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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS


CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
Disciplina: Transformações Política e Econômica na América Latina - 2018.1
Professor: Uriban Xavier.
Jaime Custódio

Bolívia no Século XXI:


sociedade abigarrada, lutas políticas e constitucionalismo pluralista.

O Século XXI na política sul-americana transformou-se. Uma série de inssurreições e


movimentos sociais transformaram o cenário do poder, e colocaram nos governos Evo Morales,
Rafael Corrêa e Hugo Chaves. Novas consituições mais plurais foram escritas e promulgados, e
novos elementos constitucionais incrmentados. Neste período não observa-se a franca luta
armada, mas prioritariamente a luta institucional. Instrumentos plebicitários, sufrágio popular e
indígena, Assembléia Consituinte.
Também identificada como a ascensão da esquerda “radical” (Castañeda, 2006; Amann, 2006),
“populista” (Panizza, 2006; Lanzaro, 2006) ou “anti-imperialista” (Yeros, 2006), a fenomenologia do
processo inclui, dentre outros, uma orientação de política externa agressiva em seus meios e propósitos;
iniciativas de nacionalização de recursos primários e de empresas multinacionais (principalmente, as do
setor de hidrocarbonetos); hostilização das potências internacionais, dos bancos multilaterais (FMI e
Banco Mundial) e, em especial, dos Estados Unidos da América; crítica incisiva ao formato liberal de
democracia representativa e às oligarquias locais; desapreço à ênfase nas chamadas liberdades
individuais e nos direitos civis; proposição de uma agenda “socialista do século XXI”, com incremento
dos gastos sociais governamentais; desafio constante ao princípio do constitucionalismo e à norma
“pacta sunt servanda”; e relações tumultuadas com os órgãos de imprensa (Belém Lopes, 2008;
Sanjuan, 2005 apud Belém Lopes, 2013).

Há uma nova espécie de Socialismo embutido nessas novas políticas, sua características
serão tratadas mais a frente. Segundo Araújo, a proposta começa a ser difundida na Venezuela
entre 2004 e 2006. Com a inserção de Chaves no poder, abrem-se as portas para uma nova
concepção política na virada do século na América Latina. Três décadas a região foi marcada
por fortes embates contra os governos, saída de ditaduras e lutas pela democracia
representativa, assim como a consequente atuação de políticas neoliberais nos anos 80 e 90.
Assim Araújo centua a política nesta transição:

As contestações à democracia representativa e ao neoliberalismo


culminaram na ascensão dos processos revolucionários boliviano, equatoriano e
venezuelano, que marcaram um novo ciclo revolucionário na América do Sul.
Diferentemente dos períodos anteriores, como entre as décadas de 1950 e
1970, nessa nova fase presenciamos o abandono da luta armada. A via
institucional foi reivindicada como o caminho mais plausível para a gênese das
revoluções, que foram marcadas pela realização das assembleias constituintes e
pelo apoio à participação popular, sob a égide da democracia participativa.
Além das transformações políticas e sociais realizadas nesses três casos, a
principal inovação para o debate acadêmico e político por eles propiciada
residiu na teorização do socialismo do século XXI, difundido inicialmente na
Venezuela a partir de 2004, em razão da radicalização da revolução bolivariana.
Posteriormente, os êxitos eleitorais de Morales e Corrêa possibilitaram que o
novo socialismo angariasse entusiastas na Bolívia e Equador.

Para entender este contexto político, há de se abrir mão da concepção iluminista da


revolução francesa, clássica, tanto quanto uma ideia de revolução russa. A ideia de um novo
socialismo, que tem expressão revolucionária dentro da esfera institucional, no caso da
América Latina, e sobretudo da Bolívia, torna-se mais complexa. Diversas vertentes de
pensamento e bandeiras políticas (ARAÚJO), tal como diversas vertentes do marxismo, o
humanismo cristão, keynesianiso, indigenismo fazem parte de uma caldeirão ideológico que
permeia este cenário político.

A Bolívia já havia vivido um viés nacionalista e de esquerda, resgatando a tradição


nacional-estatista principiada na América Latina na década de 30, tal como a reivindicação do
anti-imperialismo e a luta popular empreendida pelo socialismo cubano. As décadas de 1930 e
1940 foram limitadas por dificuldades financeiras. A quebra da bolsa de valores de Nova York
em 29 e a Segunda Guerra Mundial contribuiram para o colapso social, o que irá refrear ciclos
revolucionários tal como a Revolução Mexicana de 1910, o que porventura fomentou a
ascensão de governos nacionalistas. Em Araújo:

"Vargas, no Brasil, Perón, na Argentina, e Cárdenas, no México, tornaram-se as


principais expressões do fenômeno político latino-americano definido em nosso
trabalho por nacional-estatismo. (...)Os impactos econômicos e sociais da
crise de 1929 fizeram com que esses governos nacionalistas adotassem
discursos e programas de governo que transformaram a América Latina.
Argentina, Brasil e México foram os símbolos do processo de
industrialização direcionado ao fortalecimento do mercado interno e à
substituição dos produtos importados pelos nacionais (POZO, 2008)."

Vários governos na América Latina seguiram o New Deal de John M. Keynes, com a
política de intervencionaismo na política. Com a crisse 29 tiveram que largar a ideia de
autorregulação econômica, e buscar soluções de implementações sociais que visassem a
recuperação. A produção econômica e o pensamentos político que era voltado para a zona
externa, de atividade exportadora, passa a ser pensado "voltado para dentro", com o modelo
de substituição de importações. A região continuou a forncecer matéria-prima, mas com a ideia
de uma industrialização forte. Combinando a Indústria de Substituição de Importações com a
recuperação dos mercados externos de matérias-primas. A questão do desenvolvimento na
Bolívia como país andino‐amazônico esteve envolvida no século XX pela variável social, em
especial pela busca do equilíbrio entre as forças produtivas e as políticas regionais.

"As mudanças econômicas foram consequência da ascensão de governos


nacionalistas, como dissemos anteriormente. O repúdio ao liberalismo político-
econômico possibilitou a chegada ao poder de lideranças carismáticas que
estabeleceram contato contínuo e direto com as massas. Desse modo, além do
intervencionismo estatal na economia, assistimos à emergência de um Estado
forte, que interveio nos conflitos sociais e promoveu a legislação social
(CAPELATO, 2001)."

Alguns autores trabalham com a ideia de populismo, oriundo das condições especiais
em que um país há produção industrial plena, e desenvolvimento, combinado com a condução
da política por uma liderança carismática, paternalista, que cristaliza a vontade de uma parcela
dos trabalhadores. O período, é marcado pela intervenção do Estado na economia, e também
reformas sociais, mobilização política. Esta fase irá influenciar as décadas subsequentes.
"Assim, uma das marcas da política latino-americana no século XX é o nacionalestatismo. (...) As
ações estatais direcionadas ao crescimento econômico e à distribuição de renda também são
fundamentais nesses fenômenos (FERRERAS, 2011 apud ARAÚJO).

Nos governos de Chaves e Evo Morales se notabiliza pelas modificações significativas no


fazer político, como a ampliação democrática via referendos e plebiscitos. Aqui temos uma das
transformações políticas fundamentais entre o traço autoritário do nacional-estatismo que é
substituído por uma maior ampliação da esfera pública e participação política. Há também
espaço para a fermentação de um novo socialismo, pautado nas necessidades populares.
Idealiza a construção de um imaginário social coletivista, e com graves ataques ao
neoliberalismo. Tais transformações foram elaboradas com apoio popular e dentro da
legalidade. Não existiu ruptura brusca com o capital, mas houveram alternativas e
diversificação produtiva, tendo com enfoque a melhoria das condições de vida da população. As
constantes mobilizações nas ruas ensejaram pressão sobre as instituições e mobilizou o povo
hetrogêneo para agir político. Segundo Araújo:

"Nos discursos de Morales, identificamos que a concepção de socialismo se


associa ao comunitarismo indígena. O socialismo do bem viver é pleiteado para
possibilitar a construção de um imaginário social de solidariedade e igualdade,
marcado pelo predomínio das consignas indígenas. (...) Elementos da cultura
indígena, como solidariedade, coletividade e respeito à natureza foram
utilizados. A retórica socialista contrastou com valores do capitalismo, como o
egoísmo, o individualismo e a valorização de bens materiais. Além disso, foi
valorizado o intervencionismo estatal na economia e a representação coletiva.
Já o controle das instituições estatais pelos indígenas fez com que os valores da
sua cultura saíssem do “micro”, como as comunidades ou movimentos sociais, e
se expressassem no “macro”, por meio das instituições estatais."

Um discurso de Evo morales ilustra a posição que o autor tem do tipo de Socialismo com
caraterísticas indígenas, que pensa o espírito da terra, os costumes do seu povo, e a relação entre a vida
em comunidade e natureza. As concepções eurocêntricas, como apontadas em Gosfroguel, expressas
por uma colonialidade do poder, nunca irá levar a sério a fala essencialista ou com forte traços culturais
locais, mas sobretudo irá immplementar uma visão extrativista do mundo em que pretende dominar. A
antítese a este processo de dominação está no discurso de Morales:

(...)Quem pode, por exemplo, privatizar ou alugar a própria mãe? A terra não
pode ser vista como uma mercadoria. Lamentavelmente, o capitalismo nos traiu
e converteu a mãe terra a uma matéria-prima, portanto, uma mercadoria.
Mudar essa mentalidade demorará (...). Somos indígenas e lutaremos contra os
sistemas econômicos que privatizam nossos recursos naturais (...). Existem
várias formas de vivência, como a comunitária e coletiva. Onde nasci, por
exemplo, não existem propriedades privadas. A terra é comunitária. Todos a
utilizam para o pasto ou na agricultura. Espero que a privatização não chegue
nas comunidades, que são marcadas pela vida comunitária e coletiva (...) não
construiremos nenhuma novidade no governo. Somente o Viver Bem.
Almejamos a recuperação da vivência de nossos antepassados (...) a construção
do socialismo comunitário, harmonizado com a mãe terra, é fundamental.
Permanentemente se fala de socialismo. Concordo com isso, mas creio que
precisamos melhorar sua concepção. Não se deve pautar, exclusivamente, pela
defesa do homem. O socialismo deve permitir que a população compreenda a
obrigação de viver em harmonia com a natureza, respeitando as formas de
vivência comunitária e coletiva. (...) ele precisa incorporar as experiências dos
povos indígenas na defesa Pachamama (...). Hoje, existem apenas dois
caminhos: ou seguimos pelo do capitalismo, que é marcado pela morte, ou
avançamos pelo indígena, o da vida, que é marcado pela harmonia com a
natureza (MORALES, 2011, p. 3).

No caso da Bolívia, os movimento sociais, tiveram forte influência do movimento


político dos mineiros do século XX que agora estão mais enfraquecidos. Segundo a autora
Iamamoto, os levantes neoliberais foram conduzidos pela forma, conteúdo e ação do
operariado mineiro. Marcado por uma revolução popular e anti-imperialista da Revolução de
1952, reinvidicava a soberania econômica e a nacionalização dos recursos naturais. "Oposta à
nacionalização dos recursos naturais, que tem como fundamento de legitimidade a soberania
econômica nacional, se colocaria uma elite econômica "aantipátria", uma "antinacional"
burguesia nacional. Na primeira metade do século XX, este adversário era chamado Rosca
Mineira, representada pelos donos de minas de estanho, que concentravam grande poder
político e econômico". (IAMAMOTO, 2010)

A autora Iamamoto corrobora uma ideia de abigarrado na Bolívia, uma complexidade


social, heterogênea, uma colcha de retalhos, de múltiplas cores díspares. Para a autora, a
camada popular não havia uma unicidade, mas sobretudo vários tempos de vida, distintos,
modos de viver que tinham a região em comum, mas seu modo particular totalmente diferente.
Teríamos pelo menos: o tempo camponês, o tempo indígena com seus vários matizes e
diferetes povos. A falta de unidade da "sociedade boliviana", sobretudo de uma identidade
única. Composição de uma série de percursos sociais paralelos.

Um novo bloco de poder histórico popular passa a demandar soluções para suas
contradições internas e propor uma nova estrutura de Estado mais adequada ao povo local. A
constituinte promoveu uma linguagem universalista, e se afasta de forma reinvidicativa que
marcava os períodos antineoliberais. O documento foi elaborado várias forças políticas,
intitulada Comissão Visão de País. Levava a inserção e a autonomia indígena no arranjo
institucional, uma repulsa pelo elemento estrangeiro, fortalecendo mais as esferas populares e
comunitárias de poder. Faz-se este projeto de um novo estado que seja plurinacional, social e
comunitário. Segundo Magalhães e Afonso:

"As novas constituições da Bolívia e do Equador do ano de 2008 são uma grande
novidade para o Direito, pois têm o potencial de significar uma ruptura com o
modelo estatal moderno. Da uniformização e unificação—para não falar na
intolerância religiosa e cultural—, elementos estes que forjam a base valorativa
do Estado-nação advindo da tradição euro-péia, o Estado Plurinacional pretende
fornecer novos paradigmas não somente em termos de organização social, mas
também atender às de-mandas dos povos e nações historicamente
marginalizados no processo “civilizatório” americano, africano e asiático. (...) As
alternativas epistemológicas ao universalismo europeu transcorrem um
processo de desconsideração e encobrimento, essenciais, em seu turno, à
gênese do pensamento moderno e da formação da identidade europeia. (...)
Projeto eminentemente liberal, o Estado moderno se origina, no en-tender de
Boaventura de Sousa Santos, a partir de “uma simplificação brutal da vida... as
pessoas têm família, têm cultura, falam uma língua, têm identidades, vivem em
aldeias, nas vilas, nas cidades, e repentina-mente se convertem em indivíduos,
pois o que conta é ser indivíduo”. Ao indagar, diante da multiplicidade de
culturas na Europa, o por que de apenas uma destas tornar-se a cultura do
Estado, conclui critica‐mente o autor: “... somente uma, a que se considera mais
desenvolvida, merece ser a cultura oficial. Todas as demais não contam; conta,
unica‐mente, a cultura mais avançada”.

Estes processos de uniformização de modos de vida é uma das guilhotinas do Estado. A


construção de um Estado nacional moderno depen-de da construção de uma identidade
nacional, ou seja, da "impo-sição de valores comuns que deveriam ser compartilhados pelos
diversos grupos étnicos, pelos diversos grupos sociais para que assim todos reconhecessem o
po-der do Estado. A formação do Estado moderno está, portanto, intimamente relacionada
com a intolerância religiosa, cultural, a negação da diversidade fora de determinados padrões e
limites." (Magalhães e Afonso).

O processo histórico e social que desemborcou na Constituição bolivia-na de 2008


guarda em sua gênese princípios e valores constituintes na própria formação do Estado
bolivia-no. A diversidade culturas e povos neste país, sendo 36 povos origi-nários, foi, desde o
período colonial até a segunda metade do século XX. Este viés de constituição, renega a ideia
iluminista de povo único e universal. Não existe um modelo únicode Estado Plurinacional, e sim
vários modelos de Estados Pluri-nacionais.

"Deve superar a dicotomia tradicional/contemporâneo, galgando uma


equivalência entre “o que é simultâneo e o que é contemporâneo: cada
um à sua maneira, porém contemporâneos ao final. (...) Ato de
compreender cada cultura como uma —mas única, no sentido de que
não pode ser repetida— dentre tantas outras implica, necessariamente,
no reconhecimento de seu valor inerente. (...) Os cinco séculos de
história do Estado-nação moderno, quando anali-sados de fora do eixo
Europa-América do Norte, são marcados por um genética de violência e
intolerância, cujos traços iniciais foram identi-ficados, simbolicamente,
no ano 1492. Marco da identidade ocidental e do Direito Internacional
moderno, os desdobramentos da exploração colonial são identificados
nos padrões de relação diante do novo, do di-ferente: a missão
civilizadora, o universalismo de valores e instituições e, finalmente, o
abismo epistemológico que separa o conhecimento cien-tífico dos
saberes ditos bárbaros e arcaicos." (Magalhães e Afonso)

Esse deslocamento do centro político para as etnicidades causa profundas mudanças na


realidade nacional:

"Por um lado, o surgimento da causa autonomista crucenha, em Santa Cruz de


la Sierra, moveu as elites produtoras dos departamentos da planície a se
organizar de forma autônoma no seio da sociedade civil, e até m esmo reagir ao
paradigma da nacionalidade boliviana, falando em outra nação, em uma Nação
Camba; por outro, a fundação do partido Movimiento al Socialismo –
Instrumento Político para la Soberania de los Pueblos (MAS-IPSP) resultou na
conquista de mandatos legislativos e até mesmo em uma candidatura para a
presidência da república, algo que os cambas/autonomistas não pleitearam de
forma objetiva – ora pela sua associação confusa com as elites política de La
Paz, capital andina do país, ora pelo seu desencorajamento quanto a assumir a
dianteira da construção de um Estado que parecia falido. Nos anos seguintes, a
renúncia de Sánchez de Lozada em 2003 e também de uma saída forçosa de seu
sucessor , Carlos Mesa Gisbert, tornou incerto o futuro da Bolívia como unidade.
A eleição de Evo Morales com 54% dos votos, novamente candidato
presidencial pelo MAS-IPSP em 2005 (for a derrotado em 2002), aparentemente
resolveria o problema étnico e político: não apenas tornar a-se o primeiro
presidente indígena do país, mas o primeiro presidente efetivamente eleito por
uma maioria votante desde a redemocratização. A imagem de uma “Caixa de
Pandora” aberta é inevitável, desenterrando décadas – e talvez séculos – de
injustiça, exclusão, falsa homogeneidade e pretensa democracia." (Chaves,
2015)

Assim, a Bolívia é composta por uma diversidade étnica plural, com povos entrelaçados
em afetos comunitários. Busca na constituição do Estado Plurinacional desenhar um modelo
apto a aborver a diversidade do povo e seus costumes. A sociedade abigarrada seria uma
espécie de colcha de retalhos, disforme, incongruente. Segundo Cunha Filho:

"Na tentativa de compreender e explicar seu país natal, o sociólogo boliviano


René Zavaleta cunhou o já célebre conceito de “formação social abigarrada”: a
sociedade boliviana seria composta, na verdade, por muitas sociedades e
civilizações justapostas, com tempos socioeconômicos distintos e na qual
nenhuma delas é capaz de impor sua hegemonia completamente sobre as
outras (ver TAPIA, 2002; ZAVALETA MERCADO, 2009). Ao mesmo tempo em que
possuía setores capitalistas modernos e conectados à economia mundial, como
os enclaves mineiros, a Bolívia ostentava comunidades isoladas e com
economias de subsistência não capitalista. O encadeamento entre essas várias
sociedades e economias seria mínimo, muitas vezes meramente formal e era
nessa característica peculiar, cujas origens remontam em grande medida ao
legado colonial espanhol, que Zavaleta identificava a origens das frequentes
crises de hegemonia pelas quais passava o país."

As relaões já eram desiguais desde o violento processo colonial. Várias castas, títulos de
nobreza eram dados aos próprios indígenas, que faziam disso uma símbolo de distinção social.
Chegavam a gozar de títulos de nobreza como aponta Cunha Filho:

Em troca do pagamento de tributos e mão de obra para trabalhos nas minas,


concederam por muito tempo alto grau de autonomia de facto a diversas
comunidades indígenas, utilizando-se de lideranças locais e remanescentes das
linhagens de nobreza incaica como intermediários do poder colonial. Durante a
colônia, após a consolidação administrativa efetuada pelas ordenanças do vice-
rei Francisco de Toledo (1574 e 1577), os caciques indígenas possuíam uma
série de prerrogativas análogas às dos nobres espanhóis conquanto
respeitassem suas obrigações de vassalagem perante a coroa e executassem seu
papel de elo entre a sociedade de peninsulares e crioulos e as comunidades
indígenas pelas quais eram responsáveis. Embora sofressem discriminações e
nem sempre tivessem seus privilégios respeitados, os caciques indígenas tinham
reconhecidos pela coroa espanhola, por exemplo, o direito de “montar a cavalo,
portar armas, utilizar escudo equivalente ao escudo nobiliárquico espanhol e
não pagar tributos” (ver MESA et al., 2008, p. 119-129) (...) Na medida em que o
Estado se tornava menos dependente da arrecadação do Tributo Indígena com
o desenvolvimento dos enclaves mineiros e a alta nas cotações internacionais
dessa commodity, aumentavam também as pressões das haciendas sobre as
terras comunais, mas sem que jamais o país tenha conseguido consolidar uma
homogeneização modernizadora suficientemente significativa."

Tal como no Brasil, que Caio Prado atribui ao Brasil uma ideia de falta de nexo moral,
uma desagragação social oriunda das diferentes porções étnicas que iriam compor o cenário
social, na Bolívia a sociedade abigarrada teria sentido análogo. Essa miscelânia influenciou em
sua constituição social e política, "a tão citada instabilidade do país e suas frequentes crises de
hegemonia política têm raízes explícitas nessa coabitação de sociedades e civilizações que
sempre foi a Bolívia." (Cunha Filho).

Por eso la definición del pueblo boliviano en el artículo tercero de la


constitución reconoce al plebs (pueblos y naciones indígena originario
campesinas que han sido excluidas y que constituyen el sujeto nucleador de la
demanda de la asamblea constituyente) pero no en identidad; de tal manera, a
lo largo del texto constitucional se habla de pueblos y naciones “indígena
originario campesinas”, articulando la heterogeneidad interna del propio sujeto
indígena (comunidades del Oriente que se autodefinen como indígenas,
comunidades andinas que se identifican como originarias, ni indígenas ni
campesinas, y sindicatos cuya experiencia histórica con la hacienda y con la
Revolución de 1952 les permite apelar al término campesinos). De igual manera,
este plebs reconoce a otros actores excluidos como las “comunidades
interculturales”, que son los sindicatos y organizaciones de campesinos que
migraron al Oriente y comunidades afrobolivianas, que son minoritarias, pero
que también se reconocen. Pero el plebs constituido también reconoce al
populus (la comunidad dominante), si bien no definida como mestizos o
regiones, sí como bolivianos y bolivianas, mostrando su relacionamiento
individual, de sociedad civil (SORUCO SOLOGUREN, 2011, p. 151 apud CUNHA
FILHO).

Morales e o MAS: a construção de uma nova Bolívia.

A Bolívia adentra o século XXI com a devastação causada pelas políticas neoliberais
desde. Vários movimentos sociais e estado disputam tensões durante as década seguintes,
como já foi abordado no texto.

"Um dos grupos mais fortalecidos neste processo foi o dos cocaleros, os
produtores da coca. O líder deles, Evo Morales, ganhou ampla projeção
nacional, aliando as demandas de seu sindicato às causas indígenas. No entanto,
para entender a chegada de Morales ao poder é preciso compreender a
trajetória do partido político que o projetou nacionalmente, o Movimento al
Socialismo (MAS). (...) O MAS surge em 1995 na cidade de Santa Cruz, fundado
sob a alcunha de Assembleia pela Soberania dos Povos (ASP) (REIS, 2010, p.7),
sendo criado a partir do apoio de diversos grupos sindicais, trabalhistas e
populares. Ele nasce em resposta às políticas neoliberais de ajuste econômico
que estavam em voga na época, e que levavam ao enfraquecimento do
movimento sindical. Devido à recusa da Corte Eleitoral em aceitar o registro do
ASP, os políticos deste grupo lançaram-se candidatos por outras legendas. Por
conta de conflitos internos, a liderança do ASP expulsa Morales da sua legenda,
mas este leva consigo boa parte de afiliados e políticos, fundando,
posteriormente, o Instrumento Político pela Soberania dos Povos (IPSP). Após a
incorporação de outras agremiações e grupos políticos, o partido se estabelece
como é conhecido atualmente. O crescimento da agremiação foi rápido,
alcançando protagonismo no Congresso em meados dos anos 2000. (...) Neste
cenário, o MAS se fortalece. O partido de Evo atrai para si as atenções e
esperanças de uma mudança real para a população mais carente do país. Seu
fortalecimento pode ser observado já nas eleições de 2002, quando Morales fica
em segundo lugar na disputa presidencial com diferença mínima em relação ao
candidato eleito. A partir disto, similar ao caso do PT no Brasil, o MAS adota um
discurso mais moderado, após os resultados expressivos de Morales na eleição
daquele ano, buscando ampliar suas chances eleitorais. Soma-se aos quadros do
partido o vice-presidente de Evo, Álvaro Garcia Linera." (Almeida)
A ligação com a população indígena foi um fermeto para o MAS. Estratos que compunha
a maioria da população, foi criado um vácuo a ser ocupado no campo político para um
representante desse segmento social, composta pela camada mais miserável de pessoas. Como
líder um candidato indígena, tendo este seu simbolismo, ampliou seu papel de representação
perante este estrato.

Foi assim que Morales ganhou a presidência em 2005 com 53,74% dos votos. Uma surra
para os partios tradicionais do país que que haviam dominado desde a década de 80. A
instabilidade social instaurou-se depois desta eleição.

"Evo Morales, após eleito, encontra um cenário polarizado entre: a) a elite


oposicionista temerosa por perder seus privilégios e disposta a lutar por eles e;
b) os movimentos sociais e sindicais com urgência de ver seus interesses
atendidos (ROCHA, 2015, p. 216). O discurso de Morales apoiou-se nas ideias de
“nacionalismo” e “indigenismo” como bandeiras ideológicas. Entretanto, não
adota com veemência a proposta de criação de um Estado Socialista como
aludido por alguns autores que costumam qualifica-lo como uma figura de
extrema esquerda."

Com esta vitória os movimentos exigiam mudanças. O povo ganhou um protagonismo


maior dentro do novo marco leal. As Assembleias Constituintes foram referendadas com a
participação popular, através de consultas e plebicistos. Observamndo as mudanças na
Constituição boliviana, elas objetivaram uma mudança no equilíbrio de forças entre: Legislativo,
Executivo, Judiciário e Sociedade.

Artículo 190. I.Las naciones y pueblos indígena originario campesinos ejercerán


sus funciones jurisdiccionales y de competencia a través de sus autoridades, y
aplicarán sus principios, valores culturales, normas y procedimientos propios.
(BOLÍVIA, 2009).

O processo de realização da Constição Boliviana foirealizada em meio a um intenso fluxo


de parlamentares pelo território boliviano, em busca de consultar a população. O objetivo era
recolher as demandas da sociedade e cristalizá-las no texto constitucional. A clivagem
subsequente seria em torno da disputa para a escolha da capital do país. La Paz ou Sucre. Em
meio a este processo, ocorreu uma marcha indígena a caminho da cidade de Sucre em prol do
reconhecimento dos direitos indígenas e pela por sua luta emancipatória e autonomista.
(ALMEIDA)

Vários setores da sociedade manifestam-se em relação ao processo da


Constituinte, aonde uns grupos posicionam-se como favoráveis ao processo e
outros rechaçam determinadas posições adotadas pela Assembleia. As
manifestações geram conflito com a polícia local, levando a duzentos feridos e a
três mortos (CARRASCO E ALBÓ, 2008, p. 122).
No dia 25 de janeiro de 2009 esta população heterogênea aprova a criação da nova
Constituição do país por 61% dos votos. Apresentou inúmeras mudanças para o povo boliviano:
permitiu um acesso e participação mais ampla dos povos indígenas. Também, em diversos
dispositivos, garante a presença das mulheres em espaços de representação e de gestão do
aparelho Estatal. A sociedade passa a ter maior participação no Estado, e dos indivíduos que
assumem mandatos ou cargos. Os políticos perderam regalias, tal como fico escrito agora há a
possibilidade de prisão de um parlamentar durante o exercício do seu mandato.

"O caminho para alcançar os objetivos foi, no entanto, penoso. A oposição as


propostas do MAS foi forte e o conflito por vezes extrapolava o cenário político
e se apresentava nas ruas por meio de conflitos violentos. Ainda assim, o MAS
fez valer sua maioria e conseguiu aprovar uma nova Constituição para o país
que ampliava a autonomia e poder de uma boa parcela da sociedade. (...) Todas
as alterações foram possíveis a partir da força política de Morales e do
MAS. Ambos conquistados nas urnas, a partir de um intenso processo de
mobilização política, dos anos de instabilidade vividos pelo país na
primeira metade dos anos 2000." (ALMEIDA)

Bibliografia:

ALMEIDA, L.M. Morales e o MAS: a construção de uma nova Bolívia e o projeto de perpetuação no
poder de seus dirigentes. Dissertação de Ciências Sociais/UNB.

AFONSO, Henrique Weil; MAGALHÃES, José Luiz Quadros. O Estado plurinacional da Bolívia e do
Equador: matrizes para uma releitura do direito internacional moderno.

ARAÚJO, R.P. Discurso político e o socialismo do século XXI na América do Sul. Doutorado em História
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BELÉM LOPES, Dawisson. A economia política da década bolivariana: instituições, sociedade e desempenho dos
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Laboratório de Estudos Hum(e)anos (UFF) e do Núcleo de Estudos em Teoria Política (UFRJ). Rio de Janeiro, nº 6, pp.
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CHAVES, Daniel Santiago. A crise de fim de século na Bolívia. A ascensão contemporânea da


plurinacionalidade no contexto andino‐amazônico. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.6,
n.13, p. 174 ‐ 202, set./dez. 2014.

CUNHA FILHO, C. M. A construção do Estado Plurinacional na Bolívia: institucionalizando o abigarrado


sem homogeneização modernizadora?

CHAVES, Daniel Santiago. A refundação plurinacional boliviana como litígio pós-colonial no século XXI.
Revista Estudos Políticos: a publicação eletrônica semestral do Laboratório de Estudos Hum(e)anos
(UFF). Rio de Janeiro, Vol. 6 | N. 1, pp. 64-85, dezembro 2015. Disponível em:
http://revistaestudospoliticos.com/.
IAMAMOTO, A.S. Nacionalismo Boliviano em tempos de plurinacionalidade: Revoltas antineoliberais e
constituinte (2000-2009). 2010. Dissertação do Departamento de Ciências Políticas/USP.

LOPES, D.B. A economia política da década bolivariana: Instituições, sociedade e desempenho dos
governos em Bolívia, Equador e Venezuela (1999-2008)

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