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EN pÉDIA
Por Emir Sader
ES
LATinO Nas suas quatro grandes vertentes, a esquerda foi uma das principais protagonistas da história latino-
americana desse último meio século. As correntes nacionalistas, os partidos comunistas e socialistas e os
movimentos guerrilheiros – juntamente com os movimentos sociais – tiveram participação decisiva em
todos os acontecimentos políticos e sociais que deram forma à história da América Latina dessas últimas
décadas.

Caudatária do movimento operário europeu, a esquerda latino-americana nasceu com fortes

AME compromissos ideológicos e pouco enraizamento nacional. Mas, ao longo do século XX, especialmente
após as três primeiras décadas, começou a enraizar-se nacionalmente, passando a elaborar suas próprias

RIC
concepções estratégicas e adquirindo crescente presença política.

Após uma primeira fase, marcada por sua presença em partidos de orientação classista, a esquerda latino-

AMA
americana viveu um período em que a questão nacional foi colocada no centro da luta política e
ideológica, o que a obrigou a testar sua criatividade tornando-se capaz de realizar análises crescentemente
aprofundadas das condições histórico-sociais concretas. Posteriormente, as ditaduras militares
encarregaram-se de trazer para a linha de frente do debate político a questão democrática, que fora
relativamente diluída no período anterior. Ao mesmo tempo, o desafio de elaborar estratégias contra os
regimes de força começou a ser respondido, de um lado, pelas propostas nascidas das concepções liberais
e, do outro, pelos projetos de ruptura revolucionária, incluindo a opção por formas de luta armada. Mais
recentemente, o neoliberalismo e a hegemonia dos regimes políticos de democracia liberal criaram novos
cenários históricos e colocaram outros tantos enigmas que a esquerda do continente está sendo desafiada
a decifrar.

O nacionalismo, uma das vertentes da esquerda, finca raízes na descolonização, estendendo-se ao século
XX. Está fortemente presente na Revolução Mexicana e na Revolução de 1930, no Brasil; marca o
peronismo argentino, o nacionalismo militar peruano e, mais recentemente, o bolivarianismo, na
Venezuela, além de outras correntes mais ou menos similares. Quanto aos partidos comunistas e
socialistas, a segunda vertente da esquerda, em geral fundados em torno dos anos 1920, conseguiram ter
participação em vários governos de países como o Brasil do início da década de 1960, o Chile da Frente
Popular nos anos 1930 e da Unidade Popular dos anos 1970, e, mais recentemente, o Uruguai; também
tiveram forte participação na luta contra os regimes ditatoriais das décadas de 1960 e de 1970 em vários
países da região. Na sua terceira vertente, no que concerne aos movimentos guerrilheiros, vitoriosos em
Cuba e na Nicarágua, conseguiram propagar-se para vários outros países, como a Venezuela, a Colômbia,
o Peru, a Guatemala, o Brasil, a Argentina, o Uruguai, El Salvador, entre outros, tanto nas guerrilhas
rurais como nas urbanas. Quanto aos movimentos sociais, tornaram-se os principais núcleos de
resistência e de enfrentamento às políticas neoliberais em todo o continente.

Nas suas quatro vertentes, a esquerda latino-americana foi protagonista de destaque nos grandes
acontecimentos da história do continente desse último século: desde o massacre da Escola Santa Maria de
Iquique, em 1907, no Chile, quando os mineiros resistiram às ofensivas do governo oligárquico e foram
massacrados – movimento que daria origem ao Partido Comunista do Chile, fundado por Luis Emílio
Recabarren. Passando, então, pela Revolução Mexicana, de 1910, que marcou o renascimento de um forte
movimento nacionalista naquele país, graças à luta anti-imperialista, e na qual irrompeu, com uma força
até então desconhecida, a luta do movimento camponês. E, por fim, chegando à reforma universitária de
Córdoba, na Argentina, que deu projeção ao movimento democrático de base popular naquele país.
Chegando também à Coluna Prestes e à Revolução de 30, no Brasil; às rebeliões de Farabundo Martí, em
El Salvador, e de Augusto César Sandino, na Nicarágua. Foi uma das principais protagonistas do governo
da Frente Popular, no Chile; do movimento chamado de Bogotaço, na Colômbia, em 1948; da Revolução
Boliviana, de 1952; da Revolução Cubana, de 1959; do governo da Unidade Popular, no Chile, de 1970 a
1973; dos movimentos guerrilheiros dos anos 1960 e 1970, em quase toda a América Latina; da Revolução
Sandinista, na Nicarágua, de 1979 a 1990; da resistência às ditaduras militares no Cone Sul; do governo
bolivariano, da Venezuela – entre muitos outros.

O desembarque no século XXI


A história da América Latina não poderia ser contada sem a presença marcante da esquerda em suas
distintas vertentes. Porém, sob o impacto das transformações neoliberais impostas ao continente, a
esquerda iniciou o século XXI profundamente modificada, seja nos seus perfis ideológicos, seja na sua
força política. Profundamente regressivas, as transformações neoliberais encarregaram-se de gerar, num
período curtíssimo de tempo, a maior crise econômica e social do continente desde os anos 1930; crise que
modificou o perfil da própria esquerda, que não ficou imune a essas transformações.

O grupo de partidos predominante na esquerda no início do século XXI inclui formações diferenciadas,
como o Partido dos Trabalhadores (PT), do Brasil, a Frente Ampla (FA), do Uruguai, o Partido da
Revolução Democrática (PRD), do México, a Frente Farabundo Martí (FMLN), de El Salvador, e o
Movimento ao Socialismo (MAS), da Bolívia. Elas apresentam aspectos comuns de ação institucional, de
manutenção dos modelos econômicos herdados – ou de grande cautela em relação a sua superação – e de
recurso às políticas sociais compensatórias, ao menos nos casos dos partidos que chegaram ao governo,
como no Brasil e no Uruguai.

Ao lado desses partidos, em diversos graus de aliança com eles, distinguem-se as expressões mais
radicalizadas da esquerda latino-americana: Cuba, concreção particular da vertente marxista e
anticapitalista, e Venezuela, renovação da corrente nacionalista e com forte componente anti-imperialista.
Dentre os movimentos sociais, destacam-se particularmente os movimentos camponeses – cuja melhor
expressão é o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), do Brasil – e os movimentos
indígenas – em particular no Equador, na Bolívia e no México.

Um primeiro balanço, mesmo superficial, da fisionomia da esquerda latino-americana desse início de


século é, no mínimo, paradoxal: nunca tantos governos que se reivindicam de esquerda estiveram no
poder, ou próximos de estar, enquanto a estrutura econômica, social e ideológica permaneceu
profundamente dominada pelo liberalismo! Nunca a esquerda esteve tão presente na direção de governos,
ou em governos de aliança, ou em condições de poder chegar a essa posição! Nunca o continente teve um
arco de alianças tão amplo e tão diferenciado da política norte-americana! Ainda assim, a esquerda está se
revelando incompetente, e/ou incapaz, para romper o modelo econômico neoliberal e para transformar as
relações sociais e econômicas internas que continuam produzindo a pior desigualdade social do mundo, o
que se reflete na sua incapacidade de superar a instabilidade política e de ultrapassar seguidas crises de
legitimidade dos seus governos.

Esse é o quadro que a esquerda latino-americana é obrigada a enfrentar se quiser ser capaz de definir não
somente o seu próprio futuro, como também o do nosso continente. Qualquer que seja o desenlace, sua
fisionomia será modificada: aceitando a manutenção do modelo econômico neoliberal, estará condenada a
descaracterizar-se; se for capaz de aproveitar as condições históricas para romper com o neoliberalismo
poderá conquistar, de fato pela primeira vez, a hegemonia política na América Latina.

As origens classistas
Durante o primeiro período da sua história, entre a última década do século XIX e as duas primeiras do
século XX, a esquerda latino-americana foi fortemente influenciada pelo movimento operário europeu e,
consequentemente, sua atuação teve forte marca classista. Primeiras formas de organização sindical,
fundação dos primeiros partidos de esquerda, de base operária, ideologias anarquista, socialista e
comunista, marcaram esse perfil inicial da esquerda.

A imigração, especialmente da Espanha, da Itália e de Portugal, trouxe para o continente as experiências


europeias de organização sindical operária bem como partidária, socialista e comunista. Países como a
Argentina, pelo seu maior nível de desenvolvimento econômico relativo, e o Chile, pelos desdobramentos
sociais da sua economia mineira, foram os protagonistas das primeiras grandes experiências de massa do
movimento sindical, base original de apoio da esquerda no continente.

Essas levas de imigrantes desembarcaram em sociedades de economias predominantemente primário-


exportadoras, com pouco desenvolvimento industrial e sob o domínio de regimes políticos oligárquicos
que não reconheciam legalidade às organizações de defesa dos trabalhadores. Os primeiros sindicatos,
construídos majoritariamente por imigrantes, artesãos e operários, nasceram sob forte influência das
ideologias trazidas pelos anarquistas e das suas experiências de sindicalismo de base, centrado em greves
e organizações clandestinas dos trabalhadores.

Contudo, a Revolução Russa de 1917 e a vitória do bolchevismo tiveram, ao menos, dois efeitos políticos
imediatos: a fundação de partidos comunistas, entre a segunda e a terceira décadas do século XX, em
quase todos os países do continente, e o crescente desaparecimento do anarquismo. Ao mesmo tempo,
avançava o processo de sindicalização, principalmente nos centros urbanos e mineiros. Iniciava-se, assim,
a construção de um campo de esquerda do qual faziam parte organizações sindicais, partidos políticos e
uma nova intelectualidade, com forte presença do marxismo no seu seio – todos esses, fenômenos novos
na história da América Latina.

Nessa primeira fase, os partidos tendiam a assumir uma linha política classista, isto é, a orientação “classe
contra classe”, pregada pela Internacional Comunista, desde meados dos anos 1920. Graças ao poder de
persuasão da vitória bolchevista, as propostas enfatizavam a formação de sovietes, a aliança operário-
camponesa e a luta insurrecional pelo poder. Ainda sem capacidade de realizar análises específicas para as
situações particulares de cada país, as estratégias centraram-se na combinação genérica do
anticapitalismo e do anti-imperialismo.

Por sua capacidade política, organizativa e teórica, distinguiam-se três dirigentes da esquerda: Luís Emílio
Recabarren, José Carlos Mariátegui e Julio Antonio Mella. Recabarren, chileno, participou da fundação
dos partidos comunistas do Chile e da Argentina e elaborou análises sobre a construção da aliança
operário-camponesa nos países do continente. José Carlos Mariátegui, peruano, fundador do Partido
Socialista do Peru – depois Partido Comunista –, foi o principal teórico da primeira geração de marxistas
do continente, destacando-se, especialmente, pelas suas teses sobre a questão indígena na América Latina.
Julio Antonio Mella, cubano, fundador do Partido Comunista de Cuba, tornou-se reconhecido por suas
análises sobre o proletariado e a luta de classes.

Apesar do domínio da produção agro-exportadora, a brutalidade da dominação oligárquica colocava


muitas dificuldades à organização dos trabalhadores do campo, o que levou a esquerda latino-americana a
concentrar suas bases de apoio na incipiente classe operária desse início do processo de industrialização e
nos trabalhadores da produção mineira.

Essa era a fisionomia da esquerda latino-americana até o final dos anos 1920. O colapso de 1929 e seus
desdobramentos em todo o continente afetaram profundamente a esquerda, obrigando-a a enfrentar o
tema do nacionalismo que se alastrava pela América Latina.

O nacionalismo latino-americano
Após a crise de 1930, desencadeada no ano anterior, a ideologia nacionalista, que logo se tornaria
dominante no quadro político do continente, colocou um novo desafio aos partidos de esquerda,
especialmente aos partidos comunistas que, na maioria dos países, se tornariam hegemônicos na
esquerda. Alterava-se o quadro social e político do continente, com o fortalecimento da burguesia
industrial e a expansão da classe média, trazendo novos desafios para a estratégia e a tática da esquerda.

A forte herança europeia, determinando os rumos não só do movimento operário, como também da
própria elaboração da teoria marxista, fez com que os partidos de esquerda encontrassem enorme
dificuldade para abordar o nacionalismo, pois, ao contrário do que ocorre na América Latina, na Europa
essa corrente costuma pertencer ao campo da direita.

Houve casos extremos, como o dos partidos socialista e comunista argentinos, que associaram
mecanicamente o peronismo ao nacionalismo europeu, passando a tratar Juan Domingo Perón como uma
pura cópia de Hitler e Mussolini. Em virtude da dificuldade dos socialistas e comunistas de compreender
o novo fenômeno político, o peronismo conseguiu deslocá-los do seu lugar dominante junto ao movimento
operário, afirmando-se como um forte concorrente na luta pelo mesmo espaço político. A incapacidade de
abordar adequadamente o tema do nacionalismo e a competição política facilitaram a decisão dos partidos
comunista e socialista argentinos de aliar-se tanto ao Partido Radical e às tendências liberais e
conservadoras, como à Igreja Católica e até à própria política norte-americana, sob o pretexto da
necessidade de combater o nacionalismo peronista.

No Brasil, enquanto os comunistas mantiveram a estratégia da insurreição armada, mesmo conciliando-a


aos temas das frentes populares, o movimento nacionalista de Getúlio Vargas foi combatido como
adversário. Contudo, em meados da década de 1930, o Partido Comunista do Brasil (PC do B) estabeleceu
uma aliança com os setores nacionalistas do governo Vargas, aderindo assim às teses da Internacional
Comunista, segundo as quais, nos países coloniais e semicoloniais (como a China e a Índia) e nos países
dependentes (como a Argentina e o Brasil), a luta contra o feudalismo e pela revolução agrária do
campesinato, de um lado, e a luta contra o imperialismo estrangeiro e pela independência nacional, do
outro, deveriam ser prioritárias. Em outros termos, o PCB adequou-se à assim chamada etapa
democrático-burguesa da revolução, que representava uma aliança subordinada à fração industrial da
burguesia – considerada nacionalista e anti-imperialista.

Se a dimensão nacional e popular com seu forte anti-imperialismo determinou a opção dos comunistas
brasileiros, foi a dimensão democrática que marcou a escolha dos comunistas argentinos.

Na Europa, o nacionalismo nascera com um caráter conservador, reivindicando a superioridade de um


país sobre os demais e de uma cultura sobre a outra. Foi decisivo na deflagração das duas grandes guerras
mundiais e procurou afirmar-se em oposição às correntes de esquerda. Na América Latina, a origem e a
natureza do nacionalismo foram profundamente diferentes. Aqui, ele nasceu das lutas anticoloniais e
ressurgiu na confluência das reações à crise de 1929 e do esgotamento do modelo primário-exportador,
procurando incentivar o avanço do processo de industrialização. Com forte teor anti-imperialista, o
nacionalismo latino-americano afirmou-se em defesa dos projetos nacionais, opondo-se às políticas
liberais, aliadas à dominação imperialista do continente. Consolidando-se a partir da década de 1930, o
nacionalismo transformou-se na mais forte tendência da esquerda latino-americana. Defensor de
inúmeros projetos de transformação das sociedades latino-americanas, identificou-se com os processos de
industrialização, de urbanização, de sindicalização, de expansão do emprego e do mercado interno.
Ademais, aliou-se a todas as lutas comprometidas com a extensão dos direitos sociais: ao emprego, à
educação, à saúde pública, à habitação.

O nacionalismo manteve-se como tendência dominante enquanto perduraram as condições do


crescimento econômico vinculado à industrialização e ao ciclo longo de expansão do capitalismo
internacional. Com o esgotamento do modelo, a partir dos anos 1960, o nacionalismo começou a debilitar-
se, perdendo sua fisionomia original, até quase todas as suas versões terminarem aderindo ao
neoliberalismo, nas duas décadas finais do século XX. Costumam ser considerados nacionalistas governos
como os de Getúlio Vargas (1930-1945/1951-1954), no Brasil; de Juan Domingo Perón (1946-1955), na
Argentina; de Lázaro Cárdenas (1934-1940), no México; de Hernan Siles Zuazo (1956-1960), na Bolívia;
além de movimentos como a Aliança Popular Revolucionária Anti-imperialista (APRA), liderada por
Victor Haya de la Torre, no Peru, e o gaitanismo (tendência interna ao Partido Liberal, liderada por Jorge
Eliécer Gaitán), na Colômbia. Em geral, dada a importância do seu caráter nacional, mas também em
decorrência da frágil formação das elites civis, os militares tiveram papel destacado nos movimentos
nacionalistas latino-americanos, especialmente nos casos brasileiro, argentino, peruano e venezuelano.

Cárdenas, varguismo e peronismo


O nacionalismo latino-americano encontrou no Partido Revolucionário Institucional (PRI), mexicano, no
peronismo argentino e no getulismo brasileiro suas principais manifestações.

No México, o nacionalismo ressurgiu com a revolução de 1910, como uma reação dos camponeses,
liderados por Emiliano Zapata e Pancho Villa, à exploração econômica e à repressão política no campo.
Com um programa nacionalista, foi promulgada a nova Constituição, em 1917, incorporando, inclusive, a
reforma agrária. No seu processo de institucionalização, foi fundado, em 1929, o Partido Nacional
Revolucionário, que posteriormente adotaria o nome de Partido Revolucionário Institucional. Mas foi com
a eleição de Lázaro Cárdenas, em 1934, que o nacionalismo mexicano adquiriu seus contornos definitivos.
A crise de 1929 provocou grandes manifestações de operários e de camponeses, expressando-se numa
nova onda nacionalista que o governo Cárdenas soube mobilizar em troca da garantia dos direitos sociais.
Ao mesmo tempo, apoiando-se também na classe média e no Exército, Cárdenas fez do Estado uma
alavanca impulsionadora do desenvolvimento econômico. Seu governo construiu um importante setor
estatal da economia, recorrendo à política de nacionalizações, como é o caso das estradas de ferro e da
exploração do petróleo. Desde os anos 1940, a orientação nacionalista começou a perder força para
desembocar, na década de 1990, na adesão dos governos do próprio PRI ao neoliberalismo.

O nacionalismo brasileiro reafirmou-se com o movimento tenentista e a Revolução de 30, graças à qual
Getúlio Vargas chegou à presidência. Já no seu primeiro governo, Vargas assumiu a defesa do processo de
industrialização substitutiva de importações, regulamentou os direitos trabalhistas e estimulou a
siderurgia, com a Companhia Siderúrgica Nacional (1941). Tanto no primeiro quanto no segundo
mandato, estimulou a industrialização e o papel do Estado como agente indutor do desenvolvimento, por
meio da criação e do fortalecimento de empresas estatais, como é o caso, entre outras, da Petrobras,
fundada em 1953, empresa de exploração petrolífera. Uma das marcas do nacionalismo latino-americano
desse período foi a constituição de uma direção também nacionalista do movimento operário. No Brasil,
Vargas concentrou esse papel no Ministério do Trabalho. Consolidou a legislação trabalhista e
implementou políticas de previdência social. Seus dois governos iniciaram a construção de um Estado
nacional com forte presença na economia, que comandou o processo de desenvolvimento durante as
décadas seguintes. Seu suicídio, em 1954, coincidiu com a derrubada de Perón, na Argentina, com o final
da guerra da Coreia e com o início de fortes investimentos estrangeiros nas duas economias. O golpe
militar de 1964 representou a derrota final do projeto nacional-desenvolvimentista iniciado com a
Revolução de 30. O chamado projeto da tríplice aliança – capital nacional, capital estrangeiro e capital
estatal – estava fincado na adoção da doutrina de segurança nacional e da ampla abertura do país aos
investimentos estrangeiros.

O nacionalismo argentino, expresso pelo peronismo, data de 1944, quando o então coronel Perón foi
nomeado secretário do Trabalho, afirmando-se como a liderança alternativa aos partidos tradicionais da
esquerda, desgastados com a incapacidade de resistir eficazmente aos governos conservadores da década
de 1930. O peronismo estruturou-se como um projeto de caráter nacional, pregando a redistribuição de
rendas em favor das classes populares e com um discurso anti-imperialista. Impulsionou o processo de
industrialização, combinado com a expansão do mercado interno de consumo popular, e fortaleceu o
movimento sindical diretamente ligado ao peronismo.

Em linhas gerais, os governos nacionalistas aproveitaram-se do longo parêntese gerado pelo refluxo dos
investimentos estrangeiros, iniciado com a crise de 1929, prolongado com a Segunda Guerra Mundial e a
guerra da Coreia, para fazer avançar processos de industrialização substitutiva de importações. Por isso
mesmo, incentivaram a expansão da urbanização e fortaleceram a presença da burguesia industrial e da
classe operária na cena política. Ao lado dos governos de Vargas e de Perón, e por eles apoiados,
ascenderam ao poder Alfredo Stroessner, no Paraguai, e o general Carlos Ibáñez, no Chile.

A revolução boliviana de 1952 foi um momento particularmente importante da fase nacionalista da


esquerda latino-americana. Uma revolução marcada pela nacionalização das minas de estanho, pela
realização da reforma agrária e pela desmobilização do Exército regular, substituído por milícias
populares.

O projeto nacionalista começou a arrefecer com a queda dos governos Vargas e Perón, em 1954 e 1955, e
com o retorno crescente dos investimentos estrangeiros para a América Latina. Teve início um novo
período de industrialização, centrado no fortalecimento e na expansão dos investimentos de capital
externo, especialmente na indústria automobilística, no Brasil e na Argentina. O período nacionalista
terminou em meados dos anos 1960, quando se iniciava o processo de internacionalização das economias,
com a consolidação das grandes corporações multinacionais e com o estreitamento dos espaços nacionais
de acumulação. As esquerdas continuariam a conviver com projetos nacionalistas e a protagonizá-los;
contudo, outras alternativas começavam a se firmar, mudando o quadro político da esquerda.

Luta armada e socialismo


Zona de influência direta dos Estados Unidos, a América Latina tornou-se uma região completamente
integrada ao campo capitalista. Ainda assim, muitos países do continente tiveram partidos de inspiração
marxista, socialista e comunista; no Chile, no início dos anos 1930, houve até um breve governo que se
reivindicou socialista. Contudo, de fato, o socialismo esteve longe de ser uma alternativa política para a
América Latina, até que a Revolução Cubana conseguiu modificar radicalmente esse quadro.

Em Cuba, a vitória do socialismo subverteu a própria teoria marxista, pois a revolução ocorreu num país
que não era industrial, mas de economia primário-exportadora, e ela não foi liderada por um partido,
comunista ou socialista, mas por um movimento guerrilheiro que, pela primeira vez na América Latina,
conseguiu aliar reivindicações antiditatoriais, nacionais e socialistas. A luta contra a ditadura de Fulgencio
Batista somou forças à luta contra os interesses das empresas norte-americanas, apoiadas pelo governo
dos Estados Unidos, e as duas lutas convergiram rapidamente em direção a uma revolução que derrotou o
capitalismo.

A revolução cubana atingiu seus objetivos graças a uma estratégia de luta armada centrada no campo, por
meio da guerra de guerrilhas. Esse tipo de luta tinha antecedentes no continente; já estava presente nas
guerras de independência, como é o caso da luta conduzida por Manuel Rodriguez, no Chile; ressurgiu em
várias formas de luta rural, como as desenvolvidas por Pancho Villa e Zapata, na Revolução Mexicana, e
pela Coluna Prestes, no Brasil, chegando aos combates de Farabundo Martí, em El Salvador, e de Sandino,
na Nicarágua. Mesmo em Cuba, já havia o antecedente das guerras de independência, no final do século
XIX, a última delas dirigida por José Martí.

O modelo estratégico cubano, vitorioso em janeiro de 1959, com pouco mais de dois anos de luta
guerrilheira, abriu novas alternativas, mas também impôs outros desafios e dificuldades à esquerda
latino-americana. Ainda assim, o sucesso dos revolucionários cubanos teve uma influência maior do que
qualquer outro evento sobre a esquerda do continente, maior até do que a influência da revolução
soviética na Europa.

O triunfo dos revolucionários cubanos coincidiu com o esgotamento do impulso de crescimento das
economias do Cone Sul do continente e com o início de um novo ciclo de ditaduras na América Latina. A
proposta cubana -- de ruptura com a ditadura de Batista, de realização simultânea das reformas agrária e
urbana, de resistência ao imperialismo norte-americano e com a campanha nacional de alfabetização --
afirmava-se como uma alternativa no mesmo momento em que os golpes militares obrigavam a esquerda
a confrontar-se com as limitações da via institucional-legal e a reconhecer as possibilidades reais da luta
guerrilheira.

O modelo cubano, difundido pelo primeiro diário de Ernesto Che Guevara, A guerra de guerrilhas, e
esquematicamente resumido por Régis Debray em Revolução na revolução, alastrou-se rapidamente pelo
continente. Guerrilhas rurais surgiram na Venezuela, Peru e Guatemala, sem mencionar as tentativas
frustradas na Nicarágua e na República Dominicana, além da já existente na Colômbia. Países com
estruturas sociais centradas no campo, de economias primário-exportadoras, candidatavam-se a
reproduzir o modelo estratégico cubano, colocando-se sob sua direção, ainda mais por ser esse um
momento marcado pela impotência das outras forças de esquerda, fosse porque estivessem envolvidas em
lutas parlamentares, sem possibilidades reais de vitória, ou porque estavam enredadas em polêmicas
ideológicas, sem capacidade de ação prática, nem de conquista de bases sociais de apoio.

Um primeiro ciclo de lutas armadas na América Latina transcorreu, portanto, na década de 1960, sob o
forte impacto da vitória socialista em Cuba e com o apoio direto do governo cubano, o qual passou a sofrer
um duro processo de isolamento e de hostilidade pelos Estados Unidos e por grande parte dos governos
do continente que, seguindo orientação de Washington, rompeu relações com Havana. O governo cubano
apoiava as lutas armadas, fornecendo treinamento militar para os movimentos guerrilheiros, e bancava
uma intensa campanha política e ideológica contra o imperialismo e os governos latino-americanos
aliados a ele.

Esses novos movimentos guerrilheiros, contudo, já não contavam com alguns fatores que haviam
beneficiado os revolucionários cubanos. Em primeiro lugar, o fator surpresa, de tão forte impacto em
Cuba, pela inédita circunstância de um movimento antiditatorial transformar-se tão rapidamente em
força socialista, já não voltaria a ocorrer. Ao contrário, amparados na doutrina de segurança nacional, os
governos militares assumiram a dianteira e passaram a perseguir e colocar sob suspeita de subversão
qualquer tipo de movimento com a mais tênue semelhança com o cubano, justificando a repressão que se
abateu com persistência e cruel ferocidade ao conjunto da esquerda.

Em segundo lugar, as inúmeras divisões da esquerda, não só entre reformistas e revolucionários, como
entre soviéticos, maoístas e castristas, contribuíram para enfraquecê-la e ao campo popular no seu
conjunto, pois dificultaram a formação de uma frente ampla contra a ditadura, essa mesma frente que fora
fundamental à vitória da Revolução Cubana.

A vitória dos revolucionários cubanos, ademais, parecia decretar a morte dos partidos políticos
tradicionais e da sua estratégia eleitoral. Mais ainda, os sucessivos golpes militares e o apoio das
“burguesias nacionais”, não só às ditaduras, como também à própria internacionalização das economias,
enfraquecia ainda mais os partidos comunistas, que haviam apostado na sua posição nacionalista e anti-
imperialista. Por outro lado, os argumentos maoístas contra a “coexistência pacífica” e a própria
importação de empresas capitalistas – cujo maior exemplo foi a instalação da Fiat para produzir
automóveis na URSS – pelo campo socialista introduziram novos fatores de enfraquecimento aos partidos
mais importantes da esquerda latino-americana até aquele momento.

As revoluções chinesa e cubana apareciam como oponentes e como alternativas ao modelo soviético e à
estratégia dos partidos comunistas. A China só apoiava os partidos que seguissem rigidamente suas
orientações, impedindo o estabelecimento de alianças com os movimentos que se uniam em torno da
Revolução Cubana. Assim, embora esses anos representassem um fortalecimento da esquerda, essas
divisões dificultaram que ela se tornasse uma força hegemônica no continente.

Fidel Castro nas comemorações do 1° de maio, em Havana, Cuba, em 2005 (Wikimedia Commons)

O segundo ciclo da luta armada


Na América Latina, o primeiro ciclo de luta armada, centrado no Peru, na Guatemala e na Venezuela foi
derrotado; contudo, posteriormente, a força acumulada nesses países tornaria possível a eclosão de um
segundo ciclo. A morte de Che Guevara, em 1967 na Bolívia, e a derrota do projeto de constituição de um
centro de coordenação dos movimentos guerrilheiros do continente marcou o final desse ciclo com um
duro golpe na primeira ofensiva revolucionária após o triunfo da Revolução Cubana.

Guerrilhas rurais ressurgiram na Guatemala e na Nicarágua, nos anos 1970, e adquiriram força em El
Salvador, marcando uma conflagração que se concentrou na América Central. Nessa fase, a estratégia dos
focos guerrilheiros articulou-se com as frentes de luta voltadas para a insurreição rural e semirrural. Em
outros termos, procurou-se adaptar a proposta cubana original com tipos de organização de massa no
campo e com a participação mais intensa da população rural na luta guerrilheira.

O triunfo sandinista na Nicarágua, em 1979, constituiu ponto de inflexão na região, pois incentivou o
segundo ciclo de guerrilhas na Guatemala e também uma grande expansão da luta armada em El
Salvador. A proposta sandinista afirmava o modelo de democracia representativa, de economia mista e de
política externa independente. Esse ciclo entrava em choque com a transformação da situação
internacional. A Revolução Sandinista tornou-se o alvo privilegiado da contraofensiva do governo Ronald
Reagan. Obrigada a concentrar esforços no enfrentamento militar com a oposição armada pelo governo
dos EUA, a Revolução Sandinista pagou o preço de ter o desenvolvimento econômico bloqueado. Esse
desgaste determinou o enfraquecimento do apoio da população ao governo sandinista e terminou
levando-o à derrota, em 1990, marco internacional do fim do campo socialista.

Em seguida, as guerrilhas salvadorenhas e guatemaltecas decidiram entrar em negociações de reciclagem


para o processo institucional, mas o apoio militar dos EUA aos governos que combatiam e a mudança da
relação de forças internacional tornara impossível seu triunfo. Fechou-se, assim, a vertente centro-
americana do segundo ciclo de lutas guerrilheiras na América Latina.

A segunda vertente da luta de guerrilhas deslocou-se para o Cone Sul do continente: para o Uruguai, o
Brasil e a Argentina e, coerente com a estrutura social dessa região, esteve mais concentrada nas lutas
urbanas. Com base na experiência cubana, mas procurando adaptá-la às condições de cada país, foi um
ciclo que se desenvolveu entre os anos 1967 e 1977.

No Brasil, as principais organizações foram a Ação de Libertação Nacional (ALN) e a Vanguarda Popular
Revolucionária (VPR), além de dezenas de outras, que introduziram formas de ação inovadoras, como o
sequestro de embaixadores estrangeiros para troca com militantes presos, assim como o desvio de aviões.
Essas ações faziam parte da acumulação de forças urbanas visando a construção de frentes rurais de
guerrilha.

O Movimento de Libertação Nacional, Tupamaros, foi o grande protagonista da luta de guerrilha urbana
no Uruguai, iniciando-se ainda sob a vigência do regime parlamentar e estendendo-se ao período de
militarização do poder. Desenvolveu ações de sequestro de agentes da contrainsurgência dos EUA, de
grandes empresários e de personalidades do regime. Notabilizou-se pelas frequentes redistribuições de
alimentos nos bairros populares. Em suma, sua estratégia centrada na guerrilha urbana, pela primeira vez
no continente, num país com forte concentração da população na capital, conseguiu acumular força
guerrilheira urbana de envergadura.

Na Argentina, as guerrilhas encontraram suas principais expressões nos Montoneros, na vertente


peronista, e no Exército Revolucionário do Povo (ERP), na vertente marxista. Os Montoneros assumiram
uma estratégia de guerrilha urbana, enquanto o ERP pretendia que a força acumulada nas cidades
desembocasse na guerrilha rural, de modo similar ao que ocorreu no Vietnã.

Os movimentos guerrilheiros dos três países do Cone Sul tiveram de enfrentar, em graus distintos, as
dificuldades de acumulação de força militar nos grandes centros urbanos, derivadas, especialmente, do
impacto da ação coordenada das ditaduras militares de vários países, na chamada Operação Condor, e dos
efeitos da doutrina de segurança nacional, que defendia a eliminação física dos insurgentes. O campo
mostrou-se mais propício à construção de uma força militar numerosa, com a possibilidade, inclusive, de
formar destacamentos regulares, como foi o caso do Exército Rebelde, na Revolução Cubana. Nos grandes
centros urbanos, porém, esse processo encontrou barreiras que os movimentos guerrilheiros não
conseguiram superar, sendo, finalmente, cercados, derrotados e destruídos.

As derrotas na América Central e no Cone Sul, concluindo o segundo ciclo de guerra de guerrilhas no
continente, revelaram o esgotamento dessa estratégia. A mudança radical na relação de forças
internacional, pendendo fortemente a favor dos EUA, e os seus reflexos diretos no fortalecimento das
Forças Armadas dos países da América Latina, criaram dificuldades novas e quase insuperáveis,
incentivando a mudança de estratégia da esquerda do campo militar para o campo da luta política
institucional e de massas.

As guerrilhas colombianas, levadas a cabo pelas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) e
pelo Exército de Libertação Nacional (ELN), com uma trajetória diferenciada no tempo em relação aos
outros movimentos guerrilheiros, sobrevivem em condições de duro assédio militar dos EUA. Acusada de
envolvimento com o narcotráfico, atacada pelos militares colombianos e norte-americanos, além dos
paramilitares, os dois movimentos guerrilheiros mantêm sua capacidade de ação em um quadro de
militarização geral do país. Pelo marco internacional, as condições de triunfo de cada uma das duas
frentes torna-se difícil, ao mesmo tempo em que, conforme as negociações têm se revelado um caminho
sem saída, o futuro da esquerda na Colômbia permanece em aberto, enquanto nos outros países a via da
luta de guerrilhas, como realizada nos períodos anteriores, deixou de existir.

Socialismo pela via institucional


A estratégia das frentes populares, aprovada nos anos 1930 pelos partidos comunistas, representou uma
ruptura com a clássica linha insurrecional do movimento comunista internacional. Ela propunha uma
estratégia de aliança com setores da burguesia industrial e uma evolução econômico-social por etapas.
Segundo essa concepção, a luta pelo socialismo na periferia do capitalismo deveria passar anteriormente
pela etapa nacional e antifeudal. Na mesma década, os governos das frentes populares antifascistas na
Espanha, na França e no Chile eram expressões dessa estratégia, que se manteve como linha oficial dos
partidos comunistas, sendo adotada, também, pelos partidos socialistas. Contudo, após as frentes
populares antifascistas, até a vitória eleitoral de Salvador Allende e da Unidade Popular, em 1970, não
houve novos governos que se propusessem a realizar a transição institucional nos moldes pregados pelos
partidos comunistas.

O Chile, que já havia tido um governo de Frente Popular, acabou sendo o único país no mundo que viveu
uma experiência de tentativa de transição institucional ao socialismo. Allende venceu após três tentativas
anteriores, apoiado na coalizão dos partidos socialista e comunista. Ascendeu na contracorrente da
esquerda dominante no continente que, na maioria dos países, apoiava a guerrilha. Ainda por cima,
chegou ao poder quando vários países do Cone Sul já se encontravam sob ditaduras militares.

O programa do governo Allende não obedecia integralmente à linha predominante na esquerda


internacional porque, embora se apoiasse na luta institucional, buscava a transição para o socialismo, sem
passar por uma etapa intermediária de desenvolvimento do capitalismo. Ou seja, era um programa
antimonopolista, que previa a nacionalização das 150 principais empresas privadas, dando início à
hegemonia do planejamento estatal da economia, considerado o eixo central da construção do socialismo.

A escolha da via legal baseou-se na confiança decorrente da longa tradição democrática do país, que tivera
uma evolução sem rupturas por quase um século e meio, com apenas dois momentos de regimes de força.
Desde os anos 1930, o Chile vivia uma situação de estabilidade institucional e os partidos comunista e
socialista já haviam participado, por meio da Central Sindical, do governo da Frente Popular.

A estratégia da esquerda chilena era a de avançar gradualmente até a socialização da economia. A vitória
eleitoral de Allende, no entanto, fora pela estreita margem de 36% dos votos e teve de ser ratificada pelo
Congresso, onde a Unidade Popular detinha representação ainda menor. Eleito com um programa radical,
de ruptura com o capitalismo, Allende foi obrigado a enfrentar a maioria parlamentar, a Justiça, a
burocracia estatal e a alta oficialidade das Forças Armadas, construídas pelo sistema político vigente que
não previa a possibilidade de transição a nenhum outro tipo de sociedade. Rapidamente, os obstáculos
políticos e institucionais começaram a bloquear o projeto de mudanças. Setores da classe média e da
burguesia mobilizaram-se contra a carestia. Grandes empresários passaram a boicotar a produção.
Embora os trabalhadores tivessem iniciado a ocupação das empresas, para forçá-las a produzir,
depararam com a Justiça, que ordenava a desocupação. Para enfrentar esses obstáculos, o governo
procurou cooptar até mesmo oficiais comprometidos com planos golpistas, como Augusto Pinochet que,
como ministro do Exército, comandou a subversão militar.

A Unidade Popular dividiu-se diante do dilema entre radicalizar o processo ou ampliar a aliança política.
Alguns defendiam as ações eficazes contra os golpistas e o aprofundamento do programa político, para o
que contavam com o apoio do Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR) e de uma parte do Partido
Socialista. Outros defendiam dar um passo atrás, construindo alianças mais amplas com os setores da
oposição de centro do Partido Democrata Cristão (PDC). Allende optou pela segunda alternativa, que não
teve tempo de ser testada. O golpe militar de 11 de setembro de 1973 destruiu a primeira tentativa
institucional de transição ao socialismo na América Latina.

A esquerda na era neoliberal


A passagem do período histórico de bipolaridade mundial para a da hegemonia unipolar norte-americana
teve reflexos imediatos na América Latina, como região de influência imperial direta dos Estados Unidos.
Nenhum setor da esquerda do continente deixou de ser afetado por essa transformação no plano
internacional, que se deu paralelamente ao esgotamento do Estado de bem-estar e sua substituição pelo
modelo neoliberal.

O golpe mais duro para a esquerda, especialmente para os partidos comunistas, veio com a perda da
referência histórica e ideológica: a desagregação da URSS e do campo socialista. Em todo o mundo, ela foi
obrigada a enfrentar a tese da irreversibilidade da vitória política e ideológica do capitalismo, diante do
que teria sido um fracasso do socialismo em escala histórica. O argumento que havia jogado
favoravelmente aos partidos comunistas – o de que o mundo avançaria irreversivelmente para o
socialismo – adquiriu direção inversa: vários partidos comunistas desapareceram ou mudaram de nome.

Os partidos comunistas do continente foram fortemente golpeados pela derrota do governo de Allende no
Chile e pela ação da repressão na luta contra as ditaduras militares. Perderam quadros e força política,
com suas divisões internas. A crise do socialismo real gerou a tendência ao abandono do nome
“comunista”, além de dificultar ainda mais o diálogo com as novas gerações. À medida que as forças
socialdemocratas e nacionalistas aderiam ao neoliberalismo, contribuíam para isolar ainda mais os
partidos comunistas, que deixaram de ser uma corrente com influência no continente.

Por outro lado, o desaparecimento do campo socialista, ao qual se havia integrado, atingiu duramente
Cuba, que perdeu não somente o fornecimento de petróleo soviético, como o mercado fundamental para a
exportação de seus principais produtos. O marco geral do planejamento socialista internacional a que
estava integrada Cuba desapareceu bruscamente. Em um mundo dominado pelo liberalismo econômico e
por regimes de direita, Cuba foi obrigada a sobreviver isolada. Como consequência, a economia do país
entrou em grave retrocesso, desembocando em sua maior crise desde o início do processo revolucionário.
A sobrevivência da revolução foi o resultado de uma resistência heroica do povo cubano, mas as medidas
necessárias para isso – legalização do mercado do dólar, autorização para o exercício privado de
profissões antes reservadas à esfera pública, extensão de investimentos mistos com capitais externos –
introduziram níveis de desigualdade antes inexistentes.

Se a via cubana, como estratégia de luta pelo poder, já havia deixado de ser a referência dominante na
esquerda latino-americana, com o desaparecimento da URSS e as dificuldades que o regime cubano
passou a enfrentar, o próprio modelo de construção do socialismo e inclusive a própria viabilidade do
socialismo começou a ser questionada na esquerda latino-americana.

A transição para o novo período no plano internacional, com a passagem à hegemonia neoliberal, teve
também como consequência a adesão, primeiro de forças nacionalistas, depois de socialdemocratas, ao
novo modelo. A implementação de políticas neoliberais ocorreu, simultaneamente, na Argentina e no
México, exatamente os países que haviam tido as forças nacionalistas mais importantes do continente.

Na Argentina, os governos de Carlos Saúl Menem (1989-99) levaram o peronismo a ser o agente da
implantação da modalidade mais radical de neoliberalismo na América Latina, com privatização de todo o
patrimônio público da Argentina – inclusive da Yacimientos Petrolíferos Fiscales (YPF) – e a decretação
da paridade entre o dólar e o peso. Aliando-se ao governo de Menem, a estrutura sindical peronista
abandonou o campo da esquerda, que ficou praticamente deserto. A ausência de resistências facilitou a
realização do projeto neoliberal.

Assumindo em oposição a Menem, mas dentro do peronismo, Néstor Kirchner, apesar de adotar uma
política de reestruturação da dívida externa – um tema caro à esquerda do continente – e outras medidas
de resistência ao capital financeiro, não sairia do modelo neoliberal em seus fundamentos centrais.

A conversão das forças nacionalistas foi decisiva para a generalização da aplicação de modelos neoliberais,
sendo acompanhada pelos partidos socialdemocratas. Tendo derrotado Pinochet, a aliança da Democracia
Cristã com o Partido Socialista, no Chile, manteve, no essencial, o modelo econômico herdado. Depois de
dois mandatos exercidos por presidentes democrata-cristãos, o socialista Ricardo Lagos chegou à
presidência e da mesma forma manteve o modelo voltado essencialmente para a exportação – que atinge
metade do PIB do país, numa economia que exibe um dos mais altos graus de “abertura” do mundo. Em
seu governo, foi assinado um acordo bilateral com os EUA, pelo qual o Chile abriu mão de grande parte da
sua soberania, consolidando a opção de livre-comércio dos socialistas.

Na Venezuela, Carlos Andrés Pérez, do Partido Ação Democrática, de orientação socialdemocrata, que já
governara nos anos 1970, conseguiu eleger-se de novo, em 1989, para imediatamente decretar um duro
pacote de ajustes neoliberal, o que gerou forte reação popular – conhecida como Caracaço –, mas, mesmo
assim, manteve sua adesão ao neoliberalismo.

No Brasil, foi o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), nos dois governos de Fernando Henrique
Cardoso (1994-2002), o agente da implantação decidida e sistemática do modelo neoliberal.

Pablo Neruda, Luis Corvalán, Alejandro Toro e outros dirigentes em Congresso do Partido Comunista chileno, sem data
definida (Biblioteca del Congreso Nacional de Chile)

Antineoliberalismo neoliberal e Venezuela


Posteriormente, o Brasil, com o Partido dos Trabalhadores (PT), e o Uruguai, com a Frente Ampla (FA),
procuraram capitalizar o descontentamento com os governos neoliberais. Embora essas duas formações
políticas sejam diferentes e apesar do esgotamento do modelo neoliberal, tanto Luiz Inácio Lula da Silva,
quanto Tabaré Vázquez , com pequenos reajustes, limitaram-se a dar continuidade às políticas
econômicas herdadas dos seus antecessores e adversários.

A luta contra o neoliberalismo e pela implantação de um modelo pós-neoliberal, que era o projeto
característico da esquerda, sofreu duros golpes. A diferença dos governos eleitos com promessas
antineoliberais, especialmente o de Lula, mas também o de Kirchner, na Argentina, ocorreu no plano da
política externa e na adoção de algumas modalidades de políticas sociais que, no entanto, não
ultrapassaram os marcos da prioridade do ajuste fiscal.

A política internacional do Brasil, tendo a Argentina como seu parceiro direto, mas contando também com
a Venezuela e Cuba, entre outros governos do continente, além da China, África do Sul e Índia, em escala
mundial, tem gerado espaços de integração e de aliança internacional, que contribuem para um mundo
multipolar, retirando áreas da influência direta da hegemonia dos EUA.

O caso da Venezuela é singular. A velha toupeira da revolução ressurgiu, de forma surpreendente, de um


movimento heterodoxo, surgido das Forças Armadas venezuelanas, até desenvolver rapidamente um
potencial anticapitalista a partir da radicalização de suas posições anti-imperialistas. Os fracassos do
governo socialdemocrata de Carlos Andrés Pérez – deposto por um impeachment e condenado à prisão –,
e de uma nova tentativa de implantação do neoliberalismo pelo outro partido tradicional – o Comitê
Político Eleitoral Independente (COPEI) Partido Social Cristão –, pelo também ex-presidente Rafael
Caldera –, a crise e o esgotamento dos dois partidos tradicionais abriram espaço para que novas
alternativas políticas ocupassem o vazio hegemônico aberto.

Hugo Chávez soube ocupá-lo, retomando o ideário nacionalista e de integração continental de Simón
Bolívar e criticando duramente a corrupção das elites tradicionais venezuelanas. Vencedor, ele deu início a
um processo de transformações, a princípio políticas, com plebiscito para uma nova Constituição, e, em
seguida, econômicas e sociais, em meio a uma violenta reação das elites tradicionais, que tentaram
derrubar seu governo por meio de locautes econômicos, greves da empresa petrolífera – a Petróleos de
Venezuela S.A (PDVSA) – e golpe de Estado. Tendo superado esses obstáculos, Chávez avançou a partir da
reapropriação da empresa de petróleo, da reunificação da Organização dos Países Exportadores de
Petróleo (OPEP) – para a qual seu governo teve papel essencial – e do aumento estrutural do preço do
petróleo, para, contando com esses recursos, desenvolver os mais amplos e profundos programas sociais
que o país já havia conhecido.

A esquerda na crise do neoliberalismo


A esquerda latino-americano ganhou contornos mais definidos nos primeiros anos do século 21. Esse
perfil foi moldado na luta contra os governos neoliberais e na construção de alternativas de superação do
modelo neoliberal.

O processo se inicia com a eleição de Hugo Chávez em 1998, na Venezuela, e avança com a eleição de Lula
em 2002, no Brasil, de Néstor Kirchner em 2003, na Argentina, de Tabaré Vázquez em 2004, no Uruguai,
até chegar às eleições de Evo Morales em 2005, na Bolívia, e, no ano seguinte, de Rafael Correa, no
Equador. Em comum, tais governos colocaram em prática programas antineoliberais, definindo a vertente
mais marcante da esquerda latino-americana no novo século. Comandados por partidos de esquerda –
Partido Socialista Unificado da Venezuela (PSUV), Partido dos Trabalhadores (PT), Frente para a Vitória,
na Argentina, Frente Ampla, no Uruguai, Movimento ao Socialismo (MAS), na Bolívia, e Aliança País, no
Equador – partilham as seguintes características: opção pelas políticas sociais em vez dos ajustes fiscais;
prioridade aos processos de integração regional e dos intercâmbios sul-sul em detrimento dos tratados de
livre comércio com os Estados Unidos; e o resgate do papel ativo do Estado na economia e no plano social,
no lugar do predomínio do mercado e da concepção de Estado mínimo que marcam o neoliberalismo.

O receituário progressista permitiu que esse conjunto de nações diminuísse significativamente a


desigualdade e a pobreza – características marcantes do continente – mesmo em meio à recessão mundial
iniciada em 2008. A aprovação veio pelas urnas, com a reeleição dos presidentes de esquerda ou então
com a eleição de seus indicados, estabelecendo uma continuidade de poder recorde em períodos
democráticos na região.

Dentro do conjunto de governos progressistas há nuances. Pode-se dizer que existe um grupo mais
moderado, antineoliberal, composto por Brasil, Argentina e Uruguai; e um grupo que pretende ser, além
de antineoliberal, anticapitalista, composto por Venezuela, Bolívia e Equador.

Outros países do continente seguem dirigidos por partidos de esquerda ou do campo progressista. É o
caso de Cuba, pelo Partido Comunista de Cuba, de El Salvador, pela Frente Farabundo Martí para a
Libertação Nacional, e da Nicarágua, pela Frente Sandinista.

No México, o Partido da Revolução Democrática se dividiu, dando origem ao Morena (Movimento de


Regeneração Nacional), sob a liderança de Andrés Manuel López Obrador. E, na Colômbia, o futuro da
esquerda está nas negociações de paz entre o governo e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia
(Farc), o que pode mudar significativamente o cenário político do país dos últimos cinquenta anos – em
especial, se envolver também o Exército de Libertação Nacional (ELN). Dessa forma, a luta armada
deixaria de existir no continente.

Bibliografia

GARCÉS, Joan E. Allende y la experiencia chilena: las armas de la política. Santiago de Chile:
Ensayos, 1990.
TUTINO, Saverio. L’octobre cubain. Paris: François Maspero, 1969.
LOWY, Michael (Org.). O marxismo na América Latina. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999.
RODRÍGUEZ-ARAÚJO, Octavio. Gauches et gauchisme. Nantes: L’Atalante, 2004.
SADER, Emir. A vingança da história. São Paulo: Boitempo, 2003.
SADER, Emir; GENTILE, Pablo. Posneoliberalismo. São Paulo: Paz e Terra, 1995.

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