
desnecessário. Da mesma maneira que ninguém
precisa se comportar como um detetive a investigar a
existência de supostas mentiras”. Eu quis saber qual
a sugestão dele. O sapateiro foi didático: “Entenda
a Leis Universais e como funcionam. Perceba
que são inexoráveis. Dos simples pensamentos às
escolhas mais sofisticadas, nada passa desapercebido.
As consequências que nos atingem são um método
sábio e amoroso de justiça e educação. Isto torna cada
indivíduo construtor e herdeiro do próprio destino.
Portanto, nunca cabe lamento, apenas empenho na
transformação para que o dia seguinte seja diferente.
Respeite as escolhas alheias, se dedique a fazer
a parte que lhe cabe da melhor maneira possível e
siga em paz. Você sempre receberá na exata régua
do seu merecimento e, por consequência, das lições
seguintes à sua evolução. O rigor ou a suavidade do

272
Caminho se definem pela maneira de o andarilho
pisar no chão”.

Esvaziou a taça e disse: “Durante uma


tempestade, não se abale. Aceite-a como uma oportu-
nidade de fortalecimento e aprendizado; acima de
tudo, se mantenha firme nos fundamentos da luz
e se encante com a resposta do tempo. Assim nos
aperfeiçoamos como viajantes do Caminho. A luz
é um eficiente escudo, uma espada sábia e as asas
mais poderosas que algum dia um poeta foi capaz
de imaginar”.

Olhou-me nos olhos e prosseguiu: “A luz é a


magia da Pedra Filosofal codificada pelos alquimistas,
o segredo capaz de transformar chumbo em ouro, o
sem fim após a finitude. É o Graal escondido pelos
Templários; o nirvana das tradições orientais; a porta
estreita da sabedoria ocidental. Ou, simplesmente,
o empenho na unificação e no exercício de todas
as virtudes em si, como ensinam os esotéricos”.
Deu de ombros e finalizou: “A luz está à disposição de
todos, mas poucos têm a ousadia de aprender a usá-la.
Então, sofrem desnecessariamente”.

273
A FRONTEIRA ENTRE A RIQUEZA
E A PROSPERIDADE

T
Um dos meus sócios na agência de publicidade
conseguiu me localizar na única estalagem da
pequena vila chinesa onde morava Li Tzu. Tanto o
sinal do celular quanto a internet eram precários e
intermitentes em razão da região, não raro, assolada
por fortes ventanias. O recado deixado na recepção
era claro: eu deveria retornar imediatamente das
minhas férias e interromper os estudos do Tao Te
Ching que fazia com o mestre taoista. Uma conhecida
multinacional tinha nos procurado para fechar um
vultoso contrato. Todavia, para atendê-la da melhor
maneira, teríamos que rescindir os acordos com as
pequenas e médias empresas que sempre foram uma
base sólida para a agência. Toda a paz e a felicidade
que eu estava sentindo nos estudos, na meditação
e na prática da ioga, que iniciara naquela viagem,
desapareceram por completo. Fiquei tenso e dividido
entre ir e ficar; entre o risco de aceitar um negócio
milionário que poderia despencar na variação dos
interesses típicos de uma grande corporação, mas
que, se mantido, me deixaria rico ou permanecer no
atendimento às muitas firmas que nos acompanhavam
desde o início da agência. Com os nervos exaltados,
os sócios estavam divididos entre as opções. Acabei
por discutir com um deles ao retornar a ligação.

274
Quando entrei na casa de Li Tzu, Meia-noite,
um preguiçoso e desconfiado gato preto que morava lá,
me olhou espantado, eriçou a pelugem e se escondeu.
O mestre taoista, ao me ver, mesmo sem ainda saber dos
fatos, não hesitou em afirmar: “Algum acontecimento
não foi bem absorvido em seu interior e teve força
para lhe tirar do eixo. A sua energia emana tensão e
desajuste”. Confessei-me agoniado e contei tudo o que
ocorria. Ele me convidou para um chá. Enquanto me
acomodava à mesa, Li Tzu colocou algumas ervas em
infusão, comentei que estava triste de ter que interromper
abruptamente aquele retiro em razão da solicitação dos
meus sócios, pois aquela convivência me fazia bem.
O mestre taoista deu de ombros, como quem fala o óbvio,
ao dizer: “A cada um os percalços a serem enfrentados
no Caminho. O que fortalece o peregrino são as escolhas
de direção todas as vezes que surge uma bifurcação.
E elas são muitas; algumas simples, outras complexas.
De um lado a estrada das paixões; de outro, a vereda do
amor. A cada escolha escrevemos o diário da viagem,
definimos a paisagem que encontraremos a seguir, o
tempo e a dificuldade do percurso naquele trecho”.

Eu quis saber o motivo de algumas escolhas


serem tão complicadas. Li Tzu respondeu com
compaixão: “As escolhas são fáceis quando envolvem
aspectos aparentemente superficiais de nossas vidas;
sofisticadas quando trazem mudanças significativas.
Todas têm importância. Complicadas, no entanto,
apenas quando ainda desconhecemos quem somos.
Isto nos impede de entender para onde seguiremos.
Todas se tornam simples quando sabemos aonde
queremos chegar”. Discordei sob o argumento de

275
que qualquer pessoa no meu lugar também ficaria
dividida e agoniada com a decisão que tomaria.
A chance era boa, porém envolvia riscos consideráveis.
Ele discordou: “Os riscos são inerentes à vida. A ousadia
é necessária”. Perguntei se ele estava aconselhando a
fechar negócio com a multinacional. O mestre taoista
balançou a cabeça: “De jeito nenhum. A ousadia reside
em fazer o que poucos fariam. Está em ir quando todos
acham melhor ficar ou ficar quando todos gostariam de
partir. A escolha tem que ser sua, pois, será você quem
terá que lidar com as consequências e, mais, é parte
essencial do aprendizado que lhe cabe. Cada escolha
funciona como o leme da nau na viagem da existência.
A viagem é pessoal e intransferível, pois traz consigo
a magia da plenitude quando se trava a batalha do
destino. Mas pode levar ao sofrimento quando se luta
a guerra errada”. Falei que não estava entendendo e
pedi que explicasse melhor, afinal, ele era um mestre.
Li Tzu sorriu com sincera humildade e falou:
“Vou ajudá-lo sempre que possível. No entanto, jamais
esqueça que cada qual é o perfeito mestre de si mesmo
e, também, o único guerreiro que poderá conduzi-
lo a vitória”. Em seguida, abriu um surrado exemplar
do milenar Tao Te Ching, no capítulo trinta e três:

“É inteligência conhecer os outros,


é iluminação conhecer a si mesmo.
Vencer os outros é dominação,
vencer a si mesmo é libertação.
Ter muitos bens é riqueza,
Viver com o suficiente traz a prosperidade.
Ser leal aos princípios é sabedoria
Viver por amor permeia o Infinito”.

276
Pediu para que, depois que eu soubesse o
texto de cor, me dirigisse à sala de meditação e ficasse
lá com as outras pessoas que também estudavam o
Tao. Retornei no final do dia em busca de uma boa
conversa e alguma orientação. Li Tzu pediu que eu
fosse para a estalagem descansar e retornasse no dia
seguinte. Isto se repetiu por três dias consecutivos,
sem que eu conseguisse trocar ideias com o mestre
taoista. Ansioso, procurei por Li Tzu para dizer que
eu estava sendo pressionado pelos meus sócios que
pediam a minha volta e exigiam uma decisão em
relação à questão. A multinacional não esperaria
por muito tempo. Ele disse: “O seu tempo é o tempo
perfeito para você”. Falei que não tinha entendido.
O mestre taoista foi didático: “Enquanto o tomate
amadurece em meses, o abacateiro leva anos até a
primeira floração. Assim são as pessoas. Cada qual
tem um período único de gestação para que uma nova
ideia esteja pronta para ser vivida. É o movimento
interno de contração, o Yin, que deve se ampliar ao
limite para restar completo e então possa, em constante
processo de mutação, iniciar a fase de expansão para
o mundo, o Yang. Ambos são igualmente importantes
e imprescindíveis. Daí a importância da paciência
para com toda a gente e, principalmente, para consigo
mesmo”. Olhou-me com bondade e perguntou: “A sua
escolha já está madura?” Respondi que não e por isto
eu estava agoniado. Acrescentei que não achava justo
fazer com que os outros esperassem indefinidamente
pela minha escolha. Li Tzu concordou, em parte: “Claro
que não podemos estender demasiadamente uma
decisão quando terceiros dependem dela. Isto é ruim,
é exercício de dominação. No entanto, também não a

277
podemos apressá-la em demasia apenas no intuito de
atender à ansiedade e aos desejos alheios. Isto também
é ruim; é a permissão da dominação. Algo ou alguém
apenas têm sobre nós o poder que concedemos a eles;
não devemos permitir a interferência sobre as nossas
escolhas. Precisamos nos respeitar, sempre com o
cuidado de manter o orgulho, a vaidade e o egoísmo à
distância. Esta é uma maneira elegante de atravessar
a vida. Isto é libertador”.

Naquele dia, quando voltei para a hospedaria,


liguei para a agência. Quem atendeu foi o sócio com
quem eu havia discutido. Ele me atendeu nervoso,
falando de maneira ríspida. Tratei-o de modo gentil
e mantive a fala serena. Postei-me com humildade
ao pedir ajuda no sentido de que eles esperassem por
mais uma semana pela minha decisão. Deixei todos à
vontade com a opção de me excluírem da sociedade,
fato que eu entenderia pacificamente, embora tenha
deixado claro que eu não desejasse isso. Expliquei que
ainda estava indeciso. Aos poucos ele foi se acalmando
e disse que aguardaria. A conversa me trouxe uma
estranha tranquilidade em razão de ter enfrentado, de
maneira sincera e calma, o medo que me atormentava.
Segui por mais alguns dias com a meditação e a
reflexão sobre as palavras do Tao. Aos poucos as
ideias foram ficando claras como em uma manhã
de inverno na qual precisamos esperar o sol ganhar
força para dissipar a névoa que encobre a paisagem.
Então disse a Li Tzu que já tinha tomado uma decisão.
Ele tornou a me convidar para um chá. Assim que
o mestre taoista encheu as nossas xícaras, falei que
eu era feliz com a vida que eu tinha. Embora não

278
fosse rico, não me faltava nada. Acrescentei que tinha
um ótimo relacionamento com os clientes antigos,
donos de pequenas empresas. Alguns tinham até
virado amigos. Não desejava trocar isso por uma
relação impessoal e de meros resultados numéricos.
Esta era a minha escolha. Perguntei se eu estava errado.
Li Tzu bebeu um gole do chá e disse: “Não existe
certo ou errado. As escolhas devem estar alinhadas à
vida que cada um deseja viver. Respeite as escolhas
alheias como jeito honesto de fazer com que as suas
escolhas sejam respeitadas, principalmente por você
mesmo. O melhor para você não é, necessariamente,
o melhor para o outro; a recíproca se aplica de modo
exato. Isto o faz entender qual é a sua batalha para
não travar a guerra errada”.

“O planeta segue em movimento yang,


de expansão. Tudo parece se agigantar e grandes
corporações ganham mais poder a cada dia. Mas não
se preocupe, pois tudo segue como deve. Ao chegar
ao limite desse crescimento o movimento entrará em
mutação e passará a se mover em contração, em direção
interna. É o yin. Assim nos regem as leis universais.
Isto é a essência do Tao. Na verdade, algumas pessoas
percebem isso e já andam nesse sentido. Entendem a
beleza e a grandeza em ser pequeno. Então, tornam-
se enormes por se tornarem plenas”.

“Entender a diferença entre riqueza e


prosperidade é um passo decisivo para a paz.
A paz interna e, por consequência, a paz no mundo.
Muitos têm riqueza como sinônimo de prosperidade.
A fronteira é imperceptível para os olhos distraídos.

279
A riqueza está ligada ao acúmulo de bens, ao conceito
de quanto mais eu tiver mais poder terei. O indivíduo
passa por toda uma existência empenhado em
amealhar posses; depois fica preocupado em proteger
a riqueza para não perdê-la, pois, segundo raciocínio
típico, seria considerado como uma derrota”.
Olhou-me com doçura e fez uma pergunta retórica:
“Qual a utilidade de ter mais do que se precisa?”

Sem esperar pela resposta, prosseguiu:


“A prosperidade consiste em fazer bom uso com aquilo
que se tem. Não existe nada de errado em trabalhar
e ganhar muito dinheiro. Isto é maravilhoso desde
que se faça algo de bom com ele. O dinheiro é uma
ferramenta importantíssima; somente isto. Todavia,
deve estar a serviço de uma boa obra. Sempre”.

“Mesmo que não tenha uma única moeda


a oferecer, pode um indivíduo ser mais próspero
do que outro que tenha cofres repletos de ouro.
A prosperidade também reside na riqueza de conceder
uma palavra de coragem para uma pessoa que esteja
com medo ou um abraço para quem está triste.
Ser doce e gentil é sinal de prosperidade. Ninguém é
tão pobre que não possa fazer isso, mas é preciso ser
próspero para viver assim”.

“Um operário que receba um salário digno,


que mantenha a si e a sua família com o necessário
para uma vida saudável, dedicado na sedimentação
das virtudes, terá um lar amoroso e uma existência
próspera. A fortuna se oculta nos estados de
plenitude, nas riquezas existenciais da vida: a paz,

280
a liberdade, a dignidade, o amor incondicional e a
felicidade. O verdadeiro tesouro é imaterial e sutil, tal
e qual o espírito. A plenitude traz consigo um poder
incomensurável”.

Fez uma pequena pausa e continuou:


“O rico dono da empresa em que esse operário
trabalha pode até possuir uma gorda conta bancária,
mas se ainda conecta a plenitude ao dinheiro, não
passa de uma pessoa, em realidade, mais pobre
do que o seu funcionário. Embora se esforce para
demostrar poder e alegria em festas, mansões e iates
luxuosos, trata-se de um indivíduo miserável, frágil
e triste. Ele precisa desses enfeites e fantasias no
exercício do orgulho e da vaidade, para se sentir forte
e bonito”. Bebeu mais um gole de chá e ampliou o
raciocínio: “Em contrapartida, um colega daquele
feliz operário, com o mesmo salário e função, pode
ser uma pessoa pobre, agoniada e revoltada com a
sua situação, acreditando-se infeliz pelo fato de não
possuir uma enorme fortuna material, quando, em
verdade, lhe falta a riqueza imaterial, a prosperidade.
De outro lado, nada impede de um empresário
milionário em ser próspero. Basta utilizar os seus
bens com sabedoria tanto no aparelhamento do
bem-estar pessoal quanto às necessidades comuns a
todos. Há inúmeras maneiras de fazer isto”.

“Em suma, a prosperidade passa ao largo da


riqueza. Estará sempre ligada ao sentido que se aplica
à existência pessoal e a todas as ferramentas inerentes
à vida. O dinheiro é uma delas, sendo muito bom
quando bem usado”.

281
“Cada pessoa sempre estará diante da
perfeita batalha. Trata-se daquela travada dentro de
si mesmo, com as armas disponibilizadas sempre
na exata necessidade do aprendizado individual.
Esta é a parte que cabe a cada qual na obra de arte
da vida. Tenha cuidado para não esquecer da sua ao
se distrair com a batalha dos outros. Senão, lutará
a guerra errada. Enfrente a sua com determinação e
se empenhe em ajudar os demais no que for capaz.
Assim, a prosperidade sempre será uma aliada.
Este é o bom combate”.

Arqueou os lábios em leve sorriso, esvaziou a


xícara, e encerrou a conversa: “A prosperidade ensina
que de quanto menos eu precisar, mais livre serei”.

Quando retornei da China tive uma reunião


com os meus sócios. Éramos quatro. Como não houve
consenso, decidimos por nos separar definitivamente.
Eu e mais um manteríamos a nossa agência e ficaríamos
com os clientes antigos. Os outros dois fundariam
uma agência apenas para atender à multinacional
com a exclusividade exigida. Os funcionários que
trabalhavam conosco optaram com quem passariam
a colaborar.

Passados quase dez anos, a multinacional


decidiu por rescindir de maneira unilateral o contrato.
A agência dos meus antigos sócios ainda tentou se
manter no mercado, mas nem sempre é fácil conseguir
novas contas, principalmente dentro dos patamares que
eles se acostumaram e para manter a grande estrutura
que tinham. Resolveram fechar as portas. Como tinham

282
ganho muito dinheiro durante aquele período, puderam
se aposentar sem qualquer dificuldade econômica em
relação ao futuro. Tinham ficado ricos. Um deles foi
morar em uma bela mansão nos arredores de Paris,
cidade onde residia a filha. Mais tarde, eu soube que ele
sofria de depressão pelo fato de encarar o fechamento
da agência como uma derrota pessoal. Tornou-se uma
pessoa de difícil trato. O outro separou uma boa parte
do dinheiro adquirido para montar uma ONG junto a
um subúrbio do Rio de Janeiro, com a finalidade de
instruir jovens carentes nos vários softwares de design
gráfico, indispensáveis para quem deseja ingressar na
publicidade. Era um homem feliz por usar o que tinha,
seja o dinheiro, seja a vasta experiência no setor, em
prol da alegria de todos.

De outro lado, eu e o meu sócio continuamos


com a agência em funcionamento, sempre com
pequenos contratos. Longe de ficarmos ricos, vivemos
com algum conforto. Eu sigo trabalhando muito e me
sinto um pouco mais sereno e alegre a cada dia. Gosto
de ver como consegui ajudar, de alguma maneira,
com o meu dom, o desenvolvimento daquelas antigas
empresas. A amizade com os proprietários dessas
empresas se fortaleceu e, alguns, viraram membros da
minha família. Uma comum-unidade. No entanto, o
sócio que permaneceu comigo, vive se lamentando da
oportunidade perdida de ficar milionário. Tornou-se
amargo. Sempre que surgem as inevitáveis dificuldades,
lamenta que poderia estar no lugar daquele que “está
em Paris, bebendo champanhe na Champs-Élysées”.
Esquece que os anéis de brilhante nem sempre revelam
o verdadeiro poder das mãos de quem os usa.

283
Hoje, quando escuto as pessoas confundirem
riqueza com prosperidade, é inevitável a lembrança
das lições de Li Tzu. Recordo que naquela visita,
quando, com a mochila nos ombros, fui me despedir
dele, o mestre taoista perguntou se a minha escolha
estava madura. Respondi que sim. Ele, então,
sussurrou um dos segredos mais profundos do Tao:
“O poder sobre si mesmo lhe concede a força do
mundo e a beleza da vida”.

284
OS DESERTOS DO SER

T
Quando entrei no refeitório do mosteiro em
busca de uma caneca cheia de café, percebi que o
Velho, como carinhosamente chamávamos o monge
mais antigo da Ordem, conversava com Valentina, uma
jovem e bela monja da nossa irmandade. Ela é uma das
poetisas mais talentosas da sua geração e, nas horas
vagas, trabalha como engenheira em uma conhecida
empresa aeroespacial. Eu tinha acabado de chegar ao
mosteiro e não sabia que ela também estava lá para o
seu período de estudos. Fiquei feliz em vê-la. Somente
quando me aproximei foi que reparei as lágrimas
escorrendo pela face da moça. Fiz menção em me
afastar, mas ela sorriu ao me ver e me convidou para
sentar com eles. Valentina brincou comigo ao dizer
para eu não ter medo de mulheres que choram. Embora
um pouco constrangido, sorri e balancei a cabeça ao
afirmar que eu não tinha problemas com isso, apenas
não queria atrapalhar a conversa. Ela insistiu para que
eu sentasse. O Velho abriu um largo sorriso ao perceber
que Valentina mantinha o bom humor e a delicadeza
apesar da dor, indicou com o queixo uma cadeira ao
seu lado e disse: “Lágrimas são gotas que transbordam
quando os mares do coração estão agitados”.

A poetisa explicou que vinha se preparando


há tempos para ocupar um cargo em nível mais
elevado na empresa. Todos os colegas mais próximos

285
consideravam como certa a sua indicação. Ela também.
Ocorre que na última reunião a diretoria optou por outro
funcionário para preencher a vaga. Fato que ela achou
injusto e a encheu de mágoas. Com os olhos mareados,
a jovem monja disse que estava ressentida e, confessou,
até mesmo com uma ponta de raiva. Aproximava-se a
hora de retornar e ela comentou que, embora amasse o
seu trabalho, considerava a hipótese de pedir demissão
para mergulhar em um período sabático no mosteiro
em busca de reflexão e entendimento.

Falei que era uma excelente ideia. Ela esboçou


um sorriso tímido e olhou para o Velho como quem
procura por aprovação. O bom monge franziu as
sobrancelhas e disse com seriedade: “Penso que
não é boa ideia. Períodos sabáticos costumam ser
bastante proveitosos quando alteramos o eixo de nossa
rotina para nos aprofundar em uma vivência que nos
permitirá uma percepção diferente sobre todas as
coisas. Não acho que esse seja o caso”. Argumentei
que ela precisava entender qual rumo daria a sua vida
profissional. Valentina fez um movimento de cabeça
em concordância. O Velho tornou a discordar: “Essa é
a ideia e a imagem de si mesmo que a Valentina tenta
se convencer. Na verdade, nesse caso, o retiro é um
disfarce para a fuga da realidade”. Bebeu um gole de
café e concluiu: “Todas as fugas são sombrias”.

“Todas as vezes que sentimos raiva ou mágoa


significa que tivemos o ego atingido pelas escolhas
alheias. Ao permitir que tais sombras assumam o
controle das nossas vontades perdemos poder sobre
nós e nos afastamos da luz”.

286
“As maneiras de reagir são várias e definem
quem ainda não somos. Uns se utilizam de ofensas,
lamentos e maledicências; outros, negam a mágoa e
se dizem ‘apenas decepcionados’ e usam a violência
do desprezo para satisfazer o orgulho ferido.
Muitos ficam incomodados pela imagem que o fato
reflete, como um espelho, mostrando a insensatez do
ego exacerbado ou a mentira que a vaidade, usada
como maquiagem, escondeu; alguns tentam se ocultar
na ilusão de que o mundo não é um bom lugar e as
pessoas são nocivas, então, optam por se retirar da
realidade pelo medo que têm de enfrentá-la. Assim,
terminam desanimados perante a vida”. Fez uma
pausa e disse com sinceridade: “Esta última hipótese
me parece ser o caso em questão”.

Valentina argumentou que talvez a empresa


não mais atendesse aos seus anseios profissionais e
que era preciso considerar a necessidade de respirar
novos ares. O Velho contrapôs com bondade:
“Conhecer diferentes paisagens é sempre muito bom,
pois motivam para as indispensáveis transformações
pessoais. No entanto, até pouquíssimo tempo atrás
você adorava a empresa na qual trabalha. O simples
fato de ter sido preterida para a promoção desejada
não me parece o suficiente para alterar a realidade.
É preciso entender o quanto de orgulho e vaidade,
seja diante dos outros funcionários, seja perante si
própria, podem estar deturpando o melhor olhar.
Toda a verdade se inicia com a clareza e a sinceridade
com que tratamos os nossos sentimentos, mormente
aqueles que temos dificuldade em enfrentar e, por

287
isto, negamos. Costumamos negar a imagem refletida
no espelho quando este não mostra a face idealizada”.

“É preciso aprender a lidar com as próprias


frustrações. Esta é a razão dos relacionamentos serem
fontes de preciosas e indispensáveis lições. Os nossos
desejos, por mais puros que sejam, nem sempre estão
no diapasão das escolhas alheias. Aceitar isso como
algo natural e de modo tranquilo é um importante
passo para a conquista da plenitude. É uma atitude de
respeito para consigo e para com o mundo”.

“As decepções podem ser um tiro mortal capaz


de lhe tirar definitivamente de combate. No entanto,
pode, também, ser a porção mágica que despertará em
você habilidades e poderes desconhecidos até aquele
momento, capazes de transformá-la em uma pessoa
diferente e melhor. Como prosseguirá a narrativa dessa
história é uma escolha da maturidade. É a definição
pelas sombras ou pela luz que habitam em você”.

“A mágoa ou a decepção pela decisão de


alguém, principalmente quando me afeta de alguma
maneira, revela que ainda existem desertos em meu ser”.

“Cada pessoa mora dentro de si. Desertos


ou jardins são obras internas e individuais.
Compartilhamos flores ou tempestades de areia com
o mundo, a depender da obra a que nos dedicamos”.
Interrompi para dizer que não tinha entendido.
O Velho foi didático: “Em resumo, tudo se define se
nos empenhamos na vitória diante dos outros e do
mundo ou se nos dedicamos às conquistas pessoais.

288
Aquela traz a fama e os aplausos; esta te oferece
a verdadeira riqueza da vida, a plenitude, traduzida
em seus cinco estados: liberdade, paz, felicidade,
amor e dignidade”.

“As reverências e homenagens do mundo,


não raro, agigantam as sombras, fragilizando o ser, ao
torná-lo, cada vez mais suscetível às ofensas, melindres,
mágoas, decepções e tristeza. O aprimoramento do
ser traz a cura para toda a dor. É a luz transmutando
as sombras, como flores que germinam na aridez do
deserto até que se torne um belo jardim e as tempestades
de areia desapareçam por completo”.

“O vício da preguiça ou do medo em


enfrentar os desafios que nos são afins, exige que
os outros saciem em nós uma fome sem fim que,
em essência, cada qual deve esgotar em si mesmo.
Acabamos por buscar fora algo que apenas existe
dentro. Nesta dinâmica, invariavelmente, o mundo vai
nos decepcionar. Não por equívoco de alguém, mas
por descuido próprio. A conquista da plenitude é uma
batalha pessoal, travada dentro de si e aperfeiçoada
no convívio com toda a gente”.

“Cada dificuldade pode ser encarada como


uma decepção, uma mágoa, um sofrimento, uma
tristeza ou uma desistência. Então, você terá um
problema impossível de resolver. De outro lado, se
essa mesma dificuldade for enfrentada como uma lição
oferecida pela vida, você terá a honra e a alegria de
estar diante de um mestre”.

289
“Um problema pode te levar para o meio
de um deserto inóspito e te abandonar lá. Porém,
esse mesmo problema pode ser o celeiro de valiosas
sementes para um novo ciclo de vida. Flores e frutos;
perfume e beleza, não permitidos até então. Apenas
você tem o poder de definir sobre os jardins ou os
desertos da sua própria vida. Nada mais ou ninguém”.

Deu de ombros e murmurou: “Vocês não


fazem a menor ideia do poder que os habita”.

A poetisa lamentou que a prática era bem


diferente da teoria. Disse que a arte está em fazer
desta, aquela. Acrescentou, porém, que não sabia
como começar, pois, além de se considerar injustiçada,
confessou que sentia vergonha de retornar diante
dos colegas no mesmo cargo que ocupava antes,
quando todos tinham a promoção como certa.
O Velho arqueou os lábios em doce sorriso e lembrou:
“Considere que o funcionário escolhido pela diretoria
pode estar mais bem preparado do que você, fato
que não deixaria qualquer rastro de injustiça. Quase
sempre somos tendenciosos quando analisamos fatos
nos quais estamos envolvidos. Caso em que você
deveria seguir se empenhando para estar apta quando
uma nova oportunidade surgir. De outro lado, se mais
à frente a opção da empresa se mostrar equivocada,
tornarão a lembrar de você caso esteja preparada e
disposta a trabalhar com dedicação. Em qualquer das
hipóteses, jamais se sirva das lamentações. Silêncio,
bondade e trabalho sempre serão a melhor resposta.
Mantenha-se firme nos fundamentos da luz e conceda
tempo ao universo para que o processo se complete”.

290
Piscou um olho como quem conta um segredo e
concluiu com uma frase enigmática: “Os dedos do
universo são longos”.

Tornei a me intrometer para questionar


quais seriam os fundamentos da luz. O Velho se
mostrou paciente: “Viva sempre no expoente das
suas virtudes. Fortaleça e se fortaleça naquelas que
já estão presentes e permita que a luta diária possa
trazer, do âmago à tona, as demais virtudes ainda em
estágios embrionários. Trate a sua vergonha, orgulho
e vaidade com a mais ampla humildade; quanto a
estas sombras nos outros, seja farto em compaixão;
diante dos equívocos alheios, perdão; sinceridade e
delicadeza no trato com todos; honestidade ao olhar a
própria face no espelho; sensatez e serenidade diante
das próximas escolhas; paciência, determinação,
esperança e fé perante a vida. São algumas das
ferramentas disponíveis capazes de mudar o destino
de toda a gente. Na verdade, talvez sejam bem mais
do que isto, são instrumentos de cura, os degraus
para a plenitude. As virtudes são o amor e a sabedoria
em movimento”.

No dia seguinte a essa conversa, Valentina


retornou ao seu país e seguiu na empresa que
trabalhava. Três anos se passaram sem que eu voltasse
a encontrar com a poetisa. Nossos períodos anuais de
retiro no mosteiro ficaram desencontrados, até nos
reunirmos em uma solenidade da Ordem. Quando
a vi, ela estava rindo em animada conversa com o
Velho. Nem de longe parecia aquela moça afogada em
melancolias. Ela fez um sinal para eu me aproximar

291
assim que me avistou. Recebeu-me com um sorriso
sincero e me entregou um envelope. Adiantou que
era o convite para o seu casamento. Perguntei quem
era o homem mais sortudo do planeta e ela contou
que vivia um belo filme escrito por um roteirista
encantado. Explicou que após aquela conversa no
mosteiro seguiu empenhada nos seus estudos e
trabalhos, sem se deixar envolver com comentários
maliciosos sobre a decisão da empresa. Com o passar
dos meses, o funcionário escolhido para o cargo se
mostrou um homem competente e sério, no entanto,
o projeto envolvido era grandioso e ele necessitou
de ajuda. Convidou-a para montarem uma equipe.
Disse que admirava não apenas a sua capacidade
profissional, mas a postura digna que manteve durante
todo aquele período. Em plena afinidade, de braço
direito ela se tornou uma feliz namorada; de potencial
adversário, ele virou um marido apaixonado.
Amam-se profundamente. O Velho não disse palavra,
apenas sorriu e mostrou as mãos espalmadas como
quem diz: “Os dedos do universo são longos”.

Brinquei ao perguntar se ele era vidente.


O monge achou engraçado e negou: “Não é preciso.
Basta prestar atenção nas Leis. Elas se movem a favor
da luz e são inexoráveis”.

Afastei-me do burburinho e fui para a


varanda. Repousei a taça de vinho na murada e abri
o envelope com o convite. Como era de se esperar,
abaixo das formalidades comuns, havia uma bela
poesia de Valentina:

292
O VIAJANTE

“Um viajante perdido conversava com um


grão de areia.

Viajante: O deserto não tem fim.

Grão de areia: Você se move orientado pelas


dunas, todos os dias o vento as muda de lugar.

Viajante: Estou aprisionado em mares de areia.

Grão: Se guie pelas estrelas.

Viajante: Durmo à noite; ando de dia. O sol


esconde as estrelas.

Grão: À noite, veja onde as estrelas estão; de


dia, leve-as no seu coração.

Viajante: Tentei, mas o meu coração é traiçoeiro.

Grão: Ao abandoná-lo, você esqueceu como


ouvi-lo.

Viajante: Preciso do meu camelo, não do


meu coração.

Passados alguns dias, voltaram a conversar.

Viajante: Estou quase sem água. A sede matou


o meu camelo.

293
Grão: O deserto não é um bom lugar para
se viver.

Viajante: Por que existem os desertos?

Grão: Para nos ensinar a ver as estrelas


dentro do coração.

Viajante: Lá vem você com a essa história tola.

Grão: É a única que conto, pois é a única


que acredito.

Viajante: Se eu fizer o que aconselhas, sairei


do deserto?

Grão: Não.

Viajante: Então, esqueça.

Vencido pelo sofrimento e pelo cansaço, o


viajante tornou a chamar pelo grão de areia.

Viajante: O que acontecerá se eu seguir as


estrelas guardadas no meu coração?

Grão: Você encontrará uma semente.

Viajante: Esta semente me ajudará a sair


do deserto?

Grão: Não.

294
Viajante: Do que me serve a semente?

Grão: Para transformar o deserto em jardim.


Um jardim é um bom lugar para se morar.

Viajante: Afinal, para que serve o deserto?

Grão: Para mostrar o valor e onde se esconde


a semente”.

Guardei o poema no bolso do paletó. Olhei


para o céu; a lua crescente me pareceu os lábios do
universo a sorrir para mim.

295
O SAGRADO

T
Canção Estrelada, o xamã que tinha o dom de
difundir a sabedoria do seu povo através da palavra,
cantada ou não, baforava o seu indefectível cachimbo
de fornilho de pedra vermelha enquanto, da varanda
da sua casa, em silêncio, observávamos as cores com
que o sol poente pintava as montanhas e o céu do
Arizona. Na sala da casa, Canção Estrelada mantinha
um pequeno altar. Diferente da minha tradição
cristã, na qual mantenho imagens de Jesus, Fátima
e Francisco de Assis ou na casa de Li Tzu, o mestre
taoista, onde vemos pequenas estátuas de Buda, Shiva
e Ganesha pelo jardim de bonsais, no altar do xamã
repousava uma pena de águia, uma garra de urso, seus
animais de poder, o tambor de duas faces usados em
seus cerimoniais, algumas pedras que ele, em respeito,
reverenciava como “o ‘povo’ mais antigo, que traz toda
a memória e a energia dos acontecimentos vividos no
planeta desde tempos imemoriais”, além de muitas
plantas. Eu entendia bem como funcionava toda a
linguagem e a ritualística xamânica com as suas fortes
e belas conexões telúricas. No entanto, algo me causava
estranheza. Tratava-se de um sapato de palhaço, bem
antigo, daqueles tradicionais, enorme, colorido e com
o bico propositalmente aberto.

Tomei coragem e perguntei a razão daquele


objeto em seu altar. O xamã afastou o cachimbo da

296
boca, fechou os olhos como se a memória o levasse
a uma viagem distante e disse: “Na adolescência
trabalhei como palhaço-mirim por um breve período
em um circo que rodou esta região. Foi uma época
de muitos risos”. Fez uma breve pausa e prosseguiu:
“Ele é sagrado para mim”. Argumentei que não se
tratava de um objeto sagrado, mas de uma agradável
lembrança. Canção Estrelada virou a cabeça em
minha direção para me olhar nos olhos e disse:
“Tudo aquilo que me torna um homem melhor é
sagrado. As imagens de mestre Jesus ou de mestre
Buda apenas serão sagradas se tiverem em você a
força de recordar as lindas lições deixadas por eles.
Este é o poder delas”. Questionei como um sapato
de palhaço poderia ajudar em seu processo evolutivo.
O Xamã explicou com paciência: “A alegria é uma
característica dos espíritos iluminados. Trata-se uma
vigorosa ponte que nos liga ao mundo invisível. Todos
os dias, quando passo pela sala de casa, o sapato tem
o poder de não me permitir esquecer a importância
da alegria na vida”. Fez uma pausa e concluiu:
“A mais eficiente prece de gratidão ao Grande Mistério
por todas as bênçãos da existência é a semeadura da
alegria por onde passarmos”.

Depois dessa conversa tive que ficar fora por


alguns dias em razão de uma viagem a uma cidade
próxima para resolver assuntos profissionais. Pensei
muito sobre o conceito que Canção Estrelada tinha
sobre o sagrado e até considerei acrescentar mais
alguns objetos no pequeno altar da minha casa.
Quando retornei foi inevitável que procurasse pelo

297
sapato de palhaço na sala de Canção Estrelada.
Para a minha surpresa, não estava lá. Mais tarde,
enquanto tomávamos café e conversávamos na
varanda, indaguei pelo sumiço do sapato. O Xamã me
disse com simplicidade: “Eu dei o sapato ao filho da
minha irmã”. Questionei o motivo de ele se desfazer de
algo tão precioso para si. Canção Estrelada explicou:
“O jovem estuda para ser ator e não sabia que o tio
já tinha trabalhado nos palcos. Ficou encantado e
pediu para levar como objeto de inspiração. Permiti
com alegria”. Ainda sem entender, perguntei se era
correto se desfazer de um objeto sagrado. O xamã
sorriu e falou: “Era mais importante para ele do que
para mim. Temos que ter cuidado para que a nossa
casa não vire um museu, algo bem diferente de
termos um altar, com tudo aquilo que nos ajuda na
conexão com o infinito e nos transforma. Um altar
pode ser material ou imaterial, assim como tudo o
mais que o compõe”.

Discordei por completo. Falei que era um


sacrilégio não respeitarmos o sagrado. Canção
Estrelada arqueou os lábios em leve sorriso e explicou:
“O objeto é mundano; sagrada é a conexão”.
Argumentei que, se o sapato o lembrava da importância
da alegria na vida, ele não deveria se desfazer dele”.
O xamã me olhou atentamente. Percebi em seus olhos
uma mistura de paciência e compaixão. Ele apenas
pediu: “Tem uma anciã que mora em São Francisco.
Ela chegará à aldeia para a reunião do Conselho em
poucos dias. Peço que a aguarde para continuarmos
essa conversa”.

298
Passado uma semana, ela chegou. Nayelli
era o seu nome. Uma mulher morena, magra e ágil,
na mesma faixa etária de Canção Estrelada, com
fortes traços étnicos. Os cabelos compridos, já
grisalhos, eram presos em rabo de cavalo. Tinha um
olhar e uma postura que emanavam uma estranha
e incomensurável força. A fala, embora firme,
demostrava uma bondade enorme e sincera. Percebi
que era muito querida por todos. Assim que trocou
de roupa foi ao nosso encontro. Fomos apresentados
e ela se mostrou gentil. Saímos os três para uma
caminhada até um enorme lago não muito distante.
Enquanto andávamos, os dois conversavam. Nayelli
era uma bem-sucedida editora. Ela publicava livros
que falavam sobre a história, a filosofia e a mitologia
dos seus ancestrais, seja através de biografias, seja em
romances de ficção. As obras vendiam aos milhares,
mensalmente, em diversos países. Era uma pessoa
de hábitos simples sem demonstrar a boa condição
financeira que alcançara. Quando chegamos ao lago,
já era final da tarde. Canção Estrelada me pediu
para acender uma fogueira e avisou que passaríamos
a noite ali. Ele tinha levado mantas para todos. Logo
o céu ficou salpicado de estrelas, nos aproximamos
do fogo para afastar o frio e uma enorme lua cheia
veio nos visitar, surgindo por detrás das montanhas,
vizinhas ao lago, ao norte. O xamã batucou o tambor
de duas faces em ritmo suave e Nayelli começou a
cantar uma linda e sentida canção. Em seguida, com
a face banhada em lágrimas, se levantou e começou a
dançar na beira do lago, ao som da melodia. Canção
Estrelada e Nayelli tinham no rosto um sorriso sereno,
pareciam em êxtase; eu olhava tudo, admirado.

299
Passado um tempo que não sei precisar, a
mulher se sentou ao nosso lado, junto à fogueira.
Aos poucos o tambor de duas faces diminuiu o ritmo
até silenciar. Canção Estrelada acendeu o indefectível
cachimbo com fornilho de pedra vermelha e pediu
para Nayelli me contar um pouco sobre a sua vida
para eu entender o que tinha presenciado. A editora
contou que havia se casado muito jovem com outro
membro da tribo, um homem digno e amoroso.
Logo nasceu o filho do casal, um lindo e saudável
menino. Formavam uma família feliz. Pouco depois
sofreram um acidente automobilístico, o que encerrou
a passagem do marido e do filho nesta existência.
Nos primeiros meses se sentiu desorientada e sem chão.
Confessou que, na verdade, se sentiu complemente
destruída. Eram tantos cacos que chegou a duvidar
se algum dia tornaria a se sentir inteira. Não sabia
o que fazer da vida e até mesmo como sobreviveria,
uma vez que sempre cuidara da casa e do filho
enquanto o marido trabalhava. Não eram ricos e a
poupança era pouca. Até que um dia ela resolveu
passear nas montanhas e aconteceu algo estanho.
Foi como se o vento soprasse uma voz que dizia para
ela encontrar forças na sabedoria do seu povo.

Nayelli ajeitou a manta sobre os ombros para


se proteger do frio, que aumentava à medida que a
noite avançava. Em seguida, prosseguiu: “Passei
alguns dias sem entender bem a mensagem, mas
a voz não me saía da cabeça. Lembrei que um dos
ensinamentos mais preciosos da filosofia do meu
povo é que todo o poder emana do próprio ser. Somos
o lar do Grande Mistério adormecido. Cabe a cada

300
um despertá-lo em si. Na tradição cristã esta valiosa
virtude é conhecida como fé”.

“Comecei a me sentir um pouco mais forte a


cada dia, mas ainda não tinha uma direção. Foi quando
tive uma conversa com um xamã muito jovem naquela
época”. Neste instante ela olhou para Canção Estrelada,
ofereceu um sorriso de agradecimento e continuou a
contar: “Ele me orientou a usar o meu dom. Eu disse
desconhecer qual era o meu dom e ele respondeu que
os dons se ocultam nos sonhos. Aconselhou-me a
buscar o meu sonho, pois lá encontraria o meu dom.
Tornei a me sentir desorientada, pois considerei vagas
as orientações. No entanto, era tudo o que eu tinha.
Eu nunca havia pensado em quais eram meus sonhos
e dons. Cheguei a acreditar que se misturavam ao me
tornar uma boa esposa e uma mãe dedicada. Embora
isto tenha me feito feliz enquanto me foi permitido e
este seja o sonho e o dom de muitas mulheres, não era o
meu. Não eram essas as habilidades que me ajudariam
a atravessar a estrada desta existência”.

“Tudo que eu sabia tinha aprendido com os


contadores de histórias nativas, que ouvia desde a
infância: sonho e dom são os pilares da ponte que ligam
o coração à vida. Este era o meu ponto de partida”.

“Naquela época, para afastar a tristeza,


eu comecei a alimentar a esperança através da
leitura. As mais belas histórias são as de superação.
Comecei a entender que eu tinha que viver a minha.
Somente esta vivência me traria a força e a sabedoria
necessárias, que, por sua vez, chegariam à medida

301
em que eu avançasse nas páginas da minha história.
Fugir da própria história é fugir de si mesmo, é negar
a realidade; é abandonar o sonho, abdicar do dom e
virar as costas para o Caminho. É não conhecer o mel
da vida; é recusar o sal da terra”.

“Comecei a perceber a alegria e a esperança


oferecidas pelos livros. Os livros são ferramentas
valiosas e eu os amava. Dei-me conta de uma enorme
quantidade de maravilhosas histórias nativas, de
profunda sabedoria, desconhecidas do mundo, que
ficavam restritas ao meu povo. No entanto, eu não
passava de uma mulher sozinha, sem experiência e
sem dinheiro. Aparentemente, tudo estava ao meu
desfavor, salvo o amor que me impulsionava. Comecei,
de casa, a editar essas histórias, juntar as mais curtas
em coletâneas e a procurar por outras. Logo eu tinha
um excelente material em mãos. Foi quando parti para
São Francisco na aventura da busca por editoras que as
publicassem. No início foi bem difícil e recebi muitas
negativas, até que consegui a primeira publicação e
obtive uma resposta satisfatória dos leitores, que se
mostraram encantados com o universo que eu lhes
apresentava. Então, aos poucos, tudo cresceu, a ponto
de algum tempo depois eu montar a minha própria
editora. Hoje, um selo respeitado pela qualidade
dos textos que publica”. Deu de ombros e disse:
“Em resumo, essa é a minha história”. Fez uma pausa, seu
olhar se transportou na imensidão do céu, e acrescentou:
“E ela começa aqui, neste lago, diante desta lua”.

Pedi para que Nayelli explicasse melhor.


Ela foi gentil: “Após a partida do meu marido e do meu

302
filho, eu me senti destruída, abandonada e cheguei
a duvidar se algum dia tornaria a ter alegria e vontade
em viver. Eu olhava para os potes que guardavam
as cinzas deles e me afogava em tristeza. Um dia,
lendo um livro, me permiti uma interessante analogia
de ideias: a tristeza e a covardia eram o avesso dos
espíritos daquelas pessoas que eu tanto amava.
Eles tinham que ser a minha força e não a minha
fraqueza”.

“Entendi, também, algo extremamente


poderoso e sagrado: quanto maior a destruição, maiores
as possibilidades de transformação”.

“Era uma noite de lua cheia, vim até a beira


deste lago e lancei as cinzas ao vento. Em prece, pedi
que a avó-lua encaminhasse serenamente os seus
espíritos até os braços do Grande Criador”. Preso aos
meus conceitos, indaguei se não era um sacrilégio jogar
fora os restos mortais de entes queridos. Nayelli me
sorriu com compaixão e explicou: “Eu não joguei fora,
ao contrário, eu libertei a nós três. Desejei-lhes que
seguissem em viagem de aprendizado junto ao Infinito
e me permiti começar aqui uma nova jornada com as
lições e as incumbências que me eram apropriadas”.
Argumentei que as cinzas eram sagradas e agora não
estavam mais guardadas no pote. Ele me respondeu:
“Eu as entreguei aos cuidados da lua. Agora, em
qualquer lugar do planeta que eu esteja, basta que eu
olhe para o céu; eu os sentirei. Para mim, eles estão
em todos os lugares, não mais apenas dentro do pote.
A conexão está feita. Seja na lua; seja no meu coração.
Sagrado é o amor. Todo o resto são apenas pontes”.

303
Tornou a dar uma pausa e concluiu:
“As pontes podem ser de cimento, de pedras, de
madeira, de porcelana ou mesmo de cinzas. As mais
sólidas, não tenha dúvida, são as construídas pelo
mais puro amor”. Perguntei de ela sentia saudade
deles. Nayelli me ofereceu um sorriso bondoso e
disse: “Claro! Eu adoro sentir saudade. A saudade
é sagrada, pois apenas existe onde há amor.
No entanto, a saudade para ser sagrada tem que
ser alegre, como são alegres o amor e a liberdade.
Quando sinto saudade deles, posso estar em Londres
ou Hong Kong, olho para céu, danço, canto as belas
canções que conheço e o meu coração fica em paz.
A lua é o meu altar, ela é sagrada para mim”.

Canção Estrelada voltou a ritmar uma melodia


suave no tambor de duas faces. Fechei os olhos e me
deixei envolver pela música. Parecia que as batidas
eram compassadas com a pulsação do planeta. Senti
uma agradável sensação de estar conectado ao Todo.
Uma sensação sagrada. Ao final, o xamã falou:
“O sagrado está em toda parte, se oculta no mundano,
nos afazeres simples do cotidiano. O sagrado está nas
virtudes, pois é na maneira como cada um reage às
contrariedades da vida que conseguirá revelar a sua
outra face. A face divina”.

Fez uma pausa, olhou nos olhos de Nayelli e


finalizou: “Agradeço a tudo aquilo que me destrói. Pois
é justamente quando preciso de mim é que descubro
quem eu sou. Então, me transformo e o universo se
manifesta em luz. Isto é sagrado”.

304
A REALEZA DO MUNDO

T
O trem tinha me deixado cedo na estação
da pequena e charmosa cidade que fica no sopé da
montanha que acolhe o mosteiro. Como a minha
carona até a sede da Ordem era para o final da tarde,
decidi arriscar a encontrar aberta a oficina de Loureiro,
o sapateiro amante dos livros e dos vinhos, lendária
não apenas pela habilidade do artesão em costurar
tanto o couro quanto as ideias, mas também pelos
horários inusitados de funcionamento. Naquele dia
a loja estava fechada, embora todo o comércio local
estivesse em plena atividade. Um jornaleiro próximo
me informou que o meu amigo tinha trabalhado noite
adentro, cerrando as portas assim que amanheceu.
Resolvi seguir para uma cafeteria em busca de uma
xícara de café fresco e um pão com o bom queijo da
região na chapa. Antes, comprei o jornal para me fazer
companhia. Enquanto andava pelas ruas estreitas e
sinuosas com calçamento de pedras, típicas daquela
cidadezinha, passei os olhos nas manchetes e li que
uma famosa rainha de um país europeu havia falecido.
Embora o cargo fosse apenas protocolar e simbólico,
sem qualquer poder administrativo, a reportagem
relatava uma grande comoção. O enterro ocorreria
com toda a pompa.

Ao entrar na cafeteria me deparei com


Loureiro, sentado à última mesa, fazendo o desjejum

305
enquanto lia o mesmo jornal. Abriu um sorriso
sincero quando me viu, se levantou para me dar um
forte abraço e me convidou para sentar com ele.
Era um homem elegante. Magro, alto, com o corpo
ágil e ereto apesar da idade, os cabelos completamente
brancos. Ele vestia uma calça preta de fina alfaiataria
acompanhada de uma camisa imaculadamente branca,
com as mangas dobradas até a altura dos cotovelos e
sapatos de confecção própria. A sua elegância sempre
me chamou a atenção. Sentados, comentei a surpresa
pela morte da rainha ter causado tanto burburinho.
Sugeri que talvez fosse pelo fato de a realeza estar
ligada à época romântica do mundo. Não que eu
fosse a favor de qualquer tipo de absolutismo, muito
pelo contrário, repudiava a centralização do poder
público e o cerceamento das liberdades, individual
e coletiva. Eu achava que a globalização deixara
o mundo muito “sem sal”. Reis e rainhas eram
de um tempo em que o mundo era mais elegante.
Hoje, jovens de Paris, Tóquio ou do Rio de Janeiro se
vestem iguais: jeans, t-shirts e tênis. As roupas, que
sempre marcaram diferenças culturais, eram cada vez
mais parecidas, assim como os hábitos e os gostos.
Falei que o planeta estava ficando sem graça e as
pessoas se ressentiam disso.

Loureiro esperou que a simpática garçonete


me servisse o café e eu o bebericasse. Em seguida,
disse: “Acho que não. Penso que muitas pessoas,
ainda que inconscientemente, se sentem fragilizadas
e abandonadas. Como reis e rainhas representam
uma época em que os soberanos, apenas em tese,
cuidavam dos seus súditos, a morte deles nos dias

306
atuais, traz a sensação ancestral de orfandade por
parte da população. Isto apenas ocorre quando o
indivíduo ainda não consegue entender quem é, não
consegue dar conta de si, se sente impossibilitado de
equilibrar os próprios sentimentos ou não consegue
articular com clareza as suas ideias. Então, transfere
a responsabilidade pela sua felicidade e, assim, o
falecimento de um monarca é interpretado como uma
perda pessoal, capaz de afetar o seu bem-estar”.

“De outro lado, concordo que, aos poucos,


a diversidade cultural do planeta vem se misturando
e se tornando una. Fato que não considero de todo
ruim. Isto não deixa o mundo sem graça, ao contrário,
apresenta um novo gosto e sabor. Seguimos para a
construção de uma cultura multidiversificada, uma
cultura planetária. Abre-se a possibilidade de cada
um conhecer o que considera mais interessante
em cada cultura, inserindo ao jeito de ser e viver
os aspectos que escolher para si. Como se todas as
diferenças e possibilidades estivessem ao dispor de
todos. Isto traz, ainda que em segundo plano, mas
não menos valoroso, a ideia do cidadão planetário,
da quebra de fronteiras, da igualdade de condições,
da aceitação das diferenças, do respeito pelas
liberdades, de relações mais justas, dos direitos mais
amplos, desde que tomemos o devido cuidado para
que nenhuma característica, de qualquer tipo, reste
alijada na montagem desse novo mosaico. Para tanto,
precisamos da atenção de todos para com todos,
principalmente nas relações simples e comuns do
cotidiano. Conheço pessoas que são assim. Estes são
os verdadeiros príncipes e princesas do mundo”.

307
“A nobreza dos dias atuais não é mais
caracterizada por essa bobagem de títulos nobiliárquicos
nem por laços sanguíneos. Nobre é o indivíduo que trata
os demais, seja filho, vizinho ou um mero desconhecido,
como se ele fosse a pessoa mais importante do mundo.
E, em verdade, é. O faz, não por encenação, mas por
sentimento, com sinceridade e amor, pela consciência e
responsabilidade em saber do valor dos mínimos gestos
individuais na harmonia da obra coletiva”.

“Reis e rainhas do planeta são, desde sempre,


aqueles que se aperfeiçoam na arte de amar o outro
como a si próprio. Mesmo que ainda não consigam por
completo, pela dificuldade da empreitada, avançam
aos poucos e jamais desistem de tamanha conquista”.

“Penso que o mesmo raciocínio vale em


relação à moda. Em essência, tanto faz jeans ou calça
de alfaiataria, t-shirt ou camisa social, paletó de grife
ou agasalho esportivo. Bonita é a delicadeza no trato
pessoal, a gentileza com toda a gente. A generosidade é
bela. Ser doce nunca sai de moda. É um estilo elegante
de viver a vida”.

“Diferente não é em relação à riqueza.


Dinheiro sempre esteve ligado ao poder e a nobreza,
sendo uma marca registrada da monarquia de outrora.
Os verdadeiros reis caracterizam uma nova geração de
pessoas que conseguem entender que ‘tudo que tenho
é tão e somente o que sou. Tudo o que sou é apenas o
que consigo compartilhar’. Dividir uma moeda é muito
importante para quem sente frio e fome; dar um abraço
é agasalhar o coração de quem sofre e está faminto

308
de amor. Oferecer um sorriso para espantar a tristeza,
dizer uma palavra de esperança para adocicar uma
alma amarga, mostrar a delicadeza no meio da selva da
impessoalidade, são de uma nobreza incomensurável.
É a possibilidade da beleza impensada. Nisto reside
toda a força e poder. O resto são apenas máscaras tolas
e ilusões vulgares”.

Calei-me por algum tempo. Esses conceitos


falaram fundo em minha alma e fiquei metabolizando
as novas ideias. Em seguida, começamos a conversar
sobre outros assuntos até que a jovem garçonete,
uma estudante de teatro que se sustentava com o
trabalho na cafeteria, quando trazia o meu sanduiche,
se atrapalhou e acabou derramando café na camisa
branca do sapateiro. A moça ficou desconcertada
e aflita, mas o transtorno foi logo contornado por
Loureiro, que deu uma gostosa risada e disse para ela
não se preocupar, pois gostava do novo estampado do
tecido. Todos rimos. Ele, brincando, disse lamentar
apenas o desperdício do saboroso café e pediu para que
ela trouxesse mais para completar as nossas xícaras.
Nisso, veio à nossa mesa o dono do estabelecimento,
conhecido pelo seu temperamento irascível. Quando
fez menção em brigar com a funcionária, o sapateiro
o interrompeu de maneira educada: “A culpa foi toda
minha. Esbarrei na bandeja enquanto ela nos servia.
Peço desculpas pelo transtorno e pelo meu jeito
atrapalhado”. O proprietário se calou e saiu. Desconfiei
que ele ficou decepcionado por não conseguir dar a
bronca que desejara. A garçonete, quando retornou
com o bule de café para completar as nossas xícaras,
ofereceu um lindo sorriso e murmurou um “obrigado”

309
para o Loureiro. Ele sorriu de volta e sussurrou:
“Agora temos um segredo”. Rimos e uma gostosa
sensação de bem-estar me invadiu o coração.

A imagem do sorriso de Loureiro na cafeteria,


com a blusa branca manchada de café, me veio à mente
nos dias seguintes quando eu estava no mosteiro.
A sua elegância e nobreza eram capazes de transformar
o mundo em um lugar melhor para se viver. Dei-me
conta que o meu amigo era um príncipe de verdade.

310
O MELHOR MÁGICO DO MUNDO

T
Eram dias modorrentos. Eu andava desanimado
naquele período em que estava no mosteiro para
estudos. Não conseguia me concentrar nas leituras
nem nas meditações. As palestras e debates
pareciam de uma chatice sem fim. As atividades
físicas, como a ioga ou caminhadas pelas montanhas
também não me despertavam interesse. Aos que
me perguntavam sobre a razão do meu “olhar sem
vida”, respondia que não mais alimentava ilusões
quanto à humanidade. Argumentava que as nuvens
da vaidade, da inveja, da ganância, da mentira e
do medo tinham deixado o mundo para sempre sob
as suas sombras. Até que encontrei o Velho, como
carinhosamente chamávamos o monge mais antigo
da Ordem, acomodado em uma poltrona na varanda
do mosteiro, entretido com um livro. Ofereci de ir
à cantina buscar uma xícara de café e ele aceitou
com um lindo sorriso. Quando acomodei a caneca
na mesa ao seu lado, o monge me convidou para
sentar. Sem que ele me perguntasse nada, assim
que me acomodei, soprei um vendaval de lamentos
quanto à inutilidade da vida. Confessei que não
via sentido em viver e, talvez, aqueles que viviam
pela busca constante do prazer estivessem certos.
O Velho deu de ombros e disse: “Depende
daquilo que você entende como prazer”.

311
Fechou o livro e prosseguiu: “É preciso definir
um sentido para a viagem. Caso contrário, nenhuma
paisagem será capaz de lhe encantar os olhos. Nada
nem ninguém terá beleza. Em natural reação, você
não terá nada de bom a oferecer em razão do vazio
que o habitará. Então, tudo parecerá chato, triste e
abandonado, inclusive você. É preciso que sempre
haja flores e frutos para compartilhar em nosso cesto
sagrado, o coração”.

Contestei com a surrada retórica de que


conhecia muitas pessoas, que apesar de furtar e
corromper, usufruíam do melhor da vida. Enquanto
outras, que seguiam uma vida de acordo com
proclamados valores morais, atravessarem por
inúmeras dificuldades. Disse-lhe, com enorme
convicção, não acreditar que a vida fosse justa, pois,
nem sempre quem pratica o bem é agraciado com o
doce da existência. Acrescentei que isto era um fato
incontestável. O Velho me ofereceu um olhar que nunca
esquecerei. Era um olhar de compaixão e bondade.
Em seguida, citou um pequeno trecho do Sermão
da Montanha, que durante séculos foi interpretado
de maneira equivocada por aqueles que se mantêm
à margem, agarrados às boias toscas da literalidade:
“‘Se o teu olho direito te escandaliza, arranca-o e atira
para longe de ti’”. Assustado, questionei que sugestão
absurda era aquela de automutilação. O monge deu
um gostoso sorriso, balançou a cabeça como quem
diz “não é nada disso” e me explicou com paciência:
“É preciso ensinar os olhos a ver para que não
percamos o essencial da vida, a face preciosa de todas
as coisas, sempre na profundidade do ser, distante das

312
aparências da existência. A escolha entre o brilho ou
a luz, define o prazer, o sentido e a dimensão da vida”.

Pedi para ele explicar melhor. O Velho foi


didático: “Na superfície está o brilho escancarado para
os olhos míopes do ego que não conseguem enxergar
além das sensações primárias e imediatas; o brilho
é a fantasia predileta das sombras. De outro lado, na
profundidade está o encanto da existência para quem
busca a luz através do olhar refinado da alma no
encontro consigo mesmo, com os sentimentos e ideias
nobres, na descoberta das virtudes valiosas, pois,
somente assim conseguirá abraçar deliciosamente
a vida. A escolha dos olhos que usaremos define o
mundo que veremos, a rota que seguiremos e o sabor
das experiências que cada um quer e terá para si”.
Deu uma pausa e concluiu: “Todo o resto é consequência.
Decepção ou encanto pela vida? Depende apenas dos
olhos que cada um possui”.

“Grosso modo, todas as pessoas, de maneira


consciente ou não, buscam os cinco estados de
plenitude do ser: felicidade, paz, liberdade, amor
e dignidade. Onde os encontrar define o trajeto da
viagem pela estrada das sombras ou pelo caminho
da luz. Aqueles que insistem nos crimes, roubam
ou ludibriam, no fundo, acreditam que os produtos
desses atos possibilitarão uma vida melhor. Ledo
engano, pois os efeitos sempre estarão atrelados às
causas. Inexoravelmente. Apesar de, muitas vezes,
morarem em mansões ou navegarem em imponentes
iates, terminarão assolados pelas intempéries das
sombras como a raiva, a depressão, o medo, a falta

313
de amor sincero, entre outras escuridões silenciosas
da existência. Outros, ainda nas veredas do brilho,
embora em estágio não tão sombrio, imaginam achar
os estados da plenitude na vitória sobre os demais,
na ostentação do luxo, na fama vazia e nos aplausos
fáceis. Suas escolhas privilegiam aquilo que os olhos
conseguem enxergar na superfície, na aparência,
longe do mel da essência, abandonado no âmago do
ser. Se iludem em buscar fora aquilo que somente
encontrarão dentro de si. A sombra mais poderosa,
rainha de todas as demais, é a ignorância”.

“Quando não sabemos quem somos, vagamos


perdidos e abrimos mão de todo o nosso poder e magia”.

Interrompi para perguntar se ele se referia


aos espetáculos de mágica. Acrescentei que desde
a infância eu adorava os shows de ilusionismo.
O Velho explicou que não era exatamente isso, mas
a usaria como metáfora para sublinhar as diferenças:
“Não podemos confundir mágica com magia.
Mágica é brilho, ilusão e sombras. Magia é luz,
transformação e evolução. Um dos melhores truques
das sombras é a ilusão através das aparências. Como
qualquer bom mágico, o segredo do seu sucesso está
em enganar os olhos da plateia. Não raro, a distração
é a ferramenta utilizada para desviar a atenção do
público para o que realmente interessa. Então, ocorre
a troca que nos leva ao engano. A diferença é que
quando estamos assistindo a um show, sabemos de
antemão as regras, a verdade de que tudo são truques
e a enganação faz parte do espetáculo. Na vida,
enquanto não percebermos que somos bem mais do

314
que espectadores, mas personagens influentes no palco
da existência, ficaremos entretidos com o resultado
aparente do truque, sem usufruir da plenitude, que
na verdade se revela aos poucos, oculta no processo
infinito das transformações íntimas”.

“Nunca houve um mágico mais sofisticado do


que as sombras, a ponto de muitos até mesmo negarem
a sua existência. Para estes, qualquer cartola é um
celeiro de coelhos. A ignorância da plateia em relação
aos truques sustenta o sucesso do mágico através
dos tempos. A vaidade, o orgulho, a transferência de
responsabilidade, a fuga da realidade, a descrença,
o desânimo são algumas das ferramentas de ofício.
O medo é a ilusão no qual as sombras, no papel de
hábil ilusionista, envolve a plateia para, sem que se
perceba, fazer acreditar que a valiosa plenitude pode e
deve ser trocada por um desejo efêmero, o qual surgirá
na manipulação do baralho que reúne as várias cartas
do egoísmo”.

“No espetáculo das sombras, o dinheiro


deixou de ser um precioso instrumento de modificação
da realidade no plano físico para significar a
bandeira da vitória; o sucesso profissional se tornou
a escalada sobre os demais ao invés de representar
o aprimoramento e a superação pessoal. O amor se
esgota na crença do controle e da dominação alheia,
pela obrigação do outro em relação a mim. A liberdade
acaba confundida com a mera facilidade de visitar
vários países durante as férias; a dignidade se perde
nos vãos do discurso e se desmancha pela falta de
exercício. Muitos se iludem que a paz se resolve com

315
atos de ordem pública; e a felicidade os aguarda em
festas barulhentas, sem entender que a agitação nem
sempre garante a alegria”.

“Elegância não se traduz em roupas chiques;


sisudez não é sinal de dignidade; andar por aí não
significa liberdade. Riqueza é algo bem diferente
da prosperidade. O amor não é uma troca nem uma
prisão; a paz é uma conquista interna. A felicidade
pode ser infinita e não apenas gotas de orvalho na
noite da existência”.

Ficamos um tempo sem dizer palavra.


Rompi o silêncio para perguntar se ele achava que
o mundo era um bom lugar para se viver. O Velho
disse com serenidade: “Vivemos em perfeita sintonia
com o nível de consciência e a capacidade de amar
que possuímos. O mundo está de acordo com as
preferências que se elege para a vida pessoal. A cada
um resta tão e somente os resultados das escolhas
pessoais. Um aguardado show de ilusionismo e brilho
ou um cerimonial diário de transformação e luz?
Mágica ou magia se definem pela capacidade dos
olhos em ver. Quando tudo parece cinzento, caótico
e vazio pode significar um bom momento para
‘arrancar os olhos’ e se permitir um novo olhar. Bons
olhos animam e encantam o coração, permitindo uma
leitura aperfeiçoada da vida. A depender dos olhos,
uma tempestade existencial trará ruínas e tristeza.
Então, ficará o anseio por mais um truque de mera
aparência. No entanto, a destruição de si mesmo, e
de toda a realidade que o cerca, pode ser vista como
uma oportunidade imperdível de transformação

316
profunda e infinita beleza através do ritual sem fim
de encontrar a luz muito além dos brilhantes fogos de
artifício oferecidos pelo mágico das sombras”.

Olhou-me nos olhos e finalizou: “Somente


assim poderemos ter um verdadeiro caso de amor com
a vida e com o mundo”.

317
A LUZ DO MUNDO E UM BOLO DE LARANJA

T
O dia amanhecia. Eu estava na pacata estação
da pequena e charmosa cidade, situada no sopé da
montanha onde fica o mosteiro, à espera do trem
que me levaria com o Velho, como carinhosamente
chamávamos o monge mais antigo da Ordem, até uma
movimentada metrópole, sede de uma prestigiosa
universidade. Ele era muito requisitado para palestras
em escolas, empresas e centros comunitários.
Nunca recusava um chamado. Na impossibilidade
de alguma data em razão de outro compromisso,
não sossegava enquanto não ajeitava o calendário
para atender ao pedido. Como o nosso trem ainda
demoraria um pouco, fomos até a cafeteria da estação
em busca de uma xícara de café fresco e do famoso
bolo de laranja com gengibre feito pela gentil dona
do estabelecimento. Devidamente acomodados, com
duas canecas fumegantes à frente, perguntei se ele não
sentia necessidade em ter mais tempo para descansar.
O monge bebericou o café e disse: “Descansar é muito
importante, assim como ter um tempo para dedicar a
mim, encontrar comigo mesmo e ‘arrumar a casa’”.
Deu um sorriso e complementou: “Fazer faxinas
rotineiras são de extremo valor para que possamos
varrer a poeira dos sentimentos densos, consertar
as emoções que quebraram, trocar a decoração
ultrapassada das ideias que não mais embelezam
a vida, abrir as janelas para uma troca de ares e

318
permitir ao sol entrar. A minha casa é o meu ponto
de observação e interação com o mundo”. Bebeu mais
um gole de café e prosseguiu: “Da mesma maneira,
tem grande importância dedicar um tempo à diversão.
A arte, através de qualquer das suas modalidades,
que tanto nos ajudam a ver além das fronteiras dos
condicionamentos e da rotina do cotidiano, encontrar
com os amigos, com a família para boas conversas e,
acima de tudo, rir bastante, têm a força de alimentar
a alma”. Olhou-me nos olhos e concluiu: “No entanto,
apenas quando estou servindo sinto o poder do
universo de um jeito diferente. Quando compartilho
o melhor que há em mim, levo conforto ao coração
de alguém, ajudo a brotar o sorriso no rosto de outra
pessoa ou consigo, com uma palavra, iluminar a
escuridão nos porões de uma alma, é como se as mãos
das estrelas se acoplassem às minhas e todo o meu
ser ardesse em fogo, tamanha é a luz que me invade.
É o perfeito sentimento do sagrado”.

Fomos interrompidos pela educada garçonete


para avisar que o bolo de laranja com gengibre ainda
demoraria alguns minutos até que estivesse no
ponto de ser retirado do forno. O Velho, com o seu
bom humor habitual, agradeceu com um sorriso,
disse que esperaria o tempo necessário e brincou que
até faria o maquinista do trem esperar: “Ele não se
arrependerá”, acrescentou. Em seguida, prosseguiu
com a nossa conversa: “Não importa a sua condição
social, financeira nem o nível de escolaridade.
Vale estar desperto para a oportunidade de movimentar
qualquer uma das suas virtudes, seja aquelas em flor,
seja outras ainda em embrião. Cuidar da sua casa ao

319
mesmo tempo em que colabora com a obra do mundo,
no expoente da capacidade que já tenha atingido e
no exercício do pleno aperfeiçoamento daquilo que
pretende ser, funciona como uma lanterna a orientar,
além dos próprios passos, os de quem está ao redor,
durante os nevoeiros da existência. Unir um cuidado
ao outro, em serena harmonia, traduz a melhor arte,
aquela em que o artista e a obra se fundem em um”.

Argumentei que nem sempre era fácil, pois a


luta pela sobrevivência e pelos afazeres do cotidiano
furtavam um valioso tempo na ajuda pela construção
de um planeta melhor. Assim como quase nunca
restava condição econômica para colaborar com
os mais necessitados. O Velho balançou a cabeça e
explicou: “Por mais apressada que seja a sua vida, nada
se perderá por esperar alguns segundos na gentileza de
permitir ao outro de passar à frente. Por mais vazio que
estejam os seus bolsos, um precioso abraço terá sempre
o poder de levar a riqueza da vida para alguém que
esteja abandonado nos becos da desilusão. Ninguém
precisa ser doutor para curar a tristeza de outra pessoa
ao ministrar gotas sagradas de alegria e esperança.
Uma sociedade mais justa se inicia quando eu, por
uma questão de pura consciência, entendo e abdico de
qualquer privilégio que alguma legislação anacrônica
tenha me concedido indevidamente, causando, de
alguma maneira, desigualdade e sofrimento alheios”.
Olhou-me nos olhos e concluiu: “Lamentamos a
bagunça e o descompasso do mundo, reclamamos por
urgentes ações governamentais de amparo e reforma
social, enquanto esquecemos da parte que nos cabe, do
poder da delicadeza e do perdão no trato pessoal como

320
maneira eficiente de revolucionar a vida. Mudamos
o mundo apenas na medida que nos transformarmos
naquele cidadão que ansiamos encontrar nas ruas.
Nunca na força bruta do discurso vazio e vaidoso,
sempre no poder sutil da doce e humilde atitude”.

Sustentei que era muito raro encontrar a


bondade nas ruas e disse que achava as pessoas
estavam cada vez mais egoístas. O Velho discordou:
“Penso que não. Sinto a generosidade por toda a
parte, vejo a necessidade incansável pelo amor.
Apenas percebo que a maioria não entende a busca.
No mais, cada qual tem que fazer a sua parte sem
se importar se alguém o seguirá”. Bebeu um gole de
café e argumentou: “Ainda que exista aspereza nos
relacionamentos, rigidez nos afetos e as pessoas se
fechem em si mesmas, mais do que nunca é a hora de
oferecer a outra face; a face da luz. De mostrar que
tudo pode ser diferente e melhor. Só há uma maneira
de iniciar este processo. Através de mim mesmo”.

Questionei o que eu poderia fazer. O monge


deu de ombros e falou: “Diga você mesmo”. Falei que
não tinha a menor ideia. Ele me fez recordar do Sermão
da Montanha: “Conhecemos a árvore pelos frutos.
Busque na quietude e na solidão de si próprio a imagem
sincera daquilo que tem compartilhado recentemente
com os outros. Apenas os seus frutos podem dizer
quem você é. Os seus frutos se traduzem nas suas
escolhas, das mais simples às mais sofisticadas.
São os seus atos e palavras, não apenas nos momentos
angulares da existência, mas, principalmente, na
convivência simples e, aparentemente, banal do dia

321
a dia. Quais virtudes podemos identificar em cada
gesto? O jeito como reagimos a cada negativa ou
decepção leva à derrota ou estimula a superação.
A maneira como trabalhamos o ego em conjunto com a
alma quando alguém se opõe ou atrapalha a conquista
de um desejo define quem ainda não somos. A seiva
que alimenta a árvore são as ideias e os sentimentos
que se refletem no doce ou no amargo dos frutos.
Ou mesmo se haverá qualquer fruto. O jardim ou o
deserto à nossa volta são apenas consequências naturais
da árvore, frondosa ou seca, que nos permitimos ser”.

Nesse instante, um homem de meia-idade,


vestindo um terno bem cortado, irrompeu na cafeteria,
com passos firmes, carregando uma bonita mala e
deixando no ar o rastro do bom perfume que usava.
Com a autoridade de quem se acostumou a ser servido,
pediu um pedaço de bolo de laranja com gengibre
acompanhado de um cappuccino. A garçonete
explicou, educadamente, que o bolo ainda demoraria
alguns minutos, pois ainda não terminara de assar.
Mal-humorado, o homem esbravejou que estava perto
da hora do trem chegar à estação e não daria tempo
para ele comer. Acrescentou que achava um absurdo
o estabelecimento não se preparar para ter todos os
produtos à disposição dos clientes logo que abrisse as
portas. Disse que o mundo estaria perdido enquanto
fosse habitado por pessoas incompetentes e relapsas.
A moça ficou com os olhos mareados, mas não disse
palavra. Não satisfeito, o homem se virou para a
nossa mesa e, em busca de aprovação e aplausos,
disse que somente o apocalipse salvaria o planeta; era
preciso destruir este para se construir outro. O Velho

322
respondeu com serenidade: “O Apocalipse não trata
do final do mundo; é uma imagem de ficção literária
destinada a permitir o desembarque daqueles que
possuem amor no coração. A viagem, na verdade, já
começou há tempos e muitos ainda não percebem que
este planeta são apenas os trilhos pelos quais cada
maquinista conduz o próprio trem. Outros destinos,
bem mais agradáveis, somente são permitidos para
aqueles que têm pureza na alma e boa vontade
para com os demais passageiros. A viagem é sem fim,
mas a mudança de rota é uma escolha hábil, a qualquer
momento, para quem traz uma bagagem leve e livre de
impostos alfandegários”. Olhou nos olhos do homem e
finalizou: “Apenas o amor cumpre tais requisitos”.

O homem mostrou o semblante carregado,


girou nos calcanhares e saiu. A moça enxugou a lágrima
rebelde e sorriu para o monge em agradecimento.
Ficamos mais alguns minutos em silêncio. Depois,
pagamos a conta e seguimos para a plataforma.
Quando íamos embarcar, fomos surpreendidos pela
gentil garçonete que chegou esbaforida. Trazia, com
um sorriso no rosto, uma caixa com duas generosas
fatias de bolo de laranja com gengibre, ainda quentes,
recém-saídas do forno. Perguntei quanto era e a moça
se recusou a receber. Disse se tratar de um presente.
O monge agradeceu com outro belo sorriso. Olhei para
os dois, a moça e o Velho, e foi impossível não lembrar
de mais um trecho do Sermão da Montanha. Sem nada
dizer, pensei: “Vós sois a luz do mundo!”

323
O GUARDIÃO E O MESTRE

T
A palestra que o Velho, como carinhosamente
chamávamos o monge mais antigo da Ordem, tinha
ministrado em uma conhecida universidade versava
sobre a necessidade do equilíbrio entre o ego e a alma.
Ele aproveitou uma figura de linguagem usada por
Teresa D’Avila ao comparar o íntimo de uma pessoa
como a um castelo de muitos cômodos. Em cada quarto
habita um sentimento ou uma ideia. Alguns densos e
pesados, outros leves e sutis. No portão de entrada, em
contato direto com o mundo, está o ego. Na sala do trono,
no interior do castelo, centro das decisões primordiais,
mora a alma. O bom funcionamento do castelo vai
depender da capacidade de harmonia e conexão entre
os seus moradores. Embora o conceito não seja novo,
é pouco conhecido e transitou durante séculos apenas
entre monastérios e irmandades esotéricas. Ao final da
explanação houve muitos questionamentos, dúvidas e
material para reflexões posteriores. Esta era a intenção
do bom monge. Quando estávamos de saída, ele
perguntou pelo professor de estatística Carl Bacon,
seu contemporâneo quando cursou economia em uma
universidade inglesa, com quem tinha construído uma
sólida amizade. Foi informado que o professor Carl
estava de licença em razão de uma forte depressão,
tinha desistido da cátedra e poucos acreditavam que ele
retornaria a dar aulas. O Velho se mostrou preocupado
e quis saber onde encontrá-lo. Disseram que ele pouco

324
saía de casa, salvo para passear, solitário e a esmo,
pelo bosque da universidade. Acrescentaram que não
teríamos dificuldade para achá-lo.

Como o trem que nos levaria de volta ao


mosteiro partiria somente à noite, aceitei passear
pelo belo jardim que existe em torno da universidade.
Enquanto andávamos, o monge contou que Carl sempre
fora um homem alegre, namorador e vivia cercado
de gente; assim como o Velho, era um apreciador de
boa cerveja e de futebol. Localizamos o professor
sentado sozinho em um banco de madeira, vestindo
um sobretudo e um chapéu de lã para se proteger do
frio. Tinha um olhar perdido e triste. Quando viu o
Velho esboçou um sorriso; uma lágrima ameaçou
escapar. Sentamos ao seu lado. Perguntado sobre a
razão daquela depressão, Carl respondeu que nada
mais parecia ter força para animá-lo, mas que já estava
sendo medicado. O monge contrapôs: “Os remédios
podem aliviar alguns sintomas, mas não o levarão à
cura. A depressão é uma tristeza profunda; embora
reflita no corpo, é uma questão da alma”.

O professor deu de ombros e disse que,


embora ouvisse falar desde sempre, nunca entendeu
o significado da alma. O Velho explicou: “A alma é a
essência do ser, o eu profundo. Alma é a força motriz
que anima a vida, a verdadeira identidade de cada um
de nós. Diferente do ego, aquele personagem ocupado
nas questões aparentes e triviais da vida, que embora
tenham importância, principalmente enquanto nesta
viagem existencial na terceira dimensão, afinal,
todos têm necessidades básicas de sobrevivência e

325
contas a pagar, é na alma que tratamos dos assuntos
primordiais à vida. Na alma está parte oculta do
todo à espera do movimento; como um sol guardado
dentro de uma caixa que quando aberta irá afastar
todo o frio e escuridão do ser. É o algo a mais, é você
além da existência rasa”.

“A alma é como a raiz capaz de metabolizar a


seiva que alimenta a árvore na produção de folhas, flor
e frutos. Uma raiz fraca gera uma árvore seca”.

O Velho tornou a trazer os conceitos do


Castelo Íntimo, de Teresa D’Avila, para se fazer
compreender pelo amigo: “O ego cuida da portaria do
castelo. A alma está na sala das questões primordiais.
Entre os dois cômodos, muitos quartos habitados por
inúmeros sentimentos e ideias os separam. A falta de
sintonia entre eles, ego e alma, causa alvoroço entre
os demais moradores; faz com que a voz da alma, aos
poucos, perca força e poder, até não mais se ouvir.
Sem comando o castelo resta bagunçado com enorme
confusão de emoções e pensamentos desordenados,
que atravessam o portão para ir ao mundo, sempre
com muito barulho e pouca melodia. A falta de
sintonia entre o ego e a alma faz com que o castelo
fique em ruínas”.

“O castelo do ser sempre quebra de dentro


para fora. Quando a fachada se mostra descolorida
significa que o interior resta destruído há tempos”.

Carl quis saber o que a sua depressão tinha


a ver com aquelas palavras. O Velho foi pedagógico:

326
“A depressão, assim como os demais sofrimentos
emocionais representam a insurreição da alma.
Um grito de quem precisa ser ouvido, um pedido
de socorro daquele que deseja ser salvo. Todas as
vezes que sofremos significa que algo precisa ser
redesenhado e reconstruído no íntimo. O ego sofre
quando não consegue defender o portão do castelo,
que acaba violado por uma horda de sentimentos
bárbaros. No entanto, isto somente acontece quando
a alma emudece e não mais escutamos a sua voz. São
as orientações e fundamentos da alma que sustentam
a melhor atividade do ego”.

“A alma é a perfeita proteção contra as


intempéries e ataques do mundo. Para tanto, precisa
que o ego se alinhe a ela e que os demais moradores
do castelo estejam equilibrados e em harmonia ao seu
pleno comando. O bom funcionamento do castelo é a
plenitude do ser”.

De maneira educada, Carl pediu para que o


amigo não o levasse a mal, mas ele não acreditava
na alma nem se interessava por quaisquer assuntos
metafísicos. A sua vida tinha sido vivida entre os
números. Ressaltou que era um estatístico e gostava
da precisão que a matemática oferecia. Sentia-se
seguro na exatidão das fórmulas científicas. O Velho
balançou a cabeça em concordância: “É inegável o
valor da matemática para o progresso da humanidade.
No entanto, como escreveu o alquimista lisboeta,
‘navegar é preciso, viver não é preciso’. As emoções
e os indispensáveis relacionamentos furtam a precisão

327
da existência. Justo neste ponto está a riqueza da vida
e a beleza da alma”.

O matemático pediu para que o monge


aprofundasse o raciocínio. O Velho não se fez de
rogado: “Quando ainda temos o castelo desarrumado,
os moradores se desentendem e brigam entre si,
dando origem às decepções e mágoas. As frustrações
não têm causa nos comportamentos alheios, mas
em nossos conflitos internos, na bagunça entre os
sentimentos e as ideias que habitam o castelo, na
fragilidade da percepção de quem somos em razão
do distanciamento entre o ego e a alma. Então, não
raro, tentamos consertar as ruínas com uma mera
pintura nas paredes externas, enfeitando as janelas
com flores coloridas ou promovendo distraídas festas
na tentativa de preencher os quartos vazios que, de
alguma maneira, incomodam”.

“Algumas vezes, o ego, quando desorientado,


abandona o seu importante posto junto ao portão para
se esconder no porão escuro do castelo, como maneira
de negar ou escapar da realidade. Então, afunda-se na
tristeza e acaba dominado pela depressão. O inimigo
que o aprisiona, embora suscetível às arruaças do
mundo, na verdade, nunca vem de fora, mas da falta
de harmonia, comunicação e conhecimento entre os
próprios moradores do castelo”.

“Insistimos em resolver cuidando da aparência


em esquecimento à essência. Buscamos na superfície
o que somente encontraremos na profundidade.

328
Lá não encontraremos equações matemáticas, mas o
próprio ser, a alma”.

“Somente a alma tem o poder de equilibrar


as emoções desalinhadas e curar aquelas que, por
ventura, estejam em sofrimento. Contudo, a alma
espera na sala central do castelo e necessita que
o ego, a leal sentinela do ser, leve até ela cada um
dos moradores que ainda precisam de instrução e
educação. Isto trará força, equilíbrio e serenidade
ao ego em suas relações e funções nos portões do
mundo. Apenas assim o castelo ficará harmônico e
inexpugnável às intempéries e invasões bárbaras”.

Sempre gentil, Carl alegou que sempre teve


dificuldades com o misticismo. O Velho o olhou nos
olhos e perguntou: “Você acredita em si mesmo?”
O matemático pareceu estranhar o questionamento
e o monge prosseguiu: “Você não foi capaz de
enfrentar e vencer inúmeros problemas de elevado
grau de dificuldade dentro do universo complexo da
matemática?” O professor concordou com a cabeça.
O Velho continuou: “Isto demostra a fantástica força
de superação que você traz em si. Quem já ganhou
uma batalha pode vencer todas. Para tanto, basta
que entenda quem você é e acredite em sua própria
força. Isto é fé. Afinal, se a alma é sua essência,
a face sagrada e a parte do todo que habita em ti,
acreditando ou não em sua existência, quando você
movimenta esse poder pessoal no sentido da luz, em
prol da evolução e da cura, todo o universo estará em
comum união contigo”.

329
Carl questionou como todas aquelas palavras
poderiam ajudar na depressão que enfrentava.
O Velho disse com o seu jeito doce: “A quietude e
a solidão têm muito valor quando bem utilizadas.
Ao invés de usá-las como ferramentas de tortura,
aproveite-as como pontes para ir ao encontro de si
mesmo. Busque na memória afetiva, com sinceridade
e coragem, qual o fato, ou os fatos, que serviram de
gatilho para desencadear o sofrimento que o abate.
Você verá que são aqueles que invadiram o castelo,
feriram o ego, desarrumaram os quartos, oprimiram
os demais moradores e sitiaram a alma na prisão do
esquecimento. Leve cada acontecimento desagradável
até a sala íntima da alma. Lá existe um armário com
muitos frascos sagrados de cura. Cada um deles
contém uma virtude. Disseque cada fato doloroso e se
permita enfrentar as feridas emocionais que tanta dor
provocam. Trate-as com os elixires da humildade, da
compaixão, do perdão, do amor, entre vários outros
disponíveis. Aprenda o absoluto poder curativo
contido em cada um deles. Toda a cura apenas se
revela na essência do ser. Lá está a plenitude oculta
em si mesmo. Lá está a alma, à sua espera”.

Aproveitei um instante de silêncio para


lembrar do horário da viagem de volta. Os amigos
se despediram com um forte e sincero abraço. Carl
agradeceu a boa vontade e disse que amadureceria
aquelas palavras. No trem, palpitei que a promessa do
professor em pensar na retórica oferecida pelo monge
teria sido mais por educação do que por convicção.
A minha observação não abalou ao Velho: “Indiquei
um caminho que não apenas acredito, mas que trilho

330
pessoalmente. Como diz o alquimista do Recôncavo,
‘é apenas um jeito de corpo, não precisa ninguém me
acompanhar’”. Argumentei que Carl era um intelectual
muito festejado por seus pares. O monge contrapôs:
“Por vezes, grandes inteligências cognitivas acabam
por relegar outras inteligências, como a emocional e a
espiritual. Então vem o desequilíbrio”.

O Velho olhou nos meus olhos e finalizou:


“Todo o sofrimento, em verdade, é o descompasso
entre o ego e a alma. O ego é o guardião do castelo; a
alma, o mestre. Quando aquele não escuta este, tudo
fica tumultuado, sem sentido e vulgar”.

331
O SAPATEIRO, O INDUSTRIAL E A IRONIA

T
Eu andava pelas ruas estreitas e sinuosas da
charmosa cidadezinha que fica no sopé da montanha
que acolhe o mosteiro na incerteza de encontrar a
oficina de Loureiro, o sapateiro amante dos livros e
dos vinhos, famoso por costurar o couro como ofício
e as ideias como arte, ainda aberta para um café fresco e
uma boa prosa. Como a sua oficina era lendária na
região por funcionar em horários inusitados e incertos,
fiquei feliz, quando ao dobrar a esquina, avistei a sua
clássica bicicleta, o único meio de transporte que se
permitia usar dentro da cidade, encostada no poste
em frente à loja. Neste mesmo instante, um reluzente
Mercedes-Benz estacionou em frente à oficina.
O chofer desceu para abrir a porta de trás e achei ter
visto Loureiro sair do carro. Estranhei de imediato.
Ao me aproximar, os meus olhos ruins perceberam não
se tratar do sapateiro, mas de alguém muito parecido
com ele. Quando entrei na loja tudo foi esclarecido.
Tratava-se do irmão de Loureiro; embora tivessem
uma grande semelhança física, não eram gêmeos.
O artesão nos apresentou. Ele se chamava Sergei e era
dois anos mais moço. Polido e educado como Loureiro,
no entanto, de pronto percebi que as semelhanças se
esgotavam ali. Tinham elegâncias distintas, diferentes
interesses e olhares opostos em relação à vida.
Sergei também não tinha o sorriso fácil do sapateiro.
Muito sério, fez questão de dizer que não dispunha de

332
muito tempo, pois era um empresário muito ocupado.
Como proprietário de uma grande fábrica de tecido
em uma região industrial distante a muitas horas
dali, não poderia desfrutar da companhia do irmão
por mais do que alguns poucos minutos. Loureiro foi
passar um café fresco enquanto nos acomodávamos
ao balcão. Perguntei ao Sergei o que ele fazia na
pequena cidade. O empresário contou que viera trazer
uma senhora, dona de uma grande rede de lojas que
absorvia boa parte da produção de sua fábrica, para
conhecer o Velho, como carinhosamente chamávamos
o monge mais antigo da Ordem. Acabara de descer da
montanha e a cliente seguira a viagem em seu próprio
carro. Então, ele viera dar um abraço no irmão e logo
voltaria para a fábrica. Eu quis saber como havia
sido o encontro com o Velho. Ele esclareceu que
tinham chegado de surpresa, sem avisar. Entretanto,
o monge estava ocupado, ministrando uma palestra
no mosteiro, e pediu para que eles retornassem na
manhã seguinte, quando os atenderia. Indaguei se eles
tinham combinado o encontro e Sergei, esclareceu que
não. Sugeri que pernoitasse para que pudesse jantar
conosco. Acrescentei que a cidade, embora acanhada,
era conhecida por seus excelentes restaurantes,
alguns renomados mundo afora. Falei, ainda, que
subiria ao mosteiro logo cedo e poderíamos ir juntos.
Ele lamentou, mas não tinha tempo para isso, pois os
seus negócios possuíam uma dinâmica intensa e ele era
um industrial muito solicitado, com a agenda repleta
de compromissos e reuniões. Sibilou que capitalizara
prejuízos financeiros e profissionais naquela viagem,
pois deixara de fechar alguns negócios e teria que lidar
com a decepção da cliente que não conseguira falar

333
com o Velho, como ele, Sergei, prometera. Acreditou
que a amizade do irmão com o monge facilitaria o
encontro. Em seguida, com um comentário irônico,
sugeriu que o Velho “estava ocupado, treinando para
substituir Deus”.

Não achei graça. Nem Loureiro, que colocou


três canecas fumegantes sobre o balcão e se sentou ao
nosso lado. Delicado, se virou para o irmão e disse:
“A vida de ninguém é mais nem menos importante
do que a de outra pessoa. Cada qual com as suas
prioridades. Os valores estarão sempre na exata régua
do nível de consciência e da capacidade amorosa de
cada indivíduo. Cada um com suas dores e delícias,
suas sombras e luz”. Insatisfeito, o industrial falou
que tinha perdido tempo ao ir na fábrica de ilusões,
como ele chamou o mosteiro, ao invés de continuar
trabalhando na sua fábrica de tecidos. O sapateiro
bebeu um gole de café e disse: “O seu comentário,
embora tenha a clara intenção de depreciar o monge,
no fundo e em essência, não passa de uma falta
de respeito, não ao Velho, que seguirá pleno em
sua jornada, mas a si mesmo. A ironia fala da sua
incapacidade em lidar com as próprias decepções,
com as diferenças inerentes à vida e com as escolhas
alheias. Isto demonstra o quanto ainda não entende o
verdadeiro conceito de liberdade”.

Sergei discordou por completo. Argumentou


que a sua fábrica garantia a sobrevivência de
centenas de funcionários e, por consequência
indireta, de milhares de pessoas se levasse em
conta as suas respectivas famílias. Disse, ainda,

334
que pessoas como ele não podiam se dar ao luxo de
errar. A sua responsabilidade era tamanha que uma
decisão equivocada poderia acarretar em uma queda
na produção fabril gerando muitos desempregos.
Ao contrário do monge, que vivia a distribuir “biscoito
chinês da sorte” e “elixir da eterna felicidade”
sem maiores consequências. Irritado, falou que, ao
contrário do que ocorria no mosteiro, era na sua
fábrica que acontecia, todos os dias, o mundo real.
Acrescentou que “nenhum supermercado aceita as
ideias pregadas por um sonhador como forma de
pagamento”. Falou que religiosos e místicos vivem a
“navegar nos ventos do mundo que empresários, como
eu, sopram e, portanto, devem ter mais consideração
e reverência ao nos receber”.

Sem perder a serenidade, Loureiro expôs


ao irmão uma outra face: “Todas as pessoas vivem,
enquanto nesta existência, em equilíbrio entre as
atividades externas e internas. É justamente a falta
de harmonia entre as várias esferas do ser que causa
toda a dor. Há que se alimentar o corpo para que não
caia em fraqueza pela falta de condições básicas de
sobrevivência. No entanto, de imenso valor é cuidar
do espírito para que a vida não se perca em inanição,
sem a cor e a beleza do seu melhor sentido, sem o
qual não se conseguirá aproveitar o melhor que há
em todas as coisas, pessoas e, acima de tudo, em si
mesmo”. Fez uma pausa antes de concluir: “Toda a
razão, motivação e força do planeta se tornará efêmera
na volatilidade dos minutos sem o encanto e o poder
da iluminação do espírito”.

335
Sarcástico, Sergei fez questão de passar os
olhos como que medindo o pequeno espaço da oficina
do irmão antes de argumentar que o espírito era a
surrada consolação dos fracassados. Loureiro deu de
ombros e disse: “Tudo é uma questão de como cada um
consegue entender o significado de sucesso e vitória”.
O industrial se mostrou surpreso com o absurdo do
raciocínio. Disse para o sapateiro comparar a vida deles
dois e dizer quem tinha atingido o sucesso na vida,
quem era o vitorioso. Loureio respondeu com bondade:
“Você, se a régua usada for o dinheiro e o prestígio
social. No entanto há outras medidas para o sucesso e
diferentes conceitos sobre o verdadeiro significado da
vitória”. O irmão pediu para ele falar de maneira mais
clara. O artesão explicou: “O sucesso pode estar em um
lugar impensado para muitos: nos estados de plenitude
do ser, por exemplo. A grande vitória pode não estar na
conquista do mundo, mas na iluminação das sombras
internas que tanto sofrimento provocam”.

“Isto, em parte, ajuda a explicar a necessidade


do uso da ironia como arma. A ironia se caracteriza
pela tentativa de destruir tudo aquilo que o indivíduo
não consegue entender ou conviver em paz e, por isto,
o incomoda. Mostra uma derrota sobre si mesmo;
aquela que o ego não se permite admitir e a alma
segue amordaçada”.

O empresário interrompeu para dizer que não


acreditava em alma. Ele tinha convicção no trabalho
e no progresso. Loureiro rebateu ao dizer: “A alma
também. Trabalho e progresso são leis espirituais
de cunho universal. No entanto, se faz necessário

336
entender o sentido que se aplica ao trabalho para que
dele gere o progresso. O objetivo do trabalho não
deve ser a riqueza, mas a prosperidade. A riqueza está
ligada ao acúmulo de bens; a prosperidade ensina o
melhor uso dos bens, independente de serem fartos
ou escassos. Portanto, a importância de cada trabalho
não se mede na quantidade de dinheiro que se
ganha, mas se traduz na qualidade das razões e dos
sentimentos aplicados à obra. Felicidade, amor,
dignidade, paz e liberdade podem ser boas
referências”. Sergei rebateu dizendo que todo aquele
discurso era uma grande bobagem e servia apenas
para justificar o fracasso profissional do Loureiro.
Acrescentou que era impossível que alguém pudesse
ser feliz tendo como local de trabalho uma “lojinha
um pouco maior do que um ovo”. Ofereceu para o
irmão largar o atelier e trabalhar com ele na fábrica,
onde ganharia muito mais. O artesão agradeceu, mas
recusou de maneira gentil.

O industrial disse que a ironia era uma


ferramenta muito útil para desnudar uma situação
e escancarar a verdade. Loureiro discordou por
completo: “A ironia é uma violência camuflada
através de um comentário com a pretensão do
indivíduo parecer inteligente ou engraçado. De fato,
muitas vezes angaria risadas e aplausos. Entretanto,
além da aparência, revela toda a inadequação quanto
às liberdades fundamentais. A liberdade sustenta as
diferenças de ser e viver que são de enorme importância
para o questionamento e consequente evolução
das ideias e dos comportamentos da humanidade.
Não raro, a ironia está ligada à intolerância”.

337
O empresário demonstrou uma falsa
surpresa ao comentar que “desconhecia a proibição
das críticas”. Loureiro manteve o tom tranquilo:
“As críticas serão sempre bem-vindas. Todavia, a
crítica apenas se completa caso seja elaborada para
iluminar, educar e construir. Qualquer comentário
que tenha por objetivo depreciar, ferir ou lançar um
manto de escuridão, acaba por se tornar uma ofensa.
A violência verbal não precisa necessariamente de
palavrões. A ofensa nunca fez com que a humanidade
avançasse um único milímetro sequer. Se prestarmos
atenção perceberemos que a ironia fala mais em
relação ao arqueiro do que sobre o alvo”.

Bebeu mais um gole de café e prosseguiu:


“A crueldade da ironia ou do sarcasmo está em isolar
determinada situação de todo o contexto que envolve
uma pessoa e a revestir com as tintas do ridículo com
o objetivo de torná-la uma pessoa sem qualquer valor,
moral ou qualidade. A ironia é a agressividade de
arlequim para disfarçar a violência das suas intenções.
É a arma daqueles que não conseguem enfrentar a
questão com todas as dificuldades inerentes aos
relacionamentos pessoais; apenas desejam um atalho
para que a sua vontade se sobreponha e alimente a
ilusão de que são maiores e melhores do que o outro.
Perceba o quanto de orgulho e vaidade embalam
cada ironia”. Fez uma pequena pausa e prosseguiu:
“A força do sarcasmo surge na medida que desaparece
o poder do amor e da sabedoria no indivíduo que a
profere. Indivíduos irônicos ou sarcásticos sempre
são pessoas, que no fundo, carregam uma enorme
amargura da qual não conseguem dar conta. A ironia

338
é quando essa amargura se apresenta fantasiada nos
palcos do mundo”.

Sergei agradeceu “toda aquela filosofia de


botequim”, disse que gostaria de continuar, mas tinha
muito trabalho o esperando na fábrica e que qualquer
dia ligaria para o irmão ir visitá-lo. Acrescentou
que a oferta de emprego continuava válida. Tirou do
bolso do paletó uma caixa de ansiolíticos e tomou um
comprimido com o resto do café que ainda restava
em sua caneca. Sem que ninguém nada perguntasse,
mostrou a caixa de remédios e fez questão de dizer
que era “o preço do sucesso”. Pelo celular chamou o
chofer. Em instantes o Mercedes-Benz do empresário
estacionou bem ao lado da bicicleta de Loureiro,
que descansava junto ao poste em frente à pequena
sapataria. O industrial olhou para os meios de
transporte usados por ambos, depois se virou para
o irmão perguntou se ele “entendia a diferença”.
Loureiro balançou a cabeça em concordância: “Sim,
claro. No entanto, esta é apenas a ponta visível de um
enorme iceberg existencial. Esses objetos estão na
superfície de nossas vidas. Em essência, a diferença é
bem mais profunda do que um carro e uma bicicleta.
Estes apenas movem os nossos corpos; precisamos
entender o que movimenta os nossos espíritos”.

Depois que o irmão se foi, Loureiro se levantou


para tornar a encher as nossas xícaras. Comentei que
sempre acreditei que o bom humor fosse uma virtude.
O sapateiro colocou as canecas fumegantes sobre o
balcão e disse: “Sem dúvida. O bom humor é uma
virtude muito apreciada nas Terras Altas; espíritos

339
iluminados nunca são ranzinzas nem sisudos.
Bem diferente da ironia, o bom humor se caracteriza
pela lucidez de escolher a alegria como viés do
Caminho. A ironia é a zombaria; o humor é a
brincadeira. A ironia é ferina; o bom humor é lúdico.
A diferença entre a zombaria e a brincadeira é que
zombamos de tudo aquilo que detestamos ou não
compreendemos; de outro lado, brincamos com as
situações e as pessoas que amamos”. Bebericou o café
e finalizou: “A ironia é o triunfo do narcisismo e da
amargura; o bom humor é a vitória do amor e da alegria”.

340
A LEI DO PROGRESSO

T
Eu estava sentado na varanda do mosteiro
apreciando as belas montanhas que o acolhem
quando se aproximou o Velho, como carinhosamente
chamávamos o monge mais antigo da Ordem. Sempre
com o seu jeito jovial, apesar da idade avançada, trazia
duas canecas de café fresco e as acomodou na mesa
ao meu lado. Sentou-se em uma confortável poltrona
e brincou ao dizer para eu compartilhar com ele os
meus pensamentos. Agradeci o café e confessei que
questionava o fato de os textos sagrados afirmarem
que somos feitos à imagem e semelhança de Deus.
Enquanto Deus é perfeito, nós ainda nos esforçamos nos
primeiros degraus do aprendizado. Argumentei que se
a origem de todos os males do mundo é a prevalência das
sombras pessoais sobre as escolhas virtuosas cabíveis
a cada indivíduo, teria sido mais sensato que todos
nós tivéssemos nascidos perfeitos, assim como Deus,
evitando, desta forma, todas as tragédias e sofrimentos
provocados pela humanidade contra si mesmo. Portanto,
havia erro do criador quanto à elaboração da criatura.
Ou um grave equívoco em relação aos textos sagrados.

O Velho me olhou com doçura e paciência


como quem já enfrentou a mesma questão muitas
vezes e disse: “Não há nenhum erro, tanto em relação à
criação quanto às palavras codificadas. Elas são como
um mapa que apenas precisa da correta interpretação

341
para levar o viajante ao destino desejado; um texto
necessita de uma leitura que vá além das letras
aparentes. Leve em consideração que as palavras
sagradas não foram escritas para alguns, afastando
definitivamente a ideia de privilégios; mas para todos,
sem exceção. São sinalizações para nos auxiliar no
constante exercício da lapidação pessoal, permitindo
ultrapassar, aos poucos, cada fase dos inúmeros ciclos
da vida: aprender a lição cabível naquele momento
da existência, se transformar com ela, colocá-la em
movimento ao compartilhar o melhor que floresceu em
si e seguir adiante”.

“Como os níveis de percepção ainda são


diversos e os textos são para todos, é preciso que
caiba vários níveis de interpretação, de acordo com a
consciência e o coração de cada indivíduo. Isto faz com
que possamos aprender e ensinar uns com os outros,
tornando preciosas as diferenças pessoais e culturais.
Faz, também, com que as palavras sagradas sejam
vivas e se modifiquem, não na forma, mas no conteúdo,
à medida em que se avança na jornada evolutiva”.

Interrompi para tirar uma dúvida que tinha


há tempos. Existem muitos textos das mais diversas
tradições religiosas, filosóficas e metafísicas. Alguns
muito antigos, outros mais recentes. Como saber
quais textos são sagrados? O Velho sempre dizia
que a verdadeira sabedoria é muito simples para que
todos pudessem ter acesso a ela. As águas precisam
ser claras para que possamos ver a profundidade do
lago. A complexidade é apenas fruto da ignorância
daqueles que tornam as águas turvas pelo medo

342
de que os descubram nadando no lado raso do lago.
Dessa vez não foi diferente. Ele explicou: “Sagrado
é tudo aquilo que me torna uma pessoa melhor.
O sagrado está em todos os cantos, escondido por
detrás das coisas e das relações banais do mundo à
espera que você o encontre. Toda palavra ou situação
que me pacifique, amplie o sentimento amoroso para
com toda a gente, destrua o cárcere sem grades das
ideias que limitam a perfeita liberdade da alma,
mostre a possibilidade da felicidade infinita e ventile
a leveza do ser através das escolhas repletas de
dignidade, são sagradas. Todo o texto, livro, filme,
conversa, música ou poesia que trouxer em seu âmago,
de alguma maneira e em qualquer das variantes, o
conceito de que ‘devemos amar cada pessoa como a
si mesmo’, não tenha dúvida, é sagrado. É sagrado
por ser fruto da semente primordial”. Simples assim.

Agradeci com um sincero sorriso. No entanto,


adverti o monge de que ele estava desviando o foco
da questão central daquela conversa: não seria mais
simples termos nascidos perfeitos e, desta maneira,
evitar tanto sofrimento? O Velho devolveu o sorriso e
se justificou: “Eu apenas fiz um preâmbulo sobre
a beleza e a simplicidade do sagrado, além da
importância das diversidades pessoais para o exercício
do aprendizado. São pilares valiosos para sustentar o
raciocínio que desenvolveremos a seguir”. Fez uma
pausa, bebeu um gole longo de café e perguntou:
“Todo pai amoroso deseja o melhor para os seus
filhos, certo?” Eu concordei e o monge prosseguiu
o raciocínio: “Imagine dois irmãos gêmeos, cujo
pai, um homem muito poderoso, os separa logo no

343
nascimento para que sejam criados de maneiras
diferentes. Um deles, desde a infância, terá amplo
acesso a todas as coisas que o dinheiro puder comprar.
Basta um mero desejo. O outro será criado com as
dificuldades inerentes ao mundo material, comum
à grande maioria das pessoas e lhe será concedido
apenas os meios necessários para realizar as suas
conquistas, nunca sem o devido esforço”. Olhou-me
com firmeza e acrescentou: “Vale ressaltar que não
há qualquer demérito ou virtude, seja na riqueza,
seja na pobreza; são apenas ferramentas de lições
existenciais”. Em seguida, tornou a perguntar: “Qual
dos filhos foi privilegiado pelo pai?” De pronto
respondi que era o filho criado na fartura e na riqueza.

O Velho sorriu com doçura, balançou a cabeça


em negação e explicou: “O compromisso na execução
de todas as fases de uma conquista obriga ao indivíduo
a buscar o aprimoramento, seja na execução da tarefa,
seja nas relações para com os outros ou diante de si
mesmo. Isto, quando bem aproveitado, o fortalece.
Desse processo surge a necessidade de inventar a si
próprio e a todas as coisas ao seu redor, não como
uma sombria fuga da realidade, mas como esforço de
ampliar limites, de mover o entendimento de que tudo
pode ser diferente e melhor para que haja progresso.
A vontade de ultrapassar fronteiras, de ir além de si
mesmo, é uma força irreprimível. É o ânimo da alma.
O trabalho antecede ao progresso; sem aquele não há
este. A jornada da transformação se destina à evolução.
Sem aquela não existe esta. O avanço tem como
característica todo e qualquer movimento em prol da luz.
É a antítese da estagnação, que tanto sofrimento traz”.

344
“Assim nasce o perfeito”.

“Sempre existe uma profundidade além da


superfície; uma essência por detrás da aparência.
Ela reside no entendimento e no movimento pela
conquista, não do mundo nem do dinheiro, mas
das transformações pessoais que se mostram
indispensáveis no prosseguimento da jornada, do
descobrimento do infinito poder de superação
pessoal. A beleza da perfeição está na transformação
do imperfeito; a magia da plenitude apenas é possível
quando buscada nos confins da incompletude; a
sabedoria do todo reside na descoberta da plenitude
por cada uma das partes que o compõe. A plenitude
permitirá, na régua do seu progresso, a conquista das
riquezas imateriais e infinitas: a paz, a liberdade, a
felicidade, a dignidade e o amor incondicional, justo
aquele com o qual envolvemos o outro no mesmíssimo
sentimento que desejamos a nós”. Olhou-me nos olhos
e disse: “Amar um ente querido é fácil; a virtude
está em amar quem nos magoou. Isto difere o forte
dos fracos e definem as histórias que valem a pena
ser contadas. Se vierem prontas perderão o enorme
encanto, o valor, o sentido e a sabedoria. De que vale
uma história da qual exista apenas o último capítulo?
Os melhores filmes são os que narram episódios de
superação. Não há como forjar o aço de uma boa
espada sem expô-la ao fogo”.

“No entanto, voltando a nossa questão, repare


bem, enquanto um filho trabalhou, o outro foi servido.
Contudo, você acha que ambos terão a mesma ótica e
concepção em relação ao mundo? Qual deles terá uma

345
percepção estrutural mais aprimorada? Uma relação
mais afinada com a vida? Qual dos filhos terá melhores
condições de deixar um legado de aprendizado para
quem vier atrás?” Antes que eu pudesse me manifestar,
ele repetiu a pergunta: “Qual dos filhos foi privilegiado
pelo pai?” Eu mudei a resposta e disse que tinha sido
aquele que o pai havia fortalecido através do trabalho.

O monge arqueou os lábios em leve sorriso


e disse: “Errado. O lago é um pouco mais profundo”.
Diante do meu espanto, ele explicou: “Existem
preciosas lições tanto em uma situação quanto em
outra, adequadas as necessidades de cada ser. Pensar
que o filho que teve a facilidade e o conforto do
dinheiro foi privilegiado é um erro. De outro lado,
julgar que ele foi preterido é também um erro”. Bebeu
um gole de café e ampliou o raciocínio: “O filho que
tem acesso ao luxo e as condições de pagar para que
o sirvam ao menor desejo, ao contrário do que muitos
imaginam, está diante de um difícil desafio evolutivo.
Ele tem um grande trabalho a realizar. Não o mesmo
trabalho do irmão que labuta por sua sobrevivência e
nela extrai as lições que lhe são pertinentes. Porém, o
filho rico precisa de um enorme esforço para encontrar
razões para que a sua vida não escoe nos ralos da
existência”. Franziu as sobrancelhas, como fazia
quando aumentava o tom de seriedade na fala, e disse:
“A vida de uma pessoa endinheirada precisa ter um
sentido para que seja, de fato, próspera. É indispensável
que este sentido esteja ligado a evolução espiritual”.

“A luta pela sobrevivência é um método


valioso que, quando bem aproveitado, alavanca

346
preciosas conquistas íntimas e incorpora o conceito
de prosperidade. No entanto, não é o único nem o
mais difícil. A renúncia pela vida luxuosa usada
apenas como cortina diante das mazelas do mundo,
a abdicação do conforto intramuros na disposição
de transformar riqueza em prosperidade ao usá-la na
propagação da luz, também exige muito esforço, sendo
igualmente preciosa”.

“Riqueza ou pobreza são somente desafios


evolutivos existenciais, portanto, temporários. Prospe-
ridade é andar no lado luminoso do Caminho,
independente das condições oferecidas”.

“Não raro, escuto histórias tristes de depressão


e desânimo oriundas de milionários que não souberam
usar o dinheiro como ferramenta de transformação
espiritual. O ego se agigantou na exata medida em que
a alma foi emudecida. Insistiram em uma existência
vulgar sem abdicar dos privilégios e sem aproveitar
a abundância material para abraçar a semeadura do
bem. Passaram pela vida como se apenas os prazeres
sensoriais, a ostentação, o luxo, o orgulho e a vaidade
tivessem importância. É uma pena o desperdício de
tamanha oportunidade. De outro lado, percebo igual
desperdício, apenas com outra roupagem, por parte
de pessoas que vivem revoltadas e lamentosas em relação
às dificuldades materiais que a vida lhes presenteou,
dispensando tempo e energia em reclamações
infrutíferas e emoções sombrias de injustiça quanto
ao destino”. Fez uma pausa e complementou: “Sim,
abundância ou escassez são presentes. Como todo
presente pode ser bem aproveitado ou acabar no lixo”.

347
“De um modo ou outro, o trabalho é
indispensável ao progresso. Sem aquele não haverá
este. A evolução pessoal é a transformação sem a qual
o mundo não avançará”. Fez uma pausa e lembrou:
“Mestre Jesus certa vez disse: “Vocês podem fazer
tudo o que faço e ainda mais”. Isto significa a evolução
através do aperfeiçoamento das virtudes pessoais.
Este planeta é uma escola formadora de admiráveis
mestres. A Lei do Progresso é a Lei da Perfeição.
Ela é inexorável e atingirá a todos; contudo, o trabalho
lhe é uma condição indispensável”.

Ficamos um tempo sem dizer palavra para


que eu pudesse acomodar os novos conceitos em seus
devidos lugares. Até que eu quebrei o silêncio para
falar que entendia a metáfora que ele fazia quanto ao
dinheiro. Era preciso entender não apenas o valor da
conquista da luz, mas também a melhor utilização
dela, a luz, em prol da superação de si mesmo e a
favor de todos. É a outra face da mesma lição. O Velho
sorriu, sacudiu a cabeça em concordância, e concluiu:
“Então voltamos ao início da nossa conversa quando
eu falei que tudo aquilo que nos torna uma pessoa
melhor é sagrado. Disse, ainda, que o sagrado se esconde
nas situações mundanas. Tanto a escassez quanto a
abundância são apenas instrumentos temporários que
servem às lições pertinentes ao indivíduo, podendo
se tornar profanas ou sagradas. Depende da aplicação
que dermos à ferramenta. Um martelo é usado tanto
na demolição quanto na construção”. Deu de ombros
e finalizou: “A escolha é sua e estará de acordo com
o trabalho que você estiver disposto a realizar”.

348
O AMOR. TÃO PERTO, TÃO DISTANTE.

T
Eu tinha chegado há poucos dias no mosteiro
para o meu período anual de estudos quando recebi
a notícia do falecimento do meu avô. Ele tinha sido
um homem saudável e ativo, estando à frente do
seu pequeno negócio até os últimos dias dessa sua
existência. Tinha se sentindo mal e foi levado ao
hospital. Embora tenha ficado internado para exames
mais aprofundados, os médicos disseram acreditar
não se tratar de nada grave. Fiz uma visita ao meu
avô antes de viajar; ele estava alegre e otimista,
características que sempre estiveram presentes no
seu jeito de ser. Apesar de eu estar confiante em
sua rápida recuperação, fiz preces neste sentido
e, mesmo de longe, enviei boas vibrações de cura.
Fiquei desorientado ao ser avisado do fim desse
ciclo em sua vida. Eu gostaria de mais um tempo
de convivência ao seu lado nesta minha existência.
Foi isto eu que disse ao Velho quando o encontrei
sentado sozinho na cantina entre uma xícara de café e
um pedaço de bolo de aveia. O bom monge se levantou
sem dizer palavra, me deu um forte abraço e depois
me acomodou em uma cadeira à sua frente. Encheu
uma caneca de café para mim, tornou a sentar e me
olhou com doçura como quem diz estar disposto a
me dar a atenção de que eu precisava naquele
momento. Confessei estar desorientado com a situação
e até mesmo um pouco descrente dos meus estudos.

349
Falei que a espinha dorsal dos estudos da Ordem é
o Sermão da Montanha, ensinamentos legados por
mestre Jesus nas colinas Kurun Hattin. Acrescentei
que ele, Jesus, também tinha dito que “todos poderiam
fazer o que ele fez e até mesmo mais”. Narram os livros
sagrados situações de cegos que retomaram a visão
e de aleijados capazes de voltar a andar. No entanto,
diante de uma situação bem mais simples, minhas
preces e vibrações de cura se mostraram insuficientes.
Questionei a valia dos meus conhecimentos.

O Velho passou a mão na sua barba branca,


como fazia todas as vezes que sabia estar diante de
uma conversa demorada, e disse: “O amor é a força
mais poderosa do universo. É a matéria-prima de
todas as transformações, logo, também dos milagres.
Todas as vezes que a realidade se altera para nos
ajudar a caminhar em sentido à luz, estamos diante
de um milagre. Se prestarmos atenção perceberemos
que a vida está repleta de milagres, que se manifestam
em situações aparentemente simples do cotidiano,
seja para nos auxiliar em momentos difíceis, seja
para não deixar que desistamos. Para que haja um
milagre a transformação precisa estar envolvida
em amor. Sem amor qualquer mudança não passa
de mera maquiagem. A diferença entre o que me é
possível transformar e o que Jesus fazia se traduz no
quanto de amor cada um já consegue trazer consigo
e se mostra capaz de compartilhar. Não trago nem
traços de tamanho amor”. Discordei de imediato.
Argumentei que eu tinha um amor enorme e sincero
pelo meu avô, um amor tão grande que era difícil de
mensurar. O Velho balançou a cabeça em concordância

350
e disse: “Não tenho dúvida do imenso amor que você
tem pelo seu avô; todavia, amar de volta quem sempre
nos ofereceu amor é a infância do amor”. Olhou-me
nos olhos com a delicadeza daqueles que não querem
chatear os outros, mas precisam ser firmes, e falou:
“Amar quem nos ama é para os fracos. A maturidade
do amor consiste em amar a todos, mesmo aqueles que
nos magoaram. É atuar para o bem de todas as pessoas
que nos cercam; inclusive aqueles que se opõem a nós
ou nos pedem ajuda. Independente de quem sejam.
É o sincero sentimento de que o outro é parte essencial
de um mesmo todo”. Olhou-me profundamente e
perguntou: “Você já tentou curar, oferecendo toda a
intensidade do seu amor a quem você não conhece, ou
mesmo a quem te feriu?” Fiz que não com a cabeça.
Ele explicou: “Comece com esses, deposite todo o
seu amor na dor de um desconhecido. Em seguida,
perdoe todos aqueles que te magoaram, trabalhando
com sinceridade para o bem deles. Depois lhe será
permitido curar aqueles que sempre lhe trataram com
afeto”. Fez uma pausa, comeu um pequeno pedaço de
bolo e comentou: “A estrada é longa”. Bebeu um gole
de café e concluiu: “O amor é o fator que determina a
extensão do poder individual gerado pela consciência
e pelo sentimento que o indivíduo tem do todo em si
mesmo. Mover esta força se chama fé”.

Falei que ele tinha complicado. Pedi para se


explicar melhor e lembrei de uma lição, ministrada
por ele mesmo, de que todo conhecimento precisa de
clareza para que possamos enxergar a sua profundidade.
O monge arqueou os lábios em leve sorriso e não se
negou a clarear o raciocínio: “O amor é um sentimento

351
tão perto e ao mesmo tempo tão distante. Perto, por ser
uma necessidade vital, como um bebê inevitavelmente
buscará o seio da mãe para se alimentar; sem amor a
alma falece por desnutrição. Distante, pela dificuldade
que temos de incorporar o amor em sua manifestação
mais ampla. O amor de uma mãe para com o filho,
o qual amamenta pelo mais puro dos sentimentos,
sem nada exigir em troca, é o primeiro encontro que
todos têm com a verdadeira essência da vida: o amor
incondicional. Evoluir é o exercício de ampliá-lo a
tudo e a todos. Devemos expandir o amor primordial
em ondas concêntricas ao movimentar as águas do
enorme lago da vida através deste sentimento tão
nobre. Essa vibração viajará até os confins do universo.
Quando encontrar a última das estrelas, retornará
em igual intensidade, como reação de merecimento
e generosidade”. Interrompi para dizer que ele não
estava ajudando muito com aquele discurso. O Velho
balançou a cabeça e foi mais objetivo: “O amor embora
íntimo, ainda é desconhecido em razão da sua extrema
sofisticação. Não no sentido de complexidade, pois ele é
simples, mas quanto à profundidade que ele exige para
que possa se revelar por inteiro. É como uma pessoa
que, apesar de viver ao nosso lado, a conhecemos
muito pouco. Assim, desperdiçamos tudo de bom que
ela pode nos proporcionar”.

Tornei a discordar. Falei que ele estava


enganado, pois todos, até mesmo os brutos, conhecem
o amor. O monge concordou em parte: “Sim, contudo
o mero fato de amar não significa entender toda a
extensão e a capacidade do amor. Mergulhar nesse
conhecimento muda tudo. Literalmente.” Bebeu um

352
gole de café e prosseguiu: “Muda a si mesmo, muda
as pessoas à sua volta, muda o mundo. Muda o olhar
sobre todas as coisas, relações e o seu destino. Muda a
régua, o passo e o compasso da vida.”

Falei que aquela retórica não passava de


uma bela poesia sem qualquer utilidade prática.
O bom monge não desistiu de me fazer entender e
foi mais pedagógico: “Por exemplo, você agora está
sofrendo de saudades em razão da partida do seu avô.
A saudade vem sendo injustiçada através dos tempos
pela incompreensão quanto ao seu valor. Tememos
a saudade quando, em verdade, deveríamos abraçá-la.
A saudade é a presença do amor como essência,
mesmo quando a ausência física se faz presente.
É o amor sentido independente de ser tocado.
É o amor de quem ama a liberdade”. Fechou os olhos
como se buscasse as palavras no fundo do coração e
disse: “Só há saudade onde existe amor. Sem este não
haverá aquela. Apenas sentimos saudade daquilo que
é maravilhoso. Então por que amaldiçoar a saudade?
Por que sofrer por sentir saudade? A saudade mostra
que a história foi bonita, que aquele capítulo da vida
valeu a pena ser vivido. O contrário da saudade é
o vazio, é a página que nos recusamos a escrever.
Que possamos dançar com a saudade nos infinitos
bailes da vida!”

Argumentei que aquelas palavras eram fáceis


para quem não está sofrendo por amor. O Velho fez um
gesto com a mão como quem diz que eu insistia em não
entender e vaticinou: “Ninguém sofre por amor!”

353
Quase pulei da cadeira diante de tamanho
espanto. Como ninguém sofre por amor? Eu era
testemunha de quanto o amor nos causa dor. O Velho
tentou me esclarecer: “Entendo o seu sofrimento diante
da partida inesperada do seu avô para outros importantes
ciclos de aprendizado. Mas o que faz doer é o egoísmo
de querer o outro fisicamente ao seu lado ao invés de
se alegrar com a viagem dele para uma nova esfera,
condizente às lições pertinentes ao seu atual momento
evolutivo. O que o egoísmo teima em mostrar como uma
perda, o amor revela como transformação. O véu das
sombras nos impede a perfeita visão dos laços de amor
unindo todos os corações pela eternidade. Sofremos com
determinada situação apenas por não entender todo o
amor possível e cabível naquele momento. Ao contrário
de como se acredita nas margens do conhecimento, o
amor não é a causa da dor. É justamente a falta de amor
que nos faz sofrer.”

Insisti que o monge estava enganado. Lembrei


que sempre amei as mulheres que fizeram parte da
minha vida; no entanto, as separações tinham sido
dolorosas. O Velho balançou a cabeça e tentou me
ajudar no raciocínio: “Nada mais comum e vulgar
do que sofrer por ciúme e culpar o amor. O ciúme é
uma sombra ancestral ligada à dominação do outro,
à imposição do seu desejo sobre o desejo alheio.
Em verdade, ao contrário do que se fala, o ciúme nada
tem a ver com o amor. O amor está ligado à libertação
do ser. Qualquer vontade contrária ao sentimento
de liberdade está vazia de amor. Por não entender,
transferimos injustamente o débito dessa dor para o
amor. Em verdade, sem amor não há como se perceber

354
prisioneiro no cárcere da dor. Sem amor é impossível
viver a liberdade”.

Ponderei que não era apenas nas relações


afetivas que o amor causava sofrimento. Acrescentei
que viver era um processo doloroso. O Velho me olhou
com paciência e disse: “Sofremos por que teimamos
em nos deixar impulsionar pelas paixões densas.
Assim como o ciúme e o egoísmo, enquanto seguirmos
as orientações do orgulho, da vaidade, da inveja, do
medo, apenas para citar as sombras mais comuns que
movem as paixões mundanas, continuaremos em ciclos
recorrentes de dor. Superar essas paixões ao modificar
e enobrecer os sentimentos que nos movimentam é a
grande batalha da vida”.

“Todas as vezes que o sofrimento se avizinhar,


vá ao encontro de si mesmo e se esforce para
identificar as sombras que os provocaram. Caso
a dor tenha chegado pelas mãos do orgulho e da
vaidade, por exemplo, passe olhar a situação através
dos óculos da humildade e da compaixão. Então,
encante-se com a leveza do inusitado”. Fez uma breve
pausa antes de concluir: “Essa é apenas uma das
inúmeras possibilidades oferecidas pelas virtudes, as
maravilhosas ferramentas do amor”.

“O indivíduo sofre por ainda não ter entendido


que toda a felicidade, paz, dignidade, liberdade e amor
que todos procuram, consciente ou inconscientemente,
estão dentro de si. Encontrar essa plenitude é a grande
aventura da vida; compartilhá-la com o mundo, a
eterna fonte de alegria”.

355
Reclamei que o planeta estava desprovido
de amor, era como um grande jardim abandonado.
O monge balançou a cabeça em negação e disse:
“Sentir-se amado é uma das maravilhosas dádivas da
vida e acaricia a ego de todos. No entanto, a alma
precisa oferecer amor para se sentir inteira. Entenda
que o amor que eu recebo não é meu; ele ‘está’ comigo.
Logo, é dependente do outro e pode se tornar variável
e efêmero. De outro lado, o amor que entrego é meu
por completo, por fazer parte da minha essência, por
‘ser’ comigo. É preciso entender que o amor que tenho
não é aquele que recebo, mas tão e somente o amor
que sou capaz de oferecer. Lembre que ninguém pode
dar o que não tem. Logo, se não consigo entregar
é porque não o possuo comigo. Se não o tenho, me
resta um enorme deserto existencial. Ocorre que ao
invés de criar condições para que o amor germine,
transfiro ao outro a responsabilidade de cuidar de
mim, como um insensato fardo, impossível de ele
carregar por muito tempo. Então, surgem os conflitos
com o mundo, pois desejo solucionar a aridez da vida
ao exigir que os outros me entreguem as flores que me
faltam e, em verdade, são justamente aquelas que me
cabe cultivar. Faz-se necessário mudar esse padrão
de comportamento que tanto sofrimento provoca; é
indispensável cultivar um jardim íntimo para colorir
e perfumar a própria vida. Este é o degrau primordial.
Depois, será possível um segundo degrau ao sentir
a alegria de oferecer aos outros as mesmas flores
que antes exigíamos deles. Inverter a equação do
relacionamento do nosso amor com o mundo permite a
consolidação dos pilares da paz dentro de si e perante
a toda a gente”.

356
O Velho se calou por instantes, como se
soubesse que eu precisava metabolizar todas aquelas
ideias, comeu um pedaço de bolo, e prosseguiu:
“Os sofrimentos surgem à medida em que reagimos
mal às contrariedades que os outros nos opõem.
Nessas horas damos vazão ao ciúme, à inveja, à vaidade,
ao orgulho, entre outras sombras. Abrimos mão de
uma convivência digna e pacífica por não conseguir
envolver o conflito na esfera de amor necessária.
Transferimos responsabilidades e insistimos que
nossas escolhas sejam acatadas pelos outros. As escolhas
são as únicas ferramentas disponíveis para movimentar
a verdade pessoal. A dignidade em respeitar a própria
verdade se reflete na imprescindibilidade de respeitar
a verdade alheia. As verdades pessoais têm diferentes
tons a variar de acordo com os níveis de consciências
alcançados. A harmonia entre os vários olhares possíveis
em relação à vida apenas é possível quando revestidos
de amor. Então, atinjo a fronteira da milenar sabedoria
de agir no estreito limite da atitude que gostaria que
outro tivesse em relação a mim. Isto é a dignidade das
relações. Assim, a dignidade apenas se torna factível se
houver amor em cada umas das minhas ideias, emoções
ou gestos. Sem dignidade todas as relações se fundam
em rascunhos mal traçados da boa vontade da nossa
convivência conosco e com o mundo.”

Tornei a interromper para lembrar que todas


aquelas palavras se tornavam impraticáveis quando
o amor não era correspondido. Afinal, amor é troca.
O monge franziu as sobrancelhas, como fazia quando
aumentava a seriedade da sua fala, embora a sua voz
permanecesse doce, e explicou. “Um dos erros mais

357
crassos que escuto em todos os lugares é que ‘o amor é
troca’. Fico imaginando o amor diante de um absurdo
balcão de negócios, como algum personagem canastrão
anotando em um improvável livro-caixa todo amor
que deu entrada e saída, como se fosse possível, ou
mesmo saudável, a contabilidade do amor. Seria como
transformar em números o incomensurável; como se
fosse possível descrever o invisível; como tornar pesado
o que, para existir, precisa ser leve; como desmanchar
o todo para virar nada. Amor é compartilhamento.
É oferecer sem tributos ou contrapartida o que se tem
de melhor; ou não será amor. Qualquer interesse fora da
felicidade que se possa transmitir ao outro contamina
o amor que, em reação, desaparecerá. A recíproca
também se aplica e o faz surgir, como por magia,
quando oferecido na sua forma mais pura. Sem entrega
incondicional não haverá amor; na falta de amor, ainda
que haja festa, nenhuma felicidade existirá”.

“Percebeu que enquanto falamos de amor


abordamos questões essenciais como liberdade, paz,
dignidade e felicidade? São os estados de espírito
conquistados na plenitude do ser”.

“A plenitude está atrelada ao processo


evolutivo. Em muitos lugares que passo, escuto
definirem a evolução como expansão de consciência.
Claro que não está errado, contudo não está de todo
certo por restar incompleto. Eu pergunto, o que
falta? Ora, falta ampliar a capacidade de amar para
que sabedoria e amor andem sempre de mãos dadas.
Sabedoria sem amor é como água pura derramada no
chão que se torna lama sob os pés dos brutos”.

358
Falei que não era fácil viver por amor.
O Velho deu de ombros e disse: “Ninguém disse que
era fácil. É dificílimo, pois vivemos em um planeta
movido por paixões densas, as quais, não se iluda,
ainda temos total afinidade. Quando se tornar fácil
viver por amor, significa estarmos de malas prontas
para seguir rumo às Terras Altas.” Olhou-me com
bondade e finalizou: “Embora não seja fácil, viver
por amor é simples. A simplicidade, por não conter
subterfúgios, máscaras ou mistérios, leva a uma
profundidade desconcertante, pois leva ao âmago
do ser. Apenas lá você poderá encontrar consigo
mesmo e com todo o amor que lhe permitirá as
mais impensadas transformações. Quando encontrar
consigo ficará diante de Deus. Então, todo o poder lhe
será possível. O amor é o caminho e, não por acaso,
também o destino.”

O Velho pediu licença e se levantou. Estava


na hora da palestra que ministraria naquele final de
tarde no mosteiro. Fiquei observando ele se afastar
com seus passos lentos, porém firmes. Fiquei na
cantina, em silêncio, por um tempo que não sei
precisar. Dentro mim, além das lições sobre o amor,
ficou a sensação de que eu ainda desconhecia quem
me habitava. Restou também uma irresistível vontade
de ir ao meu encontro.

359
DIANTE DA ALMA

T
O tambor de duas faces de Canção Estrelada, o
xamã que tinha o dom de levar a sabedoria do seu povo
através das palavras, rufava em ritmo compassado
quando cheguei ao seu “lugar de poder.” Este local
era próximo à sua casa, no alto de uma montanha no
Arizona, em um pequeno platô, onde, além da bela
paisagem e profundo silêncio, me chamava a atenção
uma árvore bem antiga em um improvável equilíbrio,
bem na ponta de um penhasco. Ele dizia que todos têm
um lugar onde sentem com maior intensidade a ligação
com o Grande Mistério, o invisível que permeia e atua
no visível, na harmonia entre a força e a sutileza da
vida. A minha viagem para encontrar com o xamã já
estava programada há meses, mas perto da partida a
adiei várias vezes em razão de alguns acontecimentos.
Tudo começou em um evento no qual a minha agência
de publicidade, embora pequena, havia sido premiada
pela originalidade de um anúncio. Uma famosa atriz,
mulher lindíssima, tinha sido contratada para apresentar
a cerimônia de premiação. Foi ela quem puxou assunto
comigo quando nos esbarramos no coquetel que
aconteceu logo após. Ela fez elogios ao meu trabalho e
mostrou interesse em saber mais. Eu fiquei apaixonado
ao ouvir o som das suas palavras enquanto olhava
para aquele rosto angelical, emoldurado pelos cabelos
encaracolados que lhe desciam pelos ombros à mostra.
Ali começou um romance. E também a minha agonia.

360
Os primeiros dias foram de muita euforia.
Além do troféu, aquela noite tinha me presentado
com uma mulher que era um sonho para a grande
maioria dos homens. Em todos os lugares que íamos
as pessoas se viravam para nos observar. Eu me sentia
enorme e poderoso. No entanto, esse relacionamento
acarretou várias mudanças, tanto pessoais quanto
profissionais. A mais significativa foi o término do
meu namoro com a antiga namorada, que já durava
um bom tempo. Esta, embora não tivesse nem uma
pequena parte da beleza e do glamour da atriz, era
uma pessoa adorável. Bem-humorada, inteligente
e sensível, ela colaborava de maneira decisiva para
uma convivência extremamente agradável. Como
morava em outra cidade, nos víamos apenas nos
finais de semana. Mas eram dias de passeios ao ar
livre, ótimas conversas e muitas risadas. Por vezes,
gostávamos de ficar em casa, seja na dela, seja na
minha. Um livro, uma xícara de café e a presença
do outro eram suficientes para nos alegrar a alma; a
vida parecia suave. Com a atriz, eu estava sempre em
festas badaladas, reuniões sociais na casa de alguém
importante, em restaurantes finos, entre holofotes
e paparazzis. Era como se me fosse permitida a
realidade de um mundo apenas conhecido na ficção.
A vida girava em rotação acelerada.

A outra mudança foi no meu trabalho, por


dois motivos. Um foi porque eu comecei a precisar
de mais dinheiro para custear a minha recente vida
social. Não era barato aquela existência estonteante.
Tive que mudar o estilo básico de vestir; passagens
aéreas e hotéis elegantes passaram a fazer parte do

361
meu cotidiano. E este dinheiro não estava sobrando em
minha conta corrente. Não era só. Inconscientemente,
eu me sentia obrigado a ganhar “um prêmio todos
os dias” para que a minha bela e famosa namorada
continuasse a admirar o seu anônimo par. Isto fez
com que o meu humor e paciência se alterassem com
as pessoas que trabalhavam comigo, trazendo vários
atritos. Passei a procurar os velhos amigos apenas para
que eles pudessem me admirar. Eles logo se cansaram.
Embora a leveza tivesse me abandonado, de alguma
maneira aquela vida me embriagava e eu queria mais.
Sem que eu me desse conta, a minha vida seguia em
espiral descendente de agonia e desequilíbrio até o
dia em que briguei com a jovem e competente chefe
da equipe de criação da minha agência. Eu cobrava
dela perfeição e genialidade. O meu sócio me chamou
para uma conversa e me aconselhou a tirar as férias
adiadas. Pensei em recusar, mas fui surpreendido
pelo fim do romance com a bela atriz através de uma
mensagem pelo celular. No dia seguinte vi fotos dela
com o novo namorado, um conhecido diretor de
cinema, na internet. Nesse instante, quando olhei à
minha volta, tudo me pareceu destruído. Foi quando
parti ao encontro do Canção Estrelada.

A porta da casa do xamã nunca ficava


trancada. Entrei, deixei a minha bagagem na sala,
e perguntei a uma vizinha por ele. Ela disse que
Canção Estrelada tinha saído mais cedo levando
o seu tambor, uma sacola a tiracolo e uma manta.
Não tive dúvidas de onde o encontraria. Quando
cheguei, ele apenas me olhou e continuou a entoar
uma bela canção em seu dialeto nativo. Entendi como

362
uma permissão. Sente-me à sua frente. Ao final, nos
cumprimentamos e eu lhe pedi ajuda. Falei que ele
era meu guru. Disse que sabia da sua intensa conexão
com a esfera invisível e roguei que ele intercedesse
por mim em busca de auxílio. Acrescentei, sem que
precisasse, que eu estava muito mal. Também contei
tudo que eu havia passado. O xamã me olhou com
compaixão, mas disse com firmeza: “Eu não sou um
guru. Eu abro mão do personagem por entender que
atrapalha mais do que ajuda”. Fez uma pequena pausa
e explicou: “A conexão se torna possível quando há
o encontro com o sagrado. Posso orientar quanto ao
encontro, nunca o substituir. O sagrado habita dentro
de ti. Esse encontro é pessoal e intransferível.”

Ponderei que eu estava completamente


desorientado e sabia do enorme poder dele. Confessei
que eu precisava que ele me conduzisse por um
atalho. Eu não conseguiria suportar uma longa espera.
O xamã me explicou com paciência: “A natureza
não dá saltos; na espiritualidade também se anda
devagar. Não há atalhos. Existe apenas o Caminho.
Não é possível chegar ao destino sem enfrentar toda
a travessia. Ela te molda e te prepara. Embora haja
a indispensável solidariedade durante o percurso, o
Caminho é solitário. Ninguém poderá fazê-lo por ti.
As dificuldades surgem na exata medida das lições
que nos são necessárias. Aproveite cada uma delas.
O Caminho nos devolve na exata medida dos nossos
passos. Ele é sábio, justo, amoroso. Se por vezes lhe
parecer rigoroso, não tenha dúvida, são apenas as
necessárias correções de rota, com a firmeza adequada

363
à incompreensão do andarilho. Um dia você será um
mestre; um mestre de si mesmo. Todos serão, cada
qual ao seu tempo.”

Falei que eu não sabia como fazer. Canção


Estrelada, ao seu jeito, não me negou ajuda e disse:
“O absoluto é a luz. A casa da luz é a alma; a estrada
para a alma é o silêncio; o encontro acontece quando
a alma se manifesta. O encontro ocorre no mergulho
profundo de si mesmo, onde não há máscaras
nem ilusões. Então é possível o entendimento, a
transformação e o retorno para dividir com o mundo
as virtudes desse novo ser. Diferente e melhor a
cada dia, em sucessivos trajetos de ida e volta, como
valiosos trechos de uma viagem sem fim.”

Fez uma pausa e continuou: “No mais, esse


tal poder que você atribui a mim, ele é simples e está
disponível a todos; basta aprender a usar. Cada pessoa
é única, mas ninguém é especial; caso contrário, a
escala de harmonia e justiça do universo restaria
quebrada. Todo poder surge quando levamos o ego
para conhecer a alma. O poder cresce na medida que o
ego se afina à alma e passam a entoar a mesma canção.
Então, a alma passa a participar cada vez mais das
escolhas do ego. Através da alma, as sombras, ocultas
sob o manto das paixões, tão comum a todos nós, que
tanto motivam o ego, serão, aos poucos, iluminadas e
transmutadas em luz. As paixões darão lugar ao amor.
Tudo o que é instrumento de dominação se transforma
em ferramenta de libertação. Essa é a cura. Assim
nascem as asas.”

364
Acrescentei que ele emanava uma energia
forte que fazia com que as pessoas se sentissem bem
ao seu lado. Canção Estrelada sorriu com humildade
e disse: “Claros ou turvos, irradiamos os sentimentos
que trazemos no coração e as ideias que movimentam
as nossas escolhas. Isso determina a frequência das
nossas vibrações e o conforto que proporcionamos
a quem está ao redor. Diante do conflito podemos
agir com irritação e violência ou com serenidade e
mansidão. Quando nos envolvemos em sintonias de
leveza e paz as soluções se tornam mais claras, sábias,
justas e amorosas. Isso costuma revelar o quanto
da alma já é capaz de se manifestar no indivíduo.
No entanto, nos acostumamos aos impulsos das
paixões, aos vícios dos condicionamentos socio-
culturais, à opinião alheia. Consideramos normal
desistir dos sonhos. Chegamos a nos convencer de que
a escuridão é um bom lugar pelo absurdo argumento
de inexistir outro. Então sofremos pelo vazio que
criamos, como aquelas cidades cinematográficas
que são apenas bonitas fachadas, sem qualquer
estrutura em seus fundamentos, e desabam na breve
ventania. Entrar no Caminho é mudar o sentido
da existência”.

Canção Estrelada me entregou a bolsa, a manta


e disse: “Aqui tem tudo que você precisa para passar
alguns dias em solidão. Adiante há uma nascente com
águas límpidas. Volto para te buscar.” O susto me
emudeceu. Atônito, fiquei olhando o xamã descer a
montanha com o seu tambor de duas faces, enquanto
eu tentava concatenar as ideias.

365
Na bolsa havia frutas secas e fósforos. Acendi
uma fogueira com a chegada da noite e, em razão do
cansaço da viagem, dormi profundamente. No primeiro
dia, não demorou para eu me entediar. Logo a bela
paisagem se tornou cansativa e o canto dos pássaros uma
chatice. Achei uma estupidez o que Canção Estrelada
fazia comigo. Pensei em não permitir, me levantar e
ir embora. Aquela mesmice me irritava. Vieram-me à
mente todas as situações recentes. Lembrei de como
a minha bela e famosa namorada tinha sido cruel e
desleal comigo; eu lhe tinha oferecido o melhor que
havia no meu coração. Sem contar as despesas que
fizeram desmoronar as minhas economias. Em troca,
o que recebi? Dor e desilusão. Depois pensei na briga
com a chefe de criação da agência. De como ela
tinha sido ingrata com as oportunidades de trabalho
oferecidas por mim a ela na agência. Sem dúvida, era
uma insolente. O dia foi doloroso e quando chegou a
noite, diante da fogueira, custei a pegar no sono. Eu me
sentia desconfortável por estar em um mundo difícil
de se viver.

No segundo dia acordei mal-humorado com


os passarinhos beliscando as frutas secas que me
serviam de alimentação. Espantei-os com xingamentos
como se fossem inimigos. Em seguida, devorei tudo,
esvaziando o saco. Procurei me acalmar. Sentei-me à
beira do penhasco e raciocinei que havia duas escolhas
centrais. Eu poderia descer a montanha imediatamente
e abandonar os ensinamentos que Canção Estrelada me
propôs, de cuja utilidade, eu duvidava; ou tentar me
adaptar a aquela situação para extrair o melhor que ela
pudesse me proporcionar, nem que fossem dias mais

366
agradáveis até o retorno do xamã. Optei por esta. Com
o passar das horas, senti fome. Embrenhei-me pela
mata em busca de algo comestível. Não demorou muito,
encontrei um arbusto repleto de pequenas amoras.
Coloquei várias na sacola e retornei. Aquele passeio,
somado ao fato de eu ter superado a dificuldade com a
fome, me fez bem. No final da tarde acendi a fogueira
e fiquei observando o entardecer por um tempo que
não sei precisar. Quando me dei conta, o fogo tinha
consumido os gravetos e o céu estava salpicado de
estrelas. Percebi que eu não olhava mais a paisagem; eu
olhava para dentro de mim. Pensava em como eu poderia
realizar esse “encontro comigo” ou o “encontro com
a minha alma” de que Canção Estrelada tanto falava.
Na prática, como era isso? Não tinha a menor ideia.

Distraí-me encantado com a beleza do céu


e as infinitas estrelas que o iluminavam. Eu não me
lembrava da última vez que havia parado para olhar
para estrelas. Recordei de uma imagem enviada por
uma sonda espacial quando de passagem por Saturno
mostrando como a Terra não passava de uma pequena
gota d’água no oceano da Via Láctea. Os astrônomos
sustentam que o Sistema Solar não passa de um
acanhado detalhe diante da imensidão do Universo.
Este, segundo os físicos, vive em expansão contínua.
Impossível não enfrentar a realidade de como nos
iludimos grandes e especiais, quando na verdade
somos pequenos e singulares. Como a Terra; nisso
reside a minha e a sua beleza.

Percebi que era primordial eu incorporar


esse conceito para me equilibrar com tudo e todos ao

367
meu redor. Naquele instante entendi a importância
da humildade para descobrir quem eu sou; para me
situar na imensidão e fazer parte dela, com todas as
suas possibilidades. Pensei em como eram ridículos
todo o meu orgulho e vaidade, duas das paixões que
me moviam, que supostamente me engrandeciam,
quando, no fundo, apenas tentavam esconder a minha
fragilidade. Ri da ignorância que me aprisionava
no sofrimento. Entendi que para renascer é preciso
entender quem ainda não sou para somente depois
conceber tudo aquilo em que posso me transformar.
Impossível conseguir isso sem humildade. A humildade
é o gatilho da evolução. Enquanto acreditar que sou
especial, superior a tudo e a todos ao meu redor, estarei
negando a necessidade da evolução. Assim, desperdiço
o poder concedido pelo universo, pois abro mão das
transformações e expansões oferecidas. Naquele
instante ficou claro que a grande viagem não era para
Londres, Nova Iorque ou Pequim, e sim para encontrar
e dar voz à minha alma. Nela nasce toda a minha força.

Não me lembro da hora em que peguei


no sono. Acordei revigorado no terceiro dia.
Os passarinhos se fartavam com as poucas amoras
que tinham sobrado. Sorri para eles. Levantei-me sem
pressa e me encantei por um longo tempo com a bela
paisagem das montanhas. Elas me pareceram ainda
mais bonitas. Lembrei da noite anterior e pensei em
como eu poderia aplicar a humildade como ferramenta
de transformação. Veio à mente o romance com a atriz.
Dessa vez, ao invés de me sentir injustiçado, banhei os
fatos com a luz da humildade. Admiti que eu havia me
envolvido por pura escolha, movido pelas paixões do

368
orgulho e da vaidade. Na verdade, nunca houve amor,
apenas o meu ego sedento por brilho a me enganar
quanto aos sentimentos envolvidos. Eu me permiti
viajar ao mundo dela. A ilusão me levou a viver os
valores de vida escolhidos por ela. Diga-se, nem certos
nem errados. O contrário disto seria tornar a escorregar
na ideia de que sou especial ou superior, conceito onde
surgem o distanciamento e a separatividade que tanto
sofrimento causam. Sou único, nem melhor nem pior;
apenas diferente. Daí a importância de cada indivíduo,
todos singulares e belos, para completar e colorir o
maravilhoso mosaico da vida.

Entendi que ela não tinha me feito qualquer


mal deliberadamente, apenas vivia do jeito que sabia
e gostava. Ela tinha esse direito. O estranho naquele
mundo era eu; logo, as consequências me foram
justas. Cabia a mim respeitar, aprender e seguir em
frente. Eu não poderia exigir dela a perfeição que eu
também não tinha para oferecer. Perdoei a mim e a ela.
Foi quando me senti envolto em uma agradável
atmosfera de liberdade e compaixão. Decidi que
quando voltasse iria procurar a minha outra namorada,
anterior a atriz, para dizer que tinha sido um tolo.
Não sei se ela aceitaria reatar o romance, mas a ideia
de tentar me alegrou.

Com igual sentimento, eu envolvi mentalmente


a situação com a moça que chefiava a equipe de criação
da agência. Com honestidade, era preciso confessar
que a ganância e o desequilíbrio imperaram sobre as
minhas vontades. Em verdade, eu tinha transferido
para ela os anseios, desejos e incompletudes do meu

369
ego exacerbado. Não satisfeito, a culpei, provocando
o conflito. Por justiça, eu tinha que admitir a sua
enorme competência e talento. Faltava dizer para ela
o que eu acabara de falar para mim mesmo: o prêmio
ganho pela agência era muito mais mérito dela e da
sua equipe do que meu. As exigências eram frutos
do meu desequilíbrio. Eu iria procurar a jovem e lhe
pedir desculpas. Senti-me feliz por tê-la trabalhando
ao meu lado.

Quando me dei conta, não havia montanhas,


pássaros nem floresta. Apenas o silêncio absoluto.
Fui envolvido por uma agradável leveza. Sem saber, eu
tinha chegado à porta da minha alma. A humildade e
a compaixão tinham me levado até lá. As virtudes são
os veículos adequados para transportar o ego à alma.

Se a humildade e a compaixão tinham me


elevado o ânimo e permitido tamanha leveza, se a
honestidade e a coragem no trato comigo mesmo havia
me oferecido uma breve noção de justiça e perdão,
pensei em como eu me sentiria ao incorporar ao meu
jeito de ser e viver, outras virtudes além dessas, como
a gentileza, a mansidão, a paciência, a sensatez, a
pureza, a fé... As quais, como quase todos, eu já ouvira
falar, mas ainda não conhecia.

Tornou a passar um longo tempo até que


Canção Estrelada chegou. Quando o xamã viu o
meu semblante sorriu satisfeito. Não foi necessária
qualquer palavra para explicar. Eu lhe agradeci por
ter me proporcionado aquela vivência. O homem que
desceria a montanha era outro daquele que a subiu.

370
O xamã estendeu uma manta, se sentou, acendeu o
seu inconfundível cachimbo com fornilho de pedra
vermelha, baforou várias vezes, me entregou o
cachimbo em cerimônia de comunhão entre almas
e disse: “Muitos buscam uma experiência espiritual;
a maioria, somente quando diante de um problema de
difícil solução. Chegam em busca de ajuda rápida e
anseiam por algum fenômeno sobrenatural. As dores
da alma precisam de entendimento e transformação.
De dentro para fora. Nenhuma experiência religiosa
ou filosófica atingirá os patamares mínimos se o
indivíduo não se aventurar a sair da superfície da
existência para um mergulho no fundo de si mesmo.
Lá está a alma. A alma é a essência do ser, o berço do
amor; o elo com a vida, é a sua parte no todo.”

“Apenas através da alma podemos pulsar


toda a força e poder do universo. Arqueou os lábios
em leve sorriso e concluiu: “Quando as paixões
nos movem, o amor fica de lado; quando o amor é
esquecido, abdicamos da nossa essência. Quando nos
afastamos de nós mesmos, ficamos sem conexão com
o Grande Mistério.” Fez uma pausa e acrescentou:
“Longe da alma a vida perde a clareza, o sentido e
o sabor.” Olhou-me nos olhos antes de finalizar:
“No entanto, mantenha a humildade e aperfeiçoe as
demais virtudes todos os dias. Você apenas chegou,
em uma primeira vez, à porta da sua alma. Nem ao
menos entrou. Lá dentro existe um mundo ainda
desconhecido e fantástico a ser revelado. Encante-se!”

371
A LUZ DO MUNDO E A MISERICÓRDIA

T
O mundo não é um bom lugar para se viver.
Eu estava convencido desta afirmação enquanto
observava as belas montanhas, sentado em uma
confortável poltrona na varanda do mosteiro. Cansado
de tantos conflitos, injustiças e maldades, eu tinha
perdido a esperança de viver em um mundo melhor.
A minha vida pessoal também acumulava uma série
de brigas e decepções, seja na família, entre amigos
ou no trabalho. Desse modo, me alegrei ao viajar para
passar um período de estudos e reflexões na Ordem.
O mosteiro era um bom refúgio. Eu tinha chegado
na noite anterior e ainda não tinha encontrado com
o Velho, como carinhosamente chamávamos o
monge mais antigo da irmandade. Ele retornara um
pouco mais cedo; vinha de uma série de palestras
em cidades próximas e tinha se recolhido em seu
quarto para descansar. No dia seguinte, ao acordar,
passei na biblioteca para pegar um livro, enchi uma
caneca de café no refeitório e fui para a varanda.
Não demorou muito o Velho veio ao meu encontro.
A barba branca cuidadosamente aparada, os passos
lentos, porém firmes, e com as feições coradas pelo
sol das montanhas, ele era a imagem da alegria e da
jovialidade apesar da idade avançada. Uma energia
de bem-estar e paz o envolvia e contagiava as pessoas
à sua volta. Mas não era uma calma preguiçosa; era
uma tranquilidade vitalizante. Ele próprio, embora

372
apreciasse o descanso, estava sempre envolvido em
várias atividades, estudos e não dispensava a prática
da yoga ao acordar. Ele trazia em si o poder da leveza
e a força do movimento. Ofereceu-me um sorriso
sincero e um forte abraço. Sentado na poltrona ao
lado, contou do ciclo de palestras que acabara de
ministrar e como estava contente por isto. Disse que
queria me falar de seus novos projetos, mas antes
desejava saber como eu estava. Como as palavras
costumam refletir a bagagem da alma, derramei todas
as minhas frustrações e lamentos quanto ao mundo.
Conclui dizendo que agora iria me fechar mais em
meu círculo de vida e seguir cada vez mais alheio às
iniquidades da humanidade. Em seguida, acrescentei
que eu estava ansioso pelo início daquele período de
estudos e pelo desenvolvimento espiritual que ele
traria. O velho me ouviu com atenção e paciência
sem me interromper. Ao final, disse: “O novo ciclo
de aprendizado será bem diferente dos anteriores.
Acho que será proveitoso, embora tenha dúvida se
irá lhe agradar.”

Curioso, perguntei sobre qual autor iríamos


nos debruçar. Eu apreciava muitos, e outros eu desejava
conhecer. Yogananda, Lao-Tse, Blavatsky, Kardec,
Teresa D’Ávila, eram alguns do extenso rol. Ele foi
enigmático na resposta: “Todos são maravilhosos
e permitem valiosos conhecimentos, mas desta vez
estudaremos um que considero como o meu favorito.”
Fez uma pausa e me surpreendeu: “Há um pequeno
grupo de refugiados que chegou recentemente da
África. Eles foram alocados em uma cidade próxima
daqui. Ficaremos alguns dias com eles.” Como

373
ficaremos? Eu tinha vindo de outro continente em
busca de sossego e estudo. Sinceramente, não fazia
parte dos meus planos trocar o conforto do mosteiro
pela precariedade de um acampamento de refugiados.
O Velho balançou a cabeça como quem diz que me
entendia e disse: “Não lhe tiro a razão nem a liberdade
de escolha.” Perguntei se todos os monges, como são
denominados os membros da Ordem, também iriam.
Ele sacudiu a cabeça e explicou: “Não. Iremos você
e eu. Os demais ficarão para as palestras, leituras,
debates e meditação.” Em seguida concluiu: “Partirei
amanhã cedo, logo após o café. Esteja pronto, caso
queira me acompanhar. Do contrário, você pode ficar
com os demais. Sem problema.”

Diferente do que se poderia imaginar, não


havia qualquer traço de decepção ou ressentimento
na voz do Velho; era apenas bondade e compaixão.
Foi justamente isso que me tocou a ponto de
incomodar. Eu estava decido que ficaria no mosteiro.
Eu sonhava por esses dias; toda aquela vivência de
estudos era fantástica e apenas possível uma vez por
ano; a miséria humana estava disponível a qualquer
hora. Não, eu não iria acompanhar o Velho.

Naquele dia assisti a uma palestra seguida


por um animado debate. Não me lembro do assunto
abordado nem do que foi discutido no colóquio.
Apenas pensava no convite absurdo que o bom
monge tinha me feito. Passei a noite em claro.
No dia seguinte, quando o Velho entrava no carro
que o levaria ao acampamento, cheguei esbaforido,
com a mochila nas costas, entrei pela outra porta e

374
me sentei ao seu lado no banco de trás. Ele, sem olhar
para mim, arqueou os lábios em leve sorriso.

A viagem demorou quase seis horas. Um campo


de refugiados é o perfeito retrato das periferias urbanas,
com o agravante de que aquelas pessoas não têm planos
para o dia seguinte; apenas sonhos. Era justamente o
sonho pessoal a alavanca propulsora do Velho. A sua
força e poder; o seu discurso e ação; a sua esperança e
fé. No bom monge o sonho pulava com a disposição de
um garoto travesso. A primeira sensação que tive foi
de que o acampamento se assemelhava a um orfanato,
com a diferença de que havia, além das crianças, adultos
que também estavam órfãos. Órfãos da vida. Mais do
que os seus corpos, as suas almas precisavam de resgate.
De imediato entendi que não se morre com a finitude do
corpo, mas com o abandono da alma.

Porém, antes que eu pensasse em qualquer


palestra de cunho espiritual para animar aquelas
pessoas, era necessário cuidar de feridas, providenciar
roupas, sanar a desnutrição, criar condições para que
as crianças estudassem e traçar metas de trabalho
para os adultos. Enfim, proporcionar àquelas pessoas
condições mínimas de existência. Era tanto para se
fazer que tive vontade de desistir. Tive a convicção de
que o melhor a fazer era dar meia-volta, entrar no carro
e retornar ao mosteiro. Cheguei a colocar a mochila nas
costas até que, quando ia me retirar, percebi o Velho
abraçado a três crianças. Uma delas, com uma ferida
infeccionada no braço, manchara a camisa do monge
com sangue e pus. Reparei que ele não dava a menor
importância a isso. Ao contrário, o seu olhar tinha uma

375
luz indescritível. Irradiava o amor na sua vibração
mais alta; era a caridade, a beneficência, a compaixão;
o amor em seu sentido mais nobre: ame o outro como
a si mesmo. Eu já ouvira esta frase diversas vezes, mas
foi a primeira vez que eu a vi.

Não, não e não. Aquilo era muito elevado, mas


não era para mim. As autoridades e os governantes
foram eleitos para resolver isso. Além do mais, eu já
fazia a minha parte através de doações financeiras
para ONGs que cuidavam de problemas semelhantes.
Eu não queria essa vida, aquele não era o meu mundo.
Quando eu estava saindo, não consegui deixar de olhar
para o Velho mais uma vez. Para minha surpresa, ele
também me olhava. Nos seus olhos não havia decepção,
apenas misericórdia. Nos encaramos por segundos que
se traduziram em uma eternidade em meu coração.
Então, ele balbuciou lentamente com os lábios para
que eu pudesse entender: “Vós sois a luz do mundo!”

Era um trecho do Sermão da Montanha, texto


que eu tanto estudara por ser o eixo filosófico da Ordem.
Mil coisas se passaram na minha cabeça. Como eu me
sentiria em voltar para o mosteiro e seguir nos estudos
se eles não me tinham serventia? Como evoluir sem me
envolver com o mundo? Como avançar sem a coragem
de me reinventar? Eu estava disposto a viver a minha
existência ou somente tirar férias sobre ela? Se estou
neste planeta, com toda as suas aflições e injustiças,
é por causa da minha afinidade energética com ele;
eu não era tão bom como gostava de me imaginar.
Para ter direito a um mundo melhor, eu tinha a
obrigação de ser uma pessoa melhor.

376
Não tinha jeito; era impossível evitar o espelho.
Eu tinha cruzado o “ponto sem volta”. Joguei a minha
mochila para o lado e me aproximei de um médico, que
estava generosamente prestando serviço ali durante as
suas férias no hospital em que trabalhava, e me ofereci
para ser o seu assistente. Ele sorriu e pediu para que
eu lhe passasse mais gaze e algodão. Uma energia
incomensurável pulsou em minhas entranhas e toda a
repulsa se modificou por uma enorme vontade de fazer
o que tivesse que ser feito. Naquele instante comecei a
entender um pouco mais sobre o amor.

Foi um dia intenso, o primeiro da semana


que eu passaria ali. À noite, após um jantar frugal e
um banho em condições precárias, encontrei o Velho
sentado sozinho e quieto em um banco de madeira
a céu aberto. Sentei-me do seu lado e apenas falei
obrigado. Ele sorriu e ficamos calados por algum
tempo. Quebrei o silêncio para comentar que seria
preciso providenciar muitas coisas para que aquelas
pessoas saíssem das margens da vida e pudessem se
reintegrar ao mundo. O monge balançou a cabeça
em concordância e acrescentou: “Sim, precisam de
condições materiais para atingirem uma condição
básica de existência, mas precisam também de afeto.
Elas não podem desacreditar no amor, na sua força e
poder transformador. Tampouco, nós. Pois, nem sempre
teremos dinheiro suficiente para suprir as necessidades
alheias, mas quando nos negamos a oferecer carinho e
atenção, revelamos toda a miséria em que vivemos.”

Comentei que enquanto eu auxiliava no


serviço, tive uma sensação de leveza em relação aos

377
meus problemas pessoais, por perceber o quanto eles
eram de simples superação; tinha me dado conta de
como eram risíveis as minhas paixões. Acrescentei
que a vida podia ser diferente e um mundo um bom
lugar. O Velho sorriu e disse: “Somos a luz do mundo.
Se dentro mim está escuro, encontrarei um mundo
sombrio para viver. Do contrário, se existe luz em
mim, viverei em um mundo claro e colorido, apesar
de todas as dificuldades e problemas inerentes à vida.
Se há luz em mim, tenho também o poder de iluminar
a vida de quem estiver por perto. Quanto mais alto
eu vibrar a minha luz, mais longe será o seu alcance.
As trevas somente persistirão enquanto eu me negar a
acender a minha própria luz. Quando ilumino a mim,
ilumino o mundo.”

Comentei que agora concordava que aquele


ciclo de estudos prometia grandes avanços. O Velho
expôs as suas razões: “Olhar as fotos de um lugar
será sempre diferente de morar nele; ouvir falar de
uma pessoa nunca será igual a conviver com ela.
Assim é com as virtudes, precisamos experimentar
cada uma delas para conhecê-las de verdade. Só então
será possível incorporá-las ao nosso jeito de ser e de
viver.” Fez uma pausa e prosseguiu: “A misericórdia
é uma das mais belas e poderosas virtudes por toda
a sua profundidade. A começar pela origem latina
da própria palavra. Ela é uma das mais lindas do
vocabulário. Trata-se da união de duas outras,
miserere e córdia, que significam aflição e coração.
Ser misericordioso é usar o coração para curar a
aflição de alguém.” Olhou-me nos olhos e concluiu:
“A misericórdia é uma das variantes mais elevadas do

378
amor. Na misericórdia o sagrado se manifesta através
de você.”

O Velho pediu licença e se levantou. Era hora


de dormir. Fiquei ali sentado por mais algum tempo
pensando em todas as lições que couberam naquele
dia. Lembrei que antes de virmos ele tinha dito que
iríamos estudar o seu autor predileto. Eu estava curioso
para saber de quem se tratava. Foi quando me dei conta
que tínhamos falado da luz do mundo e do valor da
virtude da misericórdia, a quinta bem-aventurança,
trechos do Sermão da Montanha. Sorri sozinho.
Não foi difícil descobrir o seu nome. Justamente aquele
que não escreveu uma única linha, mas viveu o amor
de acordo com a sua palavra.

379
UMA SOFISTICADA VIRTUDE REPLETA
DE OUTRAS VIRTUDES

T
Uma das coisas mais agradáveis para mim
era percorrer as ruas estreitas e sinuosas da pequena
cidade que fica no sopé da montanha que abriga o
mosteiro. Melhor ainda é no início da manhã, quando
o calçamento de pedras está molhado pelo orvalho da
noite. Naquele dia, eu seguia na esperança de encontrar
aberta a oficina de Loureiro, o sapateiro amante dos
livros e dos vinhos. A oficina era lendária na região.
Seja pela mestria de Loureiro em costurar o couro e as
ideias, seja pelos horários inusitados e imprevisíveis
de funcionamento, cujo critério era simplesmente a
vontade do sapateiro. Quando dobrei a esquina e não
avistei a sua clássica bicicleta encostada no poste em
frente, já sabia que encontraria a oficina com as portas
cerradas. Passei em uma banca de revistas próxima e
o jornaleiro disse que o meu amigo tinha trabalhado a
noite toda, acabara de pegar um jornal e seguira para
uma padaria perto dali. Alegrei-me com a possibilidade
de uma boa prosa, logo pela manhã, acompanhada de
café quente e pão fresco. Loureiro estava sentado em
uma mesa ao fundo e abriu um belo sorriso quando me
viu. Devidamente acomodado à mesa, com uma xícara
fumegante e uma fatia de pão com o bom queijo da região
derretido por cima, perguntei o que ele lia no jornal.
O artesão respondeu que era sobre a polêmica em torno
da aposentadoria diferenciada para algumas categorias

380
profissionais. Enquanto uma parte das pessoas
sofriam grandes perdas financeiras ao se aposentar,
outras mantinham seus vencimentos integrais, em
nada sendo afetadas. Havia um grande movimento
para que estas fossem equiparadas àquelas. Ou seja,
todos sofreriam igualmente as perdas. Eu falei que
os protestos me pareciam justos. Loureiro me olhou
por instantes, bebeu um gole de café e ponderou:
“Será que o raciocínio não poderia ser invertido?
Ao invés da luta para que todos tenham os seus ganhos
rebaixados não seria mais sensato que a reivindicação
fosse no sentido do fim das perdas, usando aquelas
aposentadorias, então privilegiadas, como meta a ser
proporcionada a todos?” Após alguns segundos de
silêncio, admiti, um pouco sem jeito, que o sapateiro
tinha razão. Isto faria com que a luta fosse por ganhos
e não por perdas; fosse pela construção, não pela
destruição. O sapateiro concluiu: “Assim passamos a
lutar pela esperança e não movidos pelo ódio.”

Tornei a concordar com o meu bom amigo,


entretanto, ponderei que isso não retirava a caráter
justo das manifestações. Loureiro voltou a me
propor um novo olhar: “Essa é a questão que tem
me chamado atenção e me parece estar além do
problema das aposentadorias.” Perguntei do que ele
falava, pois não tinha entendido. O artesão explicou:
“A justiça é uma virtude de aparência simples, tanto que
dificilmente encontraremos uma pessoa que se declare
injusta. Pensamos saber o que é justo. Acreditamos
que a justiça é uma virtude natural, que nasce com
as pessoas; que com facilidade saberemos entregar a
cada um o que for do seu merecimento.” Interrompi

381
para dizer que eu sempre tivera aquela sensação.
O artesão começou a explanar o seu raciocínio:
“Em verdade, não é bem assim. A justiça é uma virtude
complexa e, como tal, precisa de outras virtudes que a
complementem. Por isto, precisa de aperfeiçoamento
interno tanto em seu entendimento quanto em sua
aplicação.” Bebeu um gole de café e prosseguiu:
“Entretanto, seja por causa do instinto movido por
condicionamentos ancestrais, seja pelas sombras do
egoísmo e do medo, costumamos, em primeiro plano,
preservar a nossa sobrevivência. Resguardamos tudo
aquilo que denominamos ‘meus direitos’ e, somente
depois, nos permitimos olhar para os lados. Este é
o cerne do problema relacionado à justiça. Todas as
vezes que vejo alguém encher a boca para falar dos
seus direitos, a primeira pergunta que me ocorre é o
quanto de egoísmo pode estar contaminando aquelas
palavras. Não raro somos injustos por não entendermos
a profundidade da justiça. Daí ser uma virtude cujo
alcance requer esforço e mergulho em sua essência.”

Argumentei que por isso existiam as


faculdades de direito, algumas muito famosas pela
formação acadêmica para a vida profissional dos
seus alunos. Loureiro tornou a ponderar: “Não falo
apenas do conhecimento jurídico. As leis são
ferramentas importantes de equilíbrio social e
necessárias enquanto a maior parte das pessoas precisar
de controle quanto aos seus impulsos primitivos.”
Falei que ele exagerava falando naquele tom.
O sapateiro balançou a cabeça em negação e disse:
“Não. Enquanto for preciso leis para nos dizer o que
podemos ou não fazer, tribunais para nos aplicar

382
punições e presídios para segregar pessoas, estaremos,
como corpo social, ainda distantes de entender a
virtude da justiça. Não me refiro aos códigos legais, que
apenas são a perfeita fotografia da realidade cultural de
uma sociedade. As leis avançam na exata medida da
evolução dos indivíduos que estão a elas submetidos.
De quanto mais leis precisarmos, mais selvagem é o
estágio que nos encontramos; mostram como ainda
são injustas as nossas relações cotidianas e como
precisamos de balizamento externo. A necessidade
das normas legais se torna incontestável nos dias
atuais na exata régua da nossa infância espiritual.”

Franziu as sobrancelhas e disse com seriedade:


“Quanto mais violento for um animal, mais grossas
serão as barras da jaula que o detém.” Bebeu mais um
gole de café e disse: “Precisamos aprender a viver sem
jaulas ou coleiras. Precisamos entender mais sobre a
justiça.” Fez uma pausa e explicou: “Quando me refiro
a justiça como virtude, falo das nossas relações diárias
com o mundo, das posturas que temos no dia a dia,
de como ela, a justiça, se faz presente nas situações
banais do cotidiano e, sem perceber, desperdiçamos a
oportunidade de exercê-la.”

Argumentei que o tom do seu discurso era


por demais melodramático. Ele arqueou os lábios em
leve sorriso e falou: “Afastar a ilusão é o primeiro
passo para começarmos a lidar com a verdade.
E a verdade tem uma ligação de absoluta simbiose
com a justiça. Esta não existe sem aquela. Somente
ao trabalhar com a verdade será possível aceitar quem
ainda não somos, entender as nossas dificuldades,

383
afastar o egoísmo que nos faz pensar como pessoas
especiais ou superiores. Se faz imprescindível
incorporar o conceito de que qualquer direito que
seja exclusivo se torna imprestável por injusto; que
todo tipo de elite é fruto de um atavismo alicerçado
na dominação dos demais segmentos da sociedade.
Entretanto, é muito difícil enfrentar a verdade, pois,
não raro, ela nos mostra que os injustos somos nós.”
Tornei a interromper para dizer que não é difícil
entender a realidade do mundo e as suas várias
relações injustas. O sapateiro contrapôs: “Sim, é
fácil apontar várias injustiças mundo afora. E quanto
aos nossos pequenos egoísmos de todos os dias, as
nossas escolhas vingativas alimentadas por mágoas
pretéritas que escondemos sob as fantasias da
justiça? Falo da dificuldade quanto à verdade
interna, aquela possível apenas quando a alma está
diante do espelho. É indispensável sinceridade
para consigo mesmo para, somente então, haver
honestidade para com o mundo.”

“Sinceridade, honestidade, responsabilidade,


prudência, paciência, tolerância, firmeza e temperança
são as virtudes que dão suporte e compõem a justiça
como virtude.” Calou por instantes e complementou:
“Além do amor, é claro. O amor é a virtude das virtudes
por estar presente em todas as demais virtudes. Se o
egoísmo é o veneno da justiça, o amor é o perfeito
antídoto. Shakespeare disse que ‘justiça sem amor não
é justiça, é vingança’. A diferença está no fato de que
a vingança apenas visa a punição; ela está empenhada
em devolver ao outro um sofrimento semelhante ou
pior do aquele que foi infligido. Por sua vez, a justiça

384
terá sempre no bojo de sua pena a finalidade maior: a
educação do indivíduo. Enquanto a vingança apenas
deseja punir; a justiça tem a preocupação em resgatar.
Para tanto, é preciso amor. Devemos sempre pensar
nisto ao fazer as escolhas ou ao proferir opiniões, pois
definem o casamento com as sombras da vingança ou
a condução à luz da justiça.”

Pedi para que Loureiro explanasse um


pouco sobre as tais virtudes que integram a justiça
e me sinalizasse uma prática notoriamente injusta.
Ele franziu as sobrancelhas e não se fez de rogado:
“Um bom indicativo de uma relação injusta são os
privilégios. Onde há privilégio, de qualquer tipo ou
espécie, inexistirá justiça. Os privilégios são vícios
ancestrais firmados na ilusão de pretensa superio-
ridade pessoal e estão tão arraigados culturalmente
que, muitas vezes, nem percebemos a sua existência.
Mas não se preocupe tanto com os privilégios
alheios; se dedique em abdicar daqueles que você
exerce. É uma maneira pacífica de evoluir e mudar
o mundo. Os privilégios são traças que corroem o
tecido social. O melhor remédio é a sinceridade.”

“A sinceridade é a virtude ligada à verdade


em relação a si mesmo. É muito comum os enganos
do ego pelo medo de enfrentar os contornos da alma;
pela negação da própria essência. Termina por adiar a
batalha ao não entender a montagem da armadilha cuja
presa é a própria plenitude. Portanto, a sinceridade é
uma virtude íntima da humildade. A sinceridade é o
compromisso com a verdade que o indivíduo assume
consigo. A sinceridade não permite a criação de

385
personagens sociais; não negocia com a ilusão; ilumina
as escolhas ao mostrar quais os sentimentos que as
movimentam. A sinceridade é como uma bússola na
estrada do autoconhecimento. É a virtude daqueles
que amam a verdade. Por tudo isto, é primordial aos
justos. Somente então, após sedimentar a sinceridade
em si, será possível ser honesto com o mundo.”

“A honestidade é a virtude ligada à verdade


nas relações com os outros. É a antítese da mentira,
da fraude, da vantagem indevida. Da corrupção dos
valores morais. Aqui quando se diz ‘verdade’ não se
fala da ‘verdade absoluta’, mas em viver de acordo com
os conceitos éticos que já é capaz de compreender,
na medida do seu nível de consciência. Embora
não evite o erro, inerente ao processo evolutivo,
exclui a mentira, denotando um inegável avanço.
A honestidade se traduz na manutenção da boa-fé em
todos os relacionamentos. Ela é aliada da simplicidade
por não admitir artifícios, dissimulações, omissões
ou falta de transparência. Não é não; sim é sim.
Não basta apenas não mentir, mas se comprometer com
os detalhes da verdade. Mais ainda, com a clareza das
intenções para que a honestidade seja integral.”

Quando Loureiro começaria a abordar as


demais virtudes que integram a virtude da justiça,
os seus netos irromperam na padaria em correria
para os braços do avô; uma típica manifestação de
amor e alegria pelo encontro. O sapateiro, com um
largo sorriso no rosto, me olhou como quem diz que
a nossa conversa teria o devido desdobramento em
outro dia. Balancei a cabeça e sorri de volta como

386
maneira de responder que eu concordava com ele.
Em seguida entraram a filha e o genro do sapateiro.
Todos se acomodaram à mesa e a conversa passeou por
vários assuntos. Até que um dos garotos decidiu
fazer queixa da mãe ao avô. Contou-lhe que a mãe
prometera uma caixa de bombons caso acertasse
todas as questões na prova de matemática. “E você
acertou?”, quis saber o Loureiro. O menino confessou
que acertara apenas a metade delas. Entretanto, a mãe
se negava a lhe dar a metade dos bombons a que tinha
direito. A filha do sapateiro interveio dizendo que o
filho que o trato não era aquele. O garoto se mostrou
chateado com o que entendia como uma quebra do
acordo. Declarou-se injustiçado. A mãe falou que o
filho desvirtuava o combinado. O avô disse que não
tinha poderes para intervir e que, de uma próxima
vez, ambos tivessem mais clareza quanto às suas
intenções: “O que se cala pode dizer mais do que
aquilo que se fala.” Mas propôs a pacificação dos
ânimos. Contou que naquela padaria tinha uma bebida
deliciosa, “talvez a mais gostosa do mundo”, feita
com leite quente repleta de pedaços de chocolates que
desmanchavam na boca. Proposta aceita, o mal-estar
restou desfeito. Loureiro me olhou, piscou um olho e
murmurou: “Entende agora?” Eu sorri em resposta.
Se o amor é a ponte de todas as relações, a justiça são
os alicerces que a sustentam.

387
SEMPRE TENHO TUDO O QUE PRECISO

T
Lá estava eu de volta à pequenina vila chinesa
próxima ao Himalaia. A viagem, além de cansativa
pelas muitas horas de voos, conexões necessárias
e o trecho feito de ônibus pela precária estrada que
serpenteava a montanha, me trouxera o inconveniente
de ter a mala extraviada pela companhia aérea.
As minhas reclamações no aeroporto se mostraram
inúteis e a empresa não garantiu a entrega da bagagem,
na ventura de aparecer, em local tão distante e de difícil
acesso. Sobrou-me a mochila com os documentos e
algumas poucas peças de roupa que levara para trocar
durante o longo percurso. Assim que cheguei tentei
descansar um pouco na única hospedaria do lugar.
Em vão. A irritação e a revolta faziam a cabeça girar
pela força de muitas ideias e sentimentos que pareciam
ter a necessidade de transbordar de dentro de mim.
O dia ainda não tinha raiado quando levantei e me
dirigi à agradável casa de Li Tzu, o mestre taoista,
onde ele recebia alunos de todas as partes do mundo
em busca dos ensinamentos das milenares lições
contidas no Tao Te Ching. Ao cruzar o portão da
casa, sempre aberto, senti uma agradável sensação.
Um perfume que eu não soube identificar se vinha
do enorme jasmineiro que envolvia o belo jardim de
bonsais ou dos muitos incensos espalhados pela casa,
preenchiam o silêncio e a quietude do local. Algumas
lanternas de iluminação tênue indicavam o estreito

388
e sinuoso caminho até a varanda. Li Tzu terminara
uma solitária sessão de yoga e se mostrou feliz em me
ver. Sempre delicado, ele me convidou para um chá.
Quando entrei na copa, Meia-noite, o gato negro que
morava na casa, eriçou o pelo e saiu em disparada ao
me ver. Sem graça, comentei que o dócil animal não
deveria ter me reconhecido depois de tanto tempo.
O mestre taoista não me deixou enganar: “Os gatos são
muito sensíveis às energias. A violência o assustou.”
Rebati dizendo que eu era um sujeito pacífico,
incapaz de agredir alguém. Li Tzu explicou com o
tom entre a doçura e a firmeza que lhe era peculiar:
“Todos sabem da sua índole de paz, Yoskhaz.
No entanto, você não está bem. A violência não se
expande apenas na grosseria das palavras ou na
agressividade das atitudes. Lembre-se que somos um
centro gerador de energia. As vibrações primordiais
surgem através das nossas ideias e emoções, invisíveis
aos olhos, mas nem por isto não percebidas e menos
importantes. Pois têm a força de desalinhar o indivíduo
e, algumas vezes, desagregar o ambiente. Ou pior, se
tornarem a semente de escolhas equivocadas por se
distanciarem do amor que deve nos guiar.” Fez uma
pausa e concluiu: “Devemos nos vigiar o tempo todo.”

Enquanto ele colocava as ervas em infusão,


contei todo o acontecido e a minha desventura de ficar
sem a mala. Lamentei a falta do barbeador elétrico, a
perda de algumas camisas entre as minhas prediletas,
do canivete suíço, herança do meu avô, além de outros
pertences. Li Tzu ouviu a narrativa com paciência e,
ao final, comentou: “O Tao ensina que ‘sempre tenho
tudo o que preciso.’” Colocou as xícaras sobre a mesa

389
e disse: “Ao incorporar esse conceito nos tornamos
invencíveis diante dos contratempos típicos da
existência.” Olhou-me como quem conta um segredo
e falou: “Embora traga algum desconforto inicial,
não se preocupe tanto com a mala perdida. Procure
se concentrar para manter em ordem a bagagem
interna. Esta, sim, deve estar sempre arrumada
para disponibilizar as ferramentas necessárias para
a superação dos problemas inevitáveis à vida.”
Perguntei que ferramentas eram essas a que ele se
referia. O mestre taoista explicou: “As virtudes.
Elas são o escudo que protege e as asas que libertam.”
Eu quis saber do que as virtudes me libertariam.
Ele esclareceu: “Do sofrimento. O sofrimento é uma
violência desnecessária que nos permitimos por
desconhecer toda a força e poder que temos.”

Pedi-lhe que tivesse empatia por mim e se


colocasse no meu lugar. Acrescentei que qualquer
pessoa estaria chateada na minha situação. Li Tzu
disse que era exatamente por se colocar no meu lugar
que ele falava aquilo, e fez uma ressalva: “Se colocar
na sua posição não significa pensar igual a você
ou manter o discurso que alimentará a sua revolta.
Justamente por estar em seu lugar lhe ofereço um
outro olhar, o meu olhar. Eu aceno com a possibilidade
de pacificação do ser apesar dos conflitos do mundo.”
Questionei como seria isso. Ele respondeu: “O Tao
nos ensina a aprender com a água.”

Falei que ele complicava. Li Tzu sorriu e


disse: “A água nos ensina a virtude da adaptabilidade.
A adaptabilidade é a mãe do equilíbrio e filha da

390
harmonia, outras duas valiosas virtudes. Todas as
vezes que o mundo te desequilibra, a busca para
se adaptar ao novo momento te leva a alguma
transformação no ser e no viver. Isto é evolução.
Reunidas, as virtudes te levam ao céu.”

Pedi para ele explicar melhor. O mestre taoista


se manteve paciente: “A água desce a montanha e ao
encontrar o lago se adapta às suas bordas. Ao surgir
um vão, desce como um riacho até desaguar em um
rio maior. Ao se deparar com uma pedra, a contorna.
Ao ser acondicionada a uma caixa, toma-lhe a forma
até o uso. Quando exposta ao calor, se transforma
em nuvem para se espalhar em gotas longe dali.
Invariavelmente chegará ao mar, o destino a partir do
qual voltará como chuva, que ao cair na montanha, dará
início a um novo ciclo de renovação. A água limpa,
purifica, renova a vida de onde passa e segue. A água
precisa estar em movimento, pois estagnada, apodrece
e gera doenças.” Fez uma pausa e disse: “O indivíduo
que vive a lamentar é como água parada.”

Discordei. Argumentei que o conformismo


era uma praga da humanidade e impedia o seu avanço.
Li Tzu concordou comigo: “Sim, mas o conformismo
não tem o mesmo significado da adaptabilidade.
A diferença entre estes conceitos reside justamente
em saber se a água está parada ou em movimento.
Mover-se não quer dizer fazer barulho ou se tornar
violento. Quando a água faz isto, destrói. Ela ficou sob
intensa pressão com a qual não soube lidar e acabou
por transbordar os seus próprios limites.” Encheu as
xícaras com chá e disse: “Quando simplesmente nos

391
acomodamos a uma situação desconfortável, somos
como uma represa que vai, aos poucos, esgotando
o seu limite até estourar e destruir tudo ao redor.
É quando deixamos que sentimentos ruins alimentem
atitudes violentas ou somatizem doenças. Para que
isto não aconteça, se faz necessário a adaptação à
nova situação como maneira de se permitir o olhar
que ela oferece; a possibilidade de um jeito diferente
de pensar e uma maneira melhor de seguir adiante.
A força da vida está nas águas mansas que descem
o rio abastecendo as suas margens ao mesmo tempo
em que se nutrem com tudo que as margens lhe
proporcionam. Caso contrário, quando reprimidas, as
águas acabam por explodir, destruindo violentamente
tudo por onde passam. Flexibilidade, resiliência são
características da adaptabilidade por permitirem a
indispensável mobilidade. A vida exige movimento;
quando nos negamos, a estagnação nos faz explodir
em fúria ou em dor”

Lembrei que a destruição das velhas formas


era uma inexorável e indispensável lei esotérica. Li Tzu
voltou a concordar: “Sim, a destruição e o caos muitas
vezes se mostram necessários para abrir espaço para o
que vem. Mas apenas é preciso que se destrua quando
não somos capazes de renovar. A diferença entre uma
coisa e outra se traduz em uma estrada de guerra ou paz;
em dias de sofrimento ou harmonia.” Argumentei que
o conflito muitas vezes era um instrumento necessário
a alavancar a evolução. O mestre taoista balançou a
cabeça: “É verdade, porém o conflito somente se faz
essencial quando negamos a aprender a lição cabível,
a ser e a viver de maneira sábia e amorosa. A água

392
somente destrói quando represada inadequadamente.
Os sentimentos apenas transbordam em violência
quando tratados de maneira equivocada”.

“Malas extraviarem faz parte da rotina do


mundo moderno. Embora não seja desejável, acontece
todos os dias. Assim como os inúmeros contratempos
inerentes à existência. Trens atrasam, pipocas terminam
antes do filme, romances se esvaem, as pessoas nos dizem
não, o dinheiro fica pouco, as demissões acontecem.
Nem sempre o objeto do seu desejo está disponível
na prateleira do mercado ou da vida. E é ótimo que
seja assim. Do contrário nunca desviaremos o olhar
da paisagem. Continuaríamos eternamente distraídos
com as muitas delícias que existem no planeta sem a
possibilidade de nos encantarmos com as maravilhas
que nos habitam. O Caminho não se percorre fora, mas
dentro do andarilho.”

Bebeu um gole de chá e prosseguiu: “Ao se


conscientizar de que você, assim como todos, tem
absolutamente tudo o que precisa, será envolvido por
uma segura sensação de completude. Nunca mais se
sentirá desamparado. Sempre encontrará uma saída;
sempre restará uma boa lição. Assim, a água seguirá
renovando a vida que encontrar”.

Tornei a discordar. Falei que o discurso era


muito bonito e pouco prático. Havia situações bastantes
desconfortáveis que tornavam o sofrimento inevitável.
Li Tzu ampliou o raciocínio: “As tempestades do
mundo não devem agitar as águas do lago interno.
Uma autoridade pode te prender, mas para tomar a tua

393
liberdade você terá que permitir; uma pessoa pode te
ofender, porém a humilhação somente o atingirá com
a tua devida concessão; podem te roubar o dinheiro,
mas apenas perderá a dignidade se a quiser entregar;
nenhum conflito pode esbulhar a paz, salvo com a tua
autorização. Uma doença, a velhice ou um desastre
podem, no máximo, encerrar esta existência; jamais
por fim à vida. A felicidade não depende do mundo, ela
está em tuas mãos.”

Alguns alunos começaram a chegar para


as práticas do dia. Cumprimentaram Li Tzu e
foram orientados a irem para a sala de meditação.
Despedi-me do mestre taoista e fiquei de voltar no dia
seguinte para iniciar o meu ciclo de estudos. Decidi
fazer uma trilha pela montanha. Por motivo que não
sei explicar, andar me ajuda a pensar quando estou
confuso. Talvez por aliviar a tensão. Aos poucos fui
encaixando as palavras do mestre taoista. O sumiço da
mala, coisa corriqueira nos dias de hoje, por si só, não
trazia nenhuma lição. No entanto, dentro da mala eu
trazia parte dos meus hábitos. Coisas que, a princípio,
eram indispensáveis ao meu bem-estar. O extravio da
mala me forçaria a uma completa quebra de rotina, o
que não se daria apenas com a viagem em si, como eu
de inicio acreditava. A rotina embora seja, por vezes,
entediante, no geral ela é prazerosa por incluir hábitos
que nos agradam. Isto é bom por nos fazer bem.
E ruim quando se torna um vício. Quando pensamos
em vícios nos remetemos, na maioria das vezes, as
drogas lícitas e ilícitas ou coisas afins e obscuras.
Porém, é muito mais profundo. Dei-me conta de que
os vícios são tão sorrateiros que, em alguns casos,

394
não os percebemos. Tudo aquilo que ilude e nos faz crer
de que “não consigo viver sem”, é um vício e, portanto,
nocivo por criar dependência. Tornam-se sutis prisões
sem grades. Entendi que na mala extraviada eu trazia
muitos dos meus vícios. No entanto, percebi algo bem
mais sério. Na minha bagagem interior, a consciência,
também havia muito dos meus vícios disfarçados em
necessidade. Vícios são sombras que, como tais, nos
afastam da luz. A dureza do olhar, a inflexibilidade do
pensar e o automatismo no agir, eram alguns desses
perigosos hábitos. Uma bagagem falava muito sobre a
outra mala. Esta era reflexo daquela.

O que me é indispensável? A resposta foi


sofisticadamente simples: o amor e as demais virtudes,
pois são os instrumentos para a liberdade, a paz, a
dignidade, a felicidade, além do próprio amor, em
eternos ciclos de aperfeiçoamento.

Onde encontrar? Em nenhum outro lugar,


salvo dentro de mim. Logo, tenho sempre tudo o
que preciso.

Agradeci pelo sumiço da mala. Só assim


eu poderia arrumar a bagagem. Parei para observar
a vista do belo vale florido permitida do alto da
montanha, com infinitas montanhas atrás. Ali me
dei conta de toda a força e poder contidos em mim.
Naquele instante tive a certeza de que, se eu soubesse
separar o joio do trigo, trocasse o peso do mundo pela
leveza da alma, nenhum voo me seria impossível.

395
SIGA O SEU CORAÇÃO

T
“Siga o seu coração”, me aconselhou Canção
Estrelada quando me despedi. Eu tinha ido às montanhas
do Arizona para participar de alguns cerimoniais
nativos em um período que, por coincidência, era
de mudança de ciclo em minha vida. A agência de
propaganda na qual eu era sócio tinha sofrido uma
forte cisão com a saída de alguns sócios e precisava
encontrar novos rumos. Ao mesmo tempo se encerrava
o romance de alguns anos com a minha namorada que
cheguei a imaginar não ter fim. Naquele momento eu
precisava me reinventar. “Siga o seu coração”, levei
aquelas palavras comigo, que me enchiam de força,
e tomei uma série de decisões, tanto pessoais quanto
profissionais, que se mostraram equivocadas. Alguns
meses depois, no turbilhão de desencontros que a
minha vida tinha se tornado, aproveitei que teria o
tradicional ritual do equinócio de verão e voltei ao
Arizona. Encontrei Canção Estrelada sentado na
cadeira de balanço da agradável varanda de sua casa.
Ele me recebeu com alegria. Depois de devidamente
acomodado, não demorou muito, confessei ao xamã
que seguir o coração tinha se tornado desastroso, haja
visto o que tinha acontecido comigo. Pior, eu tinha a
nítida sensação de as coisas iriam se agravar ainda
mais. Ele me olhou como a uma criança chorosa,
acendeu o seu indefectível cachimbo com fornilho
de pedra vermelha e, depois de algumas baforadas,

396
disse: “Tem dois aspectos no seu discurso que você
parece não entender. O primeiro é que, algumas vezes,
estamos tão arraigados às velhas formas de viver que
é preciso demolir tudo, até não sobrar pedra sobre
pedra, para que seja possível reconstruir uma nova
realidade baseada em um diferente entendimento
sobre o ser. Não se constrói uma boa casa sustentada
por paredes podres.” Tornou a baforar o cachimbo e
concluiu: “Outro aspecto, e não menos importante,
é quanto a seguir o seu coração. Será sempre um
valioso conselho. No entanto, nem sempre possível
de realizar, pois para seguir o coração é preciso
aprender a ouvi-lo.”

Discordei. Eu achava que dizer para uma


pessoa seguir o próprio coração em um momento
que ela está desorientada, sem saber para que lado
seguir, diante de bifurcações que a vida apresenta, me
parecia covardia ou maldade. Era justamente a hora
de pegá-la pela mão e a conduzir pela escuridão da
estrada. O xamã franziu as sobrancelhas e disse com
seriedade: “Imaginar que sabemos o que é melhor
para os outros é um exercício típico dos tolos, sejam
aqueles que conduzem, sejam aqueles que se deixam
conduzir. Cada qual é o mestre de si mesmo e toda
a sabedoria está adormecida no coração.” Falei que
me espantava ele insistir nessa teoria, que mais me
parecia um discurso fácil daqueles que, na verdade,
não querem ajudar aos outros. Canção Estrelada se
virou para mim, em seus olhos percebi sincera e doce
compaixão, e disse: “Sempre ouvimos as nossas vozes.
Não há nada de complicado nisto. Difícil é saber
identificar de onde cada uma delas vem. Não é apenas

397
o coração que nos fala. As sombras também nos falam,
através de medos, desejos e mágoas das mais diversas
espécies, como o ciúme, a inveja, a vaidade, o orgulho,
a usura, entre várias outras, que nos levam a contruir
raciocínios tortuosos de autojustificação do ego quando
em desalinho com a alma. Existem outras vozes com
as quais dialogamos, como os condicionamentos
culturais, que nos levam a decidir no afã da aprovação
e dos aplausos sociais; preconceitos, quaisquer que
sejam, que de tão arraigados nem nos damos conta que
existem; memórias que gostaríamos de esquecer, mas
que ainda sangram como feridas abertas. Enfim, para
seguir o coração é preciso identificar a sua voz no meio
de uma multidão que grita dentro do ser.”

“O coração é a fagulha do sagrado que nos


habita. Somente lá encontraremos o Grande Mistério
para conversar e conhecer a Sua face. É preciso que
essa centelha se acenda em lanterna para iluminar o
ser e entender a parte que te cabe no todo; conhecer
o todo é conhecer a parte. O coração sempre vai
orientar pelas escolhas que nos conduzam à plenitude
através das cinco curas do espírito: a liberdade, a paz,
a dignidade, o amor e a felicidade. Os remédios para
todos os males do espírito têm como ingredientes
essenciais as virtudes. Se a escolha não for movida por
uma ou mais das nobres virtudes, tenha certeza de que
a voz que a aconselhou não foi a do coração.”

“A humildade, a compaixão, a sinceridade,


a mansidão, a misericórdia, a coragem, a alegria, a
fé, entre várias outras virtudes, são os instrumentos
do Caminho. Além, é claro, do amor, a virtude das

398
virtudes pelo fato de estar presente em todas as demais.
O amor é o remédio e a cura.”

Eu quis saber se ele me ensinaria a ouvir o


coração. Canção Estrelada me alertou: “Posso apenas
mostrar onde está a porta. Atravessá-la depende
de você.” Falei que aceitava a condição. Naquele
mesmo dia, quando entardeceu, fizemos uma trilha
pelas montanhas até que paramos em um platô que
oferecia uma bela vista do vale. Estendemos as
mantas coloridas e o xamã entoou algumas canções
ancestrais ritmadas pelo seu tambor de duas faces.
Em seguida, explicou: “Conversar com o coração é
um rito pessoal, cada um tem o seu; todos são belos
e valiosos. A música me ajuda a encontrar o sagrado
oculto no mundano ao me deixar mais sensível
e perceptivo. Contudo, eu chego ao meu coração
através da prece. A oração, para mim, possibilita
o encontro com a minha própria luz, o divino que
me habita. Somente assim consigo escutá-lo.”

Fechei os olhos e Canção Estrelada entoou


outras canções até que silenciou. Ele se retirou sem
dizer palavra e me deixou a sós comigo mesmo.
Por diversas vezes tive que reiniciar a oração.
Eu seguia bem até um determinado ponto quando
a minha mente era invadida por diversos fatos do
passado que insistiam em desviar os meus pensamentos
da prece. A tarde avançou na noite e adormeci sem
conseguir me concentrar integralmente na oração.
Canção Estrelada retornou ao amanhecer trazendo
algumas frutas para o desjejum. Ao perguntar como
tinha sido a experiência, confessei que não tinha

399
conseguido chegar ao coração através da prece, pois
era interrompido a todo o instante com memórias
desagradáveis, de situações que eu não mais fazia
questão em lembrar. O xamã sorriu satisfeito e disse:
“É assim mesmo. Para chegar ao coração é preciso
estar despido das mentiras que contamos para nós
mesmos; dos personagens que criamos na ilusão de
melhor enfrentar a existência. O coração é o lugar
da verdade; para chegar ao coração é preciso estar
envolto na verdade; a verdade sobre si mesmo.
Se conhecer por inteiro é pressuposto para a viagem
até o coração. Por definição, o coração não é uma rota
de fuga; ao contrário, é a estrada da verdade e da luta
pelo autoconhecimento.”

“Quando somos invadidos por memórias


desagradáveis durante a oração, significa justamente
aquelas situações que o nosso coração entende
que devam ser pacificadas dentro de nós para que
possamos seguir adiante. É parte primordial da
prece. Não rejeite, sufoque ou negue essas memórias.
Ao contrário, as abrace com amor. Entenda as dores
que elas lhe provocam. Os sofrimentos são frutos
de escolhas e entendimentos. Então, vá até as suas
raízes para entender e escolher diferente e melhor da
próxima vez que uma situação parecida se apresentar.
Assim você substituirá a dor do equívoco pelo ânimo
do amor de prosseguir adiante. Perdoe a quem
lhe magoou; cada qual oferece apenas o que tem
disponível no coração naquele momento da existência.
Não podemos exigir flores de um coração encoberto
por pedras. De outro lado, perdoe a si mesmo pelos
mesmos motivos, pelas escolhas equivocadas que

400
fez em determinados momentos da vida. Esta é a
estrada para o coração, este é o tratamento de cura.
Aceite que agimos no exato limite da nossa expansão
de consciência e capacidade de amar. O erro é o mapa
do acerto e o impulso do aperfeiçoamento. Aproveite
para fortalecer o espírito para de uma próxima vez não
tropeçar; assim evoluímos.”

“Entenda que por detrás dos pensamentos há


os sentimentos que os movimentam. É preciso serenar
os sentimentos para educar os pensamentos. Aproveite
a oração para isso. Sentimentos densos fazem com que
naveguemos em águas turvas; precisamos de águas
claras para ver com profundidade, sem a qual não
encontraremos o coração e o sagrado que nele habita.”

Ficamos algum tempo sem dizer palavra


para que eu pudesse concatenar todas aquelas ideias.
Em seguida, ele me convidou para mostrar alguns
belos lugares da montanha. O dia foi ocupado por
passeios e conversas descontraídas. Canção Estrelada
era alegre e bem-humorado, sempre me fazia rir muito.
Ao entardecer retornamos ao platô. Ele pediu para eu
me concentrar em prece e avisou que voltaria no dia
seguinte. Diferente do dia anterior, naquela noite não
refutei os pensamentos, mas os acolhi na medida em que
invadiam a prece, no esforço de pacificar os sentimentos
que os moviam. Primeiro vieram à memória fatos do
meu último namoro. As brigas e os desencontros.
Aos poucos fui entendendo que apesar da admiração
mútua que nutríamos um pelo outro – ela era uma
pessoa encantadora – não nos amávamos. Tínhamos
espectativas e olhares sobre a vida que nos distanciava.

401
Ao forçar a aproximação, cada qual violava a si mesmo
e terminava por responsabilizar o outro. Um erro
infantil, porém, muito comum. Aceitei que o afeto e
a admiração podiam e deviam continuar, entretanto,
não mais enlaçados como um casal. Assim, eu poderia
me sentir verdadeiramente livre para iniciar um novo
relacionamento e teria plenas condições de abençoar
o dela. Uma estranha e agradável sensação de leveza
me invadiu.

Prossegui em minha prece até ser tomado


por recordações referentes à dissolução da sociedade
da agência de publicidade. Éramos quatro sócios; dois
se desligaram para montar outra agência. Claro que
durante o processo de separação surgiram divergências
de vários tipos. Profissionais que faziam parte da equipe
original decidiram quem acompanhariam, clientes
optaram com quem trabalhariam, situações do passado
nas quais existiam ressentimentos, muitos velados,
vieram à tona, entre outras situações e detalhes. Todo
corte sangra; aprender a maneira de cicatrizá-los é a
arte do coração. Até que um dia sejamos capazes de
entender que, na verdade, não existem cortes; apenas
a liberdade. Sua e de todos. Isto é digno, é amor;
constrói a paz e a felicidade. A agradável sensação de
leveza voltou a tomar conta de mim; desta vez já não a
considerei estranha.

Ao contrário do que se possa imaginar, essa


oração não durou minutos, mas se estendeu por toda
a noite. Quando me dei conta, o céu já tinha aquela
cor, entre o rosa e o laranja, típica do amanhecer.
Apesar de ter passado a noite acordado, eu não me

402
sentia cansado ou com sono. Uma alegre vibração me
mantinha animado, em um estado entre a alegria e a
serenidade. Eu tive a certeza de ter conversado com
o meu coração. O sagrado que nele habita tinha se
manifestado em verdades que passariam a clarear as
minhas escolhas.

Assim que Canção Estreladas me viu, sorriu.


Sem que nada precisasse dizer, ele sabia que eu tinha
tido um importante encontro, o mais importante
da minha vida. O xamã sabia também que era a
primeira das muitas conversas que eu teria com o
meu coração e como isto mudaria a minha vida dali
por diante. Sorri de volta em gratidão. Agradeci pela
lição. Canção Estrelada sacudiu a cabeça e corrigiu:
“Não há o que agradecer. Eu apenas disse: ‘ali tem
uma porta’. Atravessá-la foi escolha sua. Seu esforço,
seu mérito.”

Falei que agora entendia que até aquele


dia eu não soubera usar os meus olhos para ver a
verdade. Aprendi que para encontrar a verdade era
preciso conversar com o meu coração. Para tanto, era
primordial fechar os olhos. Era essencial olhar para
dentro de mim para me conhecer. Esta é a senha que
abre as portas dos corações. Canção Estrelada sorriu
mais uma vez, pegou o seu tambor de duas faces e
ritmou uma sentida melodia de comunhão com o
Grande Mistério, o coração do universo, origem e
destino de todos os corações. Mais um filho tinha
aprendido a importância e a maneira de conversar
com o próprio coração.

403
O QUEBRA-CABEÇA

T
Esperei que Loureiro, o sapateiro amante
dos livros e dos vinhos, fechasse as portas da oficina.
Embora ainda fossem meio-dia, o seu expediente de
trabalho, que se iniciou de madrugada, já se encerrara
naquele dia. Os horários inusitados de funcionamento
da oficina eram lendários na pequena e charmosa
cidade que fica ao sopé da montanha que abriga o
mosteiro. Seguimos pelas ruas estreitas e sinuosas, com
calçamento de pedras, na direção de um restaurante
que adorávamos, para almoçar e trocar uma conversa
vadia, como dois bons amigos que se alegram pelo
simples encontro. Ao cruzarmos a praça onde se
localiza o restaurante, vimos uma das sobrinhas do
sapateiro sentada em um banco com a face banhada
em lágrimas. Abordada, a moça disse que estava muito
triste; ela acreditava que o seu casamento tivesse
perto do fim, pois a convivência estava muito difícil.
Confessou que não desejava isso. Embora morando
na mesma casa, estavam mais distantes um do outro
a cada dia. Loureiro a chamou para almoçar conosco
e conversar um pouco. Disse que falar, nessas horas,
pode ajudar, já que ao ouvir as razões que sustentam
os lamentos, os sentimentos acabam por se tornar
mais claros. Convite aceito, logo nos acomodamos em
uma mesa confortável, longe do burburinho da rua.
Assim que nossas taças foram cheias com um bom
tinto da região, a jovem iniciou uma fileira de queixas

404
em relação ao marido. Desde a sua desatenção em
relação à vida afetiva do casal até o pouco empenho
que tinha na empresa onde trabalhava. Ouvimos tudo
com atenção e paciência, sem interromper a moça.
Ao final, tive uma rápida troca de olhares com
Loureiro. Foi suficiente para, em razão da nossa antiga
amizade, eu saber o que ele pensava. O sapateiro olhou
para a sobrinha e sugeriu: “Acho que você esqueceu
de falar algo.” A jovem disse que não sabia sobre o
que o tio se referia. Ele foi claro: “Esqueceu de nos
contar sobre as qualidades do seu marido. Senão o
casamento não teria durado tanto tempo nem você
estaria sofrendo pela possibilidade do término da
relação.” Ela ficou um pouco sem jeito, mas admitiu
muitas das virtudes do marido. Falou sobre as mais
relevantes e que mais admirava. Embora continuasse
triste e preocupada, o seu ânimo deu uma leve
melhorada. Em seguida, Loureiro comentou: “Todas
as pessoas devem buscar a maturidade no decorrer
da existência.” A jovem falou que, de fato, achava o
marido, às vezes, muito infantil. O sapateiro corrigiu:
“Não falo dele, até porque não seria educado em sua
ausência. Refiro-me a você.” Ela rebateu de pronto
dizendo que não era uma criança. O sapateiro balançou
a cabeça para dizer que concordava e explicou melhor:
“Ser maduro não acontece pelo mero fato de viramos
adultos, de atingirmos a maioridade cronológica.
Atinge-se a maturidade com a maioridade espiritual.
Para isto não há idade definida. A maturidade se
expressa através do ser inteiro. Aquele que está na
busca incessante pela própria essência, quem conhece
e aceita todas as suas características, boas e ruins,
sem se esquivar da eterna batalha do aperfeiçoamento

405
pessoal. Não deseja mais viver um personagem, mas
formar a própria personalidade. Que segue em busca
de si mesmo e de toda luz que nele existe. Apenas
este encontro poderá proporcionar a harmonia e
o equilíbrio necessários a todas as relações; seja
consigo mesmo, seja para com o mundo.”

“Há outros ganhos. Somente ao se sentir


inteira uma pessoa poderá desenvolver todas as suas
potencialidades. Poderá conhecer e usufruir cada
uma das nobres virtudes. O ponto de partida reside
em suas próprias dificuldades. Reconhecê-las, de
imediato, nos torna mais generosos com o mundo.
Lá, no entendimento das dificuldades, estão as
sementes da humildade e da compaixão, virtudes
básicas para o importante encontro consigo mesmo,
para o florescimento das demais virtudes e o
entendimento da vida. Enfim, é preciso se conhecer
para ser capaz de apreciar o mundo. Sem se conhecer
é impossível entender os outros e se encantar com
a beleza que cada um traz consigo. Sem conhecimento
sobre si mesmo os benefícios contidos nas relações se
perdem pelos ralos da existência.”

“O indivíduo que não se conhece resta


fragmentado, como um quebra-cabeça desmontado.
Tem a sensação de que nada se encaixa, de que faltam
ou sobram peças. Então, as partes, quando isoladas e
perdidas, anseiam pela unidade, apenas possível pela
compreensão do todo. Você é o todo; o todo está em
você, a espera de ser montado. Apenas na montagem
das partes poderemos refletir a totalidade de quem
somos. O encantamento da vida é juntar cada um dos

406
pedaços do ser na perfeita obra de arte que nos espera
quando da junção de todas as nossas partes.”

“A pessoa fragmentada, que vive no


automatismo de um dos muitos papéis sociais, sem
entender quem realmente é, sem uma personalidade
já construída, tende a enxergar no outro os defeitos
que, consciente ou inconscientemente, sabe existir
nela mesma, mas que não quer enfrentar. Embora
não admita, isto a incomoda de maneira profunda.
Então, reclama do outro como maneira de esconder
as próprias dificuldades. Acaba por não apreciar tudo
que existe de bom em razão da necessidade de ressaltar
o que há de ruim. A fuga de si mesmo se torna muito
dolorosa, pois cria o vício de se manter através dos
defeitos alheios, assim como na literatura os vampiros
anseiam por sangue para sobreviverem”

A sobrinha disse que o tio exagerava.


Argumentou que, no caso dela, tinha sido muito
difícil de conviver com pessoas egoístas, como o
marido, que pensava apenas nele mesmo. Intrometi-me
na conversa. Falei que devíamos nos concentrar em
aperfeiçoar as próprias atitudes ao invés de insistir
na procura pelos defeitos alheios. A jovem insistiu
que era muito complicada a relação com o marido.
Lembrei-lhe que ela sempre poderia conversar com
ele, expor as suas ideias de maneira clara e serena.
Todavia, não tinha o direito de exigir mudanças no
comportamento dele. Isto, os tolos fazem. Ela poderia
ficar ou partir, porém a única pessoa na qual ela
poderia efetuar transformações era nela mesma, não

407
no outro. Ela deveria prestar mais atenção em suas
ideias, sentimentos e escolhas.

A jovem considerou uma contradição o


que eu acabara de falar. Sustentou que nada mais
egoísta do que uma pessoa que gira em torno de si.
Expliquei que havia uma diferença fundamental entre
girar em torno de si mesmo e se movimentar a partir
do próprio eixo. Claro que alguém se considerar o
umbigo do universo é um caso clássico de egoísmo.
Ser inteiro é diferente, é mover-se a partir da própria
essência, fonte de toda a luz, em ondas concêntricas,
propagando o bem até os confins do universo. Para
tanto, é indispensável acender essa luz que aguarda o
ser em sua profundeza. A imaturidade é justamente o
contrário. Ao esperar que o universo se mova a fim de
se adequar aos seus menores desejos, de lhe entregar
em domicílio as suas maiores vontades, de fazê-lo feliz
por milagre, a pessoa se afasta de si mesmo e de todo
poder que tem. É melhor desistir de esperar, pois não
vai acontecer. Trata-se de uma relação ainda infantil
com a vida. Assim, exigimos dos outros tudo aquilo
que nos cabe buscar. Por pesado, os relacionamentos se
tornam insustentáveis. Como acreditamos, por vício
de pensamento, que a culpa pela nossa insatisfação
está sempre fora da gente, além dos domínios do ser,
nos declaramos decepcionados com os outros. Em
realidade, um sofrimento inútil, fruto da ignorância
sobre quem se é e da fuga em lidar consigo mesmo.

Loureiro voltou a conversa ao seu jeito


desconcertante: “Somente as pessoas imaturas ficam
decepcionadas.”

408
Diante do espanto da sobrinha, o sapateiro
ampliou o raciocínio: “O outro é o outro, do jeito dele,
com suas dores e delícias, no limite da sua consciência
e na fronteira do seu coração. Você pode e deve impor
limites; nunca mudanças. Cuide de transformar a
si mesmo como alavanca evolutiva. Ajude sempre
que alguém pedir; mas nunca se torne um credor.
Isto é dominação; antítese da liberdade e do amor.
Em verdade, enquanto ainda indivíduos partidos,
nos decepcionamos quando alguém faz escolhas que
nos desagradam. Ou seja, no fundo, responsabilizamos
os outros pela nossa infelicidade. A felicidade, ao lado
do amor, da liberdade, da paz e da dignidade, forma
os cinco estados de cura denominados plenitude. Ora, a
responsabilidade pela conquista da plenitude é sua, é
minha, é de cada um de nós, pelo simples fato de não
a encontrá-la em nenhum outro lugar, salvo dentro
do próprio ser. Depender de alguém para amar, ser
livre, digno, feliz ou viver em paz revela uma pessoa
fragmentada, um indivíduo imaturo, que ainda não
sabe quem é.”

“Portanto, faça o caminho de volta a partir


da dor que incomoda: busque a sua essência, os
sentimentos e as sombras que a nutrem; conheça a si
mesmo, amadureça no exercício das virtudes, elas são
os instrumentos da vida. Assuma a responsabilidade
pela conquista da plenitude e por tudo que acontece
na sua vida. Seja inteiro. Não tenha dúvida, dentro de
ti há tudo o que você precisa. Aprenda, se transforme,
compartilhe o seu melhor e siga adiante. Encante-se
com a maturidade, com ela vêm o escudo e as asas!”

409
Resolvi colorir um pouco mais o assunto
e disse que para atingir a maturidade e, por
consequência, os cinco estados que compõem a
plenitude, temos à disposição as maravilhosas
ferramentas das virtudes. Não devemos fazer de
ninguém alvo de nossas insatisfações. Isto atrasa a
jornada. Quando as críticas, assim como os elogios,
recaírem sobre você, tenha a consciência que nem
sempre aquelas são justas ou estes são sinceros. Isto
afasta a maldade, a bajulação interesseira, a falsidade,
a mentira, a vitimização, o orgulho, a vaidade,
além de outras sombras. Para tanto é necessário ter
humildade para entender as próprias dificuldades,
pois sempre é possível fazer diferente e melhor;
compaixão para compreender as dificuldades alheias
e descartar os desajustes escondidos nas ofensas que
nos lançam; sinceridade no relacionamento consigo;
honestidade no trato com os outros. Misericórdia
para perdoar sempre, doçura para abraçar o mundo
com carinho; firmeza com os seus propósitos; além
de amor, é claro, sem o qual não se chega a lugar
nenhum. Independente de qual seja a opinião das ruas
sobre a sua pessoa, o ser inteiro se movimenta através
da verdade contida na sua essência; não depende da
autorização de ninguém para amar, ser livre, feliz,
digno e viver em paz.”

Tornei a me meter na conversa. Falei que uma


pessoa madura é aquela que vive os seus sonhos e exerce
os seus dons, sejam quais forem. Em contrapartida
respeita os sonhos e os dons alheios. Cada qual é
único e nisto reside a beleza de todos; afinal, não há
duas histórias iguais. Sabendo disto, a pessoa madura

410
se despe do personagem que os condicionamentos
sociais impõem para ser ela mesma, viver a vida
do seu jeito, escrever a própria história, trilhar um
caminho que ninguém pode percorrer por ela. O ser
inteiro trata com sacralidade as suas escolhas. Ele sabe
que as escolhas são as ferramentas que transformam a
vida, é a única maneira de manifestar a sua verdade.
Isto o aproxima do sagrado. Somente através das
escolhas conseguimos evoluir. Permitir que outros
interfiram em nossas escolhas é a maior falta de respeito
que podemos ter para conosco. Da mesma forma,
a recíproca se aplica em relação às escolhas alheias.
É uma questão de puro respeito para o indivíduo
maduro. Quando abdicamos de nossas escolhas
perdemos a personalidade, aquilo que nos identifica
como singulares no universo. Perdemos o encanto da
vida. De outro lado, interferir nas escolhas dos outros
é exercício de dominação e falta de respeito pela
liberdade e dignidade alheia. Sinais de imaturidade
por não entender a responsabilidade e o poder que
cada um tem sobre o próprio voo.

Loureiro concluiu as minhas palavras:


“Somente consigo ver a beleza do outro quando a
encontro dentro de mim.”

A refeição foi servida. Enquanto nos


deliciávamos com a gostosa comida do restaurante,
conversamos sobre outros assuntos. A jovem estava
distante e quase não tocou no prato, tampouco
falou. Antes de terminarmos, a moça perguntou se
achávamos que todos os defeitos que ela apontava
em relação ao marido eram, em verdade, uma fuga

411
dela mesma, da responsabilidade que tinha sobre a
própria felicidade e o aperfeiçoamento que lhe cabia.
Ninguém respondeu. Depois de alguns segundos de
um silêncio constrangedor, caímos os três na
gargalhada. Em seguida, a jovem confessou que era
casada com um bom homem, piscou o olho e disse com
jeito maroto que embora pudesse ser melhor, ele era
uma pessoa com muitas qualidades. Pediu licença para
sair, alegou que tinha um importante compromisso.
Eu quis saber se ela iria encontrar com o marido.
A moça deu um sorriso alegre e sincero antes de dizer
que estaria com o marido apenas à noite, que naquele
momento começaria um trabalho, o maior da sua vida:
catar as peças soltas para montar o quebra-cabeça
de si mesmo. Falou que estava entusiasmada com o
desafio e encantada com as infinitas possibilidades
que surgiriam. Sentia-se fortalecida por trazer para
si o poder sobre a própria vida. Loureiro sorriu e
finalizou: “Essa é a maior magia.” A jovem deu um
beijo na bochecha do tio, se despediu de mim e foi
embora. Pela janela do restaurante a vimos andar pela
praça. Aos saltos, parecia que tinha molas nos pés.

412
O PERFEITO ESPELHO

T
Mais de uma vez, durante os meus períodos
anuais de estudos na Ordem, encontrei o Velho, como
carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da
irmandade, sentado em uma confortável poltrona na
agradável varanda do mosteiro. Ele adorava aquele
lugar, onde fazia as suas reflexões diárias diante do
belo cenário proporcionado pelas montanhas. Sempre
que eu queria conversar sabia que, quase sempre, o
encontraria lá no final da tarde e, invariavelmente, seria
recebido com um sorriso sincero. Naquele dia não foi
diferente. Cheguei com duas canecas fumegantes de
café, entreguei uma em suas mãos e me acomodei em
uma poltrona ao lado. Em seguida puxei assunto com
o monge. Falei que o foco dos estudos da Ordem era o
autoconhecimento como estrada que leva ao sagrado,
uma vez que não encontraremos Deus em nenhum
lugar, salvo dentro de nós mesmos. Citei as famosas
frases “Conheça a ti mesmo e conhecerás a verdade”
e “Conheça a verdade e vos libertará”, de Sócrates e
Jesus, respectivamente, como eixo filosófico condutor
da busca. Acrescentei que as virtudes eram as
ferramentas que me permitiriam avançar à medida que
as sedimentasse em mim, possibilitando a libertação
do sofrimento, essa cruel prisão sem grades. O monge
ouvia a tudo com paciência e apenas balançava a
cabeça em concordância. No entanto, em relação ao
entendimento de quem eu era de verdade, falei que por

413
vezes eu tinha um olhar por demais rigoroso, enquanto
noutras era generoso em excesso. A dificuldade de me
enxergar com clareza complicava o meu processo de
aperfeiçoamento. Confessei que estava com a sensação
de que não conseguia avançar há algum tempo.
O Velho arqueou os lábios em leve sorriso e me
orientou com a sua usual simplicidade: “Preste atenção
a como você reage todas as vezes em que é contrariado;
quando o mundo lhe diz ‘não’. Nas ações costumamos
ouvir antes o coração e, assim, reverberar em luz.
É comum oferecermos o nosso melhor. Entretanto, nas
reações quem costuma falar são as nossas sombras.
É quando refletimos a face ainda obscura do ser.
As reações nos mostram os cantos que ainda não foram
iluminados”. Fez uma pausa para concluir: “As reações
são o perfeito espelho do ser, pois nos mostram o que
ainda não queremos ou não conseguimos ver”.

Argumentei que é comum reagirmos mal


quando surpreendidos com atitudes mesquinhas
e retrógradas que não deveriam mais ter lugar no
planeta. O monge deu de ombros e disse: “Nada
mais mesquinho e retrógrado do que não respeitar as
escolhas alheias. Cada qual ao passo de suas lições,
no compasso do nível de consciência e capacidade
de amar que já possui”. Sustentei que não devemos
ser tolerantes com o mal. Ele concordou: “O mal
deve ser estancado com firmeza”. Porém fez uma
ressalva: “Entretanto, a maneira de fazer isso faz toda
a diferença”. Bebeu um gole de café e prosseguiu:
“Não raro vejo as pessoas apontando nos outros
exatamente aquelas dificuldades que ainda não
conseguiram superar, como uma maneira absurda de

414
se sentir melhor ou adiar a inevitável batalha interna.
Clamam por justiça quando em verdade estão sedentas
por vingança, pois não vejo a preocupação na educação
do outro, mas apenas em fazê-lo sentir uma dor igual
ou ainda maior do que aquela sofrida. Então temos o
mal pelo mal, como maneira absurda de agigantar as
sombras coletivas ao invés de estancar a escuridão”.
Deu de ombros como quem diz o óbvio e falou:
“Por princípio, para iluminar é necessário... Luz”.

Falei que o problema das reações surge quando


somos pegos de surpresa. Então, reagimos no impulso,
sem tempo para pensar. O Velho tornou a concordar:
“Exato. O ‘automático’ é o cerne da questão, pois fala
de nossos instintos mais primitivos, dos preconceitos,
dos condicionamentos culturais que nos moldam, dos
papéis sociais que nos limitam, dos desejos de possuir,
das necessidades ancestrais por dominação, dos anseios
por aceitação e por aprovação. São vícios que, de tão
entranhados, nem percebemos quando interferem em
nossas escolhas, impedindo tudo aquilo que podemos
ser. Sempre é possível ir além do que já conhecemos”.

Bebeu mais um gole de café e continuou:


“Não é só. Nas reações é quando mais comumente
se manifestam as sombras do medo, do ciúme,
do orgulho, da vaidade, da inveja. Todas são
consequências da ignorância. Ignorância de não saber
quem eu sou; ignorância que me aprisiona no cárcere
da dor”. Olhou-me nos olhos e disse: “Para conhecer
alguém, negue-lhe um desejo. A capacidade de reagir
no expoente das virtudes já florescidas é a exata
régua de evolução do ser”.

415
“Em um primeiro momento, preste atenção
a cada reação surgida diante da adversidade. Depois,
desligue o botão do ‘automático’. Tente entender como
você pode reagir diferente e melhor toda a vez que o
mundo lhe disser ‘não’. Assim avançamos”.

Fiquei um tempo sem dizer nada para


concatenar as possibilidades de aperfeiçoamento que as
reações ofereciam. Quebrei o silêncio para falar que a
reação poderia se tornar um problema sério, a depender
da sua dimensão e despropósito, origem de mágoas e
contrarreações ainda mais violentas. No entanto, ela
poderia virar um bom mestre a me indicar as mudanças
que eu deveria trabalhar nos âmbitos do coração, da
mente e das escolhas. O Velho concordou, mas fez uma
preciosa ressalva: “Tenha cuidado para não sufocar
ou negar as sombras que movem as reações. Nunca
as trate como inimigas, mas sempre como aliadas”.
Interrompi para dizer que aquilo não fazia sentido;
afinal, as sombras eram boas ou ruins? Ele explicou
com paciência: “Depende de como você se relacionar
com elas. Se as reprimir, viram recalque; se as negar,
acabam por te dominar por se moverem soltas dentro
de ti. Cuide delas e as eduque. As sombras fazem
parte de ti e se queres ser inteiro será preciso aprender
a evoluir com elas em infinitas transmutações. Elas
mostram as feridas que sangram e doem, onde a cura se
faz necessária. Use as sombras como um cão farejador
de si mesmo, nunca como um animal de ataque”.

“Esteja atento às situações que te deixam


agressivo ou triste. Ali é local onde está enterrado o
tesouro; ali é ponto a ser transformado, o impulso da

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evolução. Muitas vezes, na busca para se aproximar
do ‘modelo perfeito’ nos preocupamos mais com a
imagem externa do que com o aperfeiçoamento interno.
Sem trabalho nas entranhas, sem a transformação
vital da essência a aparência não irá se sustentar.
Como uma construção sem alicerces, cedo ou tarde
aquele personagem restará desmoronado em atitudes
infantis, depressivas ou violentas. São os recalques e
as negações sobre si mesmo”.

Pedi para ele explicar melhor. O Velho foi


didático: “De tanto negar a própria essência, de tanto
recusar a ouvir o coração, de tanto fechar os olhos
para a verdade que pulsa, o indivíduo chega a acreditar
que encontrará a plenitude através de um personagem
encaixado em padrões moldados ao agrado social ao
invés de se transformar naquela pessoa que nasceu
para ser. Acontece que quando se depara com alguém
que, ao contrário dele, consegue viver o próprio
sonho, a exercitar o dom que nos faz únicos e belos,
mesmo entre flores e espinhos inerentes à existência
de todos nós, termina por reagir de maneira descabida
e desproporcional, comum a todos aqueles que não
gostam de se despir das fantasias de ilusões ao se
deparar com o espelho da realidade. A todo momento,
por puro amor, a vida nos coloca diante do espelho, mas
teimamos em fechar os olhos. A reação de desconforto
se explica pela casca que envolve e constitui o
personagem, que, quando rompida, provoca dor. Mas é
preciso revelar a verdadeira pessoa oculta na essência
do ser; a personalidade autêntica esquecida dentro do
personagem de ficção. De um lado, a dor pode ser a da
fuga de si mesmo ou do medo pela mudança. De outro,

417
pode ser a dor do parto, do renascimento espiritual”.
Bebeu mais um gole de café antes de concluir:
“As reações servem como diagnóstico. A cura depende
do quanto de sabedoria e amor você envolverá a
própria dor. A luz será sempre uma espada a romper
a noite da existência, impulsionada pela força da vida
que precisa prosseguir”.

Comentei que já tinha visto reações pavorosas.


Confessei que agi assim muitas vezes, bastava que
resgatasse os muitos fatos existentes em minha
memória com sinceridade e coragem. Admiti que era
deplorável agir dessa maneira. O monge ponderou:
“Depende da maneira de como encarar a situação.
Se você condenar tão somente, será lamentável.
Contudo, se você abraçar o momento com amor,
será transformador. Pois, a reação dolorosa, revelada
através da tristeza, mágoa ou da agressividade, nada
mais é do que um grito da alma por um entendimento
diverso. É a sinalização de uma alma que anseia por
libertação, que precisa ser ela mesma. Nem melhor
nem maior que as demais, mas única e inteira para
que possa ser bela. Trata-se de uma alma que não
consegue mais ficar sem voar, por mais confortável
que seja a gaiola. A essência da alma são as asas”.

“Afaste-se sempre da culpa para não restar


estagnado. Da culpa e da estagnação se nutrem a
tristeza e a agressividade. Tenha compromisso com
a responsabilidade de reparar os eventuais equívocos,
quando possível. O mais importante, empenhe os seus
esforços para fazer diferente e melhor da próxima
vez. Assim nos conectamos com a Lei da Infinitas

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Oportunidades e alavancamos a evolução”.

Esvaziou a xícara de café e finalizou: “Aquele


que busca o ouro da vida no mundo restará perdido e
fragmentado. Pleno é aquele que o encontra no próprio
coração. Então, ilumina o mundo”.

Tornei a ficar em silêncio. Aproveitei o bonito


cenário proporcionado pelas montanhas para refletir
sobre todas aquelas palavras proferidas pelo Velho.
Tudo me pareceu claro, sensato e nem tão difícil assim
de praticar. Tive certeza de que não teria dificuldade,
pois já tinha percorrido alguns trechos do Caminho.
Falei isso para o Velho que apenas me olhou e nada
disse. Não demorou muito se aproximou outro monge,
Mateus, para dizer que tinha resolvido estender por mais
uma semana a sua estada no mosteiro. Isto impediria
de eu ir de carona com ele até a cidade onde se localiza
o aeroporto mais próximo. Como eu retornaria para
casa dali a três dias, fiquei profundamente irritado. Pois
tinha devolvido a passagem de trem que me levaria
ao aeroporto por causa da carona. Argumentei que
eu teria dificuldade em conseguir um novo lugar no
vagão, pois estávamos em período de alta temporada
na região. Insisti que ele não poderia agir daquela
maneira. Mateus disse que lamentava, mas que para
ele era importante ficar mais alguns dias. Acrescentou
que contava com a minha compreensão, girou nos
calcanhares e saiu. Inconformado, me virei para o
Velho em busca de apoio à minha indignação. Para
minha surpresa, ele olhava para as montanhas e sorria.
Tinha o sorriso de um menino travesso que assistia ao
amigo tropeçar na própria brincadeira.

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