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MANUSCRITOS

Volume II

YOSKHAZ

1ª edição

Rio de Janeiro
Tinta Livre
2017
Copyright Ó 2017 Yoskhaz

Copyright Ó 2017 por Tinta Livre


Todos os direitos reservados

Título original:
Manuscritos, volume 2

Capa:
Ana Cunhal Zivick

Revisão:
Rita Godoy e Carlos André Oighenstein

Diagramação:
Fátima Serpa

Projeto editorial:
Tinta Livre

Editores de produção:
Marcello Schweitzer e Carlos André Oighenstein

Editor de produção digital:


Mariano Fonseca

Editoras adjuntas:
Tatiana da Costa Velho e Carvalho e Júlia Reuter e Carvalho

Editor responsável:
Jorge Desgranges

Yoskhaz
Manuscritos, vol. 2 / Yoskhaz – 1ª edição
Rio de Janeiro: Tinta Livre editora, 2017.

ISBN: 978 – 85 – 92644 – 00 – 0

Ficção / Contos / Metafísica

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1-   MEMÓRIAS CONTAMINADAS
2-   A PENA ALÉM DA PENA
3-   A FACE OCULTA DO CIÚME
4-   A LEI DOS CICLOS
5-   EQUILÍBRIO IMPROVÁVEL
6-   LEI DA RENOVAÇÃO
7-   DANÇANDO COM A SAUDADE
8-   SER LIVRE É SIMPLESMENTE SER
9-   ARMADILHA CONTRA A PAZ
10-   DESAPEGO É TRANSFORMAÇÃO
11-  TRANSGREDIR É PRECISO
12-  O ESPECTRO DA DOMINAÇÃO
13-  O MELHOR MANTRA
14-  A OUTRA FACE, OUTRA VEZ
15-  JAMAIS
16-  UM ESPÍRITO LIVRE
17-  ABRAÇANDO AS SOMBRAS
18-  A PONTE PARA A FELICIDADE
19-  O VAMPIRO E O MITO DA IMORTALIDADE
20-  O MURO
21-  A LEI DAS INFINITAS POSSIBILIDADES
22-  O MELHOR DOS MUNDOS
23-  O SOFRIMENTO É UMA ESCOLHA
24-  O JOGO DAS SOMBRAS
25-  O OUTRO E EU
26-  A MELHOR NAMORADA
27-  O LADRÃO DE MAGIA
28-  A BAGAGEM
29-  O BOM COMBATE
30-  A PORTA
31-  AS FERRAMENTAS DA LUZ
32-  AS CHAVES DA EVOLUÇÃO
33-  O DESTINATÁRIO DO AMOR
34-  A ARTE DE SE MANTER SUSPENSO NO AR
35-  A VERDADE NÃO DÓI
36-  A REVELAÇÃO
37-  O SENTIDO DA VITÓRIA – OUTRA VERTENTE
38-  A MAIOR DAS MENTIRAS
39-  A SEMENTE
40-  VALIOSOS PILARES
41-  AS FERRAMENTAS DO AMOR
42-  O AMOR NÃO PRECISA SER PERFEITO
43-  O TOPO DO MUNDO
44-  DE VOLTA AO TOPO DO MUNDO
45-  O DIA DA INDEPENDÊNCIA
46-  O PASSADO É UM VENENO
47-  O TAMANHO DE UM SONHO
48-  UMA QUESTÃO DE RESPEITO
49-  O SER INTEIRO
50-  AMAR É UMA ARTE DE MUITAS VIRTUDES
MEMÓRIAS CONTAMINADAS

Um dos trabalhos que eu mais gostava de realizar era o de ajudar o Velho, como
carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem, a cuidar do jardim interno
do mosteiro. Aprendi que tudo no mundo reage na exata medida dos nossos sentimentos,
em troca incessante. Com as plantas não é diferente. De sobra ainda conversava com o
monge e ouvia as suas conversas com outras pessoas. Tudo era aprendizado. Naquele dia,
lembro-me bem, fazia um frio não muito intenso em céu azul, e o calor do sol trazia um
aconchego morno ao corpo; o monge foi surpreendido pela visita de uma sobrinha. A
moça, na casa dos vinte anos, estava com a alma em grande bagunça; não conseguia
alinhar ideias e sentimentos.

O motivo era o seu relacionamento com o pai. Desde o berço a jovem morou apenas com
a mãe, que logo se casou e teve outro filho. Sempre teve uma boa convivência em casa
com o irmão e o marido da mãe. O pai, ainda que pesem as grandes diferenças de
relacionamento com a mãe, nunca deixou de procurar a filha, embora não da forma que a
menina desejava, entendia ou lhe foi dito que ele precisava fazer. Nos últimos tempos as
tentativas do pai em se fazer mais presente a incomodavam de uma maneira que ela não
sabia explicar, embora não admitisse, e mostravam uma escura lacuna sentimental que
necessitava ser colorida. Ela nem sempre reagia bem a essas investidas paternas.

Sentados em um banco de pedra, a jovem desfiou um rosário de situações passadas em


que apontava a ausência do pai e entendia que ele deveria ter sido atuante. A presença
dele, agora mais intensa, de algum jeito, trazia desconforto. O Velho a ouviu com a sua
enorme paciência até que ela esgotasse o rol de críticas. Depois, ele disse com ternura:
“Existe um mar de ressentimentos e você parece se afogar nele. Sobreviver nas águas da
mágoa só é possível com a boia do perdão; perdoar é respeitar o direito do outro às
mesmas infinitas oportunidades que você teve e tem”. Olhou a sobrinha nos olhos e
perguntou: “Onde você estaria se a cada equívoco não lhe fosse permitido renovar as
chances?” Sem esperar resposta, complementou: “Somente o conhecimento de si próprio
concede as bênçãos da tolerância para com toda a gente, degrau fundamental para a paz”.

A moça sustentou que a sua pouca afeição estava atrelada à memória de muitas
decepções. Nesse quadro contabilizava finais de semana em que ele não apareceu ou em
festas escolares em que não se fez presente. O monge a olhou com doce compaixão e
falou: “É muito cômodo elegermos alguém para ser o responsável por todas as nossas
infelicidades e frustrações. Isso nos desculpa do esforço transformador de sempre
oferecer o melhor. Evita o trabalho de entender o outro, aprender sobre nós e a buscar
soluções diferentes que tragam harmonia e equilíbrio ao convívio. Assim, a suposta
vítima sempre clama por mudança no comportamento alheio e esquece que a vida não
compactua com a estagnação nem com lamentos. Nega-se a entender a parte que lhe cabe.
O sofrimento estará sempre à serventia de um olhar equivocado sobre todas as coisas”.

A sobrinha se irritou com o Velho, bateu no peito e o questionou se ele não acreditava
em suas memórias, nas situações que ela tinha vivido, em tudo que sofreu. Ele, a segurou
pelas mãos com ternura e falou: “Tenho absoluta convicção de que todos os seus relatos
são reais. Percebo a sua dor, mas sei como a memória resta contaminada pelo ambiente
em que vivemos, se altera pelo nível de consciência que atingimos e, principalmente, se
mistura com a bagagem emocional que carregamos. Este pacote tem o poder de embaçar
a melhor verdade”.

“Enquanto você acreditar que cada ausência do seu pai se transformou em uma dívida
afetiva que, pior, nunca poderá ser quitada em face da sua necessidade de olhar para ele
como eterno devedor, você não conhecerá a força libertadora do perdão, não vivenciará
tudo de bom que habita em ambos, não se permitirá o mel da vida”.

Irritada, a jovem tornou a relatar as esperas que foram em vão, os passeios que não
aconteceram, os abraços que desejava e não existiram, os beijos que se desmancharam no
ar. Perguntou ao tio se ele desprezava os seus sentimentos e tudo que havia vivido. O
monge manteve a serenidade em seu tom de voz: “Claro que não, minha querida. Apenas
percebo a sua insistência em carregar um inútil livro-caixa, no qual contabiliza as suas
mágoas, ou os supostos erros do seu pai. Enquanto mantiver o mesmo comportamento,
não haverá avanço. É indispensável despir as roupas pesadas e escuras da memória para
lhe emprestar outras mais leves e coloridas, permitindo maior desenvoltura em seus
próximos passos. É necessário outro olhar. Relembrar os eventos escolares em que ele
compareceu e ficou sentado em um canto sem qualquer atenção, fazendo o papel de mero
figurante; os finais de semana que foram desmarcados porque você tinha programação
mais interessante com suas amigas ou alegava estar gripada; dos encontros em que você
se posicionou de maneira tão reativa que se tornaram chatos por dificultar qualquer
carinho”.

“Lembro de tê-lo encontrado certa vez, logo após uma festa de aniversário, e perguntei o
motivo de sua ausência. Ele confidenciou, com os olhos molhados, não ter sido
convidado”, deu uma breve pausa e concluiu: “Se de um lado ele não foi o melhor pai
que poderia ter sido, de outro, ele foi o melhor pai que lhe foi permitido ser”.

A sobrinha abaixou os olhos, o Velho lhe acariciou o rosto e prosseguiu com doçura:
“Não há perfeição em nenhum dos lados. A sua mãe é minha irmã, sei de como ela é uma
doce criatura e o enorme amor com que lhe criou. Mas sei, também, das mágoas dela para
com o seu pai, do ciúme velado do marido. Entenda como o ambiente era hostil para uma
criança desenvolver a melhor imagem do pai, mesmo sem qualquer acusação frontal. A
sua memória afetiva na relação paterna restou contaminada. Erros do seu pai? Houve
muitos, porém não foi um privilégio exclusivo. Todos tropeçaram. Todos apresentarão
motivos e justificativas. Entender isto é compreender o significado maior da preciosa
lição de oferecer a outra face, ao se permitir olhar através da ótica alheia. Isto não
significa, necessariamente, dar-lhe razão, mas em ter respeito pelas sagradas razões do
outro”.

Ficaram algum tempo em silêncio, até que a moça falou que estava disposta a dar uma
segunda chance ao pai. “Ao falar em segunda chance, você já se coloca em patamar
distinto do dele, em posição superior, mantendo o abismo que sempre os separou. No
mais, por que falar em segunda chance? Será que ele teve uma primeira? Vocês se
separaram desde cedo, e a convivência sofreu muitas interferências indevidas. O convívio
entre pai e filha nunca teve a paz necessária para florescer. Tente calar a voz do mundo,
aquela que sempre aponta defeitos em todos; escute o silêncio que o coração sopra,
indicando a beleza existente em cada um de nós. É necessário consolidar as fraturas
emocionais; descontaminar o passado. Só assim será possível a leveza imprescindível
para seguir no Caminho”. Deu uma pequena pausa e finalizou: “Não raro, imaginamos
que o nosso discurso nos define; mera bobagem. Muitos acreditam que as nossas ações
têm autoridade para falar por nós; pura verdade. Todavia, nada revela melhor a essência
da alma do que a maneira como reagimos a cada movimento do outro; este é o perfeito
espelho. Todos os convívios trazem em si mestres ocultos. Agradeça por todos eles”.

O monge abraçou a sobrinha e disse: “Apesar de todos os desencontros e farpas, nunca


esqueça o mais importante: o seu pai nunca desistiu de você. Por todos esses anos, ele se
esforçou, dentro dos limites da própria capacidade, para estar ao seu lado. Se você olhar,
à margem das mágoas e decepções, encontrará o amor que o seu pai sempre lhe ofereceu
sem nunca ter conseguido entregar”.

“A dificuldade em aceitar o amor do seu pai pode estar no medo de desconstruir a imagem
que você tinha dele e de si mesma, na estranha sensação de que tudo que viveu até agora
tenha sido um equívoco ou uma farsa. Abdicar do confortável, porém estagnante, papel
de vítima nem sempre é fácil. Encare a oportunidade de escrever uma nova história, na
qual haja lugar para a felicidade. Negar uma chance ao amor é o maior dos enganos”.

A jovem, com uma lágrima escapando pelo canto do olho, disse que uma sensação boa
lhe invadia o corpo e procuraria o pai naquele mesmo dia em busca dos abraços perdidos.
Deu um beijo estalado na bochecha do tio e partiu quase aos pulos, como uma menina
que descobre que o mundo pode ser um bom lugar.

A sós com o Velho, perguntei-lhe quem ele achava que tinha razão naquele imbróglio.
Ele me olhou com a piedade de quem tem que explicar o óbvio e disse: “Isto é o que
menos importa. Para todo fato há no mínimo duas versões, além da verdade”. Deu uma
pequena pausa e concluiu: “A magia da vida está nos encontros. Ali você se revela, supera
e entrega o melhor de si. Só então, mais leve, por ter tirado tanto peso das costas, fica em
condições de seguir adiante”.
A PENA ALÉM DA PENA

Toda vez que eu tinha que ir à pequena e charmosa cidade situada no sopé da montanha
que abriga o mosteiro, não perdia a oportunidade de visitar o Loureiro, o elegante
sapateiro, amante dos livros e vinhos. Remendar o couro era o seu ofício; costurar ideias,
a arte. Nem sempre eu conseguia encontrá-lo, pois sua oficina funcionava em horários
aleatórios. Naquele dia, já ao final da tarde, me alegrei ao ver a sua antiga bicicleta
encostada no poste em frente à loja. Um bom sinal. O bom amigo pediu que esperasse um
pouco para terminar um serviço e, em seguida, seguimos para uma silenciosa taberna em
busca de boa prosa e uma taça de tinto. Ao garçom que nos atendeu, ele pediu um pedaço
de queijo, de marca famosa, para acompanhar o vinho. De imediato retruquei lembrando
que o dono daquele conhecido laticínio havia sido condenado por um crime gravíssimo.
Falei que não me sentia à vontade para comer daquela marca de queijo e sugeri que
pedíssemos uma outra coisa. Intrigado, o artesão perguntou: “Comer do queijo te fará
cúmplice do crime?” Respondi que não iria compactuar com atitudes ultrajantes e
acrescentei que agia de acordo com a minha consciência. Ele me olhou com bondade
antes de falar: “Sim, devemos agir sempre em sintonia com as nossas melhores razões. É
muito ruim quando isto não acontece. No entanto, permitir a expansão da consciência
além dos condicionamentos sociais e culturais será sempre um exercício de transformação
e leveza”.

“Para tanto, a pergunta que devemos fazer é: qual o sentimento que me move? Pois,
definimos quem somos no diapasão de nossas escolhas”.

Respondi que a vontade de fazer justiça me levava àquela decisão. Loureiro rebateu com
uma nova pergunta: “O sujeito já não cumpre a pena imposta por uma sentença
condenatória aplicada por um juiz de direito? Toda sociedade é regulada por um conjunto
de leis que lhe estabelecem direitos e deveres; regras e limites, objetivando a boa
convivência”. Interrompi, alegando que muitas leis são injustas, algumas rigorosas
demais, outras lenientes em demasia. Fora as que beneficiam determinados grupos em
detrimento de outros. “É verdade”, concordou o sapateiro para acrescentar em seguida:
“Entretanto, toda legislação espelha o ponto de evolução de uma sociedade. Esta, apenas
avança na medida em que se multiplicam as transformações pessoais. Impor mudanças
sem a devida conscientização, é como construir um prédio sem alicerce; não se sustenta.
Cada qual deve agir como o fiel o retrato da sociedade que almeja. As leis, naturalmente
com algum atraso, virão na esteira dos avanços. Ou seja, mudamos a sociedade na exata
medida de nossas transformações individuais”.

Insisti que a minha recusa por aquela marca de queijo demonstrava a minha insatisfação
em relação à conduta criminosa do proprietário da marca. O artesão tornou a argumentar:
“A fronteira entre a barbárie e a civilização é a lei. No início dos tempos a ausência de lei
levava a excessos e injustiças. Na atualidade, ir além dos parâmetros legais causam os
mesmos danos. Traz pelo avesso o odioso comportamento de fazer justiça com as próprias
mãos, por mera suposição quanto à eficácia da lei. Isto nada mais é do que a odiosa
vingança”, Loureiro tentou explicar.

“A diversão na Idade Média era, aos domingos, ir para a praça da cidade para assistir o
enforcamento de um infeliz qualquer. E como se a forca e a morte não fossem suficientes,
o infeliz era obrigado a andar até o cadafalso no meio da multidão. A turba, ansiosa pela
desgraça alheia, ofendia, atirava comida podre, cuspia, agredia a socos e pedradas em
catarse, movida por enorme sombra coletiva. Na grande maioria das vezes nem sabia o
motivo da condenação, tampouco, e pior, as razões que motivaram o sujeito a fazer o que
fez, ou mesmo se era inocente”. Bebericou do vinho e prosseguiu: “No caso do laticínio,
o sujeito já não foi condenado de acordo com as leis vigentes? Já não está trancafiado em
absurda jaula humana? Você tem ideia do sofrimento desse homem? Como se não
bastasse, ainda querem destruir tudo que lhe envolve a vida? Percebe um desejo sem
limites em castigar o outro? Mais do que isso, existe uma vontade de destruir a pessoa,
ou o que sobrou dela”. Deu uma pequena pausa e concluiu: “A diferença entre vingança
e justiça é a dose de amor contida na decisão”.

Argumentei que eu possuía um código moral próprio e era indispensável a lealdade aos
valores éticos que nele constavam. O artesão me olhou com bondade e falou de jeito
sereno: “Não raro confundimos moral com moralismo. O moralismo traz a inflexibilidade
na adequação dos notáveis conceitos de comportamento contidos na moral, impedindo a
melhor análise exigida por cada fato. O moralismo é quando alimentamos a moral com
as nossas sombras. Para que a moral não vire um açoite a maltratar indiscriminadamente,
é necessário que esteja sempre revestida com os nobres sentimentos do amor e suas
variantes: o perdão, a misericórdia, a compaixão e a paciência, além da humildade, é
claro. Ou a Idade Média ainda estará dentro de nós”.

“O amor é o elemento que eleva a moral ao patamar da dignidade”.

“Boicotar a fábrica do sujeito até a falência será impor uma pena além da pena, pois
também acertará centenas de funcionários que serão atingidos pela condenação do
desemprego, sem que tenham qualquer relação com o fato criminoso. Relegar a família
do infrator ao desterro moral e financeiro como se fossem coautores é, igualmente, ir além
da pena, atingindo a terceiros inocentes”.

“As consequências da pena devem ser pessoais e intransferíveis. Fora disto, serão atos
arbitrários embasados pelos absurdos do moralismo e pelo sentimento selvagem de
vingança. Tudo isto é muito violento e pode, até mesmo, se tornar um mal maior do que
o próprio crime praticado”.

Ainda não satisfeito, falei que comer daquela marca de queijo era como se eu fosse
permissivo com o crime praticado. Loureiro abriu os olhos em espanto e rebateu de
pronto: “De jeito nenhum. Por que desperdiçar a oportunidade de oferecer a outra face?
Por que se negar a permitir outra chance? Por que é preciso manter vivo o obsoleto
conceito bélico e antiquado de ‘terra arrasada’? Percebe que você confunde crime e
criminoso em seu repúdio?”

Falei que não estava entendendo onde ele queria chegar, e o bom sapateiro tentou
explicar: “O mal tem que ser combatido com a firmeza necessária a cada caso, sem
nenhuma conivência, não resta a menor dúvida. No entanto, o malfeitor precisa ser
ajudado para ser capaz de iluminar as próprias sombras. Percebe que a batalha dele, na
essência, é a mesma que a minha ou a sua, cada qual na dimensão dos próprios erros?
Todos nós já erramos e continuamos a errar. O erro faz parte do aprendizado e do próprio
processo evolutivo, mas, para tanto, é indispensável inúmeras novas oportunidades.
Recomeçar sempre é uma lei imutável da luz. Cabe a uma sociedade moderna estabelecer
e aperfeiçoar as condições para isso. A destruição do outro equivale à condenação eterna,
atitude intimamente ligada às sombras, um resquício da selvageria que ainda nos habita”.

Abaixei os olhos e, em silêncio, recordei o meu passado, como um filme rodado muito
rápido. Sem dúvida, eu tinha de ser muito grato pelas inúmeras oportunidades que tive
para recomeçar ou não estaria ali. Sem novas chances o planeta seria um deserto de
homens e mulheres. O artesão percebeu o constrangimento e me ajudou de jeito doce:
“Desafio qualquer um a abrir o Código Penal e anotar de maneira sincera todos os delitos
que já praticou e as vezes em que foi reincidente. Aplique a cada ato a pena mínima
cominada e depois some. O melhor de nós terá muitos anos de cadeia para cumprir”.
Lembrei que o Velho já havia feito esse exercício no mosteiro, uma lição de humildade
que ele denominava “Espinho na Carne”, para lembrarmos de nossas próprias
imperfeições antes de apontar as alheias.

Loureiro finalizou: “As nossas sombras, sempre na ilusão de proteger, nos levam a crer,
ainda que inconscientemente, que, se construirmos uma imagem deplorável do outro,
iremos nos sentir melhores. Assim, nos enganam e emperram a inevitável marcha. Ao
desviar o olhar para os tropeços alheios, ao invés de mirar em nossas próprias limitações,
fugimos do bom combate. Não, não seremos melhores por crer que o outro é pior.
Combater o mal sempre será trabalho de todo andarilho do Caminho, começando por
iluminar a escuridão que se esconde em suas próprias entranhas. Entender isto é conhecer
com sinceridade a si próprio, iniciando as indispensáveis metamorfoses que permitirão as
asas para o fantástico voo até as Terras Altas do Ser, onde mora a paz”.

Aceitei de bom grado o queijo trazido pelo garçom e lhe apreciei o excelente sabor.
Levantamos a taça, e Loureiro fez o brinde: “Que possamos ser, ao mesmo tempo,
jardineiro e flor, semeando e embelezando o bonito jardim chamado Terra!”
A FACE OCULTA DO CIÚME

Aos domingos, sempre que possível, eu assisto a missa na catedral da pequena e charmosa
cidade situada no sopé da montanha que abriga o mosteiro. Naquele dia, o sermão do
padre alertava para o que considerava uma banalização dos relacionamentos afetivos, nos
quais as pessoas investiam pouco, segundo ele, não só na construção e adequação da vida
a dois, como no convívio social em si. Ele clamava por paciência e compaixão em relação
ao outro. Em suas palavras, a humanidade está desistindo de si própria com muita
facilidade. Encerrado o cerimonial, eu caminhava por entre as vielas de pedras
silenciosas, refletindo em tudo que foi dito e os muitos aspectos que envolvem a questão,
quando fui surpreendido por Loureiro, o amante dos vinhos e dos livros, em sua antiga
bicicleta, a me cruzar os passos. Um bom sinal, já que o artesão era um dos últimos
bastiões em remendar bolsas e sapatos como opção à troca. A sapataria era o seu ofício;
na filosofia exercia a sua arte. Feliz por me ver, sugeriu que sentássemos em uma cafeteria
próxima.

Com duas xícaras fumegantes à frente, puxei a conversa falando sobre o sermão
dominical e a larga complexidade de uma tendência atual, com suas várias facetas. O
sapateiro bebericou o café, e quando faria um comentário, nossa atenção foi desviada para
um jovem casal que discutia na mesa ao lado. Embora o fizessem em voz baixa, quase
inaudível, as feições fechadas revelavam uma tempestade de sentimentos conflitantes. O
rapaz se retirou de maneira repentina. Em seguida, os olhos da moça se banharam em
lágrimas. Loureiro a convidou para sentar conosco e disse para ficar à vontade para
conversar ou apenas ouvir. Deu-lhe a palavra de que não faríamos qualquer pergunta. A
intenção, sem que fosse dita, era apenas que ela não tivesse a eventual sensação de
abandono. A jovem aceitou e confessou que precisava desabafar. O artesão concordou:
“O mais importante em uma conversa nem sempre são os conselhos que recebemos,
porém, ouvir a própria voz. Falar costuma nos revelar segredos inconfessáveis do próprio
inconsciente”.

Ela disse que se chamava Ana e que nós tínhamos acabado de presenciar o término de
seu quarto casamento, pois assim considerava quando o namoro a levava a dividir o
mesmo teto, por algum tempo, com outra pessoa. Ana não tinha trinta anos. De pronto,
confessou que o motivo de todas as separações era sempre o mesmo: ciúme. O seu próprio
e indomável ciúme, com suas cobranças e desconfianças. Ao mesmo tempo, na tentativa
de se justificar, sustentou que o ciúme é inerente ao amor, além de sua prova
incontestável. “Ciúme nada tem a ver com amor”, interrompeu Loureiro, “é apenas um
olhar equivocado sobre o mais nobre dos sentimentos e uma interpretação embaçada
sobre as próprias sombras que, por sobrevivência, constroem raciocínios tortuosos para
explicar as nossas reações e falsas necessidades, enraizando sorrateiramente a sua
moradia em nosso ser”.

“O ciúme é resquício de um antigo e terrível vício: a dominação. Remanescente de uma


época em que se respirava o ar contaminado pela falsa sensação de segurança, alimentado
pela ilusão de que ser proprietário da vida alheia, era a rota mais confortável para
controlar a própria vida. A liberdade assustava; talvez ainda assuste. O ciúme é uma
sombra, filha ancestral do medo. E este medo se fará presente enquanto negarmos que os
ventos da liberdade são mais propícios à vida”, tentou explicar o artesão.
A jovem disse ter certeza de que era impossível amar sem sentir ciúme. O sapateiro a
olhou com a bondade de um avô, a diferença de idades permitiria que ela fosse neta dele,
e disse: “Os melhores e piores sentimentos atravessam as entranhas de todas as pessoas,
sem exceção. No entanto, o que fazemos com eles define quem somos, as cores do
coração e o atual grau de consciência que atingimos. Há os que sentem ciúme e o
alimentam; existem outros que, já em viagem de autoconhecimento, o utilizam como
força de transformação e ampliação de consciência. Isto mostra o quanto aprendemos a
conviver com as sombras. Afinal, esta é a grande batalha: aquela que travamos para
iluminar os porões escuros do próprio ser, cuidadosamente defendidos pelo ego ainda
ligado aos instintos mais primitivos, em recusa a valores mais nobres e redentores. Assim,
sem que percebamos, criamos nossas próprias prisões, cruéis por não terem grades;
extremas por não nos enxergarmos como prisioneiros”.

Ana sustentou que todo relacionamento se alicerça em compromissos de lealdade e


respeito mútuo. Dessa maneira, tem que existir comportamento adequado de ambos para
que não permita margem a desconfianças que estimulem emoções tão corrosivas. “Sim,
é verdade”, concordou Loureiro, “no entanto, esse discurso é perigoso por abranger
limites e capacidades individuais que as pessoas nem sempre querem ou não estão
prontas. Por outro lado, é bem comum esconder de si próprio outras emoções selvagens
intimamente ligadas ao ciúme, como o egoísmo, o orgulho e a inveja, disfarçadas na
fantasia de desculpas absurdas, que apenas ocultam o desequilíbrio pessoal ou o medo
injustificável de perder aquilo que não se pode ter. Amor é um estado de espírito, não
uma bicicleta. Então cria-se a artimanha dos compromissos. Na verdade, o único
compromisso existente é consigo própria, em não negociar com as suas sombras, ser leal
com a sua verdade e sempre oferecer o seu melhor”.

Ana olhou sério para Loureiro e perguntou, com aspereza, como ele reagiria ao ser traído.
O artesão sorriu em compaixão e respondeu: “Perdoar o outro, sempre e sempre. Isto me
liberta dos grilhões da mágoa e me devolve a leveza necessária. Continuar ou encerrar o
relacionamento vai depender dos bons frutos que eu acredite que ainda possam germinar.
Será sempre um direito inalienável a escolha entre ficar ou partir. Simples assim”. A
jovem quis saber se ele não sentiria vergonha por saber que muitas pessoas tomaram
conhecimento de que fora “passado para trás”. O sapateiro a olhou com bondade e disse:
“De jeito nenhum. Mil vezes ser o traído do que o traidor; a vítima do que o carrasco; o
lesado do que o ladrão. Mil vezes receber o mal do que praticá-lo. Assim, a vergonha
nunca será minha. É uma escolha de vida que fiz há muito tempo atrás e, pode apostar, é
libertador”. Ana insistiu em saber se ele voltaria a confiar no outro: “Penso que todos
merecem novas oportunidades e, mais, acho impossível ser feliz sem confiar”.

Ana abaixou a cabeça e não disse palavra até que Loureiro quebrou o silêncio: “Na
verdade, o que une as pessoas é a afinidade energética, o que significa estar em uma
mesma faixa vibracional, na mesma curva do Caminho ou no mesmo ponto do processo
evolutivo, independente do jeito que goste de se expressar. Essa afinidade pode durar um
dia ou séculos. Para tanto, é necessário que aquelas almas caminhem na mesma
intensidade e ritmo, fomentando os mesmos valores, ensinando e aprendendo no sagrado
ato de oferecer o seu melhor”, mirou a jovem nos olhos e prosseguiu: “Quando ocorre o
descompasso, é hora de partir ou de deixar o outro seguir o próprio destino, não mais
ligado ao seu. Então, isto passa a ser o melhor que se tem para oferecer naquele instante:
amor em forma de respeito. Perceber isto é uma sábia prova de amor. Respeitar a
liberdade alheia demonstra elevado grau de entendimento e, por outro lado, concede o
direito de bater as próprias asas quando for a sua hora de seguir sozinho”.

Uma lágrima involuntária fugiu dos olhos tristes de Ana. O elegante sapateiro lhe
ofereceu um lenço e um outro olhar: “O adeus só é triste por mero erro de interpretação.
Somos viajantes das estrelas, sempre em rumo a outra de maior grandeza, com maiores
possibilidades de amor e luz. Nesta viagem, embora eventualmente estejamos
acompanhados, não podemos carregar ninguém ou irmos na carona de alguém. Os
avanços são individuais e intransferíveis, fruto da integração de valores e princípios
nobres à alma. Por isto, temos que entender os limites da interdependência, pois, apesar
de os encontros serem a magia e a matéria-prima das transformações, por estabelecerem
os palcos nos quais se vivem as reais capacidades já introduzidas ao ser, cada qual
caminha em ritmo próprio, de acordo com o aprendizado das lições evolutivas essenciais,
ligadas ao desprendimento da alma sobre os condicionamentos primitivos do ego. Nossas
asas têm o tamanho do nosso coração e se alguém já está pronto para voos mais altos,
além da fronteira daquele relacionamento, resta apenas desejar ou receber votos de uma
‘boa viagem’”. Deu uma pausa proposital para completar: “Ou um ‘até breve’, pois
sempre é possível um reencontro na próxima estação, desde que cheguem à plataforma
de embarque em um mesmo momento, cada qual com seu esforço”.

“Quando mudamos, tudo a nossa volta também se transforma. Situações e pessoas.


Muitos partem, alguns ficam, outros chegam; caminhos se revelam”. A jovem disse que
tudo aquilo era muito melancólico. O artesão rebateu: “Claro que não. Tudo isso é
grandioso e esclarecedor, pois permite entender que a nossa felicidade não está atrelada
a ninguém, que cada qual depende apenas de fazer a própria parte para alcançar a sonhada
plenitude. Percebe como isto é libertador? Ninguém tem a obrigação de fazer o outro
feliz, pois o fardo é injusto e pesado demais. Penso que este é o erro mais comum nos
relacionamentos, ao depositarmos no outro as expectativas dos melhores dias de nossas
vidas. Ninguém suporta tamanha carga e responsabilidade, por estar assumindo eterna
dívida. Tudo passa a ser chato, repleto de cobranças insensatas e insuportáveis. Fica
pesado demais. A sabedoria consiste em construirmos a felicidade dentro de nós,
sozinhos, independente de qualquer coisa, situação ou pessoa. Só então, estaremos
prontos para compartilhar o trigo da vida com outro alguém, com a leveza de quem aceita
as possibilidades e limitações alheias, de quem nada exige por ter o essencial dentro de
si. Só consegue ser feliz ao lado de alguém quem, sozinho, já possui esta alegria. Depois
é semeá-la por onde passar, pois esta é a maneira de agradecer ao Universo pelas lições
oferecidas”.

Ana disse que aquele discurso era paradoxal. Loureiro rebateu: “Não. Contraditório e
absurdo é a prática de interferir no querer do outro; é impor que o desejo dele seja o meu
desejo. Quando isto acontece naturalmente, é maravilhoso. Quando forçado, será sempre
áspero. Por vivenciarmos o amor de maneira equivocada, acabamos por destruí-lo”.

Tornou a beber um gole de café e continuou: “Outro erro é querer modificar o outro e
amarrar isto ao sucesso da relação. As pessoas mudam quando alteram o seu nível de
consciência. Isto é transformação real. Quando por consequência de forte pressão, para
agradar ou ser desejado, não passa de mera maquiagem. Cedo ou tarde o personagem
acaba desmascarado. O triste, neste caso, é que muitos se declaram enganados ou
decepcionados, mas esquecem do despropósito das próprias exigências. Pretender a
evolução do outro sempre será um ato de amor. No entanto, é necessário respeito e
paciência, pois cada qual tem ritmo próprio. Ou não estaremos mais falando de amor”,
aprofundou Loureiro.

A pedido da jovem, o garçom trouxe uma caneca de chocolate quente. Ela bebeu em
silêncio, a refletir sobre aquela longa conversa. Ao final, depois de lamber o restinho de
doce preso à colher, como uma menina travessa, virou para o artesão e perguntou se ele
tentava lhe dizer que quanto maior o ciúme, menor era a compreensão do amor. “Exato”,
ele respondeu, “são sentimentos inversamente proporcionais que não têm absolutamente
nada em comum”. Observou a moça por instantes antes de arrematar: “O grande truque
do ciúme é nos fazer acreditar que ele é inevitável”.

Ana fechou os olhos, arqueou os lábios em belo sorriso e balançou a cabeça em


concordância. Em seguida, disse que aquela tarde mudaria a sua vida para sempre, pois
sentia uma leveza que nunca havia experimentado. Deu um beijo na testa do sapateiro em
agradecimento sincero e partiu.

Desconfio que levava consigo uma dose de confiança no amanhã que até então
desconhecia. Tive a louca sensação de “ver” duas enormes asas nascendo em suas costas.
A LEI DOS CICLOS

O Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo do mosteiro, tinha


sido convidado para ministrar uma palestra em uma universidade. Nessa época, eu era o
discípulo designado a acompanhá-lo. Ao final de seu discurso, como de costume,
respondia a uma infinidade de perguntas. Sua abordagem sobre os vários aspectos da vida
era sempre desconcertante. Dessa vez, não foi diferente. Ele atendeu a todos com carinho
e paciência. Já no metrô, de volta ao hotel, uma mulher veio falar conosco. Explicou que
tinha assistido à palestra e nos chamou para almoçar. Brincou ao dizer que era uma
maneira de arrancar mais um pouquinho do monge. Aceitamos, e fomos para um
restaurante próximo. Já acomodados, ela falou um pouco sobre a sua vida e se lamentou
que determinada situação sempre se repetia, como uma história que insistia em ser
recontada infinitas vezes, algo que a entristecia, e lamentou o próprio carma. O Velho a
olhou com bondade e disse: “Penso que há um equívoco em relação ao entendimento do
que os antigos denominaram como carma. Hoje em dia, falam como se significasse uma
punição. Não, de jeito nenhum. Carma é aprendizado”.

“Não faz sentido que o Universo, com toda generosidade e mestria, tenha qualquer outra
intenção, salvo a de nos aperfeiçoar. Muitas vezes a lição endurece em razão da teimosia
ou do embrutecimento do aluno. Lição aprendida, carma extinto. Simples assim”.

“Isso explica as dificuldades do Caminho e nos permite entender que podemos modificar
o trajeto quando transformamos o nosso jeito de andar. As intempéries do percurso apenas
espelham as tempestades internas que cada qual carrega na bagagem. Isto torna você
responsável pela pacificação dos conflitos que surgem, pois na verdade retratam apenas
as suas próprias sombras, que precisam ser iluminadas. Este compromisso é pessoal e
intransferível”.

A mulher falou que o vocabulário do monge era bastante peculiar e que não conseguia
entender o que ele queria dizer e como tudo se aplicava ao caso dela. O Velho bebericou
um gole de água e disse: “Quando determinada situação insiste em se repetir, de maneira
igual ou parecida, significa que estamos sob a influência da lei dos ciclos”.

A mulher disse que agora entendia menos ainda. O Velho sorriu e explicou com
paciência: “O Universo é regido por um código de leis não escritas que baliza e
impulsiona a evolução de todos nós. Independentemente do plano em que nos
encontramos, somos regidos por condições inexoráveis que estabelecem o próximo
conflito que vamos vivenciar. Tal problema, na verdade, nada mais é do que a lição
adequada naquele momento da vida. Viajamos em direção à luz, à plenitude, à perfeição
do espírito, a nossa real identidade. A evolução de cada um de nós será alavancada,
queiramos ou não. Claro que, como em toda sala de aula, há alunos dedicados e outros
relapsos ou rebeldes. A lição que demora pouco tempo para uns, para outros se prolonga
por séculos, literalmente. Isso explica o motivo pelo qual nem todos passam, neste exato
instante, pelas mesmas dificuldades e alegrias”.

Ansiosa, a mulher o interrompeu. Ela queria saber mais sobre a lei que insistia com que
determinada situação fosse recorrente e se repetisse infinitamente como um castigo sem
fim. O Velho arqueou os lábios em doce sorriso de compaixão e lhe disse: “As penas
eternas são um velho truque das trevas e não têm qualquer ligação com a inteligência
cósmica. O Universo não está preocupado em punir, mas em educar e, por isto, a
necessidade pulsante do perdão e de todos os demais nobres sentimentos derivados do
amor. É impossível educar sem perdoar, sem permitir novas oportunidades”.

“A vida é um grande ciclo formado por inúmeros pequenos ciclos. Cada um deles abrange
um conjunto de ensinamentos. Eles vão gerar indispensáveis transformações em seu ser.
Sempre vivenciamos o ciclo que contém as exatas lições para as quais estamos prontos.
Nem mais nem menos”.

“Como um aluno que repete a série na escola quando não presta atenção ou se recusa a
aprender a lição, o ciclo se torna recorrente e, não raro, mais severo para que o
entendimento, e a consequente modificação que alavancará a evolução, ocorra. Assim
caminhamos”. Fez uma pequena pausa e prosseguiu: “O fim de um ciclo necessariamente
será o início de outro. No entanto, dois ciclos não coexistem. O novo nunca se inicia sem
que o anterior esteja encerrado. A repetição do ciclo, como sofisticada prisão, nada mais
é do que a sua negação em evoluir”, pausou brevemente antes do concluir: “A
metamorfose é indispensável. Aprenda, se transforme e fique livre do problema”.

“O problema nunca é o problema em si, mas a sua reação equivocada diante dele”.

A mulher disse que começava a entender e pediu para que ele se aprofundasse. O Velho
não se fez de rogado: “Toda vez que temos a sensação de estagnação, como se a vida
estivesse atolada na mesmice, a oferecer incessantes repetições da mesma situação
desagradável, significa que é hora de parar. Envolto pela ambiência do silêncio e da
quietude, busque no âmago do ser o que precisa ser modificado na sua maneira de olhar
e agir. Tudo pode ser diferente e melhor. Aceite que as verdades que serviram até agora
já não servem mais, ficaram ultrapassadas. É hora de deixar o novo chegar. Em exercício
de desapego intelectual, modifique seus conceitos, deixe a luz entrar e amplie a
consciência. Afinal, o universo está em franca expansão, e você, como parte dele, tem
que acompanhar”.

“Na prática do desapego emocional, aceite definitivamente que ninguém tem obrigação
de lhe fazer feliz. No entanto, para a sua própria felicidade, ofereça o seu melhor para a
alegria e a paz de todos. Ame sem condições; perdoe sem tributos”.

“Por sua vez, o desapego material lhe trará a leveza de compartilhar e carregar tão
somente o necessário. Lembre-se, ninguém precisa do supérfluo para viver. O essencial
não pesa e cabe por inteiro no coração. Ser é muito mais rico e divertido do que ter”.

“Na plenitude do desapego espiritual, entenda que tudo em você deve ser transformado.
Mesmo o que lhe agrada pode ser diferente e melhor. Para tanto, é indispensável
aprimorar as suas escolhas a todo instante. Aperfeiçoá-las é evoluir. As escolhas definem
quem somos e determinam o próximo trecho do Caminho, suas curvas, acompanhantes e
paisagens. Elas são o passaporte para a próxima estação, muitas vezes, ainda nesta
existência”.

“Por fim, enfrente os seus medos. Nada atrapalha mais as indispensáveis transformações.
A vida exige coragem para que possamos amar e seguir adiante. Amar de verdade não é
fácil e exige total superação das velhas formas. Amar não se destina aos fracos, e ser forte
é uma escolha, disponível para qualquer um, todos os dias”.
“Assim fechamos um velho ciclo para iniciar um novo, trazendo movimento, cor e beleza
à vida”.

A mulher arqueou os lábios em sorriso sincero. Algo alterara o seu ânimo. Perguntou ao
monge se todo ciclo é um carma e vice-versa. O Velho aquiesceu com a cabeça: “Sim,
pois carrega consigo as lições de sabedoria e amor que necessariamente devemos inserir
no viver. Isto traz a fantástica libertação da alma das sombrias prisões sem grades criadas
pelos condicionamentos sociais, pelas dívidas ancestrais e as desnecessidades sustentadas
pelo ego em suas ilusões de poder. Isto é iluminar-se, aos poucos, ciclo a ciclo, em
infinitas transformações rumo às Terras Altas”.

Vieram os pratos e a conversa versou sobre livros, filmes e outras amenidades. Ao final,
agradecemos e nos despedimos. A mulher deu um forte abraço no monge e disse, com
radiante sorriso, que aquela tarde seria angular em sua vida, pois agora sabia o que tinha
que fazer. O Velho a olhou com sua enorme doçura e disse: “Saber onde está a porta, não
significa exatamente atravessá-la. Todos sabemos mais do que fazemos; alinhar a teoria
com a prática requer determinação e paciência”.

No trajeto para o hotel comentei com o Velho que sempre poderia restar dúvida quanto à
porta certa a ser escolhida. O Velho me mirou com compaixão e disse: “Sempre haverá
bifurcações no Caminho para que as suas escolhas sejam exercidas e aperfeiçoadas. Elas
definirão entre permanecer aprisionado ao ciclo ou a libertação dele. De um lado, se abrirá
um enorme portão, o das paixões. Aquele que oferecerá os palanques do mundo, o incenso
dos elogios rasos, o perfume do luxo e as delícias dos aplausos fáceis. Do outro, estará
sempre a sua espera a portinhola do amor, sinalizando a montanha da vida, que para
atingir o cume exigirá a sua reinvenção absoluta, um pouquinho a cada dia. No final, não
haverá fortuna nem fama. Apenas a paz, um singelo tesouro, merecido ao andarilho que
ousou lapidar o ser com o buril das escolhas”. Calou-se por instantes, me ofereceu um
lindo sorriso e finalizou: “Toda vez que tiver dúvidas, escolha por amor, Yoskhaz. Ou
escolherá errado”.
EQUILÍBRIO IMPROVÁVEL

Eu caminhava pelas montanhas do Arizona ao lado de Canção Estrelada, o xamã que


possuía o dom de transmitir a sabedoria dos seus ancestrais através da palavra, cantada
ou não. Ele queria me mostrar o seu Lugar de Poder, como se denomina na mitologia
nativa o local onde cada qual se sente mais à vontade para se conectar com a inteligência
cósmica. “De todos os lugares do planeta é possível abrir um canal ou uma ponte; no
entanto, há locais, por motivos diversos, onde a ligação é mais intensa. O mar é um
santuário; a montanha, uma catedral; a sua casa, um templo. Seja pela quietude, pelo som
das estrelas, pela integração com a Mãe-Terra. Por alguma razão pessoal ou por ser um
lugar onde as pessoas vão há séculos rezar, como nas igrejas, ancorando a forte vibração
do universo, cada indivíduo deve encontrar o local onde sinta a força dessa conexão”,
explicou o xamã. Ao chegar ao Lugar de Poder de Canção Estrelada, um pequeno platô
bem próximo ao cume, não tinha como deixar de perceber uma árvore, presa pelas pontas
da raiz, resistindo bravamente na beira de um penhasco, de maneira elegante e
impensável, contra o vento, a chuva, o sol, a neve e a gravidade. Comentei que ela não
conseguiria aguentar muito tempo. O xamã sorriu e disse com seu rosto vincado por
dezenas de invernos: “Ela está nessa mesma condição desde que eu era menino e vinha
passear nesta montanha com o meu avô. Provavelmente continuará depois que eu realizar
a grande viagem”. Fez uma pequena pausa e continuou: “Uma raiz forte é indispensável
para enfrentar as tormentas que existem na vida. Não é diferente com ninguém”. De
pronto, perguntei o que era necessário para eu ter uma raiz tão poderosa capaz de me
manter inabalável às piores tempestades.

“As raízes de cada um são o conjunto de três coisas: saber exatamente quem você é e não
fugir ao combate do aperfeiçoamento pessoal”. Falei que faltava uma última coisa. Ele
olhou para a árvore-equilibrista antes de concluir: “A terceira parte da raiz consiste em
dominar a arte do equilíbrio improvável. Lembrar-me disto foi a função desta árvore por
toda a minha vida. Isto a torna sagrada para mim”.

Falei que não fazia a mínima ideia do que era o tal equilíbrio improvável. Ele não disse
palavra. Com toda a calma, abriu a sua manta no chão para que sentássemos, pediu que
eu recolhesse gravetos secos para uma pequena fogueira e acendeu o seu indefectível
cachimbo com fornilho de pedra vermelha. Depois cantou uma sentida e ritmada canção
acompanhada pelo seu tambor de duas faces, agradecendo ao Grande Mistério pela
oportunidade de estar ali e por todas as “mensagens, visões e sonhos” que seriam
concedidos. Quando abriu os olhos, falou: “O equilíbrio improvável é a capacidade
desenvolvida para não permitir que as dificuldades inerentes ao Caminho o tirem da rota
ou furtem a sua paz. Para isso, tem de saber lidar com as sutilezas da estrada, do tempo,
da paisagem e de outros viajantes. Estes são os ingredientes da magia. O caldeirão é o
próprio Caminho”.

Ansioso, falei que não tinha entendido. O xamã explicou com paciência: “O bom
andarilho tem na paz uma premissa inseparável. Faz da não-violência a sua força de
transformação. Ele sabe que somente na medida das modificações que realiza em si
próprio conseguirá alterar o mundo. Assim, não perde tempo e energia tentando
convencer ao outro sobre as suas razões, pois sabe que da mesma maneira que ainda não
está pronto para entender várias coisas, muitos não conseguem enxergar aquilo que ele já
pode ver. Apenas espelha em suas atitudes serenas a sabedoria que lhe habita. Ele sabe
que se o argumento convence, o exemplo tem o poder de contagiar corações”.

Argumentei que a explicação estava muito vaga. O xamã anuiu com a cabeça e falou: “A
vida contém sutilezas cujas linhas que separam as sombras da luz podem parecer tênues,
embora não sejam. O sutil, por definição, muitas vezes passa por nós sem o notarmos.
Daí, a necessidade de afinarmos cada vez mais a nossa percepção. No entanto, há
situações mais corriqueiras que permitem um entendimento mais fácil”. E me mostrou
alguns momentos em que, não raro, perdemos o equilíbrio.

“O grande conflito entre o legal e o justo, entre legalidade e legitimidade, é um bom


exemplo. Sabemos que as leis são as linhas divisórias entre a civilização e a barbárie. Em
nosso atual estágio de evolução é impossível a vida em sociedade sem um conjunto de
regras que estabeleçam direitos e deveres, o que é muito bom, pois traz tranquilidade e
segurança social. No entanto, assim como tudo no universo, a nossa consciência está em
constante mutação e existe a necessidade de que as leis acompanhem essa evolução, o
que nem sempre acontece na velocidade desejada. Por outro lado, sempre é possível fazer
mau uso de uma coisa boa: há regras estabelecidas com base no falso moralismo ou para
defender interesses escusos, prejudicando setores ou mesmo a grande maioria de um
povo. Não podemos esquecer que a escravidão e a segregação racial ou de gênero, apenas
para citar algumas possibilidades, foram praticadas no vigor de odiosas legislações”.

“Há que se ter atenção para que a lei não seja usada indevidamente para alimentar
preconceitos, vinganças ou sustentar atrasos. O primeiro passo é perceber quando a
fronteira entre a luz e as sombras foi ultrapassada, quando uma coisa boa é deturpada para
ser usada para fins inescrupulosos, quando se usa um instrumento legal para dar vazão a
manifestações de ódio e intolerância. Quando a inflexibilidade do moralismo destrói a
beleza da moral. Manter-se justo e pacífico quando a lei caminha em sentido contrário à
justiça é um importante equilíbrio improvável”.

“Ter o cuidado para não se deixar contaminar pelas enormes sombras coletivas que se
formam em alguns momentos, no desejo por punições severas e por encontrar culpados
para arcar com as insatisfações particulares que se pulverizam no conjunto social de
maneira difusa e confusa, faz toda a diferença. Nessas horas é preciso se posicionar como
um farol a iluminar a noite escura. Sem a pretensão de ser o dono da verdade e sempre
abdicando por completo de qualquer forma de violência. O equilíbrio improvável se faz
necessário para agir de maneira contrária à turba cega que, na ilusão de afastar a sombra,
termina por alimentar as trevas, sedenta pelo apedrejamento moral de um indivíduo
qualquer. O andarilho percebe o movimento coletivo contrário à luz e sabe que, nesse
momento, a vingança se disfarça com as vestes da justiça para punir sem a indispensável
dose de amor que uma decisão verdadeiramente justa traz em seu bojo. Então, nega-se
em seguir as vozes do mundo, por contrárias ao que lhe diz o silêncio do seu coração e se
posiciona com atitudes, ao mesmo tempo, firmes e serenas, em total acordo com as ideias
arejadas que conduzem pelas trilhas da tolerância, união, compaixão, harmonia e
bondade, a se manter no lado ensolarado da estrada. O equilíbrio improvável exige
gentileza; gentileza exige coragem”.

Canção Estrelada deu uma baforada no cachimbo e começou a abordar outra situação:
“Igualmente sutil é o momento de decidir entre o individual e o coletivo. Claro que o todo
é mais importante que a parte, porém o pedaço, quando incompleto, compromete a
integridade”. O xamã continuou: “O equilíbrio improvável se apresenta toda vez que
priorizamos o pessoal em detrimento do coletivo, em desacordo com o correto princípio
geral. Entender que existem limites de interferência da sociedade sobre o indivíduo é
importante para estabelecer condições indispensáveis que resguardem a ampla liberdade
pessoal, sem nunca esquecer as respectivas responsabilidades. Um povo pode muito, mas
não pode tudo”, deu uma pausa, ficou olhando para a árvore-equilibrista e seguiu: “Vejo
outra sutileza derivada desta questão. Ela reside em perceber que o exercício do melhor
direito exclui qualquer privilégio. Os ventos que impulsionam o avanço da humanidade
mostram que todo privilégio é contrário ao bom direito. Privilégios nada mais são do que
resquícios dos sentimentos ancestrais de dominação, desigualdade e separatividade, ainda
presentes. Se você sustenta um privilégio é porque ainda não tem a justiça dentro de si”.

“Outro equilíbrio improvável, ainda mais crítico, pois é de ordem interna, aborda a
delicada questão do egoísmo. Qual o momento em que deixo de cuidar de mim para cuidar
do outro? E se eu não estiver bem para cuidar de alguém? Até que ponto devo ajudar para
não enfraquecer o outro? São perguntas que não calam”. Ele me mirou nos olhos por
instantes e continuou: “É fundamental estabelecer, de maneira clara, o limite do outro
sobre a sua vida, para que não existam abusos ou excessos, sem, no entanto, esquecer que
é impossível manter a alma em paz sem amparar a quem clama por ajuda. Eis outro
equilíbrio improvável. A eterna harmonia em cuidar de si sem esquecer do outro. Aceitar
que só se pode dar o que já integra o ser e perceber que na matemática da vida apenas
multiplicamos o que sabemos dividir, são os dois lados de uma mesma moeda e o
entendimento de um dos mais preciosos ensinamentos do Caminho”.

Canção Estrelada me ofereceu um belo sorriso e finalizou: “Fazer pelo outro o que eu
gostaria que ele fizesse por mim, caso as posições estivessem invertidas, é a resposta
sagrada, a lição maior e, portanto, a mais difícil de executar. O equilíbrio improvável
entre a fina sabedoria de entender a situação, com todas as sutilezas, e a disposição
amorosa em compartilhar o seu melhor, sem qualquer medo, é a sua grande obra de arte
no maravilhoso show da vida”.
LEI DA RENOVAÇÃO

“É necessário, de tempos em tempos, esvaziar as gavetas do coração”, me disse o Velho,


como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo do mosteiro. Ele tinha me
convidado para um passeio pela floresta, localizada nos arredores, ao perceber a minha
inquietação e irritabilidade com os demais monges e discípulos da Ordem. Uma nova
situação familiar tinha trazido à tona lembranças desagradáveis que alteraram o meu
humor no trato para com todos e a minha paz para comigo mesmo. Reclamei bastante da
maneira como algumas pessoas tinham me magoado no passado. Ele me olhou com sua
enorme compaixão e disse: “O ressentimento cria uma verdadeira algema energética que
te mantém atado ao ofensor em uma terrível prisão sem grades. A mágoa entope de sujeira
o seu armário sagrado, o coração. A raiva envenena as águas que abastecem a fonte da
vida, o amor”. Deu uma pequena pausa e concluiu: “É impossível ser feliz sem perdoar”.

Argumentei que eu já tinha perdoado, porém me negava a esquecer para não permitir que
me magoassem de novo. O Velho riu com vontade quando falei isso, o que me trouxe
ainda mais irritação. Depois, olhou como se mirasse uma criança e me instigou: “Você
não conhece o perdão”. Falei que ele estava enganado, pois eu não desejava nenhum mal
àqueles que me ofenderam e, assim, eu decretara o perdão. O Velho balançou a cabeça
em negação e disse: “Não, Yoskhaz. Não desejar o mal é o primeiro degrau até o perdão;
depois limpamos os escaninhos da alma até esquecermos a ofensa; por fim, desejamos o
bem do agressor. Este é o percurso até o perdão”.

Ri com sarcasmo. Falei que ele colocava as coisas em níveis utópicos ou dificílimos. A
voz do monge teve um tom misericordioso em resposta: “Não disse que era fácil. Falei o
que é necessário. Amar apenas os que nos amam, os embrutecidos também conseguem.
É preciso mais”. Fez uma pequena pausa e prosseguiu: “Atravessar o Caminho não é para
fracos; aparar as arestas do ser não é para os acomodados; conhecer a si próprio é para os
sábios; realizar as transformações necessárias para a indispensável cura da alma não é
para os mimados; iluminar as próprias sombras é batalha destinada aos grandes
guerreiros; conhecer verdadeiramente o amor é destinado apenas aos fortes”. Deu uma
longa pausa, seu olhar pareceu distante como se recordasse de algo e falou: “Ser forte é
uma escolha que fazemos todos os dias e está à disposição de todos e de qualquer um”.

Esbravejei que ele não sabia o que falava, pois eu não tinha sido apenas agredido, mas
também humilhado. O Velho abriu os braços como quem diz que eu não sabia o que
falava. Depois explicou com paciência: “Ser humilhado é uma permissão que você
concede indevidamente ao agressor pelo simples fato de ainda não dominar a virtude da
humildade em todo o seu infinito poder. Só o orgulhoso pode ser humilhado. Só o
arrogante pode ser humilhado. Apenas o vaidoso pode ser atingido por esse mal. O
antídoto para tal veneno é a humildade. Ser humilde é aceitar ser o menor de todos para
perceber as próprias dificuldades e, assim, entender a escuridão do mundo e,
consequentemente, do ofensor. A violência, física ou verbal, é o perfeito retrato das
sombras que dominam o coração do agressor. Na verdade, o perfeito olhar mostra o
violento se humilhando diante do Universo em pedido velado de ajuda. A ofensa é a
máscara dos desesperados, dos perdidos nas sombras da existência. Toda pessoa agressiva
é profundamente infeliz. A agonia é tão grande que se faz necessário extravasar. Ele
acredita que pode transferir a sua tristeza, sem perceber que a escuridão não tem o poder
de apagar a luz”.
“A violência é a linguagem incompreendida dos que sofrem”.

“Então, é hora de oferecer a outra face em digna interpretação e exercício das palavras
do Mestre, olhando o ofensor pelo prisma da compaixão, pois ele é apenas um sofredor
que, no fundo, não entende o que se passa consigo. Só assim, nos aceitando como
pequenos, nos tornamos grandes, imunizando o vírus da humilhação. Não à toa, a
humildade é o primeiro portal do Caminho, a impedir que nada ou ninguém lhe furte a
preciosa paz”.

“Permitir que a ofensa o atinja, magoe e humilhe é aceitar o convite para dançar no baile
dos horrores que domina a alma do agressor. Encare-o com os olhos da compaixão e
perceba que suas palavras e atos apenas espelham o desequilíbrio que o faz ser violento
e injusto contigo. Já pensou o quanto de dor corrói o coração da pessoa que necessita da
violência nos seus relacionamentos? O quão sombrio é a mente dos brutos? Quantas
tormentas levam a nave da existência desse indivíduo a sucessivos naufrágios nas
tempestades da dor? Eles estão afogados nos mares da ignorância, do medo e das próprias
trevas, a clamar de estranha maneira pelas boias da gentileza, pelo socorro da
misericórdia, a beleza da compreensão, a grandeza da bondade e o bálsamo da paciência.
A violência é incompatível com a felicidade. A escolha desse olhar sofisticado é a
diferença entre os andarilhos do Caminho e aqueles que ainda vagueiam perdidos nas
estradas vicinais da vida”.

“Entre as leis que compõem o Código Não Escrito, que regula a jornada de todos pelo
Universo, existe a Lei do Amor, dos Ciclos, da Ação e Reação, da Afinidade, da
Evolução, das Infinitas Possibilidades, entre outras. Lá encontramos também a Lei da
Renovação. Para iniciar um novo ciclo, ainda nesta existência, o andarilho tem que
preparar a sua bagagem. Não se esqueça de que leveza é indispensável para atravessar o
Caminho. Assim, temos que deixar para trás tudo aquilo que não nos serve mais, que se
faz desnecessário ou pesa demais. Acúmulos materiais excessivos, lixos emocionais,
mágoas, preconceitos, condicionamentos sociais e culturais, ideias obsoletas, atitudes
ultrapassadas, reações automatizadas, ou seja, todas as velhas formas, devem ser
transmutadas. Para tanto, lembre-se de abrir todas as gavetas do coração e iluminar os
seus cantos mais profundos em busca das sombras escondidas que insistem em nos
enganar sobre as absurdas vantagens do revanchismo ou da ilusão de proteção. É
indispensável limpar com uma vassoura de luz todo e qualquer resquício de
ressentimento, a poeira do ódio e as manchas da raiva”.

“A renovação é o justo passo anterior à transformação que alavanca a evolução; é amor e


sabedoria em perfeita comunhão; é a alquimia de transformar chumbo em ouro dentro de
si; é a metamorfose para as asas que te levarão além das fronteiras da dor e do
sofrimento”.

Ainda inconformado, questionei sobre aqueles que me feriram. Falei que eles não
poderiam ficar impunes, como se não tivessem me feito mal nenhum. Os olhos do Velho
ficaram mareados. Talvez por entender a minha dor, talvez por conhecer a alma humana.
Ou por ambas as coisas. Ele me falou com bondade: “Não se preocupe com as lições que
cabem aos outros. A cada qual os ensinamentos que lhe são pertinentes, no tempo
oportuno, com a doçura ou o rigor adequado ao empenho do aluno. A você cabe se aplicar
às próprias lições, oferecer o seu melhor a cada dia, por onde passar. E amanhã um pouco
mais, em razão da consciência sempre em expansão. Ninguém, absolutamente ninguém,
ficará além do alcance das Leis Não Escritas. O Universo não abdicará de nenhuma alma,
pois todas têm igual importância, sem privilégios ou esquecimentos. Lembre-se apenas
de todas as dificuldades e problemas que você já enfrentou no passado e como eles te
ajudaram a se transformar e a evoluir através de seus valiosos ensinamentos. Agradeça
por todas as dores e alegrias”.

Argumentei que poderia haver, ao menos, um pedido de desculpas por parte do agressor.
Ficaria mais fácil de perdoar. O Velho arqueou os lábios em sorriso e disse: “Sem dúvida
que ficaria mais fácil, por isto o perdão ganha ainda mais força e poder quando é ato
unilateral. O perdão é a farmácia do sofrimento, e você não precisa esperar pela permissão
do outro para se curar. Ninguém pode depender de ninguém para ser feliz, para seguir a
sua jornada, para voar. A capacidade de perdoar define a exata grandeza de uma alma.
Perdoamos independentemente do que os outros pensam. Perdoamos para libertar, a nós
e aos outros”.

Eu disse que ele tinha razão e que de alguma maneira a minha alma já clamava por essa
renovação. A mágoa pesa, o ressentimento cansa. Então, chorei muito. De soluçar. O
Velho aguardou pacientemente que as lágrimas lavassem a minha alma. Depois em
catarse, fui falando todas as situações do passado que me incomodavam, exorcizando-as
do meu coração. Falei de como era boa a sensação de faxinar a alma, de zerar a conta
para seguir com leveza. O Velho me alertou: “Você viu a porta, falta atravessá-la. Essas
emoções densas estavam no comando, e você retomou o poder que havia concedido a
elas. Agora terá que transmutá-las, em incessante trabalho de refinamento do pensar e do
sentir, para que elas, sempre sorrateiras, não voltem. Para tanto, precisa exercitar a magia
da renovação, todos os dias, para sempre”. Balancei a cabeça em concordância e disse
que me sentia bem por não precisar mais carregar nas costas a pesada mochila do
sofrimento. Agora eu percebia a razão da sua completa inutilidade. Disse que entregaria
à Inteligência Cósmica a aplicação da devida justiça. Ele me explicou: “Tenha
desprendimento por qualquer sentimento de vingança ou não terá se libertado de verdade.
Não acontecerá qualquer situação rasa de revanche. Justiça não é punição, é tão somente
a educação para que todos possam aprender, se transformar, compartilhar e seguir. Este é
o processo evolutivo. Se alguns precisam de lições mais severas para aprender, é apenas
porque o Universo não desistirá de nenhum de nós, qualquer que seja o estágio evolutivo.
Por puro amor”.
DANÇANDO COM A SAUDADE

Conheci Loureiro, o sábio sapateiro, há muitos e muitos anos, em um cemitério.


Eu acabara de ingressar na Ordem e fui designado para acompanhar o Velho, como
carinhosamente chamávamos o monge mais antigo do mosteiro, no velório de um grande
amigo dele que havia partido. Conseguimos uma carona, e na sinuosa estrada que desce
a montanha em sentido à pequena e charmosa cidade localizada no sopé, o monge veio
assoviando uma alegre canção. Ele parecia feliz. Estranhei, mas calei. No velório, a capela
se fazia pequena para tanta gente; a viúva estava debruçada sobre o caixão, aos prantos e
inconsolável. Lamentava profundamente a perda. A quem ia lhe dar os pêsames,
perguntava como faria ao entrar em casa e não mais encontrar o falecido. Dizia que não
teria forças para esvaziar o armário ou dormir no quarto do casal. Alguns lhe desejavam
coragem, outros a aconselhavam a ter fé. Achei o ambiente apropriadamente dramático
para um enterro e relaxei. Salvo pelo Velho, que, com constante sorriso no rosto, falava
com todos de maneira discreta, porém descontraída. Era o único que me parecia à vontade
em estar ali. Acomodei-me em um canto e fiquei a observar, até que chegou o irmão do
defunto. Era Loureiro, o elegante sapateiro, amante dos livros e dos vinhos. Seu rosto
parecia o de um ator italiano e tinha o porte de um bailarino espanhol. Naquela época
seus cabelos ainda estavam grisalhos, vestia uma calça cáqui de fina alfaiataria e uma
bonita camisa imaculadamente branca, contrastando com as cores escuras do ambiente.
Tal e qual o Velho, também sorria e cheguei a desconfiar que estava feliz. Cumprimentou
a todos com discrição, mas sem alterar o belo sorriso que lhe coloria o rosto, o que gerou
muitos olhares de reprovação. Ao se dirigir à viúva, teve o abraço rejeitado. Sem se sentir
ofendido, o sapateiro tirou uma pequena gaita do bolso da calça e pediu educadamente a
permissão para tocar uma canção. Em singela homenagem, tocaria a música que o irmão
mais gostava de ouvir. Uma velha canção irlandesa, de ritmo alegre, cujos versos falavam
sobre a beleza de viver. Em cólera, a viúva o acusou de estar tripudiando sobre a morte
do marido em atitude de total desrespeito, fosse pelas cores claras da roupa, fosse pelo
jeito jovial. Ouvi alguns breves comentários em apoio a mulher.

Loureiro escutou a tudo sem dizer palavra. Quando ela se calou, ele disse: “Amo o meu
irmão. Fomos os melhores amigos, desde sempre. O que você encara como o fim de uma
história vejo como o início de uma longa viagem para terras distantes, onde ele poderá
viver dias ainda melhores, a colher perfumadas flores, pois, nesta existência semeou amor
por onde passou. Esta capela nada mais é do que a plataforma da estação. Respeito, mas
não vejo motivo para tristeza. Quero comemorar o belo homem que foi, o grande espírito
que se tornou, celebrar a minha saudade com alegria e dar-lhe um ‘até breve’”. Loureiro
foi interrompido pelos gritos de censura da viúva e se formou uma pequena confusão. O
Velho rapidamente passou o braço sobre os ombros do sapateiro, fez um sinal com a
cabeça para mim e saímos dali.

Fomos para uma taberna não muito distante. Loureiro pediu o vinho predileto do irmão e
brindamos. Ou seja, eles brindaram, pois me recusei. Entre assustado e contrariado,
condenei a postura do monge e do sapateiro. Falei que eles não tiveram consideração e
respeito para com a viúva, tampouco com o morto. O Velho arqueou os lábios em leve
sorriso, me olhou como quem mira uma criança e perguntou ao artesão: “Você explica?”
O sapateiro assentiu com a cabeça, apontou o dedo para mim e disse: “Você vai morrer”.

Aquela afirmação me trouxe mal-estar e, em face da estranheza de toda aquela situação,


nada respondi. Loureiro não se importou e prosseguiu: “A sua expressão facial é de quem
está sendo amaldiçoado neste instante”. O meu silêncio dizia que era exatamente assim
que me sentia naquele momento, embora soubesse que ele falava o óbvio. Sim, eu iria
morrer, apenas não sabia quando nem como. No entanto, me incomodava pensar sobre
este assunto. Ele continuou: “Por que se relacionar tão mal com a única certeza que você
tem na vida? Já que a morte é uma certeza na vida de todos, por qual motivo a tememos
ao invés de torná-la uma poderosa aliada? A maneira como iluminamos os nossos medos
define os sofrimentos e as alegrias do Caminho”.

Argumentei que a morte era o fim da existência. O sapateiro assentiu com a cabeça e
disse: “Sim, mas não significa o fim da vida, que segue em viagem fantástica e infinita
rumo à luz. A morte marca o fim de um ciclo e, invariavelmente, o início de outro. A
morte é apenas o fim do corpo físico, roupagem provisória a abrigar o espírito, este sim,
ser eterno e quem você realmente é. Nascemos e morremos muitas vezes em repetidos
ciclos de lições e evolução, até que esse processo de aprendizado não seja mais necessário
e possamos migrar definitivamente para outras terras, onde reinam níveis de sabedoria e
amor mais ampliados, nos quais já estejamos em condições de habitar. Não tenha dúvida
de que já trilhamos esferas mais densas e seguimos para outras mais sutis. O fim de uma
história será sempre o início de outra”.

Falei que, independente disso, deveríamos respeitar o sofrimento daqueles que sofreram
com a perda de um ente querido. Loureiro abriu os braços como quem diz que eu não
estava entendendo nada e falou: “Perda? Que perda? Até quando insistiremos nesse olhar
trágico quando na realidade não existe nenhum drama? O corpo, como tudo neste planeta,
tem prazo de validade, um tempo finito para que possamos fechar um período da jornada,
avaliar as conquistas morais alcançadas, a expansão de consciência, a ampliação da
capacidade de amar e as batalhas vencidas sobre as sombras que nos habitam. A partir
desses pontos podemos traçar novos voos ou refazer o que, porventura, falhamos.
Voltaremos quantas vezes forem necessárias, em demonstração de infinita paciência e
amor daqueles que nos ensinam e pela enorme sabedoria das Leis Não Escritas. Até
estarmos prontos. Assim caminhamos”. Fez uma pequena pausa e concluiu: “Nunca
haverá perda, apenas transformação”.

Discursei sobre a saudade que a morte de alguém deixa, como um punhal a ferir fundo e
dolorosamente. O sapateiro balançou a cabeça, riu e falou: “Saudade, incompreendida
saudade”. Ficou em silêncio por breves instantes, como se lembrasse de alguma
recordação e seguiu: “A saudade é um privilégio dos que amam. Só os que amam sentem
saudades; só o que foi bom deixa saudade. E por isto a saudade deve ser comemorada
com muita alegria”. Observou a minha reação por instantes e seguiu: “Não faz sentido
lembrar com tristeza de quem só lhe trouxe felicidade e amor. Entender a viagem é aceitar
com alegria as muitas partidas e as novas chegadas. Negar a lição é chamar para si a dor
e o sofrimento, é não perceber as bênçãos da saudade”.

Bênçãos da saudade? A saudade é uma coisa boa? Falei que não entendia. Ele foi claro:
“A saudade é maravilhosa, pois é a memória dos melhores momentos da vida de cada um
de nós. A saudade vai escrever as melhores páginas do livro da sua vida. Só sente saudade
quem amou e foi feliz. A alternativa para a saudade é a escuridão do vazio de quem não
conheceu o amor, se escondeu da vida ou não conseguiu iluminar o coração”. Levantou
a taça e brindou com o Velho: “A saudade é um presente para quem amou demais. Salve
todas as minhas saudades!” O monge retribuiu: “Bem-aventurados os que sentem
saudade, pois estes conhecem o amor e a felicidade!”
Argumentei que entendia perfeitamente o sofrimento da viúva por não ter mais ao seu
lado o parceiro de tantos anos. Os olhos do bom sapateiro ficaram mareados, e ele
perguntou com uma ponta de emoção: “Sabe a origem da palavra companheiro?”
Respondi que não. A resposta veio logo: “Significa aqueles que ‘comem do mesmo pão’”.
Pausou por segundos e prosseguiu: “Amo profundamente o meu irmão. Fomos e somos
grandes companheiros, pois a mudança de esferas não corta os laços imperecíveis do
amor. Apenas temos que aprender a ter paciência até a hora do próximo reencontro. A
Lei da Afinidade é inexorável e nos unirá infinitas vezes”.

“O meu irmão enfrentou durante anos um carcinoma e suas metástases agressivas. As


dores físicas e o desconforto da quimioterapia foram enormes. Ele enfrentou tudo com
muita dignidade e coragem, sem qualquer lamentação. Um pouco antes de partir, me
confessou que a doença tinha lhe trazido valiosas lições por fazê-lo entender alguns
valores cuja importância ainda desconhecia. Disse-me com um sorriso sincero no rosto
que a doença refinou a sua percepção sobre todas as coisas. Ele sempre foi um homem
alegre; no entanto, não me recordo de vê-lo tão feliz como naquele dia. A sua
compreensão sobre as leis se fez enorme, e isto transformou todo e qualquer sofrimento
em pó de estrelas. Então, a morte lhe foi generosa e em ato de amor curou-lhe das dores
corporais e libertou o espírito para voar muito além da densa matéria e viver outras
histórias”.

Questionei como seria caso a morte fosse súbita por acidente ou enfarto fulminante, por
exemplo, sem tempo para despedidas. O artesão me respondeu de pronto: “Nada seria
diferente, fora a surpresa da visita repentina. Fazer da morte uma aliada é entender que
todo e qualquer dia é bom para morrer. Aceitar que a morte é uma ferramenta da
Inteligência Cósmica em nosso processo de evolução é sentir todo o amor que transborda
no universo. A morte significa ou que terá chegado a hora de novos aprendizados ou que
é o momento para urgentes ajustes de rota. Perceber que ‘tudo que acontece em nossas
vidas é para o nosso bem’, afasta o drama e amplia a consciência no sentido de absorver
a lição da vez”. Olhou-me profundamente e disse: “Por mais estranho que possa parecer,
o sofrimento pela morte de alguém não revela amor. Ao contrário, demonstra apenas um
profundo egoísmo. Afinal, o verdadeiro amor é um sentimento generoso e compreensivo,
capaz de entender que o momento e as necessidades do outro são diferentes das suas. O
puro amor é um ato de profunda sabedoria. Apenas sentimentos mesquinhos desejam o
aprisionamento de alguém ao nosso lado, a qualquer custo, sob qualquer dor. Viver exige
leveza, a felicidade clama por desapego, e o amor precisa de liberdade”.

Falei que todo aquele discurso era bonito e sensato, porém condicionamentos culturais
me amarravam a antigos conceitos de pensar e agir. Desta vez, foi o Velho quem falou:
“Sim, Yoskhaz. Libertar-se das velhas formas é transmutar sombra em luz, é abandonar
o cárcere sem grades da consciência aprisionada. É preciso ir além da realidade estática,
pois a sabedoria é dinâmica. Se a lagarta negar o casulo por se enganar quanto à
metamorfose, não conhecerá o poder das próprias asas”. Olhou-me com bondade,
arqueou os lábios em leve sorriso e finalizou com doçura: “A morte é importante aliada
em nosso processo de cura espiritual, pois ela traz em si duas das poderosas Leis Não
Escritas: A Lei da Renovação e a Lei das Infinitas Oportunidades. Assim, a morte é um
instrumento do mais puro amor na Grande Sinfonia do Universo e a saudade uma das
suas mais belas músicas. Aproveite e dance com ela!”
Loureiro aproveitou a deixa, tirou a gaita do bolso e tocou a alegre canção celta de que
seu irmão tanto gostava. Aos poucos, as pessoas que estavam na taberna começaram a
acompanhar a cantiga com palmas. “Tenho certeza que neste momento, meu irmão canta
conosco. Ele me amava e, portanto, está feliz em me ver feliz”, comentou Loureiro. O
Velho balançou a cabeça em concordância.

Pedi uma taça de vinho e brindei a saudade, o amor e a vida sem fim.
SER LIVRE É SIMPLESMENTE SER

O Velho, como carinhosamente chamávamos o decano da Ordem, era sempre convidado


a dar palestras em universidades e colégios mundo afora. Em geral, essas instituições se
situam em grandes metrópoles, onde ficávamos hospedados por dois ou três dias. Nessa
época, já acostumado ao silêncio do mosteiro, houve um período que, confesso, logo me
sentia incomodado com a mudança de ambiente, ao contrário do monge, em que possuía
uma fantástica capacidade de adaptação. Ele flanava pelas largas avenidas admirando o
movimento das lojas, a correria das pessoas ou mesmo o barulho urbano com a mesma
leveza e encantamento com que trilhava a montanha, em silêncio, observando as flores
silvestres e colhendo cogumelos para as sopas de que tanto gostava. Quando me via
irritado com toda aquela zoeira e pressa, ele me lembrava: “A paz habita em ti. Não
conceda a permissão para que nada nem ninguém a abale”. Depois arqueava os lábios em
breve sorriso e dizia: “Esse poder é seu, aprenda a usá-lo”.

Certa vez, comentei sobre a minha dificuldade em estar em ambiente tão diferente daquele
em que me sentia acolhido. O monge rebateu de imediato: “Nem sempre é possível
estarmos cercados por todas as condições externas ideais de conforto e satisfação. A
lamentação em nada ajuda a superação das dificuldades. Ao contrário, apenas adia o
entendimento e o movimento necessários à construção da paz e a semeadura da alegria,
fundamentais ao nosso equilíbrio. O melhor lugar do mundo é aqui e agora. Qualquer
local é bom para a alma sincera que deseja mergulhar fundo nos mares revoltos do próprio
aprimoramento, em conexão sagrada, para ficar diante de si mesmo e se banhar nas águas
plácidas da plenitude. O bom jardineiro acredita que qualquer cantinho é perfeito para se
plantar flores e se adequa à formação de um belo jardim”.

Acabei por confessar uma dificuldade ainda maior: conviver com pessoas muito
diferentes de mim. O Velho sorriu e disse: “Estar ao lado daqueles que pensam e agem
de acordo com os nossos gostos e opiniões é muito fácil. Embora seja agradável e deva
ser aproveitado, não há qualquer mérito nisso. Somente as dificuldades dos
relacionamentos oferecem o exercício indispensável ao crescimento pessoal. As
diferenças são enriquecedoras porque a busca pelo equilíbrio te induz a importantes
transformações. A vida acontece durante os encontros, o amor se manifesta apenas no
convívio social. Do mesmo modo, todo o conhecimento do eremita acaba por inútil
quando ele se nega a sair da caverna. Sabedoria e amor, por definição, precisam ser
vividos e repartidos para virar luz ou se perderão na escuridão do abandono”.

Deu uma pequena pausa e seguiu: “Quem espera que todas as situações aparentes estejam
propícias para iniciar a viagem perderá valioso tempo sentado na beira da estrada à espera
deste momento, pois não acontecerá. O anseio íntimo é que te moverá aos primeiros
passos. Basta apenas entender que as condições externas sempre estarão de acordo com
a sua necessidade e capacidade de aprendizado naquele momento. Nem mais nem menos.
As condições internas, por sua vez, serão criadas por você mesmo”.

“A adaptabilidade e a simplicidade são valiosas virtudes, indispensáveis ao andarilho. A


adaptabilidade ensina que todo momento é perfeito, pois traz as lições que lhe permitirão
aperfeiçoar as suas habilidades. Lembre, também, de não exigir a perfeição alheia por
saber que você ainda não possui tal perfeição para oferecer. Isto lhe ajudará a manter o
equilíbrio e a serenidade durante as tempestades. A simplicidade, por sua vez, lhe dará o
entendimento de que nos tornamos cada vez mais à medida que precisamos de cada vez
menos. Esta é a chave que abre a prisão”.

Falei que ainda tinha dúvidas e até brinquei dizendo que a simplicidade não era simples.
O Velho seguiu na explicação: “Os condicionamentos sociais e culturais que atuam sobre
todos, desde o berço, são poderosas prisões que nos encarceram de maneira cruel, que,
por não terem grades, não nos deixam perceber presos. Assim, nos desviam do
compromisso com a liberdade ao adiar o inevitável encontro consigo mesmo e as
consequentes transformações”. Pedi que ele fosse mais claro, pois cada vez entendia
menos. O monge sorriu e prosseguiu: “Em algum momento da vida, todos sentimos fome
de luz. É a alma desesperada no vazio da existência. Transferimos o encontro mais
importante da vida, aquele que teremos conosco, iludidos pelas sombras que nos
convence a priorizar o sucesso profissional, a estabilidade financeira ou qualquer outra
desculpa alimentada pelos desejos do ego. Custamos a entender que uma coisa não
elimina a outra. O maior dos enganos é não perceber que o bom combate é travado dentro
de si. Ou seja, que a busca por iluminação é concomitante com as tarefas e lutas do dia a
dia, as brigas e os amores do cotidiano. A vida acontece entre o escritório e a cozinha,
tanto no ônibus quanto na praia, na fila do banco ou engarrafado no trânsito, desde a
reunião com o cliente para fechar um grande contrato até pegar o filho na escola e levá-
lo para treinar futebol ou natação. Este é o tempo disponível, o momento perfeito para
transformar decepções em entendimento e ser livre. Não há outro. Na verdade, cedo ou
tarde, em algum momento você terá que estar consigo mesmo. Este é o encontro que
mudará a sua vida. Para isto a hora é agora, o lugar é aqui”.

“E para tanto, do que você precisa? Absolutamente nada, salvo um coração puro e uma
mente desperta. Cada vez mais entendemos que as coisas realmente importantes têm a
grife do coração, não sendo encontradas nas prateleiras das lojas; a alma anseia por um
mergulho bem mais profundo do que a piscina no quintal da casa poderá oferecer; o mais
sofisticado dos automóveis não terá potência para levar às inimagináveis Terras Altas,
onde só chega quem é capaz de usar as próprias asas; o melhor e mais moderno design é
ser simplesmente você, pois o que nunca saiu de moda é ser autêntico, único; é ser gente
de verdade”.

Eu quis saber o que era ser gente de verdade. O Velho franziu as sobrancelhas como se
falasse com um garoto: “É estar sempre disposto a se despir das velhas formas; abdicar
dos gestos automáticos de autodefesa; usar a própria vida como matéria-prima para a
grande obra de arte que lhe cabe fazer; trocar as cores sombrias dos sofrimentos pelas
tintas vibrantes do perdão; oferecer compreensão da luz quando todos clamam pela
sentença que condena à escuridão; mostrar que a coragem é possível quando aqueles a
sua volta só conhecem o medo; entender que o milagre da vida acontece na simplicidade
dos pequenos grandes gestos, aqueles em que colocamos o próprio coração para curar a
dor do outro”.

“Entender que para ser feliz é indispensável perdoar sem tributos e amar sem condições;
que aquela pessoa com quem você vive às turras é quem irá despertar o melhor que ainda
adormece em sua alma; que o seu maior inimigo não está nas ruas, mas se movimenta
sorrateiro nos porões ainda escuros da sua alma à espera de luz. É perceber que esta é a
grande batalha da vida”.
“A verdadeira vitória reside na sedimentação de bons valores morais despidos de qualquer
moralismo; na eterna alegria do encontro; na generosidade em ser uma árvore frondosa
com doces frutos; em pronunciar a palavra que selará a paz; em semear um sorriso em
rosto alheio; em sempre oferecer o seu melhor; em se permitir que cada escolha seja
orientada por puro amor”. O Velho deu uma pequena pausa e disse: “Percebe que nada
disso você pode comprar para colocar na sua bagagem?”

“A ironia é que vendem a ilusão da sofisticação como algo elaborado por poucos e
complexo para muitos. No entanto, a elegância consiste em ser mais com menos. Isto está
ao alcance de todos e de qualquer um, na simples escolha pela incomensurável beleza de
ser simples”.

Mirou no fundo dos meus olhos e finalizou: “Tudo que é valioso não tem peso. Ser leve
é ser livre; ser livre é simplesmente ser”.
ARMADILHA CONTRA A PAZ

“Todas as vezes que você pensa, fala ou age movido pelas paixões densas e pesadas,
alimentará o poder das sombras. Dentro e fora de você”, falou o Velho, como
carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem. Em seguida, concluiu: “Por
mais absurdo que possa parecer, acredite, ninguém lhe prejudica mais do que você a si
mesmo. Isto serve para todos”.

Estávamos sentados no refeitório do mosteiro, apenas os dois, apreciando o saboroso chá


que o Velho preparava com uma mistura de ervas que colhia na floresta do arredor,
enquanto admirávamos o pôr do sol por entre as montanhas. Ele tinha me chamado para
conversar por perceber a minha alteração de comportamento após um aborrecido
telefonema. O monge me ofereceu uma xícara acompanhada de uma pergunta: “Qual é o
único preceito do Código de Ética da Ordem?” Como me calei, ele mesmo respondeu:
“Nunca alimentar as sombras”. Deu uma pequena pausa para que eu fosse, aos poucos,
alinhando a ideia e prosseguiu: “ Simples, não? Afinal somos todos do bem e, a princípio,
não queremos compromisso com o mal”. O monge esperou eu concordar antes de corrigir:
“Errado, não é nada fácil. Temos uma enorme dificuldade em identificar as próprias
sombras e tudo que as estimula, dentro e fora de nós”. Tornou a calar por instantes e disse:
“O grande truque das sombras são seus mil disfarces, a ponto de você pensar que elas não
se escondem em suas entranhas”.

De imediato, fiz a óbvia pergunta de como identificar as sombras. Ele arqueou as


sobrancelhas como sempre fazia quando queria me pedir para ir com calma e falou:
“Aceitar a existência das sombras que existem em nós é o primeiro passo para não
permitir ser dominado por elas. Quando as negamos ou as ignoramos, autorizamos que
elas se movimentem sorrateiramente em nosso inconsciente, ficando à vontade para
manipular ideias e emoções que refletirão em nossas escolhas. Admitir que somos
espíritos na terceira dimensão, ou seja, estamos com as vestes de um corpo físico
provisório, ainda nos fixa em escala evolutiva na qual sentimentos sem leveza nos
habitam e precisam ser iluminados e transmutados”. O monge me mirou fundo nos olhos
e disse com seriedade: “Esta é a grande batalha desta existência” e complementou:
“Repetirei isto tantas vezes quantas forem necessárias, por ser fundamental à conquista
da plenitude”.

“Portanto, quem adota o discurso de que ciúme, raiva, inveja, orgulho, medo e outros
sentimentos pesados não lhe pertencem, faz o papel do tolo a abraçar uma sombra mais
perigosa, em estágio ainda mais primitivo, a ignorância”. Tomou um gole de chá e
continuou: “Mas as sombras possuem outros truques:
- emprestam uma das suas inúmeras máscaras e nos fazem crer que somos o que ainda
não alcançamos;
- convencem a aceitarmos o papel da vítima, ao acreditar que o mundo conspira contra
nós;
- oferecem passagens de fuga da realidade para as planícies enevoadas da ilusão, na
tentativa de evitar o enfrentamento da verdade, sem o qual não haverá cura, transformação
e evolução”.

Tornou a ficar em silêncio por instantes e disse: “Há muitos mais; no entanto, a manobra
mais cruel é quando as sombras conseguem convencer que apenas querem proteger e
insuflam a dar vazão às suas emoções mais obscuras, nos conduzindo à preferência pelos
primitivos instintos de sobrevivência ao invés dos sentimentos nobres de convivência.
Esta é a armadilha. Você acaba por confundir vingança com justiça; ciúme com amor;
crítica com conselho; ignorância com verdade. E, pior, não percebe o equívoco”.

Eu ainda não tinha entendido como fazer para identificar as sombras. O Velho foi
didático: “Prestar atenção em qual sentimento verdadeiramente move cada uma das suas
decisões. Depois questionar se na próxima vez pode ser diferente e melhor. Não tenha
dúvida, sempre é possível. Só existe evolução quando há transformação. Se você é
exatamente o mesmo há muito tempo, desconfie de si próprio, existe algo que precisa ser
mudado. Assim mergulhamos em processo de autoconhecimento, para em seguida, pouco
a pouco, identificar as sombras que interferem no nosso discernimento. Todo ser com
reduzida capacidade de discernimento é ainda um prisioneiro de si mesmo”.

“Então, podemos dar o próximo passo que consiste em iluminar e transmutar essas
sombras. O que era mágoa vira perdão; a inveja se altera para a sincera admiração; o
ciúme se modifica para a compreensão de que o amor revela as asas, nunca as algemas”.
Bebeu um gole de chá e prosseguiu: “O trabalho é pesado, exige sabedoria e vontade,
além de muito amor, é claro. Todavia, não tenha dúvida de que você possui todos esses
atributos adormecidos na alma. Basta ter coragem de acordá-los para a batalha. Nessa
fase passamos a entender que, enquanto as sombras trazem a negação, as prisões e as
agonias, a luz tem compromisso com a verdade, a liberdade e a alegria. Só assim
transformamos sofrimento em paz. Esta é a cura”.

Ficamos um longo tempo sem dizer palavra. O monge tinha o olhar perdido nas
montanhas que avistava através da janela, enquanto eu tentava encaixar todas as palavras
na mente. Ele quebrou o silêncio: “A cada decisão somos lanterna a iluminar os passos
de toda a gente ou nevoeiro a impor aos outros as nossas próprias tempestades. Daí a
importância do coração puro e de uma mente desperta, características de um espírito livre,
no momento de cada uma das infinitas escolhas que fazemos”.

Em seguida, o monge abordou outro aspecto da mesma questão: “Em contrapartida


ficamos sujeitos a captar a energia liberada por outras fontes. Boas ou ruins, individuais
ou coletivas, estamos expostos a todo tipo de carga vibratória. A Física Quântica já
provou o que os alquimistas perceberam desde o início dos tempos. Tudo é energia no
universo. Até o que denominamos como matéria, nada mais é do que energia condensada.
Somos centros geradores e receptores de energia, queiramos ou não. Geramos energia
com nossos sentimentos, pensamentos e atitudes. Assim atingimos a todos que estão a
nossa volta, fazendo com que se sintam bem ou mal, na variação do tipo de carga
vibratória que emanamos, sutil ou densa, a depender do amor ou da mágoa, do nível de
consciência envolvido em cada emoção, ideia, palavra ou ação”.

Fiquei curioso em saber como me proteger das cargas energéticas alheias que tanto
incomodam e prejudicam. O Velho disse de pronto: “Quem caminha direito não precisa
ter medo do escuro”. Ele arqueou os lábios em leve sorriso e complementou: “Antes de
se preocupar com os outros é preciso prestar muita atenção a si mesmo. É muito
importante que vigie cada sentimento e pensamento que lhe ocorre, pois, em algum
momento, se materializarão em palavras e atitudes. Quando nos movemos no sentido de
pacificar e iluminar a tudo o que nos envolve, é criado um campo de força a nossa volta
que nos fortalece e protege. Este é o melhor escudo”.
“No mais, aceite os outros com as imperfeições que lhe são inerentes, com a serenidade
de saber que você ainda não possui a perfeição para oferecer. Disponibilize sempre o seu
melhor sem cobrar tributos por isto. As virtudes são sementes do jardim do universo e,
portanto, não são passíveis de negócio. Quanto mais as dividimos, mais elas se
multiplicam. Seja sincero consigo e se esforce para que as suas escolhas reflitam o mundo
maravilhoso dos seus sonhos; assim, estará sendo verdadeiro com todos. Não acredite em
tudo o que ouvir, tanto os elogios quanto as críticas, pois as palavras costumam projetar
o coração confuso do interlocutor”.

“O mais importante, não menospreze as suas pequenas ações, aquelas que parecem não
ter importância. Elas têm grande poder de alimentar as sombras que, aos poucos, se
espraiam, contaminam e se instalam no inconsciente de quem está desguarnecido,
gerando desequilíbrio, desesperança, agonia, depressão ou violência. É necessário
cuidado para não prepararmos as armadilhas que aprisionam. A nós e aos outros. A vida
é uma viagem fantástica, desde que você seja capaz de ver a beleza que existe em tudo e
todos. Vale relembrar a lição do Mestre: ‘Quando o seu olho é bom, todo o universo é
luz”.

Perguntei se toda essa movimentação energética ficava sujeita à Lei da Ação e Reação.
O Velho sorriu satisfeito e concordou com o balanço da cabeça. Entendi que atrairia para
mim a mesma carga e qualidade energética que emitisse.

“Protegendo aos outros de nossas próprias sombras, acabamos por nos proteger das
sombras, individuais ou coletivas, do mundo. Ao harmonizar a emoção densa que me
invade, impedindo a contaminação das minhas escolhas, inicio o processo de iluminação
e transmutação, a desmontar as cruéis armadilhas contra a paz. O segredo é sempre
oferecer o seu melhor e não adiar o importante encontro que cada qual terá consigo
mesmo, etapa essencial para o aprimoramento do ser. Trazer o inconsciente para o
consciente é fundamental para decodificar a vida”.

Aqui eu tomo a liberdade de abrir um pequeno apêndice. Naquela época, logo após essa
conversa, o Velho me sugeriu o seguinte exercício: ficar sete dias consecutivos sem me
lamentar de algo ou criticar alguém. Para tanto, era preciso domar os meus impulsos mais
densos. A cada falha reiniciaria a contagem ao primeiro dia. Demorei vários meses para
conseguir completar a prova, aparentemente simples. Confesso, não foi fácil, mas tornou-
se uma belíssima e inesquecível lição de autoconhecimento e plenitude. Entendi que toda
vez que você toca no mal, aumenta o seu poder. Porém, o contrário também é verdadeiro
e transformador. É pura luz.
DESAPEGO É TRANSFORMAÇÃO

Ela estava lá. A bicicleta encostada no poste foi a primeira coisa em que reparei quando
dobrei a estreita e sinuosa rua da oficina na charmosa cidadezinha próxima à montanha
que abriga o mosteiro. O sol do fim de tarde refletia nas ruas de pedra e emprestava tons
pastéis às construções seculares. Como a loja de Loureiro, o sapateiro amante dos livros
de filosofia e dos vinhos tintos, não funcionava em horários regulares, encontrá-lo era
sempre um jogo de sorte. Fui saudado com a alegria e a elegância habituais. Ele passou
um café fresco e quando sentamos diante das canecas fumegantes, fomos surpreendidos
pela chegada de uma sobrinha do artesão. Uma moça bonita, educada e com feições de
incertezas coloridas no rosto, que tinha vindo passar uns dias de descanso no interior.
Após os cumprimentos de praxe, a jovem foi bem objetiva. Sempre ouvira o tio falar em
suas conversas sobre a importância do desapego. Entretanto, ela era paciente de um
prestigiado psicanalista na capital e, na última consulta, foi aconselhada a não abandonar
os seus desejos, pois isto significava desistência e, por consequência, um sinal de
fraqueza.

Loureiro ouviu a tudo com paciência e em silêncio. Ao término, diante do olhar aflito da
sobrinha, falou com a voz serena e baixa: “Sou um leitor interessado e um observador
atento. No entanto, você sabe, não tenho formação acadêmica. Apenas digo o que sinto,
expresso o meu olhar sobre todas as coisas. O risco de eu estar errado é enorme”. Me
intrometi e brinquei dizendo que os alquimistas são autodidatas. Era inegável a magia do
artesão de transformar chumbo em ouro, ao menos no que se refere a transmutar em luz
as sombras que habitam em todos nós. A jovem insistiu para que ele falasse, uma vez que
adorava ouvir os posicionamentos do tio, que classificou como desconcertantes. O
sapateiro pediu que ela se servisse de café e sentasse. Em seguida disse: “A palavra tem
o poder de vestir e revestir uma ideia. Ela dá forma ao pensamento, daí o seu grande
poder. Os antigos diziam que somos feiticeiros das palavras, pois, com elas, podemos
semear a coragem ou espalhar o medo. Digo isto pela necessidade de adequar o que penso
no exato contexto, com a melhor palavra”.

“Desapego não é desistência. Não, de jeito nenhum. Desapego é transformação,


ferramenta indispensável à evolução”. A moça interrompeu e disse que não estava
entendendo. O artesão sorriu com ternura e explicou: “Sofremos condicionamentos
culturais, sociais e ancestrais que exercem forte influência na formação das ideias, na
interpretação das emoções e, por consequência, influenciam as nossas escolhas. Muitas
vezes, esta formatação compulsória no leva a criar metas e desejos que ligam o sucesso e
a felicidade a objetivos meramente materiais e a prazeres sensitivos. Na grande maioria
das vezes estão ligados a dinheiro, a fama, poder e sexo. O ego quer os aplausos e os
brilhos da tribo, as conquistas aparentes, sem perceber o vazio que esta performance
ocasiona a longo prazo. Em algum momento, a pessoa mais atenta, ao perceber que os
conceitos que estruturaram a sua trajetória podem estar obsoletos, tendo em vista que não
se traduziram na felicidade prometida, entende a necessidade da mudança de rota. Seguir
a melodia no velho diapasão, na medida em que a ópera avança, já não sustenta a leveza
nem a plenitude da canção. Aquela sinfonia não lhe toca mais o coração. Resta apenas
um enorme vácuo, no qual o som não se propaga”. Deu uma pequena pausa para observar
os olhos atentos da sobrinha antes de concluir: “Então, ele percebe que precisa reinventar
os conceitos que o fizeram andar um longo trecho sem chegar a lugar nenhum. Começa
a entender que não se mede sucesso pela régua financeira, mas pelo compasso da
plenitude. Não é ter tudo, mas ser todo. O desapego se reflete na transformação das velhas
formas. É pura alquimia”. A jovem tornou a interromper para que ele fosse mais claro.
Loureiro não se fez de rogado e falou: “O que denominamos ‘velhas formas’ é um
conjunto de ideias, preconceitos e condicionamentos que nos amarra a padrões que, em
algum momento, se mostram ultrapassados, por se tornarem ineficientes ou inúteis. É a
hora da metamorfose”.

“A transmutação é vital para que possamos deixar para trás toda aquela maneira de pensar
e viver que não serve mais por não apresentar o conteúdo vital que impulsiona à evolução.
É o entendimento de que todos os desejos se desenharam borrados na conquista da
verdadeira felicidade, pois não trouxeram as cores da inconfundível sensação de paz. É a
hora de entrar no casulo para entender e, depois, libertar os sonhos; de a lagarta deixar de
se arrastar ao se permitir as asas da borboleta”.

“Aqui se faz imprescindível uma correta distinção entre desejo e sonho. O desejo está
ligado ao ego, à vaidade, ao prestígio social, às conquistas meramente materiais, às
paixões. Ao brilho”.
“O sonho é o propósito da alma, do âmago do ser, reflete os seus dons e talentos a serem
utilizados para as conquistas imateriais de amor e dignidade, a evolução espiritual. Está
ligado à luz”.

“Enquanto o desejo infla o orgulho, o sonho dá sentido à humildade; o desejo te leva às


condecorações da aldeia e às manchetes das revistas, o sonho faz com que, em silêncio,
o céu entre em festa; o desejo quer a fama dos holofotes, o sonho anseia pela chegada da
manhã. Entender o sentido e a diferença entre desejo e sonho é se perceber imortal e se
tornar andarilho na viagem sem fim. Saber que estamos aqui para aprender, transmutar,
compartilhar e, então, seguir”.

“Desapego não é desistência, assim como desapego não é covardia. Pelo contrário, é uma
escolha de profunda coragem abrir mão do que muitas pessoas a sua volta louvam como
vitória. O que a maioria acredita ser a glória, para você já não tem nenhum valor. Pensar
que desapego é covardia é o mesmo que se enganar ao acreditar que ser manso e pacífico,
ao decidir pela não-violência como instrumento de luta, seja característica dos covardes.
É não entender a essência da vida, a força revolucionária da paz. É necessário vontade e
coragem incomensuráveis para abdicar das balizas sociais e culturais na construção de
um novo ser, agora comprometido com as conquistas infungíveis, aquelas que não
enferrujam, não pesam, não deterioram. É escolher a fruta pelo poder multiplicador da
semente e não pelo brilho efêmero da casca”.

“Não raro vejo profissionais bem-sucedidos e famosos, sem qualquer dificuldade


financeira, com condições para usufruir de todo o conforto e tecnologia que a
modernidade oferece. No entanto, estão envolvidos em esfera de depressão, pânico,
medo, completamente perdidos. Alcançaram o mais alto degrau da escala projetada pelos
antigos conceitos. Têm dinheiro, são realmente bons no que fazem, recebem a justa
homenagem pelas suas realizações; todavia, comprimidos de ansiolíticos, caixas de
antidepressivos, intermináveis terapias, fanatismo de toda ordem, desejos inconfessáveis
de suicídio rondam essas pessoas como fantasmas em mansões assombradas. Não tiveram
o entendimento para trocar a aparência pela essência, preferiram viver pela expectativa
do mundo ao invés de permitir que o silêncio lhe soprasse a própria verdade e indicasse
o Caminho. Faltou coragem em desapegar dos desejos para viver os sonhos. Estão no
vazio vital; sentem fome de luz”.
Deu uma pausa, olhou a sobrinha com seriedade e disse: “Desapegar das paixões para
que o amor floresça não é para os fracos. O amor é reservado aos fortes. É impossível
amar sem desapego. É impossível ser livre sem desapego. Só assim nos permitimos a
leveza para que as asas se manifestem. Sem elas não se chega às Terras Altas, onde se
fincam os pilares da paz”.

“Somente quem entende a dimensão do desapego é capaz de compreender a distância


entre o amor e a paixão”, explicou Loureiro. A moça quis saber como diferenciar o amor
da paixão. O bom artesão arqueou os lábios em leve sorriso de alegria e disse: “Imagine
uma pessoa atravessando um deserto, sob sol escaldante e com muita sede. Ela encontra
uma enorme jarra com água fresca e se delicia até a última gota. Esta sensação é pura
paixão”. Ficou instantes em silêncio e cerrou os olhos para falar devagar, de maneira
sentida: “Amor é quando enfrentamos o mesmo deserto, sob o mesmo sol a pino e a
mesma sede. Encontramos a mesma ânfora com água... bebemos metade... e deixamos a
outra metade para quem vem atrás”.

Uma lágrima escapou pelo rosto da jovem, que, em seguida se iluminou com um belo
sorriso. Ela abraçou o elegante sapateiro em sincero agradecimento. Não disse palavra e
se foi. Já não era mais a mesma que havia entrado há pouco na oficina.
TRANSGREDIR É PRECISO

Era a hora dos estudos. Leitura e reflexão na biblioteca do mosteiro. Silêncio e quietude.
A luz do fim da tarde entrava pela janela, oferecendo claridade e a bela paisagem das
montanhas. Como de costume, passei antes no refeitório para pegar uma caneca com café.
O Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem, conversava
com um rapaz que viera nos visitar, sentado à cabeceira da enorme mesa. Quando me
aproximei, fui surpreendido pelas palavras do monge: “Transgredir é preciso”. Ao
perceber o impacto que a frase causara em mim, fez um sinal com os olhos para que eu
me acomodasse ao lado deles.

O jovem alegava estar sem rumo. Era uma pessoa pacata, trabalhadora e cumpridora dos
seus deveres. Seguia com tranquilidade pelos trilhos da vida na qual fora educado.
Nenhuma anormalidade, salvo um enorme vazio. O mundo lhe parecia uma enorme
esfera, com um amontoado de gente, sem qualquer sentido. Não havia brilho no seu olhar;
claramente estava infeliz.

O Velho falou com seu jeito manso: “Estamos aqui tão somente para evoluir. Nada mais.
No entanto, há que se entender o processo. Só há evolução quando existe transformação.
Para isso, temos que nos permitir atravessar a fronteira do medo, dos limites impostos
pelo mundo, voar além do pensamento comum. A dignidade é o único limite”.

O rapaz perguntou como isso era possível. “É indispensável a ousadia de outro olhar, do
olhar que acredita que tudo pode ser diferente e melhor; o atrevimento em ser todo, em
ser tudo o que sonhamos, em ser pleno. Em revelar o próprio dom que se manifesta
secretamente em suas entranhas. Isto nos dá a força, o poder e a magia”, o monge resumiu.
Mas as feições do jovem mostravam enormes pontos de interrogação. Era necessário não
ficar na síntese da poesia e o Velho explicou mais a fundo. “O Universo está muito
interessado na evolução de cada pessoa. O motivo é simples: como cada um é parte
essencial do todo, a harmonia cósmica somente será atingida com o avanço coletivo. No
entanto, a jornada é individual. Ou seja, embora o convívio social seja de inegável valor
para o aperfeiçoamento do ser em lições infinitas de amor e sabedoria, oficina na qual
aprimoramos os sentimentos, iluminamos as sombras e lapidamos as nobres virtudes; os
avanços, entretanto, são pessoais, na exata medida em que cada qual se capacita para o
próximo passo. Todo este processo é um enorme ciclo composto de inúmeros pequenos
ciclos, cada um com as suas lições. Quando o aluno se recusa a aprender, por qualquer
motivo, as lições se tornam mais severas. Então, a dor. Não por castigo, mas com a
finalidade de ensinar. Na medida em que o aprendiz avança, consegue transformar o
sofrimento em pó de estrelas ao trazer luz aos becos escuros do Caminho. Esta é a
alquimia da vida”.

“As mudanças são peças fundamentais no progresso da humanidade. Quando


progredimos, alavancamos tudo à nossa volta. Assim, temos o poder de, em parte, alterar
a realidade. O vazio existencial, um tom leve das muitas nuances de sofrimento, surge
todas as vezes que percebemos, inconscientemente ou não, que não conseguimos
caminhar espiritualmente. A evolução é a chama que ilumina a natureza humana, a dor é
um mestre para discípulos indisciplinados. A Lei da Evolução é uma das inexoráveis leis
do Código Não Escrito”.
O Velho deu uma pequena pausa e prosseguiu: “No entanto, apenas caminhamos quando
temos a coragem de viver os próprios sonhos, de despertar os talentos ainda adormecidos
em nosso âmago e aceitar que outra realidade seja possível. Então, é hora de transgredir.
Não falo isto apenas para as grandes ações coletivas que alteraram os movimentos do
mundo e deram novas letras aos livros de História. Refiro-me aos pequenos gestos, às
escolhas mais íntimas, aquelas que estão ao alcance de qualquer um. Estas têm
incomensurável valor no desenvolvimento do planeta e, não tenha dúvida, são as mais
importantes. Despertamos o melhor que nos habita ou deixaremos de ser o sal da terra e
perderemos o gosto pela existência”.

“É preciso estar disposto a ir além das barreiras do senso comum; acreditar que existe
vida além dos muros altos que mais aprisionam do que protegem. Negar-se a repetir
surradas fórmulas, pelas quais nos convenceram que o medo é necessário para a paz. Isto
aprisiona. Libertar-se é transgredir”!

“Coragem e ousadia não são ervas daninhas que brotam no jardim do coração como mato.
São sementes escolhidas pelo jardineiro que entende a força e o poder dessas flores”.

O jovem pareceu não ter entendido e falou que era um sujeito manso que não gostava de
brutalidade nem queria se tornar um criminoso. O Velho franziu as sobrancelhas e disse:
“Pelo amor de Deus, filho! Embora haja a necessidade de entender que lei e justiça nem
sempre estão do mesmo lado, não falo dos que enveredam pelas raias da criminalidade e
das trevas. Tampouco me refiro à força física. Os verdadeiros revolucionários, aqueles
que alavancaram a mudança de rumo do planeta eram totalmente pacíficos e
pacificadores. Jesus, Buda, Francisco de Assis, Gandhi, Luther King, Tereza de Calcutá,
Chico Xavier, seja na História remota, seja na recente, apenas para citar os mais
conhecidos, todos foram transgressores em suas épocas. Eles acreditavam que podiam
fazer diferente por identificarem o absurdo do senso comum, ojerizavam qualquer forma
de violência, até mesmo a verbal ou de pensamento. Tinham a sabedoria de aliar o amor
com a firmeza necessária para seguir adiante. Abalaram alicerces sociais sem se valer de
mentiras ou da brutalidade. Suas sementes germinam por todo o sempre a oferecer os
melhores frutos de que já provamos, pois, no sumo, ainda deixam o doce mel do amor. A
bandeira deles era a paz e a unidade entre as pessoas; a beleza de ser único e, ao mesmo
tempo, fazer parte do todo. Eles sabiam que a transformação da humanidade só acontece
quando alicerçada na metamorfose de cada ser. O mundo apenas se altera no exato passo
das mudanças individuais”. Mirou nos olhos do rapaz e falou de maneira sentida: “Todos
os demais que tentaram impor a própria verdade ou interesse se valendo da violência ou
da mentira não trouxeram mudança, apenas maquiaram o mundo com os pincéis da
intolerância e com as tintas de sangue”. Tornou a pausar antes de concluir:
“Absolutamente nada possui tanta força transgressora como o amor. A paz é o seu único
idioma”.

“Transforme a si mesmo e verá o seu exemplo alavancando uma enorme revolução ao


seu redor”.

O rapaz confessou que embora, algumas vezes, tivesse vontade de fazer algo diferente,
nunca se imaginou usando roupas e cabelos extravagantes. O Velho deu uma risada
gostosa e disse: “Penso que cada um deva se vestir como melhor entender e respeito muito
isto, cada qual com seu gosto e necessidade de se expressar. No entanto, transgredir os
cânones da sociedade não é alterar a aparência, mas mudar a essência. Os hábitos podem
ser simples, pois a sofisticação está no pensar e no sentir. Nisto reside a transformação.
A mudança é de conteúdo, não de forma. A diferença não está na estética, mas na atitude.
A autoridade não está no cargo, na retórica ou nas condecorações. Está nas escolhas, em
cada uma das muitas que fazemos ao longo de cada dia”.

O jovem argumentou que tinha dificuldades em realizar mudanças, uma vez que não era
capaz de vislumbrar alternativas. O Velho respirou fundo e disse: “Por que negamos em
aceitar o poder incomensurável que temos? Cada um pode fazer o que quiser da própria
vida. Consegue imaginar as infinitas possibilidades? Claro que toda a liberdade traz a
reboque a mesma dose de responsabilidade. Efeito inexorável da Lei da Ação e Reação.
As decisões são livres, as consequências as acompanham com a perfeita justiça. Isto é
maravilhoso, pois o faz responsável pelo próprio destino. Entender as escolhas é fincar
as raízes da maturidade no solo da existência. Depois é abrir o cárcere de invisíveis grades
para ir em busca dos sonhos. Aceite, em definitivo, as suas asas. Use-as! Todos têm
direito a isto”.

“Todas as vezes que recuamos por medo, ele move a nossa vida para o lado errado”.

“Transgredir é, também, ver a importância das divergências. É se permitir as infinitas


possibilidades em ser e do ser. As suas e as dos outros. É a sabedoria em ter respeito para
que todas as diferenças coexistam em perfeita harmonia. A escolha de um não anula nem
se sobrepõe à preferência do outro. Isto se chama respeito. Há uma incomensurável beleza
nisto”.

“Por fim, transgredir é ter bons olhos para com o novo. Não me refiro às novidades típicas
da moda ou tendências de comportamento que não mergulham além de válidos interesses
comerciais, porém de superfície rasa. Digo da profundidade da renovação em despir uma
roupa já pequena para alma, a permitir trajes mais adequados à liberdade dos novos
movimentos do ser que emerge da noite rumo à manhã. A verdadeira transgressão vai
além das fronteiras da aparência, pois trata-se de viagem para a transmutação da
essência”.

Atônito, o rapaz perguntou se o monge estava propondo que nascesse novamente. O


Velho sorriu e disse: “Sim, de preferência todos os dias. Transgredir é se reinventar
sempre, é fazer as pazes com seus sonhos mais lindos, é revelar o sagrado que habita na
sua alma, é aceitar que devemos nos mover através da força transformadora do amor ou
apenas ecoaremos o grito de quem está perdido na narrativa da própria história”.

O jovem disse que entendia as palavras do monge e, embora sentisse essa necessidade de
mudança, confessou não saber como fazer. O Velho arqueou os lábios em doce sorriso e
disse: “Começamos em não mais permitir o envolvimento em situações que
reconhecidamente nos fazem mal. Pare e saia do mundo por alguns instantes. Na quietude
e no silêncio, encontre consigo mesmo para entender o que não serve mais; ideias e
atitudes que precisam ser modificadas para se alinharem ao seu novo momento. Este é o
processo de libertação de todo o sofrimento: transgredir o olhar para transformar o ser.
Abra os porões escuros e deixe o sol entrar. Comentarão que o brilho dos seus olhos ficou
mais intenso, um agradável perfume com sensações de amor e paz emanará da sua alma.
Mudarão, por afinidade, as pessoas e as situações que te envolvem”. O Velho bebeu um
gole de café e comentou: “Reparou que quando fechamos a porta do coração, impedindo
alguém de entrar, isto nos traz uma sensação ruim? Preste atenção como todas as vezes
que deixamos de escolher por amor, ainda que o ego sinta uma vã satisfação mundana,
acaba por nos restar um grande vazio. O amor tem o infinito poder de transformar
qualquer situação em um momento sagrado. Simples assim, grandioso assim”.

“Dessa maneira, pouco a pouco, refinamos a consciência e alteramos o destino. Entenda,


aprimore e valorize o fantástico poder das escolhas. São ferramentas valiosíssimas”. O
jovem tornou a interromper e disse que sempre ouviu que dinheiro, poder e sexo moviam
o mundo. O Velho o mirou no fundo dos olhos e perguntou: “Move para onde, filho?” A
pergunta era apenas retórica, e o monge mesmo respondeu: “Move para o lado errado”.
Deu uma pequena pausa e prosseguiu: “Não costumo encontrar serenidade, alegria e paz
em quem busca esses objetivos como primordiais. Vejo mais sofrimento, lágrimas e muita
agonia. Esses são os dominadores; diferente dos transgressores, eles não buscam por
mudanças em prol da evolução, mas se perdem nos enganos da dominação e nas ilusões
de poder. Não percebem o quão efêmero é este poder. Todo dominador é um escravo da
própria dependência, em qualquer nível, desde as políticas governamentais até as relações
afetivas. Há dominadores de muitas espécies. Acredite, todos eles sofrem”.

O sino do mosteiro tocou. Era a hora da meditação que antecede o jantar. O rapaz
agradeceu ao monge por suas palavras. O Velho pediu licença, se levantou e antes de sair
disse: “O transgressor é um ser livre, pois o amor é a força que orienta os seus passos e,
por ser amor, com toda a sua beleza, não se permite nem dominador nem dominado.
Apenas livre. Acredite, o amor é a única energia capaz de transformar para sempre e
alavancar a evolução. Todo o resto é apenas ilusão e sombras”.
O ESPECTRO DA DOMINAÇÃO

“A necessidade de dominar o outro permeia todo o mal desde o início dos tempos”, falou
Canção Estrelada, o xamã que tinha o dom de ensinar a sabedoria do seu povo através da
palavra, cantada ou não. A noite chegava de mansinho estendendo seu belo manto de
estrelas no firmamento. Ele tinha me pedido para acender a fogueira enquanto enchia de
fumo o fornilho de pedra vermelha do seu inseparável cachimbo. Conversávamos sobre
o fio que costura a cortina de sombras que impede a claridade do olhar. Ele expunha o
seu ponto de vista: “A raiz desse mal é a ignorância e o seu equivocado entendimento
sobre o medo. O Grande Espírito nos ofertou o medo para que fosse uma ferramenta a
nos alertar dos perigos inerentes à vida, comuns na natureza. Os ruídos na noite escura,
os predadores traiçoeiros, o penhasco escorregadio. Mas ao invés de nos integrarmos à
natureza, em absoluto respeito a todos os seres que a compõem, decidimos por dominar
tudo que a envolve, em total descontrole do ego inseguro. Alguns animais domesticamos;
os que por temperamento selvagem não foi possível, matamos ou prendemos em jaulas
como troféus à visitação. Não satisfeitos, decidimos por também dominar todas as pessoas
de nossas relações. Em estado primitivo de sabedoria a liberdade alheia assusta por
acreditarmos que somente estaremos seguros se dominarmos tudo e todos à nossa volta.
A alegria do convívio é trocada pelo desejo insensato de sermos donos das pessoas e das
coisas com as quais nos relacionamos. Perdemos a leveza. Acabamos por escolher o
conflito ao invés da harmonia. Muitos se iludem nesse exercício vazio de poder, sem
perceber que se tornaram escravos de suas desnecessidades e vítimas infelizes de seus
enganos”. Deu uma pequena pausa para baforar o cachimbo e manter o fornilho aceso.
Depois falou: “Então, surgem os sofrimentos inerentes aos que querem a vida no cabresto
de seus desejos. São os semeadores da agonia e das lágrimas”.

“É imprescindível enfrentar o medo, pois a covardia não melhora o destino de ninguém.


Não se acanhe por sentir medo. Saiba que só há coragem onde antes existia o medo. A
sabedoria consiste em entender o medo. O medo é a semente da flor da coragem”

“Tudo se inicia em uma sucessão de equívocos. A ignorância nos faz crer que apenas
conquistaremos a paz quando dominarmos o que nos assusta. Para piorar, acabamos por
viciar o ego em sensações de poder ao interpretar a subjugação do outro como uma vitória.
Só existe paz na alegria de escolher por amor. Só existe amor quando se entende que
conquistar a própria liberdade consiste, também, em respeitar a liberdade alheia. Uma
não existe sem a outra”.

Falei da dificuldade em convivermos com outras pessoas, no entanto, não percebia a


sombra da dominação tão presente entre as pessoas. Canção Estreladas desviou os olhos,
que estavam fixos nas labaredas, para me mirar com compaixão e disse: “Como não,
filho? Veja, por exemplo, o ciúme, uma emoção muito comum a todos. Nasce da
ignorância quanto à exata compreensão do amor. O amor, por definição, é um sentimento
ligado não apenas à liberdade, mas à própria evolução do ser. Quanto mais amor e
liberdade movimentar as escolhas, mais iluminada é a criatura. Para tanto, não deve
amarrar ou impor condições para a existência dessas virtudes. Se há algema ou imposição
de tributos de qualquer natureza, com certeza, não há liberdade nem é amor”.

Franziu as sobrancelhas, gesto comum quando falava mais sério, e disse: “Uma pessoa
tem certa admiração por outra e projeta sobre ela toda a sua vontade em viver o amor.
Porém, em paralelo, é invadido por enorme medo de que o seu sentimento, de alguma
maneira ou em algum momento, deixe de ser correspondido. O que faz? Dispara um ou
vários dos mecanismos de dominação. Controles, limites, cobranças, proibições de
diversos tipos. Percebe que é muito parecido com o que sempre fez com os animais em
tempos remotos? O que não consegue domesticar, tenta aprisionar. Pior, em casos mais
graves, agride, destrói ou mata”.

O xamã pediu para que eu lhe passasse um cobertor para ele se aquecer da noite que
começava a esfriar. Em seguida, prosseguiu: “O ciúme é uma sombra que se manifesta
no exato instante em que surge o medo de perder a pessoa amada. Mas como perder o que
não se pode ter? Você deve sentir e viver o amor, o que é bem diferente de tentar controlar
ou aprisionar o outro. Percebe a diferença? Ao invés de alçar o próprio voo e respeitar o
voo alheio em respeito e admiração ao amor e à liberdade, negamos a beleza do Caminho
toda vez que manipulamos para cortar as asas de alguém. Sem perceber, acabamos por
pisar nas flores do nosso próprio jardim”.

“Por isto que ouvimos equivocadamente que ‘não há paz no amor’. Claro, nos recusamos
a entender o amor!”

Ficamos um longo tempo sem dizer palavra. Eu mirava o fogo, ele viajava nas estrelas.
Resolvi quebrar o silêncio e perguntei sobre outras situações em que o desejo ancestral
de dominação nos levava ao mesmo comportamento de outrora. Canção Estrelada disse
com paciência: “Ainda nos comportamos como se apenas fosse possível a dualidade em
ser senhor ou escravo; uma eterna e inevitável relação entre possuidor e possuído. Na
tribo, no trabalho, em família. Por quê? Insegurança é a resposta. Temos dificuldade em
conviver como e ao lado de seres livres. A liberdade parece assustar e ameaçar. Por quê?
Simplesmente porque não fomos educados a nos relacionar de modo sadio com a
liberdade e com o amor. Quantas vezes usamos a força bruta, do poder financeiro ou da
lógica tortuosa, como elementos para acuar e dominar o outro, cerceando a sua liberdade
de escolha, seja pelo fato de ela nos incomodar por recusar qualquer comando, seja apenas
para exercitar a nefasta sensação de dominação. Em suma, puro medo. Assim, sem
perceber, insistimos em sustentar a aparência em frágeis estruturas que chamamos de
‘ordem’ ao invés de trocá-la definitivamente pela paz. A ordem é de razão social; a paz é
tesouro exclusivo da alma plena. A ordem é o anseio dos dominadores; a paz, uma
conquista dos libertadores”.

Eu quis saber como escapar de todo esse processo nocivo e ultrapassado de dominação.
Canção Estrelada tornou a franzir as sobrancelhas e falou: “Uma preciosa lição é entender
que ‘qualquer pessoa só terá sobre você o poder que você consentir a ela’. Não conceda
a ninguém tal poder. Pois todas as vezes que acontecer, você conhecerá a agonia e o
sofrimento da escravidão moderna. Nascemos para voar, não para enfeitar a gaiola alheia.
A recíproca também se aplica: abandone a ideia, sob qualquer pretexto, de ser dono de
alguém. Jaulas ou asas. Eis uma escolha que nos permitimos todos os dias”.

“No mais, vigiai e vigiai. Não ao outro, mas a si próprio, pois ninguém será um inimigo
tão poderoso como as sombras que o aconselham. Dominador ou dominado, ambos
apodrecem no mesmo cárcere. Na necessária interdependência de todas as relações, a
liberdade é pressuposto indispensável da alegria e para a paz”. Deu uma pequena pausa e
concluiu: “E do amor, é claro!”
O MELHOR MANTRA

Eram os meus primeiros dias no mosteiro, quando nem pensava em me tornar um


discípulo da Ordem. O convite era para que me hospedasse por curto período. Minha vida
passava por momentos de grandes turbulências; eram problemas sobre problemas. Como
se não bastassem, dúvidas existenciais me assolavam. Eu estava ali à procura da fórmula
que me levasse à solução dos conflitos. A figura do Velho, como carinhosamente
chamávamos o decano do mosteiro, era o que mais me atraia a atenção, fosse pelo seu
jeito cativante, fosse pela visão desconcertante em relação à vida. Naquela manhã, ele
fizera uma reflexão para todos os presentes sobre o poder transformador do amor. Suas
palavras suscitaram muitos questionamentos em mim, porém não ouvi nada que me
ajudasse de modo objetivo. Logo em seguida, o encontrei no refeitório tomando café.
Aproveitei a oportunidade para relatar um recente conflito com um parente sobre questões
de herança, fato gerador de uma escalada crescente de confusões em minha família. Falei
que não sabia como pacificar a briga. O monge disse com a voz serena: “Entenda que
cada qual só consegue viajar até a fronteira da própria consciência. Perceber a sombra
alheia é passo importante para iluminar a sua. No entanto, para transmutá-la será
necessário que suas escolhas passem a ser diferentes e melhores do que foram até agora”.
De pronto perguntei como deveria agir. O Velho arqueou os lábios em belo sorriso e
falou: “Está ruim? Polvilhe com amor”.
De um lado, achei interessante; de outro, enigmático.

Na manhã seguinte, o encontrei no jardim interno do mosteiro a podar as roseiras.


Perguntei se poderíamos conversar um pouco. Ele assentiu com a cabeça e sorriso nos
olhos. Contei como o término de um namoro antigo ainda me atormentava. O monge
franziu as sobrancelhas e falou: “Agradeça pela saudade, pois ela só existe onde há amor.
Fora disto resta apenas o vazio. O mel da vida está em se encantar com o voo, não em
construir jaulas”. Aflito, confessei que não sabia como fazer para aliviar meu sofrimento.
O Velho disse apenas: “Está ruim? Polvilhe com amor”.
De um lado, achei poético; de outro, pouco prático.

Naquela noite, surgiu uma nova oportunidade de ficar a sós com o Velho, logo após o
jantar. Reclamei da minha insatisfação quanto à atividade profissional que exercia. Falei
da dificuldade cada vez maior em trabalhar com o que não gostava. Ele arqueou os lábios
em leve sorriso e falou: “Todos temos um dom que nos diferencia. É o uso do seu dom
que dá asas aos seus sonhos, seja através de um ofício, seja da arte. O exercício do dom,
por mais simples que seja, transcende ao mundano e nos conecta ao sagrado. O dom é o
talento pessoal ligado ao dharma, ao seu propósito de vida. Abandonar o dom enferruja a
essência do ser”, e antes que eu fizesse qualquer comentário, o Velho finalizou: “Ficou
ruim? Polvilhe com amor”.
De um lado, achei elegante; de outro, patético.

Irritadíssimo, falei que estava perdendo o meu tempo ali dentro enquanto a minha vida
virava um inferno lá fora. Agradeci com sarcasmo e avisei que partiria imediatamente. O
Velho apenas cerrou as pálpebras de modo suave, como fazia toda vez que ouvia algo
lamentável. Não disse palavra.

Arrumei minhas coisas e saí. No pátio externo do mosteiro, utilizado como


estacionamento pelos visitantes, um homem franzino estava à beira de um ataque
histérico pelo fato de um outro carro estar parado fora da faixa, o que dificultava bastante
a sua manobra, sem, no entanto, impossibilitá-la. Era o meu carro. Ao perceber, o pequeno
homem se dirigiu a mim de maneira agressiva, me acusando de todos os males do mundo.
Também irritado, fui rapidamente levado à fúria e cogitei seriamente em silenciá-lo com
um soco, o que não seria difícil em face da desproporção de nossos tamanhos. Neste exato
instante, aos gritos, ele disse que não suportava ficar nem mais um minuto naquele lugar.
Tinha vindo em busca de ajuda e apenas ouvira um bocado de asneiras. Aquelas palavras
travaram o meu punho, e eu o percebi como um perfeito espelho. O descontrole e a visão
enevoada eram sensações parecidas com as minhas. “Polvilhe com um pouco de amor”,
ouvi a voz suave do monge soprando em meu coração. Naquele instante me ocorreu que
toda a raiva daquele homem, embora dirigida a mim, não era para mim. Revelava apenas
a sua agonia diante da incapacidade em solucionar os próprios problemas. Mortes?
Falências? Doenças? Separações? Frustrações? Eu não sabia o motivo, mas percebia, pela
primeira vez, de maneira cristalina, o sofrimento e a confusão nos olhos de alguém.
Emoções densas que, misturadas, explodiam em ódio e precisavam ser transferidas para
alguém. Me vi espelhado naquele homem desesperado e entendi que eu não queria ser
assim. Naquele instante, aprendi a importância do outro na minha vida e, também, o
significado e a beleza do amor, ali se manifestando através da compaixão. Senti
compaixão por ele e por mim. Tudo mudou dentro de mim em fração de segundos.

Pedi desculpas, o que de pouco adiantou. O frágil homem continuou atirando impropérios
e absurdas acusações. Mas tudo aquilo tinha perdido o poder de me ferir ou me irritar. O
amor me protegia. Dele e de mim mesmo, uma vez que a ofensa só nos atinge se nos
permitirmos estar na mesma frequência vibracional do outro. Todavia, algo tinha
mudado. Toda a minha ira acabara de se transformar em compreensão e paciência. Eu
estava em um lugar onde as ofensas não conseguiam chegar. Entendi que o amor funciona
como um escudo. Mais ainda, começava a perceber a fantástica força transformadora do
amor. Logo que eu manobrei o carro, ele partiu. Não sem antes abrir o vidro e gritar a
última ofensa. Sorri e agradeci a ele pela maravilhosa lição.
Girei nos calcanhares e retornei ao mosteiro.

Fui informado de que o Velho lia na biblioteca. Subi as escadas aos saltos. Ele estava só
e me recebeu com um sorriso que jamais esquecerei. Sentei-me ao seu lado e relatei o
fato ocorrido no pátio. Confessei que estava encantado ao perceber que o Universo
sempre conspira a nosso favor. O monge deu uma risada gostosa e emendou: “Sim, é
verdade. O Universo insiste em nos ajudar, pena que nós teimamos em atrapalhar. Até
mesmo quando os planos dão errado, não tenha dúvida, é a vida nos corrigindo a rota,
adequando os desejos do ego às necessidades da alma”.

Roguei para que se aprofundasse mais um pouco sobre o poder transformador do amor.
O bom monge falou com a sua enorme paciência: “Estamos neste planeta unicamente
para evoluir. Nada mais. É uma viagem infinita composta de inúmeros trechos. São os
ciclos evolutivos. Cada um deles possui quatro momentos distintos: Aprender,
Transmutar, Compartilhar e Seguir. Assim seguimos, estação a estação, a jornada rumo
às Terras Altas. Evoluir é expandir o nível de consciência. Isto é possível quando,
concomitantemente, ampliamos a capacidade do coração. A sabedoria precisa de doses
cavalares de amor para atingir o seu real valor e melhor sentido. Somente assim
alavancamos a nossa evolução. Sabedoria sem amor apenas agiganta as sombras que nos
habitam. Sem amor, a mais fina sabedoria é incapaz de descortinar o véu que encobre a
essência da vida. O amor é o caminho da luz e o perfeito destino. Nada fora dele nos trará
alegria ou paz”.
Ficamos sem dizer palavra por um tempo que não sei precisar. Comecei a refletir sobre
todos os conflitos que me furtavam a tranquilidade e me levaram até ali. Olhando pelas
lentes do amor, apresentavam soluções simples. Ao mesmo tempo, desconcertantes,
ousadas e fora do meu padrão de comportamento até aquele dia. Os singelos conselhos
do Velho, absurdos até o momento, começavam a se tornar absolutamente geniais. À
medida que avançava com as minhas reflexões, tudo ganhava cores que eu desconhecia,
oferecendo escolhas impensadas. Pura luz. Eu ria e chorava ao mesmo tempo.

Falei para o monge que tudo parecia se resolver como que por mágica. Ele sorriu e disse:
“Pela primeira vez você está se dando conta de viver um milagre. Milagres nada mais são
do que transformações movidas pelo infinito poder do amor. Eles são muito comuns, pena
que a maioria das pessoas não consegue perceber por sempre esperar pelas situações
cinematográficas”. Deu uma pequena pausa e concluiu: “Todo o encantamento deste
momento se explica pelo início de encerramento de um ciclo. Hoje você aprendeu uma
valiosa lição através de uma situação corriqueira e aparentemente comum que já deve ter
acontecido inúmeras vezes na sua vida, mas você não conseguia perceber a oportunidade
se apresentando. A lição foi aprendida. Agora você passará um tempo transmutando
ideias, conceitos e atitudes. Enfim, se transformando. Depois irá compartilhar com toda
a gente esse seu novo jeito de ser. O amor e a sabedoria não podem descansar na teoria,
precisam que você os vivencie nas menores questões do dia a dia. Então, estará pronto
para seguir”.

Tornamos a ficar um bom tempo sem dizer palavra, até que o Velho quebrou o silêncio:
“Vou lhe ensinar um poderoso mantra”, falou. Ele me observou por instantes. Seus olhos
pareciam já ter visto de tudo um pouco nesta vida. Depois sorriu, piscou um dos olhos,
com jeito maroto, como sempre fazia quando contava um segredo e disse: “Está ruim?
Polvilhe com amor”. Rimos.
Então, finalizou: “O amor é o sal da Terra, o tempero da vida. Sem ele tudo é insosso e
intragável”.
A OUTRA FACE, OUTRA VEZ

A biblioteca do mosteiro é encantadora. Uma enorme variedade de títulos em um


ambiente de silêncio e conforto, além da vista espetacular das montanhas permitida por
suas enormes janelas, em estimulante convite à reflexão. Ali era comum encontrar o
Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem, nos finais de
tarde, sentado em uma das poltronas, com os olhos perdidos entre letras e paisagem.
Lembro de certa vez, ainda nos meus dias de iniciação, que me aproximei e, ávido por
conhecimento, pedi a ele uma relação de livros para aprofundar os meus estudos. Ele me
observou com bondade e disse: “Comece por ler qualquer dos livros, o importante é
iniciar. Aos poucos o seu próprio interesse vai direcionar a leitura na medida da sua
necessidade”. Argumentei que a explicação era falha, pois não poderia deixar ao acaso o
direcionamento dos meus estudos. O monge arqueou os lábios em leve sorriso e falou:
“O acaso não existe. O importante é que você esteja por inteiro em cada página lida e que
o seu gosto lhe sustente para que não haja abandono. De alguma estranha maneira, todos
os caminhos levam ao destino”. Recusei a resposta. Então, perguntei a ele se,
hipoteticamente, apenas fosse permitido ler um único livro em toda a sua a vida, qual
escolheria. A nova resposta veio rápida e objetiva: “O Sermão da Montanha”.

Repliquei que não é exatamente um livro, mas um pequeno texto de não mais de cinco
páginas, podendo ser lido em poucos minutos. O Velho tentou explicar: “Toda a sabedoria
da vida consiste em ‘tratar o outro da maneira como quero ser tratado’, como resumiu o
professor. No entanto, poucos conseguem viver de acordo com esta simples frase”. Eu
quis saber o que mais havia no Sermão da Montanha que tanto o encantava. Ele disse:
“Ali você encontrará a estrada para a plenitude e construirá a casa da paz dentro de si,
caso consiga entender toda a amplitude e viver de acordo com aquelas palavras. Todos os
bons livros são apenas releituras de parte dessa pequena grande obra. Nada do que precisa
ler está fora desse texto, nada do que precisa ser está fora você”.

Deu uma pequena pausa e comentou: “Eu o leio todos os dias há anos. As descobertas
ainda não cessaram”. Confessei que já tinha lido o referido texto e, embora tivesse achado
interessante, o encantamento não foi além disto. O monge deu de ombros e voltou à
leitura. Claro que no mesmo instante me acomodei em um canto da biblioteca para ler as
linhas tão incensadas pelo monge. Em menos de uma hora eu já tinha lido o texto várias
vezes. Tornei a interromper o Velho para falar sobre uma parte que dizia que ‘quando
atingido em uma das faces, deveríamos oferecer a outra’. Argumentei que aquela situação
era tão irreal que se tornava uma enorme bobagem. E mais, que ninguém era saco de
pancada e aquilo era um hino à covardia. O Velho fechou o livro que o entretinha e se
virou para mim. Seus olhos transbordavam compaixão: “Não é isso que o texto
aconselha”, falou. “É necessário aprofundar em suas filigranas para entender as
entrelinhas, único jeito para decodificar todo o seu belo conteúdo”.

Contestei. Sustentei que se aquela sabedoria era para o bem da humanidade, por qual
motivo não se expunha, desde sempre, toda a sua verdade de forma clara e objetiva. O
monge respondeu com a sua enorme paciência: “O texto é simples, mas profundo ao
mesmo tempo. Lembre-se de que são palavras proferidas para atravessar o tempo e operar
transformações em infinitas almas em diferentes estágios evolutivos. Assim, as
interpretações são pessoais, na exata medida da expansão de consciência de cada um. Por
isto a necessidade de sempre retornar ao texto, pois são palavras vivas que se alteram na
medida da transformação do leitor”. Deu uma pequena pausa e prosseguiu: “Acho que eu
conseguiria escrever um livro apenas na divagação e reflexão dessa minúscula frase que
você destacou do precioso texto. Aliás, posso afirmar que muitos romances e filmes
maravilhosos já foram realizados com histórias sobre o tema específico da ‘outra face’ e
suas muitas variações e inúmeros comentários. No entanto, talvez pouco tenham se dado
conta da fonte original”.

A irritação com toda a divagação começou a tomar conta de mim, então, eu quis saber
todo o entendimento contido no simples verso daquele texto que o monge enxergava e
me era negado. Havia sarcasmo no meu pedido. O Velho percebeu e sorriu. Seus olhos,
emoldurados pela pele vincada, já tinham visto muitas coisas e não se permitiam mais
perder a luz da vida. Ele disse com enorme paciência: “Dos muitos aspectos, vou abordar
apenas alguns que me parecem mais relevantes no momento”.

Deu uma pequena pausa e iniciou: “O primeiro deles é não usar o mal para combater o
mal. Isto apenas alimenta as forças da escuridão que habitam em ambos os lados,
fortalecendo as sombras e justificando os malfeitores. Todas as vezes que você fala, pensa
ou age movido pelas suas paixões densas e pesadas, estará fomentando as sombras que
existem dentro e fora de você”.

“Como pode alguém reclamar do mal se também o pratica? Temos que modificar essa
experiência se desejamos resultados diferentes do que temos alcançado até agora. Não
que você deva ser conivente com o mal e o malfeitor; eles devem ser estancados. Mas a
maneira pela qual fará isto traz toda a diferença. Uma sombra não tem poder para iluminar
outra. Lembre-se do que diz o mestre em outra passagem do Sermão da Montanha: ‘Você
é a luz do mundo’. Portanto, deixe-a brilhar para iluminar os passos de toda a gente.
Ofereça a sua outra face, a face de luz ”.

“Outra interpretação, igualmente valiosa, que podemos extrair dessa parte do texto é que
‘oferecer a outra face’ também significa se colocar no lugar do outro, ver a situação e o
mundo com as dores, olhares e, principalmente, limitações dessa pessoa. Um sujeito feliz
não pratica deliberadamente o mal. A agressividade é fruto de todo aquele que ainda não
encontrou a paz. Toda violência é fruto do descontrole que tem raiz na agonia, no
desequilíbrio e no sofrimento. Não que isto justifique qualquer loucura ou crime. Claro
que não. Todavia, na verdade, inconscientemente, aquele que praticou o mal está
desesperado consigo mesmo, ele está pedindo ajuda. Assim, ao oferecer a outra face,
permitimos que a compaixão ocupe o lugar do ódio em nossos corações, modificando o
entendimento, a reação e a solução que daremos ao caso. Teremos sempre a escolha entre
a justiça e a vingança. A diferença entre elas está no amor contido em cada decisão. A
vingança tem por objetivo o castigo; a verdadeira justiça está preocupada com a
evolução”. Mirou fundo em meus olhos e disse com bondade: “Em outra passagem no
Sermão, Ele ensina: ‘Quando seu olho é bom, todo o seu universo é luz’. Indispensável
é encontrar a beleza em todas as coisas e pessoas. Seja pelas lições ocultas nos conflitos,
seja como régua para entender até aonde já somos capazes de andar”.

“Não podemos esquecer de mais um grande ensinamento contido na pequenina frase que
aconselha a ‘oferecer a outra face’: a não-violência. Abraçar este comportamento como
estilo de vida é permitido apenas aos corajosos. Toda agressão é uma reação típica
daqueles que têm medo, são inseguros e atacam como mecanismo de defesa. A violência
em qualquer das suas possibilidades (física, verbal ou em pensamento) faz o jogo das
trevas, no qual as suas sombras ganham força para apagar o brilho da sua própria luz. Ao
reagirmos com o que temos de pior, apenas alimentamos as sombras. Como reclamar da
violência se a praticamos de alguma maneira, mesmo em retribuição ou menor
intensidade? Não sejamos hipócritas. É indispensável entender que a paz, como todas as
demais conquistas, nasce de uma escolha. É uma decisão individual que tem o poder de
contaminar e transformar, aos poucos, toda a humanidade. Ser um sujeito pacífico é
elegante, útil e necessário”. Piscou o olho de jeito maroto e brincou: “Ser da paz nunca
sai de moda”. Deu uma pequena pausa e concluiu: “Você lembra de um trecho no Sermão
da Montanha que o mestre diz que mais importante do que ir à missa e rezar é procurar
as pessoas com quem temos problemas para tentar resolvê-los? Esta é uma bela oração.
Amor e sabedoria não podem ser inerciais, temos que movimentá-los para que cumpram
as suas finalidades. Percebe que, ao invés de lamentar os desencontros e exigir a perfeição
dos outros, devemos buscá-los para oferecer o nosso melhor? Como conseguir isto sem
oferecer a outra face?” Se calou por segundos e concluiu: “A face da luz”.

Ficamos um longo tempo sem dizer palavra. Os olhos do monge pareciam perdidos para
além das montanhas. Quebrei o silêncio para dizer que não era fácil seguir aqueles
conselhos. O Velho voltou o seu rosto para mim e disse: “Ninguém disse que era fácil.
Apenas que é necessário. Entender onde se quer chegar motiva o andarilho, direciona as
suas escolhas e revela o Caminho. Esta é a parte que ninguém pode realizar pelo outro, é
a que antecede as asas, é a transmutação do ser. Depois é compartilhar semeando flores
para quem vem atrás e conquistar a permissão para seguir”.
JAMAIS

Estávamos no trem. Eu e o Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais


antigo do mosteiro, seguíamos em uma demorada viagem a uma cidade onde ele
ministraria uma palestra em renomada universidade. Aproveitei a oportunidade para
questionar sobre as dificuldades do aperfeiçoamento pessoal. Sugeri a existência de um
manual mais simples para nos orientar no Caminho, uma vez que os textos sagrados são
por demais complexos e, não raro, possuem interpretações herméticas e codificadas. O
Velho balançou os ombros e disse: “Não faça a ninguém o que você não quer que façam
a você”, deu uma pequena pausa para que eu pensasse um pouco no que ele acabara de
falar e concluiu: “Todo aperfeiçoamento do ser consiste em viver esse ensinamento
maior. Quer algo mais simples do que isso?”

Falei que achava tudo muito complicado, pois sempre há um exercício de possibilidades
entre luz e sombras. O Velho rebateu: “Por isso todas as escolhas são sagradas. Elas
definem quem somos. Portanto, preste sempre atenção: cada gesto ou palavra é semente
de discórdia ou paz”. Eu disse que entendia, mas confessei que tinha dificuldade e
precisava de ajuda. O monge ficou em silêncio por algum tempo e falou: “Existe o Manual
do Andarilho”, deu uma pequena pausa e complementou em tom gaiato, evidenciando o
bom humor e a evidente brincadeira: “Ele é destinado às crianças”. Rimos. Claro que tal
livro não existe. Todavia, eu o provoquei e pedi que facilitasse as coisas para mim. O
Velho, sempre generoso, foi em frente: “Preste atenção à Regra do Jamais. São como
placas de sinalização para proteger o motorista na estrada”:

“Jamais desesperar ou lamentar. Problemas, conflitos ou tragédias devem sempre ser


vistos como valiosas lições, necessárias para alavancar o avanço de todos os envolvidos.
Um olhar mais apurado e sincero lembrará que houve, no passado, um convite suave ao
aprendizado e você recusou. O universo não deseja o sofrimento, pois você é parte dele.
Ele precisa da sua evolução. Sabemos que alunos mais displicentes necessitam de
professores mais rigorosos para ajudá-los a subir de turma. Basta que você se movimente
no sentido da vida para que toda a paisagem se modifique. A vida caminha rumo à luz e
ao amor. Sem a escuridão do casulo a lagarta não entenderia as próprias asas”.

“Jamais reclamar dos outros. Como exigir a perfeição alheia se não a temos para oferecer?
Somos aprendizes. Cada qual com as suas virtudes já adquiridas e as suas dificuldades a
serem vencidas. Todos, sem exceção. Cada um com a sua bela história, repleta de
conquistas e frustrações. Dores e delícias. O planeta, como uma perfeita sala de aula, nos
coloca juntos para que possamos ensinar a uns e aprender com outros, em exata sincronia
e interdependência entre os seres. A tolerância com o outro demonstra a humildade em
relação às suas próprias dificuldades. A Lei das Infinitas Possibilidades permitirá a todos
sempre uma nova chance, nas perfeitas condições para o seu amadurecimento. Nem mais
nem menos. Ao invés de reclamar, ajude. É uma mudança de postura que traz consigo
amor e luz em forma de paciência, compaixão e perdão. Traz serenidade ao coração”.
Deu uma breve pausa e concluiu: “Quem reclama dos outros ainda não sabe quem
realmente é”.

“Jamais se permitir o mau humor e a tristeza. Todo espírito iluminado é alegre. Não há
lugar para os ranzinzas nas Terras Altas. Aceitar os problemas como desafios à evolução
é agir como um estudante repleto de gratidão à universidade por permitir que as suas
habilidades se desenvolvam e o melhor de si floresça. O sujeito triste e mal-humorado
está fora de sintonia com as melhores vibrações que movem o universo e acaba por perder
o mel da vida, que nunca se modificará para se adequar aos desejos do ego. A vida está
conectada às necessidades da alma. Estar em evolução torna a pessoa feliz e bem-
humorada. A estagnação cria o efeito contrário”.

“Jamais aceitar um privilégio. Todo privilégio nasce do conceito ancestral de dominação


e superioridade. É a ultrapassada ideia de que há pessoas melhores ou mais importantes
do que outras. O exercício da igualdade traz consigo o verdadeiro sentimento de justiça,
aquela que tem por objetivo maior a pacificação social através da paz individual.
Enquanto existirem privilégios haverá diferenças. Onde há diferença ocorrerá discórdia e
conflito. Todas as mazelas, de diferentes tamanhos e origens, têm em sua raiz o germe do
privilégio a contaminar a árvore e seus frutos”.

Ficou um tempo em silêncio a olhar a paisagem pela janela do trem e falou: “Todo
andarilho é um nagual”. Estranhei o termo, eu nunca o tinha ouvido. O monge explicou:
“Na mitologia tolteca, o nagual é o ‘guerreiro impecável’. É a pessoa que não mede
esforços ou inventa desculpas para adiar a lapidação do ser. Ele está sempre disposto a
oferecer o seu melhor. O nagual sabe que o mais sábio dos discursos será sempre o próprio
exemplo. A atitude fala em tom acima do verbo. Nisto reside a sua força inquebrantável”.

Percebi que ele tinha chegado ao final. Como não poderia ser diferente, torci o nariz e
reclamei. Aleguei que o referido “manual do jamais” era bastante limitador, pois trazia
muitas proibições. O Velho, antes de falar, me olhou com uma mistura de curiosidade e
bondade, como quem percebe uma criança que insiste em colocar o dedo na tomada
apesar dos avisos de choque: “Você é livre para fazer absolutamente tudo que quiser. luz
e sombras estarão sempre à sua disposição. Esta é a infinita generosidade do Universo.
No entanto, tenha a maturidade em aceitar as justas consequências de suas escolhas. Esta
é a enorme sabedoria do Caminho. A Lei da Ação e Reação é implacável e não poderia
ser diferente. Não pela função de punir, porém com a finalidade de ensinar. A vida tem
compromisso inexorável com a evolução”.

Ficamos um longo tempo sem dizer palavra. O Velho quebrou o silêncio: “O ‘manual’
tem a função de ajudar aqueles que querem seguir a viagem, mas por algum motivo
perderam o rumo. Ele serve para que o andarilho não saia da estrada até que torne a
encontrar o seu destino”. Deu uma pausa e finalizou: “Deixar de alimentar as sombras é
bom, mas não basta. No entanto, é fundamental para começar o alinhamento com a luz”.
UM ESPÍRITO LIVRE

Canção Estrelada, o xamã que tinha o dom de semear a filosofia do seu povo através da
palavra, cantada ou não, conversava com uma sobrinha em uma mesa ao ar livre, debaixo
de uma enorme árvore frondosa. O sol da primavera aquecia o corpo e trazia aconchego
à alma. Avistei-os de longe. O ancião e a bela moça, na casa dos vinte anos, com longas
tranças e os olhos puxados como o tio, riam com vontade. Ela aproveitara as férias na
universidade para visitar a família. Vestia-se como uma jovem da sua idade, com jeans,
camiseta e tênis. Ao me perceber, o xamã fez sinal para que eu me aproximasse. Eles
falavam sobre a postura divergente da sobrinha em relação a determinados
comportamentos de vários alunos, com os quais ela não concordava. Entretanto, de tão
enraizados, nenhum dos colegas ousava pensar diferente, fazendo com que agissem por
automatismo ao invés de se permitirem novas possibilidades. Claro que a moça começava
a colher olhares atravessados e, até mesmo, desafetos. Em seguida, a jovem pediu licença,
pois iria ajudar a mãe em seus afazeres. Ao se despedir, Canção Estrelada a mirou nos
olhos e disse com jeito sereno: “O novo sempre assusta as mentes preguiçosas. É como
chegar em casa e encontrar um estranho. Com o tempo, percebemos que a casa não é
nossa, mas do estranho. E mais, ele não quer que você vá embora. Deseja apenas que
aprenda uma outra maneira de se relacionar com a realidade. Lembre-se, todo espírito
livre é afeito ao novo”.

A sós com o xamã, falei que tinha me chamado a atenção o fato de, apesar dos entreveros,
a moça não estar abalada e mostrar uma interessante mistura de alegria e serenidade.
Canção Estrelada explicou: “Um espírito livre já construiu o abrigo da paz no âmago do
ser. Assim, nada de fora será capaz de alterar o seu equilíbrio e harmonia”. Dei de ombros
e comentei que ela teria muitos problemas na universidade. Sugeri que talvez fosse mais
fácil acompanhar o comportamento dos demais a ter atitudes independentes e dissonantes.
Ele me respondeu de pronto: “Um espírito livre aprendeu a silenciar os tambores do
mundo dentro de si para ouvir a voz do coração. Pedir a um espírito livre que não seja ele
mesmo é não entender a energia vital que o move”.

Perguntei qual a definição de “espírito livre”. Canção Estrelada ficou algum tempo sem
dizer palavra, como quem busca a melhor resposta e disse: “Um espírito livre é todo
aquele que já entendeu que o mundo tem uma enorme prisão: o medo. É a mais cruel das
masmorras”. Mais cruel? Estranhei. Ele explicou: “Porque as suas grades são invisíveis.
Quando você não se percebe aprisionado, não entende a necessidade da liberdade. O
medo te convence que ali, ao lado dele, você está seguro. Te faz acreditar que fora dos
seus domínios não há nada que preste, apenas o risco do sofrimento. Ao aceitar o discurso
do medo, você abdica das suas asas e, pior, aceita a negociar com o medo”. Perguntei o
que impedia as pessoas de se libertarem do medo. A resposta foi seca: “A ignorância é o
carcereiro que impede a expansão do seu nível de consciência. A ignorância é o fiel cão
de guarda do medo. Juntos, medo e ignorância, criam quase todas as sombras que habitam
o ser”. Eu quis saber como fazer para fugir dessa prisão. O xamã falou com seriedade:
“Um espírito livre nunca foge ou lamenta. Ele enfrenta e supera”. Deu uma pequena pausa
e concluiu: “Não existe liberdade na fuga”.

Argumentei que aquela postura poderia trazer muitas brigas e era contrária à paz que ele
tanto defendia. Canção Estrelada balançou a cabeça em negação e disse: “Ser pacífico e
pacificador está na essência do espírito livre. Ele sabe que apenas as ideias duelam, jamais
as pessoas. Para isso, é fundamental que diga a sua verdade de maneira clara, respeitosa
e serena, sem o desejo de impor, convencer ou humilhar o outro. Mesmo que não
concorde, respeita o ponto de vista alheio, pois sabe que cada qual está em distinta curva
do Caminho e, em algum momento, todos se encontrarão no infinito; cada um ao seu
tempo. Isto o faz reconhecer o valor da paciência, pois a semente de bons frutos, cedo ou
tarde, será agraciada pela vida. Assim, se ninguém quiser acompanhá-lo naquele instante,
ele seguirá sozinho. Em paz”.

Divaguei sobre o enorme desconforto que um espírito livre, com suas ideias e atitudes
fora do eixo, pode gerar em um grupo social devidamente acomodado em esferas de
estagnação e privilégios. O xamã explicou: “O espírito livre sabe que a sua postura,
algumas vezes, é o exato espelho a refletir a imagem que o interlocutor não deseja ver.
Nem todos já estão prontos para se confrontar com as feridas da alma. O processo de cura
exige determinação e coragem, virtudes nem sempre disponíveis. Então, há que se ter
compaixão. Ele não toma qualquer atitude na intenção de se arvorar como exemplo de
cidadão ou salvador do mundo, o que o tornaria um idiota leviano e arrogante. Apenas
vive com sincera humildade, de acordo com a sua condição de eterno aprendiz, alinhado
às suas verdades, em respeito a si próprio e de acordo com as suas escolhas”.

“Por esses motivos o espírito livre nunca se sente ofendido com eventuais ofensas. Ele
tem plena consciência de quem é. As agressões são incapazes de desenhar ou colorir a
sua alma; elas apenas mostram a bagagem que o agressor traz no coração. Qualquer
atitude com a intenção de humilhar é desnecessária no trato pessoal. A arrogância e a
humilhação são instrumentos de pessoas escravizadas pelo medo e pela ignorância. Elas
acreditam nesses muros emocionais como forma de esconderem aos olhos de todos a
própria fragilidade através de demonstrações tristes de um poder vazio. As ofensas
retratam a inadequação do ofensor consigo mesmo ao perceber em outras pessoas as
transformações que anseia, porém ainda não consegue efetuar. As ofensas refletem a
confusão interna de quem as profere”.

“O espírito livre sabe que as dificuldades e os conflitos são ferramentas valiosas para a
sua evolução, portanto devem ser bem aproveitadas. O problema nunca será um
problema, mas um fator de crescimento na exata medida em que aprimora a maneira como
reage diante do conflito. Sua superação, uma alegria. A maneira como reagimos diante
do conflito demonstra não apenas a lapidação do ser, mas o antídoto para o sofrimento”.

“Por outro lado, como sempre se move nos trilhos da dignidade e não ultrapassa a
fronteira dos seus valores morais, as chantagens e tentações materiais e financeiras, tão
comuns em sociedade, jamais o alcançarão. A sua alma não tem preço”. Me mirou-me
nos olhos e falou com seriedade: “De quanto menos você precisar, mais livre será”.

Lembrei das dependências afetivas que, por vezes, criam fortes grilhões. O xamã não se
fez de rogado e explicou com tranquilidade: “O espírito livre conhece a importância dos
encontros e dos relacionamentos, pois precisamos do outro para que o amor exista e
cresça. Somos flores nas planícies da humanidade a embelezar a vida de toda a gente.
Não podemos esquecer que o convívio é fonte de preciosas lições. É na convivência com
o outro, com suas dificuldades e delícias, que nos revelamos e percebemos o que nos resta
a ser burilado, tendo sempre em mente que o amor é semente que se espalha ao vento e
não animal a ser caçado. Ninguém pertence a ninguém ou nunca seremos
verdadeiramente livres. Temos a alegria de encontrar muitos pelo Caminho, mas a viagem
é solitária. Pois é a jornada em busca do sagrado que existe dentro de si. O que também
é motivo de alegria”. Canção Estrelada me observou por instantes e perguntou: “Você
entende o que digo ou está confuso?” Respondi que entendia, e ele finalizou: “O espírito
livre entende que ninguém é responsável pela sua felicidade, salvo ele mesmo. Nunca
devemos atribuir ao outro a causa da nossa insatisfação, porém, perceber o aprendizado
que ali se apresenta e aprimorar em si mesmo o resgate da alegria. A felicidade é um
jardim germinado no próprio coração com as sementes do amor e da paz, cujas flores
espalhamos na beira do caminho para quem vem atrás”. Deu uma pausa e concluiu:
“Assim, ninguém poderá aprisionar o seu coração pleno”.

“O espírito livre sabe que estará sempre passível de maus tratos na esfera física através
das muitas maldades possíveis. Não raro, a desenvoltura da sua liberdade incomodará os
mecanismos limitadores daqueles que ainda são prisioneiros das próprias sombras, que,
ao invés de admirar e mirar como uma possibilidade a ser alcançada, invejam e tentam
destruí-lo. Mais uma vez, há que se ter compaixão e seguir se movimentando na certeza
da indestrutibilidade do espírito. O espírito livre tem consciência de que não é o corpo
que veste, mas o espírito imortal que, na realidade, é. A sua alma é inalcançável aos
poderes mundanos. Isto o torna leve, faz com que flutue na brisa”.

Ficamos um longo tempo sem dizer palavra até que percebi que Canção Estrelada me
observava. Quando nossos olhos se cruzaram, ele finalizou: “Desde tempos imemoriais
fomos educados para nos proteger dos perigos do mundo. Nos acostumamos a prestar
mais atenção e a temer a vida lá fora na mera intenção de sobreviver. Nos consolamos
com o passar das horas regado com alguns prazeres sensoriais. A vida é muito mais do
que isso. O que nos ameaça e impede de sermos plenos precisa ser enfrentado dentro de
cada um de nós. Esta é a cura imprescindível. Estamos tão viciados em nossas jaulas que
já nem acreditamos mais que temos asas. Nos tornamos prisioneiros de nossos próprios
medos e dos conceitos criados para sustentá-los. Esquecemos do nosso poder de
transformar a realidade na medida em que somos capazes de nos transformar. Esta é a
batalha a ser enfrentada para que cada qual possa alçar voo em perfeita liberdade”. Eu
quis saber como iniciar essa fantástica jornada. Canção Estrelada sorriu e disse: “Basta
uma escolha, Yoskhaz. Uma única e maravilhosa escolha”.
ABRAÇANDO AS SOMBRAS

Todos os discípulos da Ordem tinham sido avisados de que um de nós, em breve, seria
consagrado monge em cerimônia permitida apenas aos iniciados. Não tive dúvidas de que
eu seria o escolhido. Embora não fosse o aluno mais antigo, era o mais próximo do Velho,
como carinhosamente chamávamos o decano do mosteiro. A ansiedade tomou conta de
mim, me senti orgulhoso e fiquei algumas noites em claro imaginando como seria o ritual
de passagem, tão comentado entre paredes, de discípulo para monge. Até que veio a
notícia de que outro aprendiz era quem seria consagrado. O que parecia dia se tornou
noite. A brisa agradável, que me acariciava o ego, se tornou uma violenta tempestade,
capaz de varrer os meus melhores sentimentos para um lugar tão distante que tive a
sensação de nunca mais encontrá-los.

O ciúme me convenceu de que aquela decisão era injusta. A inveja chegou para me avisar
que a vida era assim, injusta por natureza. Para piorar, o escolhido para se tornar monge
tinha sido o aprendiz com quem eu mais debatia e combatia nas aulas de filosofia e de
metafísica. A mágoa me cobriu com um espesso véu para segredar que bons sentimentos
são frutos da árvore da ingenuidade: um carneiro não sobrevive no meio de lobos. Sim,
eu era a perfeita vítima.

Passei alguns dias ponderando sobre a possibilidade de me desligar da Ordem. Estava


convencido da perda de tempo em insistir num sonho que não encontrava respaldo nem
entre aqueles em quem eu mais confiava. Amuado pelos cantos, avaliava se deveria fazer
um discurso para desmascarar a farsa ou se saía em silêncio, sem aviso, em velado
protesto. Até que ao atravessar o jardim interno do mosteiro, vi o Velho cuidando das
flores. Contornei na tentativa de evitá-lo. Não adiantou. Ao perceber a minha presença,
sem se virar, pediu que eu me aproximasse. Guardou as pequenas ferramentas no bolso
da túnica e pediu que eu o acompanhasse até a sua pequena sala de trabalho. A sós, me
serviu uma xícara de chá e disse: “Yoskhaz, abra o seu coração”.

Respondi, secamente, que estava bem. Não, eu não daria o meu braço a torcer. Minha
indignação seria silenciosa e, se ele tivesse alguma consideração por mim, que decifrasse
as minhas emoções. Ele me olhou com doçura e disse: “O ciúme, a inveja e o ódio nunca
serão bons conselheiros”. Argumentei que ele estava enganado, pois tais sentimentos não
faziam parte da minha personalidade e, há muito, tinham sido superados. O Velho
manteve a paciência, e falou: “Pelas nossas entranhas correm todos os sentimentos. Os
melhores e os piores. Faz parte da natureza humana, não existe exceção. No entanto, o
que fazemos com eles define quem somos e o destino próximo”.

Insisti que ele estava errado quanto a mim, pois tais sombras não me habitavam, embora,
eu as reconhecesse nos outros e, confessei, muito me incomodassem. O monge
respondeu: “Incomodam pelo simples fato de identificá-las, inconscientemente, em si.
Quando passam para o estágio do consciente, a postura se torna de humildade e
compaixão para com todos”.

Lamentei o fato de ele não ter me conhecido melhor, apesar do longo período de
convivência. O Velho respondeu sem alterar a tranquilidade que lhe era característica:
“Percebe que a sua reação demonstra o quanto você desconhece de si mesmo? O processo
de autoconhecimento é o primeiro degrau para alcançar a harmonia e o equilíbrio do ser.
O primeiro portal do Caminho é o encontro consigo mesmo. Quando já conseguimos nos
conhecer, de verdade, nos tornamos íntimos de nossas sombras. Esta cumplicidade serve,
não para alimentá-las, mas ao contrário, para identificar a manifestação delas cada vez
mais cedo, para que seja possível iluminá-las. Assim, em face da rápida intervenção, aos
poucos, as sombras perderão a força de influenciar as nossas escolhas”.

“Fingir que as sombras não nos habitam é muito perigoso. Ao negar as sombras, você
concede a elas total permissão para se movimentarem e se apoderarem do seu ego,
agigantando-o, em rota equivocada quanto à verdade. Você será dominado sem perceber,
de maneira sorrateira, pois o melhor truque delas é convencer que existem apenas nos
outros. Elas iludem: nos fazem confundir amor com ciúme; justiça com vingança; direito
com egoísmo; humildade com humilhação; sucesso com ganância; vitória com
dominação. Pensar que estamos imunes às suas artimanhas, fora do alcance de suas
garras? Ledo engano. Então, invariavelmente, somos levados às escolhas erradas e
adiamos o processo evolutivo. Por outro lado, ao perceber tudo isto, iniciamos a grande
batalha da vida: iluminar as próprias sombras para, depois, transmutá-las”.

Eu quis saber como funcionava esse processo de iluminar e transmutar as sombras. O


Velho arqueou os lábios em leve sorriso e explicou: “Digamos que alguém tenha recebido
um prêmio que você imaginou ser o merecedor. A primeira reação é se sentir injustiçado
e ficar estagnado em lamúrias e reclamações. O andarilho que já iniciou o processo de
autoconhecimento faz uma análise sincera, isenta de emoções, para avaliar se, de fato, o
seu trabalho era superior ao premiado. Se não era, entende em quais atributos precisa
melhorar para que em outro momento lhe seja oferecido o reconhecimento e, mesmo que
este não venha, ele aprendeu e avançou. Assim, torna-se um sujeito melhor. Este é o
grande prêmio”. Deu uma pausa e prosseguiu: “Por outro lado, se tiver convicção de que
o seu trabalho era o merecedor, simplesmente atribui o erro às imperfeições humanas de
julgamento e no seu íntimo segue em paz consigo mesmo, pois o andarilho não precisa
dos aplausos do mundo para se sentir pleno”.

Falei que o exemplo era muito parecido com o meu caso e, por isto, estava contaminado.
O Velho foi paciente: “Imagine a situação em que uma namorada tenha atitudes que
provoque ciúme em você. Aconselhado pelas sombras, a reação mais primitiva é a
tentativa de controlar, reprimir ou modificar a moça para que ela tenha um
comportamento dentro dos parâmetros que você ache adequados. Então, surgem os
conflitos e o sofrimento, pois ninguém tem o poder ou o direito de modificar ninguém.
Insistir nesse comportamento é alimentar as sombras e a dor. Ao identificar o ciúme, a
primeira atitude do andarilho é mergulhar em si para analisar se o que sente está
amplificado por situações traumáticas do passado, feridas abertas de outras relações que
sangram silenciosamente, refletindo reações desproporcionais e inadequadas. Ou mesmo
por mera imaturidade. Percebe que o que lhe faz sofrer está muito mais dentro do que
fora dele. Então, é hora de iniciar um processo de cura para que possa ter uma vida mais
serena e justa. Por outro lado, se o comportamento da namorada estiver na contramão do
convívio saudável, o andarilho sabe que as transformações apenas ocorrem pela
ampliação do nível de consciência, não por vontade alheia. Assim, deseja, de coração,
toda a felicidade do mundo para ela e segue em frente. Livre e em paz”.

O Velho deu uma pausa e prosseguiu: “Seria possível dar inúmeros outros exemplos.
Embora expostos de maneira simples, percebe que em ambos os casos o andarilho não
alimentou nem permitiu que as sombras o manipulassem. Ao contrário, as sombras
serviram de indicador do aperfeiçoamento que lhe falta ou, por outro lado, permitiram
que oferecesse o melhor de si nas lições já aprendidas”.

“Nunca se esqueça: o que nos define é tão somente a maneira como reagimos diante dos
conflitos”.

Tornou a pausar e concluiu: “Acredite, sempre temos escolhas entre o sofrimento e a paz;
sempre podemos fazer diferente e melhor”.

Fui tomado por uma raiva incontrolável. Falei que sabia quem eu era, que ninguém me
conhecia melhor do que eu a mim mesmo. Despejei todas as minhas mágoas pelo fato de
não ter sido o escolhido para a próxima iniciação da Ordem. Sustentei a tese da injustiça.
Falei por minutos a fio. Depois repeti as mesmas lamentações várias vezes. Falar me
ajudava a exorcizar o meu sofrimento, pois, à medida que eu ouvia e ouvia as minhas
próprias palavras, começava a entender que elas revelavam para mim mesmo quem eu
era de verdade. Eram palavras pesadas como os sentimentos que as revestiam. Aos
poucos, a minha consciência dizia que não era aquilo que eu desejava para mim. A minha
alma soprava que aquele discurso era incoerente com a minha busca. Eu precisava que
florescesse a verdade em mim.

Não foi fácil admitir. O Velho me escutava em profundo silêncio, e seus olhos
transbordavam uma involuntária misericórdia, o que, no início, aumentou ainda mais o
meu ódio, fazendo com que eu subisse o volume da voz. Ele se manteve impassível. À
medida que eu falava os desatinos que vinham à mente, fui dando conta de que toda
aquela piedade no olhar do monge não era com o intuito de me humilhar ou fazer com
que eu me sentisse menor. Era amor. Um amor puro e incondicional por me ver sofrer,
por desejar o meu bem, por entender que eu sentia. O seu olhar era humilde, me contava
que ele já tinha passado por aquela situação.

Naquele instante, percebi que não precisava ter vergonha ou culpa pelo que sentia. Todos,
cedo ou tarde, atravessam essa porta. Percebi que eu dificultava a cura na medida em que
escondia a minha dor. Entendi, também, o quanto ainda estava distante de onde pensava
já ter chegado. Aquela catarse revelara a minha alma nua diante do perfeito espelho:
estava rasgada a fantasia do ego. A máscara que mostrava um personagem ao mundo,
uma pessoa que eu nunca fui, com virtudes que ainda não dominava, tinha caído. Tudo
aquilo não se sustentava mais. Mostrar à sociedade uma força, um poder e capacidades
que não faziam parte de mim, apenas demonstravam toda a minha fraqueza e o meu medo.
Estava na hora de construir quem eu sempre desejei ser, sem ilusões, longe da farsa que
eu mesmo montara por toda uma vida para enganar a mim mesmo. Chorei até as lágrimas
secarem.

Ficamos um longo tempo sem dizer palavra. Quebrei o silêncio para admitir que todos no
mosteiro tinham razão: eu ainda não estava pronto para o próximo passo. A minha reação
mostrava isto. Falei também que me empenharia ao máximo, não com o intuito de me
tornar um monge, mas para construir, de fato, quem eu queria ser. Tudo é causa e
consequência.

O Velho sorriu e revelou: “Neste momento, você acaba de colocar o pé no Caminho. Seja
bem-vindo!”
Ele me deu um forte abraço. Agradeci ao Velho por me fazer entender o momento pelo
qual passava. Ele ofereceu um lindo sorriso e falou: “Não agradeça a mim, mas às
sombras. Ao invés de brigar com elas, abrace-as. Nunca as perca de vista para que possam
ser vigiadas e educadas. Elas são o contraponto, a sinalização dos obstáculos a serem
superados. São a exata medida do que nos falta para a integralidade, a liberdade, a
plenitude e a paz”.
A PONTE PARA A FELICIDADE

Estávamos, eu e o Velho, como carinhosamente chamávamos o decano da Ordem,


chegando ao mosteiro de uma viagem, quando fomos abordados por um rapaz no portão,
que, de modo educado, pediu uma prosa de dois minutinhos com o monge. Como se
desconhecesse o cansaço, o Velho convidou o visitante para um café no refeitório onde
poderiam conversar com mais calma. Enquanto esquentava a água, eu ouvia a conversa
dos dois. O jovem se revelou desiludido com o mundo. Nenhuma das possibilidades que
a vida apresentou foi satisfatória e capaz de torná-lo um homem feliz. Sentia-se amarrado
às estruturas impostas pela sociedade, a quem culpava por sua agonia; dizia-se
incompreendido por amigos e parentes, causadores da sua insatisfação. O monge logo
ponderou o raciocínio do visitante: “Ninguém o pode impedi-lo da felicidade, salvo você
a si mesmo. Não transferir responsabilidades é um bom início”.

O rapaz falou que estava cansado da tristeza e do sofrimento que o acompanhavam há


muito tempo. Confessou não saber o que fazer. O monge o olhou com bondade, esperou
que eu enchesse as canecas com café, serviu-se de um pedaço de bolo de aveia com frutas
silvestres e falou: “A vida disponibiliza a cada qual, de acordo com o nível de consciência
e amplitude amorosa, as perfeitas condições para a busca da felicidade. Tanto que a
ocultou no âmago de cada ser com a justa intenção de que a viagem seja interna para que
todos tenham acesso. Cada passo é uma etapa da evolução a que todos estamos
destinados”. O jovem interrompeu e disse não saber por onde começar. O Velho explicou:
“A estação inicial é uma sala espelhada que tem por objetivo mostrar ao viajante todas as
feridas da sua alma. Até aquelas que ele nega ou relega ao esquecimento. São traumas,
mágoas, insucessos, decepções, entre outras fraturas sentimentais que o impedem de
caminhar; são as sombras que, quando ignoradas, alimentam o sofrimento por nos iludir
saudáveis. O conhecimento sincero sobre si mesmo e a coragem para a superação são
partes essenciais do tratamento; amor e sabedoria são os ingredientes do remédio; a
plenitude é a cura”. Deu uma pausa e concluiu: “Na estrada para a felicidade o andarilho
tem de atravessar uma ponte. Dois pilares a sustentam. Esse é um deles, a plenitude”.

O rapaz rapidamente perguntou qual era o outro pilar. O monge respondeu: “A liberdade”.
O jovem pediu para se aprofundar e o Velho o atendeu: “Todas as formas de dependência,
seja afetiva, material, social ou cultural são cárceres da existência e todas se desmancham
no ar na transformação do olhar e das escolhas. Logo, o ser livre tem por princípio não
deslocar o eixo da responsabilidade que lhe cabe na conquista da própria felicidade. Todas
as vezes que atribuímos a alguém a causa da nossa insatisfação ou tristeza abdicamos da
liberdade por abrir mão de efetuar as transformações que poderíamos operar em nossas
vidas. Assim, cada um se condena a mais um período de estagnação. Aceitar que os
obstáculos não são impedimentos, mas trampolins para a evolução é uma atitude típica
das pessoas livres. A liberdade nunca será um presente concedido por ninguém, porém
uma construção consciente e corajosa, vivida através do aprimoramento das escolhas
pessoais, necessárias nas vezes que alguma situação tentar se opor à felicidade. O que
muitos entendem como um muro a obstruir a estrada o ser livre interpreta como a chegada
do momento de usar as asas para ultrapassar e seguir além daquilo que o oprime. A
dignidade é o único limite para a liberdade”.

O rapaz perguntou onde poderia adquirir maiores conhecimentos sobre o assunto. O


Velho arqueou os lábios em leve sorriso e respondeu: “Na vida. Os verdadeiros mestres
estão escondidos em cada conflito ou problema apresentado. As oportunidades são tantas
que transbordam. Cada dificuldade indica uma possibilidade de transformação e avanço.
Cada obstáculo oferece a chance para a evolução do olhar, do sentir e do agir; de fazer
diferente e melhor. Em cada conflito a exata lição para a qual o aprendiz já se encontra
em condições de avançar. O universo, em sua incomensurável sabedoria, não vai
ministrar aulas de trigonometria para almas do jardim de infância”. Deu uma pequena
pausa e acrescentou: “No entanto, não raro nos comportamos como aquelas crianças que
querem apenas a diversão proporcionada pela escola e torcemos o nariz na hora do esforço
necessário para o estudo e o enfrentamento das provas. Então reclamamos do colégio, dos
professores e dos amiguinhos, como causas da nossa dificuldade, esquecendo que nos
negamos a fazer a parte que nos cabia. Assim, repetimos de ano; não à toa, a vida é um
enorme ciclo composto de muitos ciclos menores que se repetem indefinidamente até que
aceitemos a evolução. Para tanto, as lições se tornam mais severas, não por castigo, mas
por amor dos professores aos seus alunos”. Olhou com doçura para o rapaz e perguntou:
“Percebe que todos já têm os seus mestres? Que as fontes de sabedoria são fartas e jorram
por todo lado? Podemos aproveitar ou não. Apenas precisamos da mente desperta e do
coração aberto para aproveitar as aulas oferecidas”.

O rapaz disse que começava a entender e logo começaria a construção dos alicerces da
plenitude e da liberdade para atravessar a ponte para a felicidade. Fez menção de se
despedir quando foi surpreendido pelo monge: “Mas os alicerces de nada servem sem o
piso da ponte para apoiarmos os pés”. O jovem perguntou qual seria o piso da ponte a ser
trilhada. O Velho franziu a sobrancelha e disse: “O amor”.

“A plenitude e a liberdade não podem nos levar ao isolamento nem ao egoísmo. A busca
desenfreada pela sensação maravilhosa que proporcionam podem nos levar à ilusão da
vitória por ignorar o outro; emprestar a desculpa da falta de tempo; envolver com o manto
sombrio da indiferença; convencer que seguir adiante é o mesmo que atropelar quem, por
descuido ou propositalmente, se opuser a nossa trajetória para a felicidade; nos escusamos
de ajudar sob as mais tortuosas justificativas. Enfim, por absurdo e não raro, na busca da
felicidade nos tornamos egoístas. Acabamos por gerar conflitos desnecessários,
distanciamentos, tornamos a abrir feridas, trazendo em sua esteira uma enorme bagagem
de abandonos e sofrimentos. Dessa maneira, na contramão do desejo de voar, tomamos
decisões que nos mantêm em um terrível cárcere sem grades; no anseio pela cura,
esquecemos de usar o remédio”.

“Para chegar à felicidade é preciso inverter os valores. Ser livre é uma escolha individual,
mas você precisa do outro para exercitar o desapego às velhas formas. Para ser pleno você
não carece da autorização de ninguém, mas necessita do outro para que floresçam as suas
melhores virtudes. É no convívio que entendemos as nossas reações e o quanto nos falta
para aprender. A evolução é pessoal, mas é impossível evoluir sozinho. Então, a
necessidade do amor para que liberdade e plenitude não sejam partes dissonantes de uma
ponte inacabada. O amor, na sua essência, e por ser essencial, ensina a transformar tudo
aquilo que não é imprescindível. O andarilho, por saber que está longe da perfeição, nunca
esquece que ele sempre pode ser diferente e melhor. Isto é libertador. No egoísmo não
existe liberdade, apenas individualismo. Na ausência de amor não existe plenitude,
apenas o vazio. A caridade, a compaixão e a misericórdia são estranhas virtudes que nos
ensinam ser o amor é uma complexa equação que à medida em que dividimos as partes
multiplicamos o todo. Isto é vivenciar o amor em toda a sua plenitude”.
O rapaz argumentou que se precisamos do outro, dependemos dele; logo, não há que se
falar em liberdade ou plenitude. O Velho ofereceu um belo sorriso e disse: “Precisamos
nos relacionar com outras pessoas; no entanto, a felicidade não é dependente das atitudes
alheias; não importa como o outro aja ou reaja, nada do que ele faça será suficiente para
impedir você de seguir em frente. Basta o sincero sentimento de que naquele momento
você ofertou o seu melhor. Nada há o que se fazer se ele não entendeu ou não aproveitou.
Apenas aceite que ele ainda não estava pronto para entender e usufruir a beleza do
momento. Não insista em convencer, este é o esforço dos tolos. Não há necessidade de
sofrimento, pois em algum momento, cedo ou tarde, ele entenderá e, então, seguirá; a
dificuldade é dele; embora conte com a sua honesta solidariedade, não pode impedir você
de seguir a sua jornada pessoal. Nunca se esqueça de amar a si próprio enquanto amar um
outro alguém. Essa é a maravilhosa sustentação alcançada através da harmonia entre a
liberdade e a plenitude.”.

“A felicidade se processa na medida das transformações pessoais e do aperfeiçoamento


das suas escolhas. Cada pessoa no seu ritmo, de acordo com o seu nível de consciência e
amplitude amorosa; porém, todos conectados. Da mesma maneira que a solidão e a
quietude são fundamentais, o convívio com toda a gente é parte primordial do
aprimoramento da alma, seja na superação pacífica de conflitos, seja no exercício do
melhor que habita e frutifica no coração. Uma simbiose sagrada entre aprender com
alguns e ensinar a outros. O outro não é apenas um aliado ou um vilão no Caminho, mas
seu contraponto e espelho, a permitir que entenda as arestas que ainda precisam ser
aparadas. Assim caminhamos todos, mas cada qual seguirá adiante em marcha própria:
na medida das lições aprendidas, dos ciclos encerrados, das transformações pessoais já
integradas à alma e compartilhadas com o mundo”.

O jovem bebeu o restante do café e confessou que entendia apenas em parte tudo que o
monge explicara. Iria refletir sobre aquela conversa para que as novas ideias pudessem
encontrar o seu lugar. O Velho balançou a cabeça concordando e finalizou: “Fomos
acostumados a pensar a felicidade como algo externo, ligado às conquistas materiais, ao
sucesso e aos aplausos. Embora sejam coisas agradáveis, não percebemos como tudo isso
é vão, efêmero e, mais grave, gera aprisionamento. Terminam por se tornar fontes de
agonia, tristeza e sofrimento por estarem alheias e além da nossa capacidade pessoal de
decisão e gerenciamento. Então, enquanto lamentamos as frustrações, deixamos de
exercer o verdadeiro poder que nos cabe e que define a paz e a felicidade dos dias
próximos: as infinitas possibilidades quando se tem um olhar iluminado; a capacidade
transformadora das escolhas disponíveis a todo momento; a verdadeira riqueza trazida
pelos bons sentimentos. Vivemos com gosto amargo por não entender que o mel da vida
brota dentro e não fora da gente”.
O VAMPIRO E O MITO DA IMORTALIDADE

Encontrei fechada a oficina de Loureiro, o sapateiro amante dos livros e dos vinhos.
Filosofia e tinto eram as suas preferências. Dirigi-me a uma aconchegante taberna, onde
o meu amigo costumava beber uma taça antes de ir para casa. Dei sorte. Lá estava ele,
sentado em uma confortável poltrona, ao lado de um abajur, entretido na leitura. Fui
recebido com a alegria de sempre pelo artesão, elegante no vestir e no agir. Quando ele
repousou o livro sobre a mesa, reparei que era Drácula, do escritor irlandês Bram Stoker,
um clássico da literatura. Falei que nunca tinha lido aquela obra, embora a história do
vampiro fosse de conhecimento de todos, e eu tivesse assistido ao filme, com o mesmo
nome, dirigido pelo Francis Coppola. Pedi uma taça de vinho para acompanhar o bom
sapateiro e perguntei se o filme era fiel ao enredo do livro. Loureiro se acomodou na
poltrona e falou: “Isso é o que menos importa”. Antes que eu pudesse falar algo, ele
prosseguiu: “A questão contida em Drácula é o mito da imortalidade que a história tem
como pano de fundo. Todo o fascínio pelo vampirismo, que é anterior ao próprio Drácula,
nasce do desejo incontrolável da humanidade, desde o início dos tempos, em vencer a
morte. Dentro de toda a inconstância característica da vida de qualquer pessoa, a morte
sempre foi a única certeza. Porém, sempre incomodou porque esteve ligada à ideia do
fim”.

Comentei que os alquimistas sempre se empenharam na busca, não só pela pedra filosofal,
que permitia transformar chumbo em ouro, mas, também, em descobrir o segredo do elixir
da vida eterna, na esperança de que a vida fosse infinita e as conquistas pessoais não se
perdessem no éter da existência. O artesão arqueou os lábios em leve sorriso e disse: “A
diferença está no fato de que, enquanto o vampirismo glorifica a perenidade do corpo, os
alquimistas descobriram que a imortalidade está presente através do espírito, a verdadeira
persona de cada um. O espírito é eterno; logo, somos todos eternos. O corpo é apenas
uma vestimenta provisória, necessária para frequentar a universidade desta existência,
neste planeta. Troca-se de roupa até não precisar mais dela”.

Deu uma pausa para um gole de vinho e prosseguiu: “Resolvida a questão do elixir, foram
à procura da pedra filosofal que, como o nome sugere, é imaterial, é tão somente um
conceito; surge e se desmancha no ar. Entenderam que a pedra se resume na capacidade
de transformação do próprio espírito. O que não é pouco. Ao contrário, traduz a essência
da vida. As transformações a que se referiam são aquelas que alavancam a evolução da
alma, a iluminação das próprias sombras e da cura das fraturas sentimentais,
representadas simbolicamente na transmutação do padrão cinza do chumbo pela luz
dourada do ouro. Nunca no aspecto material, mas na verdadeira riqueza da
espiritualidade. O ouro é vão; se perde, é roubado, troca de mão e não pode ser levado
para a próxima estação. A luz, ao contrário, é a herança que te acompanhará ao infinito e
ensinará a força, a beleza e a magia do amor”.

Questionei o motivo pelo qual o vampirismo ainda desperta tanto interesse. Loureiro
bebericou o vinho e disse: “Os vampiros habitam o inconsciente coletivo porque estão
ligados ao ego e ao corpo. Sem que as pessoas percebam, o mito se sustenta entre aqueles
que têm grandes dificuldades em mudar o olhar e as atitudes. Não raro lutam de maneira
insana contra o envelhecimento inevitável do corpo, o que é bem diferente de levar uma
vida saudável. São pessoas que não sabem se relacionar com o tempo nem com a alma.
Seja pelo fato de o ego se iludir perfeito ou maravilhoso, seja pelo medo do que virá, do
desconhecido, do novo. Não à toa, na infância da evolução, temos mais facilidade de
entender e se relacionar com o corpo, e entre corpos, do que entender a alma e conviver
com outras almas. Assim, entende-se porque alguns estão mais ligados ao prazer; outros,
ao amor”.

“Se você prestar atenção, o vampiro é aquele que não quer evoluir, até porque tem um
ego enorme, se julga poderoso, se ilude maravilhoso. Ao contrário, ele quer que o mundo
se adapte aos seus desejos e necessidades. Enquanto a alma é dinâmica por necessidade,
natureza e filosofia, o ego é estático. O vampiro não tolera o movimento. Ele quer a
manutenção do passado como eterno presente. O presente como transformação para o
futuro é entendido como a destruição do seu mundo e, por consequência, do seu ego
superdimensionado. Não à toa, na ficção, o vampiro tem aversão à luz do sol, que é o
símbolo da evolução na alquimia, a representação poética da sabedoria e da liberdade.
Por motivos análogos, ele teme o crucifixo, por representar o renascimento, a
transformação. Mas o mundo muda, a humanidade avança. Inexoravelmente”.

“No caixão em que repousa, metáfora do ser abandonado e enfraquecido dentro de si


mesmo, quando a noite é mais escura, ou seja, quando suas próprias sombras se fazem
mais fortes, parte sedento pelo sangue alheio, pois precisa da energia de outras pessoas,
uma vez que não consegue mais se manter por si só. Torna-se incapaz de gerar vida em
seu âmago, algo simples para um ser de luz. Não satisfeito em sugar o outro, obriga-o a
se moldar em seu estilo sombrio de vida, ao impor-lhe, também, a condição de vampiro,
escravizando-o ao seu ambiente tenebroso. Tornar-se um vampiro não é transformação;
é estagnação; aprisionamento”.

“O mito do vampirismo traz oculto o desejo ancestral por dominação. O vampiro anseia
pelo poder sobre tudo e todos. A riqueza material que amealha através dos séculos; as
pessoas que inferniza e manipula. Dinheiro e dominação. É o baile de trevas que os egos
inflados sonham em dançar”.

Enquanto assentava todas aquelas ideias na mente, comentei que ficava impressionado
pelo fato de esse mito sobreviver ao tempo. O sapateiro arqueou as sobrancelhas e
explicou: “O mito estará presente enquanto existir representatividade no íntimo das
pessoas. O vampiro é a representação artística que os contadores de histórias encontraram
de revelar as sombras da humanidade. Já prestou atenção em quantos vampiros você
conhece? Pior e mais grave, consegue perceber o quanto de vampiro existe em você?”

Antes que eu me sentisse ofendido, o bom artesão me trouxe à realidade: “Todas as vezes
que valorizamos o ego em detrimento da alma; que nos identificamos mais com o nosso
corpo do que com o nosso espírito; que negociamos com as sombras em prejuízo da luz;
que infernizamos alguém para sugar-lhe a energia; que manipulamos ou dominamos o
outro ao invés de respeitar o seu direito inalienável de escolha, revelamos a face oculta
do vampiro que ainda nos habita”.

Tentei brincar e disse que até achava os vampiros charmosos. Quando, então, Loureiro
me desconcertou: “Encontrar charme na tristeza serve apenas na ficção. Percebe que todo
vampiro é infeliz? Fruto da enorme dependência que todo dominador tem. A eterna busca
pelo poder sobre o outro o envolve em esfera de agonia, de sofrimento; é pão que não
alimenta, é o prisioneiro da masmorra que construiu para si mesmo. O melhor da vida é
celebrado com a alegria. Encantadora é a busca pela liberdade; a beleza de caminhar pelo
lado ensolarado da estrada; a leveza de entender que o melhor de si é eterno, imaterial e
reside na alma; que não há evolução sem transformação”.

“Drácula é a representação artística de uma triste realidade, presente toda vez que
‘vampirizamos’ alguém, sugando, não o sangue, mas a energia, a alegria, a beleza em
viver, na ilusão de que toda essa riqueza se transfira para nós. No entanto, não existe
felicidade no mal, seus ganhos são efêmeros e pueris. Não à toa, todo vampiro precisa
viver em ambientes mal iluminados na ficção, em representatividade adequada ao atual
estágio de sua alma na realidade”.

“Na ficção, o vampiro não pode ver a própria imagem refletida no espelho, na simbologia
daquele que não consegue perceber quem realmente é, de enxergar as feridas abertas da
alma, tornando-o, por isto, incapaz de entender as mudanças necessárias. Então, torna-se
indispensável a destruição do vampiro através da renovação e da luz, representadas pelo
crucifixo e pelo sol. Assim, ‘matamos’ o vampiro que existe em nós todas as vezes que
abdicamos dos conceitos de dominação em troca das ideias e práticas que nos levam à
verdadeira libertação”.

Eu quis saber como conseguimos essa maravilhosa libertação. Loureiro levantou a taça
em brinde e finalizou: “Recitando diariamente um mantra: tudo, absolutamente tudo,
pode ser diferente e melhor”.
O MURO

O prédio do mosteiro é uma sólida construção em paredes de pedras que atravessa os


séculos com a mesma firmeza da montanha que o abriga. Ou quase. Um dos muros
começou a dar sinais de deterioração e fiquei responsável por sua manutenção. Dentre as
várias opções, escolhi uma construtora cujo dono era um amigo dos tempos de colégio e
que aparentava capacidade para levar a termo a tarefa. Apesar de todos os avisos de que
não se tratava de um simples conserto, mas de uma restauração, na qual todas as
características originais deveriam ser mantidas, o resultado foi desastroso. Eu estava
irritadíssimo quando encontrei com o Velho, como carinhosamente chamávamos o
monge mais antigo da Ordem. Era final da tarde, horário em que ele se dedicava à leitura.
Pediu que o acompanhasse até a biblioteca. Sentamos em confortáveis poltronas ao lado
de enormes janelas, tendo como paisagem a bela floresta dos arredores. Serviu-nos com
xícaras fumegantes de café. Logo, comecei a desfiar meu rosário de lamentações sobre a
reforma do muro. Disse que estava muito decepcionado com aquele amigo, que fez um
serviço muito aquém do contratado e, pior, do prometido. O Velho comentou com doçura:
“De fato ficou muito ruim, teremos que refazer o trabalho”.

Falei que lamentava a escolha, porém já tinha tomado providências. Enviei uma dura
mensagem relatando a queixa, exigindo que o muro fosse refeito dentro dos padrões
exigidos. Não satisfeito, telefonei para ele e tracei críticas com palavras duras. O monge
me observou com os olhos repletos de compaixão e perguntou: “Como você se sente?”
Confessei que estava mal, uma mistura se sentimentos que migravam entre a tristeza de
ter brigado com um amigo e a raiva por ele ter me decepcionado. O Velho rebateu: “Isto
é muito pior do que o muro mal remendado. Ninguém precisa de um muro perfeito para
ser feliz; de um coração tranquilo, sim”.

Acrescentei que não devíamos ser lenientes com os erros; caso contrário, a humanidade
não avançaria. O monge arqueou as sobrancelhas e disse: “A melhor maneira de cuidar
do mundo é aperfeiçoar a si próprio. Não se detenha para criticar o estágio evolutivo de
ninguém, salvo de si mesmo. Entenda que cada qual tem as suas próprias limitações,
somente oferecendo o que tem para dar. Sejamos pacientes com as limitações alheias,
para que possamos construir uma ambiência de tolerância e paz”. Deu uma pequena pausa
e concluiu: “O Universo, como bom educador, aplicará a cada um a lição necessária para
alavancar as transformações indispensáveis que permitirão a adequada evolução”.
Questionei se não deveríamos manifestar o desagrado e lutar pelos nossos direitos. O
monge respondeu de imediato: “Sempre. No entanto, o jeito que escolhemos para isso faz
toda a diferença e pode ser a fronteira entre as sombras e a luz”.

Contei que, embora tivesse usado palavras duras, eu tinha falado apenas a verdade. Era o
melhor jeito de ele aprender a ser mais caprichoso ou não se comprometer com algo que
não fosse capaz de realizar. O monge quis saber: “Então, por que você está se sentindo
tão mal e irritado?” Falei que, embora eu tivesse sido justo, me surpreendi com o fato de
o meu amigo ter ficado magoado. Algo que eu considerava absurdo, uma vez que o
prejudicado não tinha sido ele. O Velho fixou os seus olhos nos meus e disse com
candura: “Você percebe qual o sentimento que te moveu ao traçar as críticas? Entende
que a emoção que movimentou as suas palavras não foi a de ensinar, mas a de ferir? Por
isto está se sentindo tão mal”.
Discordei veementemente. Tornei a insistir que tinha me atido à verdade e as minhas
palavras eram justas. O monge me corrigiu: “Não tenho a menor dúvida de que você se
manifestou nos exatos limites da verdade. No entanto, tenho dúvidas quanto ao fato de
ter sido um ato de justiça”. Fiquei indignado, era só o que faltava. O sujeito causara
prejuízo e transtorno; como se não bastasse, se tornara vítima. O Velho não deixou que a
minha impaciência o contagiasse e seguiu em seu tom manso de voz: “Não há vítimas e,
não raro, repudio a figura dessa máscara que tanto atrasa a marcha das pessoas. Penso
que todos devem entender a responsabilidade, não só de suas ações, mas de suas reações.
Devolver o mal com o mal não traz avanço, apenas alimenta as sombras. Perceber o
sentimento que impulsiona a sua resposta é a perfeita diferença entre a justiça e a
vingança. Se você quer, de fato, ensinar ou apenas punir”.

“A fronteira entre a justiça e a vingança é o amor. Não há justiça sem que a decisão
envolva a realidade do perdão, sem que permita ao outro a oportunidade da renovação”.

“Isto talvez explique o fato de você se sentir tão mal. Embora tenha trabalhado apenas
com a verdade, perdeu a oportunidade de ser justo. A justiça está um degrau acima da
realidade dos fatos. Ao menos na acepção mais elevada do conceito. Talvez o melhor a
fazer é procurar o seu amigo e lhe pedir desculpas”.

Não era sério. Ou não poderia ser sério. O bom monge só poderia estar brincando. Eu
tinha sido o lesado, passara pelo constrangimento diante de toda a Ordem por ser o
responsável por aquela escolha, tinha me decepcionado com a palavra não cumprida de
um amigo de longa data e ainda pediria desculpas? Não, era muita humilhação. O Velho
tornou a me corrigir, sempre com doçura: “Só há humilhação quando aceitamos a ofensa,
nunca quando oferecemos o nosso melhor. Entender as próprias dificuldades permite a
tolerância com os limites dos outros. Assim, restará a grandeza da humildade”. Rebati
dizendo que o fato que originou toda a situação me deixava repleto de razão. O monge
insistiu: “Quem tem razão é o que menos importa. O importante é não perder a
oportunidade para decodificar os nossos sentimentos. Quando nos tornam tristes, estão
orientados pelas sombras. Porém, sempre teremos a possibilidade da transmutação, basta
iluminá-los. Para isso, tudo se resume a reinventar o conteúdo do binômio: entendimento-
escolha. Desta maneira, nos permitiremos o envolvimento em esfera de alegria e leveza,
na medida em que ousarmos a pensar de maneira diferente quanto à possibilidade de
modificar as nossas escolhas e, assim, oferecer o que até então era inimaginável. O fardo,
até aqui pesado, se transformará em asas”.

Falei que o meu amigo era uma pessoa muito orgulhosa e a sua mágoa era um truque para
não admitir os próprios erros. O Velho explicou com paciência: “O orgulho é uma
limitação do ego que, iludido pelas sombras e movido pelo medo, pensa em se proteger.
Você não pode permitir que o orgulho domine as suas escolhas, sob pena de ficar
contaminado pelo ambiente sombrio que aprisiona em um mesmo cárcere todos os
envolvidos emocionalmente com a situação. Se ele quer insistir nessa reação, é um
problema dele; não há como impedir. Porém, você pode se libertar da perigosa zona de
trevas que tais emoções costumam aprisionar. Para isso, é necessário agir de acordo com
os movimentos da luz na prática dos seus sentimentos mais puros e sutis. Desfazer o mal
praticado, ainda que infinitamente menor ao mal sofrido, é a estrada para a plenitude”,
concluiu com o olhar perdido nas montanhas: “Ofereça o seu melhor sempre, mesmo que
o outro não queira aceitar. A recusa é uma dificuldade dele. O perdão não precisa de
anuência, é unilateral. Você pede sinceras desculpas pelo seu erro, perdoa a quem te fez
mal, se liberta da masmorra criada pela situação e segue”.

Argumentei que eu tinha que me proteger e não podia me expor gratuitamente. O monge
franziu as sobrancelhas e questionou: “Você percebe que o que rouba a sua paz é o ego
que tenta se proteger atrás da sombra do orgulho, alimentado pelo medo de o outro não
reconhecer a sua razão? Por que o vício pela aceitação e aplausos alheios? Por que
tamanha dependência? Entende a desnecessidade? Esta é a raiz da desarmonia do ser e de
todas as nossas relações. Seja qual for a reação do seu amigo, ela não pode impedir a sua
melhor ação. Isto o torna um espírito verdadeiramente livre”.

Ficamos um longo tempo sem dizer palavra. Pedi licença e me retirei. Não estava
convencido sobre os argumentos do monge, mas queria refletir sobre eles.

Na manhã seguinte, nos encontramos no refeitório. O Velho se aproximou, sem que eu


percebesse, e perguntou: “O que aconteceu? Suas feições mudaram, estão mais leves”.
Relatei que na noite passada, depois de meditar sobre a nossa conversa, liguei para o meu
amigo e disse que, apesar de obra do muro não ter ficado a contento, eu queria me
desculpar pelas palavras duras que usei para manifestar a minha insatisfação. Ele foi
amável comigo, embora não tenha reconhecido qualquer erro da sua parte. Alegou que
não sabia que se tratava de uma restauração, embora eu tenha dito isto várias vezes antes
da obra. Mas não insisti. Entendi que a argumentação dele era um detalhe sem
importância, pois cada qual sempre agirá de acordo com o seu exato nível de consciência.
O mal-estar foi desfeito e me restou a certeza de que a verdade, colocada de jeito claro e
manso, é como uma boa semente que germinará depois das chuvas. A minha alegria tinha
voltado e, com ela, a paz.

O Velho arqueou os lábios em leve sorriso e disse: “Essa é a lição do muro, em todas as
suas dimensões existenciais”. Como meus olhos apresentaram um enorme ponto de
interrogação diante dessas palavras, o monge se fez mais claro: “A ideia do muro, desde
tempos imemoriais, está ligada à necessidade de proteção. No entanto, temos que ter
cuidado com o muro que construímos para nos resguardar da vida. Pois o mesmo muro
que protege é o que nos impede de ver e ir além. Viver é muito mais do que a segurança
intramuros, mas o fantástico e definitivo voo sobre o abismo do medo”.
A LEI DAS INFINITAS OPORTUNIDADES

O Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem, já tinha me


falado do código não-escrito, um conjunto de leis universais que regula a vida em diversos
planos da existência e que sujeita o destino de todos. O entendimento de como funcionam
essas regras amplia a consciência, afina as escolhas e pavimenta o Caminho. Já tínhamos
conversado sobre a lei dos ciclos e a sua importância. Eu tinha ouvido falar da existência
das leis da evolução, da afinidade, da ação e reação, entre outras. Na primeira vez em que
tornei a ficar a sós com ele, eu quis saber mais sobre a lei das infinitas oportunidades. O
Velho estava ao fogão, preparando uma sopa de cogumelos frescos, uma iguaria famosa
no mosteiro. Sugeriu que eu o auxiliasse enquanto ele cozinhava: “A alquimia nasceu na
cozinha”, falou de jeito gaiato. Em seguida começou a explicar: “Talvez nenhuma outra
lei seja tão clara para demonstrar a incomensurável generosidade da vida e a enorme
sabedoria do universo. Ela fala dos nossos erros e do amor com que somos tratados”.

Pediu que eu cortasse algumas cebolas e prosseguiu: “O código não escrito regula o
processo evolutivo de cada um de nós, impondo a exata lição para a qual já estamos aptos.
A premissa inicial é que a razão da existência, neste plano, é a evolução espiritual. Em
suma, estamos aqui para evoluir. Perceber isto é um bom começo, pois permite entender
que os mestres estão disfarçados e nos aplicam os devidos ensinamentos através do nosso
convívio com os outros e pela maneira como reagimos diante dos conflitos enfrentados.
Este é o método desta universidade, não há outro”.

“No entanto, nem sempre nos portamos como bons alunos. Trazemos uma bagagem
repleta de condicionamentos culturais, sociais e ancestrais que pode até ter sido útil lá
atrás, em infância anterior do espírito, mas não serve mais. Permitir a renovação de
conceitos, ideias e atitudes nem sempre é fácil. Temos que enfrentar os outros e a nós
mesmos. Porém, temos que evoluir. Para isto, é indispensável que visitemos os porões
escuros da própria alma, fortemente vigiados pelo ego e o seu exército de sombras.
Ignorância, medo, egoísmo, ciúme, ganância, inveja, entre outros, são soldados de uma
tropa primitiva que tentará te convencer do risco e da bobagem de se lançar em voo na
busca por uma nova realidade, por um jeito diferente de ser e de viver”.

“Iluminar cada uma dessas sombras é a grande batalha da vida. Não as sombras alheias,
mas aquelas que estão dentro de você”. O monge apontou o dedo para o próprio peito e
disse: “A guerra não é travada lá fora, mas aqui dentro”. Deu uma pequena pausa, me
entregou o alho para descascar e continuou: “Um mergulho profundo e sincero dentro de
si mesmo, para se conhecer de verdade, é o segundo passo essencial. Só assim, lhe será
permitido entender as crostas que precisam se lapidadas para que a sua luz possa brilhar
com toda a intensidade. Entender quem somos, de verdade, nos torna mais tolerante para
com todos. Afinal, como exigir a perfeição do mundo se não a temos para oferecer? Então,
o andarilho passa a ser mais exigente consigo próprio, ao mesmo tempo em que se torna
mais paciente com os outros, pois percebe como funciona a escola de luz. Sabe que cada
qual pode dar apenas o que já traz na bagagem sagrada, o coração”.

“Aprender cada uma das lições exige, a cada dia, uma dose maior de amor e sabedoria.
Porém, não basta conhecer, é preciso vivenciar a lição. Não raro, sabemos mais do que
somos. Então, as mudanças. Afinal, não existe evolução sem transformação.
Transformar-se significa deixar para trás uma parte do que é seu, uma parte do que você
é, para que um novo ser se revele e manifeste. Ser você mesmo, mas não ser mais quem
era ontem; e, amanhã, continuará a ser você, porém, será ainda outro. Diferente e melhor.
Lagarta e borboleta. Está confuso?”

Eu balancei a cabeça dizendo que não, e o monge prosseguiu: “Isto não é fácil e as suas
sombras tentarão, a todo custo, impedir a ousadia da próxima mudança. Elas, por uma
questão de sobrevivência, precisam impedir o movimento, travar o avanço. As sombras
se alimentam da estagnação. Tentarão iludir que o mais seguro é deixar como está e que
as Terras Altas não passam de uma utopia pueril. Essa é a função delas. No entanto,
quanto mais poder elas tiverem sobre você, mais lenta será a sua evolução. Logo, mais
duras se tornarão as lições, mais esburacado ficará o Caminho”. Olhou para mim e
perguntou: “Entende agora quando digo que o sofrimento é uma escolha?”

Falei que parecia um absurdo pensar que alguém pode optar pela dor, mas começava a
entender que o sofrimento é fruto de decisões equivocadas, ainda arraigadas no ser, que
teimoso em seu orgulho, se nega a fluir e, no fundo, tem medo de errar. O Velho fez sinal
para que eu lhe passasse o tomilho e disse: “Então, chegamos ao erro, este antigo
companheiro de jornada. O erro faz parte da história de todos nós e pode ser um aliado
ou um vilão, depende apenas da maneira como você irá tratá-lo. Ele pode ser fonte de
conflitos com graves e longas consequências ou um bom mestre a indicar o que deve ser
modificado em suas ideias e atitudes, sinalizando a mudança de rota para que passe a
trilhar o lado ensolarado da estrada. Isto vai depender de quanto amor já floresce em seu
jardim. Percebe que a cada escolha lançamos no solo sagrado do coração uma semente
de sombras ou de luz?”

O monge arqueou os lábios em leve sorriso e continuou: “Mas chegar até aqui não foi
fácil. Foram muitos erros e não pouco sofrimento. Mágoas e decepções tiveram que ser
superadas, a flor do perdão teve que brotar para que a doce fruta da alegria germinasse”.
Deu uma pausa longa, seus olhos ficaram perdidos além das janelas da cozinha, como se
o filme do passado voltasse à sua tela mental. Depois falou: “Erramos muito, erramos
todos. Sem exceção. Cada erro sinaliza a próxima lição; cada qual com os seus erros e
suas lições”. Tornou a dar uma pausa e falou como se falasse consigo mesmo: “Erramos,
erramos, insistimos no erro e a vida não desiste de nos fazer melhores. Então, entendemos
o incomensurável amor do Universo por jamais nos abandonar. Por insistir em nossa
evolução, por nos oferecer as ferramentas para sair da escuridão e conhecer a luz da vida
com todas as suas cores, permitindo as asas para o fantástico voo sobre os vales sombrios
das lágrimas. Para isso, nos oferece infinitas oportunidades”.

“É a maior prova e mais valiosa lição de amor que alguém pode conhecer”.

Discordei. Falei que, em razão de decisões equivocadas do passado, eu tinha


desperdiçado, em diversas ocasiões, muitas oportunidades em minha vida. E elas não
retornaram. O Velho franziu as sobrancelhas, como sempre fazia quando ficava mais
sério, e explicou: “Claro que você as teve e as terá de novo, sempre. Não necessariamente
da mesma maneira. Entenda que as oportunidades se revelam na exata medida das suas
necessidades, não dos seus desejos. Lembre-se de que o Universo é generoso, porém
justo. As oportunidades estão sempre de acordo com a vontade e a capacidade do aluno
para entender e se transformar, não na aparência, mas em sua essência. Esqueceu que as
lições endurecem na medida da recusa do aluno em aprender? Fazer com que o andarilho
compreenda a perfeita justiça é parte necessária para torná-lo uma pessoa melhor. E,
acredite, isto não é tão fácil como parece. Todos se acham justos, mas poucos conhecem
o poder do amor. Como, então, entender a verdadeira dimensão da justiça? Da mesma
maneira que não se desiste de um filho, não se separa a justiça do amor. Esta é uma das
lições mais preciosas do Caminho”.

“A lei das infinitas oportunidades fala da importância do aprendizado e das


transformações como alavanca para a evolução. Nos ensina, também, o valor da
paciência, a grandeza da tolerância, a beleza da misericórdia, a magia do perdão como
estrada para a verdade e a justiça. Então, percebemos que o amor é o barco e também o
cais. Alguns mais rápidos, outros bem mais devagar, porém todos, cedo ou tarde,
completarão a travessia. Ninguém será esquecido. Ninguém ficará abandonado no
Caminho”.

O Velho se calou por instantes e com a colher de pau deixou pingar um pouco de sopa
nas costas da mão para saber se estava bem temperada. Aprovou o sabor com um sorriso
e disse: “O amor é o sal da vida”.

Tornou a dar pequena pausa, piscou um dos olhos como quem conta um segredo e
finalizou: “O amor é a linguagem de Deus, Yoskhaz. Não existe outra”.
O MELHOR DOS MUNDOS

No mosteiro é fabricada, apenas em alguns meses do ano, uma pequena e apreciada


quantidade de chocolate em barras. Confeccionado de maneira artesanal, com as melhores
sementes de cacau oriundas de países tropicais, baunilha e mel fornecidos por cuidadosos
produtores da região, segue à risca uma receita secular, apenas conhecida somente entre
os monges. O chocolate é famoso entre aficionados e tem toda a sua produção
imediatamente vendida, mesmo limitando a quantidade individual de compra. O valor
arrecadado ajuda a custear boa parte das despesas da Ordem. Não toda.

Certa vez, o Velho, como carinhosamente chamamos o decano da Ordem, teve que viajar
em razão de compromissos e me deixou como assistente do Lucca, um tranquilo monge
que há décadas era responsável pela produção do chocolate. Nada parecia ser tão
importante ou dar tanta alegria ao monge. Meticuloso, não permitia que nada fugisse à
receita ou alterasse o sabor da iguaria. Histórias contadas como lendas, de um período
anterior ao meu ingresso na Ordem, relatam que, certa vez, ele proibiu a venda quando
um auxiliar alterou, em quantidades mínimas, a exata proporção dos ingredientes.
Manteve-se irredutível, mesmo com todos no mosteiro elogiando o sabor, com diferença
quase imperceptível em relação à receita original. Em outra ocasião, se negou a produzir
o chocolate ao recusar as sementes de cacau recebidas, que, segundo o seu entendimento,
não tinham a qualidade indispensável. Foram anos em que o mosteiro enfrentou
dificuldades financeiras, devido à ausência da renda proveniente da venda do chocolate.

Neste ano tudo parecia correr bem. Os ingredientes já tinham chegado, e Lucca os
aprovara. O problema era outro. O forno da pequeníssima fábrica de chocolate do
mosteiro era alimentado com a lenha colhida na floresta dos arredores e, por óbvios
motivos ambientais, há muito tempo só permitíamos os galhos secos que se desprendiam
naturalmente das árvores. O corte era proibido. Por outro lado, a natureza não vinha
colaborando. Tradicional e fiel à receita, Lucca resolvera diminuir de maneira drástica a
produção, conforme a quantidade da lenha colhida. Prevendo nova crise financeira,
avaliei a troca dos fornos de lenha pelos de gás ou mesmo que, excepcionalmente naquele
ano, se utilizasse a cozinha do mosteiro, que já era servida a gás. O monge não permitiu.
Sugeri, então, que comprássemos lenha de replantio, oriunda de madeira com o devido
selo ecológico. Lucca se negou a autorizar. A receita falava de forno a lenha e, por
séculos, era usada a madeira selvagem fornecida gentilmente pela natureza. O carvalho
era a árvore predominante naquela floresta e o aroma da queima dos seus galhos era
indispensável. Cada detalhe, por menor que fosse, segundo o cuidadoso monge, alteraria
o sabor final do chocolate.

Discutimos. Acusei-o de estar sendo romântico em excesso, agindo fora da realidade. Ele
devolveu dizendo que eu era irresponsável e volúvel por ceder facilmente às dificuldades.
Lucca disse que apenas queria o melhor para a Ordem ao se manter fiel à receita;
argumentei que eu também desejava o melhor ao buscar soluções para o problema.
Expliquei os meus argumentos, e ele, os dele. Logo os fatos correram todo o mosteiro.
Monges e discípulos se dividiram em opiniões e os ânimos se exaltaram. A discórdia
estava instalada. A produção seguia a passos lentos no limite da lenha conseguida na
floresta, seguindo a fórmula original, e em breve, os ingredientes, não utilizados
perderiam, em razão do tempo que passava, a qualidade necessária para serem utilizados.
Um ano difícil se avizinhava.
Então, o Velho chegou de viagem. De imediato, muitos correram para contar o ocorrido.
Ele ouviu a todos com a sua enorme paciência e doçura, inclusive a mim e ao Lucca. A
ninguém disse palavra. Sem perder a tranquilidade falou que estava cansado e iria dormir.
Conversaríamos pela manhã.

No dia seguinte, quando chegamos ao refeitório, o Velho já nos esperava. Estava bem-
disposto e nos recebeu com o seu melhor sorriso. Seu bom humor era quase uma
constante. Ele costumava falar que a alegria serena era uma característica dos espíritos
iluminados. “Não há lugar para os ranzinzas nas Terras Altas”, repetia. Esperou que todos
tomassem café e pediu a palavra. Seu tom de voz, sempre baixo, precisou do silêncio
absoluto dos demais para que se fizesse ouvir: “Já soube do conflito que se instalou aqui.
De menor importância é a crise financeira ou o sabor final do chocolate. Posso enfrentar
qualquer um destes problemas, com maior ou menor dificuldade. Mas não posso viver
sem paz”.

Deu uma pequena pausa e prosseguiu: “Não me importa quem tem razão. O valor está
em encontrar os bons motivos para restaurar a harmonia. E eles são fartos e conhecidos,
basta que se permita ouvir o coração. A lição que resta desta situação é que, como podem
perceber, o mal raramente vem de fora. Em geral, ele vem de dentro. Pelos vãos do ego
brotam as sombras que alimentam as trevas. Oferecemos mais perigo a nós mesmos do
que os outros a nós”.

“Contudo, como ensinou em versos o poeta português, ‘tudo vale a pena quando a alma
não é pequena’. Aprendamos a lição com humildade e alegria”, parou por instantes e
cochichou como se falasse consigo: “Este meu conterrâneo era um sábio alquimista
disfarçado de escritor”. Em seguida, pediu que eu e o Lucca fôssemos à biblioteca
continuar aquela conversa, em particular, com ele.

Acomodados em confortáveis poltronas ao lado de uma grande janela que nos oferecia a
bela paisagem das montanhas, o Velho, após encher a sua caneca com café, disse: “Sei
que cada um tem as suas razões e os seus motivos para sustentar a opinião que defende.
Quem está certo? Provavelmente os dois, a depender da ótica de que se observa o mundo.
No entanto, repito, não me importa quem tem razão, nem é esse o motivo que nos reúne
aqui. Entendo o Lucca por seguir as tradições e ter cuidado com a qualidade do produto
que vendemos; assim como compreendo o Yoskhaz por se encantar com a modernidade
e ter preocupações com uma possível dificuldade financeira da Ordem. No entanto, ambos
acabaram se apegando tanto aos seus conceitos que os levaram ao extremo. Ao
radicalizar, esqueceram o bom conselho do mestre Buda: ‘a virtude está no meio’.
Envolvidos emocionalmente, deixaram que os egos se inflassem de orgulho e não se
permitiram o olhar livre das névoas da vaidade”.

Tanto eu quanto o Lucca insistimos que ele deveria avaliar os fundamentos de cada um e
decidir quem tinha razão, pois o prazo final para encerrar a produção se aproximava. Os
olhos do Velho transbordavam compaixão quando ele falou: “Abdico da espada que
querem me entregar. Julgar quem tem razão seria fácil e alimentaria o meu ego com o
exercício do poder sobre a vida do mosteiro. Os monges estão divididos, e qualquer
decisão vai sustentar uma grande insatisfação. Sei que há casos em que não há jeito. No
entanto, no nosso caso, será que não existe uma alternativa? Um caminho do meio em
que todos possam trilhar com alegria? Lembrem que é a radicalização da boa moral que
cria o intragável moralismo; quando as nobres virtudes são apoderadas pelas sombras,
nos deparamos com a nefasta intolerância”. Deu uma pequena pausa e perguntou:
“Percebem que a terrível discórdia que se abate sobre o mosteiro nasceu das boas
intenções dos dois? Entendem que, em algum momento, na busca pelo bem permitiram
que o próprio bem se perdesse? Algo comum quando teimamos em impor aos outros as
nossas razões”. Tornou a se calar por instantes e fez uma singela pergunta: “Podemos
fazer diferente e melhor?”

Abaixamos os olhos, eu e o Lucca. Estávamos envergonhados por permitirmos que a


situação chegasse ao ponto em que chegou. Sim, possuíamos a capacidade de fazer
diferente e melhor; no entanto, tínhamos perdido o rumo, iludidos pelos truques da
vaidade, da teimosia e do orgulho. Ficamos um bom tempo em silêncio até que o Lucca
disse que há muitos anos, quando ele ainda era aprendiz, havíamos passado por um
problema semelhante de falta de madeira para lenha, naquela época, se usaram folhas
secas de carvalho como combustível para os fornos. O sabor do chocolate tinha se
mantido inalterado. No entanto, alertou, achava que naquele momento seria difícil fazer
o mesmo, pois precisaria de uma quantidade que os monges não poderiam carregar e
suprir. Eu falei que poderia ajudar, pois conhecia o dono de uma pequena construtora na
cidadezinha no sopé da montanha e tentaria conseguir um caminhão emprestado para
otimizar o carregamento. O Velho apenas sorriu como resposta.

Enquanto eu fui buscar o caminhão, que nos foi gentilmente cedido, Lucca mobilizou
todos os monges que pôde para arregaçar as mangas e se enfronharem na floresta. O mais
importante: todos se uniram pelo mesmo propósito. Isto nos tornou mais fortes e, claro,
o resultado foi um sucesso. A produção foi levada a termo, e o chocolate manteve o sabor
que conquistara paladares havia séculos, enquanto nós, no mosteiro, mantivemos o gosto
de viver com alegria.

Passados alguns dias, encontrei o Velho cuidando das flores do jardim interno do
mosteiro. Comentei como todos estavam felizes. O monge parou o que estava fazendo,
guardou o alicate no bolso da túnica e me convidou para sentar ao seu lado em um banco
de pedra, à sombra. Depois disse com serenidade: “O mundo perfeito não é um mundo
sem problemas. O mundo perfeito é o mundo possível”. Piscou o olho, como fazia todas
as vezes que me confidenciaria um segredo, e finalizou: “O mundo perfeito é aquele em
que você se esforça para encontrar as melhores soluções em harmonia e paz”.
O SOFRIMENTO É UMA ESCOLHA

Eu tinha chegado cedo à pequena e charmosa cidade situada no sopé da montanha que
acolhe o mosteiro. Tudo parecia ainda adormecido em suas ruas seculares de pedra,
quando, para minha surpresa, ou quase, vejo a antiga bicicleta de Loureiro, o sapateiro
amante dos livros e vinhos, encostada no poste em frente à sua oficina. O horário de
funcionamento da sua loja era imprevisível e improvável. Nunca sabíamos quando a
encontraríamos aberta. Fui recebido com alegria e um sorriso sincero. O meu amigo tinha
acabado de passar o café e nos sentamos ao balcão com duas xícaras fumegantes para
uma conversa vadia. O elegante artesão tinha no remendo do couro o seu ofício; a costura
da vida pelas linhas da sua estranha filosofia, uma arte. Naquele dia não foi diferente,
mais uma vez ele me desconcertou com o imponderável. O sapateiro comentou que uma
de suas sobrinhas, filha de sua irmã, tinha acabado de sair da oficina. Ela estava muito
abalada, pois o marido resolvera dissolver o casamento. Tinha vindo em busca de uma
palavra de consolo, de uma ideia que servisse de lanterna para iluminar os seus passos.
Perguntei se a moça tinha saído melhor depois da conversa com o tio. Então, Loureiro
começou a me surpreender: “Acho que não. Na verdade, saiu daqui pior do que entrou.
Mas com o tempo ela irá entender o que eu tentei explicar”. Eu quis saber o que ele havia
dito para aliviar a aflição da moça que gerou o efeito contrário. O sapateiro respondeu
com naturalidade: “Todo sofrimento é uma escolha”.

Pudera! Questionei se meu sábio amigo tinha enlouquecido. Isso era conselho que se
ofereça? Quem de sã consciência escolheria pelo sofrimento? O artesão, sem se abalar,
bebericou um gole de café e falou: “Todos aqueles que ainda não conseguem ver além
das névoas da ilusão”.

Deu uma pequena pausa e fez um parêntesis: “Apenas quero fazer uma distinção. Não
falo da dor física, aquela oriunda de uma perna quebrada, por exemplo. Me refiro ao
sofrimento que surge das fraturas emocionais, aquelas que abalam e afogam a alma em
mar de lágrimas desnecessárias”.

“Entenda que a finalidade do Caminho é aperfeiçoar o andarilho, ensiná-lo a ser feliz, em


perfeito equilíbrio interior, em plena harmonia com o mundo, porém sem qualquer tipo
de dependência externa. Solidário e independente ao mesmo tempo. Independente por
não permitir que nada, nem ninguém, tenha o poder de abalar a sua paz. Enquanto a sua
serenidade estiver sendo esbulhada significa que ele ainda não aprendeu as lições
indispensáveis para seguir adiante. Por outro lado, solidário por entender a necessidade
de sempre compartilhar o seu melhor sem esperar nada em troca. No dia seguinte, com a
consciência em plena expansão, oferecerá um pouco mais e esperará ainda menos. Esta
prática cura e transforma. Esta é a Lei do Amor, uma das que compõem o Código Não-
Escrito. Os conflitos são as lições; as escolhas são as canetas com que escrevemos as
provas”.

Falei que ele estava delirando. Exemplifiquei com as muitas situações que surgem na vida
de todos, alheias a nossa vontade e que trazem sofrimento. A morte de um parente
querido, doenças, desemprego, separações afetivas, entre outras variantes. Loureiro não
se abalou: “As situações surgem na exata medida do indispensável aprendizado, cabível
naquele momento, para a evolução pessoal. A questão não é o problema em si, mas como
você reagirá diante dele. Isto pode encerrar um ciclo de lições ou fazer com que o repita.
Para tanto, lhe restam tão somente as suas escolhas. Nada mais. Elas definem quem somos
e as condições do próximo trecho do Caminho”.

Argumentei que a teoria é sempre perfeita. No entanto, a prática costuma ser bem
complicada. O sapateiro balançou a cabeça e disse: “A dificuldade do problema na
verdade diz muito sobre você mesmo. O primeiro passo é entender que cada qual enfrenta
os exatos conflitos na medida das necessidades do seu aprendizado. A vida é perfeita nas
suas imperfeições. Esse é o seu método de aprimoramento. Aprender que a maneira como
reagimos aos problemas determina as condições da viagem, quem nos fará companhia, as
pontes, os abismos e a paisagem que encontraremos na jornada é o segundo passo.
Perceber que as escolhas são as únicas ferramentas disponíveis é fazer uso da sua magia
pessoal. Magia é transformação. Este é o terceiro passo e traz o poder alquímico de
transmutar chumbo em ouro, ou seja, de substituir a agonia pela paz”.

Achei um pouco confuso. Pedi que ele fosse mais específico. Loureiro não se fez de
rogado: “Não importa qual é o seu problema. Todos serão sempre sérios e enormes. No
caso da minha sobrinha, por exemplo, ela teima em acreditar que apenas será feliz ao lado
do ex-marido, em comportamento de completa dependência afetiva. Não percebe que este
comportamento cria um peso no casamento que o torna insustentável. Ao entender que
ninguém pode conceder a ninguém o poder sobre a sua felicidade, irá buscar a alegria no
lugar certo: dentro de si. Tão somente. Então poderá compartilhar com o outro, na
indispensável leveza do amor. Percebe que é uma escolha?”

“Com a morte não é diferente. Muitos sofrem pela ignorância de acreditar que ali se
coloca um ponto final na história, quando na verdade é apenas uma mudança de capítulo.
Outros, apesar de entenderem que a morte não é fim, insistem em confrontá-la como uma
perda, em apego à presença física, em atitude repleta de egoísmo por não levar em conta
o aprendizado pessoal e os interesses espirituais de quem partiu. A famosa teimosia em
ser o centro do universo alheio ao invés de focar na beleza das próprias lições
inevitavelmente trará sofrimento. Entende que a ótica com que escolhe encarar a situação
determina suas dores ou delícias?”

Sustentei que muitas vezes sofremos por saudade. Loureiro abriu um largo sorrido e falou:
“A saudade é algo maravilhoso, pois é o registro do amor naquele convívio. Apenas existe
saudade onde há amor. O amor não precisa da presença física para existir, pois está muito
além do que se pode tocar. Agradeça por sentir saudade, pois demonstra que a vida não
foi em vão. O que não deixa saudades se perde no vazio da existência. Portanto, toda vez
que a saudade o invadir, você deve sorrir e comemorar”. Franziu as sobrancelhas e
concluiu: “Claro, você pode escolher sentir-se vítima das circunstâncias, um abandonado
pela vida e se afogar na tristeza. A decisão é sua”.

Lembrei que muitas pessoas sofrem pelo fato de ficarem desempregadas e passarem sérias
necessidades materiais. O bom artesão enfrentou a questão: “Claro que todos devem ter
o necessário para uma vida digna. No entanto, embora o dinheiro possa proporcionar
muitas coisas boas, quando se tem uma relação saudável com ele, nem de longe ele
consegue ser fator determinante para a felicidade. Canso de ver milionários em crises de
depressão em suas mansões, enquanto me deparo com operários em plena alegria nas
favelas. Claro que a recíproca também ocorre, o que comprova que tudo depende, mais
uma vez, das escolhas que o indivíduo faz”. Deu uma pequena pausa e acrescentou:
“Quantas vezes já vivenciamos que a desgraça, na verdade, é uma graça disfarçada?
Sempre ouvimos histórias de pessoas que ficaram melhores depois de uma situação
adversa, pois somente assim, despertaram dons e talentos adormecidos. Não tenha dúvida,
isto apenas foi possível porque escolheram enfrentar o problema com sabedoria e
coragem ao invés de se afogarem em mar de lamentações”.

Bebeu mais um gole de café e aprofundou a questão: “As doenças, muitas vezes terminais,
podem ser arrasadoras ou transformadoras, a depender da maneira que o paciente vai
encarar o momento. Certa vez, fui visitar um amigo no hospital em tratamento contra um
câncer. Embora fosse uma ótima pessoa, tinha certa tendência ao pessimismo e ao mau-
humor. Fui preparado para o pior e me surpreendi. Embora estivesse debilitado em razão
da quimioterapia, com olheiras fundas e sem cabelo, o encontrei no melhor momento da
sua vida. Me recebeu com um sorriso sincero, seus olhos transbordavam serenidade e
suas palavras semeavam alegria. Ele disse que na doença encontrara a farmácia da alma
e, somente por estar vivendo aquela situação, entendera toda a beleza do Caminho. Sentia-
se muito agradecido por tudo que estava vivendo, pela oportunidade de um novo e
transformador olhar”. Deu uma pequena pausa e prosseguiu: “O mais interessante é que,
dividindo o quarto com ele, havia um outro homem completamente arrasado, se sentindo
o sujeito mais infeliz do mundo e se perguntando porque aquela tragédia acontecera com
ele, embora o seu quadro clínico não fosse tão grave como o do meu amigo. Percebe que
cada qual fez a sua escolha? Como diz o mestre, ‘quando o seu olho é bom, todo o seu
universo é luz’”.

“Costumamos perder tanto tempo para reclamar do sapato que nos foi oferecido, julgado
inadequado para aquele tipo de estrada, que não reparamos em andarilhos que seguem
sem uma das pernas, com leveza e desenvoltura maior do que a nossa. Fazem mais com,
aparentemente, menos. Na verdade, o poder deles está nas escolhas. Em saber que tudo
pode ser diferente e melhor, revelando o espelho de um ser já em harmonia consigo
mesmo e, por consequência, com o universo. Esta força está adormecida dentro de cada
um. Ao escolhermos o olhar que enxerga os defeitos do mundo perdemos a oportunidade
de ver as suas maravilhas. Toda vez que permitimos o sofrimento significa que acabamos
por negar uma chance para a alegria em razão de uma escolha equivocada. Lamentamos
o leite derramado ao invés de abençoar a lição de manuseá-lo corretamente”.

“Nada atrapalha mais o andarilho do que os lamentos. Quando reclamamos, no fundo,


tentamos justificar para nós mesmos a nossa pouca disposição em permitir uma escolha
diferente, capaz de transformar a realidade. Esperar que o mundo se adeque às nossas
necessidades e desejos é bem mais cômodo do que lutar pelos mais belos sonhos, certo?
No entanto, não é assim que toca a grande orquestra da vida e acabamos envoltos em
esfera de amargura por perdermos o baile. Em ciclo vicioso, continuamos a reclamar e a
esquecer que tudo foi consequência das escolhas que fizemos ontem, repetimos hoje e
projetamos para o dia de amanhã”.

“O ciclo se torna virtuoso a partir do momento em que aceitamos que a colheita sempre
está de acordo com a semeadura. A história de cada pessoa nada mais é do que o
somatório das escolhas que fez durante a viagem. Nesta e em estações anteriores. Definir
os próximos destinos significa fazer escolhas concernentes a eles. Alterar futuras rotas
exige modificar as escolhas de agora. Por isto a importância do mergulho profundo nos
confins do ser, para entender e aceitar o que o trouxe até aqui e, então, transformar a
realidade. Para isso, é preciso sinceridade e coragem para consigo mesmo. Entender quem
fomos e quem somos, para redesenhar quem queremos ser. De verdade”.
“Por medo, escolhemos a gaiola ao invés das asas; por egoísmo, escolhemos possuir no
lugar de compartilhar; por ignorância, escolhemos o ter em detrimento do ser; por ciúme,
escolhemos nos distanciar do amor; pelo brilho do desejo, escolhemos apagar a luz dos
sonhos; por teimosia, escolhemos a estagnação, impedindo o germinar da sabedoria; por
comodidade, travamos o movimento da vida; por orgulho, escolhemos a ilusão na
tentativa de esquecer a verdade. Assim, inconscientemente, acabamos por escolher a
doença ao não permitir a cura”.

Falei que todo conceito novo é um pouco confuso até encontrar o devido lugar dentro da
gente. Porém, confessei que havia razão em seus argumentos. Loureiro disse com
seriedade: “Todo conflito externo é reflexo da bagunça interna. A maneira como reagimos
às dificuldades demonstra o maior ou menor poder das sombras que ainda nos habitam.
Todas as desavenças, dos problemas sociais aos relacionamentos pessoais, revelam o grau
de predominância do ego sobre a alma daquele grupo ou indivíduo. O sofrimento de um
indivíduo é diretamente proporcional às sombras que o habitam. Iluminá-las é uma
escolha”.

O artesão me observou por instantes, ofereceu um lindo sorriso e finalizou: “A escolha é


o único instrumento que possuímos para exercitar a nossa espiritualidade. Não há outro.
As sombras podem tornar a existência um pesado ofício. Por sua vez, seguir pelos
meandros da luz, com sabedoria e amor, transforma a vida em fina arte. Somente as
escolhas lhe darão a leveza, ou não, para se sustentar no ar”.
O JOGO DAS SOMBRAS

O dia ainda não tinha amanhecido quando entrei na cozinha do mosteiro. Eu tinha
dormido mal, sono intermitente e com as ideias em turbilhão. Quando a mente não
consegue descansar é o corpo quem paga a conta pela desarmonia que invade e ocupa,
corrompendo o ser como um todo. O cansaço, por potencializar a irritação e a mágoa,
sempre será um péssimo conselheiro. Era a minha exata situação naquele momento. Há
alguns dias eu vinha em crescente discórdia com outro discípulo da Ordem. Tudo
começara por um motivo bobo, uma pequena crítica que ele fizera ao trabalho filantrópico
que eu coordenava. Retribuí apontando falhas de conduta em relação àquele que me
censurou. Ele replicou subindo o tom da crítica. A troca de farpas foi ganhando dimensões
inesperadas e, na tarde anterior, em discussão ríspida, quase chegamos às vias de fato. Ou
seja, por pouco não trocamos chutes e socos. As ofensas verbais não conseguimos evitar.

Quando peguei o bule para passar o café, percebi que estava cheio e quente. Alguém
chegara ali antes de mim. Só quando virei para trás foi que vi o Velho, como
carinhosamente chamávamos o monge mais antigo do mosteiro, sentado em absoluto
silêncio e reflexão, com uma caneca fumegante à frente. Ele me ofereceu um sorriso
sincero quando nossos olhares se cruzaram. Com um gesto sutil do queixo, me convidou
para sentar ao seu lado. Enchi uma xícara com café e fui ao seu encontro. Antes que ele
pudesse articular qualquer palavra, abri o verbo, disse que precisava desabafar e narrei
todo o conflito. O monge me ouviu com sua enorme paciência e quando encerrei, ele
falou com a voz baixa e tranquila: “Você veio em busca de conselhos ou de cumplicidade?
De alguém que lhe diga a verdade ou de alguém que lhe dê razão?” Mostrei-me indignado,
pois não havia qualquer dúvida de que eu estava certo e de que o outro discípulo deveria,
no mínimo, ser advertido. Sem se alterar, o Velho disse: “Para todo fato há no mínimo
duas versões, além da verdade”.

Argumentei que fora o outro discípulo quem começara tudo. O monge respondeu de
imediato: “Isto não tem importância, assim como não me interessa quem tem razão”. Ele
bebericou o café e prosseguiu: “Entretanto, todo aprendizado merece atenção. Salvo
engano, temos uma bela lição que, se bem aproveitada, pode fortalecer, além de trazer
crescimento espiritual a todos os envolvidos”. Perguntei se ele falava sobre o perdão. O
monge respondeu de imediato: “Claro que o perdão terá que ser trabalhado não apenas
neste caso. O perdão será sempre necessário, pois é impossível ser feliz sem perdoar.
Porém, há outra preciosa experiência a nos oferecer valiosa sabedoria: entender o jogo
das sombras”.

“O mal é o alimento das sombras, é o que concede poder às trevas. E somos nós, que tanto
rejeitamos o mal, por mais contraditório que possa parecer, quem acabamos por alimentá-
lo. A violência é uma iguaria muito apreciada; a ofensa, um belo jantar; a fofoca, um
aperitivo muito aplaudido; a vingança, o prato predileto; o sarcasmo, uma sobremesa
requintada. Os sofisticados ingredientes desse banquete sombrio são o orgulho, a vaidade,
o egoísmo, o ciúme e o medo. Todos oferecidos por nós. Tudo temperado pela ignorância
de não perceber que nessa refeição o cozinheiro somos nós e, pior, ela nos custará muito
caro. O preço? O próprio e inevitável sofrimento”.

“Quando fazemos o jogo das sombras, abdicamos de ser andarilhos do Caminho, por nos
afastar dele. Ao permitir que se apague o fogo da tocha dos guerreiros da luz, fomentamos
a escuridão. Na infância do espírito deixamos nos conduzir, até em razão de
condicionamentos sociais, culturais e ancestrais, pela lei de talião, na qual se cobra o
dente do outro pelo seu dente perdido, o olho furado do outro pelo seu olho cego. Claro
que o dente e o olho são figuras meramente simbólicas. Na maioria das vezes, por achar
que temos o direito, impomos um sofrimento ao outro pelo fato de ele ter nos causado
alguma dor, em primitiva filosofia muito aplaudida pelas sombras. Afinal, esta é a
motivação do seu jogo.

Não raro, inconscientemente, clamamos por justiça quando na verdade apenas desejamos
vingança. As sombras se interessam apenas pela punição, em ver o outro sofrer pelo
simples fato de que ele, supostamente, também nos fez sofrer. Uma absurda mentalidade
de acreditar que, ao espalhar o nosso sofrimento, ele se tornará menor. A luz trabalha em
favor do aprendizado. A justiça está ligada à educação, à evolução e, sobretudo, ao amor.
Por sua vez, a vingança se interessa tão somente em impor um sofrimento ao outro. As
sombras, habilidosas conselheiras do ego, fazem-nos acreditar que precisamos nos
proteger, preservar a nossa imagem, resguardar os nossos direitos, como se ofender,
revidar, acuar e dominar fosse a maneira mais sábia de manter a integridade e retidão.
Assim, as nossas escolhas acabam corrompidas; os sentimentos mais sutis são
substituídos pelos mais densos, refletindo-se em reações desmedidas. O pior é que, sem
perceber, mantemos o mal vivo à nossa volta. O mais estranho é que nessa matemática a
conta nunca zera. Um dente quebrado não substitui o outro, mas passamos a ter dois
dentes imprestáveis, em progressão geométrica, no meio de uma multidão de olhos
furados e egos cegos”.

Argumentei que ser um andarilho significa não compactuar com o mal. Logo, se vejo
algo errado, tenho que me opor à situação. O Velho franziu a sobrancelha e disse com
seriedade, sem perder a doçura da voz: “Com certeza, Yoskhaz! No entanto, a maneira
como fazemos isso é a diferença entre a luz e as trevas. Este é o jogo do mal: nos iludir
para darmos passagem às sombras, acreditando que estamos a serviço do bem”.

“Evidente que há casos graves em que temos que intervir com firmeza e determinação
para estancar o mal. Porém, posso garantir que tais situações ocorrem poucas vezes na
vida de cada um de nós. Na grande maioria das vezes, fazemos o jogo das sombras
movido por situações de nenhuma importância, que poderiam ser resolvidas com um
olhar de compaixão ao entender o nível de consciência do outro, a dificuldade dele em se
relacionar com as próprias sombras. Afinal, as palavras e atitudes de cada um revelam a
bagagem do coração. Como esperar flores de quem apenas tem espinhos? Há que se ter
paciência e compaixão, até porque não podemos exigir a perfeição que nós próprios não
temos para dar. Em alguns momentos cabe uma conversa revestida com amor e
sinceridade; noutros, um silêncio misericordioso é mais do que suficiente”. Bebeu um
gole de café e disse: “Não devolver a agressão não fará de ninguém um fraco, porém
mostrará a coragem do andarilho em dominar o próprio ego e a sua sabedoria em negar o
alimento das trevas e deixar que o mal pereça por inanição. Permitir, todos os dias, que a
voz sagrada da sua alma seja cada vez mais ouvida e seu valioso segredo, exercitado:
oferecer sempre o seu melhor sem esperar nada em troca. Isto é iluminar os próprios
passos. No dia seguinte ofereça ainda mais do amor que há em você e espere ainda menos
de volta. Esta é a batalha da liberdade do ser, este é o bom e inevitável combate”.

“É necessário cuidado com o jogo das sombras. Ele começa devagarzinho, quase
imperceptível, para ir ganhando vulto aos poucos, ocupando terreno dentro de nós, até
dominar os nossos sentimentos e manipular os nossos pensamentos. É nesta hora que
acabamos por escolher o sofrimento. O mal é ardiloso e sorrateiro, seu melhor truque é
iludir que ele não existe em nós. Assim, por descuido e engano, complica-se o próprio
destino”.

“Quase sempre o jogo das sombras começa com um motivo fútil, um breve comentário
ou uma atitude impensada do outro em relação a nós. As sombras do egoísmo, do orgulho
ou da vaidade, a depender do caso, despertam para nos alertar que o ego foi maculado e
nos transforma em suposta vítima. Elas, as sombras, aumentam a grandeza da suposta
agressão, acrescentam fermento à ofensa para que a raiva cresça dentro da gente até
transbordar em ressentimento. A resposta acaba por ser desproporcional e desnecessária,
pois visa, principalmente, ferir o sentimento do outro em igual ou maior intensidade do
que a mágoa que sentimos”.

“Por sua vez, o outro, se for um andarilho experimentado, perceberá claramente o jogo
das sombras e o estancará, reagindo com amor e paciência. Caso contrário, dobrará a
aposta para devolver a ofensa em intensidade ainda maior, o que nos moverá ao revide
em sequência sem fim de violência e sofrimento. Assim, jogando esse nefasto jogo,
construímos o próprio inferno”. Deu uma pequena pausa e complementou: “O pior é
teimamos em culpar os outros ou a vida por tamanha infelicidade, sem perceber a
responsabilidade e as consequências das escolhas que fazemos. Basta entender que para
encerrar o sofrimento basta apenas modificar a maneira como reagimos a tudo o que nos
incomoda. Eis a chave da prisão. Fazer, a cada dia, que o ego se torne a imagem e
semelhança da alma é o exercício indispensável para a integralidade do ser, encerrando
definitivamente a dualidade que nos divide e rouba o equilíbrio necessário. Apenas assim
a agonia dará passagem à paz. Transmutar, pouco a pouco, as sombras que nos habitam
e terminar com o seu jogo é o que nos permite iniciar o Caminho. É o que nos concede as
asas para o fantástico voo rumo às Terras Altas”.

“Perceba que neste caso não se trata de um conflito do mundo, mas de uma batalha
pessoal, por isto tanto sofrimento pela falta de harmonia. Podemos enfrentar dificuldades
materiais com tranquilidade, doenças com serenidade, as guerras do planeta com sábia
resignação ao aceitar e entender a lição que nos cabe. Porém, não conseguiremos jamais
a felicidade sem a paz que nos habita”.

Pediu que eu completasse a sua caneca com café. Quando voltei, ele prosseguiu: “Apenas
através do ego podemos ser ofendidos ou humilhados. Quanto maior o ego, mais seremos
suscetíveis ao sofrimento. Ego poderoso, indivíduo frágil. Esta é a simples equação”. Deu
uma pequena pausa e concluiu com uma pergunta: “Entende a razão e a força pela qual a
humildade é o primeiro portal do Caminho?”

Abaixei os olhos e perguntei o que ele me aconselhava fazer. O monge, desta vez, foi
sucinto: “Nada”, respondeu. Intrigado, eu quis saber se ele achava que eu devia deixar
quieta a inflamada discórdia. O Velho disse: “Não falei isto. Não lhe direi objetivamente
para fazer desse ou daquele jeito. Busque no silêncio e na quietude se afastar por instantes
do seu frágil ego que veste pesadas armaduras na ilusão de proteção e poder. Então,
poderá ouvir as palavras sussurradas da sua alma e usar as asas que ela guarda para você,
pois na essência, somos tão somente ela, a alma, com toda a sua liberdade e leveza”.

Naquele mesmo dia, logo após a meditação, procurei o outro discípulo para conversar.
Não para lhe expor as minhas razões, pois entendi que elas não tinham nenhuma
importância. Mas para oferecer as minhas desculpas pelas ofensas que proferi e a dor que
lhe impus. Quanto ao sofrimento que ele me causou? Só aconteceu porque eu permiti que
a ofensa me atingisse. A sabedoria é o perfeito escudo; o coração guarda um antídoto
infalível para o sofrimento: amor. Não resolveu? Tome mais uma dose. É de graça e
também a própria graça. É o poder que me faltava aprender a usar e ainda estava tão
distante de mim. Em silêncio, admiti que eu poderia ter feito diferente e melhor. Prometi
a mim mesmo que tentaria da próxima vez. E agradeci ao Universo por sempre me
conceder uma nova oportunidade.

Hoje, além de monges, somos grandes e leais amigos


O OUTRO E EU

O garçom abriu a garrafa e gentilmente completou as nossas taças. Eu estava em um


daqueles dias em que sentimos vontade de conversar sobre a vida e ouvir a opinião de
quem respeitamos. Um tio muito querido, que passara recentemente por situações difíceis
e que não estava sabendo equacionar o seu lado emocional, me trazia preocupações.
Aproveitei que tinha ido à pequena e secular cidade situada no sopé da montanha que
abriga o mosteiro e convidei o Loureiro, o elegante sapateiro, amante dos vinhos e dos
livros, para uma conversa. Os tintos e os de filosofia eram as suas predileções. Remendar
o couro era o seu ofício; costurar a vida, a sua arte. A taberna estava vazia e silenciosa,
bem ao fundo podia-se ouvir uma rádio que tocava jazz, nada que nos fizesse aumentar o
volume baixo da voz. Relatei ao bom artesão os fatos que se sucederam com esse tio, de
quem eu muito gostava e que fora bem próximo de mim na infância e na adolescência.
Ele perdera o único filho em um acidente e, em seguida e em razão disto, o seu casamento
entrara em crise, culminando no divórcio. Eu tinha estado com ele e o encontrara bastante
depressivo, com a clara expectativa de que eu tirasse férias das minhas atividades
profissionais e largasse o meu serviço na Ordem para ir ampará-lo. Se de um lado eu
sentia vontade de ajudar, de outro não queria modificar a minha vida a tal ponto. Enfim,
eu estava dividido.

Loureiro bebeu um gole de vinho e soltou um suspiro de aprovação. Era uma boa safra.
Depois me mirou nos olhos e falou sobre o meu tio: “Quando não sabemos nos relacionar
com as próprias emoções, a razão costuma se perder na floresta escura do desespero. A
falta de maturidade em enfrentar os problemas que se apresentam, apenas revela o
despreparo daquele espírito em aprender as lições que lhe cabem”. Questionei quais
aprendizados poderiam caber nas situações que o meu tio vivenciava. O sapateiro
respondeu com tranquilidade: “Não faço a mínima ideia. Eu estaria sendo leviano se
pretendesse apontar as lições alheias no Caminho ou arrogante ao tentar elencar as
soluções objetivas do mundo. Somente sei que conflitos surgem para alavancar a nossa
evolução. É como os mestres se disfarçam para oferecer os valiosos ensinamentos depois
que nos recusamos em aprendê-los de maneira mais suave. É o universo, em profundo
gesto de amor, revelando que não desistirá de nenhum de nós”.

Falei que vinha rezando para que ele tivesse a devida ajuda para enfrentar o momento tão
complicado. O artesão disse: “A oração é muito valiosa e, saiba, nunca faltará ajuda das
esferas invisíveis. Nunca. Apenas não esqueça que ela não virá na medida dos desejos,
mas das justas necessidades, assim como não farão a parte que cabe ao indivíduo. É
exatamente esta parte que trará a transformação do olhar e do viver, permitindo o devido
aprendizado, o necessário fortalecimento e, por consequência, que ele atinja, aos poucos,
o equilíbrio indispensável à paz”.

Reiterei que eu tinha dúvidas quanto a que comportamento adotar. De um lado, o meu tio
se afundava em uma tristeza cada vez mais profunda. De outro, eu queria viver a vida que
havia escolhido para mim. Eu amava o meu tio, mas também amava os meus sonhos.
Cuidar dele, ao menos como ele desejava, significava abdicar de uma parte importante de
mim mesmo. Falei que entendia que eu teria que fazer uma escolha. Loureiro franziu as
sobrancelhas e disse com seriedade: “Sempre temos que fazer escolhas, afinal esta é a
única maneira de aperfeiçoarmos o espírito. Nossas escolhas nos definem, e é no convívio
social que residem as grandes provas. Até aonde devo ir para atender o outro e qual o
ponto em que devo parar para cuidar de mim é uma questão que sempre trouxe
questionamentos e conflitos emocionais”. Bebericou mais um gole de vinho e
acrescentou: “No final dos anos 1960, Fritz Perls, um psiquiatra alemão, pioneiro de uma
terapia denominada Gestalt, cunhou a seguinte regra comportamental: ‘Eu sou eu, você é
você. Eu faço as minhas coisas, e você faz as suas coisas. Não estou neste mundo para
viver de acordo com as suas expectativas. E nem você está para viver de acordo com as
minhas. Se por acaso entrarmos em sintonia, será lindo. Caso contrário, não há o que
fazer’”.

De repente tudo pareceu clarear na minha mente. Perguntei se o sapateiro acreditava ser
válida aquela regra. Ele respondeu: “Claro”. Eu abri um enorme sorriso e falei que agora
a vida se tornava mais simples. Levantei a taça e brindei dizendo que cada qual aprendesse
a cuidar de si. Bebemos. Em seguida, Loureiro disse: “Aí mora o problema”. Perguntei
do que ele falava, pois tinha achado genial e esclarecedor o ensinamento da Gestalt. O
artesão explicou: “De fato é uma excelente lição e nos ajuda na tomada de decisões. No
entanto, a vida não é cartesiana, de tamanha racionalidade que nos permita descartar os
sentimentos. Se o que nos define são as nossas escolhas, o que nos aperfeiçoa é a dose de
amor e sabedoria embutidas nelas. Equilibrar o cuidado que cada um tem que ter consigo
mesmo e o carinho necessário ao outro é a perfeita obra de arte cuja matéria-prima é tão
somente a própria vida. É o que diferencia aqueles que vagueiam em busca de brilho
daqueles que caminham rumo à luz”.

“Imagine a sua vida como uma enorme pedra de granito. O amor e a sabedoria são o
martelo e o formão. Transformar a rocha disforme em uma bela escultura é a arte maior
que pode existir”.

Desanimado, repousei a taça na mesa. Tudo tornara a complicar. Perguntei, de novo, se


acreditava ou não na regra do terapeuta alemão. Loureiro arqueou os lábios em leve
sorriso e disse: “Sim, já te falei que é uma sólida base para se posicionar quanto às
relações pessoais. No entanto, deve ser usada com sensibilidade para que não forje o
efeito contrário”. Piscou um olho e disse com jeito gaiato: “Tudo que é sólido se
desmancha no ar”. Pedi para ele explicar melhor e o sapateiro não se fez de rogado: “A
essência, por ser mais importante do que a forma, pode desconstruí-la”. Protestei. Eu
agora entendia menos ainda.

O bom artesão se esforçou para ser didático: “Todas as coisas boas podem ter um mau
uso. Eis a premissa básica nos relacionamentos: ninguém é responsável pela felicidade
de ninguém. Cada qual deve aprender a construir a paz e a encontrar a alegria dentro de
si mesmo, pois a plenitude não está em nenhum outro lugar. Isto nos torna absolutamente
independentes”. Deu uma pequena pausa e prosseguiu: “Porém, é impossível desfrutar do
mel da vida sem o compartilhar, pois o outro é elemento fundamental na medida em que
trará as lições necessárias ao processo evolutivo, em constante troca de conhecimento e
afeto. É no trato dos relacionamentos, na maneira como reagimos ao que nos fazem, que
entendemos onde estamos e o que nos falta alcançar. Porém, para seguir em frente, temos
que compartilhar o que possuímos de melhor: sentimentos puros e sabedoria
despretensiosa, verdadeiramente humilde. As nossas melhores virtudes. Todo o resto é
efêmero. Sem o outro não podemos exercitar o que temos de melhor; logo, não
conseguiremos evoluir. Sem o outro não conseguiremos sair do lugar. Isto nos torna
necessariamente solidários”.
Independente e solidário, ao mesmo tempo. Esta é a complexidade e a maravilha da vida.
Ser ou não ser, lembrei do célebre bardo inglês. O artesão concordou: “Esta é a questão;
afinar a alma no diapasão do universo é a resposta. Se de um lado abraçarmos a regra da
Gestalt de modo indiscriminado, afundaremos em nefasto egoísmo. Por outro, se nos
dedicarmos a atender somente as expectativas alheias, restaremos aprisionados em
terrível relação de dependência afetiva”.

Falei que agora entendia menos ainda. O sapateiro explicou: “O andarilho não deve se
recusar a atender quem lhe pede ajuda no Caminho. No entanto, não deve se desviar da
rota, assim como o auxílio não pode ir além da exata necessidade do outro. Caso contrário,
não o estará ajudando, mas enfraquecendo. É como um filho que diz para mãe não saber
como fazer o dever da escola. Ela pode dizer que o problema é dele, pode fazer o dever
para o menino ou pode ensiná-lo a fazer. São três escolhas possíveis. Na primeira, o filho
pode se esforçar para cumprir com a sua obrigação em belo exemplo de superação, mas
pode, também, tomar desgosto pelos estudos em consequência da sensação de abandono.
Em qualquer das hipóteses restará uma lição de egoísmo. Na segunda opção, a mãe estará
alimentando as expectativas do menino, que ganhará mais tempo para brincar, se sentirá
protegido e amado, mas se acostumará ao menor esforço para evoluir. Restará um fraco.
Caso a mãe escolha a terceira via, ensinará ao filho que todos, em algum momento,
precisam de ajuda, e o auxílio deve existir no limite exato da necessidade para que permita
a cada um as próprias asas, ou não será possível ir a lugar nenhum. Aqui restará uma
semente de amor para germinar um forte. Deu uma pausa e concluiu: “É o caminho do
meio a que Buda se referia”.

“A caridade, a compaixão e a misericórdia são indispensáveis a todos. Da mesma


maneira, para que uma virtude não tenha mau uso, não se pode permitir que o necessitado,
após o atendimento da fase emergencial, abdique da determinação e coragem para superar
por si mesmo os inevitáveis obstáculos do processo evolutivo. É a parte que cabe a ele.
Ou o ciclo da ajuda não se completará”.

Falei que começava a entender as fronteiras tênues dos relacionamentos. O elegante


artesão acrescentou: “Oferecer o melhor é a regra de ouro, sempre no limite da sua
capacidade, entendimento e vontade, atento para que o auxílio não descambe em
dependência, na qual, algumas vezes, as boas ações se perdem. A necessidade do outro
em reagir positivamente ao problema, em fazer a parte que lhe cabe, deve sempre ser
exigida na esfera da sensibilidade do andarilho, que não pode esquecer que todos os
movimentos devem primar pela evolução”.

Confessei que sentia um pouco de culpa todas as vezes que considerava a hipótese de
limitar a minha ajuda. Loureiro balançou a cabeça, como quem diz entender as minhas
palavras, e explicou: “Entender a diferença entre culpa e responsabilidade é primordial.
A culpa é uma poderosa sombra que aprisiona ambas as partes em relação doentia,
transformando afeto em vício e, portanto, deve ser iluminada para se tornar
responsabilidade. A responsabilidade é o perfeito equilíbrio entre a independência e a
solidariedade que deve existir em todos os relacionamentos, na clareza da percepção do
andarilho em sentir a beleza de compartilhar e o cuidado para que o outro faça a parte que
lhe cabe a fim de poder aprender, mudar e, um dia, aquele que foi atendido irá devolver
em amor aquilo que já foi dor. A responsabilidade engrandece e liberta. Só, então, poderá
seguir. Cada qual ao seu tempo”.
Ficamos um tempo em silêncio que não sei precisar. O artesão levantou a taça em brinde
e finalizou aquela noite: “À riqueza que há em todas as nossas relações. Consigo mesmo
e com todos no mundo, que tanto aperfeiçoam e ensinam a transformar lágrimas em
sorrisos!”
A MELHOR NAMORADA

Quando entrei na oficina de Loureiro, o elegante sapateiro decidiu encerrar o expediente,


embora ainda estivéssemos no meio da tarde. Apreciador dos vinhos tintos e dos livros
de filosofia, ele tinha no martelo e no alicate as ferramentas do seu ofício; as ideias com
que coloria o mosaico da vida, os instrumentos da sua arte. A sua loja não tinha hora
determinada para abrir ou fechar. O funcionamento variava de acordo com a vontade do
artesão e, na pequena cidade, os horários inusitados da oficina já tinham virado uma
lenda. Assistiríamos, os dois, em uma animada taberna, a uma partida de futebol pela TV.
Era um dos aguardados jogos finais do campeonato. Loureiro achou que ainda dava tempo
para conversar um pouco antes de irmos e foi passar um bule de café para animar as
palavras. Quando ele colocou as duas canecas fumegantes sobre o balcão, fomos
surpreendidos por um tornado em forma de gente. A irmã caçula do sapateiro invadiu a
pequena oficina e nos dava a sensação de que o seu ímpeto abalava tudo a sua volta. Lucy
era o seu nome. Há muito deixara de ser uma menina. Embora já tivesse mais de meio
século de existência, ainda mantinha o viço da juventude. Seus olhos azuis contrastavam
com a pele morena e os cabelos negros; era belíssima. Uma pessoa agradável no trato,
atenciosa e boa amiga. Muito dedicada aos estudos, tinha se tornado uma respeitável juíza
de direito da região, o que lhe proporcionava, sob o aspecto financeiro, uma vida
confortável. Apesar de tantos atributos, não era feliz. Um dos seus desejos era ter um
casamento estável, ao lado de uma pessoa com quem pudesse compartilhar todos os
momentos da vida. Embora com muitas qualidades pessoais, os seus relacionamentos
afetivos eram efêmeros e, por motivo que não conseguia entender, não se sustentavam.
Esta era a razão daquela visitava repentina, o seu último namorado acabara de encerrar o
romance.

Estava agoniada. Tinha vindo em busca de entendimento. Loureiro pediu para que ela
sentasse e lhe serviu uma xícara de café. De imediato, Lucy começou a desfiar uma
enorme ladainha de incompreensões. Dizia, de modo sincero, que não entendia o motivo
pelo qual todos os seus namorados rompiam o relacionamento. Sempre estava disposta a
ajudar o companheiro em seus problemas pessoais, era amiga, leal, cuidadosa e intensa.
Falou que conversava com as suas amigas e elas também não entendiam o motivo pelo
qual os romances não vingaram. Todas a consideravam a namorada perfeita.

Como quem não quer nada, o artesão pediu: “Me fale um pouco, não de você, que conheço
bem, mas dos seus namorados”. Em uma troca rápida de olhares com Loureiro, como
velhos amigos, entendi a estratégia do sábio sapateiro: o coração fala mais sobre si quando
revela o seu olhar sobre o outro. Lucy começou pelo último. Contou que ele era um grande
empresário do ramo de supermercados, uma pessoa alegre e carinhosa, um homem rico e
generoso, pois ajudava na manutenção de várias entidades filantrópicas. No entanto,
respondia a um sério processo por sonegação fiscal. Explicou que ela, como juíza, não se
sentia confortável em se relacionar com uma pessoa com tal problema e pediu muito a
ele que resolvesse a questão o quanto antes. Chegou mesmo a se oferecer para conseguir
um empréstimo bancário na tentativa de quitar a dívida ou, em caso extremo, cogitava se
aposentar da magistratura, pois assim ficaria mais à vontade para se casarem.

Um outro namorado, anterior a esse, era um talentoso artista plástico, homem sensível e
amoroso, com raro talento. As suas telas eram de grande beleza e a emocionavam.
Confessou que não entendia como o seu trabalho nunca tinha interessado as grandes
galerias internacionais. Ele tinha dificuldade em manter o próprio sustento, a venda dos
quadros era escassa e limitada à feira pública na praça da cidade. Recebia uma ajuda do
irmão, de quem era muito amigo, para complementar a renda. O irmão era conhecido por
ser dono de um famoso e polêmico cabaré que, garantiam as más línguas, era um seguro
canal para a prostituição. Embora o seu namorado não tivesse qualquer envolvimento
com o negócio, aceitava uma mesada para o auxílio das despesas pessoais. Lucy o
estimulou a voltar para a faculdade e terminar o curso de arquitetura que havia largado
para se dedicar à pintura. Ele poderia morar com ela até se formar, o que reduziria as
despesas e, depois de diplomado, poderia se valer do bom círculo de relacionamento dela
para realizar os seus projetos e plantas. Apenas queria que o namorado criasse condições
para não mais aceitar o dinheiro, de origem duvidosa, vindo do irmão.

Relatou, também, um outro relacionamento no qual o namorado era um dedicado médico


que trabalhava em hospitais públicos. Tinha verdadeiro amor pela medicina e uma intensa
paixão por curar. Um homem extraordinário, uma alma generosa e um bom amante, no
pouquíssimo tempo que tinha disponível para namorar. Como ele tinha feito a opção de
atender a parcela da população de baixo poder aquisitivo, trabalhava muito e ganhava
pouco, ao menos se comparado com a possibilidade de ter um consultório próprio, no
qual poderia equilibrar melhor a relação entre tempo e remuneração. Ela não tinha dúvida
do sucesso que faria, pois ganhara muito conhecimento e experiência com a dedicação
profissional e o desprendimento material que tivera até aquele momento da vida. Toda a
rotina corrida do médico o impedia de viajar, uma das grandes paixões de Lucy, fosse
pela falta de tempo. fosse de dinheiro, ao menos para os destinos mais caros e badalados
desejados por ela. Ofereceu-se para ajudá-lo a montar um consultório ou arcar com os
custos das viagens que ela sonhava em fazer.

À medida que Lucy narrava as histórias, ficava claro que os relacionamentos terminaram
após ela insistir em modificar a maneira como os namorados viviam. Por motivos
diversos, seus estilos de vida a incomodavam.

Lucy estava prestes a começar a relatar um outro romance quando o irmão fez um gesto
suave com as mãos, se declarando satisfeito. Em busca de aprovação, ela perguntou ao
sapateiro se achava que estava errada. “Sim e não”, ele respondeu. Loureiro tomou um
gole de café e falou: “Todos têm o direito de procurar a pessoa dos seus sonhos, aquela
que irá se encaixar nos seus ideais de felicidade. Só não podem exigir que os outros se
adequem aos seus conceitos de mundo ideal”.

A irmã protestou e disse que apenas “oferecia o seu melhor e, por isto, exigia o melhor
do outro em troca”. O sapateiro logo observou: “Exatamente neste ponto me parece residir
o problema. Pois, se ambos pensarem assim, podemos descambar em nefasta competição
movida por orgulho para saber quem tem mais para oferecer e, logo, exigir compensações
cada vez mais incabíveis”. Balançou a cabeça como quem diz que tudo estava errado e
tentou explicar: “Penso que o amor para ser amor nos leva a oferecer o melhor que somos,
sem exigir nada em retribuição. Ou não é amor. Quando não conseguimos sentir alegria
no simples fato de ajudar na felicidade alheia e incluímos tributos em nossa oferta, o amor
se desmancha no ar”. Deu de ombros, como um lamento, e disse: “Para viver o amor é
preciso entender o amor”.

Ignorando a observação, ela alegou que o seu posicionamento era justo e, no mínimo,
razoável. Loureiro arqueou as sobrancelhas como quem diz que aquela conversa não seria
fácil e discordou com serenidade: “Não é justo nem razoável”, ante a expressão de
espanto de Lucy, o artesão tratou de explicar: “Dividir o melhor de si é multiplicar o
poder da luz que existe em você. Ao compartilhar a sua bagagem você ilumina os passos
dos que estão perdidos, possibilita que aqueles que estão sentados na beira da estrada
voltem a caminhar. Para tanto, é preciso abdicar do controle sobre os outros e da
necessidade de qualquer tipo de retribuição, até mesmo de um simples agradecimento”.
Deu uma pequena pausa e fez uma pergunta retórica: “Entende que não é justo nem
razoável pedir nada em troca? A vida devolve bem mais quando oferecemos
amorosamente o nosso melhor. Para isso, qualquer auxílio precisa estar desligado da
sensação de supremacia sobre o outro, de reverência, dependência ou qualquer cobrança.
Ou será um triste exercício de vaidade e dominação. Quando você exige da outra pessoa
uma determinada atitude em contrapartida, acaba por reduzir o amor à condição de um
mero negócio e perde a leveza indispensável para se sustentar no ar. A felicidade não
reside na construção de muros altos na tentativa de controlar o outro, mas de compartilhar
com toda a gente a alegria de criar as próprias asas para atravessar os abismos da
existência. O voo é solo, mas é lindo quando alguém pode nos acompanhar”.

Os olhos da irmã ficaram mareados e uma lágrima escorreu no belo rosto da mulher. Aos
soluços, disse que sempre se esforçou para ser a melhor amiga dos seus namorados.
Loureiro completou o raciocínio: “E acabou por se tornar a pior namorada”. Deu uma
pequena pausa e prosseguiu: “Você foi grande quando ofereceu o seu melhor e o que
entendia ser o melhor para eles. Neste instante o Céu entrou em festa. Tudo se perdeu
quando exigiu deles a aceitação incondicional da oferta e a mudança de comportamento
para que se adequassem àquilo que acreditava estar à sua altura. Percebe que no fundo
você não agiu por amor, mas por medo de que a vida deles afetasse a vida que tinha
escolhido para si mesma? Então resolveu intervir nas escolhas alheias. Você os queria,
mas os queria diferentes do que realmente eram. Queria apenas a parte boa ou o que o seu
nível de consciência entendia como a parte boa. Entende que, se caso aceitassem, eles
perderiam a própria integralidade ou a autenticidade que tanto nos diferencia e encanta?
De certa maneira, inconsciente ou não, você se imagina perfeita, pensa ser melhor que os
seus namorados e, pior, ainda se aprisiona com as expectativas e opiniões do mundo sobre
as suas escolhas e verdades. Com isso perde o mel da vida e tudo de bom que cada pessoa
pode lhe proporcionar. A exigência pelo perfeito a impede de aproveitar o possível. Então,
os anjos encerram a festa por descompasso no ritmo das canções”.

Lucy chorou muito e não disse palavra. Loureiro a abraçou com amor por longo tempo.
Depois enxugou as lágrimas da irmã, a beijou na testa e falou com os olhos doces e a voz
serena: “Não pode existir maior tolice do que o desejo de modificar os outros.
Transformar a si próprio é tarefa que cabe a cada um de nós. Aprender, transmutar,
compartilhar e seguir são as diretrizes; iluminar as próprias sombras é a batalha que nos
aguarda. Agora é enxugar as lágrimas, cicatrizar as feridas e recomeçar. A vida não
desistirá nunca de você nem impedirá a sua felicidade. Sempre existirá uma nova
oportunidade”.
O LADRÃO DE MAGIA

Sempre que possível, eu retornava às montanhas do Arizona para uma temporada ao lado
de Canção Estrelada, o xamã que semeava a sabedoria ancestral do seu povo através da
palavra, cantada ou não. Já estava lá há cerca de um mês quando ele me chamou para uma
conversa ao redor da fogueira. Tal convite era sempre recebido como uma honra e,
confesso, eu ansiava por esse momento todas as vezes que o visitava. Esses encontros
eram à noite, sob o teto de estrelas. Na maioria das vezes o xamã já me aguardava sentado
ao redor da fogueira. Como explicou certa vez, o fogo é um importante elemental no
auxílio à transmutação das velhas formas. Ele fez sinal com a cabeça para eu me
acomodar sobre uma manta estendida ao seu lado. Canção Estrelada cantou uma sentida
canção, acompanhado pelo seu tambor de duas faces, em que agradecia ao Criador pela
oportunidade de estar ali naquele momento e pelas intuições e inspirações a serem
concedidas, expressadas através das palavras. Depois acendeu o seu inconfundível
cachimbo com fornilho de pedra vermelha. Nesses pequenos rituais era comum que
fumássemos juntos o mesmo cachimbo, como gesto de admiração pela sabedoria e
coragem de um pelo outro.

Era um pequeno e importante cerimonial mágico. Cerimonial por ser um encontro entre
pessoas com o mesmo propósito e que se respeitam; mágico porque magia é
transformação, mecanismo essencial da evolução. O nexo causal é sempre o amor, para
que haja a permissão e a participação dos mensageiros iluminados das esferas invisíveis.

Assim que o xamã encerrou a música, comentei que dessa vez o convite para a conversa
demorou mais do que de costume e receei que não ocorresse. Com os olhos encantados
pelas labaredas, Canção Estrelada disse: “Fiquei te observando durante todo esse tempo
e percebi o que o ladrão de magia fez contigo”. Falei que não tinha entendido e o xamã
me conduziu, passo a passo, através da sua fina filosofia. Ele perguntou: “Me conte como
foi o episódio em que você quis ajudar aquele mendigo quando esteve recentemente na
cidade próxima à aldeia”. Narrei que tive vontade de ajudá-lo, mas algumas pessoas me
desaconselharam, pois ele tinha um triste histórico de vagabundagem. Então, não o fiz.
Em seguida, ele quis saber: “Você tinha providenciado todo o material para a confecção
de uma canoa para passear e pescar. Por que não executou o projeto?” Aleguei que
estávamos próximos ao inverno e tinha ouvido que naquele ano nevaria, o que me
impediria de usá-la nos próximos meses.

Ele tragou longamente o cachimbo e ficou em silêncio observando a fumaça que bailava
iluminada pela fogueira. Fiquei esperando que ele me oferecesse para fumar também, mas
não o fez. Depois voltou às perguntas: “Da última vez que esteve aqui comentou do seu
sonho em escrever um livro. Já terminou?” Falei que havia desistido, pois tinha lido um
artigo em um jornal que revelava novos hábitos, nos quais as pessoas liam cada vez
menos, pois estavam interessadas apenas em filmes e músicas. O xamã apenas balançou
a cabeça e entrou, aparentemente, em outro assunto: “E o seu irmão, você já o procurou
para fazerem as pazes? Lembra que tínhamos conversado de que não adianta sair para
salvar o mundo enquanto não apagarmos o incêndio da nossa própria casa?” Eu disse que
não foi possível, pois tinha encontrado com um parente que me contou sobre a inutilidade
em procurar o meu irmão para conversar, pois ele estava irredutível em me excluir da sua
vida.
Canção Estrelada quis saber sobre as minhas viagens: “Você estava muito empolgado em
viajar à África para colaborar na assistência aos assolados pela fome, doenças, miséria e
as guerras que abalam aquele belo continente. Como foi a sua jornada?” Confessei que
não tinha desistido de passar as minhas férias lá. No entanto, ainda não tinha ido porque
um amigo que me acompanharia tinha adiado, pois no ano passado estava mais perigoso
do que de costume. O xamã me observou por instantes e perguntou: “Então, aproveitou
para fazer aquela tão sonhada viagem em que se anda muitos dias a pé, como os
caravaneiros no deserto?” Eu quis saber se ele se referia à famosa caminhada que inicia
no interior da França e termina na catedral de Santiago de Compostela, na Espanha. O
xamã concordou com o balanço da cabeça. Expliquei que não tinha ido, pois a amiga que
iria comigo havia tido um problema, não poderia ir e eu não estava disposto a percorrê-
lo sozinho.

Ele me perguntou: “Qual o motivo que o levou a deixar de lado o bonito sorriso que lhe
era comum?” Expliquei que muita gente confunde gentileza com idiotice. Então, resolvi
mudar a minha postura para mostrar que eu era um homem sério.

Canção Estrelada ficou longo tempo sem dizer palavra. Nos seus olhos, que viajavam
pelo céu salpicado de estrelas, se refletiam as chamas da fogueira. Tragou o tabaco de
maneira lenta como fazia quando embarcava na profundeza dos seus pensamentos. Reza
o costume que você deve esperar que o dono do cachimbo lhe ofereça para fumar com
ele. Imaginei que o xamã, absorto no mundo das ideias, tivesse esquecido do gesto tão
significativo. Então, estendi a mão para que me entregasse o cachimbo. Ele se recusou e
falou: “Não se fuma o cachimbo bom com o homem errado”.

Dentro da tradição xamânicas esta expressão significa um enorme puxão de orelhas. Eu


quis saber o motivo daquela reação e Canção Estrelada disse: “Percebe-se que o ladrão
de magia lhe furtou todo o encanto”? Respondi que, se ele se referia às repostas que eu
havia acabado de dar, talvez houvesse um equívoco: eu apenas tinha exercido o meu
sagrado direito de escolhas. Ele respondeu com a sua voz pausada: “Sim, as escolhas
definem quem somos, são a revelação do amor e da sabedoria que habita no coração de
cada um de nós, ampliam ou reduzem as fronteiras individuais e contam a verdadeira
história de cada pessoa”. Mirou-me no fundo dos olhos e voltou a perguntar: “E o que as
suas escolhas contam sobre você nos últimos tempos?”

No mesmo instante eu entendi do que ele falava. Não consegui articular uma palavra. Ele
tocou em algo que gritava dentro de mim, me incomodava e eu insistia em ignorar. O
próprio xamã respondeu: “Suas escolhas falam de um homem que se deixou amolecer
pelas vozes do mundo e se fez surdo ao silêncio que fala ao coração. Que desistiu dos
sonhos diante das primeiras dificuldades. Que elegeu o medo como conselheiro”. Tornou
a dar uma pausa e disse: “Você não conquistou nada porque abandonou a ousadia e a
coragem, virtudes indispensáveis no Caminho. Deixou de aprender sobre o amor, perdeu
várias chances de se superar diante das inevitáveis dificuldades que surgiriam e acabou
por não permitir importantes transformações em si mesmo, pois se negou aos riscos
inerentes à vida. Desperdiçou inúmeras oportunidades de oferecer o seu melhor e impediu
que o encanto do universo se derramasse em pequenos milagres. Abandonou a si mesmo
à margem do Caminho porque o ladrão de magia o deixou pobre de sonhos. Este é o
verdadeiro motivo pelo qual não consegue mais sorrir”.
Envergonhado e com os olhos mareados, eu quis saber o que fazer. Canção Estrelada
disse: “A magia é sua, pegue-a de volta! A covardia nunca melhorou o destino de
ninguém, e os sonhos são mapa e bússola para o fundamental encontro consigo mesmo.
Não importam as condições presentes, o aprendizado está na estrada e o valor se revela
na busca. Ela trará o encanto e a grandeza da sua história pessoal. Vá e somente volte
depois de recuperar a sua magia. Então, terei a alegria e a honra de dividir o cachimbo
contigo”.

.
A BAGAGEM

O Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem, tinha sido
convidado a ministrar uma série de palestras sobre os mais variados temas em outro
mosteiro, bem distante do nosso, onde funciona uma irmandade com preceitos distintos
à qual pertenço. Na essência, as diferenças mais aproximam do que afastam. Naquela
época, eu era o discípulo designado para acompanhar o monge. Todos ficaram encantados
com o Velho. Uma imagem serena, sempre com um sorriso discreto no rosto, o olhar que
espelhava paciência, as palavras sábias pronunciadas em voz mansa e, principalmente,
com atitudes, mesmo nos pequenos gestos, que transbordavam o mais puro amor. Ele
dizia que servir como exemplo é o argumento mais poderoso que alguém pode oferecer;
é a “verdade viva”. Por duas vezes, nessa viagem, o monge pediu que eu abrisse a palestra
do dia com introduções rápidas sobre o tema que seria abordado em seguida por ele, fato
que me rendeu alguns elogios, muito mais como reflexo das aulas do Velho do que por
mérito meu. No entanto, eu estava mal. Um aluno daquele mosteiro que me cedera uma
vaga em seu quarto durante os dias que ali ficamos vinha me perturbando com uma
saraivada de críticas, tanto em relação ao breve discurso que iniciava as palestras, quanto
por causa de algum outro comportamento meu que ele indicava como inadequado. Em
tudo ele apontava defeito. Quando o Velho entrou no quarto para saber se eu já estava
pronto para viajarmos de volta, me encontrou arrumando a mala tal e qual se encontrava
o meu coração: em total bagunça e desalinho.

Questionado, relatei os motivos da minha irritação. O Velho pediu que eu parasse de


arrumar a mala e fôssemos caminhar um pouco. Lembrei que tínhamos que partir, e ele
disse: “É necessário entender o que levamos na bagagem para prosseguir a viagem”. Falei
que colocava na mala apenas as minhas roupas e pertences pessoais. O bom monge
apontou a mala sobre a cama com o queixo e me corrigiu: “Não falo dessa mala”, colocou
a mão no próprio peito e complementou: “Me refiro à bagagem sagrada, aquela que
levamos no coração”.

Enquanto passeávamos no belo jardim daquele mosteiro, contei toda a implicância do


outro discípulo para comigo. Falei e falei até esgotarem as minhas queixas. O Velho, que
tinha escutado a tudo com enorme paciência, disse: “Buda ensinava que ‘sempre que eu
permitir que a raiva faça a sua morada em mim, perderei a batalha’”. Deu uma pequena
pausa e continuou: “O maior combate é aquele que travamos dentro de nós. É iluminar as
sombras que nos habitam. E elas são muitas e diversas. A raiva, a irritação e a mágoa são
apenas algumas das suas muitas espécies. O convívio social traz os aliados, aquelas
pessoas que nos fortalecem e ajudam a manter acesa a chama da luz a iluminar os nossos
passos. Traz, também, os adversários, que parecem ter como missão a função de alimentar
as sombras que se escondem em nós. Uns são tão importantes quanto os outros. Enquanto
os aliados colaboram de maneira explícita ao ajudar, os adversários o fazem de modo
implícito ao atrapalhar. Os antagonistas funcionam, no nível do inconsciente, como
mestres ocultos a nos ministrar, através do conflito, a exata lição, aquela para a qual já
estamos prontos”. Interrompi para dizer que não entendia. O Velho explicou: “Ao
permitir a manifestação da minha sombra, tomo consciência, não só de sua existência,
mas do quanto ela me atrapalha e ilude. Assim, caso esteja com a mente desperta, posso
iniciar o processo de aperfeiçoamento dessa faceta do meu ser”.

Falei que não estava entendendo. O Velho foi mais didático: “É como em um filme. O
mocinho precisa do bandido para exercitar as suas capacidades. Caso contrário, viverá
uma vida de estagnação e uma história sem encanto ou interesse. Desse modo, quanto
mais sofisticado for o vilão melhor será a história, pois permitirá ao herói desenvolver
poderes que ele mesmo desconhece, para, então, se superar. Percebe que é o conflito que
move a narrativa? Na vida não é diferente. Cada qual é o herói da própria história e, por
consequência, termina por ser o vilão da história alheia, pois, de um modo ou outro, sendo
justos ou não, em algum momento agimos em desacordo com as expectativas de alguém.
Para desempenhar o seu papel, o herói precisa do vilão para entender como reage diante
das dificuldades que surgem. Como reagimos diante das adversidades? Esta é a perfeita
régua a nos medir. Aproveite a oportunidade para aprender sobre si mesmo; lapidar as
arestas que cortam, a você e aos outros; oferecer o seu melhor e avançar, sempre em busca
da integralidade e da plenitude do ser”.

Perguntei se o conflito é, de fato, necessário. O Velho explicou com paciência: “Vivemos


em plano de existência no qual os conflitos ainda são importantes como instrumentos para
a conquista da harmonia pessoal. A maior prova disto é a existência das sombras pessoais.
Enquanto você acreditar que as suas frustrações são motivadas pelo outro, haverá
conflitos e estagnação. Perceber as sombras significa um convite ao enorme e
fundamental trabalho a realizar consigo. Nos relacionamentos, de qualquer nível, os
interlocutores desagradáveis têm a sagrada missão de fazer com que as sombras se
manifestem através da adversidade e da contrariedade. Agradeça a eles por isto. Assim, é
possível identificar e iluminar o que precisa ser transmutado dentro de você. Se prestar
atenção e houver sinceridade na jornada de autoconhecimento, verá que o adversário
nunca é o outro, mas você mesmo. Como um guardião do limiar, ele apenas mostrou a
você, ainda que de maneira grosseira, onde será travada a luta para que o próximo portal
do Caminho seja ultrapassado”, apontou para o meu peito e disse: “Dentro de si mesmo”.

“Entende a importância de cada pessoa na sua vida?” O Velho perguntou. Respondi que
não via nenhum valor em um sujeito que parecia me perseguir com a única finalidade de
perturbar. Disse que gostaria de viver em paz com todos. O monge sorriu e disse: “Exato!
E é por ainda não conseguir que está nesta estação. Todos querem viver em paz, mas
poucos estão prontos para assumir as próprias responsabilidades evolutivas. Ainda
preferem o conforto de distribuir culpas a esmo. Entende que o comportamento dele,
embora inadequado, traz valiosas lições?” Confessei que não conseguia ver nada de bom
em toda aquela aporrinhação. O Velho arqueou os lábios em lindo sorriso e as enumerou:
“Percebe que algo em você também incomoda a esse outro discípulo? Provavelmente é
uma qualidade ou um dom que ele muito admira, mas, por não conseguir administrar com
humildade as virtudes que ainda não domina, permite que a vaidade ou a inveja se
manifestem através de atitudes agressivas. Pode, também, ser ao contrário: ele enxerga
em você uma dificuldade que também existe nele e que, inconscientemente, não consegue
admitir. Acaba por reagir com críticas duras a você para fantasiar a si mesmo com a
perfeição que não consegue alcançar”. Perguntei por que tinha que ser assim. O Velho
me ofereceu um olhar repleto de compaixão e disse: “É assim com todos. Como as
sombras têm a função de camuflar as dificuldades ao próprio ego, elas vão apontar a
artilharia para as características de outra pessoa, ora colorindo os defeitos com cores
fortes, ora colocando eventuais falhas sob poderosa lente de aumento. O que incomoda a
esse aluno não são os equívocos do Yoskhaz, mas as dificuldades dele próprio, com as
quais ainda não consegue lidar ou patamares evolutivos que não consegue atingir. Percebe
o truque das sombras? Na ilusão de proteger, elas impedem o melhor olhar. Assim cada
um se torna a principal vítima das próprias sombras e, pior, sem perceber. Então, surge o
vilão na tentativa de despertar o herói adormecido em cada um e em todos. Enquanto não
entender a si mesmo, não conseguirá se aperfeiçoar. Portanto, há que se ter paciência para
com o outro e muita atenção para consigo mesmo”.

“Por sua vez, você mostrou uma enorme dificuldade com as críticas. Esta é a segunda
lição”, continuou o monge. Contestei de imediato e argumentei que as críticas eram
injustas. O Velho franziu a sobrancelha e disse com a voz doce, porém repleta de
seriedade: “Não vi você questionando os elogios quando os recebeu. Seriam todos
devidos? Se nem todas as críticas são justas nem todos os elogios são merecidos. Se de
um lado não podemos permitir que nenhuma crítica nos derrote, mas seja apenas elemento
de reflexão e transformação, de outro lado a sabedoria impõe que o mel dos elogios não
lambuze todo o ego, impedindo os próximos movimentos rumo à evolução. E mais uma
vez lembro de Buda nos ensinando a trilhar a estrada do meio como ponto de equilíbrio,
para que um extremo não elimine o outro e, assim, não impeça a conquista da
integralidade do ser”.

Abaixei os olhos e não disse palavra, pois sabia do que o monge falava, mas tinha
dificuldades para viver de acordo com aquele conhecimento, não permitindo que as lições
se transformassem em sabedoria, como um pão que apodrece esquecido na vitrine. O
Velho continuou: “É justamente para encontrar essa harmonia interna que voltamos ao
início da conversa: aprender a fazer a mala. O que levamos na bagagem define a maneira
como percorremos o Caminho. É preciso leveza caso queira usar as asas. Portanto, a mala
não pode carregar o chumbo da raiva, da mágoa, da inveja, do ciúme, da insegurança e
outras tantas sombras, sob o risco de não conseguir se mover por causa de tanto peso. São
os ventos do perdão, da tolerância, do respeito e do amor que te impulsionam para o alto”.
Deu uma pequena pausa para eu concatenar as ideias e concluiu: “Nada em ninguém pode
nos incomodar. Quando isto acontece, não tenha dúvida, há algo de errado na própria
bagagem. É o momento de abrir e modificar o seu conteúdo”.

“Não perca tempo nem desperdice energia se lamentado ou tentando mudar os outros. Só
os tolos fazem isto. Ofereça sempre o seu melhor e manifeste a sua verdade de maneira
mansa e clara. Depois, siga. Cada qual tem a própria jornada para percorrer”.

“A plenitude é a sagrada arte de manter a paz interna acima dos inevitáveis conflitos
externos. O fato de permitir que o outro discípulo abalasse a sua paz revelou as muitas
fragilidades que ainda precisam se aperfeiçoadas em você. Não se esqueça de agradecer
a ele antes de partir”. Tornei a ficar em silêncio, balancei a cabeça em concordância e,
antes que pudesse falar, o Velho finalizou: “Está na nossa hora ou perderemos o trem. Vá
pegar a sua mala no quarto”. Piscou o olho com jeito maroto e perguntou: “Já sabe o que
vai levar na bagagem na volta para a casa?”
O BOM COMBATE

Eu estava desgostoso da vida. Flanava pelas ruas sinuosas e estreitas da pequena e


charmosa cidade situada no sopé da montanha que acolhe o mosteiro quando passei em
frente a uma padaria. O perfume do pão fresco foi irresistível. Sentei-me e pedi que
fizessem um sanduíche com manteiga, mel, canela e uma fatia generosa de queijo. Para
acompanhar, uma caneca de café. Neste instante, Loureiro, o elegante sapateiro, rompe
pela porta. Ao me ver, abre um sincero sorriso e, com os braços abertos, se aproxima.
Após um forte abraço, pergunto se foi o cheiro do pão ou o acaso que nos atraiu ali. Ele
me olha como a uma criança e diz: “O acaso não existe”. Falei que até tinha pensado em
passar na sua oficina, mas não quis atrapalhar o ritmo do seu trabalho no meio da tarde.
Ele, que era famoso na cidade por ter horários inusitados para abrir ou fechar a loja, falou:
“Encerrei o expediente por hoje. Vim conversar contigo”. Ri e comentei que ele não tinha
como saber que eu estava na padaria, pois até mesmo eu não sabia que estaria ali há cinco
minutos atrás. Loureiro deu de ombros, como quem fala o óbvio, e disse: “Eu também
não sabia, pelo menos até entrar aqui e ver a agonia desenhada em seu rosto. Então,
entendi”. Abaixei os olhos e agradeci em silêncio.

Loureiro também pediu uma caneca de café. Em seguida, confessei que estava muito
amargurado pelo fato de a Ordem ter se tornado alvo de uma campanha de difamação em
uma conhecida rede social da internet. Pior, tudo começou com um antigo colega da
faculdade que viera me visitar no mosteiro. Comentei sobre mentiras e das conclusões
absurdas que foram publicadas. Fiz um pequeno resumo para o bom artesão, que em
resposta deu uma sonora gargalhada. Eu disse que não via motivo para risos, pois o caso
era sério. Ele me olhou com compaixão e falou: “Não, não é sério. Seria sério se fosse
fundamentado em verdade. Caso em que todos os conceitos da Ordem teriam que ser
revistos. Mas, não. A mentira, embora possa em alguns casos arranhar a aparência, não
possui força para atingir a essência. A mentira é a arma dos fracos, desesperados e
perdidos. Nada que possa abalar a bela trajetória dos Monges da Montanha”. Acrescentei
que a difamação tinha alcançado um público muito grande e gerado muitos outros
comentários igualmente caluniosos. Eu iria sugerir que a Ordem processasse todas essas
pessoas. Loureiro balançou a cabeça em negação e falou: “Duvido que o Velho concorde
em iniciar uma ação judicial”. Perguntei por qual motivo ele não o faria. O sapateiro
respondeu: “O Velho não é apenas o monge mais antigo do mosteiro, ele conhece o lado
invisível das coisas. O Velho sabe que um processo apenas alimentará os sentimentos
densos que envolvem a questão enquanto durar a demanda e agigantará o ofensor, que,
com toda certeza, é um sujeito infeliz, atormentado pelas próprias sombras. A mentira,
cedo ou tarde, se consome na própria fogueira e desmascara o mentiroso. Um dia, ele se
dará conta; a vergonha será a sua pena”. Argumentei que isto poderia demorar e perguntei
o que ele aconselhava. Ele franziu as sobrancelhas e disse com seriedade: “Paciência,
misericórdia e perdão. Todo agressor já traz muito sofrimento e desencontro em si
mesmo, refletidos em seu comportamento desastrado”. Eu quis saber se nem mesmo um
desmentido era importante. Loureiro disse: “Não vejo necessidade, a mentira, quanto
mais absurda, mais insustentável se torna. Da mesma maneira, apenas de outro modo,
seria alimentar as sombras do agressor e, não tenha dúvida, ele anseia para que vocês
combatam com as armas que ele ofereceu. É o jogo que ele conhece, é a maneira de ele
se sentir confortável e rebater, injetando combustível à insensatez”. Olhou-me fundo e
disse: “Não jogue o jogo nessas regras. O mal só existe porque ignora o bem”. Deu uma
pequena pausa e concluiu: “Tire a batalha do lado sombrio. Ofereça ao inimigo a luz que
ele não conhece”.
Conversamos mais um pouco e tive que me despedir, pois tinha que aproveitar uma
carona até o mosteiro. Saí de lá com uma estranha sensação de calma, porém convicto de
que o Loureiro não entendeu a gravidade do problema.

Quando cheguei ao mosteiro, o encontrei em pé de guerra. Muitos monges se sentiam


ofendidíssimos e discutiam como deveriam reagir. Todos aguardavam o Velho que
retornaria de viagem naquela noite. Quando ele chegou, vários monges o cercaram para
relatar o fato e pedir pelas severas medidas que o caso exigia. O Velho os olhou com
serenidade e disse: “Tenho fome e sono. Amanhã estaremos em melhores condições para
decidir”. Um discípulo comentou sobre os perigos da internet e como a modernidade
trazia consigo tantas coisas nocivas. O Velho lembrou com doçura: “O progresso
acompanha a evolução da humanidade. É uma bênção. No entanto, sempre haverá alguém
que fará mau uso de uma coisa boa. Temos que ter atenção em combater o mal, cuidar do
infeliz e incentivar os avanços”. Observou as feições de todos e complementou: “Não é
porque temos congressistas corruptos que vamos extinguir a democracia; juízes mal-
intencionados não podem motivar o fim do estado de direito, assim como uma útil tesoura
de alfaiataria não precisa ter seu uso proibido pelo fato de alguém tê-la utilizado como
arma para ferir outra pessoa”.

Fez sinal para que eu o ajudasse com a sua mala até os seus aposentos. Ao chegar à porta,
perguntei se ele não estava preocupado com o ocorrido. O Velho arqueou os lábios em
breve sorriso e disse: “Nem o mosteiro nem a Ordem serão destruídos esta noite”. Eu quis
saber se ele conseguiria pegar no sono diante do problema que teria que enfrentar. Ele foi
categórico: “Qualquer decisão tomada terá igual eficácia hoje à noite ou amanhã pela
manhã. Fique tranquilo. A ansiedade somente atrapalha se concedermos a ela tamanha
permissão. Em breve não lembraremos mais desse fato. Descanse em paz”. Nos
despedimos ali.

Quando todos chegaram para o café, logo após a meditação matinal, encontraram o Velho
no refeitório. O seu semblante transparecia a serenidade que lhe era habitual; os olhos
transbordavam compaixão e os lábios revelavam um sorriso quase imperceptível, como
se estivesse encantado com o grave conflito que ali se instalara. Perguntou quem gostaria
de falar e muitas mãos se levantaram. Organizou para que todos falassem, sem apartes,
para que raciocínios não fossem interrompidos. Fez um pedido: “Exponham seus motivos
de maneira clara e mansa sem agressividade a nenhuma pessoa. Me interessam os fatos,
não a condenação de alguém”. Percebi uma enorme dificuldade das pessoas em se aterem
apenas aos acontecimentos sem a necessidade de acusar outras ou exigir retaliações.
Muitos falaram, cada qual expondo as suas razões. Um após outro, achei que todos
ofereceram bons motivos para exigir do ofensor a devida reparação. Após se esgotarem
os oradores, o Velho falou: “Concordo que todo o mal deve ser combatido com firmeza.
No entanto, a maneira como se faz isto torna tudo diferente. Há que se entender que cada
situação exige uma maneira mais adequada de agir. O que não podemos esquecer é de
que lado estamos. Dependendo da nossa reação estaremos alimentando as sombras de um
lado ou a luz do outro, e o que alimentarmos se refletirá em nós mesmos. Em primeiro
lugar, é preciso definir se combateremos o mal com o mal ou se iluminaremos a
escuridão”. Não se ouviu palavra dissonante. Alguns monges abaixaram os olhos.

“A nossa escolha me parece óbvia. Então, nos cabe decidir quais instrumentos de luz
usaremos”. Deu uma pausa para aguardar alguma sugestão que não veio. Prosseguiu:
“Neste caso, sugiro o silêncio e o trabalho. Vamos aproveitar que se montou um recente
acampamento, localizado em uma cidade a poucas horas daqui, com refugiados da África,
fugidos da fome e da guerra civil em seu país de origem. Alguns de nós se dedicarão com
afinco à ajuda humanitária a esse povo sofrido. Os demais continuarão em tarefas de
manutenção do mosteiro, que não são poucas. Há muito trabalho a ser feito por todos.
Precisamos tirar os pensamentos nocivos da mente e, principalmente, dimensionar o
conflito em seu perfeito esquadro. Trabalhar no bem é ótimo para isto”, explicou o Velho.
Em seguida formou-se um burburinho. Alguns monges e discípulos se manifestaram no
sentido de que algo tinha que ser feito contra o agressor, pois, caso contrário, ele ficaria
animado em prosseguir nas ofensas. Concordei com eles.

O Velho sorriu e comentou: “Algumas pessoas têm mais facilidade em destruir do que
em construir. Acreditam que se desconstruírem a boa imagem alheia se sentirão melhores
com as suas. Este prazer é passageiro, pois é movido pelas próprias sombras que, logo,
sentirão mais fome e causarão mais dor e sofrimento ao infeliz. Assim, de certa maneira,
é interessante notar que até mesmo as sombras, por vezes, acabam por fazer um bom
serviço a favor da luz ao causar este mal-estar. Ele poderá prosseguir alimentando-as ou,
quando alcançar um nível mínimo de consciência, algo que cedo ou tarde acontecerá,
perceberá o aprisionamento em um ciclo de infinitas repetições com parecidas situações
e emoções desagradáveis. Então, aos poucos buscará transformar o seu padrão de
comportamento para atingir resultados melhores. Certo dia, todos percebem os seus
equívocos”.

Um dos monges se manifestou no sentido de que não poderíamos esperar por esse dia.
Sugeriu uma ação judicial para não só calar o ofensor, mas usar como meio de reparação
moral à Ordem. O Velho franziu as sobrancelhas e disse: “Reparação moral? Como
assim? A minha moral não foi atingida em momento nenhum. Eu jamais permitiria. Isto
é uma decisão pessoal. Conheço os meus passos. É suficiente. Não se combate um
mentiroso da mesma maneira como enfrentamos um assassino”. Deu uma pausa e
concluiu o raciocínio: “No mais, seria alimentar com sombras as trevas famintas que
assolam o ofensor. Travar uma luta com estas armas não me interessa. Meu campo de
batalha é outro. Lutaremos com as ferramentas do silêncio de quem sabe de si e com o
trabalho típico à evolução”.

Foi impossível não lembrar da conversa que tinha tido com Loureiro na padaria.
Caminhos distintos de um mesmo destino.

Embora a contragosto de muitos no mosteiro, acatamos a sugestão do Velho de “por ora,


cuidarmos de nós” e responder com silêncio e trabalho.

Com o passar do tempo, as mentiras perderam força, exauridas em si. Algumas pessoas
que apreciavam a Ordem, iniciaram espontaneamente um contramovimento. O Velho,
sensibilizado, agradeceu, mas disse que não era necessário. Não satisfeito, o agressor
criou novas acusações que, de tão absurdas apenas serviram para desmoralizar as antigas.
Por outro lado, o trabalho humanitário, além de fazer bem à alma, nos mostrava como
aquelas injúrias eram pequenas diante das belezas da vida. O silêncio, por sua vez, foi um
poderoso aliado à meditação e reflexão para fortalecer as verdades de cada um para quem
realmente importa: a si próprio.
Muito tempo se passou e ninguém mais se interessava em comentar o caso, agora
esquecido em uma gaveta qualquer da memória. O fato tinha se adequado ao seu justo e
perfeito tamanho: a insignificância. Tinha restado uma valiosa lição.

Porém, eu não imaginava que a lição ainda não tinha acabado até recebermos uma visita.
Aquele meu antigo colega, que iniciou a campanha injuriosa, voltou ao mosteiro.

Diante da apreensão de todos, pediu para falar com o Velho. Um monge que havia sido
lutador na juventude se aproximou preocupado. O Velho o repreendeu com um simples
olhar, fazendo-o recuar. O Velho, como se esperasse por esse improvável encontro
marcado, ofereceu um lindo sorriso ao visitante e, sem dizer palavra, lhe deu um abraço
sincero. O homem chorou de soluçar. Quando conseguiu falar, pediu desculpas. Depois,
se virou para todos os monges que estavam em volta e tornou a pedir desculpas. Mil
desculpas.

Muito abalado, confessou que, na verdade, sentira uma enorme inveja quando visitara o
mosteiro na primeira vez. Contou que tinha direcionado a sua vida em busca dos desejos
mais comuns ao ego e deixara as necessidades da alma em segundo plano. O resultado
era um enorme vazio e uma sensação de abandono que não conseguia explicar. Queria a
paz e a alegria que ali encontrara, mas que sabia distantes de si. Como não conseguia
decodificar os seus sentimentos, reagiu mal. Decidiu destruir tudo que sinalizava os seus
próprios equívocos. Agora reconhecia isto.

O Velho encaminhou todos ao refeitório e pediu para servir chá, café e bolo. Depois falou
ao homem: “A sua trajetória é muito bonita”, e, diante do espanto de todos,
complementou: “As mais belas histórias são as de superação. Gosto daqueles que ficam
frente a frente com a escuridão do próprio ser e decidem iluminá-las ao invés de alimentá-
las. Isto é transformação, é o que faz a vida valer a pena, é o que dá sentido à vida. Isto,
em essência, é evolução”.

O homem ofereceu uma generosa doação à Ordem como forma de ressarcimento por todo
incômodo que gerou. O Velho esclareceu com a sua voz doce: “Agradeço, mas não
aceitamos doações. Vivemos da fabricação artesanal de chocolate, produzido por nossos
monges. Já temos o suficiente”. O homem disse que sabia da fama dos chocolates e, então,
escolheria um orfanato ou um asilo para fazer a doação. O Monge balançou a cabeça e
disse: “É uma excelente ideia, mas fique à vontade. Há muitas instituições sérias que
necessitam de ajuda financeira para prosseguir no serviço. No entanto, toda doação é um
ato de amor e, por esta razão, tem que ter raiz no coração”. O homem concordou e revelou
que tinha um pedido: gostaria de se juntar às fileiras da Ordem, mesmo que para isso
tivesse de largar todos os bens materiais que adquiriu ao longo da existência. Ansiava
pela paz e alegria que via nos monges.

O Velho arqueou os lábios em leve sorriso e disse: “Por que abdicar dos bens materiais?
O dinheiro é uma ferramenta maravilhosa e sagrada, desde que usada corretamente para
a evolução. Não há nenhum problema com o dinheiro, o problema é a forma como nos
relacionamos com ele. Não raro, culpamos o outro quando a causa reside em nós. Com o
dinheiro não é diferente”. Deu uma pequena pausa e retornou ao assunto: “A paz e a
alegria não são privilégios da vida monástica. Aqui só ficam os piores, os mais rebeldes,
aqueles que requerem maiores cuidados”. Todos riram com vontade, mas sabiam que, em
parte, era verdade. Em seguida prosseguiu: “A alegria e a paz são conquistas que estão à
disposição de qualquer um, assim como as demais virtudes. Você as encontrará em todos
os lugares, pelo simples fato de que elas restam adormecidas no âmago do seu ser. Ou
você as encontra dentro de si ou não será capaz de tê-las”. Deu uma pequena pausa e
disse: “Quanto a você, sinceramente, não vejo necessidade de uma rotina conventual”.

O homem alegou que não sabia como fazer para encontrar o que procurava. O Velho foi
didático: “Na verdade você já iniciou esse processo quando percebeu as sombras que o
aconselhavam e decidiu por iluminá-las. Esta é a grande batalha da vida e parte do
processo fundamental de autoconhecimento que permitirá as transformações necessárias
ao aperfeiçoamento e conquistas do ser. Ao reconhecer os equívocos, de repará-los e
assumir o firme propósito de não mais incorrer neles, mostrou o quanto já foi capaz de
percorrer. É uma bonita conquista!” Bebericou o chá e concluiu: “O Caminho se revelou
para você. Basta prosseguir”.

O homem, com os olhos mareados, agradeceu. O Velho o corrigiu: “Somos nós que temos
que agradecê-lo por proporcionar lições preciosas e um momento mágico como este”.
Abraçaram-se, e monge se despediu: “Volte sempre que o seu coração pedir um café
fresco e uma boa conversa. A sua presença ilumina esta casa”. Emocionado, o meu colega
partiu. Havia um brilho bonito nos seus olhos. Uma brisa suave soprou no mosteiro
trazendo uma gostosa sensação de paz.

Alguns dias depois fui visitar o Loureiro em sua oficina e lhe contei todo o desenrolar da
história que tinha começado com a nossa conversa na padaria. O bom artesão falou quanto
ao conflito: “Percebe que não houve perdedores? Isto acontece todas as vezes que
trazemos a batalha para o lado da luz”. Falei que tinha ficado impressionado com o
comportamento do meu colega e o desfecho do caso. O sapateiro comentou: “Os gregos
contam que na entrada da Ilha de Delfos havia um portal de pedras. No topo estava
insculpida a frase ‘conheça a ti mesmo’. Isto é tão importante que direcionou toda a
filosofia de Sócrates a nos influenciar nos dias de hoje. Esse foi o importante passo que
o seu colega deu”. Então, finalizou: “Esse é o início do verdadeiro bom combate, aquele
que travamos dentro de nós”.

 
A PORTA

De todos os lugares do mosteiro, a biblioteca sempre foi o meu preferido. Escolher um


dos inúmeros títulos disponíveis, se acomodar em uma de suas confortáveis poltronas e
dividir a atenção entre as letras e a maravilhosa paisagem das montanhas, proporcionada
pelas enormes janelas, permitem momentos de pura magia. Muitas vezes encontrei o
Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem, em algum
canto, encantado pela leitura ou em viagem profunda nos mares da reflexão. Nesse dia,
eu tinha acabado de escolher um livro quando percebi que ele me observava. Arqueou as
sobrancelhas querendo saber qual eu escolhera. Mostrei a capa e ele sorriu em aprovação.
Era uma coletânea de palestras ministradas por Yogananda. Aproveitei que havia uma
poltrona vaga ao seu lado e me sentei. Perguntei o que ele lia. O monge respondeu em
um sussurro: “O Sermão da Montanha”. Certa vez, ele tinha me revelado que lia esse
pequeno texto todos os dias antes de iniciar qualquer outra leitura, porém não imaginava
que ele falava em sentido literal. Diante da minha expressão de surpresa, o Velho falou:
“As letras do Sermão são vivas e sempre me trazem ensinamentos sem fim”. Eu já o tinha
lido várias vezes e perguntei sobre qual trecho o monge meditava. Ele disse com a sua
voz suave: “Aquela parte que diz que ‘estreita é a porta e apertado o caminho da vida.
Raros são os que o encontram’”. Eu disse que sabia do que se tratava e me adiantei para
mostrar toda a erudição que pensava ter. Falei que aquele capítulo tinha a função de
orientar sobre o cuidado de não insistirmos nas estradas largas da perdição. Acrescentei
que não encontrava maiores dificuldades em sua interpretação, bastava que fôssemos
sempre honestos. Simples assim. O Velho me ofereceu um doce sorriso de agradecimento
em resposta e voltou a se concentrar na leitura e em seus pensamentos. Fiquei orgulhoso
de mim.

Passados alguns dias, tornei a encontrar o Velho. Eu estava irritadíssimo. Uma discórdia
familiar sobre a repartição da herança deixada por um familiar vinha causando estranheza
entre pessoas que conviveram por toda uma vida e, aparentemente, se amavam e se
respeitavam. Parecia que eu não conhecia mais ninguém. Ofereceram-me propostas de
divisão que eram absurdas, sob alegações e fundamentos tão tortuosos que beiravam ao
ridículo. Porém, era tudo muito sério e eu vislumbrava uma enorme perda financeira. Pedi
ao monge um conselho que pudesse suavizar o meu coração da mágoa que sentia. Ele me
olhou com bondade e disse: “É hora de atravessar a porta estreita”. Deu uma pausa
proposital e disse: “Seja honesto”. Rebati dizendo que eu estava sendo absolutamente
honesto, os outros é que eram desonestos comigo. Eles queriam usurpar o que era meu
por direito. Esta era a razão do meu sofrimento. O Velho franziu as sobrancelhas e disse:
“Se você atravessou a porta ao ser honesto e, além dela, está a estrada da luz, por que o
vejo desorientado e com tanta agonia?”

Perguntei se agia errado em ser honesto e em privilegiar os meus interesses. O monge


respondeu com muita seriedade na voz: “De jeito nenhum. Ser honesto é obrigação do
andarilho. É uma virtude indispensável para a conquista da dignidade que o autoriza a
trilhar o Caminho. No entanto, ser honesto, por si só, não basta. Para atravessar a porta
estreita e seguir pela difícil estrada da luz é preciso mais”. Envergonhado, abaixei os
olhos. Em gesto de humildade, pedi que me ensinasse um pouco sobre a porta.

Andamos até o refeitório, nos servimos com canecas de café e sentamos. Então, o Velho
falou: “A porta estreita é uma escolha, talvez a mais importante da vida. Tão valiosa que
você tem que reafirmá-la todos os dias, pois enormes são as tentações que teimarão em
desviar os seus passos. A porta estreita é a escolha das virtudes da alma em detrimento
dos valores do ego; é a estrada dourada do coração. É o início do Caminho”.

“Vou lhe adiantar uma coisa: não é fácil. Primeiro é preciso ver a porta, muitos ainda nem
isto conseguem. Depois é preciso atravessá-la e, em seguida, se manter na ‘estrada
apertada’. Vários sucumbem diante dos apelos do mundo ou das dificuldades
encontradas. Por fim, terá que incorporar o Caminho ao seu jeito de ser. Ou seja, andarilho
e Caminho se fundem, se tornam uno; é o momento de as cortinas se abrirem para uma
nova etapa. Significa que você desembarcou na estação das Terras Altas”. Deu uma pausa
e concluiu: “Mas não se esqueça: a viagem é dura, mas é doce. E mais, é infinita”.

Falei que entendia, mas não muito. Pedi para ele explicar melhor. O Velho se esforçou
para ser didático: “Todos somos educados dentro dos padrões da sociedade que valorizam
a fama vazia, o brilho sem luz, os aplausos fáceis, as celebridades que nada transformam,
o dinheiro como instrumento de poder, a aparência ao invés da essência. São
condicionamentos sociais, culturais e ancestrais tão arraigados ao ego que quase nunca
questionamos o valor de estarmos na busca por tais objetivos. Agimos por automatismo,
sem maiores questionamentos, pois essas são as conquistas que trarão o reconhecimento
e a admiração da maioria das pessoas que nos cercam”.

“Seguir nessa busca tem a facilidade de acompanhar os trilhos do ego construídos há


séculos sem qualquer contestação. É agradável, pois o ego deseja as conquistas materiais
que representarão luxo, prazeres sensoriais e reverência. As sombras da vaidade e do
orgulho se agigantarão e o convencerão que você é mais do que os demais. Você
acreditará que nasceu para ter o mundo aos seus pés”.

“No entanto, não é essa a sinfonia do universo. A vida tem um compromisso inexorável
com a evolução. A evolução está ligada à libertação e à plenitude da alma. Para se libertar
das opressões mundanas deve-se aprender a ser mais com menos. Do quanto menos a
pessoa precisar mais livre ela será. Esta é a equação da liberdade. O desejo em ter gera
dependências e conflitos em função de desnecessidades fundamentais, esquecendo em
um canto qualquer a beleza da construção em ser. O que o habilita a seguir a viagem não
é o tamanho da sua mansão ou da conta bancária, mas a grandeza do seu coração”.

“O desejo desenfreado por aquisições incessantes fragiliza a existência por criar uma
dependência crescente que o ilude quanto à conquista da paz e da felicidade. Belos
ornamentos externos nem sempre espelham a verdade interna. Não raro o luxo aparente
apenas esconde uma enorme miséria essencial. O resultado são pessoas que precisam da
arrogância para mostrar o poder de que carecem, a força interna que não possuem.
Alimentam o orgulho e a vaidade pela necessidade de esconder, até de si mesmo, toda a
fraqueza que sentem, como um suntuoso palácio montado sem os alicerces fundamentais
que o faz vulnerável à menor ventania. O que engrandece o andarilho não é o número de
países que já visitou, mas a viagem profunda que faz para conhecer a si mesmo”.

“Modernamente os desejos do ego têm criado um triste batalhão de sofredores e


agoniados; estabelecidos no mundo, mas perdidos em si mesmo. Drogas na tentativa de
escapar de si mesmo; diversões barulhentas para abafar a voz silenciosa do coração;
óculos escuros para esconder aos olhos de todos os olhos que revelam as feridas abertas
da alma. Depressão, terapias, ansiolíticos, antidepressivos e a ilusão de que poderão fugir
eternamente do espelho que mostrará, cedo ou tarde, a exata fotografia do ser esfomeado
por luz”.

“Os desejos do ego tornam a existência cada vez mais pesada e escorregadia, quando na
verdade precisamos da leveza da alma para que as suas asas possam nos sustentar sobre
os precipícios da existência. No ápice da plenitude podem lhe rasgar a roupa, incendiar a
sua casa e jogar o seu corpo em um cárcere insalubre. A alma plena continuará intocada
e inatingível. A plenitude é a cura das fragilidades do ego. É a paz interna e eterna, tão
poderosa que o manterá além das maldades e ofensas comuns do planeta”.

Perguntei sobre a consequência de me negar a atravessar a porta. O Velho balançou o


ombro, como quem diz não ter saída e explicou: “Lembre que o universo está conectado
com a sua evolução em razão da necessidade inadiável de expansão de todo o cosmo. Não
se esqueça de que você é parte do todo; logo, o todo está em você. Esta é a sua força e,
também, o seu compromisso. Então, na sequência de cada escolha virá um novo ciclo de
aprendizado. Suave ou severo, sempre em justa reação às suas escolhas”.

“Na recusa ao aprimoramento, as lições vão se tornando mais duras. Falências, doenças
e conflitos estão intimamente ligados à necessidade do ser em rever os próprios conceitos.
Dificuldades financeiras têm o poder de mostrar a riqueza dos valores nobres e imateriais
da vida; enfermidades costumam se tornar uma farmácia para a alma; conflitos permitem
óticas e atitudes mais apuradas quanto à sabedoria e ao amor necessários à felicidade. São
situações que atingem em cheio ao ego; no entanto, aperfeiçoam a alma rumo à liberdade
e à plenitude. Ao final, acabamos por sintonizar o ego no diapasão da alma, entendendo
as oportunidades de transformações oferecidas. Da sombra se faz a luz. Sim, a vida é
sempre muito generosa. O que o ego selvagem chama de desgraça, a alma iluminada
agradece pela graça”.

Pedi que me aconselhasse no caso concreto e me dissesse o que fazer. O Velho arqueou
os lábios em leve sorriso, revelando toda a sua bondade e falou com a sua voz mansa:
“Não faço a mínima ideia, Yoskhaz. Administrar a vida alheia é mero ato de leviandade
e arrogância. Cada um é o seu próprio mestre e absolutamente responsável por suas
escolhas. Somente assim nos é permitido avançar”. Deu uma pequena pausa e disse:
“Analise profundamente a si mesmo e as suas prioridades neste momento. Só assim
saberá a batalha para a qual já está pronto para lutar: enfrentar os seus parentes para
defender um patrimônio que lhe pertence por direito ou abrir mão desta discussão para se
concentrar em outras conquistas”. Arqueou as sobrancelhas e disse sério: “Qualquer que
seja a decisão, será preciso perdão e compaixão sobre todos os envolvidos para que as
teias da mágoa e do ressentimento não atrapalhem a alegria e a leveza de caminhar. Então,
escolha por amor, pois só o amor tem esse poder”. Arqueou os lábios em lindo sorriso e
finalizou: “A porta estreita é aquela que revelará a estrada para a liberdade e a plenitude.
É a escolha que trará as transformações pessoais. É a trilha que permitirá florescer o
melhor que habita no andarilho, mas ainda está oculto”.
AS FERRAMENTAS DA LUZ

O sol ainda não tinha nascido quando cheguei à pequena e charmosa cidade que fica no
sopé da montanha que abriga o mosteiro. Eu tinha aproveitado uma carona em um
caminhão de entrega e vagava a esmo pelas ruas estreitas e sinuosas enfeitadas com o seu
belo piso de pedras. A umidade do orvalho refletia a luz bruxuleante dos lampiões
públicos, compondo um bonito cenário. O barulho dos meus passos maculava o império
do silêncio naquela hora da madrugada. Decidi arriscar e caminhei até a oficina de
Loureiro, o sapateiro amante dos vinhos e dos livros; os tintos e os de filosofia eram os
preferidos. Remendar o couro era o seu ofício; costurar ideias, a sua arte. A loja do artesão
era famosa pelos horários improváveis e inconstantes de funcionamento. Quando virei a
esquina, a distância avistei a sua clássica bicicleta encostada no poste. Percebi que aquele
seria um bom dia. Fui recebido com a alegria habitual e logo estávamos sentados com
duas canecas fumegantes de café sobre o balcão. Falei que precisava desabafar e
conversar um pouco, pois me via diante de uma delicada questão: em recente viagem a
uma grande metrópole onde fui acompanhar o Velho, como carinhosamente chamávamos
o monge mais antigo da Ordem, em um ciclo de palestras que ele ministrou dentro de
uma universidade, vi a esposa de um primo em situação clara de extraconjugalidade. Ela,
ao perceber que eu presenciara a cena, me procurou para que eu nada revelasse. Contou
que era um caso antigo e mal resolvido que precisava de uma resolução dentro dela.
Acrescentou que amava o meu primo e não queria destruir a família que havia construído
com ele e com os dois filhos do casal. Disse, ainda, que, ao solucionar o enigma do
coração em si, tinha certeza de que seria uma esposa ainda melhor. Pareceu-me que falava
com sinceridade. De fato, ela e meu primo, com os filhos, aparentavam formar uma
família feliz. No entanto, a omissão, por vezes, é quase uma mentira. Contar ou não
contar, eis o meu dilema, uma vez que eu tinha um compromisso comigo mesmo de ser
sempre honesto, não abandonar a verdade e nunca me distanciar da boa moral.

Loureiro ouviu sem dizer palavra; ao final, bebericou o café e comentou: “Não vejo
nenhum dilema”. Como não? Surpreendi-me. Falei que toda boa pessoa deve nortear as
suas escolhas pela boa moral, formada pelas virtudes que enobrecem o caráter humano.
O artesão concordou com a cabeça. Acrescentei que ser fiel com a verdade era uma dessas
virtudes cardeais. Desta vez o sapateiro negou com a cabeça e disse: “Nem sempre”.

Falei que não estava entendendo. Loureiro explicou: “O exercício das virtudes tem a
finalidade de encaminhar o ser para o bem. A humildade, a justiça, a coragem, a
compaixão, entre outras, além do amor, é claro, são algumas das virtudes essenciais que
têm por função orientar o andarilho no Caminho. Por lógica, existe a necessidade de
adequá-las dentro de si de maneira harmoniosa para que não haja choques de interesses
entre elas. Caso em que o bem, por ironia ou tragédia, acabaria por se perder pelo uso
inadequado da virtude na tentativa de alcançar o próprio bem. Por isto, o bom senso é
outra virtude igualmente preciosa, pois tem por função criar uma ordem de prioridades
adequadas caso a caso”. Argumentei que ficaria mais fácil de entender se ele explicasse
através de um exemplo. O artesão não se fez de rogado: “Vamos focar no importante e
inegável compromisso que temos com a virtude da honestidade, aquela que nos
impulsiona a sempre dizer a verdade”. Bebeu um gole de café e, em seguida exemplificou:
“Imagine que um assassino entre na sua casa à procura de um amigo seu que está
escondido em outro cômodo. O malfeitor pergunta se você sabe onde está o seu amigo.
Você diz a verdade ou mente para salvar uma vida?”
Abaixei os olhos. Eu estava começando a entender o valor do equilíbrio entre as virtudes.
Loureiro prosseguiu: “Qualquer atitude que não tiver compromisso com a luz, em fazer
o bem, não é uma virtude, ainda que se fantasie como tal. Qualquer ação que não tiver o
amor como meta deixa de ser virtuosa. É exatamente neste ponto que reside a diferença
entre a moral e o moralismo. A moral é a finalidade da virtude. A moral, assim como a
virtude, precisa de flexibilidade para se adequar ao caso concreto, de leveza para se
adaptar à realidade e de amor para fazer o bem. A intransigência e a intolerância
aprisionam a moral e a desfiguram em moralismo. Então a luz se apaga e as sombras
tornam a reinar”. Eu quis saber qual era a diferença entre a moral e as virtudes. Ele não
se fez de rogado: “A moral comanda; as virtudes instrumentalizam. A luz mapeia a moral;
as virtudes permitem chegar até lá. A moral é a tela; as virtudes, as tintas”. Acho que
Loureiro percebeu um grande ponto de interrogação em meu rosto e aprofundou um
pouco mais: “O bem é a morada da boa moral que buscamos construir; as virtudes são os
tijolos. Saber alinhá-los requer sabedoria para que a casa não desabe”. Deu uma pequena
pausa e ofereceu outro exemplo: “Uma mãe amar um filho é de preciosa moral e
fundamental importância. É uma base maravilhosa e essencial para uma vida. Porém, não
basta. É necessário entender a sabedoria do não e do sim. Ela precisa das virtudes para
educá-lo na diferença entre as sombras e a luz. Valores como dignidade, paciência,
generosidade, pureza, entre outros, são imprescindíveis na formação do caráter que ela
ajudará a moldar, mormente na infância do filho”.

“Assim como as virtudes são as ferramentas da moral, a sabedoria é necessária para que
possamos exercer o amor em toda a sua amplitude”. Bebeu mais um gole de café e disse:
“No exemplo da boa mãe, o amor sem sabedoria pode enfraquecer a si mesmo, impedindo
o filho de avançar e oferecendo espaço para o narcisismo, mimos e fraquezas. Por outro
lado, sabedoria sem amor pode ser por demais perigosa, por afastar o menino do lado
ensolarado da estrada ao torná-lo excessivamente bruto, insensível ou severo. Assim,
como moral e virtudes se completam; amor e sabedoria, nesse caso, fecham o círculo de
luz”.

Falei que entendia, na teoria, os fundamentos expostos pelo artesão. No entanto, na


prática, a situação do meu primo ainda me trazia agonia e dúvidas. Então, usei um
raciocínio muito valioso, mas igualmente perigoso: disse que se estivesse no lugar do
meu primo, gostaria que me contassem o segredo. Loureiro arqueou as sobrancelhas e
rebateu com seriedade: “Ao se colocar no lugar daquele assassino, no exemplo que
usamos há pouco, você gostaria que revelassem onde a vítima estava escondida, certo?
No lugar do amigo procurado, o que gostaria que fizessem?”

Envergonhado, tornei a abaixar os olhos. O sapateiro deu uma pausa e concluiu: “Se
colocar no lugar do outro é um exercício extremamente importante. No entanto, não basta.
Não existe apenas o outro, mas os outros, cada qual com os seus interesses e valores nem
sempre em sintonia com o seu. A escolha não é sua? É necessário ter o discernimento
para entender o verdadeiro sentimento que a move e qual das virtudes deve
instrumentalizar a sua decisão para que a luz se faça naquele momento”.

“Se você está agoniado com as suas dúvidas, não deve esquecer que todo sofrimento é
fruto do desequilíbrio entre conceitos e emoções; ideias novas e ultrapassadas ainda em
conflito; sentimentos confusos em colisão. Tudo porque você está pensando apenas em
você”. Perguntei se ele estava alegando que eu estava sendo egoísta. Ele piscou um olho
e disse de jeito maroto: “De certa maneira, sim”. Em seguida, falou sério: “Ao se colocar
no lugar do outro você deve apenas objetivar o bem daquela pessoa. O que é ótimo.
Todavia, muitas vezes deixamos que as nossas próprias sombras tragam as mágoas e as
lembranças do nosso passado que ainda nos corroem e, por descuido, acabam por
contaminar a nossa decisão e, por consequência, a vida dos outros. Então, terminamos
por levar trevas ao invés de luz à questão. O que é péssimo. Luz e sombras à disposição
de uma simples palavra. Percebe a delicadeza e o valor de uma escolha”?

“No mais, quem conhece a intimidade do casamento do seu primo, suas dores e delícias?
E se, ao invés de se colocar no lugar do seu primo, você se colocasse no lugar da esposa
dele? Que histórias que ela traz consigo? Quais as suas feridas, traumas e decepções que
ainda não foi capaz de curar? Quanto de ajuda ela precisa e qual a melhor maneira de
ajudar? Sabemos tão pouco sobre nós mesmos, como se arvorar em senhores da verdade
e do destino alheio? Você não disse que eles parecem formar uma família feliz? Na
verdade, você até agora se preocupou apenas consigo e o que fazer com a verdade que
lhe foi revelada a despeito de qualquer vontade. O sentimento que move a sua intenção é
de construir ou destruir? Isto definirá se a virtude está em falar ou calar”.

Aproveitei a deixa e falei que nada é por acaso. Se o segredo, de alguma maneira, me foi
revelado era porque eu deveria fazer algo de bom com ele. O artesão concordou com a
cabeça e complementou: “Sim, é claro que deve fazer algo de bom não só com o segredo,
mas com toda a situação que envolve a questão e extrair a melhor lição. O segredo é um
mero objeto desta aula que a vida generosamente lhe oferece. O que fazer com o segredo
revelará muito mais de você do que da esposa do seu primo. Será que o bem está na
revelação do segredo ou na lição de aprender a lidar melhor com as próprias virtudes em
preciosa oportunidade de aperfeiçoamento pessoal?”

Deu uma pausa e retornou aos questionamentos: “Se a agonia ainda lhe invade será que
não sinaliza algo? Será que uma alma plena se permitiria ser invadida pela dor da
inadequação da moral e das virtudes em si? O que falta ser transformado para que a dúvida
seja sempre um fator de crescimento, jamais de desequilíbrio”?

Tornei a baixar os olhos. Sim, eu sofria. “Se existe sofrimento, é porque resta uma lição
a ser aprendida, algo a ser transformado dentro de si”, lembrei que o Velho sempre insistia
nesta valiosa tecla.

A vida é extremamente generosa, mas tem um jeito muito estranho de ensinar. No entanto,
inegavelmente eficaz. Ficamos um longo tempo em silêncio. Aos poucos, as ideias iam
se adequando em minha mente e os sentimentos encontravam lugar no meu coração.
Entendi que as virtudes, apesar de sua inegável importância, não são um fim em si mesmo,
mas apenas ferramentas que precisam ser usadas com sabedoria para que se faça a luz. A
moral, por sua vez, só terá valor se revestida em amor, sem o qual nada fará sentido. Mais
um véu tinha se descortinado. Sorri.

Loureiro percebeu, me devolveu um belo sorriso e finalizou: “O amor será sempre a


travessia e o destino. A sabedoria, por sua vez, cumpre o papel de guardiã do Caminho”.
AS CHAVES DA EVOLUÇÃO

O Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem, tinha


acabado de ministrar uma palestra em uma prestigiosa universidade. Eu havia sido
designado para acompanhá-lo na viagem. Quando andávamos em busca de um táxi que
nos levasse até a estação ferroviária, fomos abordados por uma professora da instituição,
que, de maneira educada, disse ter assistido à palestra e tinha ficado intrigada. Nos
convidou para almoçar no restaurante da própria universidade, pois gostaria de conversar
um pouco mais com o monge. O convite foi aceito. A mulher foi direto ao assunto. Falou
que tinha gostado muito de toda a exposição, mas algo a intrigara. Pelo que entendera, o
Velho dissera que o único objetivo de todos nós era evoluir. Apenas isto. O monge
balançou a cabeça confirmando. Ela, sempre gentil, falou que discordava. Alegou que
não acreditava que a vida continuasse após a morte. Explicou que as ideias de
reencarnação ou de qualquer espécie de deus eram frutos de mentes pouco desenvolvidas
ou supersticiosas, as quais tinham medo de encarar a realidade de que a morte era o fim.
Portanto, sustentou, o sentido da vida era tão somente a busca da felicidade.

O Velho ofereceu um belo sorriso e, com o seu jeito tranquilo, disse: “Eu concordo com
você”. A professora se mostrou surpresa com a resposta, e ele explicou: “Acreditar ou
não em Deus e em qualquer dos conceitos da imortalidade do espírito não deve mudar em
absolutamente nada os valores que norteiam a vida de uma pessoa. Ninguém precisa crer
na existência de outra dimensão para seguir a lei espiritual maior, que consiste em fazer
aos outros somente o que desejamos que nos façam. Alguns dos homens mais fantásticos
que conheci são ateus, outros são religiosos. São pessoas maravilhosas que norteiam as
próprias vidas no esforço de serem melhores a cada a dia e possuem um enorme respeito
por todos. Entendem que não vivem sozinhas no planeta. Logo, embora o encontro da
própria felicidade seja uma jornada solitária, se entrelaça pela vida de todos, pois é nesse
convívio que ela é ensinada e exercitada”. Deu uma pequena pausa antes de concluir:
“Não apenas concordo que todos devem buscar a felicidade, mas acho até que já fazem
isto. No entanto, percebo uma enorme dificuldade em alguns para entender o processo”.

A professora falou que considerava o monge um homem bom e inteligente, porém


ingênuo. Acrescentou que acreditava na ciência e em apenas naquilo que os cientistas
pudessem comprovar. O Velho agradeceu o elogio e disse: “Sim, talvez eu seja ingênuo
e acredite em coisas que a ciência ainda não pode comprovar matematicamente. Creio,
por exemplo, no amor e na sua infinita capacidade de transformar a vida de uma pessoa,
embora nunca tenha sido apresentado a qualquer estudo científico sobre essa poderosa
força que nos movimenta. Desde tempos imemoriais a humanidade soube que se jogasse
uma pedra para o alto deveria tirar a cabeça de baixo, embora apenas há poucos séculos
Isaac Newton oferecesse uma explicação para a existência da gravidade. E até lá, a pedras
se mantiveram suspensas no ar?” Rimos todos. Deu uma pequena pausa e prosseguiu:
“Tenho um respeito absoluto pela ciência e penso que ela é uma aliada poderosa da
espiritualidade. Elas não se negam nem se anulam. Ao contrário, se explicam. Penso, no
entanto, que esta costuma estar sempre um pouco à frente daquela. Assim, prefiro
acreditar naquilo que me é filosoficamente mais interessante, ainda que demore para que
os números confirmem os meus sentimentos. Albert Einstein demorou mais de dez anos
para provar à comunidade acadêmica a relatividade do tempo e do espaço; apenas a fé em
sua percepção o fez prosseguir nos estudos e nas experiências que comprovariam as suas
fórmulas. As intuições estão na vanguarda do conhecimento. Há milênios os esotéricos
afirmam que tudo no universo é energia. Absolutamente tudo. Recentemente a Física
Quântica mostrou que a matéria não existe. O que se pensava ser matéria nada mais é do
que energia condensada, em importante passo, embora ainda em estágio inicial, para o
entendimento do espírito pela ciência. E eu lhe pergunto, o que era deixou de ser?”
Tornou a dar uma pausa e concluiu: “Mas tudo isso que falei não tem qualquer
importância, são apenas as tintas com que enfeito de cores a minha vida. Entendo que
possa não ser útil a mais ninguém e respeito quando alguém não queira me acompanhar.
O que de fato importa é que cada um convide o ego para bailar com a alma no grande
salão da vida. Cada qual encontrará a perfeita afinação de ritmo e passo nas músicas da
própria existência”.

A professora falou que não havia muito o que pensar: a vida é simples. Ela tinha um
emprego que adorava e era fundamental para oferecer condições que a propiciasse uma
vida confortável. Gostava de viajar, ler bons livros, assistir a grandes espetáculos,
encontrar com os amigos para conversar e se divertir. Adorava as confraternizações em
família. Esses eram os prazeres nos quais encontrava a felicidade. Simples assim. O Velho
arqueou os lábios em leve sorriso e disse: “Basicamente, esses também são os meus
prazeres e não abro mão deles”. Diante do espanto da mulher, o monge prosseguiu: “Mas
não são onde encontro a felicidade. Esses são os momentos em que a compartilho. Achar
que a felicidade está no prazer não é a simplicidade da vida, mas a sua simplificação”. A
professora pediu que ele aprofundasse o raciocínio. O Velho seguiu em frente: “A
simplificação está em nadar no raso da vida. A simplicidade consiste em mergulhar em
suas profundezas sabendo que para cada um são oferecidas as exatas condições para
emergir no oceano da existência”. A mulher disse que não tinha entendido. O monge foi
mais didático: “Para encontrar a felicidade é indispensável uma viagem sincera dentro de
si mesmo. A jornada de autoconhecimento é fundamental para o encontro com a
felicidade. Apenas a coragem de se olhar no espelho poderá mostrar os condicionamentos
que oprimem a verdadeira vontade, as sombras que o manipulam em ardilosa prisão e as
feridas que sangram em mágoas à procura de cura. Essa é a estrada para a liberdade e a
plenitude do ser. Não há outra. É simples por depender apenas de si próprio. É simples
porque você não depende de nenhuma situação externa. É simples porque o encontro mais
importante da sua vida é consigo mesmo. É quando alma e ego se harmonizam em suas
intenções. Então, brota a felicidade”. Deu uma pausa dramática e proposital antes de
concluir: “Isto é evolução”.

A professora questionou se o monge sustentava que a felicidade não estava no mundo,


porém dentro de cada um. O Velho arqueou as sobrancelhas e disse: “Isso mesmo. A
felicidade acompanha o ser na exata medida da sua evolução pessoal ou espiritual, como
queira denominar. Este crescimento está intimamente ligado à sua capacidade de
identificar as raízes do seu sofrimento. Depois, transmutar os sentimentos e iluminar as
ideias que o orientam e definem o ser. O que era dor vira pó de estrelas”.

A mulher se mostrou indignada. Alegou que pela linha de raciocínio do monge o


sofrimento seria uma escolha. O Velho arqueou os lábios em leve sorriso e disse: “Exato!”
A professora falou que era um absurdo imaginar que alguém preferisse sofrer. O monge
explicou: “Escolhe sofrer pelo fato de não entender que a cura está na transformação e na
evolução; por se agarrar às botas pesadas dos valores obsoletos que o atolam na
estagnação; por teimar em não ser diferente e melhor. Se recusar a fazer a parte que lhe
cabe é negar as próprias asas. Isto é uma escolha”.
Todos ficaram um tempo sem dizer palavra. O Velho quebrou o silêncio: “Para ser feliz
é necessário entender a felicidade. Se você prestar atenção, perceberá que o mal é
praticado na simplificação da busca da felicidade. Por exemplo, o ladrão acredita que o
fruto do roubo facilitará o seu encontro com a felicidade. Assim pensa o político que se
deixa corromper ou o assassino que se engana na crença de que a eliminação do outro
será o bastante para que seja feliz. Claro que os exemplos são radicais, mas em menor
escala; é assim com cada um de nós. Ou seja, sem o devido entendimento, corremos o
risco de nos afastar da luz, mesmo que o desejo seja por algo tão bom e valioso como a
felicidade. Sim, não raro nos aliamos ao mal na contradição de alcançar o bem”.

“Nunca haverá a necessidade de forçar ninguém a fazer algo em prol da sua felicidade.
Esta é a sua simplicidade. Todas as vezes que você atribuir a alguém a responsabilidade
por suas insatisfações estará transferindo o eixo da sua vida para fora de si mesmo e
abdicando do poder de ser livre e pleno. Mostrará que a felicidade é uma lição ainda não
aprendida”.

“Acho os prazeres importantes e necessários. No entanto, a felicidade é de fundamental


importância, pois vai além do prazer pelo fato de transcender ao tempo. O prazer é um
acontecimento que se encerra nele mesmo, tem uma duração finita. No máximo restará
uma bela recordação. A felicidade é um estado de espírito costurado na teia da vida, aos
poucos, na medida do aprendizado e do fortalecimento do ser. É como se no início
estivéssemos em pedaços, como mil partes de um mosaico, e a felicidade fosse efêmera
e fugaz por não se sustentar no ser dividido, na pessoa que não consegue ainda se ver e
se sentir por inteira. Fase em que a felicidade se apresenta em períodos, partida como nós.
Ela se comporta como uma visita que gosta do passeio, mas não se estabelece porque não
se sente confortável naquela casa. Temos a sensação de que sempre está faltando alguma
coisa, um sentimento de incompletude e não entendemos a razão. Na verdade, estamos
aos cacos como uma porcelana quebrada. A colagem dos fragmentos soltos e, até então,
perdidos é o trabalho que nos resta para alcançamos a integralidade do ser. Então, no ser
inteiro, a felicidade encontrará lugar para se instalar definitivamente e se fazer presente
nos mais simples afazeres do cotidiano. Seremos a sua morada infinita, perceberemos a
manifestação do milagre da vida em todas as coisas. Encontraremos o sagrado no detalhe
do mundano. Nesse momento perceberemos que a felicidade não mais está; agora ela é”.

O Velho olhou a professora com doçura e disse com a sua voz mansa: “Então, voltamos
ao início da nossa conversa. Não importa se você é religioso, espiritualista ou ateu, a
felicidade é o destino de todos nós. A evolução é a única estrada”.

Uma lágrima fugiu pelo rosto da professora. Ela disse que o monge naquele instante
entregava a ela a chave de uma porta que parecia instransponível. Depois, olhou nos olhos
do Velho e agradeceu com o mais belo sorriso de que tenho lembrança.
O DESTINATÁRIO DO AMOR

Era uma fria manhã de outono. O sol aquecia o corpo sobre o pesado casaco de lã. Eu
andava pelas ruas estreitas e tortas da charmosa cidadezinha que fica no sopé da montanha
que acolhe o mosteiro em busca da oficina de Loureiro para um café quente e um pouco
de prosa. Eu estava triste pela ingratidão de algumas pessoas do meu convívio por não
corresponderem ao amor que lhes era oferecido por mim. O sapateiro, que costurava o
couro como ofício e as ideias como arte, me recebeu com a alegria habitual e logo
estávamos sentados ao balcão com duas canecas fumegantes. Depois de expor as minhas
insatisfações, questionei ao meu amigo o fato de o amor ser a causa de tanto sofrimento.
Achava contraditório, uma vez que esse sentimento está inegavelmente ligado ao bem e
à luz. Afinal, sendo o amor algo tão bom, não deveria permitir que ninguém sofresse em
seu nome. O artesão bebericou o café e respondeu como quem fala o óbvio: “Sofrem pelo
simples fato de não entenderem o amor”. Discordei. Falei que o amor é inerente a todas
as pessoas. Acrescentei que não deveria haver um único ser humano na face da Terra que
desconhecesse o amor. Loureiro sorriu e disse: “Sim, é verdade. No entanto, tê-lo conosco
não significa que já saibamos decifrá-lo. E mais, não é apenas o amor que corre nas veias
de toda a gente, porém, todos os sentimentos, os melhores e os piores. Sem exceção.
Identificar cada um deles é fundamental; não permitir que uns contaminem outros é parte
da arte do andarilho”.

“Mas vamos ficar apenas no amor para que esta conversa não se alongue demais. Quem
sofre por amor é aquele que ainda não entendeu quem é o fiel destinatário deste real
sentimento, tampouco a sua mecânica”. Falei que não tinha entendido. O sapateiro expôs
o seu raciocínio: “A raiz do sofrimento está em amar como aquele mercador que
contabiliza a entrada e a saída de mercadorias. Se oferecemos carinho, afeto e atenção,
exigimos a contrapartida em retorno ou pagamento. Ou seja, somente nos permitimos
amar quando nos sentimos amados de volta em igual intensidade. Não é assim?”

Sim, é assim mesmo, concordei. Loureiro deu de ombros e disse: “Destinatário errado”.

Falei que não tinha entendido. Ele explicou: “Quando agimos dessa maneira mostramos
que estamos mais preocupados conosco do que com os outros. Essa atitude demonstra
que amamos pelo que vamos receber em troca, sendo o outro um mero canal pelo qual
retornará o amor que oferecemos. Isto não é amor, é egoísmo. É como se postássemos no
correio uma carta para nós mesmos. Qual o sentido de escrever uma carta para si? O amor
é um poema que redigimos ao vento sem a preocupação de assinar. Os gestos nascidos na
pureza do coração são os melhores versos escritos sobre papel imperecível da vida. É a
poesia que se coloca na garrafa lançada ao oceano na alegria de preencher a alma de quem
a encontrar, sem qualquer outro interesse. O amor para ser amor tem que ter o
compromisso com o descompromisso na reação do outro em lhe devolver a mesma
moeda. O amor que você tem não é aquele que você recebe, mas tão somente o que você
dá. O amor é uma estranha mercadoria que quanto mais você autoriza a saída, maior fica
o seu estoque”.

Sustentei que amor é troca. Todos querem receber na exata medida do que dão. O artesão
balançou a cabeça e disse: “Troca é comércio; amor é compartilhar a beleza e a alegria
da vida que pulsa em si. Sem pagamentos, taxas ou tributos de qualquer espécie. Como
flores que plantamos na beira da estrada para enfeitar a vida de quem vem atrás, sem se
preocupar se aproveitarão as suas cores e perfumes. Amar é oferecer a luz que nos habita
para iluminar os porões escuros do mundo sem apresentar boleto de cobrança pelo serviço
prestado. Ou não é amor. Esse entendimento é um passo importante para se libertar de
qualquer dependência emocional ou afetiva e, por consequência, encerrar todo o
sofrimento. Preste atenção e perceba que sofremos por ciúme, inveja, egoísmo e outros
sentimentos menos nobres; nunca por amor”.

“Pense no sol que ilumina, aquece, renova e permite a vida sem nos cobrar nada de volta.
Daí a sua grandeza e poder. Todo amor transcende em magnetismo, o que faz com que
tudo e todos desejem orbitar sobre o centro gerador. Assim como o sol, quando nada se
quer em troca, tudo se tem”. Deu uma pausa e complementou: “Essa é a estranha e
fantástica equação da vida que teimamos em não entender. Então, sofremos”.

Falei que sempre tinha ouvido que amor era troca. Loureiro foi enfático: “Aprendeu
errado. Caso queira estancar a dor, precisa sair das classes do egoísmo e do ciúme para
frequentar uma nova escola”.

Argumentei que ele tinha enlouquecido. Lembrei da maravilhosa sensação de se sentir


amado. Ele arqueou os lábios em sorriso e disse: “Concordo com você, é muito bom e eu
a desejo todos os dias. Entretanto, é exatamente nesse ponto que reside o perigo. Esse
sentimento é bom e justo, apenas não pode virar objeto e objetivo do amor que se oferece,
caso em que se torna uma atitude egoísta que tem por finalidade a si mesmo e não o outro.
Então, deixa de ser amor e, por isto, sofremos. Há que se ter atenção para que o
destinatário do amor não seja o próprio remetente, quando a carta perde o sentido e o
amor se perde em si, deixando de existir”.

Pedi que ele tornasse a encher a minha xícara com café. Toda aquela conversa estava por
demais desconcertante e, confessei, eu tinha dificuldade em assimilar. Quando pensei que
Loureiro fosse aliviar o meu desconforto intelectual, ele partiu para o ataque final:
“Somente na infância da alma insistimos em pensar que somos o centro do mundo, que o
universo gira em torno do nosso ego. Daí surgiu a palavra egoísmo. A consequência
natural do egoísmo no amor é o ciúme, um sentimento tão forte que o confundimos com
o próprio amor. O pior é que o ciúme está ligado à sensação de insegurança e conceitos
ultrapassados de dominação”. Mais uma vez pedi que o artesão explicasse melhor. Ele
foi didático: “A ideia de que somos exclusivos e o centro do mundo nos leva a acreditar
que temos direitos absurdos sobre tudo e todos. Usamos inadequadamente a palavra
‘compromisso’ em nossas relações para esconder os verdadeiros sentimentos que nos
movem: ciúme e egoísmo. Nos tornamos dominadores por condicionamento e educação
equivocados. Ao nos envolver com alguém que nos traga alegria deixamos manifestar o
medo da sua partida”. Deu uma pausa e comentou: “Como perder o que não se pode ter?”
Em seguida disse: “Nos iludimos que a felicidade apenas será possível se tivermos sob
controle tudo o que nos envolve e todas as pessoas que julgamos importantes para a nossa
felicidade. É o berço das prisões. Domar gera dor, domar gente traz inevitável sofrimento.
Sofremos em razão de outros sentimentos, bem menos nobres, e atribuímos ao amor uma
culpa que não o pertence. Ninguém sofre por amor”.

“Esquecemos a lição do sol, cobramos por calor e luz, esvaziando a alegria de quem orbita
ao nosso redor. Amor não é exigência ou compromisso. O amor é o antídoto desse
veneno; é liberdade e plenitude. Então, gera o magnetismo que a tudo atrai”.
Eu quis saber o que era necessário para estancar o sofrimento. Ele arqueou as
sobrancelhas e disse sério: “Não raro, sentimos um vazio existencial que temos
dificuldade de identificar a origem. Então, procuramos alguém que possa preenchê-lo,
transferindo para o outro a responsabilidade pela a nossa felicidade. Eis a fórmula perfeita
do fracasso e da dor. Ao invés de trilharmos o caminho do autoconhecimento para curar
as fraturas sentimentais que nos atrapalham de seguir em frente; ao invés de iluminarmos
as próprias sombras que nos impedem de evoluir por atribuir a outros a causa das nossas
insatisfações, preferimos a facilidade do atalho de encontrar alguém que solucione todo
o descontentamento que sentimos. Em suma, nos iludimos que amar é ter alguém que nos
faça feliz. Isto cria a estagnação, que, por sua vez, nos torna pessoas aborrecidas; isto cria
a dependência que constrói as prisões sem grades”.

“Que tal invertermos a equação? Assumir a responsabilidade absoluta pela própria


felicidade é estar pronto para iniciar no Caminho. Aceitar de maneira honesta e corajosa
o processo de conhecimento e posterior transformação sobre si mesmo é o primeiro passo.
Livrar-se de fazer qualquer cobrança em relação aos outros e focar na responsabilidade
de compartilhar as virtudes que frutificam em sua alma demostra evolução e solo fértil
para que o amor floresça em seu coração. Isto traz leveza; é a liberdade do ser. Isto traz a
paz; é a plenitude do ser”.

“Essa mudança, na verdade, é o rompimento da casca que nos impede de ser por inteiro
e nega o amor em toda a sua dimensão. É preciso abdicar de fazer qualquer cobrança pelo
simples fato de que ninguém nos deve nada. Se nos arvoramos em qualquer direito sobre
o outro, tenha certeza de que ali não existe amor. Se nos sentimos donos ou credores de
alguém, pode acreditar que não é o amor a nos orientar. O amor se nega à dominação por
ser libertário por essência. As cobranças perdem o sentido quando entendemos que nada
mais são do que cartas que escrevemos para o destinatário errado”.

“A partir do instante em que entendemos ser responsáveis pela nossa felicidade e que
ninguém nada nos deve, tudo que nos for entregue, ainda que pequeno, se torna um
agradável presente. Nenhuma árvore oferece os frutos fora da estação. O amor exige
paciência. O amor deixa brotar a compaixão para com as imperfeições alheias por ter a
humildade em saber que não possui a perfeição para oferecer”.

“Somente quando aceitarmos que o destinatário do nosso amor não somos nós, mas os
outros, sentiremos pulsar todo o poder e a força do amor. É o processo de amadurecimento
das asas que permitirão o voo às Terras Altas. Não há outro”.

Ficamos um longo tempo sem dizer palavra. Quebrei o silêncio e, emocionado, disse que
precisava ir. Eu estava atrasado para reescrever todas as minhas cartas, pois não queria
mais adiar um importante encontro. Loureiro sorriu.
A ARTE DE SE MANTER SUSPENSO NO AR

Quando entrei para a Ordem, tinha a errônea ideia de que a vida no mosteiro era
simplesmente contemplativa, afastada de todas as impurezas do mundo como maneira de
manter os monges puros. Embora houvesse um período inicial de recolhimento para a
adequada iniciação, no qual havia muito estudo e meditação, logo éramos enviados de
volta ao mundo como método eficaz de conhecimento e aperfeiçoamento de si mesmo. O
Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem, costumava
dizer que “o sagrado não está separado do mundano, mas oculto nele”. É no convívio
comum do cotidiano que podemos entender melhor as nossas reações e as arestas que
ainda fazem sangrar. Apará-las é o aperfeiçoamento necessário; o aperfeiçoamento leva
à transformação; a transformação se traduz em evolução. Os períodos de solidão e
reflexão são tão férteis quanto as fases de convívio social ou profissional. Na verdade,
são as partes distintas de uma mesma aula. Elas se diferenciam para se completarem.

Naquela época, todas as vezes que retornava ao mosteiro eu chegava muito abalado
emocionalmente. Dessa vez não foi diferente. Apesar de a Ordem custear as próprias
despesas com os famosos chocolates artesanais confeccionados em uma de suas cozinhas
e vendidos para apreciadores que aguardavam em longa fila de espera, a OEMM é uma
ordem esotérica que tem entre as suas premissas o valor do trabalho e a independência
financeira de seus monges, como são denominados os seus membros. Por isto, todos têm
os seus empregos, são profissionais liberais ou empresários. Até mesmo o Velho viajava
bastante para palestrar em muitos lugares. Ir ao mundo sempre renova e traz um bom e
farto material para o estudo de si mesmo. Daquela vez tinha sido pior. Eu estava muito
tenso. A minha empresa sofria forte concorrência de novas empresas que prometiam mais
por menos, e o mercado se mostrava simpático a elas. A falência era o medo que rondava
à espreita. O Velho percebeu que eu estava irritadiço e disperso. Eu lhe expliquei o que
acontecia. Ele disse: “Se você fez o seu melhor apenas aguarde a resposta do universo
com serenidade”. Aquelas palavras me irritaram, mas me controlei e falei que não tinha
a menor dúvida de ter feito todo o possível. Expliquei que o meu desequilíbrio era grande
e no mosteiro seria mais fácil pacificar o coração. O monge balançou a cabeça,
demonstrando que entendia. O Velho me disse com calma: “Embora alguns lugares sejam
centros de ancoragem de energia, não é preciso ir a canto nenhum para conversarmos com
a própria alma. Para encontrar consigo mesmo, o silêncio é o melhor lugar”. Falei que
estava tenso e que as minhas noites eram mal dormidas. O Velho fechou os olhos como
quem vai buscar algo nas gavetas da memória e recitou um pequeno poema: “‘Aprenda a
confiar no que está acontecendo. Se há silêncio, deixe-o aumentar, algo surgirá. Se há
tempestade, deixe-a rugir, ela se acalmará’”.

Foi demais. Irritado, eu quis saber quem era o tolo autor do poema que me aconselhava a
cruzar os braços enquanto o mundo desmoronava sobre a minha cabeça. O Velho me
olhou com compaixão e foi lacônico: “Lao Tsé”. Com algum desprezo falei que não sabia
quem era. Com a sua enorme paciência, o monge explicou: “Foi um sábio taoista. Existem
várias codificações do Caminho. O taoismo é uma das mais antigas e belas tradições. Ele
foi um alquimista chinês que viveu há milênios e nos presenteou com a sua bela obra”.
Dei uma gargalhada e zombei perguntando se eu também aprenderia a transformar
chumbo em ouro. Acrescentei que era bem o que eu precisava naquele momento. O Velho
não se alterou e disse com calma: “Sim, é possível transformar em ouro o chumbo da
alma”, deu uma pequena pausa e acrescentou: “Sem dúvida é o que você precisa agora.
É o que todos precisamos. A vontade é condição primordial”. Tornou a se calar por breves
instantes antes de concluir: “No mais, aquietar-se não significa estar parado. É um
movimento valioso de percepção interna e de tudo o que o envolve”.

A calma do monge diante do meu sarcasmo me trouxe desconforto e a desconfiança de


que uma boa lição se apresentava naquele instante. Ajeitei-me, pedi desculpas e solicitei
ao Velho que me ajudasse a entender o poema. Com sua enorme paciência, ele disse:
“Sempre temos que oferecer o nosso melhor diante de tudo o que acontece. Ocorre que
nada podemos fazer diante da força incomensurável de certos movimentos do universo
que alteram de maneira angular a nossa vida. É a hora da inevitável mudança. Por isto
Lao Tsé usa a figura da tempestade que assusta ou da ausência de ventos que não
impulsiona as velas dos barcos. São situações nas quais não podemos interferir. Todos
passamos por momentos em que temos a sensação de que tudo será destruído ou, em
outras ocasiões, enfrentamos estranhos marasmos em que parece que nada vai acontecer,
como se a vida não mais estivesse viva”. Deu uma pausa e seguiu: “São prenúncios de
grandes transformações, início e fechamento de ciclos e ensinamentos cardeais. É hora
de manter a calma, prestar atenção e confiar na sabedoria e no amor infinitos da vida.
Então, aproveitar o novo momento e seguir”.

“A certeza de que o universo sempre conspira a nosso favor traz a tranquilidade de que
tudo que acontece é para o nosso bem. Devemos ter cuidado em não atrapalhar”.
Interrompi para comentar que não conseguia entender como a falência da minha empresa
poderia ser vista como uma boa coisa. Ele sorriu e tentou explicar: “Você não sabe o que
está por vir, tampouco já tem consciência para qual transformação a vida lhe prepara.
Pode ser que o ciclo da sua empresa tenha se encerrado por obsoleto em sua jornada ou
talvez seja o momento de ela ser repensada e reinventada, como para lembrar que tudo
pode ser diferente e melhor. Adivinhação é para os levianos e arrogantes; apurar a
sensibilidade é para as pessoas que têm boa vontade e alegria em caminhar. Lembre que
você é parte integrante e essencial do universo e, por isto, ele está empenhado no seu bem
e na sua evolução. Embora, não raro, estranhemos os seus métodos”.

“Entender o funcionamento do universo e as leis maiores que regem a vida permitem a


arte de se manter suspenso no ar”. Ele me olhou nos olhos e disse: “Isso ajuda a criar as
condições para que a paz se instale em nossos corações. Então, nada do que houver no
mundo terá força para nos abalar”.

Pedi a ele que explicasse melhor. O Velho expôs o seu raciocínio: “Somos filhos do
universo, amados e protegidos pela perfeita inteligência que rege a vida. Nada é
esquecido, nada falta ou exclui. Tudo é conduzido por mãos habilidosas e sábias que
primam pela evolução de cada um de nós. Para cada um é entregue a perfeita ferramenta
para a exata lição. Evolução exige movimento e nem sempre nos mostramos dispostos a
acompanhar o ritmo da vida. Então, a mudança se impõe inexoravelmente. Aguarde com
serenidade o que virá e esteja pronto para aproveitar os bons ventos quando se
apresentarem. Ter carinho com o solo na semeadura traz em resposta a colheita farta”.

Falei que entendia o que o monge falava, mas não conseguia enquadrar aquelas palavras
na situação da minha empresa. O monge me ofereceu um olhar bondoso e se foi. Nos dias
que se seguiram a tempestade não arrefeceu. Ao contrário, aumentou a intensidade,
parecendo varrer tudo que encontrava pela frente. Para não ir à bancarrota aceitei a
sugestão do meu sócio e vendemos a empresa para um grupo internacional. Passei os
meses seguintes amuado e recolhido no mosteiro. Eu estava triste e tinha dificuldade para
entender o motivo pelo qual tudo aquilo tinha acontecido. Não faltava a convicção de que
eu tinha me empenhado ao máximo para que tudo desse certo, como foi durante anos. Eu
precisava encontrar comigo mesmo. Era necessário fazer as pazes com a vida para que a
alegria tornasse a brotar.

Com o passar dos dias, a tristeza foi dando lugar ao entendimento de que eu não amava
mais a empresa como no início. Na verdade, gostava mais da condição financeira que ela
proporcionava do que do trabalho que eu fazia. Nos últimos tempos em que estive à frente
da empresa, não mais levantava todas as manhãs com o entusiasmo do início, quando
estava envolvido com novas ideias e a possibilidade de fazer diferente e melhor. Comecei
a entender que a empresa já tinha deixado de fazer parte dos meus sonhos e se tornara
mera obrigação, além de uma generosa fonte de renda. Sim, eu não mais era feliz em fazer
o que me encantara no passado. A minha alma ansiava por mudanças e eu me negava a
admitir. Então, a vida me presenteou com uma tempestade para naufragar aquele barco
errante, que navegava sem rumo, sem desejo de chegar a lugar nenhum. Singrava apenas
para contar os dias. Percebi que a intempérie, na verdade, era a chance de começar uma
nova viagem para terras distantes em mares nunca antes navegados.

O meu ânimo mudou, a alegria tinha voltado. Eu não sabia o que fazer, mas estava
disposto, atento e afeito ao novo. Sentia-me como em uma enorme estação escolhendo
em qual trem embarcar. Comecei a escutar o que o silêncio do meu coração soprava. Eu
sempre sonhara em trabalhar com criação e com criatividade. Percebi o sentido da
viagem, faltava definir o destino. Foi quando recebi a visita de um antigo amigo que
estava de férias na pequena e charmosa cidade que fica ao sopé da montanha que abriga
o mosteiro. Ele tinha montado uma pequena agência de propaganda digital para aproveitar
uma grande mudança nesse setor que deslocava o eixo da publicidade estagnado nas
mídias tradicionais. Comentou que precisava de um sócio. Foi como acordar sendo
acariciado por um raio de sol travesso que lambe a pele driblando as cortinas fechadas do
quarto escuro. Eu tinha o capital da venda da empresa e um enorme sonho pronto para
ser vivido. Era a vida que se renovava com toda a força e intensidade. Fiz uma prece
sentida em agradecimento pela tempestade demolidora.

Fui ao mundo e retornei ao mosteiro um ano depois para algumas semanas de


recolhimento, estudo e meditação. A agência ainda engatinhava, mas sinalizava um belo
futuro. O mais importante é que a alegria estava de novo presente em meus dias. A
primeira coisa que fiz foi procurar o Velho para dizer que eu estava feliz e que tudo tinha
mudado. Ele arqueou os lábios em leve sorriso e questionou: “Tudo mudou ou você
mudou? Para muitos o mundo não está muito diferente do que estava há um ano”. Fechei
os olhos em resposta. Sim, eu tinha me transformado e, então, a vida se revelara em novas,
belas e desconhecidas cores. Agradeci a ele por aquela conversa sobre o poema de Lao
Tsé e como aquelas palavras me auxiliaram a encontrar o entendimento preciso para
fortalecer as minhas escolhas e retomar o poder sobre a minha própria vida. Pude abrir as
asas para alçar o voo somente possível quando vivemos um sonho. Disse que agora
começava a entender sobre a arte de se manter suspenso no ar. O monge apenas sorriu.
Acrescentei que não me lembrava de ter sido tão feliz. O Velho assinalou: “Sim, a gente
sempre muda para melhor. Esta é uma das leis da vida. Quando não nos sentimos assim
é porque ainda não efetuamos o movimento exato”.

Aproveitei para pedir desculpas por ter sido sarcástico quando ele tentou me ensinar algo
tão importante. O Velho parecia inabalável em suas virtudes: “Somente a vida ensina,
Yoskhaz. Sou apenas um companheiro de jornada a apontar uma ou outra paisagem do
Caminho”, deu uma pausa e finalizou: “Quanto às desculpas, não é necessário. O melhor
pedido de desculpa é demonstrar ao outro que a lição foi aprendida”.

Uma lágrima rebelde escapou do canto dos meus olhos.


A VERDADE NÃO DÓI

Caminhávamos pelas ruas estreitas e sinuosas da charmosa cidadezinha situada no sopé


da montanha que acolhe o mosteiro. O sol do final da tarde realçava as cores das casas e
do calçamento de pedra. Loureiro, o sapateiro que remendava o couro como ofício e
costurava as ideias como arte, estava com fome e seguíamos rumo à cafeteria da Sophie,
onde são feitos os melhores sanduíches do planeta, em busca do seu predileto: em pão de
brioche, fatias de presunto; um pouco de mel e canela; generosas lascas de parmesão e
um ovo mole por cima. Vai ao forno para gratinar. Café para acompanhar até o poente;
lá apenas servem vinho apenas à noite. São as rigorosas regras da casa. A garçonete que
veio nos servir era a Regina, uma colega de longa data, que ficou feliz em nos ver. Disse
que o turno dela já terminara e perguntou se poderia sentar-se conosco. Permissão
concedida, avental guardado e tínhamos ao nosso lado uma pessoa que precisava muito
falar, como aquela criança que corre para mostrar todos os seus brinquedos quando chega
uma visita. De pronto, ela revelou que vivia uma grave crise conjugal. Morava há algum
tempo com outra moça, bem mais jovem, por quem era apaixonada. No entanto, sempre
a apresentou a todos como uma sobrinha que viera passar um período na cidade. Na noite
anterior tiveram uma grave discussão, na qual a namorada a acusava de ser preconceituosa
por não admitir perante a todos o verdadeiro afeto que as unia, seja pela diferença de
idade, seja pelo fato de serem ambas mulheres.

Loureiro a olhou nos olhos e perguntou com a sua franqueza habitual: “O que existe de
verdade nisso?” A amiga abaixou a vista e argumentou que as coisas não eram tão simples
assim. Era preciso levar em conta que moravam em uma pequena cidade do interior, onde
os costumes estão mais arraigados e o novo encontra maior dificuldade para se instalar.
Ao contrário das grandes metrópoles, todos ali se conhecem e se falam. Não queria viver
por entre olhares atravessados, comentários maldosos e discriminada pelas pessoas.
Lamentou que as pessoas fossem tão preconceituosas.

O artesão bebeu um gole do café e disse: “Todas as vezes que deixamos de viver a nossa
verdade em razão de conceitos alheios significa que o preconceito é nosso e não dos
outros. O preconceito nada mais é do que o medo de encarar a verdade diante de si e do
mundo. O medo será sempre uma fonte de sofrimento. A coragem é parte essencial da
cura; cabendo o restante à verdade. Saber exatamente quem somos, sem subterfúgios, é o
passo inicial para a jornada rumo à libertação e a paz”.

Regina argumentou que a verdade não era simples e, por vezes, desnecessária. Loureiro
arqueou as sobrancelhas e disse: “Concordo contigo. É preciso sensibilidade, sutileza e
amor para quando abordarmos a verdade do outro, pois nem sempre ele estará pronto para
o confronto. Pode não ser o melhor momento ou talvez não sejamos os melhores
mensageiros. Que nunca falte paciência e compaixão. No entanto, quando se trata da
verdade sobre a nossa própria vida, discordo: ela é simples, sim. Apenas precisa de amor
e coragem para ser tratada, o que nem sempre é fácil”.

Coragem? Ela sacudiu a cabeça e disse que não se considerava uma pessoa forte. O
sapateiro franziu as sobrancelhas e falou: “É impressionante como abdicamos do poder
que temos”. Regina disse que não tinha entendido o comentário. Ele explicou: “Ser forte
é uma escolha que fazemos todos os dias. A coragem, como todas as demais virtudes,
está ao lado, está à frente, está à disposição de todos. Ela está dentro de cada um,
adormecida, à espera de um leve chamado para despertar e se tornar companheira. A todo
momento temos a escolha de enfrentar ou fugir das dificuldades”. Ficou pensativo por
instantes e se corrigiu: “Não há como fugir das dificuldades, uma vez que elas são as
lições que nos cabem. Na realidade, apenas adiamos a batalha até o dia em que ela nos
alcança”. Regina disse que preferia adiar a luta até o último instante. Loureiro deu de
ombros e falou: “O problema é que nesse caso você prolonga o sofrimento”.

Regina lamentou o poder do preconceito, a maneira como ele envolve as pessoas sem que
elas percebam como interferem indevidamente na vida de todos. O sapateiro concordou
e foi além: “O preconceito é muito mais do que o véu da ignorância que impede de
vermos a beleza da vida com todas as suas fascinantes diferenças. Trata-se de um ato de
desonestidade. Negar ao outro o direito de realizar as próprias escolhas é uma usurpação
para com a liberdade alheia; negar as suas melhores escolhas, por sua vez, é uma fraude
contra si mesmo”.

“Não cometa o desatino de tentar controlar as escolhas alheias; por outro lado, não
conceda a ninguém qualquer poder sobre elas. Entenda que as escolhas nos traduzem.
Podemos nos rascunhar através do discurso, mas somente as escolhas desenham os traços
da arte-final”.

Uma lágrima escorreu pelo rosto da mulher. Disse que gostava daquela cidade e dos
moradores. Tinha muitos amigos ali e não sentia vontade de ir embora caso a verdade
causasse embaraço, distanciamento ou rejeição.

Loureiro deu de ombros e disse sério: “Não temos ingerência sobre a opinião dos outros
nem podemos obrigar as pessoas a mudarem. Tentar convencer os outros é o papel dos
tolos. No entanto, podemos definir quem somos e a maneira como vivemos. A dignidade
é a única fronteira. Em todos os aspectos da vida, esse é o enorme poder que temos. Logo,
decidir com quem você vai namorar e casar é um direito inalienável seu. Não permita a
interferência de ninguém. Quem não gostar que repense os seus conceitos e valores”. Deu
uma pausa e aprofundou: “Que encarem as próprias sombras para entenderem os motivos
pelos quais as escolhas alheias incomodam tanto”. Bebericou o café e foi adiante: “Isso
serve também para quando o desconforto vier na contramão. Ou seja, por que as escolhas
alheias são capazes de nos incomodar? Se temos problema com o novo, o diferente e o
liberto é porque há algo de errado em nós. É hora de mergulharmos no silêncio e na
quietude para conhecer esse sótão escuro da própria alma e, em seguida, iluminá-lo”.

Loureiro deu uma mordida no sanduíche, lambeu os beiços e disse: “É possível que
algumas pessoas se afastem quando souberem da verdade. Embora triste, não é ruim. É a
revelação de um novo círculo de relacionamento, mais verdadeiro e sincero que começa
a se formar ao seu redor, na afinidade da diferente frequência energética que você
começará a vibrar. Ficarão as pessoas que te amam, entendem a sua verdade e respeitam
as suas escolhas. Os demais ficarão estagnados, amaldiçoando a humanidade enquanto a
sua viagem seguirá em múltiplas transformações rumo às novas estações. Livre, leve e
plena”.

A garçonete revelou que ficara muito magoada depois da briga que tivera com a
namorada, por tudo que foi dito. Acrescentou que a verdade doía. O artesão sorriu e em
resposta discordou: “A verdade não dói. Estar frente a frente consigo mesmo e se encarar
sem máscara será sempre causa de desconforto. A máscara não protege, ilude. A verdade
não dói; ela cura e liberta”. Deu uma pausa e completou: “Dolorosa é a mentira que cada
um conta para si mesmo”.

“Preste atenção no que lhe causa dor: o amor que sente pela sua namorada ou o medo que
alimenta a mentira que contou a todos?”

“Toda vez que botar a sua verdade de lado por temer ao que os outros pensam, você
deixará de ser a timoneira do próprio barco que singra nos mares da vida. Depois não vá
culpar o mundo pelo inevitável naufrágio. Lembre que a escolha foi sua. A felicidade
nunca aceita a mentira como companheira de viagem”.

Regina tirou um lenço da bolsa para secar as lágrimas que mareavam o seu belo rosto.
Ficamos algum tempo sem dizer palavra, na tentativa de metabolizar as ideias do
sapateiro. Foi quando apareceu porta adentro a dona da cafeteria. A simpática Sophie veio
nos cumprimentar e comentou que aquele parecia o “Dia do Choro”. Diante dos olhares
interrogativos, ela explicou que acabara de ver na praça a namorada de Regina, sentada
em um banco, lendo um livro de poesias às lágrimas. Pensou que o choro brotasse da
ficção, mas agora percebia que tinha a sua razão na realidade.

Namorada? Regina estranhou que Sophie se referisse assim à sua “sobrinha”. A dona da
cafeteria ofereceu um sincero sorriso e revelou que muitas pessoas na cidade sabiam do
romance, mas por respeito nada comentavam com a garçonete. Em seguida a aconselhou
a ir ao encontro da namorada, pois o amor não deve esperar. Sim, o muro que a impedia
de avançar tinha a altura de um risco de giz no chão. Desconcertada, Regina sorriu, pediu
licença e foi viver o seu destino. Da janela a vimos apressada na calçada; parecia flutuar.
O amor tem esse poder.

Loureiro terminou o sanduíche e sugeriu: “Vamos pedir outro? Toda essa situação abriu
o meu apetite”. Sorri e anuí com a cabeça. O sapateiro divagou: “A vida muitas vezes
parece uma película cinematográfica escrita por um roteirista louco, porém genial. Ele
insiste no final feliz para todos os filmes. Nós, por não entendermos, acabamos por
atrapalhar a melhor sequência de cenas ao negarmos o poder transformador da verdade.
A verdade será sempre a tocha de fogo que iluminará os passos do protagonista durante
a noite escura da trama”.
A REVELAÇÃO

A minha primeira fase como discípulo na Ordem foi representada por muitas perguntas a
respeito dos mistérios que envolvem a vida. Algo que sempre considerei positivo, porque
me impulsionava à reflexão e também me ensinou muito sobre paciência e serenidade,
pois as respostas apenas são permitidas apenas quando estamos prontos para entendê-las.
Não que elas sejam negadas, mas por não conseguirmos vê-las, como se um manto de
invisibilidade as envolvessem até que mudem os nossos olhos. Eu tinha terminado de
varrer o jardim e antes de seguir para a biblioteca do mosteiro passei no refeitório para
pegar uma caneca de café. Livros e café são uma combinação que sempre adorei.
Encontrei com o Velho diante de um pedaço de bolo de aveia, com um olhar distante.
Pedi licença para interromper os seus pensamentos e me sentar ao lado para um pouco de
conversa. Ele me autorizou com um doce sorriso. Falei ter lido um poema atribuído a um
antigo alquimista persa que relatava a conversa entre um caravaneiro e um grão de areia.
Havia uma parte que muito me intrigava:

“Grão de Areia: Eu sou o deserto.


Caravaneiro: Não, você é apenas parte do deserto. Sem você, o deserto continuará a ser
o deserto.
Grão de Areia: Engano. Na minha falta o deserto restará incompleto e viajará à minha
procura.
Caravaneiro: Você devaneia entre a soberba e a loucura.
Grão de Areia: Entendo o seu julgamento. Cada qual o faz com os olhos que possui no
momento. Acredite, ver é uma arte.
Caravaneiro: Diga-me, o que não percebo?
Grão de Areia: A fonte em que bebo. Não há o todo sem a parte.
Caravaneiro: Simples assim?
Grão de Areia: A parte traz o todo em si; eu trago o deserto em mim.
Para conhecer o deserto há que se desvendar o grão.
Este é o poder e a revelação”.

Ao final, sob o olhar atencioso do monge, perguntei que revelação era essa a que se referia
o artista. O Velho deu de ombros e disse: “Posso explicar uma equação matemática, nunca
um poema. Ao contrário da exatidão da ciência, a arte fala a linguagem do apreciador:
pode dizer muito ou nada”. Emburrei. Comentei que ele não estava me ajudando muito.
Fiz menção de me retirar quando fui travado por sua voz serena: “Faço o melhor que
posso, não tenha dúvida. No entanto, o Caminho exige que cada um ande com as próprias
pernas. Esta é a razão de ele existir”. Discordei. Acrescentei que ficava bem mais simples
se todas as verdades e revelações nos fossem entregues devidamente decodificadas, sem
quaisquer mistérios, como uma tabuada. Facilitaria a vida de todos. O Velho sorriu e
disse: “A verdade está disponível, à vista de todos, e jorra em abundância. Mas o que
fazer diante de olhos desatentos ou que se negam a ver? O mistério é apenas a verdade
que ainda não conseguimos entender”. Interrompi para que ele me dissesse o que me
faltava aprender para que os mistérios se revelarem. O monge, com sua enorme paciência,
disse: “Entender é apenas o passo inicial”. Pedi para que ele se aprofundasse e fui
atendido: “Existe uma grande diferença entre conhecimento e sabedoria. O conhecimento
é a verdade intelectualizada; a sabedoria é a verdade sentida e vivida. Amo os livros e
venero os professores, eles são essenciais. Mas não bastam. A informação para deixar de
ser pão de vitrine e se transformar em alimento tem que passar dos olhos à boca. Ou uma
vida inteira que poderia ser nada será. É a parte que cabe ao aluno. Isto o transforma em
andarilho”.

Pedi para que ele me mostrasse a famosa “verdade”, pois eu tinha dificuldade em
encontrá-la. O Velho me olhou nos olhos e disse: “Assim como o grão de areia traz em si
todo o deserto. Todo o universo habita em você”. Insisti que ele não estava me ajudando.
Argumentei que eu era povoado por dúvidas e não sabia como saciá-las. O monge sorriu
e falou: “Cada qual tem todas as respostas para as suas perguntas. Basta amor e coragem
para buscá-las. Você é parte do todo; o todo habita em você”. Balancei a cabeça em
negação e disse que aquilo era uma piada de mau gosto. O Velho mordiscou mais um
pedaço de bolo e pediu que lhe servisse uma xícara de café. Depois explicou: “Toda a
filosofia de Sócrates é fundamentada na frase insculpida no pórtico de pedras da Ilha de
Delfos: ‘Conheça a si mesmo e conhecerá a verdade’”.

“O sábio grego sustentava que à medida que mergulharmos na viagem do


autoconhecimento encontraremos todas as imperfeições do mundo, que tanto nos
incomoda, escondidas em cantos escuros do próprio ser. Na sala de espelhos veremos os
inconfessáveis defeitos alheios sangrando em nossa pele. Entenderemos que criticamos
os outros apenas por ignorância quanto ao que somos. Somente o entendimento de si
permite o entendimento do outro, do mundo e da vida. As mudanças que tanto desejamos
quanto a tudo e todos que nos cercam apenas serão efetuadas na medida das
transformações pessoais que tenhamos condições de oferecer. Perceber as próprias
imperfeições permite não apenas realizar as mudanças indispensáveis no próprio ser, mas,
também, conceder um olhar amoroso em relação às dificuldades alheias. Entender quem
somos de verdade nos ensina a beleza do perdão, a arte da paciência e, principalmente a
sabedoria do amor, na fusão de todas as virtudes em maravilhosa explosão de luz”.

Dei de ombros e argumentei que eu poderia simplesmente me negar a buscar a verdade e


a revelação dos mistérios.

O monge repetiu o mesmo gesto e também deu de ombros para falar: “Claro que pode.
Somos absolutamente livres para exercitar as nossas escolhas. Esta é a infinita
generosidade do universo. Apenas não se esqueça de que há um código não escrito que
regula a vida em todos os planos de existência. A lei da ação e reação é uma delas, para
que vigore a perfeita justiça e permita a cada um definir o próprio destino com suas dores
e delícias, méritos e responsabilidades. Portanto, quando algo não estiver bem, não
lamente. Transforme-se”.

“Negar a viagem é insistir na estagnação. Tudo que resta parado tende a apodrecer. E,
quando falamos da alma nos referimos à agonia oriunda da falta de entendimento sobre o
mundo que o cerca, traduzida na ignorância de si mesmo. Colorimos o mundo na medida
em que mudamos os nossos olhos; as transformações planetárias acompanham os passos
das metamorfoses individuais. Quando o sofrimento transcende ao espírito pela demora
na cura acaba por se revelar em desajustes no corpo físico e mental. Todo desequilíbrio é
um chamado do Caminho. Aceitar o convite, uma escolha”.

“‘Conheça a si mesmo e conhecerá a verdade’ é o princípio filosófico de Sócrates a nos


influenciar até os dias atuais. Como se não bastasse, cerca de mil anos depois, um grande
mestre conhecido pelo nome de Jesus, nas montanhas de Kurun Hattin, profere o mais
profundo discurso de que a humanidade tem notícia. Entre muitas lições valiosas,
complementa o antigo raciocínio: ‘Conhecei a verdade e ela vos libertará’”.

Eu quis saber a qual liberdade se referia. O monge respondeu de pronto: “As prisões sem
grades, aquelas em que não nos percebemos cativos, o que as torna ainda mais cruéis por
perenizarem o sofrimento que esgarça e maltrata. O veneno, embora percebido nos frutos,
tem a sua causa na raiz. É lá que deve ser derramado o antídoto. Então, a necessidade do
mergulho profundo no âmago do ser para curar na essência a ferida que sangra. Isto é
libertador, pois não apenas sara, mas desperta a consciência e expande a capacidade
amorosa; permite que floresça o melhor que nos habita; modifica o olhar para que a vida
se ofereça com cores alegres e, até então, desconhecidas”.

“A verdade é a sua melhor parte; abraçá-la, a sua grande arte. É o lado oculto do ser, que
aguarda esse encontro para se revelar”.

“O encontro consigo mesmo é a reconciliação com a face esquecida, a parte que será
desperta e o reconciliará com o todo. É o poder do universo nas suas mãos”. Fez uma
pequena pausa antes de perguntar: “Consegue dimensionar tamanha força?”

Ficamos um tempo sem dizer palavra. Eu precisava acoplar as ideias. Ainda um tanto
desconcertado, comentei que pelo que eu tinha entendido, me libertar de todo o
sofrimento era uma decisão íntima ao alcance de todos. O Velho sacudiu a cabeça em
anuência, ofereceu um belo sorriso e disse: “Percebe o infinito amor que nos envolve? A
perfeita justiça? A dimensão da liberdade? O universo oferece a cada um de nós todo o
seu poder, afinal se somos o grão, somos o deserto. A sua força nos habita. Basta ouvir o
ritmo de seus tambores para vibrar na mesma sintonia. Aprenda a usá-la!”
O SENTIDO DA VITÓRIA – OUTRA VERTENTE

Eu estava acompanhando o carpinteiro que trocava as dobradiças do portão do mosteiro


quando fui surpreendido pela chegada de um sobrinho do Velho, como carinhosamente
chamávamos o monge mais antigo da Ordem. O jovem, na casa dos trinta anos de idade,
tinha as feições transtornadas e chegara em busca de algumas palavras do tio que
pudessem explicar a tempestade que assolara o seu casamento. Ao encaminhar o rapaz,
encontrei o Velho na biblioteca do mosteiro lendo As Parábolas de Rumi. Embora fosse
um lugar de absoluto silêncio, como estávamos a sós, o monge decidiu que ali mesmo
conversaria com o sobrinho, ao menos até o momento em que chegasse alguém. Fiz
menção de me retirar, mas o monge pediu para que eu ficasse. Sem demora, o rapaz
desabou toda a sua incompreensão e mágoa sobre o que estava acontecendo. Explicou
que o início do casamento fora muito complicado e apenas depois de muitas brigas
conseguiu convencer a esposa da necessidade de ela mudar o seu comportamento em
relação a diversos aspectos da sua vida social e profissional. Precisava entender que se
tornara uma mulher casada. Acrescentou que havia sido uma vitória, após muitas
discussões, a mudança de atitudes da esposa. No entanto, logo depois, ela começou a ficar
triste sem motivo aparente. Deprimida, procurou ajuda com uma conhecida psicanalista.
O tratamento fez efeito, pois, aos poucos, ela recuperou o sorriso aberto e encantador. No
entanto, há poucos dias ela comunicou que desejava o divórcio. O jovem não entendia a
falta de reconhecimento da esposa, pois ele atravessara ao seu lado o período mais
sombrio do romance e, quando tudo parecia resolvido, ela decidira partir. Não, não
concordava nem entendia a separação. Mesmo assim, a mulher foi embora levando
consigo apenas o que cabia em uma mala.

O Velho balançou a cabeça e disse: “No lugar dela eu faria a mesma coisa”. O sobrinho
se irritou. Exaltado, argumentou que era impossível o tio não perceber o quanto de
ingratidão representava a atitude da esposa, pois ele sempre oferecera o seu melhor para
ela e, agora que tudo parecia ficar bem, resolvera abandoná-lo. O monge arqueou as
sobrancelhas como que discordando dos fundamentos do rapaz e explicou com a voz
serena: “Oferecer o seu melhor não significa impor as suas verdades ao outro. O que a
princípio se pensou um presente pode terminar se tornando desagradável e opressor. É
preciso entender as sutilezas da verdade. A verdade se altera de acordo com a expansão
do nível de consciência individual e, por isto, deve ser oferecida, sempre de maneira clara
e suave, jamais imposta. Nem a maior das verdades pode ser entendida por todos. Cumpre
a cada um lançar a semente no solo com carinho e paciência. No momento oportuno, se
for boa, germinará. A boa semente não se perde, são flores que não plantamos para nós,
mas em retribuição à vida, no maravilhoso jardim da humanidade”.

O sobrinho insistiu que apenas adequou o comportamento dela à nova realidade de mulher
casada. Acrescentou que não poderia ser o mesmo de quando era solteira. Quis saber se
o tio lhe dava razão. O Velho respondeu: “Não importa se as suas reivindicações eram
pertinentes. O que sei é que você não soube conviver com as diferenças quando a obrigou
aos seus conceitos e padrões de comportamento. Certo ou errado, acabou por se
comportar como o tirano pessoal dela”.

A irritação do jovem subiu de tom. Estava indignado pelo fato de o tio não entender que
a mudança da esposa era fundamental para o sucesso da relação afetiva. Caso contrário,
insistiu, o casamento acabaria. O Velho deu de ombros e falou: “E acabou. O pior é que
você não conseguiu ser feliz nem mesmo durante a sua existência. No início as discussões,
depois a depressão dela e, por fim, quando ela se recuperou, o próprio fim do matrimônio.
Tudo que poderia ter sido nada foi”.

O sobrinho tornou a tocar na questão da ingratidão da mulher. O Velho não abandonava


a paciência: “A separação representa para ela, neste momento, a necessidade da libertação
inerente a qualquer pessoa. Ao impor as suas verdades, certas ou não, você a dominou.
Obrigá-la à obediência não significa necessariamente ter conseguido que ela olhasse a
vida através das suas lentes. Ela cedeu para encerrar as brigas. Porém, ao fazer isto,
abdicou de parte importante do próprio ser. A tristeza foi inevitável”. Deu uma pausa e
prosseguiu: “Este é o equívoco que cometemos todas as vezes que tentamos convencer
os outros sobre as nossas verdades: podemos acabar por fazer o mal e não o bem que
sinceramente pretendemos. A liberdade é um dos alicerces para a felicidade. Ao
aprisionar a esposa no cárcere do seu olhar, você a envolveu em esfera de melancolia. Ela
deixou de ser ela para representar um personagem ao feitio do seu agrado. Assim, passou
a te perceber não mais como o homem a ser amado, mas como um carcereiro do qual
precisava se libertar. A separação passou a representar o fim de um ciclo de dominação,
opressão e vigilância”.

O rapaz argumentou que poderia ser de outro jeito. Talvez uma conversa pudesse resolver
a questão sem a necessidade de medida tão extrema. O Velho respondeu: “Sim, talvez ela
tenha tentado e você esteve tão inflexível em sua posição que não percebeu a
oportunidade. Sim, sempre é possível e aconselhável o diálogo como bom aparador de
arestas. Porém, para a palavra atingir toda a sua força é necessário que saibamos não
apenas falar com serenidade, é preciso aprender a ouvir com paciência e tolerância. Todos
têm as suas verdades. O amor exige isto para que possa florescer”.

O sobrinho tornou a insistir na tecla da ingratidão da esposa. O tio o corrigiu: “Não adianta
agora trazer para si o papel da vítima. Esta fantasia não lhe cabe e apenas vai atrasar todo
o entendimento que você precisa para voltar a ser feliz. Entenda que o amor é uma jornada
de libertação, nunca um jogo de dominação onde deve prevalecer a vitória da vontade de
um sobre o outro. Não raro confundimos a ordem com a paz. Enquanto a dominação traz
a ordem, sempre relativa a aparência; a libertação apresenta a paz, fundamental para a
essência do ser”.

O jovem balançou a cabeça e disse que o tio não conseguia entender o que acontecia,
talvez pelo fato de estar viúvo havia muitos anos. O Velho sorriu e rebateu com doçura:
“O amor é muito antigo e rege o mundo desde tempos imemoriais. Sofremos por que não
o entendemos em toda a sua amplitude. Sofremos por temer tudo que não podemos
controlar, por tentar aprisionar o que só existe se for livre”. O sobrinho acrescentou que
acreditava que a esposa era a “mulher da sua vida”, que ela passava por um momento de
transtorno e logo tudo voltaria ao normal. O monge deu de ombros e falou: “Você se ilude
ao acreditar que o normal é manter o outro limitado à sua vontade. O normal é ser feliz.
Quando sofremos, significa que algo tem que ser transformado. Não no outro ou no
mundo, mas dentro de nós. Foi isto que a sua esposa fez. Enquanto ela foi “a mulher da
sua vida”, sofreu. Até que se encontrou consigo mesma, com a pura essência que existe
em cada um de nós, e entendeu que podia ser diferente e melhor. Então, percebeu a
necessidade de partir. Sim, ela precisava partir pelo simples fato de você perder o
compasso dos passos dela. O ritmo se tornou outro, ficou impossível dançarem juntos.
Porém, isso não deve ser encarado como derrota, mas como ensinamento e superação.
Assim evoluímos”. Deu uma pausa antes de concluir: “Preste atenção e perceba que você
também não foi feliz durante a existência desse casamento”. Mesmo zangado o sobrinho
agradeceu. Lamentou que aquela conversa não tivesse ajudado, girou nos calcanhares e
partiu.

Eu quis saber como o rapaz ficaria. O Velho fechou os olhos e disse com sincero pesar:
“Ele passará por um período de indignação e revolta, achando que a vida é injusta, a
humanidade não presta e se sentindo um pobre coitado. Será uma fase difícil e triste até
que se canse de sofrer e entenda que o universo não dá a mínima para quem adora o
comodismo do discurso da vítima. Então, entenderá que para modificar o Caminho é
necessário mudar o jeito de caminhar. Dessa maneira as derrotas acabam por se tornar
valiosas operárias da vitória. Assim como o esterco fedorento ajuda a germinar a mais
bela das flores, o mal acaba por se tornar um precioso adubo para a semente do bem, que
aguarda para se transformar em todas as suas potencialidades de raiz, caule, folha, flor e
fruto. Então, novamente semente”. Deu uma pausa e concluiu: “Aprender, transmutar,
compartilhar e seguir. Esta é a cartilha”.

Ficamos sem dizer palavra até que rompi o silêncio. Perguntei por que as relações, sejam
afetivas, sociais ou profissionais costumam ser conflituosas. O Velho respondeu:
“Agimos no microcosmo na exata maneira como enxergamos o macrocosmo”. Falei que
não tinha entendido. O monge foi didático: “Se você vê o mundo como um teatro de
guerra, o outro é o inimigo a ser batido; se você vê o mundo como um jogo de poder, o
outro será o adversário a ser subjugado para que se adeque aos seus interesses, desejos e
verdades”. Olhou nos meus olhos e disse: “Os cemitérios são os verdadeiros monumentos
das guerras; um rastro de mágoa e ressentimento é a consequência gerada pelos
derrotados em modernos batalhões ora ansiosos, ora deprimidos. Enquanto o seu
oponente for o outro, haverá intolerância e sofrimento. Não existe a vitória sobre o outro.
Isto é uma ilusão. Quando há adversário existe apenas dominação. Haverá ordem, nunca
paz; existirá aplauso e exaltação, nunca alegria e equilíbrio”.

“No entanto, quando passamos a ver o mundo como uma enorme praça ainda em
construção, um lugar para encontros, aprendizados e comunhão, traremos esse olhar para
as relações pessoais. Entenderemos que o adversário a ser batido está dentro de cada um
de nós e não fora. O outro, mesmo quando se opõe aos nossos passos, não deve ser
encarado como um problema, mas como oportunidade de aprendizado e fortalecimento;
alavanca de evolução. A única vitória que traz harmonia, liberdade e plenitude é a vitória
sobre si mesmo: a superação das próprias fraquezas e dificuldades. O maior dos inimigos
não está nas ruas, mas escondido em nossas entranhas, manipulando as melhores
escolhas, podando as asas e negando o voo. Nos impedindo de fazer diferente e melhor.
A iluminação e transmutação das sombras em si mesmo é a verdadeira libertação. Apenas
isto o torna melhor, o faz ser pleno, tece a paz. Nada mais. Somente ajudaremos na
construção desta civilização inacabada na medida da evolução individual. Esta é a única
transformação possível. Não há outra. Para tanto é indispensável a importante batalha que
travamos no âmago do próprio ser, no mergulho profundo para saber quem somos e as
metamorfoses que precisamos operar. Esta é a verdadeira vitória. Ou continuaremos
como lagartas a gritar que as borboletas não existem: são absurdas criações dos poetas e
dos loucos”.
A MAIOR DAS MENTIRAS

Loureiro, o sapateiro que costurava o couro como ofício e as ideias como arte, andava ao
meu lado pelas estreitas ruas de pedras da charmosa cidadezinha situada no sopé da
montanha que abriga o mosteiro. Procurávamos um restaurante para almoçar.
Escolhemos um bem sossegado para que pudéssemos prosear à vontade. Assim que
entramos ele encontrou uma amiga de longa data, uma artista plástica que se tornara muito
famosa devido aos seus quadros. Embora viajasse por todo o mundo por conta de convites
e exposições, sempre que possível ela retornava àquela pequena cidade a fim de
reencontrar as suas raízes, como maneira de não esquecer a essência que a movimentava.
“O conhecimento sobre a minha aldeia é que me concede o poder do mundo”, repetiu a
famosa frase quando o sapateiro lhe perguntou o que fazia ali ao invés de estar em Nova
York, Londres ou Paris. Imediatamente ela nos convidou para sentar à sua mesa. Eu a
conhecia por fotos de revistas, mas me impressionou a sua elegância e, principalmente, o
seu magnetismo, embora não parecesse fazer qualquer esforço para uma coisa ou outra.
Devia ter a idade de Loureiro e os cabelos brancos e curtos, como os do sapateiro.
Decidira não mais usar tintura; a maquiagem era quase nenhuma. Alegou que “dá muito
trabalho e no mais, já há tinta demais na minha vida”. Rimos. Fiquei pensando se a
elegância não residia na sua sofisticada simplicidade. Perguntada sobre as novidades, ela
disse que teria de ir a Madri dentro de alguns dias, pois um dos seus quadros fora
escolhido para compor uma mostra no Museu do Prado sobre “sentimentos ocultos”.
Tirou da bolsa uma foto da tela para nos mostrar. Era um belíssimo quadro, de enormes
dimensões, daqueles que ocupam uma grande parede, no qual ela retratava uma mulher
jovem e sozinha no salão de uma festa. Ela disse que batizou o trabalho como “A Maior
das Mentiras”. Eu quis saber a razão do título. A artista me respondeu que, depois de
terminada a obra, achou que era triste o sorriso da mulher retratada. Confessou que se
sentiu incomodada com a tela, no entanto, ressaltou, não sabia nem tentava entender a
razão daquela interpretação, pois pintava com o inconsciente.

O almoço foi muito agradável, com a conversa versando sobre arte e viagens. Quando
estávamos na sobremesa, ela começou a falar do ex-marido. O que andava fazendo, sobre
o trabalho dele, onde tinha ido de férias, quem estava namorando. Por fim, lamentou o
péssimo relacionamento do pai com a filha que tinham em comum, de como ele era
distante e, pior, como discutiam todas as vezes que se viam. Acrescentou que era assim
desde sempre. Parecia que tudo que faláramos antes fora apenas um prefácio sobre a vida
desse homem. A artista me pareceu estranhamente empolgada ao falar do antigo cônjuge.
Claramente, ele era o seu assunto principal, embora tivessem se separado há quase trinta
anos. Eu perguntei se ela ainda o amava. De pronto, respondeu que não. Falei,
inadvertidamente, que estava surpreso em perceber como ela acompanhava a vida do ex-
marido. Neste momento o tom da conversa mudou e a voz dela se tornou um tanto aflita.
Alegou que falava dele pelo fato de se preocupar com a filha. Afinal, ele era o pai e
compunha a outra parte da família dela. Loureiro, que quase não se manifestara durante
o almoço, repousou a taça de vinho sobre a mesa e sublinhou: “O pai faz parte da família
da sua filha, não da sua”. A amiga arregalou os olhos assustada e sustentou que tudo que
se relacionava com a sua filha lhe dizia respeito. Fora ela quem a educara, levara ao
médico, à escola, enxugara as lágrimas da menina, ficara acordada nas noites febris.
Enfim, amava e cuidava da filha desde o berço, desejava-lhe o melhor; portanto, achava
normal que se interessasse pela vida do ex-marido e se esforçasse para que tivessem, pai
e filha, um bom relacionamento. O sapateiro ponderou com calma: “Claro que você deve
facilitar essa convivência, sempre. No entanto, deve entender o que todo esse interesse
pela vida dele, de fato, esconde. Ela já tem quase trinta anos, é uma mulher madura e com
condições de construir por si mesma uma relação paterna entre encontros e desencontros”.
Apontou com o queixo a foto do quadro que ainda estava sobre a mesa e concluiu: “A
maior das mentiras é a que contamos para nós próprios. Percebe que esse é o recado que
o seu inconsciente manda ao seu consciente?”

A artista disse que não entendia aonde Loureiro queria chegar. Ele explicou: “Assim
como a mulher retratada na tela, você se sente abandonada em um grande baile. O baile
da vida. Percebo em seu rosto a exuberância de uma pessoa maravilhosa que atingiu o
merecido sucesso profissional. Tem o reconhecimento do mundo pelo seu talento e
trabalho. Parece não lhe faltar nada. No entanto, não encontro em seus olhos a paz
necessária, vejo uma alegria superficial em suas feições. Falta-lhe tudo”.

Ela disse que um erro muito comum é confundir o autor com a sua obra. No mais, as
coisas não eram tão simples. O divórcio ocorreu quando a menina ainda era muito
pequena e que, desde então, se esforça ao máximo para que pai e filha sejam amigos.
Entretanto, todas as vezes que se encontram, eles acabam brigando e a filha fica muito
triste. Eu perguntei o porquê de eles brigarem tanto. A mulher respondeu que a filha era
muito ressentida pelo fato de o pai ter sido distante desde que saiu de casa. Sentia falta da
figura masculina em sua vida e cobrava isto todas as vezes que o encontrava. O sapateiro
passou a mão nos cabelos brancos, como fazia quando sabia que entraria em terreno
minado, e disse: “Quem na verdade sente a ausência, você ou ela? Sua filha cresceu com
o pai longe de casa, era normal que estivesse adaptada à situação. Recordo que na época
você sofreu muito com a separação, parecia inconformada. Não me lembro de você
namorando ninguém depois”. A amiga disse que os seus relacionamentos sempre foram
esporádicos e superficiais, pois é muito difícil recomeçar a vida afetiva com uma filha a
tiracolo.

Loureiro balançou a cabeça e falou: “Isso não é totalmente verdadeiro. Há inúmeros


exemplos de mulheres que superaram bem essa fase e conseguiram construir
relacionamentos amorosos ainda mais maduros e saudáveis que o anterior”, deu uma
pausa e comentou: “Muitas vezes o que calamos tem mais a dizer do que aquilo que
falamos”. A amiga disse que tornava a não entender. O artesão foi didático: “Embora
passada quase três décadas, você não se conformou com a separação”. Nervosa, ela
repetiu que não o amava mais. Loureiro concordou: “Também acho que não. Isso que
conversamos nada tem a ver com amor. É um caso clássico de orgulho e vaidade. Você
não admitiu até hoje o fato de ele não mais a desejar, de não mais a amar, de ter ido
embora, de ter destruído aquilo que se acreditou um sonho. Inconformada com o que
interpreta equivocadamente como uma perda ou um fracasso, precisa que ele volte para
recompor o ego estraçalhado. Quando percebeu que não mais conseguiria por si mesma
que ele reconsiderasse a sua decisão, inconscientemente transmitiu para a filha tal
responsabilidade, criando nela a ausência de um pai que sempre esteve presente na
medida das possibilidades dele, não nos desejos da esposa abandonada. A filha, sem
perceber, passou a ser a mensageira das frustrações da mãe. Por isto eles brigam tanto”.

Uma lágrima rebelde escapou pelo belo rosto da artista. O sapateiro disse, de jeito
carinhoso: “Para recuperar a alegria que você esqueceu em uma esquina qualquer da vida
é preciso curar a ferida ainda aberta. A verdade é o remédio. A mentira que contamos
para nós próprios é uma das sombras mais cruéis que nos manipulam e impedem a
plenitude. Aceitar que relacionamentos são eternos apenas enquanto existir afinidade
entre consciências e corações é lidar com a vida de maneira sábia. Todas as vezes que
tentamos controlar alguém acabamos por nos condenar a viver na cela da vontade absurda
do domínio sobre o outro”. Bebeu um gole de vinho e prosseguiu: “Enquanto apreciar a
mesma música, o casal dançará junto no baile. Ao descompasso, é hora de se despedir,
desejar boa sorte e partir para recomeçar. Não há vergonha nisso. Pelo contrário, é um
ato de amor por si, pelo outro e pela vida. É o final de um ciclo e, inevitavelmente, será
o início de outro. Esta é uma das leis que compõem o código não escrito que rege a tudo
no universo. Insistir no que não se sustenta mais é um caso típico de estagnação. É teimar
em alimentar o ego nas sombras da mentira e do desejo insensato em controlar o desejo
alheio. É negar o amor usando equivocadamente o amor como desculpa; é recusar a
evolução por apego a um passado que não existe mais. Isto traz a agonia e a tristeza;
afasta a paz e a felicidade. Ao superestimar as necessidades da sua filha ou, pior, ao criar
desnecessidades para ela, você tece a mentira de como a presença do seu ex-marido se
faz importante na intensidade da sua vontade, não das necessidades dela. Claro que a
convivência entre pai e filha é fundamental, mas no ritmo deles, não no seu. Somente ao
aceitar que uma história terminou nos permitimos recomeçar outra”. Deu uma pausa e
concluiu: “O amor em sua essência nos ensina que não precisamos emocionalmente de
ninguém, pois tudo do que carecemos está adormecido dentro de cada um de nós, à espera
de ser despertado para que, somente então, o compartilhemos com outro alguém e com o
mundo”.

Ficamos um tempo que não sei precisar sem dizer palavra. A artista esvaziou a sua taça
de vinho, alegou um compromisso, agradeceu o almoço e saiu. Resolvemos pedir o café
e perguntei a Loureiro se haveriam mudanças na sua amiga depois daquela conversa. O
sapateiro deu de ombros e disse com naturalidade: “Nenhuma, ao menos por ora.
Algumas mentiras, de tão antigas, criam raízes profundas no ego e são difíceis de serem
reveladas. Iluminar velhas sombras é sempre mais difícil, pois acabam nos fazendo crer
que são indispensáveis. A maior das mentiras é aquela que você conta para si mesmo. O
ego, na ilusão de proteção, constrói uma falsa justificativa para atribuir aos outros a
responsabilidade pela frustração que tanto o incomoda. A alma entristece. A frustração
pode ser um freio ou um trampolim para a evolução. Depende apenas dos olhos com que
se vê, das escolhas que fará. Ninguém precisa da permissão de ninguém para ser feliz.
Ninguém precisa de nada que esteja fora de si mesmo para ser pleno. Enquanto você
acreditar que depende de alguém para seguir adiante, estará aprisionado em uma terrível
masmorra sem grades, na qual o ego, disfarçado de guerreiro, é, na verdade, o cruel
carcereiro da alma, o guardião do portal que o impede de iniciar o Caminho. A verdade é
a chave para a liberdade”.
A SEMENTE

Eu caminhava pelas montanhas do Arizona ao lado de Canção Estrelada, o xamã que


tinha o dom de usar a música para perpetuar a sabedoria do seu povo, quando paramos
em um pequeno platô com uma vista encantadora. Ele estendeu o seu manto colorido no
chão, acendeu o inconfundível cachimbo com fornilho de pedra vermelha e me pediu para
preparar uma fogueira. Depois ritmou com o seu tambor de duas faces uma sentida
cantiga ancestral na qual pedia proteção para nunca abandonar “o lado ensolarado da
estrada”. Ficamos um tempo que não sei precisar sem dizer palavra, como viajantes no
mundo das ideias, até que o xamã rompeu o silêncio: “Há muitos elementos na natureza
que considero sagrados pelo simbolismo que representam. O nascer do sol pela
importância da luz em nossas vidas; o voo da águia por me ensinar a ver todas as coisas
do alto; as estrelas para lembrar que existem outros mundos além deste; a mudança das
estações pela lição da renovação dos ciclos; a borboleta para me lembrar que a lagarta
pode ter asas; o rio para não me deixar esquecer que todas as águas um dia chegam ao
mar. No entanto, nada me encanta tanto quanto a semente”. Deu uma baforada e
prosseguiu: “Enfim, há lições por todos os lados. O sagrado está misturado ao mundano
à espera de ser revelado”. Quando eu ia interromper para perguntar sobre a semente, a
conversa mudou de curso. Ele falou: “Assim como a magia aguarda o momento do
feiticeiro”.

Comentei que tinha certa dificuldade de entender o que era essa magia, tão celebrada por
magos e xamãs. Revelei que na cultura na qual fui criado tal poder era tido, pela maioria,
como lenda oriunda de antigas crenças ou histórias de ficção. Confessei, ainda, que, como
todos, sempre desejei possuir tamanho poder. Canção Estrelada fechou os olhos, como
fazia todas as vezes em que sabia que a conversa seria longa e explicou com a sua voz
rouca: “Esse poder está ao alcance de qualquer um, somos todos filhos do Criador, sem
qualquer distinção ou privilégio. O poder é de todos, basta aprender a usar”. Deu uma
pausa e disse: “Magia é alteração de um estado de realidade. Preste atenção como há
situações, pessoas e lugares que nos deixam nervosos, agressivos ou tristes; outras que
nos trazem a sensação de calma, leveza e alegria. Não é assim?” Balancei a cabeça em
concordância. Ele continuou: “Esse é um tipo muito usual de magia. A palavra, por
exemplo, pode espalhar a discórdia ou semear a paz. Isto nos torna feiticeiros pelo poder
de modificar o ambiente. Então, quando essa mudança nos ilumina e acolhe, se torna
sagrada. Definir o sentimento que nos move influencia a palavra e determina a magia,
sutil ou densa, acelerada ou lenta, que nos envolverá”. Deu uma pausa e concluiu:
“Portanto, preste muita atenção todas as vezes em que abrir a boca: as suas palavras
envolvem o poder da transformação e, por consequência, definem que tipo de feiticeiro
você é”.

“No universo tudo é fusão e expansão”, falou. Ao perceber uma grande interrogação em
minhas feições, Canção Estrelada se adiantou em explicar: “Tudo que acontece no
universo se repete em nós. Como todos somos um, as leis que regem as estrelas também
se aplicam a mim e a você”. Falei que não tinha entendido e ele explicou com paciência:
“Por exemplo, as estrelas magnetizam as energias que as rondam, ganham força e, em
agradecimento, retribuem em brilho de diversas potências. Por sua vez, das energias que
nos envolvem, atraímos aquelas com que temos afinidade, metabolizamos e, em seguida,
dependendo do nível de consciência e da capacidade amorosa, compartilhamos em luz ou
sombras”.
Em sombras? Estranhei. O xamã foi categórico: “Cada qual oferece o que pode”.
Interrompi para saber como eu seria capaz de determinar as energias que me imantam e
refletir apenas luz. Canção Estrelada arqueou os lábios em sorriso sutil e disse: “Através
das suas escolhas, apenas elas têm tamanho poder. Há estrelas que conseguem iluminar e
manter a vida de toda uma galáxia. Outras são buracos negros que sugam tudo à sua
volta”.

O xamã deu uma baforada no cachimbo e disse: “Você não pode esquecer que a luz, em
resumo, é a coesão de muitas virtudes que não existem isoladamente. Por exemplo, a
sabedoria precisa do amor para que fique a serviço do bem; o amor necessita da sabedoria
para se espraiar, em toda a sua amplitude, com inteligência e justiça. A coragem se faz
indispensável na superação da inércia e dificuldades no intuito de que o amor-sabedoria
não seja apenas contemplativo. Por fim, o bem precisa ser experimentado até restar
fundido à alma. Ao iluminar a si mesmo você cumpre a função de trazer a luz ao mundo
no reflexo das suas escolhas”. Olhou no fundo dos meus olhos e disse: “Os melhores
feiticeiros são aqueles que se concentram na magia de transformar a si próprio”. Comentei
que me parecia egoísmo. Canção Estrelada sacudiu a cabeça e disse: “Não, ao contrário,
eles sabem que apenas assim, com o aprimoramento do próprio jeito de ser, conseguirão
iluminar os passos de toda a gente. Estes verdadeiros magos, aos poucos, em gestos
humildes, alteram toda a realidade à sua volta em ondas que se propagam até os confins
do universo”.

“Todo feiticeiro entende a importância do cerimonial mágico, que na verdade é todo e


qualquer ritual de transformação do ser. Muitos se perdem na fantasia das cerimônias
secretas em noites de lua cheia, ao redor de grandes fogueiras na invocação de espíritos
poderosos. Sim, estes rituais existem e têm o seu valor. No entanto, igualmente poderosos
são os pequenos e quase imperceptíveis cerimoniais do cotidiano em que, não raro,
desperdiçamos a oportunidade para semear a melhor magia: um abraço apertado na hora
da agonia, um sorriso sincero para apagar a incerteza, uma gentileza fácil na hora difícil,
uma delicadeza em momento conflituoso, uma palavra de esperança diante da dor, o
perdão verdadeiro, a pacificação de uma briga, uma escolha por amor. Enfim, tudo aquilo
que seja capaz de manter em si a chama forte da luz e, se possível, alterar o ânimo de
outra pessoa. Isto servirá de alavanca para que ambos possam expandir a mente e
fortalecer o coração. Então, ocorre a transformação pessoal. Não se engane, isso é magia
pura”. Deu uma pausa e concluiu: “São alguns exemplos simples que apenas os melhores
feiticeiros aproveitam para modificar a realidade”.

O silêncio tornou a imperar. Fiquei um tempo que não sei dizer pensando na simplicidade
do poder e da magia, ao alcance de qualquer um, enquanto muitos, na busca pelo
entendimento alquímico da vida, aquele que transforma o chumbo da sombra no ouro da
luz, se perdem por não descortinarem as névoas da ilusão. Foi quando lembrei que Canção
Estrelada tinha dito, no início daquela conversa, que para ele nada era mais emblemático
do que a semente. Questionado, o xamã apanhou no chão uma pequena semente de um
enorme carvalho, que, impávido ao nosso lado, parecia abençoar a lição. O xamã
explicou: “Repare o minúsculo tamanho dessa semente se comparado à grandeza da
árvore e veja como os formatos se modificam durante o processo de transformação.
Imagine a semente de uma maçã e lembre das formas, cores e sabor da fruta; faça o
mesmo com o perfume e a beleza das flores. Consegue entender o poder da luz em você?”
Apontou o secular carvalho com o tronco que parecia uma pilastra, depois mostrou a
frágil semente e disse: “A árvore mais alta, a fruta mais doce ou a mais bela flor nada
mais são do que uma minúscula semente que se permitiu as devidas transformações.
Assim é com a luz que nos habita. Como filhos do Criador, trazemos a Sua semente no
âmago. Em essência, somos luz”.

“Uma semente de luz nunca se perde. Ela pode demorar milênios para germinar, mas o
seu verdadeiro destino será, inexoravelmente, o da árvore que arrefece o calor dos dias,
da flor que enfeita e perfuma a vida, da fruta que alimenta a humanidade”.

Canção Estrelada pitou o cachimbo e observou a fumaça dançar diante dos nossos olhos.
Arqueou os lábios em leve sorriso e finalizou: “A luz que se manifesta em você através
das infinitas transformações define o tamanho das suas asas, a altura do seu voo e a
distância da sua viagem. É a única bagagem que poderá levar em sua sacola sagrada, o
coração”.

“Permitir que a semente de luz cumpra todo o ciclo de árvore, flor, fruto e, de novo,
semente é a magia mais importante que cabe a todo e qualquer feiticeiro”.
VALIOSOS PILARES

Na charmosa cidadezinha que fica no sopé da montanha que acolhe o mosteiro, aos
sábados, todo o comércio encerrava a sua atividade ao meio-dia, salvo restaurantes,
cafeterias e pubs, pontos de encontro para alegres almoços ou reunião de amigos. A
famosa exceção era a oficina de Loureiro, o elegante sapateiro, amante dos livros e dos
vinhos. A loja de Loureiro funcionava em horário irregular e inusitado. Encontrá-la aberta
a qualquer hora do dia ou da noite era um autêntico jogo de sorte. Naquele sábado à tarde,
antes de retornar ao mosteiro, arrisquei encontrá-lo para um café e uma conversa vadia.
A loja estava fechada. Como a minha carona era apenas para a noite, tentei uma taberna
pouco concorrida, a qual ele muito apreciava. Encontrei o artesão acomodado em uma
confortável poltrona, ao lado de uma pequena mesa com uma taça de tinto e um abajur
que lhe permitia ler o Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa, com invejável
tranquilidade. Quando fui cumprimentá-lo, se aproximou, quase ao mesmo tempo, outro
amigo dele. O homem estava com os olhos vermelhos e inchados de tanto chorar. De
imediato, contou que na noite anterior fora surpreendido com o término de um romance
que, embora não tenha durado muito tempo, havia sido intenso. Loureiro, ao perceber que
o amigo não tinha me notado, nos apresentou. Renê, este era o seu nome, me tratou de
maneira educada. O sapateiro pediu para que puxássemos cadeiras para ficarmos mais
próximos a ele, pois o seu tom de voz era sempre muito suave. Acrescentou para o Renê
que poderiam conversar sobre o seu dilema em outra hora, uma vez que a minha presença
poderia constrangê-lo. O homem disse que não tinha problema nenhum. Precisava
desabafar e ouvir algumas palavras que pudessem arrefecer a sua dor.

Em seguida, confidenciou que nos últimos meses as discussões com a namorada se


acirraram e as brigas se tornaram uma constante. Reclamou da dedicação exagerada da
mulher ao filho, fruto de um relacionamento anterior, o que reduzia bastante o tempo para
ficarem a sós. Como se não bastasse, todas as quartas-feiras ela tinha o hábito de se reunir
com um grupo de amigas para jogarem cartas. O sapateiro bebericou um gole do tinto e
comentou: “Ao que me parece, o filho e as amigas já faziam parte da vida dela quando
você a conheceu”. O amigo confirmou. Loureiro deu de ombros e disse: “Ser uma boa
mãe e cultivar amizades são ações nobres. Não vejo motivo para reclamações”, fez uma
pequena pausa e quis saber: “O ciúme o atormenta?” Renê negou de maneira veemente.
Tornou a perguntar: “Você é egoísta em suas relações?” O amigo esclareceu que apenas
precisava de mais tempo com a namorada. O artesão franziu a testa, como fazia todas as
vezes em que o interlocutor parecia confundir os próprios sentimentos, nada falou sobre
isto e manteve o raciocínio: “Quando você se apaixonou, bom ou ruim, ela já era assim.
No entanto, você desejou moldar os hábitos dela para se adequarem ao seu ideal de
convívio”. O homem argumentou que uma pessoa compromissada com outra tem que
aceitar as mudanças inerentes ao relacionamento. Por isto, discutiam tanto, mas não
esperava ser surpreendido com o desfecho do romance.

Loureiro balançou a cabeça em negação e disse: “O desejo em mudar os outros é o mais


tolo dos equívocos”; em seguida comentou: “Cada qual tem apenas poder sobre si mesmo
e somente possui direito em relação às próprias escolhas”. Fechou os olhos, como se
procurasse as melhores palavras e acrescentou: “Relacionamentos são como pontes,
dificilmente desabam sem que os seus alicerces deem sinais de desgaste. Em geral, somos
nós que, ao negar a necessária reforma em nossas estruturas, fingimos não ver as
rachaduras. A ponte dos relacionamentos pode ser firme ou frágil, a depender dos pilares
que escolhemos para sustentá-la”. Renê quis saber que pilares que melhor sustentam tal
ponte. O sapateiro os revelou: “A paciência e o respeito”.

“Não raro, quando um namoro, casamento, o convívio entre pais e filhos, uma amizade
ou mesmo as relações de um grupo social começam a enfrentar muitos conflitos, devemos
ser absolutamente sinceros para que, em análise de autoconhecimento, verifiquemos se
os olhos que têm provocado tantos desentendimentos não estão distorcidos pelas lentes
do egoísmo e do ciúme. Nos relacionamentos afetivos, principalmente naqueles mais
íntimos, somos condicionados, de maneira errada, a nos imaginar como a parte principal
da vida do outro. Isto nunca será verdade, ao menos em uma convivência saudável. Cada
um é o eixo central e mais precioso da própria vida. É o protagonista do próprio filme.
Todas as demais pessoas são coadjuvantes que vão agregar cenas indispensáveis de afeto,
alegria, auxílio ou aprendizado, sejam aliados ou vilões. Todos, sem exceção, têm um
importante papel a desempenhar. Mas não se esqueça: você é o personagem mais
importante da sua história. Trata-se da sua jornada evolutiva. No entanto, pelos mesmos
motivos, aceite que será sempre coadjuvante na vida do outro”.

Renê insistiu que uma relação afetiva acaba por obrigar a mudanças de comportamento.
Loureiro fez um gesto com a mão como se o amigo não estivesse entendendo: “Sim e
não”, contestou. “Claro que uma pessoa casada não pode ter uma rotina de solteira em
muitos aspectos. Todavia, há que se estabelecer limites. Ter uma vida em comum não
significa anular nem abandonar a essência que movimenta aquele indivíduo em razão de
um modelo enlatado e anacrônico de convívio”.

“Cada qual é único; nisto reside a beleza de todos. Ao forçar que alguém se encaixe em
uma fórmula de viver, agimos como ladrões da alegria por subtrair do outro o que há de
melhor nele. É muito chato conviver com alguém que vive aos lamentos e queixas ou,
pior, deseja nos controlar. Isto é dominação e acabará sufocando o amor, que precisa dos
ventos da liberdade para existir. Por definição, filosofia e necessidade”.

“É evidente que você deve conversar para expor o seu ponto de vista sobre uma situação
que entenda equivocada. No entanto, fale com calma e clareza para que as suas ideias
sejam compreendidas. Ninguém entende os argumentos de ninguém durante uma
discussão. Entretanto, o outro pode acatar ou não os seus motivos: a razão não tem dono.
Lembre que cada um reage de acordo com o seu nível de consciência e tem total liberdade
sobre as próprias escolhas”.

“Quando uma situação nos incomoda significa que algo precisa ser transformado. Sempre
na gente, nunca no outro. Caso uma troca de ideias serenas revele uma grande diferença
de percepções em relação à vida e isto o entristeça, não insista em modificar o
comportamento alheio. Todos ficarão infelizes e o relacionamento restará aborrecido.
Aceite que pode ser a hora de seguir sozinho a viagem. Ou o momento de mudar o próprio
olhar. Paciência e respeito pelo outro significam paciência e respeito por si próprio”.

“A paciência é uma poderosa virtude sem a qual nunca desfrutaremos da clareza da


sabedoria nem da doçura do amor. A paciência nos alia ao tempo e ajuda a entender a
diferença entre desejo e necessidade. Ela é ferramenta da quietude que nos leva ao
encontro mais importante da vida, aquele que cada qual deve ter consigo mesmo; ao
entender a si, entenderá o mundo. Enfim, o amor sem paciência nunca será amor. A
paciência nos ensina que o amor não precisa ser perfeito e dificilmente o será. O amor é
uma obra inacabada no coração de cada ser, trabalhada todos os dias, incansavelmente,
até o infinito dos tempos. Abandonar o amor por não o aceitar imperfeito é não entender
o amor”.

“Por sua vez, o respeito está ligado a outras virtudes como a sinceridade e a liberdade.
Nenhum relacionamento se sustenta nos alicerces das fraudes, dos subterfúgios e das
mentiras. A mais comum é também a mais dolorosa das mentiras: aquelas que contamos
para nós mesmos. O respeito fala sobre ser autêntico, em viver de acordo com as próprias
verdades, ainda que todos discordem. Lembra que o fato de discordar não concede o
direito de atormentar o outro por causa das opiniões dissonantes. As diferenças são a força
motriz do avanço da civilização. Ou seja, as diferenças, quando bem aproveitadas, trazem
crescimento por oferecer outro olhar e novas possibilidades. O respeito aborda, ainda, a
beleza e o poder das nossas escolhas, pois são as únicas ferramentas disponíveis para o
exercício de libertação do ser. Não há outra. Em contrapartida, se exige absoluto respeito
em relação às decisões alheias, pois todos estão em jornada evolutiva para o mesmo
destino”.

“Paciência fala sobre os motivos para ficar; respeito se refere à liberdade de partir”.

“É um direito a escolha de ir, se a relação já não gera mais flores e frutos; ou de ficar, se
apesar das inevitáveis imperfeições ainda é possível compartilhar o que temos de melhor
em constante oferenda de aprendizado, alegria e afeto”.

“Partir, por motivos óbvios, pode significar a necessária renovação. Ficar, dependendo
da situação, também. A busca por um novo ponto de equilíbrio é uma virtude muito
apreciada, a adaptabilidade. Diferente do comodismo, ela traz em si uma revolução de
conceitos que agrega valores ao permitir olhar o outro além de si próprio. Isto é a lição
da ‘outra face’ na prática. Isto o torna diferente e melhor”.

Com os olhos mareados, Renê disse que a separação lhe causava muita dor. O sapateiro
arqueou as sobrancelhas e finalizou: “Os conflitos são inevitáveis aos relacionamentos; a
tristeza, não. Que o sofrimento pelo fim do namoro seja transformado pela alegria do
aprendizado. Por maior que seja a paixão e que haja o desejo sincero em construir uma
vida em comum, nenhum relacionamento se sustenta sem os pilares da paciência e do
respeito. Paciência para entender o que se passa no coração e na mente do outro, pois sem
essa virtude as diferenças deixam de ser lições para se tornarem sombras; respeito pela
liberdade às escolhas, as suas e as alheias, na criação da enorme beleza de ser único. Tanto
você quanto o outro. É a leveza indispensável para voar muito além dos vales sombrios
da existência”.
AS FERRAMENTAS DO AMOR

Quando o Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem,


entrou na agradável biblioteca do mosteiro, eu estava imerso na reflexão de um trecho do
livro de parábolas de Rami. O monge retirou um livro da estante e se acomodou em uma
confortável poltrona ao meu lado. Reparei que era o milenar Tao Te Ching ou o Livro do
Caminho e da Virtude, de Lao Zi. Como estávamos apenas os dois na biblioteca, ousei
puxar assunto. Falei que, por acaso, lia um livro que também abordava o valor das
virtudes e, além de enaltecer a coragem como uma delas, sentenciava que “o amor é para
os fortes”. O monge, com a sua voz sempre suave, foi lacônico em seu comentário: “Sim,
é verdade”. Discordei sob o argumento de que o amor, por toda a sua importância, estava
à disposição de todos, indiscriminadamente. O Velho me olhou com a sua enorme
paciência e disse: “Sim, também é verdade”. Balancei a cabeça e mexi as mãos, como se
esses movimentos pudessem amplificar as minhas razões, para acrescentar que ele estava
sendo incoerente: o amor era para todos ou apenas para os fortes. Pedi que ele se
decidisse. O monge arqueou os lábios em leve sorriso e começou a explicar: “Você
confunde tudo, Yoskhaz. Não percebe que se trata de coisas diferentes? Ou melhor, de
situações em que o amor se apresenta de maneiras distintas?”

“Sim, o amor está ao dispor de cada pessoa, pois, por ser a força que rege o universo,
repousa na essência de todos. O amor é a estrada e o destino. É a virtude maior por estar
presente em todas as demais virtudes ou elas deixam de existir. No entanto, para viver o
amor, ao menos em toda a sua extensão, precisamos dessas outras virtudes como
instrumentos de disseminação do bem. Assim, permitimos, não apenas o
desenvolvimento do próprio ser, mas a propagação da luz por ele emanada até a mais
distante das estrelas. O universo agradece e nos retribui também em luz por gratidão e
justiça”. Deu uma breve pausa e prosseguiu: “O amor é a virtude indispensável nas
transformações; logo, sem ele não há evolução. No entanto, o amor adormecido em cada
um de nós precisa de trabalho para despertar e crescer nas adversidades. Amar quem nos
ama é fácil; amar quando as situações são favoráveis, muitos conseguem; amar nas
adversidades é permitido apenas aos fortes”.

Falei que não tinha entendido. O monge fechou os olhos, como se procurasse a melhor
palavra, e disse: “O amor é o alimento da alma; é o sagrado que nos habita. Cada qual,
em essência, é tão somente a centelha de amor que o movimenta. Nada mais. No entanto,
o amor que existe em cada um de nós é como uma semente que precisa florescer para
embelezar a si e frutificar para alimentar ao mundo”, deu uma breve pausa e concluiu:
“Não se esqueça que conhecemos a árvore pelos seus frutos”, lembrou de uma valiosa
passagem do Sermão da Montanha.

Comentei que como cada um oferece apenas o que possui, o indivíduo ama na exata
medida da sua capacidade de amar. O Velho concordou: “Não tenha dúvida. Por isso a
importância do desenvolvimento das virtudes; elas são as ferramentas do amor.
Evoluímos na medida em que aprendemos a utilizar esses instrumentos. As virtudes se
apresentam, desenvolvem e sedimentam no ser de acordo não apenas do seu nível de
consciência, mas, também, da sua capacidade amorosa”.

De pronto, pedi para ele falar mais das virtudes. O Velho disse: “São muitas as virtudes
e o andarilho precisa aperfeiçoar todas em si. O amor, a sabedoria e a coragem; a justiça,
a honestidade, a compaixão, a misericórdia, a dignidade e a sinceridade; a liberdade, a
humildade, a simplicidade e a pureza; a paciência, o respeito, a doçura, a delicadeza e a
alegria são algumas dessas ferramentas indispensáveis nos campos da evolução. Se você
prestar atenção, perceberá que as virtudes necessitam uma das outras para ganhar força e
poder, fechando o círculo de cura da vida. Embora cada uma pareça independente, elas
se completam em trabalho de indispensável solidariedade”.

Eu quis saber um pouco mais sobre o intercâmbio que integram as virtudes. O Velho não
se fez de rogado: “O princípio básico ensina que o amor é a força que deve orientar todas
as nossas escolhas. Ou seja, nos movimentamos por amor ou estaremos seguindo para o
lado errado. Um pequeno exemplo: não raro, assistimos a sabedoria sendo utilizada para
enganar, manipular e conseguir vantagens desonestas. Por sua vez, a coragem também
está presente no ânimo dos malfeitores quando da prática de muitos dos seus crimes
absurdos. Estamos acostumados a associar os heróis aos atos de bravura e inteligência
nos filmes de cinema, esquecendo que os bandidos também utilizam essas ferramentas
para executarem os seus planos terríveis. Qual a diferença entre eles? É que os heróis se
servem da sabedoria e a coragem para a prática do bem. Somente quando revestidas de
amor, a sabedoria e a coragem se tornam virtudes; sem amor, sabedoria e coragem se
desviam para as raias da esperteza e da brutalidade”.

Falei que estava achando o amor muito complicado. O monge deu uma gostosa
gargalhada e foi didático: “Para viver o amor precisamos entender o amor. É
indispensável desconstruir muitos dos conceitos que nos iludem quanto a esse sentimento
e começar a percebê-lo como ele é de verdade. Será necessário que já tenha desenvolvido
algumas virtudes como a sabedoria, o respeito, a generosidade, a harmonia e a liberdade”.
Pedi que ele citasse alguns exemplos. O Velho falou: “Entender de uma vez por todas que
amor não é troca; que ninguém sofre por amor; que ninguém pertence a ninguém; que
ninguém tem a obrigação de te fazer feliz são apenas alguns dos condicionamentos que o
impedem de viver o amor em toda a sua amplitude. Para tanto, se faz imprescindível
descortinar o véu dos enganos proporcionado pelas sombras do medo, da ignorância e da
desesperança. Mas não basta perceber, é preciso enfrentar e superar a si mesmo. E mais,
é indispensável vivenciar e sentir tudo que se aprendeu ou as lições não se completam. É
necessário se despir das ideias obsoletas e das reações automáticas que não servem mais.
Se expor à rejeição e às críticas daqueles que ainda não conseguem entender o que já é
claro no seu olhar. Deixar para trás muitas das coisas que até aqui se acreditou
importantes, mas que agora pesam por inutilidade. Encarar o espelho para enxergar as
feridas que sangram na alma e ter o firme propósito em se curar. Depois, oferecer o seu
melhor a toda a gente e, então, seguir em frente”.

Perguntei qual era a forma mais sublime de amor. O Velho respondeu de pronto: “O
perdão. O amor é para todos, mas apenas os fortes são capazes de perdoar quem os
ofendeu. Derramar um olhar de sincera compaixão sobre o seu agressor e compreender
que ele não foi capaz de fazer diferente e melhor. Não é fácil. Sem esquecer que o perdão
tem que ser um ato de sincera humildade, pois temos as nossas próprias dificuldades e
imperfeições; diferentes, talvez, daquelas do oponente, mas mesmo assim, dificuldades e
imperfeições. Em seguida, envolver o ofensor em um manto de divina misericórdia por
entender que todo agressor é profundamente infeliz por se distanciar do bem e de todas
as demais energias derivadas do amor. É ainda mais difícil. Será preciso que você já tenha
travado algumas batalhas com as suas próprias sombras e transmutado boa parte delas em
luz. Trata-se de um ponto angular na transformação do ser. Isto torna o perdão sagrado e
libertador. Os fracos ainda estão a serviço das ideias sombrias de revanche e sofrimento,
vingança e dor; aprisionados, ao lado de quem os magoou, em um canto escuro de si
mesmos”. Então, perguntou fechando o círculo com o início da conversa: “Entende por
que o amor é destinado aos fortes? Percebeu que para viver o perdão foram necessárias
outras virtudes como a compaixão, a humildade e a misericórdia? Além do amor, é claro”.
Apenas balancei a cabeça como resposta.

Ficamos um longo tempo sem dizer palavra. Quebrei o silêncio para agradecer e dizer
que eu começava a entender o valor e o poder das virtudes como ferramentas evolutivas.
Em seguida o Velho falou: “As virtudes são as armas usadas pelo guerreiro do amor na
grande batalha do universo, aquela que ele trava todos os dias dentro de si. Este é o seu
compromisso; vencer a si mesmo é a vitória maior. A transmutação das próprias sombras
se traduz em pura luz”, piscou o olho como fazia ao contar um segredo e finalizou: “Todas
as virtudes estão adormecidas dentro de ti. Desperte-as e sinta a magia da vida nas tuas
mãos através de infinitas transformações!”

 
O AMOR NÃO PRECISA SER PERFEITO

Quando entrei eles já estavam conversando. Loureiro, o sapateiro amante dos vinhos e
livros, escutava as lamúrias de um sobrinho sobre as dificuldades que tinha nos
relacionamentos afetivos. Fomos apresentados. O jovem, bastante educado, disse que não
se incomodava de eu participar da conversa. Na verdade, achava muito bom, pois seria
mais uma opinião a clarear o seu entendimento. O elegante artesão foi passar um bule de
café enquanto o rapaz me explicava que, em suma, quanto mais ele conhecia uma pessoa,
maior era a sua decepção. Sentenciou que as máscaras não se sustentam no convívio
pessoal, e, o que se revela, definitivamente, nunca o agradou.

Loureiro, que enchia as nossas canecas sobre o balcão com café fresco, aproveitou a deixa
e disse: “Todos desejamos ser amados e admirados. É a vontade latente do nosso ego: os
holofotes e os aplausos. Então, inconscientemente criamos personagens que acreditamos
serem reais para interpretar os papéis que atinjam tal objetivo”. O sobrinho interrompeu
para acrescentar que era exatamente isso que não gostava nas pessoas. Buscava por
aqueles que fossem autênticos. “Mas, de certa maneira, eles são”, corrigiu o tio. O rapaz
disse que o sapateiro estava sendo contraditório. Loureiro iniciou a sua explicação ao
estilo socrático, com uma pergunta: “Quando você se interessa por uma moça, costuma
se aproximar mostrando o quanto é vaidoso, orgulhoso, teimoso e egoísta?”

Contrariado, o rapaz sustentou que sabia que não era uma pessoa perfeita, no entanto,
havia aspectos na sua personalidade bem mais interessantes a serem conhecidos pelo
mundo. O sapateiro concordou e, em seguida, se aprofundou: “Sim, sem dúvida. Todos
pensamos que nossas virtudes são mais relevantes que nossas dificuldades. E são. Por sua
vez, as dificuldades nada mais são do que as sementes das novas virtudes à procura de
um pouco de sol para que consigam germinar”, tomou um gole de café e prosseguiu:
“Projetamos o ideal da pessoa que queremos ser antes de sê-la. Não há nenhum problema
nisto, é o processo natural, pois já temos o entendimento, falta a força para vivenciá-lo.
Entretanto, nem sempre é fácil, pois nos obriga a deixar para trás hábitos já tão velhos
que produziram raízes profundas. Porém, é indispensável ou não haverá avanço. É como
a cobra que troca de pele para seguir maior e mais forte. É a mesma cobra, mas é outra
cobra”.

“Na maioria das vezes, em um primeiro encontro, antes que as dificuldades se


apresentem, abrimos uma incrível caixa de lápis de cor para enfeitar as nossas virtudes.
Em maior ou menor dose, cada qual em seu estilo, uns mais extrovertidos, outros com
sutileza; grosseiros ou sofisticados, nos esforçamos para mostrar, em resumo, o quanto
somos inteligentes e sensíveis. E não se iluda: com ninguém é diferente”. Diante do olhar
atento do sobrinho, Loureiro o desconcertou: “E você sabe qual a face do seu ser que quer
mostrar a todos as suas melhores virtudes?” A pergunta era apenas retórica e o próprio
artesão respondeu: “As suas próprias sombras”.

“Não esqueça que são as sombras que buscam pelas aprovações sociais, pelos elogios e
condecorações. A alma apenas quer aprender com tudo o que acontece a sua volta,
transmutar a escuridão dos porões do ser em luz, compartilhar o melhor que floresce em
si, não apenas em discurso, mas em atitude e depois seguir a viagem sem fim”.

“Todas as vezes que estamos na esfera das palavras devemos nos questionar: eu já consigo
vivenciar, de maneira ampla, toda a minha excelente teoria? Se a resposta for ‘sim’
significa que você ainda tem dificuldade em ser sincero consigo mesmo. As suas sombras
ainda conseguem lhe enganar. Se a resposta for ‘não’ revela que você está a um passo da
transformação, pois já consegue se conhecer melhor. E por quê?”

Como todos se calaram, Loureiro concluiu: “Porque a alma sabe que o poder está no
exemplo da ação silenciosa e não na beleza do discurso fácil. Vale ressaltar que a ação
realizada para o encanto da plateia a torna equivalente às palavras escandalosas e se perde
no ralo das vaidades”.

“Todas as vezes que estiver tecendo uma crítica, se questione: eu já consigo ser o exemplo
de perfeição que reclamo faltar ao mundo? Este é o importante passo para o primeiro
portal do Caminho, a humildade. Entender que por mais que se imagine uma pessoa
maravilhosa ainda está bem longe da perfeição. Então, como exigir do outro o que você
ainda não tem para oferecer? Ninguém, absolutamente ninguém, é mais do que um ser
em evolução, um espírito a caminho da luz”.

O jovem lamentou que algumas pessoas exageram na interpretação dos seus papéis. O
artesão deu um sorriso doce e falou: “Os excessos devem, na medida do possível, ser
desculpáveis, pois apenas retratam a dimensão da ansiedade e da carência em ser aceito
e amado. Com ninguém é diferente. Compreender isto é exercitar valiosas virtudes: a
compaixão em relação ao outro, a sinceridade em relação a si mesmo. Perceber os
personagens alheios é essencial, não para desnudá-los, mas para ajudar a transformar os
nossos em realidade, fundindo as virtudes que admiramos e modificando as
características que não mais desejamos em nosso jeito de ser e viver. Definitivamente.
Somente assim ganhamos força e poder. Isso é pura luz”.

“Essa é a beleza e a importância dos relacionamentos. A dificuldade do outro me ajuda a


entender as minhas próprias sombras. O que incomoda no trato pessoal costuma ser a
exata medida do meu aprendizado. O outro será sempre um bom espelho, pois a maneira
como reajo a cada contrariedade, impedimento ou oposição define quem eu já consigo
ser”.

O rapaz falou que procurava para os seus relacionamentos pessoas que pudessem
completá-lo. O bom tio ponderou: “Não raro procuramos no outro o que ainda não temos
em nós. Vivemos à procura de alguém para nos completar na ilusão de que assim a
felicidade se manifestará. Ledo engano. Desejamos infantilmente que nos ofereçam a
felicidade pela via da facilidade ao invés de construí-la através do aprendizado e da
transformação. Em outras palavras, queremos de presente o que deve ser conquistado.
Este é o cerne de todos os conflitos, pois ao se deparar com as dificuldades alheias as
nossas se revelam. Ninguém terá o poder da felicidade ou da paz sobre ninguém, uma vez
que esta batalha é pessoal e intransferível. Então, surgem as sombras para nos convencer
de que é melhor procurar o mel da vida em outro lugar. Saímos à cata de outras pessoas,
esquecendo que o mapa do tesouro aponta para o próprio coração. Estagnamos todas as
vezes que acreditamos que o problema está nos outros. Negar as dificuldades é recusar o
próprio aperfeiçoamento”.

Deu uma pequena pausa e prosseguiu: “Quando a convivência é ocasional fica mais fácil
ser encantador porque, não raro, conseguimos oferecer apenas o nosso melhor. Estamos
mentindo quando fazemos isto? Claro que não. As dificuldades nem sempre anulam as
virtudes; caso contrário, ninguém teria qualquer característica positiva. Nisto reside a
magia do convívio mais intenso e duradouro. Pois é na constância do dia a dia que somos
levados a mostrar a faceta mais sombria, o que também temos de ruim. Saímos do raso
para mergulhar na profundidade do ser. É a oportunidade de as sombras revelarem a sua
existência e tamanho. Todavia, não raro, os relacionamentos terminam e as pessoas se
afastam. E, muitas vezes, perdemos a oportunidade de vivenciar o florescimento de belas
virtudes e bonitas transformações”.

“O convívio intenso desnuda o ser. Não apenas o outro, mas a você também. O dia a dia
arranca as máscaras, mostra os vícios, revela as feridas. Enfim, mostra o que temos de
pior. É ruim? Não necessariamente. Isto pode esgarçar a relação ou aproximar mentes e
corações que tenham a percepção e a vontade de se ajudar”. O rapaz quis saber se o tio o
aconselhava a ficar ao lado de quem não tinha vontade. O sapateiro balançou a cabeça e
disse: “Claro que não. Não somos obrigados a nada, muito menos a conviver com quem
nos incomoda e chateia. Apenas quero lembrar que para existir o amor não precisa ser
perfeito”.

Eu interrompi para argumentar que, por vezes, as pessoas têm interesses tão distintos que
as frequências vibracionais não permitem a convivência, ao menos naquele momento. O
artesão concordou, em parte: “Sim, é verdade. Sem dúvida há relacionamentos que
precisam ser estancados tamanha se torna a disparidade de interesses e valores entre as
partes. Cada qual deve sempre seguir na direção da própria verdade em compasso com as
suas afinidades. Entretanto, não pode haver banalização. É preciso atentar que as
afinidades também se revelam nas dificuldades em comum”. Bebeu um gole de café e
acrescentou: “Outro aspecto que temos que prestar atenção: discordar do jeito de ser de
uma pessoa não significa, necessariamente, eliminá-la da sua vida. Claro que acabamos
por escolher em estar perto daqueles que nos trazem conforto e alegria. No entanto, todos,
sem exceção, são fontes de aprendizado. Não precisamos de ninguém para ser feliz, mas
precisamos de todos para nos tornar melhores”.

“A conivência ao lado das dificuldades, dos erros e das faltas do outro jamais deve ser
vista como penitência; acho este conceito ultrapassado e cruel. Porém, na medida do
possível de cada um, deve ser encarada como uma poderosa alavanca de evolução. Só
existe amor e sabedoria onde a paciência, o respeito, a humildade e a compaixão já
fincaram raízes. Demonstra a sensibilidade do olhar que é capaz de ressaltar as virtudes
já existentes e, principalmente, a percepção de que as dificuldades são as virtudes ainda
latentes, prontas para despertar. As suas e as do outro. A conquista só se completa quando
os dois lados ganham”, deu uma pausa e finalizou: “Entender isso é perceber a beleza da
vida. O amor precisa ser imperfeito para que seja manuseado, aperfeiçoado. Só assim
haverá um pedaço da gente quando revelado em perfeição”.

O rapaz abaixou a cabeça. Agradeceu ao artesão com palavras sinceras e disse que estava
com uma estranha vontade de encontrar com a ex-namorada. Quando se despediu, percebi
que havia um bonito brilho em seu olhar.
O TOPO DO MUNDO

Enchi uma caneca de café na cantina e fui à biblioteca do mosteiro. Era final da tarde e
eu ansiava por um pouco de leitura e reflexão. Encontrei com o Velho, como
carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem, sentado em uma
confortável poltrona com o olhar entretido nas montanhas avistadas através das enormes
janelas. Ele me cumprimentou com um sorriso sincero. Ao me perceber perdido nas
prateleiras entre os inúmeros bons títulos, de Yogananda a Fernando Pessoa, de Chico
Xavier a Lao Tsi, passeando entre Espinosa e Jung, o monge sussurrou: “Faça como
Paulo, o apóstolo dos gentios. Dizem que ele sempre abria a Bíblia ao acaso quando
queria um texto para meditar. Como o acaso não existe, ele sempre encontrava as palavras
das quais precisava”. Sentei-me com as Escrituras e a página que se apresentou falava de
uma passagem que me incomodou desde a primeira vez em que li, na qual mestre Jesus
dizia ser mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar
no céu. Li e reli todo o capítulo. Insatisfeito, perguntei ao Velho se o dinheiro era um
impeditivo à iluminação. Ele me olhou como a uma criança e disse com a sua voz suave:
“Claro que não. O dinheiro é uma ferramenta maravilhosa, passível de semear bons frutos,
desde, é claro, que utilizado de maneira correta”. Argumentei que não era isso que estava
escrito.

O monge parecia não perder a paciência e disse: “Ao ler a Bíblia, temos que ter em mente
três importantes aspectos: o contexto histórico no qual os fatos se desenrolaram, uma vez
que foi escrita há dois mil anos e, embora ainda atual, o estágio da humanidade era outro;
a questão da tradução, pois algumas palavras possuem vários significados e podem
ocultar o melhor sentido; por fim, é importante lembrar que esses textos foram escritos
não para muitos, mas para todos. Logo, para serem devidamente compreendidos
necessitam da valiosa subjetividade para alcançar distintos níveis de consciência. O
sentido literal será sempre o mais raso”.

“O dinheiro é uma questão de extrema importância. Todos os dias, alguns bilhões de


pessoas no planeta precisam se alimentar, se vestir e ter um abrigo decente para uma vida
digna. Ignorar isto é negar este mundo e todo o aprendizado que ele contém. Não à toa a
economia ocupa as manchetes dos jornais por afetar a sobrevivência de cada um de nós.
O problema se agrava porque o dinheiro ainda é visto como régua de sucesso pessoal para
a maioria, motivo de reverência e aplauso, como se fosse retrato de uma vida repleta de
luz, de felicidade e de paz interior. Hoje o dinheiro pode adquirir prestígio, desejos e
admiração. Imagine há dois milênios quando o dinheiro comprava até mesmo a
propriedade sobre pessoas sujeitadas à escravidão!” Deu uma breve pausa e prosseguiu:
“Acreditava-se, naquela época, que Deus escolhia os seus filhos prediletos através da
fortuna que amealhavam. Ainda hoje encontro pessoas que pensam de jeito parecido: ‘se
fulano fez fortuna, é porque foi abençoado’. Quando, na verdade, ter muito dinheiro acaba
por ser uma prova de fogo dificílima de ultrapassar, pois, muitas vezes, desvia o andarilho
do lado ensolarado da estrada devido às enormes tentações e privilégios que oferece. Esta
dificuldade é o real sentido da mensagem do mestre”. Franziu as sobrancelhas e
acrescentou: “Cedo ou tarde todos conseguirão atravessar a porta estreita das virtudes,
mas não sem muito esforço. Viver a riqueza traz as devidas lições, assim como a pobreza
contém outras tantas. Todos precisamos de ambas, o que obriga a fazer muitas escalas
durante a grande viagem”.
Interrompi para dizer que existe uma forte cultura a estimular a visão de que o sucesso
financeiro é o topo do mundo. Há inúmeros programas e revistas ressaltando o glamour
dos milionários: mansões, iates, ilhas paradisíacas, roupas de grifes exclusivas, festas
inacessíveis para os simples mortais e, o mais desejado pelo ego cego, os aplausos da
fama vazia. Um ricaço fanfarrão faz mais audiência pelo mero fato de ser rico e
extravagante do que outro indivíduo de vida mais simples, como um médico, por
exemplo, que ao invés de descansar em suas merecidas férias aproveita para viajar a
algum canto esquecido do planeta com o intuito de ajudar povos refugiados em total
desamparo. E ninguém comenta, desabafei. O monge balançou a cabeça em concordância
e disse com calma: “Sim, é verdade, e isto é muito bom”.

Bom? Como assim? À beira da revolta, falei que não tinha entendido. O Velho sorriu e
foi mais didático ao explicar: “Isto revela o nosso atual grau de encantamento. Percebe
que toda essa maneira de viver cria uma névoa de ilusão que nos distancia da verdade?
Conviver diariamente com essa situação é como levar a alma todos os dias à academia
para exercitar a clareza do olhar e burilar as escolhas”. Piscou o olho e completou de jeito
gaiato: “Movimente uma alma preguiçosa todos os dias e dentro de alguns meses ela
conseguirá completar uma maratona de luz sem demonstrar cansaço”.

Tornou a se calar por instantes e me perguntou: “Qual o sentido da sua vida?” Eu tinha
acabado de ler um livro maravilhoso de Krishnamurti no qual essa questão era abordada
em profundidade e não hesitei em responder que eu tinha por objetivo primordial a
evolução espiritual. O monge quis saber o que eu entendia por evoluir. Falei que
evoluímos à medida que expandimos a consciência e ampliamos a capacidade amorosa.
Os olhos do Velho sorriram e ele falou: “Perfeito”. Tornou a dar uma pausa para que as
ideias fossem concatenadas com calma e continuou: “No entanto, os nossos espíritos
habitam hoje um corpo físico que tem necessidades materiais. Isto porque entender o
equilíbrio entre a prosperidade material e a espiritual é uma importantíssima fase do
aprendizado em que nos encontramos. Teremos um corpo físico até conseguirmos alinhar
desejo e necessidade, equilibrar os sentimentos individuais com os do mundo, harmonizar
o ego à alma para integralizar o ser. Isto fará florescer no indivíduo todas as virtudes, que
juntas, formam o que denominamos de luz. Este é o nosso atual estágio: superar as
camadas de interesse do ego para se aproximar dos valores essenciais da alma, sem
abdicar das necessidades do físico. É parte do processo de libertação de todos. Para tanto
é necessário entender que no material o suficiente é o bastante; no espiritual o infinito é
o limite. O conforto será sempre bem-vindo, apenas não precisa ser confundido com o
supérfluo. Menos pode ser mais quando se percebe a força inabalável da humildade e da
simplicidade diante do brilho efêmero da ostentação e da fragilidade do orgulho e da
vaidade”. Interrompi para acrescentar que evoluir era muito complicado. Ele sorriu e
falou. “Transformar as velhas formas, os conceitos ultrapassados, as práticas obsoletas de
ser e viver exigem amor, sabedoria e coragem. Não é fácil evoluir, porém não precisa ser
sinônimo de sofrimento. Se houver dor ou ficar pesado significa que algo está errado,
pois a evolução traz leveza e cura. De quanto menos eu precisar maiores serão as minhas
asas e elas são indispensáveis para sobrevoar os vales sombrios da existência. Todo o
resto é uma dourada prisão sem grades”.

“Cada qual é herdeiro de si mesmo e o único legado permitido levar para a próxima
estação é a mente desperta e o coração puro. Conquistas morais, intelectuais e
sentimentais, quando reunidas, formam o bilhete para seguir a viagem sem fim”.
“Seja pobre ou rico, o que impede a evolução é quando o dinheiro se torna a principal
mola que o impulsiona e todos os privilégios amealhados ou desejados se tornam a
engrenagem que emperra o movimento na conquista das nobres virtudes pessoais, as
verdadeiras riquezas imateriais da vida”.

“O dinheiro pode ser um instrumento de sombra ou de luz. A decisão é pessoal”

“Enfim, o dinheiro é uma ferramenta fantástica que permite semear flores em cada gesto
de solidariedade e tecer oportunidades para si e para outros. A fortuna pode ser o punhal
do poder e da opressão, os óculos da vaidade, a fantasia do orgulho e servir à construção
de muros que separam toda a gente; ou se tornar a semente do amor e da misericórdia, as
sandálias da humildade, o manto da justiça e ajudar a erguer pontes que aproximem
corações. Todos os dias cada um faz a sua escolha e a reafirma no dia seguinte”.

Ficamos um tempo que não sei precisar sem dizer palavra. O monge quebrou o silêncio
ao apontar com o queixo as montanhas que víamos pela janela e disse: “Cada qual escolhe
a montanha que irá escalar, é o topo do mundo pessoal. Lá encontrará, ou não, a plenitude
e a paz. Se você ainda não as encontrou é porque não chegou ao cume ou, então, escolheu
a montanha errada para subir”.
DE VOLTA AO TOPO DO MUNDO

Falei ao Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem, que
passaria o meu aniversário no mosteiro de Takshang, próximo à cidade de Paro, no Butão.
Queria o silêncio e a energia desse mosteiro budista, de difícil acesso, encravado no
Himalaia, para meditar e refletir sobre o momento em que me encontrava, mais
precisamente a respeito da empresa em que eu era sócio. Tínhamos recebido uma proposta
de outra firma, bem maior e de âmbito internacional, para uma fusão que traria um grande
ganho financeiro e uma mudança angular em meu estilo de vida; desde a ter que usar
terno no dia a dia até morar em outra cidade, fora as incontáveis reuniões e rotinas típicas
das grandes empresas. Os meus sócios, éramos três, estavam animadíssimos com a
possibilidade que se apresentava. O meu coração não me deixava compartilhar de
tamanho entusiasmo. A nossa empresa navegava com tranquilidade, não éramos ricos,
mas tínhamos uma vida confortável e, acima de tudo, havia tempo para eu me dedicar a
outras atividades que me eram valiosas, como a Ordem, os estudos, a escrita, os encontros
com os amigos, a convivência familiar, entre outros bens intangíveis. No entanto, não é
toda hora que surge uma oportunidade para subir de patamar financeiro, e todos me
pressionavam para que eu decidisse logo. A mudança no jeito de viver era o que agoniava.
A dúvida me corroía.

O Velho me aconselhou: “Gosto das transformações, pois são bons indícios de evolução.
No entanto, nem toda fruta é doce, nem toda regra é absoluta; nem toda mudança é
transformação. Quando sair do Butão, pegue a estrada que desce o Himalaia pelo lado
chinês. Você encontrará uma agradável vila. Lá, procure por Li Tzu, o mestre taoista. Se
deixe encantar por tudo que acontecer”. Agradeci e parti sem entender exatamente ao que
o monge se referia.

Quando estava de saída de Paro, pensei em desistir de procurar o amigo do Velho, porém
acabei me deixando levar pelo fluxo dos acontecimentos e segui ao encontro de Li Tzu.
A primeira boa surpresa foi a pequena vila chinesa. Bonita e agradável, trazia uma
estranha sensação de conforto, apesar da extrema simplicidade. As pessoas eram gentis e
pareciam não ter pressa. Além da enorme quantidade de flores por todo o canto, notei
muitos ocidentais pelas ruas e, para o meu espanto, tive dificuldade em conseguir uma
vaga na única hospedaria da cidade, sendo salvo, a última hora, por um dinamarquês que
teve de retornar ao seu país em razão de um imprevisto. Todos aguardavam pelo mestre
taoista. Soube, então, que Li Tzu era formado em botânica por uma prestigiosa
universidade inglesa e exercia a tradicional medicina chinesa com tratamentos à base de
acupuntura, chá de ervas e o Tao, a milenar sabedoria oriental escrita por Lao Zi no Tao
Te Ching, o Livro do Caminho e da Virtude. Ele usava agulhas, ervas e as palavras para
a cura do corpo e da alma.

A casa de Li Tzu era um dos lugares mais encantadores que conheci. Plantas por todos os
lados, o que era esperado, toda a construção em madeira, um formoso lago na frente e um
belo jardim de bonsais no quintal dos fundos. Um elegante gato se comportava como o
dono do lugar. A música que brotava por todos os lados era o som do silêncio harmonioso.
O botânico se movimentava com extrema serenidade, a sua voz era baixa, e seus gestos
revelavam tranquilidade. Quando me apresentei, ele me ofereceu um sorriso sincero e
disse que me esperava. Acrescentou que possuía enorme admiração pelo Velho, a quem
conhecera há muitos anos, quando jovens, na universidade, embora frequentassem
diferentes cursos. “A lei da afinidade é inexorável”, falou na certeza de ter me dado uma
explicação óbvia. Calculei que deveriam ter mais ou menos a mesma idade. Em seguida
ele me ofereceu um chá e sentamos em confortáveis poltronas. Expliquei a razão pela
qual o tinha procurado. Ele apenas balançou a cabeça como quem diz ter entendido. Falei
que admirava muito a tranquilidade que reinava naquele lugar. Li Tzu me explicou: “Toda
casa reflete a alma do dono. Fiz as pazes com o tempo e com as minhas emoções para
que a felicidade encontrasse a morada definitiva”. Em seguida me deu um pequeno papel
com o capítulo quarenta e quatro do Tao:

“A fama ou a pessoa, qual a mais importante,


a pessoa ou o dinheiro, qual mais precioso?
Ganhar ou perder, qual é pior?
Quem muito se apega, muito vai sofrer.
Quem muito poupa, mais tem a perder,
quem se satisfaz com pouco não tem que recear,
quem sabe quando parar não corre perigo.
Assim perfumamos a vida”.

E pediu: “Leia atentamente por muitas vezes e retorne amanhã”. Agradeci e fiz conforme
a orientação. Nos dias que se seguiram, ora ele me oferecia um chá, noutros fazia uma
sessão de acupuntura, sempre com o pedido de que continuasse a ler e voltasse no dia
seguinte. Isto aconteceu por uma semana. Em geral, eu teria perdido a paciência e, com
certeza, partiria lamentando o tempo perdido. Mas não daquela vez. Lembrei das palavras
do Velho e fui me deixando contagiar pela agradável energia que me envolvia e toda
aquela serenidade se mostrou possível para mim sem esforço maior. Embora, naquela
altura, já conhecesse o texto de cor, me neguei a ter pressa ao dominar conscientemente
a ansiedade. Por que perderia a paciência se a calma era o que eu mais apreciava naquele
lugar? Tive a estranha percepção de que, ao contrário do que imaginava, o tempo também
pode esperar. A consequência imediata foi a clareza do raciocínio, que lentamente
fortalecia as escolhas que me aguardavam. Aos poucos, eu abandonava os tambores do
mundo para ouvir a doce flauta do coração. Passei a me divertir tentando adivinhar se no
dia seguinte eu seria recebido por ervas ou agulhas. O sétimo dia foi de palavras.

Li Tzu se sentou ao meu lado e pediu para eu interpretar o poema. Falei que percebia
ritmo e sonoridade nos versos, mas os achava confusos, pois falavam de várias coisas ao
mesmo tempo sem muito esclarecer. O taoista disse com a voz suave: “Esse capítulo fala
de um assunto crucial: uma importante escolha que define o destino próximo”. Deu uma
pequena pausa e prosseguiu: “Fala do sentido que o indivíduo dará à própria vida. Uma
bifurcação na qual por um lado indicam a fortuna e a fama, a conquista do sucesso e do
poder através dos bens materiais; de outro, a evolução pessoal em busca da plenitude e
da integralidade do ser, tendo a paz como consequência natural da evolução”. Interrompi
para questionar se dinheiro e espiritualidade se confrontam ou se anulam. Li Tzu me
olhou como a uma criança e esclareceu: “Claro que não. É possível fazer muitas coisas
boas com o dinheiro. É um instrumento maravilhoso que pode animar sorrisos em toda a
gente. Porém, também pode alimentar as sombras da humanidade. É como uma faca que
pode auxiliar o cozinheiro a preparar um gostoso guisado ou ser usada por um assassino
para espalhar a dor”. Franziu as sobrancelhas e disse com seriedade didática: “Veja a
internet e as suas redes sociais, apenas para ser mais atual; elas podem aproximar as
pessoas e criar pontes ou semear a discórdia e construir muros. Facas, internet, dinheiro
ou tudo mais são apenas ferramentas. Cada um define a obra que construirá com elas.
Podemos enfeitar uma bela praça onde todos serão convidados para um alegre baile ou
erguer um castelo fortificado para ocultar o medo”. Calou por instantes e disse: “Cada
qual decide a função e o poder que o dinheiro terá em sua vida. Isto desenha o próprio
destino e revela o seu atual nível de consciência e de amor”.

“Em seguida o poema fala em ganhar ou perder. Estamos condicionados a entender que
ganhar nos torna vitoriosos, certo? A vitória está no brilho da aparência ou na luz da
essência? De que vale ganhar uma luxuosa prisão sem grades e perder a simplicidade das
asas para voos inimagináveis? É preciso entender o limite e o sentido da força do dinheiro
dentro de nós a cada escolha que fazemos. Ou perderemos na medida dos ganhos
auferidos. A todo instante ele pode oferecer um banquete para o ego ou uma festa para a
alma. Cada qual escolhe em qual irá comparecer”.

“Em seguida o escritor esclarece sobre a importância do desapego”. Fechou os olhos


como se procurasse as melhores palavras e disse: “O indivíduo que ainda tem o ego
desalinhado à alma traz uma fragilidade que precisa compensar com a admiração de quem
o cerca. O dinheiro, sem falar em um sem número de ideias e conceitos, em razão de
condicionamentos culturais, acaba por ser o objetivo raso a ser alcançado na ilusão da
felicidade possível através do ter em detrimento do ser. Acabamos por criar uma
infinidade de dependências, que se iniciam por materiais, mas por não saciarem,
desaguam em crises emocionais. Qualquer dependência, seja material, seja emocional, é
o desconhecimento de si mesmo. Tais apegos formam as raízes de todas as dores. Então,
no engano do remédio, tomamos veneno na ilusão de cura: mutilamos o espírito para
manter intacto o patrimônio; permitimos que a paz morra de inanição para engordar a
conta bancária; agigantamos o egoísmo para dobrar o outro à nossa vontade; atropelamos
a tudo para que a nossa razão prevaleça. Quantas vezes, por ter medo do amanhã, nos
desviamos do caminho para pegar mais e mais frutos, dos quais comeremos alguns,
muitos apodrecerão e os demais guardaremos no cesto, tornando-o tão pesado que nos
impedirá de seguir adiante?”

Em seguida concluiu: “Tudo aquilo que temos ou somos, mas não conseguimos
compartilhar, não se traduz em luz”.

“Então, o texto milenar oferece valiosas indicações ao andarilho ao dizer que ‘quem se
satisfaz com pouco não tem o que recear’, pois o Universo em seu infinito amor e
sabedoria nunca deixará de prover na exata medida do necessário quanto ao seu
aprendizado. O Universo não tem nenhum compromisso em relação aos seus desejos”.
Bebeu um gole de chá e explicou: “Claro que ninguém deve se maltratar, impor privações
ao corpo, virar um asceta, viver como um mendigo ou abrir mão do mel da vida. Isto
apenas mostra desconhecimento das leis cósmicas e é uma afronta ao espírito, a essência
de cada um, e ao universo como um todo, do qual fazemos parte, que se expande a cada
segundo e trabalha em prol da evolução e do bem-estar. É preciso harmonia e equilíbrio.
Conhecer as fronteiras de si mesmo significa entender a virtude da leveza: de quanto
menos precisar, mais livre você será”.

“Toda dependência, por ser uma criação mental do ego em estágio primitivo, envolvido
com as próprias sombras, acaba por se tornar um cárcere. Todo desejo desmedido é um
carcereiro que oprime”. Olhou-me nos olhos e quis saber: “Entende um pouco mais das
lutas que deve travar? Percebe onde está o seu campo de batalha? Para ser grande aos
olhos do mundo não podemos nem precisamos perder a grandeza que floresce no
coração”.
Tornou a me olhar de jeito profundo antes de falar: “Somente os pequenos querem
conquistar o mundo. Os grandes sabem que a fortuna está na conquista de si mesmo”. Em
seguida, finalizou: “Assim perfumamos a vida”.

Quando desci a montanha parecia que meus pés nem tocavam no chão. Nunca me pareceu
tão simples uma decisão.
O DIA DA INDEPENDÊNCIA

Fiquei feliz ao ver a clássica bicicleta de Loureiro, o elegante sapateiro amante dos vinhos
e dos livros, encostada no poste em frente a sua oficina. Eu estava mal. Uma série de
acontecimentos, com diferentes pessoas, me faziam sentir em um caldeirão de emoções
que variavam entre a irritação e a tristeza. Fui recebido com um forte abraço e alegria
sincera. O artesão pediu que eu me acomodasse enquanto passaria um café fresco para
animar a nossa conversa. Falei que precisava desabafar e trocar ideias, pois parecia que o
mundo havia criado um complô contra mim. De uma hora para outra, muitas das minhas
relações se tornaram problemáticas ou frustrantes. Relatei alguns desentendimentos e
decepções que ocorreram há dias com diversas pessoas que eu muito prezava. Acrescentei
que tudo acontecera ao mesmo tempo e arrisquei a brincar dizendo que parecia karma.
Loureiro repousou duas canecas cheias de café sobre o balcão e disse: “Karma é
aprendizado. Todo karma é um mestre que vai aprimorar e fortalecer o aprendiz.
Entendidas as lições o karma desaparece, assim como aquele tipo de situação, até então
recorrente, por não haver mais razão de ela existir. Por outro lado, o karma se prolonga,
e até endurece, na medida em que nos recusamos a evoluir. Se a vida é uma universidade,
o karma se resume nas matérias que devemos cursar”.

“Quando o mundo inteiro parece se opor a nós, não raro o problema está dentro da gente”.
Fiquei indignado. Falei que as pessoas estavam me maltratando e ele dizia que o erro era
meu? O sapateiro não se alterou. Com a voz sempre suave explicou: “Não se trata de
saber quem está certo ou errado, isto não tem importância, pois fala apenas ao ego, jamais
à alma. Trata-se de uma mudança de olhar sobre a vida, de se permitir uma nova postura
em relação a todas as coisas, de não autorizar qualquer pessoa a ter nenhum poder sobre
você, principalmente o direito de lhe fazer sofrer”, deu uma pausa e acrescentou: “Está
na hora de você dar seu grito de independência”.

Cheguei a balançar na cadeira entre o desconforto e o interesse. Pedi a ele que


prosseguisse no raciocínio. Loureiro arqueou os lábios em leve sorriso e disse: “Todos
querem ser amados e aceitos. A maneira mais fácil e, também, a mais rasa é que
concordem conosco, nos aplaudam e nos digam o quanto somos maravilhosos e
importantes. Mas ainda bem que a vida não é assim; caso contrário viveríamos em estado
de completa estagnação e total hipocrisia. Um ser atento à evolução trata a contrariedade
e a decepção como ferramentas de aperfeiçoamento e provas de maturidade, nunca como
causas de tristeza ou ressentimento”.

Pedi a ele para explicar melhor. O meu bom amigo foi didático: “A origem de tanto
sofrimento é o simples fato de dos outros não corresponderem as nossas expectativas.
Esperamos algo de alguém e essa pessoa nos entrega uma coisa bem aquém do desejado”.
Mostrou-me um olhar firme e perguntou: “Não é assim?” Sacudi a cabeça em
concordância. Argumentei que as pessoas devem se relacionar com a mesma sinceridade
e amor que oferecemos a elas. Loureiro arqueou as sobrancelhas e disse: “Esse é o grande
equívoco. Cada qual entregará apenas na exata medida das suas possibilidades, de acordo
com o grau de entendimento e grandeza dos sentimentos. Nem mais nem menos. Você
esperava flores de alguém que lhe entregou pedras? Ora, era o que ele tinha em seu
coração naquele momento. Como esperar flores de um jardim deserto em amor? Esse é o
momento para você agir com sabedoria e retribuir com uma suave chuva de compaixão.
Caso contrário, você restará algemado a uma corrente energética estéril de virtudes e luz”.
Deu uma pausa e concluiu o argumento sobre ótica diversa: “Por outro lado, muitas vezes
desejamos flores que não merecemos. Nunca esqueça de pensar diferente e agir melhor
na próxima vez. É a parte que nos cabe em todas as relações. Sempre é possível e é um
excelente exercício da escalada evolutiva”.

“Exigimos o melhor dos outros e desejamos ser compreendidos pelas nossas limitações e
justificativas. Esta é a raiz dos conflitos. A estrada da paz é inverter a equação: oferecer
o nosso melhor e ter boa dose de tolerância com a dificuldade alheia”.

Falei que a teoria era boa, porém não explicava tudo. O artesão concordou: “Você tem
razão, falta outra questão: a independência emocional”. Tornei a interromper para dizer
que não tinha compreendido. Ele falou: “Se você não for dono de si, das suas emoções,
nunca terá qualquer controle sobre a própria felicidade. Quem não é senhor de si será
escravo da aprovação alheia. Quando nos recusamos a entender quem somos, não
conseguimos harmonizar as emoções mais densas que nos habitam. Sem transmutá-las
nunca conheceremos a paz. Aceitar o desafio de enfrentar as tempestades de si mesmo é
recuperar o leme da vida ou continuará um barco à deriva, à mercê dos rochedos do
desespero”.

“Todas as vezes que ficamos irritados ou tristes significa que começamos a perder a
batalha para as sombras, individuais ou coletivas. Não podemos exigir do mundo a
perfeição que não temos para oferecer. A paciência nem sempre é apenas um ato de
generosidade, mas, principalmente, de humildade. O indivíduo desperto aproveitará
desde logo toda contrariedade existente dentro de si como adubo para cultivar as flores
que ainda não existem em seu jardim. São os jardineiros da luz”.

“Somos condicionados a transferir aos outros a responsabilidade que nos cabe por
eventual insucesso. Se somos infelizes a culpa é do mundo, não é assim? Tentamos
explicar a própria imperfeição na imperfeição alheia. Negamos o espelho para não ver as
incompletudes que sangram como feridas abertas. Então, criamos as dependências
emocionais como antídotos para retardar a dor da insegurança e do medo que envenenam
a verdade. Quando o mundo nos deixa em abstinência, sem suas doses de aprovação, tudo
escurece, e a vida ganha um sabor amargo”. Deu uma pausa e concluiu: “O resultado
desse comportamento é nos tornarmos viciados pelo ‘sim’ e pelos aplausos daqueles que
nos cercam. Claro que tem uma hora que a droga perde o efeito ou some do mercado. O
efeito colateral inevitável é a melancolia ou a mágoa. Assim a humanidade adia as lições
contidas em todas as suas relações e se torna chata por tantas lamentações”.

Perguntei se ele achava que eu estava chato nos últimos tempos. Loureiro deu uma
gostosa gargalhada e respondeu com honestidade: “Muito!” Diante da fisionomia
contrariada que logo mostrei, o artesão acrescentou: “Você anda reclamando de tudo
ultimamente. Quando achamos que o mundo está fora de lugar, é porque ainda não
encontramos o nosso lugar no mundo. Este lugar existe de acordo com a sua capacidade
de equilibrar ideias e emoções em si mesmo. Quando tudo parece incomodar, não tenha
dúvida, há algo de errado dentro da gente. É hora de alinhar o que resta embolado. Ou
não conseguiremos seguir”. Teimei em sustentar que eu era um homem feliz. Ele me
olhou com compaixão e disse: “Quem traz a felicidade em si não perde tempo nem
energia reclamando da vida, pois está ocupado com as próprias asas, empenhado em
aproveitar a viagem”.
Admiti que ele poderia estar certo, mas confessei não saber por onde começar. Loureiro
me observou como quem olha a um filho e disse de jeito doce: “Siga a cartilha básica:
um bom início é parar de se lamentar; deixe de apontar os defeitos alheios; abandone a
tolice de modificar alguém; nunca transfira a responsabilidade pelas suas frustrações.
Estes são os degraus da maturidade, pressuposto fundamental para a liberdade”.
Bebericou um gole de café antes de concluir: “Caso contrário você abdicará do controle
que tem sobre a própria paz e o entregará aos outros. Este é o motivo de a serenidade ter
se tornado artigo raro nas ruas”.

“Ser livre é ter autonomia sobre as suas ideias e emoções. Ser pleno é entender que
ninguém depende de ninguém para viver a felicidade”.

Comentei que todos anseiam os aplausos do mundo pela dificuldade em lidar com os
próprios erros. O sapateiro argumentou: “Apenas quando falta humildade e simplicidade
para reconhecer a condição de aprendiz. Seja justo consigo diante do erro, tenha a
responsabilidade de reparar no que for possível e assuma o compromisso perante a si
mesmo de agir de outra maneira na próxima oportunidade. Sem sofrimento ou tortura,
pois estes são instrumentos das sombras que paralisam e descontrolam. Siga em paz, o
universo, em seu infinito amor, lhe permitirá a oportunidade de mostrar, em algum
momento, que a lição foi aprendida”.

Loureiro se levantou para colocar mais café em nossas canecas. Insisti que não sabia
como começar as mudanças. Ele, de pé, sentenciou: “Transforme as velhas formas!” Falei
que não entendia exatamente o que significava aquela expressão. O artesão, tornou a
sentar e explicou: “Ao invés de lamentar o desencontro, aproveite o conflito para construir
a paz. Isto é fonte de luz. No lugar de atribuir culpa aos outros, aceite a responsabilidade
pela própria evolução e as lições inerentes à vida. Isto é parte do Caminho. Somente os
tolos desejam mudar o mundo, os sábios transformam a si mesmos na certeza de que tudo
mais virá por afinidade. Por fim, nunca conceda a ninguém o poder sobre a sua paz. Esta
é uma das muitas escolhas que lhe pertencem. Nas escolhas residem o seu poder, no
aperfeiçoamento das virtudes você conhecerá as suas asas”.

Loureiro me ofereceu um lindo sorriso e finalizou: “Não esqueça que não é o mundo que
define a beleza da sua viagem, mas a força que você traz no coração. Esta força cresce na
medida em que você depura, pouco a pouco, todas as virtudes em si; no mais, restam
apenas os comentários, incapazes de impedir a sua jornada”. Olhou-me nos olhos e disse:
“Não é preciso autorização nem há limites para quem voa impulsionado pelos ventos das
próprias virtudes”.
O PASSADO É UM VENENO

Loureiro, o elegante sapateiro amante dos vinhos e dos livros, fechou a oficina ao meio-
dia e andávamos pelas ruas estreitas e sinuosas da secular cidadezinha localizada no sopé
da montanha que abriga o mosteiro. Era um sábado típico de outono, com o céu claro,
sem névoas e o sol aquecia a pele sobre o casaco fino. Estávamos alegres rumo ao nosso
restaurante predileto para almoçar e, claro, beber algumas taças de tinto. Amenidades
eram a pauta do dia, quando logo na porta encontramos Helena, uma amiga em comum,
muito abalada, trazendo no rosto olheiras fundas como registros de noites mal dormidas.
Aceitou, de pronto, o convite para sentar à mesa conosco e, mesmo sem ser perguntada,
logo começou a falar sobre as causas da desordem emocional que a transtornava. A dor
parecia não caber dentro dela e por isto precisava desabafar. Ela acabara de encerrar mais
um casamento. Já era o quinto ou sexto; teve alguma dificuldade de saber se um deles
poderia ser considerado como tal em razão da sua curta duração. Mostrou-se
decepcionada com as pessoas em geral. Confidenciou que a intimidade revelava faces
desagradáveis que impossibilitavam a convivência a longo prazo. Helena falou por um
bom tempo, desfiando os seus lamentos e ouvíamos com paciência, até que o artesão quis
saber se ela já tinha sido feliz, alguma vez, no amor. Nesse instante, os olhos dela
brilharam e um sorriso, que parecia impossível, surgiu em seu belo rosto.

Animada, relatou o que considerava o melhor período de sua vida, ao lado do primeiro
marido, quando ainda não completara vinte anos de idade. Isto acontecera há muito
tempo. As suas palavras contavam uma história de amor quase perfeita, na qual qualquer
erro era menor e podia ser facilmente atenuado. Comparações com os casamentos
posteriores se fizeram inevitáveis. Todos na mesa sabíamos que aquele casamento, o
primeiro, teve fim quando Jaques, o marido a que se referia, se suicidou ainda jovem. Ao
permitir uma pausa para beber um gole de vinho, Loureiro a interrompeu com um
comentário lacônico: “O passado é um veneno”. Diante do olhar surpreso da mulher, ele
prosseguiu o raciocínio: “O passado pode se mostrar como uma armadilha perigosa se
não tivermos o devido cuidado”.

“O presente sempre apresenta dificuldades, importantes exercícios de aperfeiçoamento,


principalmente nos relacionamentos. Ninguém precisa de ninguém para ser pleno e feliz,
mas necessitamos do outro para nos tornarmos melhores. O convívio com outra pessoa
sempre apresentará arestas surgidas das imperfeições de ambos os lados. Quando
aceitamos o desafio da superação, abandonando o vício da desistência, é que lapidamos
as cascas que escondem a luz que nos habita e ainda desconhecemos”.

“Nem sempre é fácil enfrentar os problemas típicos do convívio a dois. Não raro
chegamos a pensar que algumas pedras são intransponíveis e estão além da nossa
capacidade de transformação. Isto não existe quando se trata de mudar a si mesmo,
quando se busca a própria evolução. Muitas vezes desacreditamos na força que nos move
ou não decodificamos o desafio. Agradeça às tempestades, apenas elas podem diplomar
um lobo do mar”.

“No entanto, costumamos permitir que as nossas próprias sombras, na ilusão de nos
proteger, armem um jogo cruel como plano de fuga. Como se fossem figurinhas,
recortamos do passado os melhores momentos para montar um álbum que nunca existiu.
Colorimos as imagens com tintas vibrantes, aumentando-lhes o brilho e a intensidade.
São as sombras nos fazendo acreditar em um modelo de felicidade inexistente. Ao menos,
não naqueles detalhes e formatos. O desequilíbrio entre passado e presente se torna
inevitável. E cruel, pois passamos a ter como referencial uma ficção em contraponto à
realidade. Quando entramos nesse jogo, acionamos um terrível mecanismo de
comparação entre um passado escrito com letras perfeitas e um presente que traz todas as
imperfeições inerentes à vida, agigantando as batalhas que nem sempre estamos dispostos
a travar. O passado acaba por envenenar o presente, tornando-o sombrio e desanimador”.

Contrariada, Helena disse que o sapateiro estava enganado. Assim como ela, muitas
pessoas foram felizes em antigos relacionamentos, que, por um motivo ou outro,
acabaram. Loureiro manteve o tom suave da voz: “Sem dúvida. Não falo das separações
devido à passagem involuntária de um dos cônjunges para outras esferas da existência.
Me refiro aos convívios que chegaram ao fim por incompatibilidade entre as partes, por
vontade própria de um ou de ambos. Quem está satisfeito com o seu parceiro não encerra
um casamento”. Olhou para a amiga com seriedade e disparou uma bala de prata: “Quem
é feliz não se suicida”.

O tempo fechou. Helena acusou o artesão de estar sendo insensível em sua análise e
grosseiro em suas palavras. Acrescentou que Jaques se suicidou por razões alheias ao
casamento. Explicou que ele enfrentava uma crise profissional. Loureiro ouviu a todo o
desabafo e crítica sem se perturbar; ao final, disse com a serenidade que lhe era peculiar:
“Quando estamos tristes ou alegres, levamos o sentimento da casa para o trabalho e vice-
versa. Não tem como desconectar as emoções, como quem desliga um aparelho da tomada
para cessar o funcionamento, dependendo do lugar em que estiver. Entendo que não
queira lembrar dos momentos mais complicados e prefira ressaltar aqueles em que foi
feliz. Ou recriá-los em sua imaginação. É o instinto de sobrevivência oferecendo
motivações para que se mantenha de pé. Ocorre que o instinto é mais uma das ferramentas
primitivas do farto estojo de truques das sombras. Ao nos iludirmos quanto ao passado,
acabamos por confrontá-lo com o presente através de comparações desleais, adiando as
indispensáveis mudanças para a conquista da paz interior”.

“Do passado temos a saudade como belo presente oferecido pelo amor; do futuro nos
alimentamos das bênçãos da esperança e dos sonhos. Apenas o presente oferece a
verdadeira alegria de ser e viver. Para tanto temos que olhar no espelho da sinceridade,
ter compaixão quanto às dificuldades alheias e humildade em relação às nossas; estar
dispostos a nos renovar e transformar sempre. Todos os dias até o dia sem fim”.

Helena tornou a contestar e argumentou que a história de qualquer pessoa tem valor e
beleza. Loureiro concordou: “Claro! Não é disso que falo. Me refiro ao perigo de
deixarmos de viver o presente por fazer do passado um padrão inalcançável. Quando isto
acontece terminamos por contaminar o valor e a beleza do que ainda nos falta viver e
sentir. É importante afastar de si esse cálice”.

“Ao amarrar a vida no passado, você se recusa a aprender as novas lições, sem as quais
não conseguirá operar as devidas transformações no próprio ser. Logo, não haverá
nenhuma nova semente para compartilhar nos jardins da humanidade. Assim, ficará
impedida de seguir a viagem e restará aprisionada na cela do tempo”. Deu uma breve
pausa antes de concluir: “Tudo que fica estagnado acaba por apodrecer”.

Ficamos sem dizer palavra. O garçom trouxe os nossos pratos, fizemos breves
comentários sobre como estavam deliciosos. A nossa amiga voltou ao assunto para
comentar que era muito difícil se relacionar, pois, as pessoas na intimidade se revelam
diferentes de como se apresentaram. Loureiro bebericou o vinho e disse: “É assim com
todos, inclusive comigo e contigo”. Helena interrompeu para dizer que, quando conhecia
uma pessoa, logo enfileirava todos os seus defeitos para que o outro soubesse com quem
estava lidando. O artesão sorriu e disse: “Sim, é uma boa atitude, mas nem sempre eficaz.
Confessar uma dificuldade não serve de desculpa para não a enfrentar. Por outro lado,
você só revela a dificuldade que já consegue reconhecer em si. E as demais?”

Diante do espanto da mulher, o sapateiro prosseguiu: “Falo das dificuldades a que ainda
nos recusamos a ver ou admitir em nós mesmos. São aquelas que só se revelam na
convivência intensa do dia a dia, daí a importância dos relacionamentos como um espelho
a mostrar o aprimoramento que nos aguarda. Por comodismo, medo ou ignorância
insistimos em atribuir ao outro a responsabilidade pelos desencontros que têm origem na
fragmentação do ‘eu’, no desencaixe entre ego e alma. As causas de estranhamento e
aspereza no convívio mostram uma excelente oportunidade de aprendizado e evolução.
Em um primeiro momento oferecemos sempre o nosso melhor e, não tenha dúvida, quase
sempre é verdadeiro. É o que somos ou o que projetamos ser, o que também não deixa de
ser sincero. Apenas na intimidade, no esgarçamento do cotidiano, abrimos a jaula para
soltar o que temos de pior. Isto não é necessariamente ruim, pois pode se tornar a chance
de iluminar e transmutar as próprias sombras em luz. E é muito bom quando há o amor
de alguém para ajudar nesse momento tão difícil, mas igualmente bonito. Somente as
histórias de superação podem ser chamadas de ‘histórias de amor’”.

“Todos as relações têm a sua beleza, encanto e lições. Sem dúvida que há muitos casos
de total incompatibilidade, almas vibrando em sintonias tão distantes que não há como
manter a afinidade una. Então, é hora de partir. No entanto, se veremos o outro como um
terrível vilão ou um valioso aliado na batalha que travamos dentro de nós vai depender
do olhar e da face que já somos capazes de oferecer. O respeito que tem para com ele
revela o respeito que tem para consigo mesmo e com a vida”.

O silêncio voltou a imperar. As palavras precisavam encontrar o seu lugar. Helena


brincou dizendo que talvez fosse o efeito do vinho, porém começava a pensar que o
sapateiro tivesse razão. Ou, brincou, estivesse embriagada com o passado fazendo com
que tropeçasse no presente. Rimos. Admitiu que, de fato, as comparações serão sempre
nefastas por serem injustas, ao levarem em consideração momentos, situações e pessoas
distintas. Uma lente mais clara tornaria possível encontrar dificuldades e virtudes em
todas as pessoas com quem se relacionou. Bastava um pouco de boa vontade para com o
outro e doses de coragem e sinceridade para admitir os próprios equívocos. Uma lágrima
escorreu do seu rosto. Sorriu e disse que entendia quando Loureiro se referia ao passado
como um veneno.

“Ou um mestre”, retrucou o artesão. “O passado está repleto de preciosos ensinamentos


que não devem ser desperdiçados, sob o risco de as mesmas pedras tornarem a atrapalhar
a viagem. Situações vividas, quando analisadas com sabedoria e amor, se tornam um
poderoso farol a iluminar os próximos passos”. Piscou o olho como quem conta um
segredo e finalizou: “O caminho sempre pode ser mais suave. Depende apenas do nosso
jeito de andar”.
O TAMANHO DE UM SONHO

Era uma manhã de primavera, o sol equilibrava a brisa gelada da montanha e trazia uma
agradável sensação térmica. Eu estava na frente do mosteiro apertando os parafusos das
dobradiças do enorme portão principal, quando tive a atenção desviada para um carro
luxuoso que estacionou no pátio externo. De dentro dele desceu um anão. Logo o
reconheci como um famoso comediante em programas de TV. Sem dúvida, era um ator
talentoso que nunca usou a sua altura como subterfúgio para nenhuma piada. Seu humor
era fino e inteligente. Nos últimos anos comandava um talk-show de grande audiência.
Ele se dirigiu a mim de maneira educada e pediu para falar com o Velho, como
carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem. Enquanto seguíamos para
o refeitório, onde o Velho gostava de conversar com as visitas, quase sempre ao redor de
uma mesa com bolos, biscoitos, queijos e café, deixando-os à vontade como se estivessem
em casa, o homem confidenciou que estivera ali uma vez, há quase duas décadas, quando
ainda era uma aspirante aos palcos, e aquele dia tinha sido angular em sua vida.

O Velho ofereceu um belo sorriso quando o viu. O ator perguntou se o monge se


recordava dele e o Velho aquiesceu com a cabeça. Eu trouxe canecas fumegantes de café
e fui convidado a me sentar com eles. Em seguida, o visitante falou que retornara ao
mosteiro para agradecer. Confessou que quando estivera ali, naquela tarde que parecia
distante, estava prestes a desistir da carreira, diante das enormes dificuldades que
encontrava. Porém, a conversa com o monge o enchera de coragem para prosseguir e
enfrentar todas as adversidades. O Velho tornou a sorrir e disse: “A coragem não foi
minha, mas sua. Ninguém pode lhe dar o que já é seu. Ela estava adormecida, eu apenas
a despertei para a luta. A batalha você travou sozinho. Dominou o medo, transformou as
incertezas, enfrentou o preconceito em relação à sua estatura física, que eram muitos e
bastante agressivos, com paciência, trabalho e arte. Mostrou ao mundo que o importante
não é o tamanho de uma pessoa, mas a dimensão do seu sonho”.

O homem, com os olhos mareados, disse lembrar de o monge falar que o ‘corpo não é o
espelho do espírito. O desenho de um corpo nem sempre apresenta todas as cores
possíveis daquela alma’. O Velho arqueou as sobrancelhas e acrescentou: “Todas as
limitações aos sonhos da humanidade foram criadas por aqueles que desejam dominar os
demais. Nenhum impedimento de ordem física, social, econômica, étnica ou de gênero
tem legitimidade para abortar um sonho. Permitir que a opinião de alguém tenha força de
impor limites a sua capacidade é conceder aos outros um poder indevido de subjugar os
seus ideais, a sua verdade, de cortar as suas asas. Só os tolos permitem isso”. Fez uma
pequena pausa antes de concluir: “Abdicar de um dom é um convite à amargura”.

Eu quis saber o que era um dom. O monge explicou: “É um talento inato, uma habilidade
que todas as pessoas, sem exceção, trazem do berço, que pode se manifestar como ofício
ou arte. São inúmeras possibilidades. São elas que movimentam e fazem o mundo
avançar. Curar, construir, proteger, cantar, organizar, cuidar, prover, escrever são alguns
desses dons. Entender, aceitar e exercer o seu dom faz com que o indivíduo ofereça o
melhor da sua capacidade, amplia possibilidades e o harmoniza consigo mesmo,
tornando-o uma pessoa mais equilibrada e feliz”. Perguntei o que o dom tinha a ver com
o sonho de uma pessoa. “Tudo”, respondeu o Velho. Como deve ter surgido uma enorme
interrogação em minha testa, o monge prosseguiu: “O sonho a que me refiro não são os
desejos insensatos do ego em busca de fama e fortuna, embora estas possam vir como
consequências naturais de quem vive o verdadeiro sonho. O sonho de que falo é o que
chamamos de darma ou propósito de vida. Assumimos o compromisso de tentar realizar
algo antes de cada existência como exercícios evolutivos. Para tal, somos municiados
com o dom adequado, em geral ligado a habilidades que já desenvolvemos em existências
anteriores em processo perfeito, passo a passo, para nos conduzir à iluminação. Cada
experiência agrega valores e, principalmente, virtudes que aperfeiçoam o ser. Assim, as
condições de vida, como lugar, família e situação financeira de nascença são as perfeitas
ferramentas para aquela alma naquele trecho da estrada. O dom é concedido como um
instrumento de luta e transformação. É a espada do guerreiro em evolução”.

Lamentei que para alguns a vida parece mais difícil do que para outros. “Não se iluda
nem se deixe impressionar pelas aparências. A vida é uma viagem sem fim com infinitas
estações para pouso e decolagem. Apenas com a visão de sua totalidade poderemos
compreender toda a justiça, sabedoria e amor que havia na carga de problemas impostos
em determinados trechos da jornada. As facilidades são oferecidas para impulsionar; as
dificuldades, para ensinar e fortalecer. Todas são oportunidades valiosas que merecem
ser aproveitadas”.

“Muitas vezes, o que imaginamos como facilidades, na verdade, são ferramentas para a
construção de grandes obras, ligadas ao próprio avanço e de toda a humanidade e
terminam por desperdiçadas por aquela alma, que não raro se afunda em angústia, por
sentir um vazio que não consegue entender e se refugia em álcool e prazeres rasos na
tentativa de fugir de si mesmo”. Bebeu um gole de café antes de concluir: “Cada qual
com o seu carma e darma. Aquele é aprendizado, este uma missão. Assim o universo nos
lapida até que todas as virtudes estejam pulsantes e reverberem em pura luz”.

O visitante, em razão da experiência vivida, disse que sempre que possível animava as
pessoas para nunca desistirem dos sonhos. Ele era a prova de que o universo sempre
conspira a favor quando estamos em busca do verdadeiro sonho. Entretanto, como saber
se o que buscamos é de fato o nosso sonho? Esta era a sua grande dúvida. Contou que
uma amiga possuía uma voz maravilhosa e não conseguia seguir na carreira como cantora,
tudo parecia dar errado. O Velho balançou a cabeça como quem diz que entendia e disse:
“Esse é o dilema do sonho. São apenas as dificuldades inerentes à vida, presentes para
ensinar e fortalecer o espírito para o momento seguinte não restar desperdiçado ou estarei
trilhando uma estrada que não é minha? Como saber se a voz que escuto é a do meu ego
ou a da minha alma?”

“Não é fácil, pois as vozes se misturam e há uma tendência para que a voz do ego fale
mais alto. Daí a necessidade de ensinarmos ao ego o idioma da alma e que encontrem o
mesmo tom. Isto é a harmonia do ser”. Olhou para o ator e disse: “Ter uma bela voz não
habilita ninguém a crer que o seu verdeiro sonho é ser cantor ou que ganhará o próprio
sustento com a música. Nem sempre ofício e arte se misturam. Se o dom não puder ser
um ofício, que seja uma arte. Use-o livremente para alegrar a própria vida, dos amigos e
de quem mais encontrar, como sementes atiradas nos jardins da humanidade. A
adaptabilidade é uma virtude indispensável ao andarilho por ser uma poderosa ferramenta
de transformação. Veja o exemplo da Valentina”, citou uma das monjas da Ordem. “É a
melhor poetisa da atualidade, embora pouquíssimos conheçam os seus livros, publicados
de maneira independente e custeados por ela mesma. Seus versos são apenas
comparáveis, na minha opinião, aos de Fernando Pessoa, o alquimista lisboeta. São
palavras que sensibilizam e transformam o ser. Apesar de seu inegável talento, das
poesias que não cessa de produzir, trabalha como engenheira aeronáutica, projetando
satélites de comunicação, ajudando a diminuir as distâncias do mundo. Um bonito ofício,
uma bela arte. E uma sábia lição de adaptabilidade de um sonho”. Bebeu mais um gole
de café e acrescentou: “Temos também o Giuliano, um outro monge, que trabalha como
pizzaiolo, oferecendo sabores maravilhosos, em receitas inusitadas sempre preparadas
com carinho, e nos dias de folga leva a sua trupe de teatro para os subúrbios da cidade
para compartilhar conhecimento, alegria e encanto”. Tornou a dar uma pequena pausa,
pois sabia que ainda não tinha respondido à questão e prosseguiu: “A vida sempre manda
recado. Ela fala conosco através de sinais. Este diálogo é intenso. Preste atenção e apure
a sensibilidade. Ela vai indicando os próximos passos. Às vezes põe uma pedra no meio
da estrada com o intuito de estimular a coragem, noutras fecha a passagem, mas mostra
uma vereda alternativa que mais à frente se revelará surpreendente. Sempre e sempre. A
hora da dúvida é o momento da indispensável solidão. É preciso encontrar consigo, ficar
a sós com a própria essência para ler os recados e, mais importante, mediar uma conversa
entre ego e alma. Perguntar, como no caso da amiga cantora, se o que busca naquele
caminho são os aplausos ou a transformação. Ser reverenciada pelo público ou
sensibilizar o coração de toda a gente? A sinceridade da resposta será a estrela-guia a
orientar o perfeito sentido da rota a seguir”.

Ficamos um tempo concatenando as ideias do monge até que quebrei o silêncio. Eu quis
saber se, na certeza de estar na busca do verdeiro sonho, as dificuldades se mantiverem
intensas, até onde devo insistir. O Velho arqueou as sobrancelhas e explicou: “Existem
muitos meandros na jornada. As dificuldades podem sinalizar apenas que a maneira de
andar está errada, não o sonho. Porém, podem também indicar que dali para a frente
haverá apenas precipícios. Então, é preciso refazer os planos. Todo sonho é único, pessoal
e intransferível. Entender o sonho é parte da arte do andarilho; é decodificar o Caminho”.

Lembrei que ele não tinha respondido a minha questão de até onde insistir ou abandonar
um sonho. O monge arqueou os lábios em leve sorriso e disse: “Albert Einstein demorou
mais de dez anos, e teve que esperar um eclipse solar, para conseguir provar à comunidade
científica a existência da Teoria da Relatividade. Laureado com o Prêmio Nobel de Física
por outro trabalho, o seu maior legado não foi o científico. Entendeu na segunda metade
da sua vida que a física era apenas um instrumento para melhor compreensão da
espiritualidade. Compreendeu que o seu sonho estava ligado à construção da paz no
planeta. O justo prestígio que angariou nas academias de ciência amplificou a sua voz e
facilitou para que as suas mensagens fossem ouvidas. Em seus últimos anos viveu como
ardoroso pacifista. Vincent Van Gogh dedicou toda a sua vida, apesar das enormes
dificuldades materiais, a pintar telas nas quais o importante não era retratar a realidade,
mas mostrar como ela o emocionava. Manteve a convicção inabalável como um impávido
farol que, apesar das tempestades, não deixou de iluminar aqueles dispostos a navegar”.

O Velho fechou os olhos e finalizou de maneira sentida: “Não importa quem você é nem
o que faz. Não importa qual é o seu sonho nem a sua dimensão. Nunca desista dele, nunca
corte as suas asas. Lute pelo seu sonho enquanto acreditar em si mesmo. Ou nada fará
sentido”.
UMA QUESTÃO DE RESPEITO

O tambor de duas faces rufava compassado ao toque de Canção Estrelada, o xamã que
tinha o dom de perpetuar a sabedoria ancestral do seu povo através da palavra. Pedi
autorização para me sentar na manta colorida estendida na sua frente, do outro lado da
fogueira. Sem abrir os olhos, ele apenas sorriu e balançou a cabeça de modo sutil.
Enquanto eu me acomodava, o xamã começou a cantar uma música de puro
agradecimento por estar ali em comunhão com a Mãe-Terra, naquela noite sem lua, com
o céu salpicado de estrelas. Quando ele silenciou a melodia, falei que eu precisava
conversar. Contei que estava muito chateado. Eu tinha tido uma discussão com um dos
meus melhores amigos. Ele teve um comportamento bastante desrespeitoso comigo em
uma determinada situação. Estávamos sem nos falar já há algum tempo. Canção Estrelada
acendeu o seu cachimbo com o fornilho de pedra vermelha, sem pressa, como se a noite
não tivesse fim, tragou duas vezes, me convidou para fumar e não disse palavra.

No dia seguinte me chamou para acompanhá-lo até uma pequena cidade próxima, perto
da sua casa, nas montanhas do Arizona, para algumas compras. Fomos em sua
caminhonete. No trajeto aproveitei para tornar a tocar no assunto da briga com o meu
amigo. Narrei os detalhes e fundamentei os motivos da minha decepção. Canção Estrelada
quis saber a razão de eu não procurar esse amigo para uma conversa na tentativa de reatar
laços valiosos: “Se a lembrança dele a toda hora lhe vem ao coração é porque um bom
fruto restou”, acrescentou. Respondi que ele era ele quem estava errado, logo, cabia a ele
me procurar. Era uma questão de respeito. O xamã ficou com os olhos tristes e silenciou
a voz.

Entramos em uma loja de produtos orgânicos em busca de essência de equinácea, uma


flor que tem propriedades medicinais por estimular o sistema imunológico. Como não a
encontramos no local de sempre, pedi auxílio a uma funcionária que arrumava outra
prateleira. A moça respondeu, de maneira educada, que assim que terminasse iria me
ajudar. Interpretei como falta de consideração e iniciei um discurso lembrando a minha
condição de cliente e a sua obrigação em me atender com rapidez. O xamã, de modo
gentil, interrompeu a bronca, pediu desculpas à jovem e me levou para fora do
estabelecimento. Fomos a uma cafeteria ao lado e ele pediu duas xícaras de chá. Nos
sentamos e ele me olhou nos olhos antes de perguntar: “Por que você está em guerra com
o mundo”?

Falei que não entendia a colocação. Canção Estrelada explicou: “Você se aborreceu com
o seu amigo em uma briga que considera definitiva, embora a todo momento volte a tocar
no assunto. Em seguida mostra muita impaciência por pouco motivo com a vendedora da
loja. Pelo visto há uma enorme ferida dentro de você, mas ao invés de buscar a cura
prefere espalhar a sua dor para toda a gente. Percebe que esse comportamento apenas o
torna vulnerável ao sofrimento?”. Falei que ele estava enganado. Eu estava bem, eram
apenas questões pontuais as quais envolviam falta de respeito para comigo. E respeito se
impõe, acrescentei. Ele sacudiu a cabeça e disse: “Isso nada tem a ver com respeito. É
pura manifestação do orgulho. Acontece todas as vezes que o ego se agiganta”.

Discordei dizendo que respeito não se pede, se exige. Ele franziu as sobrancelhas e
respondeu com seriedade: “Exige? E se o interlocutor se recusar a obedecer? Vai fazer
um escândalo? Aplicar-lhe uma surra”?. Falei que esperava não chegar a tamanho
extremo, mas que não via outro jeito de não permitir que as pessoas abusassem da minha
boa-fé. Canção Estrelada me concedeu um olhar generoso e falou: “A boa-fé é sua, assim
como respeito. Se estas virtudes já estão em seu coração ninguém poderá tomá-las de
você”. Eu disse que não tinha entendido e o xamã foi paciente: “Todas as vezes que
brigamos com o mundo é porque estamos desviando o eixo principal do combate: a
batalha que cada qual deve travar dentro de si. Significa que, ao transferir a
responsabilidade que nos cabe, estamos dando poder às sombras ao invés de iluminá-las”.
Deu uma pequena pausa e prosseguiu o raciocínio: “No mais, sim, jamais devemos
permitir que alguém nos desrespeite. No entanto, a maneira de impedir que isto aconteça
faz toda a diferença. O jeito como reagimos às contrariedades que se apresentam mostra
quais pontes já conseguimos atravessar”.

Irritado, pedi que ele me explicasse qual a melhor maneira de reagir às decepções,
provocações e ofensas. O xamã não se permitiu envolver na minha energia tempestuosa
e, ao contrário, ao manter o tom sereno da voz impôs a sua ambiência harmoniosa à nossa
conversa: “A regra de ouro é respeitar a si mesmo. Quando o indivíduo se respeita o
Grande Mistério o abraça e acolhe. Ação e reação”. O Grande Mistério era o termo pelo
qual ele se referia ao Universo. Argumentei que para ele era fácil pensar assim, pois era
um xamã e o conhecimento que tinha sobre magia fazia com que as pessoas o
respeitassem. Canção Estrelada deu uma gostosa gargalhada, como se tivesse ouvido uma
bobagem da boca de uma criança, e disse: “Se sou respeitado é pelo simples fato de eu
me respeitar. Me respeito ao cultivar a flor das virtudes em mim. Isto me torna imune às
ofensas”.

Pedi que ele explicasse melhor. Canção Estrelada não se fez de rogado: “Apenas o ego se
ofende. Quanto mais forte o ego, mais frágil será a pessoa, pois ficará mais suscetível de
ser atingida pelas atitudes alheias. Diminua o tamanho do alvo e dificultará o trabalho das
flechas. Somente se sente humilhado quem possui o orgulho e a vaidade exacerbados.
São duas características que deixam o indivíduo vulnerável. São como ervas daninhas a
impedir o crescimento da flor das virtudes”.

Falei que precisava saber mais sobre essa flor. O xamã explicou: “A flor das virtudes é
como uma margarida. Cada uma das pétalas é uma das inúmeras virtudes, como a
humildade, a simplicidade, a compaixão, a misericórdia, o respeito, a pureza, a harmonia,
a justiça, a liberdade, a sensatez, a prudência, a alegria, a sabedoria, a gentileza, a
paciência, entre outras. O miolo da flor é a virtude das virtudes, aquela que sustenta as
pétalas e está presente em todas as demais virtudes para que se completem, o amor”.

“A ausência de uma virtude pode prejudicar o exercício das outras. O respeito, por
exemplo, é a régua que o indivíduo tem por si mesmo na perfeita medida em que aprimora
o seu próprio código moral ao passo que amplia o nível de consciência e a capacidade de
amar. Quem age dessa maneira é inabalável ao comportamento desrespeitoso oriundo dos
outros, pois traz consigo a compaixão de perceber que ninguém pode oferecer o que ainda
não carrega em sua sacola sagrada, o coração; a misericórdia por entender que a ofensa é
um desrespeito apenas para quem a profere; a humildade de saber que por não ter a
perfeição para oferecer não a pode exigi-la do mundo; a sabedoria em perceber que a
opinião alheia define o outro, jamais a si mesmo; a paciência para esperar que a
sofreguidão da lagarta, pouco a pouco, se transforme nas asas da borboleta”.

Argumentei que era muito desagradável ouvir as pessoas falarem mal de nós. O xamã
aprofundou o raciocínio: “Não devemos nos preocupar com aquilo em que não podemos
interferir. Siga o seu caminho em paz no propósito de cultivar a flor das virtudes em si.
Esta é a batalha maior, todo o resto será a consequência desta conquista. O seu novo
entendimento se refletirá em um comportamento harmonioso que contagiará a sua aldeia,
o mundo e se refletirá até a mais distante das estrelas. Somente os insensatos se
preocupam em impor as suas ideias e vontades aos outros. A sensatez ensina que a
autoridade está na beleza das próprias escolhas”. Deu uma pequena pausa antes de
continuar: “Eu não tenho poder para moldar o mundo aos meus anseios. Apenas tenho
poder sobre mim mesmo; no entanto, esta força é incomensurável. Na medida em que me
empenho em processo contínuo de aperfeiçoamento pessoal ilumino com mansidão e
coragem os cantões escuros de tudo que me cerca e, aos poucos, tudo à minha volta
começa a acompanhar, como em uma sinfonia una de amor e paz. Se faço a parte do todo
que me cabe, o poder do todo se transfere para mim”. Piscou um dos olhos e segredou:
“Isto é magia”.

O respeitado xamã prosseguiu: “Ao exigir respeito dos outros nos aprisionamos à vontade
alheia em triste cárcere de mágoas. Não podemos conceder a ninguém tamanho poder.
Cada qual impõe o respeito a si mesmo em viagem cujo destino é despertar a essência
divina que o habita e anima. O florescimento das virtudes se traduz em liberdade,
plenitude e alegria. É pura luz”. Ofereceu-me um sorriso generoso e finalizou: “Todo o
resto é apenas o cenário de uma ilusão passageira”.
O SER INTEIRO

Tinha feito calor o dia inteiro. A brisa que descia das montanhas tornava o final da tarde
bastante agradável no mosteiro. Encontrei o Velho, como carinhosamente chamávamos
o monge mais antigo da Ordem, sentado em uma confortável poltrona situada em uma
das varandas que permite uma belíssima vista dos vales que se avizinham abaixo de nossa
sede. Pedi para sentar ao seu lado e ele concordou com um movimento de cabeça. Por me
conhecer há algum tempo, foi direto ao ponto: “O que lhe aflige?” Expliquei que muitas
vezes, mesmo na certeza de tomar a decisão correta, algum desconforto se instalava em
mim, o que era uma contradição. Ele pediu que eu fosse mais específico e acrescentou:
“Vamos ao caso concreto”.

Expliquei que um grande amigo tinha me pedido dinheiro emprestado. Era um valor
considerável. Embora eu tivesse a quantia, que estava guardada para outros fins, neguei
o empréstimo. Isto furtara a minha paz nos últimos dias. Ponderei que estranhava os meus
próprios sentimentos, uma vez que a convicção da minha escolha deveria pacificar o meu
coração. Com os olhos vagando no horizonte, o Velho falou: “O espírito, a verdadeira
identidade eterna de todos nós, em sua infância, nosso atual estágio, tem o ego distante
da alma como se estivéssemos divididos em dois. De um lado, o ego se empenha pelas
conquistas materiais e os prazeres sensoriais, os aplausos e o brilho social. De outro, a
alma se alegra com as vitórias dos sentimentos sobre os instintos, com a superação das
dificuldades, com a transmutação das próprias sombras em luz. O ego quer o
reconhecimento do mundo; a alma quer que o melhor de si brote para o mundo. O ego
está ligado às paixões; a alma, ao amor. O ego está no âmbito do eu; a alma pensa em
nós. Na viagem do aperfeiçoamento o Caminho nos impõe escolhas. Com o ser dividido
em dois, as decisões criam conflitos internos. Estes conflitos geram desequilíbrio em
todos os níveis”. Deu uma pausa antes de acrescentar: “Temos que alinhar o ego à alma,
no sentido de que os desejos daquele estejam em harmonia com as buscas desta. Da
mesma maneira temos que trabalhar o ‘eu’ sem esquecer o ‘nós’, sendo que a recíproca
também se aplica. Ou seja, cuidar do mundo sem esquecer de si. São partes da mesma
arte. Assim o ser se torna uno, se liberta das angústias mundanas, conhece a plenitude e
a paz”.
 
Perguntei se o ego deveria ser aniquilado. O monge negou: “O ego é importantíssimo,
apenas precisa ser educado. Ele apresenta os exercícios para o fortalecimento da alma;
são as exatas etapas de superação do ser. Embora em seu estágio inicial o ego esteja ligado
mais à aparência do que à essência, é ele quem se preocupa com o corpo e o bem-estar
físico, fundamentais para a manutenção da vida. Precisamos do interesse do ego pelo
mundano para que ali o sagrado que habita na alma se manifeste, nunca para suprimir um
pelo outro, mas para harmonizar ambos. Para o bom andarilho todas as dificuldades
materiais acabam por fortalecer as musculaturas emocional, mental e espiritual de que
necessita para seguir em frente. As lutas, as dúvidas, os conflitos, os problemas e as
angústias acabam sendo importantes para desenterrar a percepção sobre si ainda
adormecida no fundo do ser. Ao entender a si próprio o indivíduo ganha a sabedoria do
mundo, potencializa o seu dom e descobre a magia das virtudes. O amor floresce. O ego,
quando primário, é muito suscetível às sombras da inveja, do orgulho, da vaidade, da
mágoa, da ganância e do ciúme. São terríveis prisões sem grades. O primeiro passo é
aceitar as sombras para mais adiante transmutá-las em luz na jornada de libertação do ser.
Assim a vida se mostra perfeita graças às suas imperfeições”.
Eu quis saber se toda vez que pensasse em mim em detrimento do outro estaria sendo
egoísta. O Velho franziu as sobrancelhas e falou sério: “Claro que não. Cada um é
responsável pela fonte da própria vida e deve cuidar para que ela nunca seque. Saciar a
sede alheia com a água que brota em si nos torna sagrados. Mas pensar que é obrigação
do outro nos permitir beber em sua fonte é a raiz dos conflitos”. Virou o rosto para mim
e perguntou: “Qual lição é o eixo do Sermão da Montanha?” Respondi que é ‘amar o
próximo como a si mesmo’. O monge moveu as mãos, como se as palavras não fossem
suficientes para me explicar o óbvio, e disse: “Então? Se você não ama a si mesmo não
será capaz de amar ninguém”. Fez um breve silêncio para a minha reflexão e questionou
de maneira retórica: “Como será possível alimentar o outro se não trazemos pão na
bagagem? Como dar o que não se possui? Temos que colocar a alma para mostrar ao ego
a alegria de semear os campos do mundo para abastecer o celeiro do coração; colher o
trigo, transformar em pão; comer do pão e repartir o pão com toda a gente”. Sem esperar
pela minha resposta, continuou: “Só conseguimos compartilhar o que temos. E o que
temos, de verdade, é tão somente aquilo que já conseguimos compartilhar. Este é o único
e verdadeiro patrimônio”. Franziu as sobrancelhas e falou com seriedade: “No entanto, a
real necessidade do outro, algumas vezes, pode não ser exatamente o que ele pede. Por
isto existe o sim e há o não”.

Falei que a necessidade do meu amigo era o que ele tinha me pedido, e eu tinha negado.
O monge sugeriu: “Ofereça a outra face”. Falei que não tinha entendido. Ele explicou:
“Se coloque no lugar dele”. Pensei por alguns instantes e respondi envergonhado que
errei em não atender ao pedido de socorro de uma pessoa querida.

“Talvez sim, talvez não”, o Velho me surpreendeu.

Aquelas palavras me trouxeram alguma irritação, e falei que ele estava complicando. O
monge deu uma gostosa gargalhada e disse: “Eis um exercício cheio de armadilhas”.
Interrompi para dizer que não tinha entendido. O Velho prosseguiu tranquilo: “Enfrentar
o problema com os olhos do outro não significa entregar exatamente o que ele deseja.
Além de amor e generosidade, há que se ter sabedoria e sensatez; virtudes poderosas que
se completam. Elas te darão a exata medida se o outro, naquele momento, precisa ser
carregado nos braços ou estimulado a andar com as próprias pernas. Existe hora de fazer
uma coisa e há vezes de realizar a outra. Pode significar a diferença entre alimentar um
fraco ou criar um fraco; a fronteira é tênue”.

Falei que não entendia a importância do ego nesse processo. O monge explicou: “É a
força do ego que nos move às conquistas materiais, pois ele está ligado às questões
referentes à aparência e à sobrevivência. Isto tem valor, pois é nessas batalhas que os
valores espirituais afloram, mostram a sua importância e movem as transformações
essenciais. A vitória consiste em fazer com que o ego siga a sua marcha, porém, a cada
dia mais apaixonado pelos valores iluminados da alma e tendo as nobres virtudes como
armas de luta. As conquistas materiais não precisam ser desprezadas, ao contrário, apenas
têm que estar em compasso com as conquistas espirituais. Então, descobrimos que o ego
pode ser um vilão cruel ou um valioso aliado. O ego se torna um guerreiro poderoso se
prestarmos atenção em quais sentimentos movimentam as suas escolhas. Isto é de
fundamental importância. Quando o ego passa a dançar embalado pelas canções de amor
da alma as angústias se pacificam, as batalhas se tornam sagradas e as vitórias se
consagram em pura luz”.
Insisti que ainda tinha dificuldade em entender como o ego se mostraria útil. O Velho foi
didático: “Como lhe disse, o ego está mais ligado ao ‘eu’ e a alma mais preocupada com
o ‘nós’. Imagine a situação de atravessar um deserto, estar no limite da sede e encontrar
um pote d’água fresca. Beber todo o pote é desamparar os demais; não beber da água é
morrer de sede; beber uma parte e deixar a outra para quem vem atrás o torna sagrado. É
a perfeita integração do ser; é amar o outro como a si mesmo”.

Calei-me por alguns minutos. Depois, confessei que me arrependia de no passado ter
ignorado mãos que me solicitavam ajuda. Não queria incorrer no mesmo erro. O monge
me corrigiu: “Você não deve sentir culpa por não ter atendido aos pedidos. Aceite que
fez o seu melhor dentro dos níveis de consciência e amor que possuía na época. O
importante é ter responsabilidade com a evolução. Um compromisso que cada um assume
consigo de não incorrer nas atitudes que já entende como equivocadas. Siga sem a culpa
que paralisa, mas com a responsabilidade que transforma. Lembre que as mais belas
histórias são as de superação. No mais, não se preocupe, o Caminho sempre oferecerá
uma nova oportunidade para que você corrija a rota. Depois mais e mais, em infinitas
possibilidades de aperfeiçoamento. Tente aproveitar cada uma delas, embora aceite ser
normal que algumas sejam desperdiçadas. As oportunidades sempre tornarão a surgir,
embora em graus distintos, de acordo com a necessidade de aprendizado do andarilho”.

“‘Sempre fazer diferente e melhor’. Isto é um mantra e uma prece”.

“A expansão do Universo é constante e infinita. Somos parte dele. Logo, ele está contido
em nós. Desse modo, as nossas chances vão além da imaginação vulgar. Se você não
crescer, o todo estanca. Isto nos permite entender porque somos essenciais e nunca
seremos abandonados pelo Universo, embora muitas vezes não compreendamos a sua
pedagogia e determinação em nos fazer avançar. Como ainda não temos a sensibilidade
para sentir o seu infinito amor e entender a sua incomensurável sabedoria, muitas vezes
duvidamos desta interação. Porém, preste atenção, pois a recíproca também se aplica:
embora caminhemos individualmente temos um inegável compromisso com a obra ou
com o todo, como queira denominar. Neste estágio de existência as nossas lições se
apresentam através dos relacionamentos pessoais, com as dificuldades e oportunidades
que eles nos oferecem. Em cada conflito você pode encontrar um problema ou um mestre;
depende apenas do seu olhar”.

“O Caminho é solitário e solidário. Independente e acompanhado. Em absoluta


sincronia”.

“Somos ego e alma; somos a parte e o todo. Este é o poder, a grandeza e a beleza da
unificação do ser; consigo mesmo e com a mais longínqua das estrelas”. Tornou a olhar
para as montanhas que nos abraçavam, aquietou o coração e a mente por segundos, para
em seguida finalizar com uma pergunta: “Yoskhaz, se você traz toda a força do Universo
em si, já imaginou do que é capaz?”
AMAR É UMA ARTE DE MUITAS VIRTUDES

Eu acompanhava o Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da


Ordem, em um ciclo de palestras que ele ministrava, quando recebi o convite para a festa
de aniversário de oitenta anos de um parente muito querido. Seria em uma cidade próxima
de onde estávamos. Convidei o Velho para ir comigo; ele aceitou de imediato. Confessei
a minha contrariedade em encontrar alguns parentes com os quais restaram rusgas do
passado. Falei que na festa encontraria com um primo, que foi um dos meus melhores
amigos na adolescência, mas que em determinado momento nos desentendemos e
brigamos. Eu não lhe dirigia a palavra havia anos. Pedi para que ele não estranhasse. O
Velho comentou: “As cerimônias, sejam pessoais, familiares, profissionais ou religiosas,
são importantes rituais, não apenas de celebração da vida, mas de aproximação, não
somente entre iguais, aqueles que vibram na mesma sintonia energética, porém, e tão
importante quanto, é a chance de encontro entre aqueles que possuem divergências que
necessitam ser pacificadas. A diferença no olhar nunca deve ser motivo para o
distanciamento do coração. São as flores do respeito, da compaixão, da humildade, da
paciência e da coragem indispensáveis no jardim do amor. Para amar não basta o bem-
querer. O amor é uma arte de muitas virtudes”.

Achei que o monge não havia me compreendido e resolvi me calar. Na festa apresentei o
Velho para todos que, como de costume, logo angariou muita simpatia. Ele vestia um
blazer escuro acompanhado de uma gravata borboleta colorida que parecia decorar a sua
enorme barba branca. A bengala que o auxiliava nos passos, por vezes, parecia um
malabar nas mãos de um artista. Era um homem sofisticado por sua simplicidade. A sua
nobreza residia na atenção delicada a todos e a tudo que o cercava. Tudo corria bem até
que, em certo momento, vi que aquele primo, com quem eu não falava, tinha se
aproximado do monge e iniciado uma conversa. Para a minha irritação, eles conversaram
por mais tempo do que deveriam e, pior, em determinados momentos chegaram às
gargalhadas. Quando o Velho se aproximou não escondi a minha insatisfação nem os
meus motivos: ele se divertia ao lado de um inimigo meu. O Velho, sem alterar a
serenidade, me disse com a sua voz sempre suave: “Ninguém é de todo bom nem de todo
ruim; ele não é meu inimigo nem deveria ser seu”. Falei que ele estava enganado quanto
ao meu primo e não deveria se iludir pelo discurso encantador que possuía, pois na
intimidade se revelaria uma pessoa bem diferente. O monge esclareceu: “Todos somos
assim. Em convívio esparso podemos mostrar apenas o que temos de melhor e, não tenha
dúvida, esta luz existe de verdade. No entanto, somente a intimidade arranca as máscaras
que usamos na ilusão de nos proteger do mundo e arromba as portas do porão escuro do
nosso ser. Então, mostramos as sombras que nos habitam. Isto também tem o seu lado
bom, pois apenas conhecendo quem somos podemos nos tornar quem desejamos ser, em
processo contínuo de transformação. A convivência intensa esgarça famílias, casamentos
e amizades de longa data. Ou as tornam mais firmes, como guerreiros cujos laços restam
fortalecidos após se ajudarem em árduas batalhas, em provas cruciais de amadurecimento
e aprimoramento. Esses relacionamentos se tornam as mais belas obras de arte existentes,
pois têm como matéria-prima a vida esculpida pela espátula do amor. Nenhuma tela,
escultura, livro ou música será mais valioso e profundo. Toda a arte, sem negar o seu
valor, não passa de um decote amplificado da história da vida de cada um de nós”.

“Amar é a arte maior. Você é o artista; a sua vida é a grande obra. Anônima ou não, ela
tem igual importância como todas as demais e, quando pronta, ao invés de repousar em
um museu, embelezará os jardins da humanidade através de infinitas mutações. O
universo agradece, se expande e se ilumina. Isto lhe dá poder e o torna um ser encantado”.

Falei que tinha perdoado o meu primo, não lhe desejava mal, mas jamais esqueceria o
que ele me fez. Apenas não mais desejava conviver com ele. Acrescentei que eu não era
obrigado a isto. O Velho arqueou os lábios em leve sorriso e disse: “Ninguém é obrigado
a nada. No entanto, a todo o momento temos a escolha de manter o barco na tempestade
ou buscar novos horizontes em que poderemos atravessar oceanos com alegria e em paz.
Cada qual é o seu próprio capitão, definindo os mares que navegará e as praias que
aportará. As suas conquistas e os seus desastres. Não existe sorte, tampouco cabem
reclamações”. Pediu um copo d’água a um garçom, bebeu um gole e prosseguiu: “Quando
não suportamos a convivência com o outro, significa que o perdão ainda não floresceu.
O perdão está ligado à Lei da Renovação e das Infinitas Oportunidades, além da Lei do
Amor. Absolutamente tudo precisa novamente virar semente para que a vida possa
prosseguir. O renascimento é um poderoso instrumento da luz”.

“Só existe luz quando há amor; é impossível amar sem perdoar”.

“Para que haja perdão é necessária a virtude da compaixão, para entender que cada um
age no limite exato das suas capacidades. Nem mais nem menos. No entanto, todos
mudam, se transformam e evoluem. Perdoar não é esquecer, isto é amnésia; perdoar é a
capacidade de recordar os fatos, envolvendo-os com um manto de compreensão quanto
às limitações e motivações, de acordo com o nível de consciência e capacidade amorosa
que todos tinham na época. Tanto ele quanto você. Então, se torna necessário o suporte
de outra virtude, a humildade. Como exigir a perfeição do outro se não a temos para
oferecer? Que tal ofertar o seu melhor e aceitar de bom grado o que o mundo tem a
entregar, mesmo sabendo que quase nunca será aquilo que você espera? Assim fazem os
espíritos livres. Isto é viver com amor e por amor”. Bebeu mais um gole de água e
concluiu: “Não desejar mal ao outro não significa perdoar. Isto é apenas um importante
degrau para o perdão. Combater o mal com o mal é usar a moeda suja das sombras.
Recusar o jogo das sombras é o início da jornada de iluminação, do conhecimento, do
equilíbrio, da plenitude do ser e da paz”. Pousou o copo sobre uma mesa e prosseguiu:
“Não desejar o mal ainda está distante do verdadeiro poder do amor. É preciso exercitar
o bem. Sem amor, não há luz; sem luz, nos mantemos na cela escura das sombras”.
Interrompi para contestar. Argumentei que eu não estava aprisionado, apenas exercia o
meu direito inalienável de não conviver com o meu primo. O Velho balançou a cabeça e
disse: “Sim, as escolhas são suas e nelas residem todo o seu poder. Apenas elas
transformam e libertam. No entanto, preste muita atenção, pois as piores prisões não têm
grades e, por isto, não nos percebemos presos. Não há liberdade sem amor, não existe
amor sem perdão, não existe perdão sem compaixão e humildade”.

Confessei que havia o risco de o meu primo me virar as costas ou ser rude na tentativa de
aproximação. O Velho balançou a cabeça e explicou: “Aos fracos restam a raiva, a mágoa
e o ressentimento. O medo é sombra; a coragem, luz. O amor está destinado apenas para
àqueles que têm coragem. A coragem das batalhas, dos voos inimagináveis, de ir além da
curva. É preciso coragem para enfrentar a recusa ou a incompreensão do outro. Se isto
acontecer, será preciso paciência, outra valiosa virtude, para entender que o outro ainda
não está pronto para o reencontro e, claro, sem esquecer de mais uma virtude, o respeito.
Respeito à liberdade e à escolha alheia, pois, assim como você, ele também não está
obrigado a fazer nada”.
Falei que aquelas palavras eram muito bonitas, mas a vida é dura e a realidade bem
diferente. Confessei que muitas vezes tive vontade de procurar o meu primo para
conversar e findar o conflito. Porém, eu tinha certeza de que ele me viraria as costas ou
me humilharia de alguma maneira. Não estava disposto a me rebaixar. No mais,
acrescentei, era ele quem estava errado, logo, era ele quem deveria tomar a iniciativa. O
Velho abriu os braços como se precisasse de gestos para explicar as palavras e falou:
“Percebe que o orgulho é carcereiro do coração? Somente é passível de humilhação quem
possui o ego exacerbado. O orgulho e a vaidade são sombras que engradecem o ego e
fragilizam o ser. Aprisionam e trazem dor por envenenamento. A humildade e a
compaixão compõem o antídoto. Paciência, respeito e coragem são indispensáveis para
que o tratamento avance. O amor é a cura”.

“Para se banhar na luz é necessário vivenciar o amor em toda a sua amplitude. Para isso
será preciso que todas as virtudes floresçam em si”.

Recusei-me. Como era o seu costume, o Velho não insistiu. Ele sempre expressava o seu
pensamento de maneira clara e calma, quem tivesse ouvidos que ouvisse. O monge seguiu
flanando por entre os convidados, conversando com todos e se divertindo muito. Fomos
dos últimos a sair da festa. Dirigi o carro por alguns minutos até que um dos pneus furou.
Somente quando peguei o estepe, me dei conta de que estava vazio. Estávamos em um
lugar ermo, distante para voltar a pé até o local da festa em busca de ajuda e sem sinal de
celular. Acenei para alguns carros que passavam, mas o medo que reina nas grandes
metrópoles os impediram de parar. O monge apenas olhava e se encantava com o que
acontecia, como se nada o assustasse. Quando estava a ponto de desistir, um carro
encostou. Era o meu primo. Ofereceu-me um sorriso sincero, cedeu o pneu sobressalente
do seu carro e ainda me ajudou a trocar. Quando acabamos, olhei para ele e, um tanto sem
jeito, agradeci. Ele disse que o único agradecimento que aceitaria seria um forte abraço.
Nos abraçamos com lágrimas nos olhos. Ao meu ouvido ele sussurrou um pedido de
perdão. Pediu desculpas por ter me feito sofrer e dado margem ao nosso afastamento.
Falei que precisávamos conversar para resolver os mal-entendidos de outrora. Ele
questionou se era necessário, pois já tivéramos tempo suficiente para pensar sobre o
ocorrido e tinha certeza de que cada um de nós sabia onde poderia ter feito diferente e
melhor. Já tinha se passado muito tempo, e as pessoas que éramos na época dos fatos
simplesmente não mais existiam. Éramos outros. Falou que gostaria muito de encontrar
comigo, não para remoer o passado, mas para falarmos do presente, dos filhos e dos
sonhos que ainda nos movimentam. Sim, ele tinha razão. No meu íntimo eu sabia que não
cabia a ele toda a conta; uma parte do débito, maior ou menor, não importava, me
pertencia. Combinamos de almoçar no dia seguinte. Celebraríamos a alegria de um novo
ciclo em nossa amizade.

Quando voltei ao meu carro, comentei com o monge que sentia uma onda de paz e alegria
ao meu redor. Envergonhado, admiti que aquele a quem eu considerava pequeno tinha
sido um gigante ao me oferecer uma bela lição. Em outra ocasião, eu me esforçaria para
que a iniciativa fosse minha.

O Velho não disse palavra, apenas apreciava a paisagem pela janela. E sorria.
 

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