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SANTOS, Fabio Luis B. Kirchnerismo e os impasses da via burguesa na Argentina.

In: Uma
história da onda progressista sul-americana (1998-2016). São Paulo: Elefante, 2018.

Peronismo e Kirchnerismo

Fabio luis barbosa dos santos


Doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo
Professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo em Osasco
Atua principalmente nos seguintes temas: História Contemporânea; História da América
Latina; História do mundo não europeu; Relações Internacionais na América Latina e no
Sul Global
Programa de extensão Realidade Latino-Americana da Unifesp

Uma história da onda progressista sul-americana (1998–2016)


O objetivo deste livro é contribuir para um balanço da chamada “onda progressista” sul-
americana. A expressão alude à sucessão de governantes identificados com a esquerda,
eleitos em reação ao neoliberalismo em anos recentes na região: Hugo Chávez, na
Venezuela (1998); Luiz Inácio Lula da Silva, no Brasil (2002); Néstor Kirchner, na Argentina
(2003); Tabaré Vázquez, no Uruguai (2004); Evo Morales, na Bolívia (2005); Rafael Correa,
no Equador (2006); e Fernando Lugo, no Paraguai (2008). À exceção deste
último, todos se reelegeram ou fizeram sucessores.
Em fins de 2015, quando o bolivarianismo sofreu uma derrota acachapante nas eleições
parlamentares venezuelanas e Mauricio Macri elegeu-se presidente da Argentina, parecia
que a onda progressista cedia a uma ressaca reacionária. Esta percepção consumou-se
com o impeachment de Dilma Rousseff no Brasil, no ano seguinte.
Como compreender esta inflexão? Seria uma reação à mudança empreendida pelos
governos anteriores, ou o progressismo simplesmente esgotou-se em meio a
expectativas frustradas, acossado pela queda no preço das commodities e por denúncias
de corrupção? O que esta experiência nos diz sobre o sentido da evolução da história
contemporânea?

Esta via referendou a articulação prevalente entre neoliberalismo e progresso. A onda


progressista foi
neoliberal não somente porque subordinou-se à ditadura do ajuste estrutural, mas
porque introjetou a razão
de mundo que lhe caracteriza, reduzindo a política a técnicas de gestão balizadas por uma
lógica mercantil.
Ao mesmo tempo, foi progressista não por ser necessariamente de esquerda, mas
porque partilhou de uma
visão de mundo que identifica o combate ao subdesenvolvimento com o crescimento
econômico, versão
periférica da ideologia do progresso.
Como resultado, os governos progressistas articularam o ajuste estrutural ao mito do
crescimento
econômico.
Analisados à luz desta tendência mundial, os governos progressistas na América do Sul
aparecem como
tentativas de civilizar o trem da história recorrendo ao bom senso e à concertação.
Acreditou-se que era
possível domesticar o desenvolvimento capitalista na periferia ou, ao menos, modular sua
velocidade e
direção. Sem questionar o trilho, adotaram como norte o crescimento econômico, referido
ao paradigma do
desenvolvimento das forças produtivas. Como resultado, em lugar de puxar o freio do
trem do progresso,
como dizia Walter Benjamin, estes governos o aceleraram. Ao invés de conduzi-lo, foram
por ele arrastados
e, em alguns casos, defenestrados.
“A moral da história é que o progressismo não conduz à mudança e será preciso mais
do que boa vontade
para construí-la. Ao contrário do que se pode imaginar, descarrilhar esse trem não nos
levará à barbárie:
pode ser justamente o único meio de evitá-la. É preciso desmontar a ordem que o
progressismo pretendeu
civilizar, ou não haverá mais civilização. Se ordem é progresso, urge a desordem.” (pag
10)

As questões que orientam a análise das presidências progressistas têm cunho político.
Estes governos
foram efetivamente de esquerda, no sentido de contribuírem para superar a desigualdade
e a dependência?
Qual o alcance e o limite da mudança ensejada? Que relações estabeleceram com o
campo popular e com as
classes dominantes? Em uma perspectiva histórica, é possível identificar uma
funcionalidade política, do
ponto de vista da reprodução da ordem? Quais os nexos entre os processos progressistas
e a reação que se
vislumbra?
Deste ponto de vista, o caráter das gestões petistas foi determinante para modular o
sentido geral do
processo. Além da importância política e econômica do Brasil, o país reivindicou a
liderança de uma
integração regional que procurou modelar à imagem e semelhança da sua política
doméstica. Cumpre,
então, perguntar: quais os interesses subjacentes à integração sul-americana liderada
pelo Brasil? Como
esta liderança interagiu com governos de orientação díspar, como Hugo Chávez na
Venezuela e Álvaro
Uribe na Colômbia? Como interpretar o consenso em torno da criação da Unasul e da
Iniciativa para a
Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA)? O que este processo de
integração regional,
ao qual aderiram todos os países da América do Sul, revela sobre o alcance e o limite da
onda progressista?
E, de modo correspondente, qual o alcance e os limites de uma integração encampada por
governos desta
natureza?
A hipótese central do livro é a de que a onda progressista explicita os estreitos limites
para a mudança
dentro da ordem na América Latina. O ensejo de modificar estas sociedades sem
enfrentar a raiz dos
problemas — que remete à articulação entre dependência e desigualdade legada do
passado colonial —
limitou a mudança à superfície da política. Porém, a alternância eleitoral é funcional à
democracia burguesa
e às classes dominantes, principalmente em momentos em que o padrão de dominação,
descrito por
Florestan Fernandes como o Estado Autocrático Burguês, é chacoalhado.
Deste
ponto de vista, a onda progressista pode ser vista como mais um capítulo da
contrarrevolução permanente
que caracteriza a dominação burguesa na América Latina, porque, a despeito das boas
intenções originais,
ela se impôs como uma lei da gravidade sobre os acanhados propósitos de mudança.
Com este fim, duas estratégias principais são adotadas neste livro: a contextualização
histórica e a dinâmica da luta de classes, que envolve analisar a relação dos governos
com as classes
dominantes e com os setores populares.
Para reconstituir a dinâmica da recente luta de classes nos diferentes países, recorri à
pesquisa de
campo, além da bibliografia disponível.
Portanto, não se trata de um livro em que argumentos encadeados nos sucessivos
capítulos convergem
para uma conclusão que comprova a tese, mas de um livro em que, à maneira do seu
objeto, a tese da
contrarrevolução permanente está em toda parte. A exceção fica para as reflexões
finais, em que apresento

nove proposições em torno da resposta necessária à contrarrevolução permanente: a


revolução latino-
americana.

3. Kirchnerismo e os impasses da via burguesa na Argentina


Para nós, o peronismo foi a mais importante e única tentativa de realização da revolução
democrático-burguesa na Argentina, cujo fracasso se deve à incapacidade da burguesia
nacional de cumprir esta tarefa.
— Silvio Frondizi, 1955
É impossível consolidar um projeto de país se não consolidamos uma burguesia nacional.
— Néstor Kirchner, 29 de setembro de 2003

Introdução
A rigor, a eleição de Néstor Kirchner poucos meses após o triunfo de Lula no Brasil marca
o início da onda progressista sul-americana, quando, em 2003, presidentes identificados
com a esquerda assumiram o comando dos dois maiores países da região, somando-se
ao venezuelano Hugo Chávez.
Principal economia da América do Sul até a Segunda Guerra Mundial, a Argentina
passou por uma prolongada inflexão que empobreceu, desindustrializou e
desnacionalizou o país a partir da ditadura que controlou o país entre 1976 e 1983.
Depois, o fundamentalismo neoliberal de Carlos Menem aprofundou os condicionantes
de uma crise que explodiria no começo do século XXI. Embora Kirchner tivesse uma
trajetória convencional nas filas peronistas, foi eleito no contexto da extraordinária
mobilização popular que, em dezembro de 2001, derrubou seguidos presidentes e impôs
a mudança.
Beneficiando-se da moratória e do fim da convertibilidade peso-dólar decretadas em
meio à crise, o governo de Kirchner ensaiou uma retomada desenvolvimentista que, no
entanto, se confrontou com obstáculos de natureza diversa. Na medida em que a
conjuntura internacional favorável às exportações primárias arrefeceu, sua sucessora e
esposa, Cristina Kirchner, adotou medidas controversas, respondendo às dificuldades
econômicas com uma política orientada a reforçar sua autoridade sobre o Estado e os
setores que apoiavam o governo. Processo mais ousado do que o seu correlato brasileiro,
o kirchnerismo sofreu as ambiguidades inerentes à crença em uma burguesia nacional
combinada à tutela sobre o movimento popular, que ressoam ao peronismo com o qual
a esquerda argentina ainda tem contas a acertar.

I. Perón e peronismo
Projetado na política nacional como ministro do Trabalho durante a Segunda Guerra
Mundial, o coronel Juan Domingo Perón (1895–1974), que se tornou general, presidiu a
Argentina em três ocasiões, tendo sido eleito em todas elas. Exerceu dois mandatos
consecutivos entre 1946 e 1955, quando foi deposto por um golpe, e retornou à
presidência em 1973, após um longo exílio. Dentre os períodos em que governou, foi em
seu primeiro mandato que cativou os trabalhadores argentinos, semeando os
fundamentos do peronismo. Este fenômeno político transcendeu o período de vida e as
posições do coronel, imprimindo uma marca indelével na cultura política do país, cujas
reverberações são sentidas até hoje (Murmis & Portantiero,1973).

No plano econômico, o primeiro governo peronista praticou uma política de


desenvolvimento da indústria nacional, sobretudo da indústria leve, ao mesmo tempo
que impulsionou a presença estatal nos setores de base, embora sem o mesmo
sucesso. Naqueles anos, a Argentina viveu uma prosperidade ímpar, amparada por uma
conjuntura internacional favorável, marcada pelas altas exportações de cereais e carne no
pós-guerra. Sob o peronismo, a economia argentina continuou sendo comparável à
brasileira.
Por outro lado, o governo favoreceu a intervenção do Estado em prol dos trabalhadores
em diversas ocasiões e promoveu uma distribuição de renda sem precedentes na
história do país. A participação dos salários no PIB argentino alcançou 50%, nível que se
manteve nos anos seguintes. Ao êxito econômico somaram-se avanços políticos, como a
legislação trabalhista, o direito à organização sindical — embora tutelada pelo Estado
— e o voto universal, entre outros (Kaplan, 1984; Romero, 2001). Na memória de muitos
trabalhadores argentinos, os anos de Perón representaram o momento em que se
tornaram cidadãos.

Em termos ideológicos, o peronismo ou justicialismo esteve associado a três ideias: a


“justiça social”, entendida como uma elevação do padrão de vida dos trabalhadores, mas
que afastava a contradição entre capital e trabalho e a noção da luta de classes; a
“independência econômica”, identificada com a autonomia do país diante dos
monopólios estrangeiros; e a “terceira posição” no âmbito internacional, supondo a
neutralidade em relação aos dois blocos da Guerra Fria (Bobbio & Matteucci et al., 1983,
p. 923).

A pretensão de conciliar capital e trabalho, indústria e exportação primária,


desenvolvimento nacional e capital internacional prosperou enquanto a conjuntura
internacional foi favorável. Porém, a retração das exportações primárias coincidiu com
a ascendente pressão do capital transnacional, sobretudo de origem estadunidense, na
direção da liberalização econômica. Confrontado com problemas financeiros, o Estado
perdeu a capacidade de subsidiar o mercado interno e segurou os salários, recorrendo à
Confederación General del Trabajo (CGT) e a métodos coercitivos para conter as
demandas populares. A face repressiva do governo se evidenciou no controle da
imprensa, da atividade partidária e do movimento sindical. Neste contexto, as
concessões em favor do capital internacional foram insuficientes para reverter o
crescente mal-estar, uma vez que, para a oposição, qualquer solução política excluía
necessariamente a permanência do peronismo no poder (Ayerbe, 2002; Kaplan, 1984).
O impasse resolveu-se em 1955 com um golpe militar. Na avaliação de Silvio Frondizi
(1955), a queda de Perón atestou a impossibilidade de consolidar a nação argentina em
marcos burgueses: “Para nós, o peronismo foi a mais importante e única tentativa de
realização da revolução democrático-burguesa na Argentina, cujo fracasso se deve à
incapacidade da burguesia nacional de cumprir esta tarefa”.

O período entre a deposição de Perón em 1955 e a ditadura militar iniciada em 1976 foi
marcado por instabilidade política e enfrentamentos sociais. Embora proscrito, o
peronismo teve mais votos que seus concorrentes nas eleições da época, quando
convocou o voto em branco. Expressão da instabilidade prevalente, os dois presidentes
radicais eleitos,32 Arturo Frondizi (1958–1962) e Arturo Illia (1963–1966), não
concluíram seus mandatos - “filiados” à União Cívica Radical, partido de oposição o
peronismo. O governo de Illia foi derrubado em 1966 por um golpe militar que pretendeu
estabilizar a situação por meio de uma “revolução argentina”. Entretanto, o regime
liderado por Juan Carlos Onganía se defrontou com um acirramento dos enfrentamentos
sociais, expressos pelas lutas universitárias, sindicais e também por uma combinação
das duas, cuja expressão maior foi o Cordobazo, em 1969, quando a cidade de Córdoba foi
brevemente tomada por trabalhadores. A insurreição foi violentamente suprimida, mas o
regime caiu em desprestígio e diversos grupos pegaram em armas para enfrentar a
repressão. Os Montoneros peronistas, o Ejército Revolucionario del Pueblo (ERP) e as
Fuerzas Armadas Revolucionarias (FAR), de referencial marxista, surgiram neste
contexto. Contestado por setores de baixo e também por seus pares, Onganía convocou
eleições em 1973, vencidas por uma liderança da esquerda peronista, Héctor Cámpora,
que criou as condições para o retorno de Perón, que assumiria a presidência meses
depois. A esta altura, o peronismo ganhara vida própria. Grupos que assumiam posições
políticas opostas reivindicavam-se peronistas, enquanto o próprio líder manipulava a
todos, conforme sua conveniência. Ao
incitar a esquerda armada ao mesmo tempo em que açulava os setores reacionários,
Perón contribuiu para um clima de confrontação e desordem que, aparentemente,
somente ele próprio poderia aplacar. A funcionalidade do peronismo para o
reestabelecimento da ordem foi o passaporte para o retorno do general.
De volta ao poder, Perón desautorizou o peronismo de esquerda, ao mesmo tempo em
que o paramilitarismo anticomunista recebeu cobertura do governo para atuar. Quando
faleceu, foi sucedido por sua esposa, María Estela Martínez Perón, conhecida como
Isabelita, que governou entre 1974 e 1976, intensificou as ações repressivas e
mostrou escassa aptidão para a presidência. Em 1975, um pacote de medidas
econômicas impopulares conhecido como Rodrigazo disparou o custo de vida e a
inflação, desencadeando a primeira greve geral contra um governo peronista na história
do país (Sartelli, 2007). A insubordinação operária era indício de que a função política do
peronismo se esvaziava.
Ao mesmo tempo, a violência política se tornava cotidiana. Enquanto a Alianza
Anticomunista Argentina, conhecida como Triple A — articulada pelo secretário pessoal
e ministro de Perón, José López Rega —, fazia vítimas selecionadas, as ações
guerrilheiras se multiplicavam. Diante deste clima de guerra civil, um capelão militar
pontificou, no início de 1976, que “o povo argentino cometeu pecados que só podem ser
redimidos com sangue” (Novaro & Palermo, 2007, p. 87). Foi esta a missão assumida
pelas Forças Armadas nos anos seguintes.

II. Do Processo de Reorganização Nacional à democracia neoliberal


Foca nas décadas de ditadura militar e nas crises econômicas subsequentes.

"A ditadura inaugurada em 1976 unificou a classe dominante do país em torno do


restabelecimento da ordem, processo que contou com a benevolência ou indiferença de
parte da população. "Silêncio é saúde", diziam cartazes espalhados pelo regime. O
autodenominado Processo de Reorganização Nacional pretendeu reconfigurar as
relações sociais no país, em uma reação à esquerda marxista e também ao peronismo.
Foi um projeto mais ambicioso e radical do que todas as ditaduras anteriores, inclusive
a "Revolução Argentina" de 1966, que, na avaliação dos que assumiram o comando,
fracassara por sua moderação e fraqueza (Novaro & Palermo, 2007, p. 30).
Assentada no extermínio de uma geração de militantes, esta "reorganização nacional"
modificou o padrão de acumulação prevalente, que tinha a indústria como núcleo
dinâmico, criando as condições para a implementação do neoliberalismo que o próprio
regime começou a executar (Basualdo, 2001). As relações sociais de produção, a função
do Estado e a inserção internacional do país se modificaram substancialmente, em
paralelo a uma degradação contínua do padrão de vida da população, que se estendeu
por décadas. Embora este processo não tenha se completado sob a égide militar, o
regime estabeleceu as bases para a regressão econômica e social que seria consumada
mais tarde.
A estratégia para restabelecer a ordem foi expandir o terror, encadeando sequestros,
detenções clandestinas e desaparecimentos de modo sistemático e maciço. As trinta mil
vítimas fatais da ditadura, entre assassinados e desaparecidos, denotam uma escala
inédita da repressão, que se fez qualitativamente diferente (Hourcade & Tufró, 2017). Ao
mesmo tempo, o regime pretendeu eximir-se de toda responsabilidade pelas
execuções, evitando as pressões internacionais sofridas pela experiência chilena. O
desaparecimento como método cumpriu este duplo papel de estender o manto de
suspeita e de incerteza, ao mesmo tempo que preservava o regime da opinião pública,
uma vez que não tinha que justificar o que afirmava desconhecer.
No plano econômico, a ditadura desestruturou os dois pilares da economia política
peronista: o desenvolvimento industrial e a classe operária. A regulação estatal que
protegia a indústria frente à exportação agropecuária e ao capital financeiro foi
desmantelada em favor destes últimos, e seu peso na economia declinou desde então. Ao
mesmo tempo, a combinação entre reformas estatais e repressão devastou a resistência
operária.
Há quem defenda que a meta fundamental do regime foi antes política do que econômica,
induzindo uma mudança nas relações de poder destinada a ter efeitos estruturais sobre a
morfologia social: a ditadura se afirmou contra uma classe operária "indisciplinada",
assim como contra um empresariado "ineficiente". Em função deste objetivo, o regime
misturou receitas neoliberais, conservadoras e desenvolvimentistas (Novaro &
Palermo, 2007, p. 56, p. 79). Porém, o sentido geral do movimento foi determinado pela
reforma financeira de 1977, aprofundada em 1979, quando se adotou um enfoque
monetário à balança de pagamentos, invertendo a subordinação do sistema financeiro à
economia real prevalente até então (Basualdo, 2009, p. 329).
A abertura do mercado de bens e de capitais elevou desequilíbrios comerciais e
financeiros, resolvidos com crescente endividamento, até que o país sucumbiu a uma
crise similar à chilena no começo dos anos 1980. No caso argentino, a ditadura pretendeu
contornar os problemas com uma saída política, e atacou as Ilhas Malvinas, ocupadas
pelos ingleses desde 1833. Planejava-se um triunfo nacional que sustentaria a
candidatura do general Leopoldo Galtieri, pavimentando um retorno às eleições que
coroaria a gestão militar.
De fato, a questão das Malvinas é uma injustiça reconhecida pela ONU ao menos desde
1965, e que mobiliza o nacionalismo argentino como nenhuma outra bandeira. O saldo da
campanha, porém, foi desastroso. A primeira-ministra britânica Margaret Thatcher
também enfrentava um momento doméstico crítico e agarrou esta oportunidade para se
fazer popular, engendrando um massivo contra-ataque inglês. Ao presumir o apoio dos
Estados Unidos por assessorarem a contrainsurgência na América Central, os militares
argentinos revelaram profunda ignorância sobre as relações internacionais
contemporâneas. A efêmera popularidade da aventura se esfumou com a derrota e as
muitas vidas perdidas, precipitando o fim do regime.
O balanço socioeconômico da ditadura é desalentador. Em 1982, o PIB per capita era
15% menor do que em 1975; o PIB industrial decrescera 25% desde 1970; os salários
reais caíram 40% e a participação do salário no PIB decaiu de 45% em 1974 para 34% em
1983. Estima-se que o gasto social encolheu pela metade (Novarro & Palermo, 2007). A
convergência entre a brutalidade da repressão, o desastre das Malvinas e o fracasso
econômico desmoralizou os militares e o próprio regime, que poucos defenderiam em
um momento posterior. A ditadura argentina foi a primeira no Cone Sul a deixar o
poder, e os militares sofreram pressões por justiça e reparação incomparáveis no
continente.

A despeito destas particularidades, a transição argentina também envolveu negociações


entre a dirigência civil e militar da ditadura e as lideranças políticas da oposição, que
aceitaram descartar o recurso à mobilização popular. Nas eleições que seguiram, o
peronismo foi derrotado nas urnas pela primeira vez. Venceu o radical Raúl Alfonsín,
identificado com a centro-esquerda e com a defesa dos direitos humanos. Do ponto de
vista da ordem, sua principal tarefa no governo, entre 1983 e 1989, foi recompor o
sistema político, recolocando a Argentina nos trilhos da normalidade burguesa.
A ousadia com que inicialmente enfrentou os militares cedeu à moderação — e logo
resultou em capitulação, expressa na Lei de Ponto Final e na Lei de Obediência Devida,
que, como seus nomes descrevem, objetivavam encerrar o debate sobre a reparação
das violações cometidas pela ditadura absolvendo quem cumpriu ordens. A mesma
dinâmica foi constatada no plano econômico, em que um ensaio desenvolvimentista
desaguou na submissão ao FMI e em ajustes para pagar a dívida. Premido entre a
expectativa de mudança alimentada por ele e o conservadorismo que endossou, entre a
desilusão civil e o revanchismo militar, entre o peronismo e os carapintadas, entre o FMI e
a hiperinflação, Alfonsín renunciou antes de terminar o mandato, e os peronistas
retornaram à Casa Rosada.

Em 1989, quando Carlos Menem assumiu a presidência, a inflação beirava os 5.000%. A


"revolução produtiva" que prometeu em campanha, mas não foi cumprida,
transformou-se em um programa de ajuste estrutural radical, consolidando a trilha
neoliberal inaugurada pela ditadura. Se os militares colocaram o país na via da
desindustrialização, o "menemato" aprofundou a desnacionalização. Visto em seu
conjunto, este movimento corroeu as bases da nação, resultando na degradação do
tecido social argentino e no empobrecimento da população.
Como em outras situações sul-americanas, a drástica redução da inflação concedeu
lastro popular para implementar o receituário do ajuste estrutural. Com o apoio da
totalidade de justicialistas e radicais, o Congresso concedeu poder ao Executivo para
decretar a Lei de Emergência Econômica e a subsequente Lei de Reforma do Estado.
"Diminuir o Estado para engrandecer a nação" foi o mote da reforma que privatizou
telecomunicações, aviação comercial (Aerolíneas Argentinas), eletricidade, sistema
previdenciário, transporte e distribuição de gás, linhas de metrô, um terço da rede
rodoviária, portos, ferrovias, aeroportos, imóveis, siderúrgicas, petróleo e gás —
Yacimientos Petrolíferos Fiscales (YPF) —, empresas petroquímicas, empresas sanitárias,
hipódromo, correios, centrais nucleares, entre outros. O processo de privatização
implicou o maior resgate da dívida externa da região, uma vez que o Estado aceitou
títulos da dívida como pagamento, que responderam por cerca de um terço do valor
arrecadado (Azpiazu & Basualdo, 2002, p. 24; Cano, 1999).

Na esfera monetária, o ministro Domingo Cavallo executou em 1991 um plano de


convertibilidade que, na prática, dolarizou a economia argentina. As "relações carnais
com os Estados Unidos" emuladas pelo chanceler Guido di Tella foram levadas ao
paroxismo. Somadas à abertura comercial e à liberalização de parte significativa da
produção de bens e provisão de serviços, o curso seguido conteve a inflação
exponenciando a dependência de fluxos de capital estrangeiro.
Como no caso brasileiro, esta política desequilibrou a balança comercial. O superávit de
4,6 bilhões de dólares registrado em 1990 se transformou em um déficit de 12,2
bilhões de dólares em 1998, rombo coberto pelo ingresso de capital estrangeiro — o
que, por sua vez, repercutiu na dívida externa, que dobrou no período (Cano, 1999, pp.
140-2). Esta arquitetura parou em pé enquanto as privatizações engrossaram os fluxos
de capital externo, facilitados pelo aumento da oferta de crédito internacional e pela alta
conjuntural nos preços de exportação (Kosacoff, 2010, p. 29). Porém, quando estes
aspectos favoráveis se dissiparam, o país se deparou com uma crise monumental,
dispondo de escassos meios para enfrentá-la. No final do segundo mandato de
Menem, em 1999, o país mergulhou na recessão.
Seu sucessor, Fernando de la Rúa, manteve o compromisso com a convertibilidade, o
que vetava a possibilidade de manejar a moeda para mitigar os crescentes déficits
comerciais. A situação se agravava pela fuga de capitais, em um país onde os ricos
poupavam em dólares guardados no exterior, contribuindo para a escassez de divisas em
um Estado que se endividara em dólar. Esta engrenagem constrangeu o governo a
sucessivas renegociações da dívida para acessar novos créditos, às expensas de medidas
antipopulares que sugavam recursos do Estado e da economia em geral para remunerar
os credores. A situação chegou a um ponto crítico em novembro de 2001, quando
acelerou-se a fuga de capitais, desencadeando uma corrida aos bancos. Então, o ex-
ministro da Economia do menemato, de volta ao posto, decretou o congelamento dos
depósitos bancários, em uma medida que ficou conhecida como corralito.

O que acontecia no mundo do trabalho argentino neste contexto? O desemprego, que


apresentava níveis elevados em 1998 (14,8%), saltou para 22,5% em 2001, enquanto
48% da força de trabalho estava na informalidade. A pobreza mais do que dobrou no
período, pulando de 25,9% para 52%, até atingir 57,5% da população em 2002 — ano em
que se registrou uma queda de 11% no PIB. Nestes cinco anos, o PIB foi reduzido em um
quinto, enquanto a produção de bens industriais em relação ao conjunto da economia caiu
135% entre 1995 e 2001. A participação do trabalho no PIB também decresceu, até
atingir o nível mais baixo da história argentina, em 2005, quando ficou em 20% (Basualdo,
2009, p. 355; El Descamisado, 2015). Mais além das estatísticas, a pobreza e a fome
assombraram multidões em um país com escassa experiência destes fenômenos no
século XX. Há numerosos testemunhos de escolas que se transformaram em comedores
populares, onde mulheres se associavam para alimentar as crianças do bairro (Isacovich,
2017; Movimiento Territorial Liberácion, 2017; MOI, 2017). Desempregados
engrossaram as filas dos movimentos piqueteros, que, afastados da produção,
cortavam a circulação de mercadorias bloqueando ruas e estradas. Por outro lado, a
classe média se proletarizou, enquanto servidores públicos e pensionistas sofreram
cortes em seus rendimentos para contemplar as exigências do FMI. Adicionalmente,
servidores eram pagos com títulos públicos, como os famosos patacones, 33 redundando
em ulterior redução salarial e confusão monetária. Ainda assim, o FMI anunciou, em
dezembro de 2001, que não socorreria mais o país, já que os compromissos assumidos
pelo governo estavam sendo cumpridos de forma insuficiente.

Neste cenário, o corralito provocou forte reação também entre a classe média, pois
compreendeu-se que a convertibilidade naufragava, prenunciando a desvalorização das
poupanças bloqueadas. Uma onda de mobilizações, saques e greves sacudiu o país. De
modo inédito, piqueteros eram bem recebidos pela classe média que batia panelas,
ambos exigindo que se vayan todos, ou "fora todos". O presidente Fernando de la Rúa
enfrentou a situação decretando estado de sítio, medida que teve o efeito oposto e
incendiou o protesto popular. A repressão às jornadas de dezembro cobrou 39 mortos,
o presidente renunciou e escapou do palácio presidencial de helicóptero, enquanto
quatro sucessores tombaram sob a fúria popular na semana seguinte.
Naqueles dias, a Argentina experienciou níveis inéditos de mobilização popular, que
caracterizam uma conjuntura revolucionária. Centenas de assembleias de bairro
realizavam-se cotidianamente em todo o país, com adesão massiva. Nestas reuniões de
iniciativa popular discutiam-se os problemas da nação e encaminhavam-se ações
concretas. Na capital, representantes dos assembleístas se reuniam aos domingos no
Parque Centenário na tentativa de articular ações conjuntas. Organizações da esquerda
argentina se somaram ao processo, mas não os lideraram. Pode-se argumentar que esta
foi uma força do movimento, que transcendeu amarras burocráticas, disputas interstícias
e cálculos mesquinhos. Tal característica, porém, também foi sua fraqueza, uma vez
que a ausência de direção dificultou sua organicidade.
As manobras sucessivas para restabelecer a ordem resultaram em um arranjo
parlamentar que conduziu à presidência o peronista Eduardo Duhalde, ex-vice de
Menem, incumbido de completar o mandato do presidente deposto. Embora concebido
como um governo tampão, houve neste período ao menos três acontecimentos
determinantes para os rumos do país. Em primeiro lugar, foi decretada a moratória da
dívida, dando início a um processo de renegociação que seria mantido pelo governo
seguinte. Em janeiro de 2002, a convertibilidade foi abolida, o que implicou em uma
depreciação significativa da moeda argentina.
Estas duas medidas foram fundamentais para o crescimento econômico que veio em
seguida, uma vez que a desvalorização do peso favoreceu a produção nacional e as
exportações, enquanto a moratória disponibilizou vultuosos fundos públicos para
outros fins que não o serviço da dívida. Neste contexto, dois milhões de Plan Jefes y
Jefas de Hogar Desocupados - Programa do governo argentino de transição que
distribuía benefícios assistenciais, seguindo a normativa de um “direito
familiar à inclusão social” - foram distribuídos para mitigar o desemprego e a pobreza,
respondendo a uma demanda piquetera (Gambina, 2017; Sartelli, 2007).
O terceiro elemento determinante foi de natureza política. O assassinato de dois jovens
militantes — Maximiliano Kosteki e Darío Santillán — em junho de 2002 durante uma
manifestação nas proximidades da ponte Pueyrredón, em Avellaneda, cidade da província
de Buenos Aires, foi um ponto de inflexão na extraordinária mobilização popular
argentina. A comoção determinou a antecipação das eleições presidenciais, nas quais
Duhalde desistiu de concorrer no segundo pleito para apoiar seu correligionário Néstor
Kirchner.
Entre a repressão e a desordem, intensificaram-se as pressões de cima e de baixo pela
volta à normalidade, traduzida como a ordem burguesa.
Novamente, o peronismo cumpriria este papel.

III. Governos Kirchner


Próspero advogado e ex-governador da remota província petrolífera de Santa Cruz, no
sul da Argentina, Néstor Kirchner teve uma carreira política convencional nas fileiras
do peronismo. Apoiado por Duhalde em 2003, ele enfrentou, nas eleições
presidenciais, outros dois candidatos peronistas, incluindo o veterano Carlos Menem,
que venceu o primeiro turno. No entanto, Menem retirou-se do pleito na segunda
rodada, legando ao país um líder que recebeu apenas 22% dos votos.
A modesta legitimidade inicial de Kirchner cresceu nos anos seguintes, e sua esposa,
Cristina, tornou-se presidenta duas vezes com uma crescente adesão eleitoral: 45% dos
votos em 2007 e 54% em 2011. Durante os doze anos em que estiveram no comando do
país, os Kirchner mobilizaram uma retórica que tinha raízes no peronismo histórico,
mas que, aos poucos, ganhou vida própria. O "kirchnerismo" renovou seu impulso
político após a morte de Néstor em 2010, intensificando-se durante o segundo
mandato de Cristina. No entanto, a tentativa de buscar um terceiro mandato consecutivo
falhou, e os Kirchner foram derrotados nas urnas em 2015, desde então circulam o
slogan "Volveremos" [Voltaremos], com uma óbvia ressonância peronista.
Mas qual é o fundamento material dessa referência ao peronismo, associada à
industrialização nacional, à integração dos trabalhadores e à soberania? A
interpretação dos governos Kirchner é motivo de disputa. Alguns argumentam que o
Argentinazo de 2001 foi uma virada histórica que mudou o padrão de acumulação em
uma direção nacional-desenvolvimentista ou neodesenvolvimentista, conforme buscado
pelo governo (Basualdo, 2009; Varesi, 2012; Schincariol, 2013). Outros enfatizam
aspectos conjunturais que permitiram uma recuperação parcial da economia, mantendo
as continuidades estruturais que não foram enfrentadas (Gambina, 2017; Gallo Mendoza,
2017).
Essa disputa tem consequências políticas, uma vez que a atitude em relação ao governo
dividiu movimentos populares, sindicatos e a intelectualidade progressista. A divisão da
esquerda argentina não é nova, mas foi aprofundada pelo kirchnerismo, especialmente
quando tentou monopolizar a identidade progressista nos últimos anos. Embora os
governos Kirchner compartilhem semelhanças formais com as administrações
petistas, eles enfrentaram conflitos que seus colegas brasileiros nunca consideraram:
a renegociação da dívida externa, que resultou em um certo isolamento das finanças
internacionais; a revogação de leis que absolviam os militares, que voltaram a ser
julgados e presos por crimes da ditadura; a proposta de uma lei de meios de
comunicação, que desafiou o Clarín, o maior grupo de mídia do país; e a tentativa de
aumentar os impostos sobre a soja, desencadeando uma revolta no setor
agroindustrial. Além disso, privatizações foram revertidas, houve mudanças na
Suprema Corte de Justiça, o casamento igualitário foi aprovado, a Argentina foi o
primeiro país na região a fazê-lo, e a televisão passou a transmitir gratuitamente todos
os jogos do campeonato argentino de futebol, considerado patrimônio cultural do país.
No entanto, o mesmo governo continuou a participar das reuniões do FMI, promulgou
uma lei antiterrorismo modelada pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos,
difamou e reprimiu dissidentes, congelou as licenças de meios de comunicação
comunitários, não implementou uma reforma tributária e não conseguiu reduzir a
desigualdade, que permaneceu inalterada, enquanto a concentração e
desnacionalização da economia se acentuaram.

Eleito em meio a uma conjuntura revolucionária, o caráter dos governos Kirchner está
relacionado à extensão e aos limites da rebelião que o precedeu. Do ponto de vista da
ordem, o peronismo ressurgiu como uma ferramenta eficaz para retirar a política das ruas
e restaurá-la às instituições. Além disso, o Argentinazo colocou um fim ao caráter
impopular da política imposta desde a ditadura e consolidada pelo terrorismo de Estado,
abalando o neoliberalismo como ideologia incontestada no país (Sartelli, 2007, p. 171).
Nesse cenário, o kirchnerismo pode ser visto como o denominador comum mínimo
possível entre a fúria popular e as demandas da ordem.

A margem de manobra dos Kirchner foi condicionada pela dinâmica econômica.


Inicialmente, o rápido crescimento econômico popularizou a gestão de Néstor. No
período seguinte, de 2007 a 2013, houve oscilações que se anularam. Neste contexto,
as pressões fiscais levaram Cristina a adotar medidas controversas, que fizeram com
que ela perdesse apoio em setores da burguesia e da classe média, ao mesmo tempo em
que ganhava apoio de outros segmentos da classe média e das camadas populares. A
partir de 2014, a economia argentina entrou em uma fase de estagnação, que persistiu
nos primeiros anos da administração de Mauricio Macri.
A retomada do crescimento econômico ocorreu antes da eleição de Néstor Kirchner. Isso
se deveu à combinação da desvalorização do peso, à moratória da dívida e ao boom das
commodities, que sustentou a prosperidade que impulsionou a popularidade de seu
governo. A moratória da dívida, ocorrida em 2002, desempenhou um papel
fundamental na restauração da capacidade financeira do Estado. Naquele ano, as
despesas com juros caíram significativamente, diminuindo de 12 bilhões de dólares em
2001 para 3,5 bilhões de dólares no ano seguinte (Gambina, 2017).
No entanto, nem toda a dívida foi cancelada. Dos 140 bilhões de dólares que o país devia,
40 bilhões ainda estavam sujeitos a pagamento junto a organismos financeiros
internacionais. O restante da dívida foi reestruturado pelo governo Kirchner, seguindo
os padrões do sistema financeiro internacional. A negociação, concluída em maio de
2005, pode ser considerada um sucesso nesse sentido, uma vez que resultou em um
desconto de 75%, embora, na prática, tenha sido reduzido para uma faixa de 15% a 20%.
No entanto, as tentativas de classificar os empréstimos negociados durante a ditadura
como "dívida odiosa", o que os tornaria ilegítimos, semelhante ao que ocorreu no caso
iraquiano após a queda de Saddam Hussein, não tiveram sucesso (El Descamisado, 2015).
Os credores que não aceitaram os termos da troca de títulos oferecida por Néstor tiveram
uma segunda oportunidade em 2010, durante o governo de Cristina. Cerca de 7,5%
desses credores recusaram a oferta, formando um grupo conhecido como "fundos
abutres". A disputa com esses credores impediu que os governos Kirchner tivessem
acesso aos mercados financeiros internacionais e, em vez disso, buscaram empréstimos
da Venezuela inicialmente e, mais tarde, da China.

A segunda medida importante que precedeu o governo de Néstor Kirchner foi o fim da
política de "convertibilidade" da moeda. Isso resultou em um aumento nos preços e na
quebra do sistema de contratos (Kosacoff, 2010, p. 33). Entretanto, nos anos seguintes, a
competitividade da indústria local aumentou, e as importações se tornaram mais caras, o
que impulsionou a recuperação da indústria e se somou ao aumento das exportações
de commodities para tirar o país da recessão. Entre 2002 e 2007, a indústria cresceu
73,5%, e o PIB aumentou mais de 50%, com uma média anual de 8,5%. Os níveis de
emprego subiram, a pobreza diminuiu e o consumo aumentou. A parcela da população
vivendo abaixo da linha de pobreza, que havia atingido 52% durante a crise, caiu para
20,6% em 2007. Líderes populares recordam que, entre 2005 e 2006, os refeitórios
populares deixaram de ser necessários e as escolas voltaram a funcionar apenas como
instituições de ensino (Movimiento Territorial Liberácion, 2017).

A retórica do kirchnerismo, que promovia a reconstrução de um capitalismo nacional,


encontrou sustentação nesse processo. Em oposição à especulação exacerbada pelo
capital estrangeiro durante a presidência de Menem, que levou o país à ruína, o
presidente Kirchner defendeu um "capitalismo en serio", com regras claras, onde o
Estado desempenharia um papel inteligente na regulação, no controle e na correção
das falhas do mercado, buscando equilibrar a sociedade para garantir o funcionamento
normal do país (Kirchner, 2003).

Apesar disso, o modesto aumento da participação da indústria no PIB ao longo dos


governos Kirchner não atingiu as ambições do projeto original. Os dados mostram que a
participação da indústria no PIB aumentou de 14% para 17% durante esse período,
voltando ao nível de 1994, mas ainda abaixo dos 25% registrados em 1973 (Basualdo,
2009, p. 337). A indústria não conseguiu recuperar a centralidade produtiva dos anos
anteriores à ditadura e não houve uma estratégia de desenvolvimento produtivo em
geral, ou industrial em particular (Schorr & Azpiazu, 2015, p. 101).
Essa dinâmica semelhante também se aplica ao mundo do trabalho. A recuperação
econômica e do emprego permitiu ao sindicalismo recuperar certa relevância, facilitada
pela ampliação dos acordos coletivos de trabalho apoiados pelo governo. Inicialmente,
essa abordagem também envolveu considerações políticas, visando enfraquecer o
movimento piquetero. No entanto, o aumento da produtividade do trabalho durante o
governo de Néstor não se refletiu em aumentos salariais proporcionais, indicando um
aumento na exploração dos trabalhadores (Schorr & Azpiazu, 2015, p. 102).
Mais significativo do ponto de vista da centralidade do trabalho são relatos de pessoas
que optam por trabalhar sem registro para continuar recebendo o auxílio
governamental de cerca de 4 mil pesos, em vez do salário mínimo que chegou a 9 mil
pesos em 2017. Um exemplo é o de uma militante que trabalha como doméstica e
escolheu não ser registrada pelo empregador, pois prefere combinar a renda das tarefas
domésticas com a "Asignación Universal Por Hijo" - Implementada em 2009 pelo
governo Cristina Kirchner, é fornecida a um dos pais por cada filho com menos de 18 anos
(não há limite de idade se o filho tiver alguma deficiência) a famílias que não possuem
cobertura social e estão em situação de vulnerabilidade — desemprego, por exemplo.
[N.E.] e a remuneração de uma cooperativa da qual faz parte (MTL, 2017). Isso reflete a
ascensão da "Confederación de Trabajadores de la Economia Popular" (CTEP), um dos
principais movimentos populares no final do governo de Cristina, do qual se afastou. A
CTEP parte do diagnóstico de que, mesmo com o crescimento econômico, não haverá
empregos para todos, uma situação considerada permanente. Eles se veem como os
excluídos da economia de mercado e se referem aos desempregados como
"trabalhadores da economia popular" (Gringo, 2017). Diante desse cenário, a agenda
da CTEP inclui modalidades de renda básica semelhantes às que os piqueteros
reivindicaram e conquistaram durante a crise de 2001. Até mesmo uma dirigente
sindical opina que, na Argentina atual, "a nova fábrica é o bairro" (Central de Trabajadores
de Argentina Autónoma, 2017).

Em resumo, ao analisar o perfil da economia e das relações de trabalho durante os


governos Kirchner, observa-se que o padrão de acumulação originado pelas reformas
implementadas durante a ditadura continuou a persistir, apesar das melhorias em
comparação com a crise mais grave que o país enfrentou. A outra face desse cenário,
que envolve a marginalização da indústria e a degradação do trabalho, é o
aprofundamento do "perfil de especialização internacional regressivo". Sob o governo
Kirchner, o motor da economia argentina foi a exportação de produtos primários,
especialmente soja, acompanhada pelo setor de hidrocarbonetos e por um crescimento
sem precedentes na exploração de minerais.

Assim como em outros países da região, o cultivo de soja na Argentina cresceu


exponencialmente após a introdução de variedades transgênicas em 1996. Em 2002, a
área de plantio atingiu seu limite e, a partir desse ponto, a expansão envolveu a
apropriação de terras já ocupadas, resultando em conflitos. Enquanto o cultivo de soja
ganhava destaque, a produção de bens industriais em relação à economia geral diminuiu
135% entre 1995 e 2001 (Basualdo, 2009, p. 355). No início do século XXI, o fim da
"convertibilidade" tornou as commodities argentinas mais competitivas no mercado
internacional, e os preços mais altos impulsionaram ainda mais a expansão desse
setor. No final do governo Kirchner, o agronegócio ocupava 22 milhões de hectares dos
33 milhões de hectares cultiváveis no país, dos quais 90% eram dedicados ao cultivo de
soja. Nesse momento, a soja e seus derivados representavam cerca de um terço das
exportações argentinas (Palmisano, 2017; Petz, 2017).
Além da especialização regressiva, o processo produtivo relacionado à soja transgênica
implica um sistema cultural, social, técnico e econômico que transformou a paisagem
rural argentina. O domínio desse sistema produtivo, que foi descrito como "agricultura
extrativista" ou "agricultura sem agricultores", resultou em uma significativa perda de
diversidade econômica, social e ecológica, transformando o país em um "laboratório
onde se experimenta a eliminação da vida rural" (Grupo de Reflexión Rural; Lewkowicz,
2003, p. 40). O compromisso de Cristina Kirchner com esse modelo foi reafirmado em
2010 no "Plan Estratégico Agroalimentario 2020", que previa um aumento de 60% nas
exportações de grãos transgênicos, principalmente soja e milho.

Paralelamente, a expansão da mineração intensificou a pressão sobre o meio ambiente


e as comunidades rurais. A mineração não possui uma tradição histórica na Argentina,
mas o avanço tecnológico e os altos preços internacionais dos minerais incentivaram o
investimento internacional nas últimas duas décadas. A primeira mina a céu aberto na
Argentina entrou em operação em 1997, e os governos Kirchner promoveram uma
política de exploração de ouro, prata e cobre, entre outros minerais. No início do século
XXI, o setor cresceu impressionantes 20.000% em dez anos, resultando em inúmeros
conflitos socioambientais. Até 2017, a resistência popular levou à expulsão de seis
empresas multinacionais de mineração do país, provavelmente um recorde mundial
(Varesi, 2012, p. 152; Palmisano, 2017).
A Argentina detém a segunda maior reserva de gás de xisto e a quarta maior reserva de
petróleo não convencional no mundo. A nacionalização parcial da "YPF", a maior
empresa do país, em 2012, parece estar relacionada a essa indústria. A empresa havia
sido privatizada durante o governo de Menem e estava sob controle da empresa
espanhola Repsol desde 1999. Os lucros substanciais obtidos pela Repsol nas operações
argentinas financiaram sua expansão na América Latina e na África, com pouco
reinvestimento no país. Essa situação levou a Argentina a deixar de ser autossuficiente
em petróleo, com a queda das reservas e o aumento dos gastos com importação. Em
2011, a Argentina importou mais gás e petróleo do que produziu, o que era inédito desde
a privatização. No ano seguinte, o Estado assumiu o controle de 51% da empresa, dividido
entre as províncias e o governo federal, indenizando a Repsol com 5 bilhões de dólares.
Imediatamente após a nacionalização, a YPF assinou um acordo confidencial com a
Chevron (antiga Standard Oil, associada à família Rockfeller), abrindo caminho para a
exploração de hidrocarbonetos não convencionais no país, com o apoio dos Estados
Unidos. Especula-se que o acordo teria sido muito impopular se tivesse sido feito com a
Repsol (Marcos, 2017). Desde então, atividades como o fracking têm crescido na
Argentina.
Embora o surto industrial não tenha alterado significativamente as estruturas
produtivas, as nacionalizações também não representaram uma reorientação
significativa do papel do Estado no país. As estatizações se concentraram em
empresas com problemas financeiros, como a "Aerolíneas Argentinas", os correios, a
empresa de abastecimento de água e a própria YPF. Enquanto isso, empresas mais
lucrativas, como as empresas de telecomunicações e de energia, permaneceram sob
controle privado e continuaram a receber subsídios substanciais do Estado, embora
esses subsídios tenham sido parcialmente reduzidos durante o governo de Macri.

IV. Cristina Kirchner


Quando Cristina Kirchner foi eleita em 2007, a expansão econômica que beneficiou o
governo anterior estava desacelerando, ao mesmo tempo em que as pressões
inflacionárias estavam aumentando. Após três anos de carência, o país retomou, em
2008, o pagamento da dívida renegociada em 2005 e, até o final desse ano, já
apresentava um déficit fiscal considerável.

O governo reagiu de forma diversa e controversa a esse novo cenário. Por um lado,
intensificou os gastos sociais para sustentar os níveis de emprego e renda, como
exemplificado pelo programa de renda básica "Asignación Universal Por Hijo", que, por
sua vez, agravou os problemas fiscais. Em resposta, o governo procurou aumentar
suas receitas, mas sem implementar uma reforma tributária abrangente. Medidas como
o aumento das retenções sobre exportações e a estatização do sistema previdenciário
se inseriram nesse contexto. Outra ação controversa, especialmente entre os setores de
esquerda, foi a intervenção no Instituto Nacional de Estatística y Censos (Indec), que
minou a integridade das estatísticas oficiais do país.

Um marco significativo no governo de Cristina foi a tentativa de estabelecer um


sistema móvel de tributação para a exportação de produtos agrícolas, com o objetivo
de taxar os superlucros em momentos de altos preços. Embora essa medida não fosse
inédita na história argentina, o aumento proposto na alíquota, de 35% para 44%, foi
relativamente elevado (Palmisano, 2017). Essa proposta provocou uma forte reação do
setor agroexportador argentino, levando a uma ampla mobilização que incluiu grandes e
pequenos proprietários agrícolas e resultou em bloqueios de estradas, protestos e
marchas. O tema dividiu o país, mas o debate se concentrou principalmente na dimensão
distributiva, raramente questionando o padrão de exportação primária. No final, o projeto
foi aprovado no Congresso, embora tenha empacado no Senado devido ao voto de
minerva do vice-presidente da República, Julio Cobos, que se alinhou com os interesses
dos ruralistas, derrotando o governo.
Esse conflito e a derrota tiveram um impacto duradouro no governo. A perda de aliados
dentro da classe dominante levou o kirchnerismo a buscar apoio em outros segmentos
da sociedade. Para fazer isso, intensificou a retórica de confronto e recorreu a temas
peronistas para consolidar uma identidade entre o governo e o interesse nacional em
contraposição aos seus opositores.
A controvérsia em torno da lei de meios de comunicação aprovada em 2009 também
está relacionada a esse contexto. As relações até então amigáveis com o Grupo Clarín, o
maior conglomerado de mídia do país, azedaram durante o conflito com o agronegócio,
que tinha o apoio da grande mídia. Em retaliação, o governo aprovou uma lei que limitava
a concentração de concessões de rádio e televisão, afetando diretamente o Grupo
Clarín. O Clarín respondeu com ações judiciais que limitaram a aplicação da lei e com uma
cobertura jornalística hostil aos proponentes da lei até o final do mandato de Cristina.
Recentemente, o governo Macri trabalhou para enfraquecer os aspectos mais
democráticos da lei.
Após o conflito com o agronegócio, o governo implementou duas iniciativas importantes:
a estatização do sistema previdenciário (Administradora de Fondos de Jubilaciones y
Pensiones - AJFP), que não gerou protestos dos bancos, e a implementação da
"Asignación Universal Por Hijo", uma modalidade argentina do programa Bolsa Família,
no ano seguinte. De certa forma, essas medidas eram complementares, uma vez que a
estatização forneceu ao Estado receitas previdenciárias que foram usadas para pagar
despesas correntes, incluindo programas sociais, em um contexto de aperto fiscal (Katz,
2014, p. 234).

Na realidade, a situação econômica do país estava se deteriorando. A política de mitigar


os efeitos sociais da desaceleração econômica, por meio do aumento do gasto público,
que já estava sob pressão devido às subvenções aos serviços herdadas da crise de 2001,
resultou em pressões inflacionárias e em um déficit fiscal crescente. Nesse contexto, a
intervenção do governo no Instituto Nacional de Estatística y Censos (Indec) foi vista
como uma manobra para mascarar a crescente inflação e impor uma espécie de
"imposto inflacionário", que reduziria os gastos com serviço da dívida, mas também
afetaria as economias das pessoas (Altamira, 2009, p. 130). Desde então, as estatísticas
argentinas perderam a confiabilidade e os problemas econômicos se agravaram.

Conforme mencionado anteriormente, a tentativa de aumentar as retenções sobre a soja


estava relacionada a esse contexto, e o fracasso dessa medida também teve
consequências políticas, levando o governo a intensificar o conflito com a oposição como
estratégia para fortalecer a autoridade presidencial. Isso coincidiu com a morte de
Néstor Kirchner, em 2010, que abriu caminho para o que foi descrito como um
"populismo de alta intensidade" (Svampa, 2017, p. 216), destacando a reivindicação do
Estado como construtor da nação, a política como uma contradição constante entre dois
blocos antagônicos e a centralidade do líder.

Inicialmente, a liderança de Cristina se fortaleceu nesse processo, e ela venceu as


eleições presidenciais no ano seguinte com a maior votação já registrada para os
Kirchner até então. Diferentemente do peronismo tradicional, Cristina cultivou os
setores médios como sua principal base de apoio, o que foi descrito como um
"populismo de classe média" (Svampa, 2017, p. 232). Em 2012, Hugo Moyano, líder da
Confederação Geral do Trabalho (CGT), rompeu com o kirchnerismo, privando o governo
de seu principal apoio no movimento trabalhista, que então se limitou à facção da
Central de Trabalhadores da Argentina (CTA) composta por funcionários públicos e
professores. A CTA, que havia se originado como uma cisão da CGT alinhada com o
menemismo, também se dividiu entre uma ala leal e outra crítica ao kirchnerismo, uma
divisão que se repetiu em muitos movimentos populares. No entanto, a principal
vulnerabilidade do governo era a situação econômica, que se deteriorou
significativamente. As oscilações que marcaram o primeiro mandato de Cristina deram
lugar à estagnação a partir de 2014. A combinação de inflação, aumento do
desemprego no setor privado, compensado parcialmente com empregos públicos, e
problemas fiscais e econômicos agravados pela fuga de capitais e pelo isolamento
financeiro do país minaram a popularidade do kirchnerismo.

Nesse contexto, o governo se empenhou em reintegrar o país aos mercados financeiros


internacionais. Isso incluiu o pagamento da dívida com o Clube de Paris e a aprovação de
uma Lei de Pago Soberano, destinada a melhorar a negociação com os chamados "fundos
abutres". O preâmbulo dessa lei enfatizava a disciplina financeira do país, destacando que
a Argentina havia pago 190 bilhões de dólares entre 2005 e 2013, contrariando o
discurso de que o país havia se desendividado. No entanto, o acesso a novas linhas de
crédito só se consolidaria sob o governo de Macri, que rapidamente resolveu as
pendências em favor dos fundos abutres, levando o país a retomar o endividamento a um
ritmo acelerado. Essa situação, na qual o governo não rompeu com as finanças
internacionais nem reconquistou a confiança do mercado, ilustra os desafios enfrentados
pelo país.
O kirchnerismo chegou às eleições de 2015 parcialmente desacreditado por uma série
de motivos, incluindo a insatisfação da classe média com a inflação e os escândalos de
corrupção, a pressão do empresariado por um fim ao populismo e a recuperação da
confiança dos mercados, os efeitos da crise que o povo sentia e a intolerância ao
dissenso, além das contradições do governo. No entanto, o kirchnerismo ainda mantinha
algum grau de popularidade em todos esses setores, graças às realizações do governo
na recuperação da sociedade argentina após a crise. A classe média havia recuperado seu
poder econômico, o capitalismo havia retomado o crescimento, o povo tinha acesso a
comida e empregos, e a esquerda tinha obtido conquistas concretas, como o julgamento e
condenação de membros das Forças Armadas por crimes de lesa-humanidade.

Esse cenário indicava que as eleições seriam disputadas, com qualquer um dos
principais candidatos tendo a chance de vencer, o que acabou acontecendo. A tentativa de
reformar a Constituição para permitir que Cristina disputasse uma segunda reeleição foi
abortada devido à derrota do governo nas eleições parlamentares de 2013. As disputas
internas dentro do campo governista levaram à candidatura de Daniel Scioli, um
representante da direita peronista que se destacou na política durante a presidência de
Menem nos anos 1990. O apoio ao kirchnerismo entre a esquerda tornou-se mais
complicado, mas não impossível.
A oposição se uniu em torno da candidatura de Mauricio Macri, que não era afiliado nem
ao partido radical nem ao peronismo, marcando uma política crescentemente centrada
em nomes, como "Mauricio" e "Cristina", em vez da luta por projetos nacionais. - Filho de
uma família que se enriqueceu sob a ditadura, Macri ficou famoso como presidente do
Club Atlético Boca Juniors, despontando para a política nacional como prefeito de
Buenos Aires, onde exerceu dois mandatos.
Scioli venceu o primeiro turno, mas Macri saiu vitorioso no segundo turno, obtendo
pouco mais da metade dos votos. Macri se tornou o primeiro presidente eleito em cem
anos que não era filiado ao radicalismo nem ao peronismo, em uma política que cada
vez mais se concentrava na personalização da liderança. Poucos dias depois, o
bolivarianismo sofreu uma derrota significativa nas eleições parlamentares na
Venezuela, indicando que a onda progressista na América do Sul estava enfrentando
dificuldades.
Reflexões finais
No auge do extraordinário dinamismo da economia argentina na virada do século XIX
para o XX, consolidou-se um movimento operário combativo, com várias expressões
sindicais e partidárias, que pressionou pela democratização da sociedade desde então.
Por outro lado, a história do país foi atravessada pela intervenção dos militares na
política, inclusive quando a tendência era para o reformismo burguês sob a liderança
de Perón. Na trajetória pessoal do general, ele oscilou para posições antipopulares,
revelando os limites da ideologia que representava. No entanto, a penetração do
peronismo nos setores populares dotou este fenômeno político de uma longevidade
singular, transformando-se em uma ideologia multifacetada que serviu a várias
agendas, obstruindo uma política autônoma da classe trabalhadora no país.

A instabilidade política argentina entre o governo de Perón e a guerra suja estava


relacionada aos desafios da revolução burguesa no capitalismo dependente, com a qual o
peronismo estava inicialmente associado. O golpe militar de 1976 sepultou essa
possibilidade histórica e iniciou uma guinada em direção ao neoliberalismo. No entanto,
diferente do Chile, essa transição na Argentina não foi imediata, apesar dos impactos
devastadores do terrorismo de Estado sobre a resistência popular. A falta de coesão das
classes dominantes em torno desse projeto, juntamente com um Estado relativamente
mais fraco, limitou a reorientação da sociedade nessa direção.

Por outro lado, o fracasso econômico da ditadura levou o país à Guerra das Malvinas em
uma tentativa de escapar da situação precária, mas o desastre precipitou o fim do
regime. Pressionado entre as mudanças que o elegeram e as continuidades que o
sustentavam, o governo de Alfonsín não resistiu às tentativas de golpe e à hiperinflação.
Nesse cenário, o peronismo, agora sob o disfarce de "menemismo," assumiu o papel de
resolver as ambivalências presentes na política do país, implementando uma agenda
neoliberal radical que culminou na dolarização da economia. Inicialmente, com a
inflação controlada, a paridade com o dólar e o acesso a crédito e importações baratas,
o governo ganhou popularidade. No entanto, quando a conjuntura favorável
desapareceu, os crescentes déficits comercial e fiscal tornaram evidente a
insustentabilidade do modelo. A economia entrou em recessão, e os indicadores sociais
do país caíram acentuadamente. O governo subsequente rapidamente adotou a lógica do
ajuste estrutural, que só foi interrompida por uma revolta popular que ameaçou
desestabilizar a ordem vigente, mas que se limitou a derrubar alguns presidentes.
Novamente, o peronismo desempenhou um papel, acalmando a agitação nas ruas e
realinhando-a com as instituições. O governo de Néstor Kirchner foi condicionado pela
extraordinária mobilização popular, assim como por duas medidas cruciais que o
precederam: o fim da convertibilidade e o pagamento na dívida externa. O Estado
rapidamente recuperou sua capacidade fiscal, enquanto o aumento dos preços das
commodities ajudou a economia a voltar ao caminho do crescimento.
Nesse contexto, Kirchner flertou com a ideia de um capitalismo nacional, revisitando
elementos do peronismo original. No entanto, essa abordagem encontrou pouca base,
tanto objetivamente como subjetivamente, para se concretizar, embora alguns setores
empresariais tenham se aproximado do governo, lucrando no processo. No entanto, a
indústria não recuperou a posição central que já teve, nem o capital nacional. Em vez
disso, o aumento do cultivo de soja, juntamente com a exploração de minérios e
hidrocarbonetos - incluindo recursos não convencionais, como o fracking - aprofundou a
orientação primária que tem prevalecido desde a "guerra suja," ao mesmo tempo em que
agravou os conflitos socioambientais.

No campo político, alguns setores do movimento social apoiaram os governos Kirchner,


alguns porque os programas de assistência social estavam esvaziados, outros porque
militares foram presos. No entanto, aqueles que mantiveram sua autonomia enfrentaram
calúnias e repressão, e muitas vezes se dividiram.

Quando as condições econômicas favoráveis esfriaram, o governo tentou aumentar a


arrecadação sem alterar as estruturas, enquanto gastava para manter o emprego e a
renda. Essa abordagem pressionou os limites da estratégia adotada, evidenciados na
derrota que sofreu na questão das retenções, decidida pelo próprio vice-presidente.
Neste ponto, a retórica do conflito aumentou como uma tática para enfrentar novos
inimigos, fortalecer a autoridade de Cristina e intimidar a oposição de esquerda. O
kirchnerismo consolidou apoiadores, mas também aprofundou desafetos e não
conseguiu resolver os problemas econômicos. Este projeto de poder foi derrotado nas
urnas, primeiro nas eleições legislativas de 2013, que inviabilizaram a reforma
necessária para uma terceira candidatura consecutiva de Cristina, e depois na derrota
de Scioli para Macri.
No primeiro ano de governo, Macri revogou a lei de mídia, negociou com os fundos
abutres, aumentou o endividamento, cortou subsídios e demitiu funcionários com base
em critérios políticos, entre outras medidas que contrastavam com o governo anterior e
agravavam os problemas nacionais. Estima-se que o número de pessoas em situação de
pobreza aumentou em 1,5 milhão. O desemprego e a fome se tornaram ameaças nas
periferias de um país que só compreendeu a extensão do subdesenvolvimento latino-
americano no final do século XX. Por outro lado, o campo popular tem se mobilizado com
alguma unidade e relativo sucesso contra o novo governo, impondo limites à política
antipopular.

Na frente propositiva, parece necessário fazer um balanço do kirchnerismo, que


representou uma versão da utopia peronista de um reformismo burguês no século XXI.
O kirchnerismo buscou reconstruir o capitalismo argentino em torno de uma burguesia
nacional, indo além do que foi feito no Uruguai ou no Brasil, implementando medidas
concretas e enfrentando desafios genuínos, embora de forma moderada. No entanto,
não construiu uma base material sólida para superar os conflitos dentro das classes
dominantes ou para fortalecer o poder popular a fim de sustentar os avanços
pretendidos. O resultado dessa abordagem ambígua em relação a uma burguesia
nacional no século XXI revela, mais uma vez, a insuficiência e a temporariedade de
qualquer mudança que não aborde as estruturas de dependência e a desigualdade
social na América Latina. Os avanços que não foram desfeitos pela crise foram
posteriormente revertidos pelo governo Macri.
Enquanto Cristina busca voltar ao poder, aqueles que buscam uma política diferente
enfrentam o desafio de avaliar não apenas o passado recente, mas também o passado
mais distante. Um exame do kirchnerismo implica enfrentar a herança do peronismo, que
acredita no reformismo burguês e na conciliação de classes como caminho para a nação
argentina. Essa utopia tinha alguma validade nos anos do nacional-desenvolvimentismo,
quando a social-democracia parecia uma possibilidade viável no país. No entanto, desde a
guerra suja, essa ideologia perdeu sua base material. Hoje, superá-la implica confrontar o
legado da ditadura, que foi aprofundado pelo governo de Menem, porque esse é o país
moldado por essa burguesia. A solução passa por retomar a agenda inacabada dos
rebeldes de 2001: "que se vayan todos", como ponto de partida

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