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OS JOVENS E A LEITURA
Uma nova perspectiva
Tradução
Celina Olga de Souza
Editora 34 Ltda.
Sumário
Primeiro encontro:
AS DUAS VERTENTES DA LEITURA .... 15
As duas vertentes da leitura ................... 20
O leitor "trabalhado" por sua leitura ... 28
Do lado dos leitores ................................. 44
Segundo encontro:
O QUE ESTÁ EM JOGO NA LEITURA HOJE EM DIA 59
Ter acesso ao saber .................................. 61
Apropriar-se da língua ....... ................... 66
Construir-se a si próprio ......................... 71
Um outro lugar, um outro tempo .......... 78
Conjugar as relações de inclusão ........... 86
Círculos de pertencimento mais amplos 93
Terceiro encontro:
O MEDO DO LIVRO ................................. 103
A difícil libertação do espírito de grupo 104
Do lado dos poderes:
O pavor de que as linhas se movam 111
Trair os seus? ............................................ 116
O medo da interioridade ......................... 125
Como nos tornamos leitores ................... 138
Quarto encontro:
O PAPEL DO MEDIADOR ....................... 147
Uma relação personalizada ..................... 149
Transmitir o amor pela leitura:
Um desafio para o professor? ......... 154
A hospitalidade do bibliotecário ........... 162
Ultrapassar umbrais ................................. 166
Pontes para universos culturais mais amplos 174
O mediador não pode dar mais do que tem 185
Primeiro encontro
AS DUAS VERTENTES DA LEITURA
E solta um suspiro.
Aos sete anos ela já sabe, por experiência própria, que a
manipulação da escrita é um instrumento decisivo de poder.
Tomo o segundo exemplo emprestado ao antropólogo Claude
Lévi-Strauss. Em um texto intitulado "Lição de escrita", relata
um incidente ocorrido quando estava entre os índios
Nambikwara, no Brasil. O chefe, que, como qualquer um dos
Nambikwara, não sabia ler nem escrever, pediu para Claude
Lévi-Strauss um bloco de notas. Depois, preencheu-o com
linhas tortas, juntou sua gente, fez cara de quem lia o papel e
listou os presentes que o etnologista deveria lhes dar. O que
ele esperava? Cito Lévi-Strauss: "Enganar a si mesmo, talvez;
mais, porém, surpreender seus companheiros, convencê-los
de que tinha participado na escolha das mercadorias, que
obtivera a aliança com o branco e que partilhava de seus
segredos".3 Mais tarde, ao refletir sobre esse episódio, Lévi-
Strauss concluiu que:
"Não tinha mais rancores, mas sim desejos." Mesmo que não
sejamos antilhanos, sabemos hoje que toda cultura tem uma
estrutura colonial. Ao menos é o que diz o filósofo Jacques
Derrida: "Toda cultura é originalmente colonial [...]. Toda
cultura se institui pela imposição unilateral de alguma
'política' da língua. O domínio, sabemos, começa pelo poder
de nomear, impor e legitimar as designações". No mesmo
livro, porém, algumas páginas adiante, Derrida evoca também
o momento em que, jovem judeu crescido na África do Norte,
foi "fisgado pela literatura e filosofia francesas":
"O adolescente não é um animal que nasce por volta dos doze
anos e desaparece aos vinte. Não é uma entidade que se pode
limitar, objetivar, mas um processo em que a própria pessoa se
vê envolvida".
Segundo encontro
O QUE ESTÁ EM JOGO NA LEITURA HOJE EM
DIA
T ER ACESSO AO SABER
O mundo, para ela, não está mais dividido entre "eles" e "nós",
classificação tão freqüente nos meios populares, mas não
exclusiva destes...
Esta abertura para o outro pode assim realizar-se por meio da
identificação, quando nos colocamos no lugar da experiência
do outro, sobretudo por meio da leitura dessas histórias
"vividas", que fascinam muitas pessoas. Pode também se dar
graças a um conhecimento suplementar, que confere um
domínio suficiente para que não se sinta mais medo do outro.
Como diz Magali: "É uma maneira de aceitar o que vem de
fora, de se abrir mais para os outros. Se existe alguma coisa
que não conhecemos, isso nos assusta e nos fechamos".
A lição que a leitura nos ensina pode ser ainda, como dizem
muitos, a de que antes de pertencer a este ou àquele
território, somos seres humanos. Ouçamos o que diz Matoub:
Terceiro encontro
O MEDO DO LIVRO
Vimos ontem que a leitura poderia ser a chave para uma série
de transformações, em diferentes âmbitos, contribuindo
sobretudo para uma recomposição das representações, das
identidades e das relações de pertencimento. E que também
poderia ser o prelúdio para uma cidadania ativa.
Conseqüentemente, o fato de ela suscitar medos e resistências
não deve causar surpresa, ainda mais nos dias de hoje, em que
todos clamam a uma só voz: "É preciso ler". Os seres humanos
têm uma relação muito ambivalente com o movimento, a
novidade, a liberdade, o pensamento, que podem ser, por um
lado, objeto de fortes desejos, mas também de medos
associados a esses desejos.
Falarei então desse medo do livro, ou ao menos de alguns de
seus aspectos, pois me parece que estão sempre presentes,
mesmo que às vezes assumam formas mais sutis que as
conhecidas no passado. Esclareço que esse medo não diz
respeito apenas aos jovens. Ele está presente em torno deles,
sobretudo se nasceram em um meio onde o livro é pouco
familiar. Ele pode estar na família, no bairro, entre os amigos
e até mesmo entre os professores. E também está presente
entre os que detêm o poder, por trás dos belos discursos dos
políticos sobre a difusão da leitura.
Com freqüência pensa-se que o acesso ao livro deveria ser
algo "natural", a partir do momento em que a pessoa dispõe de
algumas competências e certo grau de escolarização.
Entretanto, praticar a leitura pode se revelar impossível, ou
arriscado, quando pressupõe entrar em conflito com os modos
de vida, com os valores próprios do grupo ou do lugar em que
se vive. A leitura não é uma atividade isolada: ela encontra —
ou deixa de encontrar — o seu lugar em um conjunto de
atividades dotadas de sentido.
"Lá tudo era pequeno, era o deserto, e havia uma cultura [...]
todo mundo tinha a mesma, uma religião igual, e o trabalho
era realizado no campo ou na construção. A vida deles é
baseada nessas poucas coisas. Não vêem o mundo como
nós o vemos. Vêem apenas o canto deles. Não vêem o
resto [...]. Quando lhes falam de algo novo que não
conhecem, encontram sempre uma resposta negativa. É
realmente medo o que sentem; como não conhecem,
colocam uma barreira. Não é por mal, para discriminar
algo, um objeto ou um ser humano; não, é realmente
uma proteção, querem que fiquemos em seu círculo. Mas
não podemos mais ficar no seu círculo".
O MEDO DA INTERIORIDADE
S t i g ma : N o t es o n t h e M a n a g e m en t o f S po i l ed I d en t i t y , 1963].
Nos meios populares, mas não só neles, existe a idéia de
que ler efeminiza o leitor. Num livro intitulado Psiu, que
trata do amor pela leitura, escrito por Jean-Marie Gourio,
o pai do narrador, que até então nunca havia tocado um
livro, um dia compra um pequeno tratado médico. E ei-lo
caminhando pelas ruas, não sabendo como carregar esse
objeto insólito:
"De onde me vem esse amor pelos livros? Sabe, aos vinte
anos, eu caminhava pela vila, tentava passar
desapercebido, não dizia bom-dia a ninguém. Eira muito
tímido. Voltado para dentro. Nunca joguei futebol,
detesto o bar. Gostava de andar de bicicleta, por quê?
Como explicar... Não sei. De qualquer maneira, sempre
gostei de ler".
U MA RELAÇÃO PERSONALIZADA
A HOSPITALIDADE DO BIBLIOTECÁRIO
U LTRAPASSAR UMBRAIS
SOBRE A AUTORA