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F L O R E S T A N F E R N A N D E S

O ARDIL DOS POLÍTICOS


FLORESTAN FERNANDES

N
ada soa mais falso que um político plica um preço político e ideológico. Realizá-
profissional querer passar-se como la e negar-se ao crivo da verdade define o pior
não sendo “político”. Um curriculum tipo de oportunismo político, que infelizmen-
completo faz fé. Alguém que se do- te grassa em nossa terra como tiririca. Porque
brou à ditadura, prestou-lhe serviços repousa em um profissionalismo político tra-
(e foi por ela recompensado), anuiu dicionalista, o qual confere ao político a liber-
ao papel de escudeiro de Paulo Salim Maluf dade de prometer tudo, de recorrer ao
e engalanou-se com o seu reconhecimento de clientelismo, ao paternalismo, ao mandonismo
valor, fruto do PDS em sua fase de “maior e, conforme as condições conjunturais, ao
partido do Ocidente” e agente da sua ativida- populismo e à demagogia – e depois dar o dito
de, com uma carreira que abrange postos no por não dito, curvando-se ao reacionarismo,
Legislativo e no Executivo, jamais poderia ao conservadorismo, ao culto narcisístico do
retratar-se como o avesso do político. Não há ego e do poder. Sujeito diligente da reprodu-
memória histórica no Brasil e essa circuns- ção da ordem, da associação entre arcaico e
tância favorece a cir- moderno, assim se ca-
culação de mentiras racteriza o perfil do po-
nada convencionais. lítico tradicionalista
Este texto foi publicado originalmente
Porém, toda opção im- na Revista USP no 3, em 1989, pp. 143-4. brasileiro, servo de sua

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Em Brasília, 1994,

durante o 9º Encontro

Nacional do PT

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grei e de seus próprios interesses ou alvos pes- atraentes, agora graças à modernização e à “cul-
soais. tura da comunicação em massa”. Será tudo tão
Penso que é impossível interpretar a posição simples? O povo nunca passará de bigorna a ma-
do sr. Fernando Collor de Mello de outra manei- lho? E quando isso transcorrer, que cabeças ro-
ra, de uma perspectiva psicossociológica. O larão, que interesses de classes terão de ser soter-
politicismo cansou o povo, repugna os cidadãos rados, que mundo social acabará destruído? O
revoltados contra a manipulação do poder esta- uso e o abuso de técnicas sociais ultrapassadas
tal. O candidato assumiu o antipoliticismo e lan- envolvem riscos insondáveis, em um certo mo-
çou-se à arena eleitoral como ferrenho adversá- mento, e as forças sociais que constroem a his-
rio do politicismo, ignorando sua longa e com- tória de uma nação com desenvolvimento capi-
provada vocação politicista. Combater Sarney talista desigual não estão à venda nem podem ser
não é, nos dias que correm, a única virtude – nem controladas a partir de um centro inviolável de
mesmo a principal virtude – de um candidato à poder. Se fosse assim, não haveria Revolução
Presidência que deva merecer uma escolha re- Russa, Revolução Chinesa ou Revolução Cuba-
fletida. Nenhum político autêntico pode deixar na. “Se arrependimento matasse”, as elites cegas
sem resposta o que significa o Estado de transi- e paralíticas diante dos enigmas históricos en-
ção prolongada (e isso importa em condenar um frentados por seus estamentos ou por suas clas-
governo desacreditado e seu chefe nominal). No ses e por suas nações ainda exerceriam o mono-
entanto, o sr. José Sarney Costa e o sr. Fernando pólio do poder, da riqueza e da cultura...
Collor de Mello não são apenas “farinha do Voltemos ao tema deste artigo. É cedo para
mesmo saco”. Ambos estão congenitamente dizer quem sairá vencedor nas próximas elei-
presos a um provincianismo constrangedor e apa- ções presidenciais. Porém, não possuímos a cul-
recem, apesar das animosidades recíprocas, como tura cívica e a estabilidade política dos Estados
irmãos siameses na arte da política tradicionalis- Unidos e do Canadá para “pré-fabricar” presi-
ta. Não que um revele, hoje, o que o outro será dentes ou primeiros-ministros, como se fossem
amanhã. O dilema é mais grave. Ambos são sabonetes, perfumes ou roupas da moda. “Fabri-
portadores de uma mentalidade política análoga car um presidente”, nas condições concretas do
e refletem um molde comum, do qual jamais Brasil atual, constitui uma ação irresponsável e
poderia nascer um estadista e que tem infestado temerária. Dadas as minhas convicções políti-
o Brasil como uma praga devastadora. Desse cas, deveria escrever exatamente o inverso. Mas,
ângulo, um se contrapõe ao outro no estilo dos por que provocar riscos prematuros e explosi-
desentendimentos provincianos e da ordem das vos, que não servirão para nada, a não ser para
bicadas: o espaço histórico não comporta os dois, conter os ritmos de nosso desenvolvimento eco-
enquanto seus objetivos forem divergentes. De- nômico, tecnológico e cultural? Para que fomen-
pois... Ora, depois, pior para nós! tar saídas ilusórias, que aumentarão o desespero
É trágico que semelhante figura seja fisgada dos de baixo e sua exasperação, decuplicando o
para a produção em massa da imagem do candi- desamor ao País e o ódio à política, em troca de
dato ideal à Presidência. Ficamos de novo ata- nada? Não é ainda certo que a forjicação de um
dos aos arcaísmos do passado remoto e recente. candidato pré-fabricado prepondere. Todavia,
Se a farsa continuar e conseguir êxito, perdere- para se instaurar uma democracia com dois pólos
mos mais uns dez ou vinte anos de nossa história, contraditórios ativos, um burguês e outro operá-
sem falar que a transição lenta, gradual e segura rio, temos de apagar páginas amargas e demolir
permanecerá garantida em suas bases político- hábitos e técnicas de dominação política ou de
administrativas indefinidamente. Não haverá a hegemonia cultural que são por si mesmos
sonhada ruptura com o estado de coisas existen- destrutivos (e, ainda mais, aniquiladores por seus
te e tampouco a necessária revolução democrá- efeitos e continuidade). Nada tenho pessoalmen-
tica se instaurará com a rapidez indispensável. te contra o sr. Fernando Collor de Mello. Entre-
Continuaremos no mais ou menos, nas ilusões tanto, desde criança aprendi pela experiência o
de mudanças iminentes, que sempre serão pro- que significa sua prática e sua fraseologia vazia
teladas, para “garantir a paz social”. Em suma, “antipoliticistas”. Temos de enveredar por cami-
através desses espécimes de pró-homens impro- nhos novos – desafiar o presente e o futuro. As
visados as elites das classes dominantes fazem ambigüidades e as astúcias dos políticos que pre-
fria e calculadamente o seu jogo, como se fos- tendem pairar “acima das classes” bloqueiam tais
sem capazes de criar história. Quando o povo caminhos e nos condenam ao caldeirão fervente de
descobrir o engodo, será tarde e as mesmas arti- uma ordem social fechada dentro do mundo sem
manhas serão reativadas sob outros artifícios mais humanidade de sua imensidão de iniqüidades.

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